E os "fidalgos camponeses" sentaram- -se à mesa - ORSON ...
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A Festa de Babette (Gabriel Axel, 1987)<br />
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diálog<strong>os</strong> com outras linguagens artísticas e discurs<strong>os</strong> ligad<strong>os</strong> a con-<br />
text<strong>os</strong> culturais e polític<strong>os</strong> trazem o diálogo entre o literário e o fíl-<br />
mico para um limiar complexo, uma zona transtextual de complexa<br />
simbi<strong>os</strong>e.<br />
O lme que é objeto de minha análi<strong>se</strong>, A festa de Babette (1987) Ga-<br />
briel Axel, identica-<strong>se</strong> como do conto homônimo da autora dina-<br />
marquesa, Karen Blixen, mas não pretendo privilegiar o diálogo que<br />
<strong>se</strong> estabelece entre o texto fílmico e o texto literário por ele traduzido<br />
em imagens. Introduzindo um terceiro texto no corpus des<strong>se</strong> tra-<br />
balho, o conto “A repartição d<strong>os</strong> pães”, publicado na coletânea Le-<br />
gião estrangeira (1964) de Clarice Lispector, meu objetivo é discutir<br />
a repercussão de imaginári<strong>os</strong> e questionament<strong>os</strong> cristalizad<strong>os</strong> por<br />
obras literárias no cinema e a maneira pela qual o lme de Gabriel<br />
Axel revitaliza <strong>os</strong> signicad<strong>os</strong> do texto literário ainda que não <strong>se</strong>ja<br />
formalmente relacionado ao conto de Lispector e ativa o que Ítalo<br />
Calvino (1990, p. 99) identica como o “cinema mental” que “fun-<br />
ciona continuamente em nós – e <strong>se</strong>mpre funcionou, mesmo antes<br />
da invenção do cinema – e não cessa nunca de projetar imagens em<br />
n<strong>os</strong>sa tela interior”.<br />
() @
76:<br />
lh<strong>os</strong> taciturn<strong>os</strong> recebem o dom das línguas, suas orelhas surdas pas-<br />
sam a ouvir, antigas desavenças são resolvidas, alianças <strong>se</strong> renovam.<br />
É um inesperado visitante, o general Lorenz Lowenhielm, homem<br />
do mundo e apaixonado por Philippa na juventude, quem reconhece<br />
o renamento do banquete e as<strong>se</strong>gura a revelação da identidade da<br />
cozinheira do Café Anglais. Babette gasta todo o dinheiro ganho na<br />
loteria para exercer, quem sabe pela última vez, sua arte em um gesto<br />
de extraordinária doação.<br />
O tema de que trata es<strong>se</strong>ncialmente o lme da Gabriel Axel é este:<br />
um banquete, um festim cujo cardápio excepcional transgride, atra-<br />
vés da abundância e elaboração, a monotonia da refeição, d<strong>os</strong> com-<br />
portament<strong>os</strong> quotidian<strong>os</strong>. Como parte signicativa do imaginário<br />
do homem contemporâneo, <strong>os</strong> lmes que contam histórias relacio-<br />
nadas <strong>à</strong> gastronomia são numer<strong>os</strong><strong>os</strong> e atestam a importância do pra-<br />
zer ligado <strong>à</strong> boa-<strong>mesa</strong> enquanto deagrador da contestação da vida<br />
rotineira, da imaginação, da <strong>se</strong>dução, do erotismo, de revelações so-<br />
bre o corpo e alma, do de<strong>se</strong>jo e da reexão sobre a morte. Através da<br />
comida repre<strong>se</strong>ntam-<strong>se</strong> frequentemente uma época e sua mentali-<br />
dade, uma clas<strong>se</strong> social, a psicologia e o status d<strong>os</strong> personagens com<br />
<strong>se</strong>us afet<strong>os</strong>, ob<strong>se</strong>ssões, <strong>se</strong>gred<strong>os</strong>, frustrações.<br />
Em Le plaisir gastronomique au cinéma (2004), o historiador das re-<br />
pre<strong>se</strong>ntações Vincent Chenille, analisa a maneira pela qual as ima-<br />
gens cinematográcas signicam o sabor e o olfato na defesa de um<br />
certo hedonismo, na transmissão do bom g<strong>os</strong>to em contrapartida ao<br />
primado do fast food asséptico, mas sobretudo, no comentário sobre<br />
