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Ensaio sobre a cegueira - Revista Espaço Acadêmico

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<strong>Revista</strong> <strong>Espaço</strong> <strong>Acadêmico</strong>, nº 88, setembro de 2008<br />

http://www.espacoacademico.com.br/088/88praxedes.pdf<br />

<strong>Ensaio</strong> <strong>sobre</strong> a <strong>cegueira</strong>: a <strong>cegueira</strong> como metáfora no livro de José<br />

Saramago<br />

Walter Praxedes *<br />

No romance <strong>Ensaio</strong> <strong>sobre</strong> a <strong>cegueira</strong> (1995), de José Saramago, a <strong>cegueira</strong> descrita é<br />

representada através de inúmeras metáforas. Já no início da narrativa as personagens são<br />

acometidas pelo chamado "mal branco", impossível de ser diagnosticado como um dos tipos<br />

já conhecidos de <strong>cegueira</strong>. Considerando a <strong>cegueira</strong> como metáfora, ao longo deste romance<br />

Saramago tenta explicar como as pessoas vão se tornando cegas no mundo contemporâneo,<br />

como inexplicavelmente ocorreu com o primeiro cego, primeira personagem apresentada na<br />

narrativa, que cegou quando conduzia o seu automóvel: de repente a realidade tornou-se<br />

indiferenciada à sua volta.<br />

Quando o "primeiro cego" chegou ao consultório do oftalmologista para tentar descobrir uma<br />

solução para o seu problema de visão, o médico considerou o caso urgente e passou-o à frente<br />

dos demais pacientes que aguardavam pela consulta. Porém, a mãe de um menino que<br />

aguardava sua vez não se sensibilizou diante da urgência do paciente inesperado e<br />

"...protestou que o direito é o direito, e que ela estava em primeiro lugar, e à espera a mais de<br />

uma hora. Os outros doentes apoiaram-na em voz baixa, mas nenhum deles, nem ela própria,<br />

acharam prudente insistir na reclamação, não fosse o médico ficar ressentido e depois pagarse<br />

da impertinência fazendo-os esperar ainda mais" (EC: 22).<br />

A pressa e insensibilidade desses pacientes diante de um indivíduo com um problema<br />

considerado mais urgente pelo médico talvez seja um primeiro indício apresentado pelo<br />

narrador de que a <strong>cegueira</strong> pode ser provocada pelo distanciamento existente entre os<br />

indivíduos nas sociedades modernas. Um distanciamento que leva cada um a observar apenas<br />

os seus próprios interesses, interesses tais que só serão limitados pelo cálculo da<br />

conveniência: "...na verdade, sentencia o narrador deste romance, ainda está por nascer o<br />

primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais<br />

dura que a outra, que por qualquer coisa sangra" (EC: 169).<br />

O egoísmo como <strong>cegueira</strong> é novamente mencionado quando o transeunte que ajuda o primeiro<br />

cego a voltar para casa aproveita-se da ocasião para roubar-lhe o automóvel. Mas o narrador<br />

não realiza um julgamento apressado da atitude do ladrão, e considera-o um "...simples<br />

ladrãozeco de automóveis sem esperança de avanço na carreira, explorado pelos verdadeiros<br />

donos do negócio, que esses é que se vão aproveitando das necessidades de quem é pobre"<br />

(EC: 25). Pelo visto, o narrador relativiza a importância do crime do roubo para colocar em<br />

evidência o seu julgamento <strong>sobre</strong> os motivos que levam os indivíduos a buscarem os seus<br />

interesses por meios escusos: "...No fim das contas, estas ou outras, não é assim tão grande a<br />

diferença entre ajudar um cego para depois o roubar e cuidar de uma velhice caduca e<br />

tatibitate com o olho posto na herança" (EC: 25).<br />

* Docente na Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Ciências Sociais; Doutor em Educação pela<br />

USP e co-autor de O Mercosul e a sociedade global (São Paulo, Ática, 1998) e Dom Hélder Câmara: Entre o<br />

poder e a profecia, publicada no Brasil pela Editora Ática (1997) e na Itália pela Editrice Queriniana (1999).


