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José Valentim Lemos - Ética e Criação - Escola Superior de Teatro ...

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Ouviram God Will, um tema gravado por Johnny Cash em 1958. Tendo atravessado um<br />

longo e difícil momento da sua vida, Johnny Cash reconhecia em <strong>de</strong>us o seu último<br />

interlocutor. E este sentimento revelava-se mesmo radicalmente superior à consciência<br />

plena que tinha do papel <strong>de</strong> Judy Carter, a sua segunda mulher, na sua recuperação. Mas<br />

eu sou agnóstico. Que vem por isso para aqui fazer uma canção que tem a ver com <strong>de</strong>us.<br />

Digamos que esta canção é como que a epígrafe da minha comunicação. Como todas as<br />

epígrafes ela só tem graça porque se presta a interpretações várias e por vezes mesmo<br />

inesperadas. Só posso dizer que se as epígrafes funcionam como chaves, esta que aqui<br />

vos entrego, com o seu cordãozinho para pôr ao pescoço, é uma chave verda<strong>de</strong>ira.<br />

E se comecei esta comunicação com uma epígrafe, vou continuá-la com uma<br />

<strong>de</strong>dicatória. Essa <strong>de</strong>dicatória é ao Pedro Cabrita Reis. Quando comecei a pensar neste<br />

tema como possibilida<strong>de</strong>, e antes ainda <strong>de</strong> a realização do ciclo ter sido <strong>de</strong>cidida, pus<br />

um periscópio <strong>de</strong> serviço. E foi assim que o periscópio começou a piscar furiosamente<br />

ao ler uma entrevista a propósito da sua Instalação no Centro <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna da<br />

Gulbenkian.<br />

Em certo momento o entrevistador, com aquela parolice comum, perguntava ao Pedro<br />

Cabrita Reis se ele se sentia um artista livre e como encarava as questões da política e<br />

da moral. Qual era a sua mensagem, digamos assim. E o meu amigo Cabrita Reis<br />

respondia-lhe que hoje, <strong>de</strong> facto, tinha condições para fazer o que quisesse porque os<br />

seus trabalhos lhe permitiam uma gran<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> económica, mas que basicamente<br />

sempre tinha sido essa a sua atitu<strong>de</strong>. E dizia, cito <strong>de</strong> cor, que quanto ao resto ele era <strong>de</strong><br />

uma outra geração, uma geração que dava importância à ética; e que se sentia<br />

absolutamente livre <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que as suas acções não trouxessem prejuízo a ninguém, não<br />

fossem feitas, e agora as palavras são minhas, a expensas alheias.<br />

Comecei pelo Cabrita Reis porque falar <strong>de</strong>le, do Calapez, ou mesmo do Croft, é <strong>de</strong><br />

alguma forma rever-me a mim próprio.<br />

Agora po<strong>de</strong>mos ir ter com o filosofo Aristóteles que no seu Liceu <strong>de</strong> Atenas falava<br />

acerca <strong>de</strong> diversas coisas e entre elas da ética.<br />

Como penso que já perceberam, isto não é uma lição <strong>de</strong> filosofia. Nem eu tenho uma<br />

formação específica em filosofia nem vocês são alunos <strong>de</strong> filosofia. Se em vez <strong>de</strong> fazer<br />

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a comunicação aqui a fosse fazer como convidado num curso <strong>de</strong> filosofia, escolheria<br />

uma outra abordagem, através <strong>de</strong> um outro tema.<br />

Nesse caso, po<strong>de</strong>ria falar, por exemplo, sobre os fundamentos do que se po<strong>de</strong> chamar<br />

uma ética grotowskyana, uma ética criativa, humanamente tão empenhada que acabaria<br />

por levar Grotowsky a abandonar o seu próprio teatro. É a terceira e última fase do seu<br />

percurso, aquela <strong>de</strong> que, creio, Georges Banu fala num dos seus textos, e que é<br />

antecedida por uma fase <strong>de</strong> incertezas a que pertence um texto notável que é Jours<br />