uma faceta importante da comédia humana: o universo da cozinha.<br />
Partindo de Le repas du bébé (1895) de Louis Lumière, o autor dis-<br />
cute a maneira pela qual a gastronomia dialoga com o cinema até<br />
chegar a<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 1980, quando o espaço da cozinha na preparação<br />
das iguarias e o momento da refeição tornam-<strong>se</strong> um tema recorrente<br />
do cinema europeu em especial.<br />
O termo cinema gastronomie aparece assim em um grande número<br />
de publicações que discutem lmes e fornecem receitas do cinema 3 ,<br />
na forma de Festivais e de listas catalogando as obras e <strong>se</strong>quencias<br />
mais repre<strong>se</strong>ntativas do gênero, que também acaba ganhando um<br />
3 - No Brasil, Rubens Ewald Filho e Nilu Lebert publicaram O cinema vai <strong>à</strong> <strong>mesa</strong><br />
(2007) e Bebendo Estrelas – Histórias e receitas (2008). Há também La Sauce était<br />
presque parfaite. 80 recettes d’après Alfred Hitchcock (2008) de Anne Martinette e<br />
Francoi<strong>se</strong> Rivière.<br />
espaço considerável entre as produções hollywoodianas na forma<br />
d<strong>os</strong> chamad<strong>os</strong> food lms, como Ratatouille (Brad Bird e Jan Pinkava,<br />
2007), de<strong>se</strong>nho animado ganhador do Oscar de melhor animação<br />
produzido pela Pixar e distribuído pel<strong>os</strong> estúdi<strong>os</strong> Disney, para n<strong>os</strong><br />
limitarm<strong>os</strong> a apenas um exemplo de uma longa lista.<br />
A questão que <strong>se</strong> torna pertinente é por que A festa de Babette de<br />
Gabriel Axel tornou-<strong>se</strong> uma referência, ou mesmo, <strong>se</strong>gundo alguns<br />
crític<strong>os</strong>, o lme fundador do gênero que reúne uma longa lista de<br />
produções heteróclitas, lmes de autor e lmes comerciais? Pas<strong>se</strong>-<br />
m<strong>os</strong> <strong>à</strong>s imagens na tentativa de compreender o alcance de sua notá-<br />
vel mi<strong>se</strong> en scène do banquete.<br />
()@
76"<br />
Dessa transguração, brotam gest<strong>os</strong> gener<strong>os</strong><strong>os</strong> e palavras, <strong>os</strong> r<strong>os</strong>t<strong>os</strong><br />
de pedra acordam para vida nem que <strong>se</strong>ja por uma noite apenas.<br />
Opera-<strong>se</strong> o milagre. Ao enfeitiçar essa pequena comunidade<br />
puritana dinamarquesa, Babette con<strong>se</strong>gue o inesperado: leva <strong>os</strong><br />
es<strong>se</strong>s campone<strong>se</strong>s a romperem inibições e preconceit<strong>os</strong> e a aceitarem<br />
o <strong>se</strong>nsorial desvinculando-o do pecado. Descobrem que o alimento<br />
pode nutrir corpo e alma, <strong>se</strong>m culpa.<br />
E assim, gastronomia e gener<strong>os</strong>idade, unem-<strong>se</strong> como element<strong>os</strong><br />
transformadores, revelam mais do que o prazer d<strong>os</strong> <strong>se</strong>ntid<strong>os</strong>, revelam<br />
uma nova faceta do divino. O prazer do sabor, antes temido como<br />
<strong>se</strong> f<strong>os</strong><strong>se</strong> da ordem do pecado – como <strong>se</strong> <strong>os</strong> puritan<strong>os</strong> campone<strong>se</strong>s<br />
soubes<strong>se</strong>m que após aquela experiência não poderiam <strong>se</strong>r mais <strong>os</strong><br />
mesm<strong>os</strong> – acaba tendo efeito pacicador, descontrai expressões<br />
endurecidas, faz cair máscaras, apaziguar conit<strong>os</strong> e resolver antig<strong>os</strong><br />
res<strong>se</strong>ntiment<strong>os</strong> diferenças. Milagre provisório, o céu poderia estar<br />
ali naquela <strong>mesa</strong> ao alcance de tod<strong>os</strong> e antes da morte. Quem sabe a<br />
redenção <strong>se</strong>ja questão do espírito e da carne?<br />
Em A festa de Babette, o espectador tem franquead<strong>os</strong> <strong>os</strong> bastidores<br />