Diante das necessidades animais os humanos deixam em segundo plano os seus vínculos<br />

afetivos e princípios morais, como o faz o rapazito estrábico que diante da fome deixa de<br />

chorar a ausência da mãe, e como fazem os cegos que preferem seguir as "razões do<br />

estômago" a se preocuparem com o destino dos colegas de infortúnio que são mortos quando<br />

tentavam alcançar as caixas de alimentos deixadas pelos soldados no pátio do manicômio, e<br />

"...ninguém parecia interessado em saber quem tinha morrido" (EC: 92).<br />

A personagem "rapariga dos óculos escuros" também será apresentada na narrativa com a<br />

mesma generosidade com que, a princípio, o narrador tentou relativizar a atitude do "ladrão de<br />

automóvel". Considerada prostituta, a moça é defendida dos julgamentos preconceituosos,<br />

peremptórios e definitivos: "Ela tem, como a gente normal, uma profissão, e também como a<br />

gente normal, aproveita as horas que lhe ficam para dar algumas alegrias ao corpo e<br />

suficientes satisfações às necessidades, as particulares e as gerais. Se não se pretender reduzila<br />

a uma definição primária, o que finalmente se deverá dizer dela, em lato sentido, é que vive<br />

como lhe apetece e ainda por cima tira daí o prazer que pode." (EC: 31)<br />

A simpatia do narrador para com a personagem "rapariga dos óculos escuros" provoca uma<br />

nova absolvição da moça, desta vez no episódio em que ela reage ao assédio sexual do "ladrão<br />

de automóveis", causando-lhe um ferimento na perna, mesmo se depois tal ferimento levará o<br />

ladrão a procurar a ajuda de um soldado, recebendo por isso uma inesperada rajada de tiros.<br />

Numa digressão, o narrador menciona, então, um tipo de <strong>cegueira</strong> impossível de ser superada<br />

pelos humanos, que é a <strong>cegueira</strong> provocada pela impossibilidade de previsão de todas as<br />

conseqüências, desejadas ou não, do seus atos:<br />

"... se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar<br />

nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as<br />

imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse<br />

feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõese<br />

que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo<br />

aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos<br />

ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala" (EC:<br />

84).<br />

Cegueira é também a insensibilidade e a indiferença diante do infortúnio do outro, como as<br />

sofre o próprio médico ao tentar avisar o Ministério da Saúde <strong>sobre</strong> a epidemia de <strong>cegueira</strong>. O<br />

médico, então, conclui: "É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade<br />

de ruindade" (EC: 40). Para se livrarem rapidamente de suas responsabilidades, enquanto o<br />

Ministro da Saúde e seu assessor acreditavam que o problema atingiria apenas uma minoria,<br />

trataram de isolar os cegos contagiados em um manicômio de modo a que estivessem longe da<br />

vista dos demais e não pudessem incomodar, analogamente à maneira como as sociedades<br />

modernas tratam os indivíduos considerados loucos. Ao chegarem ao local em que ficariam<br />

reclusos, o médico e sua esposa percebem o significado do tratamento que estão recebendo:<br />

"Isto é uma loucura", constata o médico, e sua esposa concorda: "Deve ser, estamos num<br />

manicômio" (EC: 48).<br />

Para isolar os cegos do restante da sociedade ainda sã, o governo dirige aos cegos um<br />

tratamento disciplinar impessoal, hierarquizado e autoritário, transformando o manicômio em<br />

um campo de concentração, como se pode constatar no comunicado divulgado aos internos<br />

através de um alto falante:<br />

"O Governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades e espera que aqueles a<br />

quem esta mensagem se dirige assumam também, como cumpridores cidadãos que devem de<br />

ser, as responsabilidades que lhes competem, pensando que o isolamento em que agora se<br />

encontram representará, acima de quaisquer outras considerações pessoais, um acto de<br />

solidariedade para com o resto da comunidade nacional. Dito isto, pedimos a atenção de todos<br />