Saints.<br />

Mas aqui penso que mesmo com alguns riscos temos que ir ao básico, temos <strong>de</strong><br />

começar por aí.<br />

Um último esclarecimento antes <strong>de</strong> começar. Os termos ética e moral são geralmente<br />

vistos como sinónimos; muitos filósofos, inclusive contemporâneos, afirmam utilizar<br />

quer um quer outro <strong>de</strong> forma mais ou menos semelhante.<br />

Assim, Edgar Morin no sexto volume da sua Métho<strong>de</strong>, precisamente chamado Éthique,<br />

po<strong>de</strong> escrever: nous utiliserons indifféremment l'un et l'autre terme.<br />

No nosso caso, por uma questão metodológica outra, preten<strong>de</strong>-se separar estas duas<br />

asserções.<br />

De uma forma simples po<strong>de</strong>mos dizer que do ponto <strong>de</strong> vista em que nos colocamos<br />

<strong>Ética</strong> significa um conjunto <strong>de</strong> imperativos que o sujeito dotado <strong>de</strong> razão se impõe a si<br />

próprio em plena liberda<strong>de</strong>. E Moral <strong>de</strong>signa um conjunto <strong>de</strong> valores que actua um<br />

certo número <strong>de</strong> princípios, genericamente éticos, no contexto <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada<br />

cultura, socieda<strong>de</strong> ou patamar social, contexto em que se preten<strong>de</strong> impor uma<br />

<strong>de</strong>terminada "verda<strong>de</strong> total" ao indivíduo.<br />

Aristóteles viveu no Século Quarto anterior à E. C., Era Comum. Foi discípulo <strong>de</strong><br />

Platão na Aca<strong>de</strong>mia, <strong>de</strong>ixou Atenas, foi possivelmente perceptor <strong>de</strong> Alexandre so call O<br />

Gran<strong>de</strong> e mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong> regresso a Atenas, criou o Liceu on<strong>de</strong> dava as suas lições.<br />

São-lhe atribuídos não um mas, pelo menos, três conjuntos <strong>de</strong>dicados à ética: A <strong>Ética</strong> a<br />

Nicómaco, a <strong>Ética</strong> a Eu<strong>de</strong>mo, a Gran<strong>de</strong> <strong>Ética</strong>.<br />

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Diversos comentadores e tradutores parecem concordar com o facto <strong>de</strong> a segunda,<br />

menos "completa", integrar textos anteriores à primeira. Porque importa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo<br />

esclarecer que Aristóteles não escreveu nenhum livro com esses nomes, não escreveu<br />

aquilo a que nós hoje geralmente chamamos um livro. Eles constituem colectâneas <strong>de</strong><br />

lições <strong>de</strong> Aristóteles, ou <strong>de</strong> seus continuadores no Liceu e não têm, por isso, a unida<strong>de</strong><br />

que nos habituámos a esperar dos autores que integram mais directamente o nosso<br />

universo <strong>de</strong> referência.<br />

As lições, escritas pelo próprio ou transcritas por outros foram assim posteriormente<br />

compiladas em conjuntos que passaram a circular. Não há aqui tempo para <strong>de</strong>senvolver<br />

a questão mas é necessário lembrar as condições específicas em que se fazia a<br />

divulgação dos textos à época e basicamente até Gutenberg.<br />

Eram copiados à mão, por copistas profissionais ou amadores, muitas vezes, sobretudo<br />

<strong>de</strong> início, amadores, e recopiados uma e outra vez, acumulando erros, gralhas e más<br />

leituras que <strong>de</strong> tanto se repetirem se substituíam muitas vezes aos textos iniciais. A<br />

recomposição dos textos iniciais, o estabelecimento dos melhores manuscritos, é do<br />

âmbito do Criticismo Textual.<br />

Para uma abordagem divertida, bem humorada e agnóstica do tema aconselho a obra Os<br />