do banquete, o processo criativo de uma artista gener<strong>os</strong>a, gura<br />
estrangeira <strong>à</strong> comunidade que procura salvar ao tentar mudar, nem<br />
que <strong>se</strong>ja por uma noite, a vida d<strong>os</strong> personagens puritan<strong>os</strong>. Mas<br />
Babette não aparece uma única vez diante d<strong>os</strong> convidad<strong>os</strong>, permanece<br />
isolada, transpira diante do fogo, <strong>se</strong>m <strong>se</strong> importar com o anonimato.<br />
Faz de Eric, um jovem camponês, <strong>se</strong>u ajudante na cozinha, uma<br />
espécie de emissário a quem instrui sobre o ritual de prat<strong>os</strong> e vinh<strong>os</strong><br />
e com quem <strong>se</strong> informa sobre a reação d<strong>os</strong> convidad<strong>os</strong>. Sem esperar<br />
nenhum tipo de reconhecimento – a pre<strong>se</strong>nça do General Lorenz<br />
Lowenhielm era imprevista e <strong>os</strong> convidad<strong>os</strong> não poderiam apreciar<br />
devidamente a doação que recebram – revela-<strong>se</strong> apenas através de<br />
sua arte, d<strong>os</strong> aromas, sabores e formas de <strong>se</strong>us quitutes. Para Babette,<br />
cozinhar naquela noite não parece signicar o de<strong>se</strong>jo de reviver um<br />
passado de notoriedade, nem o pesar pela perda de sua vida na<br />
França. Quer apenas exercer o poder intemporal do artista, talvez<br />
como sublimação do de<strong>se</strong>jo primitivo de <strong>se</strong>r mulher, mãe amor<strong>os</strong>a<br />
que nutre <strong>os</strong> lh<strong>os</strong>, amantes, <strong>se</strong>us amig<strong>os</strong>.<br />
Es<strong>se</strong> gesto de doação de Babette repercute certamente no imaginário<br />
d<strong>os</strong> leitores de “A repartição d<strong>os</strong> pães”, conto de Clarice Lispector<br />
publicado em 1964. No entrecruzamento de referências, não <strong>se</strong> trata<br />
de indagar <strong>se</strong> Lispector teria lido o conto de Karen Blixen ou <strong>se</strong> o<br />
cineasta dinamarquês conhecia o texto de Lispector. Mas de reativar,<br />
potencializar <strong>os</strong> signicad<strong>os</strong> do conto brasileiro a partir das imagens<br />
fílmicas na perspectiva da intertextualidade <strong>se</strong>gundo a qual, <strong>à</strong><br />
maneira do palimp<strong>se</strong>sto, existe uma relação de copre<strong>se</strong>nça efetiva<br />
mais ou men<strong>os</strong> explícita entre dois ou mais text<strong>os</strong> literári<strong>os</strong> cuja<br />
compreensão pressupõe um trabalho do leitor (GENETTE,1982, p.<br />
8). Em Voleurs de mots (1985, p. 81), Michel Schneider propõe a<br />
imagem do livro como eco e/ou presságio das obras que o precederam<br />
e o <strong>se</strong>guirão como em uma sucessão innita de espelh<strong>os</strong>.<br />
Pas<strong>se</strong>m<strong>os</strong> então <strong>à</strong> leitura cruzada entre texto fílmico e texto literário<br />
a m de iluminar o tema do gastronômico <strong>à</strong> luz da celebração da<br />
boa-<strong>mesa</strong> como elemento transformador do homem.<br />
()@
76;<br />
O narrador em primeira pessoa compartilha com o leitor <strong>se</strong>u <strong>se</strong>n-<br />
timento de convidado para “o almoço de obrigação” do sábado em<br />
local não explicitado. Como <strong>os</strong> convivas de Babette, <strong>se</strong>nte-<strong>se</strong> cons-<br />
trangido, tentado pela abstinência, compartilhando com <strong>os</strong> demais<br />
apenas “a avareza de não repartir o sábado” e o silêncio. Mas havia a<br />
“dona da casa”, a cozinheira, que, anônima, misteri<strong>os</strong>a, n<strong>os</strong>tálgica de<br />
outr<strong>os</strong> sábad<strong>os</strong> – mais calor<strong>os</strong><strong>os</strong>, em outra casa, com outr<strong>os</strong> convi-<br />
dad<strong>os</strong>? – desaava a tod<strong>os</strong>:<br />
Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo<br />
numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera<br />
outr<strong>os</strong> sábad<strong>os</strong>. Como pudera esquecer que <strong>se</strong> quer mais e mais?<br />
Não <strong>se</strong> impacientava <strong>se</strong>quer com o grupo heterogêneo, sonhador e<br />
resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro<br />
trem partir, qualquer trem - men<strong>os</strong> car naquela estação vazia, me-<br />
n<strong>os</strong> ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para<br />
outr<strong>os</strong>, outr<strong>os</strong> caval<strong>os</strong>. (p.30)<br />
Até que <strong>se</strong> <strong>se</strong>ntam <strong>à</strong> <strong>mesa</strong> e, incrédul<strong>os</strong> e surpres<strong>os</strong>, hesitam em co-<br />
mer, apenas olham:<br />
Passam<strong>os</strong> anal <strong>à</strong> sala para um almoço que não tinha a bênção da<br />
fome. E foi quando surpreendid<strong>os</strong> deparam<strong>os</strong> com a <strong>mesa</strong>. Não<br />
podia <strong>se</strong>r para nós... Era uma <strong>mesa</strong> para homens de boa-vontade.<br />
Quem <strong>se</strong>ria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas<br />
éram<strong>os</strong> nós mesm<strong>os</strong>. Então aquela mulher dava o melhor não im-<br />
portava a quem? E lavava contente <strong>os</strong> pés do primeiro estrangeiro.<br />
Constrangid<strong>os</strong>, olhávam<strong>os</strong>. (p. 31)<br />
Finalmente provam as iguarias cujas cores quentes, as formas ruido-<br />
sas, moventes e exuberantes mobilizam tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> <strong>se</strong>ntid<strong>os</strong>, ganham<br />
vida, criam uma espécie de êxta<strong>se</strong>. Momentaneamente, <strong>os</strong> persona-<br />
gens desaparecem da narrativa para dar lugar <strong>à</strong> mime<strong>se</strong> do banquete<br />
tropical de simplicidade bíblica, de natureza muito diferente d<strong>os</strong> in-<br />
gredientes elaborad<strong>os</strong> do jantar francês, ainda que deste também <strong>se</strong><br />
pudes<strong>se</strong> dizer que “a <strong>mesa</strong> fora coberta por uma solene abundância”.<br />
Como Babette, a gura da “dona de casa”, da “mulher que lavava pés<br />
de estranh<strong>os</strong>” qua<strong>se</strong> desaparece em função de uma série de enuncia-<br />
d<strong>os</strong> <strong>se</strong>m sujeito explícito. É como <strong>se</strong> <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> aliment<strong>os</strong> de apre-<br />
<strong>se</strong>ntas<strong>se</strong>m de maneira eloquente: “a <strong>mesa</strong> fora coberta”, “espigas de<br />
milho amontoavam-<strong>se</strong>”, “tudo emaranhado”, “nas bilhas estava o lei-<br />
te”, o “Vinho (...) estremecia em vasilhas de barro”. Apenas um traço,<br />
uma ação da idealizadora da <strong>mesa</strong> que <strong>se</strong> destina a cada convidado<br />
individualmente. Vejam<strong>os</strong>:<br />
A <strong>mesa</strong> fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha<br />
branca amontoavam-<strong>se</strong> espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enor-<br />
mes cenouras amarelas, redond<strong>os</strong> tomates de pele qua<strong>se</strong> estalando,<br />
chuchus de um verde líquido, abacaxis malign<strong>os</strong> na sua <strong>se</strong>lvageria,<br />
laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçad<strong>os</strong> como porc<strong>os</strong>-espi-<br />
nh<strong>os</strong>, pepin<strong>os</strong> que <strong>se</strong> fechavam dur<strong>os</strong> sobre a própria carne aqu<strong>os</strong>a,<br />
pimentões oc<strong>os</strong> e avermelhad<strong>os</strong> que ardiam n<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> – tudo ema-<br />
ranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de<br />