2


para as instruções que se seguem, primeiro, as luzes manter-se-ão sempre acesas, será inútil<br />

qualquer tentativa de manipular os interruptores, não funcionam, segundo, abandonar o<br />

edifício sem autorização significará morte imediata... décimo quinto, esta comunicação será<br />

repetida todos os dias, a esta mesma hora, para conhecimento dos novos ingressados. O<br />

Governo e a Nação esperam que cada um cumpra o seu dever. Boas noites" (EC: 50-51).<br />

De fato, logo que um dos cegos necessitou de medicamentos para um ferimento ocorrido em<br />

um conflito com a rapariga dos óculos escuros, a quem tentara molestar, e se dirigiu para o<br />

portão para falar com os soldados que guardavam o manicômio, recebeu uma rajada de tiros a<br />

queima-roupa e morreu. A atitude do soldado revela tanto o seu medo de cegar quanto a<br />

<strong>cegueira</strong> representada pelo cumprimento estrito da ordem recebida por ele para não tolerar as<br />

indisciplinas dos cegos. O narrador demonstra com isso que tanto o medo de cegar quanto o<br />

cumprimento cego às normas tornam os indivíduos cegos diante das necessidades dos outros.<br />

Comentando a ação do seu subordinado o sargento responsável pela guarda do manicômio<br />

não se mostrou menos insensível: "Deste-lhe cabo do canastro, disse. Depois, lembrando-se<br />

das rigorosas ordens que lhe haviam sido dadas, gritou, Cheguem-se para trás, isto pega-se"<br />

(EC: 81). Mais adiante na narrativa, o sargento e os soldados também ficam cegos, numa<br />

indicação de que medo, insensibilidade e crueldade também compõem o rol dos males do<br />

espírito que levam à <strong>cegueira</strong> descrita por Saramago.<br />

Um grupo de cegos denominados pelo narrador como "cegos malvados" percebeu que se<br />

usasse da violência poderia extorquir os poucos objetos de importância financeira que<br />

porventura ainda estivessem em poder dos demais cegos, seqüestrando a comida que era<br />

depositada no pátio pelos soldados. E então, "...onde deveria ter sido um por todos e todos por<br />

um, pudemos ver como cruelmente tiraram os fortes o pão da boca aos débeis... (EC: 205). Na<br />

busca do lucro, mesmo que ilusório, os cegos malvados decidem exigir um pagamento pela<br />

entrega da comida antes destinada a todos, mas por eles saqueada. Por isso o narrador vai<br />

considerar essa disputa pela vantagem na distribuição dos alimentos como uma forma de<br />

<strong>cegueira</strong>. Diante do horror provocado pelas disputas por comida, a mulher do médico sente o<br />

desconforto de continuar a ver e a testemunhar a degradação humana e se sente<br />

momentaneamente incapaz de lutar contra a opressão exercida pelos cegos malvados. Além<br />

do testemunho da mulher do médico o narrador especula com a hipótese da presença de um<br />

escritor, um "cego contabilista", registrando a opressão e a exploração de uns cegos por outros<br />

cegos. Sua conclusão é que o escritor acaba optando pelo lado mais conveniente aos seus<br />

interesses imediatos e egoístas:<br />

"Chegando a este ponto, o cego contabilista, cansado de descrever tanta miséria e dor, deixaria<br />

cair <strong>sobre</strong> a mesa o punção metálico, buscaria com mão trêmula o bocado de pão duro que<br />

havia deixado a um lado enquanto cumpria a sua obrigação de cronista do fim dos tempos,<br />

mas não o encontraria, porque outro cego, de tanto lhe pôde valer o olfato nesta necessidade, o<br />

tinha roubado. Então, renegando o gesto fraterno, obnegado impulso que o tinha feito acudir a<br />

este lado, decidiu o cego contabilista que o melhor, se ainda ia a tempo, seria regressar à<br />

terceira camarata lado esquerdo, ao menos, lá, por muito que se lhe esteja revolvendo o<br />

espírito de honesta indignação contra as injustiças dos malvados, não passará fome." (EC:<br />