Monges que Traíram Cristo <strong>de</strong> Bart D. Ehrman, um especialista no domínio do<br />

criticismo textual aplicado à Bíblia.<br />

Assim, a actual disposição em capítulos dos textos <strong>de</strong> Aristóteles, por exemplo, é<br />

apenas uma opção editorial que se tornou dominante mas que tradutores e comentadores<br />

actuais, como Richard Bodéüs, já só utilizam com reticências.<br />

Vocês conhecem Aristóteles por causa da Poética, <strong>de</strong> que nos chegou a parte <strong>de</strong>dicada à<br />

tragédia, sendo perfeitamente sustentável que fosse complementada por outra que<br />

tivesse por objecto a comédia.<br />

É essa suposição, não meramente ficcional que serve <strong>de</strong> fundamento a O Nome da Rosa<br />

<strong>de</strong> Umberto Eco, que não brinca em serviço.<br />

Mas entre muitos outros textos <strong>de</strong> outros escritores encontramos o tema da Poética<br />

também em Jorge Luís Borges, na narrativa "La busca <strong>de</strong> Averrois" que pertence ao<br />

conjunto El Aleph, publicado em 1949.<br />

O texto <strong>de</strong> Borges é menos conhecido do que o <strong>de</strong> Eco. Mas isso é porque Sean<br />

Connery é um importante factor <strong>de</strong> divulgação.<br />

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Borges introduz, no entanto, um personagem da maior importância para o nosso<br />

assunto: Averrois. Na narrativa <strong>de</strong> Borges, o filosofo médico Averrois, o mais<br />

qualificado comentador <strong>de</strong> Aristóteles do seu tempo, traduz as obras do filósofo grego e<br />

vê-se forçado a reflectir sobre os termos tragédia e comédia. Todo o problema resi<strong>de</strong> no<br />

facto <strong>de</strong> no séc. XII E. C. o teatro europeu estar ainda no limbo (parece que o limbo já<br />

foi fechado por or<strong>de</strong>m da cúria romana) e no facto <strong>de</strong> a tradição do Islão não ter tradição<br />

teatral. Assim, para o Averrois ficcional <strong>de</strong> Borges o entendimento do texto <strong>de</strong><br />

Aristóteles revela-se muito difícil e para nós, leitores actuais, familiarizados com o<br />

teatro, muito divertido.<br />

O Filósofo Averróis foi "cadi" <strong>de</strong> Sevilha, que integrava então um po<strong>de</strong>roso califado e<br />

era um centro cosmopolita on<strong>de</strong> a circulação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias com alguma liberda<strong>de</strong> e a<br />

coabitação <strong>de</strong> raças e credos diversos era possível. O mesmo El-andaluz, a Andaluzia, a<br />

que pertencia também o sul <strong>de</strong> Portugal e que agora, ouvimos na rádio, os terroristas do<br />

Al Quaeda <strong>de</strong>cidiram recuperar; só falta mesmo virem os romanos, os gregos, os<br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes dos cartagineses e dos fenícios que foram dos primeiríssimos a chegar, ou<br />

os dos celtas e outros, reclamar também uma herança que se tornou comum.<br />

O gran<strong>de</strong> introdutor <strong>de</strong> Aristóteles na Europa e no pensamento cristão foi Tomás, so call<br />

São, natural <strong>de</strong> Aquino. Ao recorrer a Aristóteles, Tomás <strong>de</strong> Aquino procurava um<br />

duplo objectivo. Retirar o filósofo grego da alçada islamista e provocar um choque <strong>de</strong><br />

consciências num pensamento cristão em pleno processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradação.<br />

E encontrava um obstáculo: a<strong>de</strong>quar o pensamento do filósofo pagão ao sistema<br />

doutrinário cristão dominado pelo pensamento <strong>de</strong> Agostinho, so call São, um converso<br />

que nasceu em Tagasta, na Argélia actual, no Séc IV E. C.<br />

Assim, um pensamento que na origem estava virado para a socieda<strong>de</strong> civil, para a polis<br />

e não fazia sentido sem os textos recolhidos na compilação Os Políticos, foi<br />

reencaminhado para um sistema normativo que complementava e alargava a doutrina <strong>de</strong><br />

Agostinho e fundamentava uma or<strong>de</strong>m espiritual e moral próprias <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong><br />

cristã do século XIII, radicalmente diferente da socieda<strong>de</strong> em que fora inicialmente<br />

pensado. Para justificar o recurso a um filósofo pagão criou-se artificiosamente uma<br />