uma boca. [...] Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que<br />
lavava pés de estranh<strong>os</strong> pu<strong>se</strong>ra 5 - mesmo <strong>se</strong>m n<strong>os</strong> eleger, mesmo <strong>se</strong>m<br />
n<strong>os</strong> amar - um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou<br />
uma talhada vermelha de melancia com <strong>se</strong>us alegres caroç<strong>os</strong>. Nas<br />
bilhas estava o leite, como <strong>se</strong> tives<strong>se</strong> atravessado com as cabras o de-<br />
<strong>se</strong>rto d<strong>os</strong> penhasc<strong>os</strong>. Vinho, qua<strong>se</strong> negro de tão pisado, estremecia<br />
em vasilhas de barro. (p. 31-32)<br />
E <strong>os</strong> convidad<strong>os</strong> experimentaram a revelação do mundo e deles pró-<br />
pri<strong>os</strong>, potencializada pelas palavras, untu<strong>os</strong>as e envolventes como <strong>os</strong><br />
molh<strong>os</strong> ric<strong>os</strong> e aveludad<strong>os</strong> de Babette:<br />
Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido de<strong>se</strong>jo humano. Tudo<br />
como é, não como quiséram<strong>os</strong>. Só existindo, e todo. Assim como<br />
existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens<br />
e mulheres, e não nós, <strong>os</strong> ávid<strong>os</strong>. Assim como um sábado. Assim<br />
como apenas existe. Existe. (p. 32)<br />
O gesto de doação é nalmente aceito em uma trégua conciliado-<br />
ra em uma atm<strong>os</strong>fera de “cordialidade rude e rural”, que poderia<br />
<strong>se</strong> referir <strong>à</strong>s imagens de Gabriel Axel. Um <strong>se</strong>ntimento de harmonia<br />
utópico – “Existe como um chão onde nós tod<strong>os</strong> avançam<strong>os</strong>” –, de<br />
compartilhamento do pre<strong>se</strong>nte – <strong>se</strong>m ternura, piedade, saudade, es-<br />
perança, amor, nem palavras – e da fome de quem dá ouvid<strong>os</strong> a<strong>os</strong><br />
<strong>se</strong>us instint<strong>os</strong> e ao apelo da comida que “dizia rude, feliz, austera:<br />
come, come e reparte”. Concretiza-<strong>se</strong> assim a epifania com a com-<br />
5 - Grifo n<strong>os</strong>so.<br />
764
766<br />
preensão da própria existência:<br />
Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto <strong>se</strong>r comido quan-<br />
to nós queríam<strong>os</strong> comê-lo. Nada guardando para o dia <strong>se</strong>guinte, ali<br />
mesmo ofereci o que eu <strong>se</strong>ntia <strong>à</strong>quilo que me fazia <strong>se</strong>ntir. Era um<br />
viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera,<br />
fome que nasce quando a boca já está perto da comida. [...] A cor-<br />
dialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque<br />
ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-<strong>se</strong><br />
trégua. Comíam<strong>os</strong>. Como uma horda de <strong>se</strong>res viv<strong>os</strong>, cobríam<strong>os</strong> gra-<br />
dualmente a terra. Ocupad<strong>os</strong> como quem lavra a existência, e plan-<br />
ta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade<br />
de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o <strong>se</strong>u<br />
nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia<br />
rude, feliz, austera: come, come e reparte. [...]. Comi <strong>se</strong>m ternura,<br />
comi <strong>se</strong>m a paixão da piedade. E <strong>se</strong>m me oferecer <strong>à</strong> esperança. Comi<br />
<strong>se</strong>m saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem<br />
<strong>se</strong>mpre p<strong>os</strong>so <strong>se</strong>r a guarda de meu irmão, e não p<strong>os</strong>so mais <strong>se</strong>r a<br />
minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida<br />
porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós tod<strong>os</strong><br />