161)<br />

Logo depois, os cegos malvados decidiram novamente chantagear os demais, oferecendo-lhes<br />

a comida que estava em seu poder somente se as mulheres se submetessem aos seus desejos.<br />

O narrador parece demonstrar, assim, que pode não haver limite para a degradação humana.<br />

Entre os cegos passa a ocorrer, então, um debate moral em torno da possibilidade de<br />

atenderem ou não a exigência dos cegos malvados: "O primeiro cego começara por declarar<br />

que mulher sua não se sujeitaria à vergonha de entregar o corpo a desconhecidos em troca do<br />

que fosse, que nem ele o quereria nem ele o permitiria, que a dignidade não tem preço, que<br />

uma pessoa começa por ceder nas pequenas coisas e acaba por perder todo o sentido da vida"<br />

3


(EC: 167). O discurso do marido pareceu desproposital à esposa que contestou-o: "Sou tanto<br />

como as outras, faço o que elas fizerem". O marido resistiu: "Só fazes o que eu mandar...", E a<br />

esposa retorquiu: "Deixa-te de autoridades, aqui não te servem de nada, estás tão cego como<br />

eu". O marido ainda tentou uma admoestação moral contra a esposa: "É uma indecência".<br />

Mas a esposa se revela consciente de sua condição de igualdade em relação ao marido e às<br />

outras mulheres: "Está na tua mão não seres indecente, a partir de agora não comas..." E o<br />

narrador concluiu o debate: "...foi esta a cruel resposta, inesperada em pessoa que até hoje se<br />

mostrara dócil e respeitadora do seu marido". (EC: 168). A decisão do grupo será atender à<br />

exigência dos cegos malvados, submetendo o corpo das mulheres à violência do outro grupo<br />

em troca dos alimentos. Em meio à degradação de suas vidas os cegos se apegarão ao que lhes<br />

parecerá como essencial. Mesmo as convenções morais mais arraigadas no imaginário<br />

individual e coletivo cedem diante da necessidade de alimentos e do medo da opressão<br />

exercida pelos malvados. A decisão de acatar a exigência dos cegos malvados será assimilada<br />

pelo grupo com um verdadeiro ritual sexual assim descrito pelo narrador:<br />

"Há que dizer, ainda, que duplamente estão estas mulheres folgando, assim são os mistérios da<br />

alma humana, pois a ameaça, de todos os modos próxima, da humilhação a que irão ser<br />

sujeitas, acordou e exacerbou, dentro de cada camarata, apetites sensuais que a continuação da<br />

convivência havia debilitado, era como se os homens estivessem pondo nas mulheres<br />

desesperadamente a sua marca antes que lhas levassem, era como se as mulheres quisessem<br />

encher a memória de sensações experimentadas voluntariamente para melhor se poderem<br />

defender da agressão daquelas que, podendo ser, recusariam." (EC: 169)<br />

Aos poucos os humanos vão retornando, assim, à sua condição animal, suspensas muitas das<br />

suas aquisições culturais. Inúmeras são as situações em que o comportamento dos cegos no<br />

manicômio é descrito como próprio de animais: Desconfiados os cegos ficavam "...tensos, de<br />

pescoço estendido como se farejassem algo..." (EC: 49); eram "trazidos em rebanho" e<br />

"esbarravam uns nos outros" (EC: 72); se movimentavam "...de gatas, de cara rente ao chão<br />

como suínos" e os soldados os viam como "...imbecis que se moviam diante dos seus olhos<br />

como caranguejos coxos, agitando as pinças trôpegas à procura da perna que lhes faltava"<br />

(EC: 105). Os relacionamentos sexuais entre os cegos eram recriminados por eles mesmos<br />

como próprios de porcos. Quando as mulheres chegam à camarata dos malvados para atender<br />

suas exigências, o comportamento deles é descrito como se fosse de animais: "De dentro<br />

saíram gritos, relinchos, risadas... Depressa, meninas, entrem, entrem, estamos todos aqui<br />

como uns cavalos, vão levar o papo cheio, dizia um deles... Os cegos relincharam, deram<br />

patadas no chão...".<br />

O líder dos cegos malvados, portador de uma arma que lhe garantia a submissão dos demais,<br />

comportava-se como um gorila que escolhe para si as fêmeas do grupo: "...Excitado, enquanto<br />

continuava a apalpar a rapariga, passou à mulher do médico, assobiou outra vez, esta é das<br />

maduras, mas tem jeito de ser também rica fêmea. Puxou para si as duas mulheres, quase se<br />

babava quando disse, Fico com estas, depois de as despachar passo-as a vocês". (EC: 176)<br />