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i<strong>de</strong>ia, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que este fora um escolhido e fora tocado pela graça, tocado pela<br />

presciência do divino.<br />

Aristóteles escreveu e leccionou em Atenas no seu período <strong>de</strong> maior relevância, uma<br />

socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática só para os cidadãos e que era simultaneamente um socieda<strong>de</strong><br />

esclavagista. As suas palavras dirigiam-se a uma elite, num contexto em que existia um<br />

gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s divinas e quando se não podia sequer supor as Civilizações<br />

do Livro que nós hoje conhecemos.<br />

Para Aristóteles o Humano, através da <strong>Ética</strong>, da prática ética, procura o bem supremo, a<br />

felicida<strong>de</strong>. E como esclarece logo no princípio do Livro I da <strong>Ética</strong> a Nicómaco, esta<br />

busca é, em certo sentido <strong>de</strong> âmbito político, ou seja é orientada no e para o quadro<br />

social. Ela é acção e esta acção exige competência e consciência. Um acto bom<br />

praticado inconscientemente não tem qualquer mérito nem merece relevância.<br />

A ética supõe assim o estudo e a acção (que é especializada), o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

consciente <strong>de</strong> uma "disposição", cito as palavras <strong>de</strong> António <strong>de</strong> Castro Caeiro,<br />

disposição que, enquanto modo <strong>de</strong> ser adquirido, permita ultrapassar a passivida<strong>de</strong><br />

patológica e orientar os movimento <strong>de</strong> reacção dando-lhes um sentido.<br />

Lembra-nos que "le sujet docile <strong>de</strong> la loi peut parfaitement obéir aux impératifs <strong>de</strong> la<br />

loi, sans savoir pourquoi elle est juste et s'en remettre sur ce point à l'opinion", nos<br />

termos usados por Roger Bodéüs na apresentação que faz da sua tradução da <strong>Ética</strong> a<br />

Nicómaco.<br />

O pensamento e a acção éticos implicam pois competências e vonta<strong>de</strong>s que estão no<br />

quadro do Humano mas que <strong>de</strong>vem ser actuadas pelo sujeito individual. Dito em termos<br />

gerais, implicam uma conduta assente sobre conceitos, sobre princípios racionais que<br />

nós aplicamos à nossa acção e que só se justificam verda<strong>de</strong>iramente porque esta, através<br />

da sua experiência concreta, o justifica. Não há lugar para o "faz como digo, não faças<br />

como eu faço."<br />

Podíamos navegar através da obra <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s pensadores como Espinosa, Descartes,<br />

Kant ou Camus, o escritor pensador, sem nunca sair <strong>de</strong>ste mar imperativo.<br />

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A ética pressupõe, e esse é um ponto <strong>de</strong> convergência, um conjunto <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s através<br />

das quais um indivíduo ou uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>finem os seus comportamentos e mo<strong>de</strong>los.<br />

Mais, pressupõe a salvaguarda dos direitos do outro. Daí a referência inaugural a Pedro<br />

Cabrita Reis. A <strong>Ética</strong> política não po<strong>de</strong> ser dissociada da <strong>Ética</strong> individual e esta não se<br />

po<strong>de</strong> balançar entre esta e aquela conveniência. Num certo sentido a ética é sempre<br />

"inconveniente".<br />

Na busca concreta da felicida<strong>de</strong> suprema, o Humano, o Ser Humano, exercita o prazer, a<br />

virtu<strong>de</strong> e a sagacida<strong>de</strong>. Mas o mais qualificado não é forçosamente o mais feliz.<br />

