Ensaio sobre a cegueira - Revista Espaço Acadêmico
Ensaio sobre a cegueira - Revista Espaço Acadêmico
Ensaio sobre a cegueira - Revista Espaço Acadêmico
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
(EC: 167). O discurso do marido pareceu desproposital à esposa que contestou-o: "Sou tanto<br />
como as outras, faço o que elas fizerem". O marido resistiu: "Só fazes o que eu mandar...", E a<br />
esposa retorquiu: "Deixa-te de autoridades, aqui não te servem de nada, estás tão cego como<br />
eu". O marido ainda tentou uma admoestação moral contra a esposa: "É uma indecência".<br />
Mas a esposa se revela consciente de sua condição de igualdade em relação ao marido e às<br />
outras mulheres: "Está na tua mão não seres indecente, a partir de agora não comas..." E o<br />
narrador concluiu o debate: "...foi esta a cruel resposta, inesperada em pessoa que até hoje se<br />
mostrara dócil e respeitadora do seu marido". (EC: 168). A decisão do grupo será atender à<br />
exigência dos cegos malvados, submetendo o corpo das mulheres à violência do outro grupo<br />
em troca dos alimentos. Em meio à degradação de suas vidas os cegos se apegarão ao que lhes<br />
parecerá como essencial. Mesmo as convenções morais mais arraigadas no imaginário<br />
individual e coletivo cedem diante da necessidade de alimentos e do medo da opressão<br />
exercida pelos malvados. A decisão de acatar a exigência dos cegos malvados será assimilada<br />
pelo grupo com um verdadeiro ritual sexual assim descrito pelo narrador:<br />
"Há que dizer, ainda, que duplamente estão estas mulheres folgando, assim são os mistérios da<br />
alma humana, pois a ameaça, de todos os modos próxima, da humilhação a que irão ser<br />
sujeitas, acordou e exacerbou, dentro de cada camarata, apetites sensuais que a continuação da<br />
convivência havia debilitado, era como se os homens estivessem pondo nas mulheres<br />
desesperadamente a sua marca antes que lhas levassem, era como se as mulheres quisessem<br />
encher a memória de sensações experimentadas voluntariamente para melhor se poderem<br />
defender da agressão daquelas que, podendo ser, recusariam." (EC: 169)<br />
Aos poucos os humanos vão retornando, assim, à sua condição animal, suspensas muitas das<br />
suas aquisições culturais. Inúmeras são as situações em que o comportamento dos cegos no<br />
manicômio é descrito como próprio de animais: Desconfiados os cegos ficavam "...tensos, de<br />
pescoço estendido como se farejassem algo..." (EC: 49); eram "trazidos em rebanho" e<br />
"esbarravam uns nos outros" (EC: 72); se movimentavam "...de gatas, de cara rente ao chão<br />
como suínos" e os soldados os viam como "...imbecis que se moviam diante dos seus olhos<br />
como caranguejos coxos, agitando as pinças trôpegas à procura da perna que lhes faltava"<br />
(EC: 105). Os relacionamentos sexuais entre os cegos eram recriminados por eles mesmos<br />
como próprios de porcos. Quando as mulheres chegam à camarata dos malvados para atender<br />
suas exigências, o comportamento deles é descrito como se fosse de animais: "De dentro<br />
saíram gritos, relinchos, risadas... Depressa, meninas, entrem, entrem, estamos todos aqui<br />
como uns cavalos, vão levar o papo cheio, dizia um deles... Os cegos relincharam, deram<br />
patadas no chão...".<br />
O líder dos cegos malvados, portador de uma arma que lhe garantia a submissão dos demais,<br />
comportava-se como um gorila que escolhe para si as fêmeas do grupo: "...Excitado, enquanto<br />
continuava a apalpar a rapariga, passou à mulher do médico, assobiou outra vez, esta é das<br />
maduras, mas tem jeito de ser também rica fêmea. Puxou para si as duas mulheres, quase se<br />
babava quando disse, Fico com estas, depois de as despachar passo-as a vocês". (EC: 176)<br />
Quando terminava o ato sexual com a rapariga dos óculos escuros, o líder dos cegos malvados<br />
"...sacudiu-se todo, deu três sacões violentos como se cravasse três espeques, resfolegou como<br />
um cerdo engasgado, acabara" (EC: 177).<br />
Uma das mulheres não resiste aos maus tratos recebidos e morre. A violência sofrida pela<br />
morta, agride psicologicamente às demais mulheres e a mulher do médico conclui, ao retornar<br />
à sua camarata e ao seu esposo: "...já não somos as mesmas mulheres que daqui saímos... o<br />
inominável existe, é esse o seu nome, nada mais" (EC: 179).<br />
O narrador também dá a voz a um cego que, como um animal domesticado que a tudo se<br />
adapta, aceita cômoda e fatalisticamente a situação em que viviam os cegos reclusos:<br />
4