Quando terminava o ato sexual com a rapariga dos óculos escuros, o líder dos cegos malvados<br />

"...sacudiu-se todo, deu três sacões violentos como se cravasse três espeques, resfolegou como<br />

um cerdo engasgado, acabara" (EC: 177).<br />

Uma das mulheres não resiste aos maus tratos recebidos e morre. A violência sofrida pela<br />

morta, agride psicologicamente às demais mulheres e a mulher do médico conclui, ao retornar<br />

à sua camarata e ao seu esposo: "...já não somos as mesmas mulheres que daqui saímos... o<br />

inominável existe, é esse o seu nome, nada mais" (EC: 179).<br />

O narrador também dá a voz a um cego que, como um animal domesticado que a tudo se<br />

adapta, aceita cômoda e fatalisticamente a situação em que viviam os cegos reclusos:<br />

4


"Que isto, meus senhores, é comer e dormir. Bem vistas as coisas, nem se está mal de todo.<br />

Desde que a comida não venha a faltar, sem ela é que não se pode viver, é como estar num<br />

hotel. Ao contrário, que calvário seria o de um cego lá fora, na cidade, sim, que calvário.<br />

Andar aos tombos pelas ruas, todos a fugirem dele, a família apavorada, com medo de se<br />

aproximar, amor de mãe, amor de filho, histórias, se calhar faziam-me o mesmo que me fazem<br />

aqui, fechavam-me num quarto e punham-me o prato à porta por muito favor. Olhando a<br />

situação a frio, sem preconceitos nem ressentimentos que sempre obscurecem o raciocínio,<br />

havia que reconhecer que as autoridades tiveram visão quando decidiram juntar cegos com<br />

cegos, cada qual com seu igual, que é a boa regra da vizinhança, como os leprosos..." (EC:<br />

109).<br />

O medo, o comodismo e o fatalismo levam uma pessoa a se habituar a tudo, "...<strong>sobre</strong>tudo se<br />

deixou de ser pessoa..." (EC: 218). Para o narrador e suas personagens, a tolerância às<br />

situações de opressão são também sintomas de <strong>cegueira</strong>: "O medo cega, disse a rapariga dos<br />

óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo<br />

nos cegou, o medo nos fará continuar cegos..." (EC: 131)<br />

Numa próxima noite de horror e violência contra as mulheres, será a mulher do médico,<br />

armada pela visão e uma tesoura, que superará o medo e irá lutar pela libertação de todos os<br />

cegos do domínio dos malvados matando o seu líder:<br />

"A cama do chefe dos malvados continuava a ser a do fundo da camarata, onde se<br />

amontoavam as caixas de comida. Os catres ao lado do seu tinham sido retirados, o homem<br />

gostava de mexer-se à vontade, não ter de tropeçar nos vizinhos. Ia ser simples matá-lo.<br />

Enquanto lentamente avançava pela estreita coxia, a mulher do médico observava os<br />

movimentos daquele que não tardaria a matar, como o gozo o fazia inclinar a cabeça para trás,<br />

como já parecia estar a oferecer-lhe o pescoço. Devagar, a mulher do médico aproximou-se,<br />

rodeou a cama e foi colocar-se por trás dele. A cega continuava no seu trabalho. A mão<br />

levantou lentamente a tesoura, as lâminas um pouco separadas para penetrarem como dois<br />

punhais. Nesse momento, o último, o cego pareceu dar por uma presença, mas o orgasmo<br />

retirara-o do mundo das sensações comuns, privara-o de reflexos, Não chegarás a gozar,<br />

pensou a mulher do médico, e fez descer violentamente o braço. A tesoura enterrou-se com<br />

toda a força na garganta do cego, girando <strong>sobre</strong> si mesma lutou contra as cartilagens e os<br />

tecidos membranosos, depois furiosamente continuou até ser detida pelas vértebras cervicais."<br />