Dispõe <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r, com ele po<strong>de</strong> afectar, alterar, mudar radicalmente a vida <strong>de</strong><br />

inúmeros seres humanos que não procuraram, não quiseram ou não pu<strong>de</strong>ram, procurar o<br />

mesmo e com a mesma intensida<strong>de</strong>.<br />

Ainda assim a felicida<strong>de</strong> suprema é irrealizável precisamente porque se confina ao<br />

espaço do humano. Daí a tensão que se po<strong>de</strong> ler na <strong>Ética</strong> a Nicómaco, sendo que a dado<br />

momento parece notar-se uma oscilação entre a valorização da sagacida<strong>de</strong>, enquanto<br />

acção elevada no domínio do social, e o prazer que o sábio retira <strong>de</strong> uma postura a um<br />

tempo contemplativa e reflexiva.<br />

Por isso Harris Rackham na introdução à tradução <strong>de</strong> Stephen Watt enfatiza o aspecto<br />

imediato do projecto <strong>de</strong> Aristóteles: uma vida boa numa socieda<strong>de</strong> organizada, o que só<br />

po<strong>de</strong> ser obra <strong>de</strong> estadistas altamente qualificados na boa governação e <strong>de</strong> cidadãos<br />

qualificados e empenhados na fiscalização e criação <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> seja bom<br />

viver. O empenho é assim simultaneamente geral, ou seja político e individual, ou seja<br />

social.<br />

Parece fácil mas não é.<br />

O normal é perante uma situação boa sentir agrado, mostrá-lo mesmo <strong>de</strong> forma<br />

abundantemente exuberante. Em literatura e no cinema é este sinal evi<strong>de</strong>nciador, este<br />

sinal +, que marca a fronteira entre erotismo e pornografia, ou, para ser mais preciso, a<br />

fronteira entre um tratamento reflectido do pornográfico como em Bataille e a<br />

pornografia vulgar (aqui um parêntesis: Georges Bataille não surge por acaso. Como<br />

Artaud, Bataille é, como diz Antoine Berman, um escritor da experiência a-teológica. O<br />

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próprio Bataille escreve em L' Experience intérieure: j'appelle experience un voyage au<br />

bout du possible. Santo e Louco, Georges Bataille e Antonin Artaud formam, <strong>de</strong> algum<br />

modo, com Jean Genet Martyr, uma trilogia da exclusão, um bando individual <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sesperados numa viagem ao fim do possível). Fechando o parêntesis: a pornografia é<br />

o mesmo que a gabarolice, o dote do fanfarrão.<br />

O normal é perante uma situação má mostrar receio, até terror, mijar nas calças. Aqui o<br />

sinal +, o sinal evi<strong>de</strong>nciador, é aquele que marca a diferença entre o sarcástico e o<br />

anedótico.<br />

O normal é tomar por bons provérbios da "sabedoria popular" como gato escaldado <strong>de</strong><br />

água fria tem medo, o que homologamente se traduziria em não tomar banho ou até não<br />

tocar em água e morrer por <strong>de</strong>sidratação. Ou quanto mais se sobe maior é a queda, o<br />

que <strong>de</strong>veria significar não <strong>de</strong>ixar a planície mítica, não morar para além do rés-do-chão<br />

e, a incongruência está aí, não mostrar quaisquer sinais +.<br />

Isto é o normal "normal". O Pedro e a Fly, o gato e a ca<strong>de</strong>la que vivem lá em casa são<br />

capazes disso. O que é que torna o ser humano "normal" superior a eles. Nada. Diria<br />

mesmo que ambos são mais qualificados para obter o que necessitam, comida, conforto,<br />

carinho, do que a maior parte das pessoas "superiores".<br />

Ao permitir-nos fazer opções, escolher isto em vez daquilo, escolher mesmo aquilo que<br />

num primeiro olhar não parece ser o melhor para nós, o pensamento ético dá-nos<br />

liberda<strong>de</strong>. E responsabilida<strong>de</strong>. Não dois em um mas uma que não vai sem a outra.<br />

O tema <strong>de</strong>sta comunicação é <strong>Ética</strong> e <strong>Criação</strong>.<br />

On<strong>de</strong> é que fica afinal a <strong>Criação</strong>.<br />

Mais uma vez recorro ao meu amigo Pedro Cabrita Reis para a resposta. Atenção: não o<br />

cito, sou eu que dou a resposta.<br />

Qual é a utilida<strong>de</strong>, qual é a mensagem, qual é o significado da Instalação no Centro <strong>de</strong><br />

Arte Mo<strong>de</strong>rna da Gulbenkian. São três perguntas.<br />

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À primeira respondo que a utilida<strong>de</strong> é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, para o artista, também para a<br />

