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Ensaio sobre a cegueira - Revista Espaço Acadêmico

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Diante das necessidades animais os humanos deixam em segundo plano os seus vínculos<br />

afetivos e princípios morais, como o faz o rapazito estrábico que diante da fome deixa de<br />

chorar a ausência da mãe, e como fazem os cegos que preferem seguir as "razões do<br />

estômago" a se preocuparem com o destino dos colegas de infortúnio que são mortos quando<br />

tentavam alcançar as caixas de alimentos deixadas pelos soldados no pátio do manicômio, e<br />

"...ninguém parecia interessado em saber quem tinha morrido" (EC: 92).<br />

A personagem "rapariga dos óculos escuros" também será apresentada na narrativa com a<br />

mesma generosidade com que, a princípio, o narrador tentou relativizar a atitude do "ladrão de<br />

automóvel". Considerada prostituta, a moça é defendida dos julgamentos preconceituosos,<br />

peremptórios e definitivos: "Ela tem, como a gente normal, uma profissão, e também como a<br />

gente normal, aproveita as horas que lhe ficam para dar algumas alegrias ao corpo e<br />

suficientes satisfações às necessidades, as particulares e as gerais. Se não se pretender reduzila<br />

a uma definição primária, o que finalmente se deverá dizer dela, em lato sentido, é que vive<br />

como lhe apetece e ainda por cima tira daí o prazer que pode." (EC: 31)<br />

A simpatia do narrador para com a personagem "rapariga dos óculos escuros" provoca uma<br />

nova absolvição da moça, desta vez no episódio em que ela reage ao assédio sexual do "ladrão<br />

de automóveis", causando-lhe um ferimento na perna, mesmo se depois tal ferimento levará o<br />

ladrão a procurar a ajuda de um soldado, recebendo por isso uma inesperada rajada de tiros.<br />

Numa digressão, o narrador menciona, então, um tipo de <strong>cegueira</strong> impossível de ser superada<br />

pelos humanos, que é a <strong>cegueira</strong> provocada pela impossibilidade de previsão de todas as<br />

conseqüências, desejadas ou não, do seus atos:<br />

"... se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar<br />

nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as<br />

imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse<br />

feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõese<br />

que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo<br />

aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos<br />

ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala" (EC:<br />

84).<br />

Cegueira é também a insensibilidade e a indiferença diante do infortúnio do outro, como as<br />

sofre o próprio médico ao tentar avisar o Ministério da Saúde <strong>sobre</strong> a epidemia de <strong>cegueira</strong>. O<br />

médico, então, conclui: "É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade<br />

de ruindade" (EC: 40). Para se livrarem rapidamente de suas responsabilidades, enquanto o<br />

Ministro da Saúde e seu assessor acreditavam que o problema atingiria apenas uma minoria,<br />

trataram de isolar os cegos contagiados em um manicômio de modo a que estivessem longe da<br />

vista dos demais e não pudessem incomodar, analogamente à maneira como as sociedades<br />

modernas tratam os indivíduos considerados loucos. Ao chegarem ao local em que ficariam<br />

reclusos, o médico e sua esposa percebem o significado do tratamento que estão recebendo:<br />

"Isto é uma loucura", constata o médico, e sua esposa concorda: "Deve ser, estamos num<br />

manicômio" (EC: 48).<br />

Para isolar os cegos do restante da sociedade ainda sã, o governo dirige aos cegos um<br />

tratamento disciplinar impessoal, hierarquizado e autoritário, transformando o manicômio em<br />

um campo de concentração, como se pode constatar no comunicado divulgado aos internos<br />

através de um alto falante:<br />

"O Governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades e espera que aqueles a<br />

quem esta mensagem se dirige assumam também, como cumpridores cidadãos que devem de<br />

ser, as responsabilidades que lhes competem, pensando que o isolamento em que agora se<br />

encontram representará, acima de quaisquer outras considerações pessoais, um acto de<br />

solidariedade para com o resto da comunidade nacional. Dito isto, pedimos a atenção de todos<br />

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