EC: 185)<br />

Uma cega que até então não aparecera no relato, a "mulher do isqueiro", também irá resistir à<br />

opressão sofrida, arriscando a própria vida para atear fogo na barricada de camas construída<br />

pelos cegos malvados para proteger a sua camarata da invasão dos seus inimigos. A mulher<br />

morre queimada, mas com o incêndio muitos cegos conseguem fugir para fora do manicômio.<br />

A cidade que será encontrada pelos cegos libertos estará praticamente destruída pela barbárie<br />

provocada pela <strong>cegueira</strong> dos seus habitantes, já que "toda a gente está cega... a cidade toda, o<br />

país, Se alguém ainda vê, não o diz, cala-se..." (EC: 215). "As ruas estão desertas, por ser<br />

ainda cedo, ou por causa da chuva, que cai cada vez mais forte. Há lixo por toda a parte,<br />

algumas lojas têm as portas abertas, mas a maioria delas estão fechadas, não parece que haja<br />

gente dentro, nem luz" (EC: 214); "... não há água, não há electricidade, não há<br />

abastecimentos de nenhuma espécie, encontramo-nos no caos, o caos autêntico deve de ser<br />

isto..." (EC: 244) Os cegos que não resistem e morrem em razão da fome e do cansaço são<br />

devorados pelos cães famintos que perambulam pelas ruas. Horácio Costa sugere um paralelo<br />

entre a situação da cidade resultante da <strong>cegueira</strong> dos seus habitantes descrita no <strong>Ensaio</strong> <strong>sobre</strong><br />

a <strong>cegueira</strong> e a vida nas grandes cidades modernas:<br />

"Tornada selva pela falta de visão de seus habitantes (asseveração que pode ser entendida<br />

tanto literalmente, dado o contexto do romance, tanto figuradamente, dada a situação urbana, e<br />

especialmente metropolitana, da contemporaneidade), estabelece-se ao longo do relato uma<br />

5


correspondência entre o labirinto da <strong>cegueira</strong> e o da cidade, na qual os habitantes, uma vez<br />

começado o seu necessário processo de deambulação para encontrarem as suas novas formas<br />

de subsistência, constantemente se perdem. A cidade torna-se, portanto, o outro do malbranco,<br />

seu equivalente ou espelho metafórico, uma vez que ao longo da narração o leitor<br />

"vê", devido a técnica narrativa de Saramago, na qual o espaço da descrição é amplo, o que os<br />

cegos deambuladores não vêem: a si próprios e à cidade que os vitima e é por eles vitimada."<br />

(COSTA, 1999: 144)<br />

Em uma situação de crise como essa as identidades se desintegram provocando a situação de<br />

incerteza que inviabiliza a convivência, uma vez que as concepções e valores humanos<br />

perdem o seu poder de sedimentar os relacionamentos. Isolados do mundo, reclusos no<br />

manicômio transformado em campo de concentração, se já não o era antes, a mulher do<br />

médico percebe o perigo da perda da própria identidade: "...tão longe estamos do mundo que<br />

não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembramos sequer de dizer-nos<br />

como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os nomes, nenhum cão reconhece<br />

outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que<br />

identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos<br />

pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se<br />

não existisse... (EC: 64).<br />

Esta constatação da mulher do médico pode ser assimilada à opção do próprio narrador, que<br />

não utiliza de nomes próprios, mas de sinais exteriores ou dos papéis sociais desempenhados<br />

pelos indivíduos, para designar as personagens, tornando homóloga a história que conta à<br />

sociedade contemporânea, na qual a impessoalidade dos relacionamentos no mercado ou nas<br />

organizações burocráticas tornam dispensável o conhecimento <strong>sobre</strong> o nome e a verdadeira<br />

identidade de cada ser individual.<br />

A personagem "mulher do médico", a única a não cegar em toda a narrativa, permite<br />

interpretarmos que são os seus valores e ações que a tornam imunizada contra o contágio.<br />