Fundação que vê o evento como acto <strong>de</strong> prestígio e, no geral, para todos quantos gostam<br />

<strong>de</strong> viver e <strong>de</strong> reflectir sobre a arte.<br />

À segunda respondo: nenhuma. O artista terá tirado da sua execução material reflexão,<br />

mas cabe a cada um dos cidadãos que voluntariamente ali vão, encontrar, elaborar,<br />

construir, as suas próprias exigências.<br />

À terceira respondo: não sei. É óbvio que significa alguma coisa. Seja o que for, a partir<br />

do momento em que existe significa alguma coisa. Até a ausência da coisa significa<br />

alguma coisa se a coisa não estiver on<strong>de</strong> é suposto estar.<br />

A criação artística implica uma necessida<strong>de</strong> implícita, diria <strong>de</strong>sesperada, <strong>de</strong> fazer:<br />

escrever um livro, pintar um quadro, fazer um filme, encenar essa necessida<strong>de</strong>. Essa<br />

necessida<strong>de</strong> é elemento obrigatório mas não suficiente.<br />

À necessida<strong>de</strong> há que acrescentar qualificação, competência no domínio específico em<br />

que o acto <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperada terá lugar. Po<strong>de</strong> haver quem veja nisso génio,<br />

mas, em si, o génio não será mais do que uma predisposição superior. Se esta existe tem<br />

<strong>de</strong> ser actuada, construída. Não há génios incompreendidos, o mais que po<strong>de</strong> haver, se é<br />

que o são <strong>de</strong> facto, o que nunca se po<strong>de</strong>rá provar, é génios incompetentes. Sobre eles a<br />

História fecha os olhos, como é costume fazer aos cadáveres (quando há tempo e não<br />

são <strong>de</strong>masiados), como se os olhos <strong>de</strong>les se não tivessem já fechado.<br />

É tudo quanto há a dizer sobre o assunto. O resto são práticas culinárias como<br />

mencionava Brecht, e mesmo essas exigem níveis formais <strong>de</strong> competência elevados. Em<br />

última instância será sempre mais útil ler um bom livro <strong>de</strong> culinária do que um mau<br />

livro <strong>de</strong> teatro.<br />

Um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> pessoas, um gran<strong>de</strong> número mas não o maior número,<br />

compreen<strong>de</strong> hoje que o simples facto <strong>de</strong> acen<strong>de</strong>r uma luzinha, uma lâmpada <strong>de</strong> 60<br />

watts, significa lançar um pouco mais <strong>de</strong> dióxido <strong>de</strong> carbono para a atmosfera.<br />

Mas muito poucas compreen<strong>de</strong>m que a mais pequena atitu<strong>de</strong>, mesmo aparentemente<br />

insignificante, contribui para tornar o mundo diferente.<br />

Tinha pensado acabar esta comunicação com alguns comentários sugeridos pela leitura<br />

da <strong>Ética</strong> Prática, <strong>de</strong> Peter Singer, um académico americano, recentemente editada pela<br />

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Gradiva. Mas quando revia o primeiro terço <strong>de</strong>sta comunicação, no passado domingo à<br />

noite, resolvi <strong>de</strong>ixar por algum tempo a secretária e ir comer qualquer coisa e ver um<br />

pouco <strong>de</strong> televisão. O écran estava seleccionado na Sic. Notícias e fui zappeando até à<br />

RTP 1 sem encontrar o que quer que fosse <strong>de</strong> interesse. Já me preparava para continuar<br />

a zappear do fim para o princípio quando a minha atenção foi ligeiramente atraída por<br />

uma imagem que passara dois segundos no écran. Voltei atrás e ela continuava lá. Um<br />

homem negro, correctamente vestido, junto à piscina do que parecia um hotel nos<br />

trópicos, aproximava-se <strong>de</strong> uma mesa on<strong>de</strong> estava um outro negro, fardado, e um<br />

branco, também fardado. Podia ser mais uma cena <strong>de</strong> um filme à Bond não fora um<br />

pequeno <strong>de</strong>talhe. O negro fardado estendia a mão ao negro à civil mas este, embora<br />