avançam<strong>os</strong>. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu<br />
prazer entende o meu. Nós som<strong>os</strong> fortes e nós comem<strong>os</strong>. Pão é amor<br />
entre estranh<strong>os</strong>. (p.32-33)<br />
Embora não tenham<strong>os</strong> feito uma análi<strong>se</strong> detalhada de “A festa de<br />
Babette” de Karen Blixen – hipotexto da obra de Gabriel Axel – nes-<br />
<strong>se</strong> trabalho, é p<strong>os</strong>sível ob<strong>se</strong>rvar que a evocação da <strong>mesa</strong> literária dia-<br />
loga muito men<strong>os</strong> com o banquete do lme do que a de Lispector.<br />
Através d<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> do General Lowenhielm, <strong>os</strong> prat<strong>os</strong> cozinheira do<br />
Café anglais são evocad<strong>os</strong> por uma linguagem despojada, com pou-<br />
quíssim<strong>os</strong> adjetiv<strong>os</strong>, de forma objetiva e até minimalista: “viu uvas,<br />
pês<strong>se</strong>g<strong>os</strong> g<strong>os</strong> fresc<strong>os</strong> diante de si e ob<strong>se</strong>rvou: ‘Que uvas lindas’”<br />
(BLIXEN, 2007). Nenhuma menção a cores, formas e texturas. A<br />
rigidez da escritura parece querer contrastar com o forte de<strong>se</strong>jo de<br />
transcendência.<br />
O almoço oferecido pela “dona da casa” de Lispector e o jantar fran-<br />
cês de Babette <strong>se</strong> transformam em tempo e lugar de acesso fugaz<br />
<strong>à</strong> transcendência: “chega nalmente o dia em que n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> olh<strong>os</strong> <strong>se</strong><br />
abrem e nós compreendem<strong>os</strong> que a graça é innita”, diz o General<br />
no lme. O prazer gastronômico n<strong>os</strong> dois text<strong>os</strong> não <strong>se</strong> limita a uma<br />
euforia <strong>se</strong>nsual do prazer d<strong>os</strong> <strong>se</strong>ntid<strong>os</strong>, sugere que <strong>se</strong> pode viver o<br />
instante <strong>se</strong>m adiar a felicidade para outra vida trilhando o caminho<br />
de compartilhamento, da receptividade despojada de vaidade. O<br />
grupo de convidad<strong>os</strong> que <strong>se</strong> haviam <strong>se</strong>parado em algum encontro<br />
anterior <strong>se</strong> religa, <strong>se</strong> reconstitui pela aceitação, <strong>se</strong>m culpa, de que o<br />
corpóreo não signica apenas a certeza da morte e do caráter efême-<br />
ro da existência, mas pode <strong>se</strong>r o lugar da manifestação do espiritual,<br />
do divino repre<strong>se</strong>ntado pela arte da gastronomia. A p<strong>os</strong>sibilidade<br />
de reconciliação não <strong>se</strong>ria o sinal mais evidente dessa manifestação?<br />
Y&YZ&'b%(@&(<br />
BLIXEN, Karen. “A festa de Babette”. In: Anedotas do<br />
destino. Tradução de Cássio Arantes Leite. São Paulo:<br />
C<strong>os</strong>ac Naif, 2007.<br />
CALVINO, Ítalo. “Visibilidade”. In: Seis Prop<strong>os</strong>tas Para<br />
o Próximo Milênio. Tradução de Ivo Barr<strong>os</strong>o. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1990.<br />
GENETTE, Gérard. Palimp<strong>se</strong>stes. La littérature au <strong>se</strong>cond<br />
degré. Paris: Seuil, 1982. GREENWAY, Peter. “105 an<strong>os</strong> de<br />
texto ilustrado”. Tradução de Samantha Schnee. In: Aletria.<br />
Revista de estud<strong>os</strong> de literatura, UFMG, dezembro, 2001.<br />
LISPECTOR, Clarice. “A repartição d<strong>os</strong> pães”. In: Legião<br />
estrangeira. Cont<strong>os</strong> e crônicas. Rio de Janeiro: Editora do<br />
Autor, 1964.<br />
LEUTRAT, Jean-Louis. Le Cinéma en perspective : une<br />
histoire. Paris : Nathan, 2002.<br />
SCHNEIDER, Michel. Voleurs de mots. Paris, Gallimard,<br />
1985.<br />
@&Z#'b%(@&(<br />
A FESTA DE BABETTE. (Babettes Gæstebud). Gabriel<br />
Axel, Dinamarca. 1987. CD. MGM Entertainment, 2002.<br />
102 min.<br />
765