Quando o marido, já contagiado, solicita-lhe que não se envolva com o seu problema: "Deixame,<br />

deixa-me". Ela discorda: "Não deixo, gritou a mulher, que queres fazer, andar aí aos<br />

tombos, a chocar contra os móveis, à procura do telefone, sem olhos para encontrar na lista os<br />

números de que precisas, enquanto eu assisto tranquilamente ao espectáculo, metida numa<br />

redoma de cristal à prova de contaminações. Agarrou-o pelo braço como firmeza e disse,<br />

Vamos, meu querido" (EC: 39). Logo depois, a mulher simula estar cega para ser levada na<br />

ambulância que recolheria o marido contagiado. Durante todo o relato a mulher do médico<br />

tentará manter a lucidez, se esforçando para resistir à degradação e tentando colaborar para<br />

que os cegos se não pudessem viver inteiramente como pessoas, que ao menos não vivessem<br />

inteiramente como animais.<br />

Com o caos da civilização provocado pela generalização da <strong>cegueira</strong>, os habitantes passam a<br />

vagar pela cidade em busca de comida e abrigo. Será a mulher do médico que vislumbrará<br />

uma saída para o grupo de cegos sob os seus cuidados: "...se nos separarmos seremos<br />

engolidos pela massa, destroçados... por isso o que proponho é que, em lugar de nos<br />

dispersarmos, ela nesta casa, vocês na vossa, tu na tua, continuemos a viver juntos..." (EC:<br />

245). O médico logo entende o alcance destas palavras: "Disseste que há grupos organizados<br />

de cegos..., isso significa que estão a ser inventadas maneiras novas de viver, não é forçoso<br />

que acabemos destroçados como prevês" (EC: 245). O mais experiente do grupo conclui:<br />

"Regressamos à horda primitiva, disse o velho da venda preta, com a diferença de que não<br />

somos uns quantos milhares de homens e mulheres numa natureza imensa e intacta, mas<br />

milhares de milhões num mundo descarnado e exaurido" (EC: 245). O olhar da mulher do<br />

médico além de desvelar o mundo para os outros cegos permite que ela enxergue a<br />

6


necessidade de união do grupo, pois para ela "...organizar-se já é começar a ter olhos" (EC:<br />

282).<br />

O autor expressa dessa forma tanto os valores sociais que quer condenar como a crueldade, o<br />

egoísmo, a indiferença, o consumismo e a competição, que fazem com que os cegos estejam<br />

"sempre em guerra" (EC: 189), quanto os valores que pretende que prevaleçam como o<br />

respeito ao outro, a dignidade, a coragem, a solidariedade, e a convivência. Se, por um lado,<br />

Saramago dá a entender que a racionalidade capitalista das sociedades modernas centrada no<br />

individualismo egoísta pode levar ao caos, com a degradação da convivência humana e do<br />

meio ambiente, a união do grupo proposta pela mulher do médico pode fazer com que<br />

prevaleçam entre os humanos os vínculos afetivos e os valores éticos.<br />

Neste livro, portanto, o autor expõe a <strong>cegueira</strong> para evidenciar a importância do olhar, como<br />

nos explica a professora Teresa Cristina Cerdeira da Silva:<br />

"... esse <strong>Ensaio</strong> <strong>sobre</strong> a <strong>cegueira</strong> pode ser lido inversamente como um ensaio <strong>sobre</strong> a visão.<br />

Esses cegos chegaram ao fundo do poço de onde puderam ver surgir suas fraquezas, sua<br />

arrogância, sua intolerância, sua impaciência, sua violência, a monstruosidade dos universos<br />

concentracionários. Mas assistiram também à sua própria força, à sua solidariedade, à sua<br />

generosidade, ao seu espírito revolucionário e à revisão de seus próprios preconceitos. Este,<br />

repito, é um ensaio <strong>sobre</strong> a visão: do outro, das relações humanas, das linguagens e seus<br />

clichês, da verdade, do poder e até dos gêneros literários nesse romance que, como se sabe, se<br />

quer ensaio. Porque este não é tão-somente um romance cujo assunto é a <strong>cegueira</strong>, mas<br />

também um ensaio entendido como experiência, experimentação que revele a possibilidade de<br />

enxergar para além das aparências, para além dos seus próprios limites convencionais."<br />