cumprimentando-o <strong>de</strong>licadamente, não lhe apertava a mão. Mas apertava a mão do<br />

branco fardado. Foi este <strong>de</strong>talhe que me pren<strong>de</strong>u a atenção e a reteve durante quase duas<br />

horas. Não tinha ido buscar o jornal reservado na lojinha do costume, por isso não sabia<br />

o nome do filme, nem o do realizador. Reconhecia alguns dos actores principais mas<br />

não era capaz <strong>de</strong> lhes dar nomes. E no entanto aquela simples sequência <strong>de</strong> imagens<br />

alterou bastante o final <strong>de</strong>sta minha comunicação.<br />

Assim, vou acabar com uma história. Nem injunções, nem prédicas, nem <strong>de</strong>safios. Só<br />

uma história.<br />

O branco fardado é um coronel da ONU. O negro fardado é um general Hutu. O negro<br />

civil o gerente do hotel. É Hutu. A acção passa-se no Ruanda.<br />

O coronel branco mostra-se preocupado com a ameaça das milícias <strong>de</strong> radicais hutu. O<br />

general negro preten<strong>de</strong> tranquilizá-lo: temos as milícias sob controle. O gerente escuta.<br />

Depois, no bar do hotel o operador <strong>de</strong> câmara – branco –conversa com um negro. Tu és<br />

o quê. Tutsi, respon<strong>de</strong> o negro. Porque é que as milícias vos querem liquidar. Foram os<br />

belgas que criaram o problema. Os tutsis são mais altos e claros que os hutus. Quando o<br />

Ruanda estava sob administração belga, os belgas diferenciavam os tutsis dos hutus.<br />

Chegavam a medir as narinas para atestar quem era tutsi e quem era hutu. A<br />

administração colonial apoiava-se na elite tutsi. Mas <strong>de</strong>ixou o po<strong>de</strong>r aos hutus. As<br />

milícias são armadas pelos franceses, respon<strong>de</strong> o negro. E a senhora é o quê, pergunta o<br />

operador <strong>de</strong> câmara a uma jovem sentada ao balcão do bar. Hutu, respon<strong>de</strong>. E a sua<br />

amiga. Eu sou tutsi. Não entendo diz o operador. E o senhor é o quê, pergunta ao<br />

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gerente. Eu sou hutu, mas po<strong>de</strong> confiar nele, é o nosso melhor jornalista, respon<strong>de</strong> o<br />

gerente.<br />

O gerente chega a casa. A mulher é tutsi, os filhos <strong>de</strong> ambos brincam no jardim. O pai<br />

dá-lhes chocolates. Não os comam antes do jantar, diz a mãe. Estão lá o cunhado, a<br />

mulher e os filhos <strong>de</strong>ste. São visivelmente tutsis.<br />

À noite acordam com barulho na rua. Espreitando pelo portão entreaberto vêem um<br />

vizinho tutsi ser preso pelos militares. É um espião dos rebel<strong>de</strong>s tutsis, dizem os<br />

militares, enquanto agri<strong>de</strong>m o homem com brutalida<strong>de</strong>.<br />

Regresso ao quarto. Tens <strong>de</strong> fazer alguma coisa por ele. Não há nada a fazer. Telefona a<br />

um dos teus amigos no governo. Passo o tempo a comprá-los com o melhor whiskey e<br />

os melhores havanos para quando estivermos em apuros. Eles são bons vizinhos.<br />

Vivemos tempos difíceis, a família está primeiro. Ele é um bom vizinho. Ele não é da<br />

família.<br />

No dia seguinte o governo hutu e os rebel<strong>de</strong>s tutsi assinam o acordo <strong>de</strong> paz negociado<br />

pela Onu. O presi<strong>de</strong>nte discursa. Brinda-se. Aplau<strong>de</strong>-se. O cunhado do gerente procurao<br />

no hotel. Sei <strong>de</strong> fontes no governo que há um plano para nos liquidar. Cortem as<br />

árvores altas. Esse será o sinal. Querem o teu emprego. Temos <strong>de</strong> ter confiança. A Onu<br />

está cá. Eles não vão po<strong>de</strong>r fazer-nos mal. Temos <strong>de</strong> partir. Deixa-me ao menos levar a<br />

tua mulher e as crianças. Tu não corres perigo. Tu és hutu. Não vai acontecer nada.<br />