(SILVA, 1999: 294)<br />

A <strong>cegueira</strong> pode ser encarada, assim, como um conjunto de representações falsas que embora<br />

surjam na própria vivência, nas relações sociais cotidianas, podem se autonomizar e passar a<br />

dominar o vivido, bloqueando a apreensão da realidade e a práxis, e impedindo a busca do<br />

novo. Tais representações dissimulam a realidade, uma vez que alguns cegos "...não o são<br />

apenas dos olhos, também o são do entendimento" (EC: 213) e assim difundem o seu mal<br />

como ocorre quando um "...olho que está cego transmite a <strong>cegueira</strong> ao olho que vê..." (EC:<br />

111).<br />

A <strong>cegueira</strong> que se alastra <strong>sobre</strong> as sociedades modernas no mundo contemporâneo, na forma<br />

como é descrita por Saramago é tanto mais surpreendente porque, como escreveu Lefebvre<br />

"...el projecto subyacente a la modernidad de una absoluta primacia del saber, de la razón,<br />

de la ciencia y de la técnica, suscitó la contrapartida: el antisaber, la antirrazón (sinrazón e<br />

irracionalismo), la antiteoría... Se puede considerar la hipótesis de una descomposición de la<br />

sociedade en Occidente. No es la peor hipótesis. Los síntomas de disolución de la cultura, de<br />

la vida social no son ni escasos ni difíciles de descubrir; (LEFEBVRE, 1983: 213).<br />

Esse tipo de <strong>cegueira</strong> impede que os riscos produzidos pelo desenvolvimento da sociedade<br />

industrial sejam antevistos e equacionados através de um redirecionamento ou da limitação<br />

deste próprio desenvolvimento. Como o autor expressa pela voz da mulher do médico "...o<br />

tempo está-se a acabar, a podridão alastra, as doenças encontram as portas abertas, a água<br />

esgota-se, a comida tornou-se veneno" (EC: 283), e é preciso pressa para que identifiquemos<br />

as causas destes problemas gerados pelos próprios humanos em nossa época, e consigamos<br />

superá-los. O escritor-cidadão quer, assim, utilizar-se de sua expressão para trabalhar contra a<br />

degradação do homem e da sociedade, contra o sofrimento e a exploração. A epidemia de<br />

<strong>cegueira</strong> descrita é a alegoria <strong>sobre</strong> o horror vivenciado mas não visto; o olhar é a capacidade<br />

de ver e de reparar os males da convivência humana nas sociedades contemporâneas: "Se<br />

podes olhar, vê. Se podes ver, repara" (EC: 7).<br />

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Referências<br />

COSTA, Horácio (1997). José Saramago - O período formativo. Lisboa, Editorial Caminho, 389 p.<br />

______ (1999). "Alegorias da desconstrução urbana: The memoirs of a survivor, de Doris Lesing, e <strong>Ensaio</strong> <strong>sobre</strong><br />

a <strong>cegueira</strong>, de José Saramago". In: BERRINI, Beatriz (org.). José Saramago: uma homenagem. São Paulo,<br />

EDUC, pp. 127-148.<br />

GOLDMANN, Lucien (1967). Sociologia do romance. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 223 p.<br />

LEFEBVRE, Henri (1983a). La presencia y la ausencia - contibucion a la teoria de las representaciones.<br />

México, D.F., Fondo de Cultura Economica, pp. 277.<br />

SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da (1989). José Saramago – Entre a história e a ficção: uma saga de<br />

portugueses. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 278 p.<br />

SARAMAGO, José. <strong>Ensaio</strong> <strong>sobre</strong> a <strong>cegueira</strong> (1996). São Paulo: Cia. das Letras, 310 p. (EC)<br />

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