Confia em mim. Amanhã falamos outra vez.<br />

Falta a luz. Não é nada, o hotel tem geradores <strong>de</strong> emergência. As luzes voltam a<br />

acen<strong>de</strong>r-se. Em volta da piscina casais dançam.<br />

O gerente chega a casa. Não há luz. Leva uma lanterna da carrinha. A casa parece<br />

<strong>de</strong>serta. Entra na sala. Um grito colectivo. A lanterna mostra caras assustadas. A mulher<br />

do gerente sai do grupo. Têm medo. És o único hutu em que confiam.<br />

Um momento: um avião explo<strong>de</strong> nos ares, um presi<strong>de</strong>nte assassinado, milícias radicais,<br />

interhamwe, passam insectos à catana. Uma mulher branca diz: estão a matar crianças<br />

para eliminar a próxima geração.<br />

Um momento: um capitão negro manda o gerente negro matar insectos. Não sei usar<br />

armas. É fácil, dispara. Mata-os. Quanto lhe pago para não fazer isto. Queres pagar-me.<br />

Por que não. Já olhou bem para eles. Não lhe servem para nada. Por que não ser pago<br />

pelo seu trabalho. Combien. Name a price.<br />

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Um momento: uma rádio transmite a notícia. Americanos e ingleses querem a ONU<br />

fora do Ruanda. 1268 negros, tutsis, hutus, no Mille Colines. Name a price. Brancos<br />

partem em longos autocarros brancos. Chove torrencialmente. Crianças cantam um<br />

a<strong>de</strong>us à chuva.<br />

Um momento: corpos mortos no nevoeiro. A per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista. Telefonem a todos os<br />

vossos amigos brancos. Têm <strong>de</strong> lhes dizer o que está a acontecer. Despeçam-se <strong>de</strong>les.<br />

Mas ao <strong>de</strong>spedirem-se, façam como se lhes pegassem nas mãos pelo telefone. Façamnos<br />

perceber que se retirarem as mãos vocês morrem.<br />

Liberda<strong>de</strong> e responsabilida<strong>de</strong>. Acto <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperada. Aristóteles, Averrois,<br />

Camus. Le sujet docile <strong>de</strong> la loi peut s'en remettre sur l'opinion.<br />

Não, não é uma história <strong>de</strong> tutsis bons e <strong>de</strong> hutus maus. Talvez nem sequer seja, como<br />

aparenta, uma história africana. É uma história sobre a consciência pessoal e a<br />

brutalida<strong>de</strong> colectiva, sobre a honra <strong>de</strong> uns quantos e a <strong>de</strong>sonra <strong>de</strong> muitos. A <strong>de</strong>sonra<br />

dos governos que promoveram, armaram, fecharam os olhos ao genocídio, ao<br />

extermínio em massa, ao crime contra a humanida<strong>de</strong>. É um filme sobre a <strong>de</strong>sonra<br />

pessoal <strong>de</strong> cada um dos espectadores que viram o filme (e <strong>de</strong> todos os que o não viram e<br />

portanto nem isso sabem). É a <strong>de</strong>sonra dos telespectadores que hoje olham o Darfur, o<br />

Iraque, com um misto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinteresse e pieda<strong>de</strong>, mesmo, talvez, um poucochinho muito<br />

pequenino <strong>de</strong> compaixão.<br />

Há entre nós muitos mortos que não sabem que morreram, vagueiam <strong>de</strong> olhos abertos<br />

como se vissem alguma coisa.<br />

Hão-<strong>de</strong> ser estes mortos a enterrar a <strong>de</strong>mocracia.<br />

O filme, sei-o agora, é Hotel Rwanda, <strong>de</strong> Terry Georges. Nick Nolte protagoniza. É <strong>de</strong><br />

2005. Foi nomeado para os Óscares em três categorias: melhor actor, melhor actriz<br />

secundária e melhor argumento.<br />

A história é verídica. Três Óscares. Não ganhou nenhum.<br />

30-04-2007 11

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