A oferenda literária: referências musicais na escrita de Julio ... - FALE
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Belo Horizonte, v. 7, p. 35-43, <strong>de</strong>z. 2003 <br />
A OFERENDA LITERÁRIA:<br />
REFERÊNCIAS MUSICAIS NA ESCRITA DE JULIO CORTÁZAR<br />
RESUMO:<br />
Maria Eugênia Castelo Branco Albi<strong>na</strong>ti*<br />
Este texto estuda a presença <strong>de</strong> elementos <strong>musicais</strong> <strong>na</strong> <strong>escrita</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Julio</strong> Cortázar e a<strong>na</strong>lisa sua importância no resultado<br />
literário, procurando conhecer melhor a relação entre os<br />
discursos musical e literário, como um enlace importante à<br />
criação <strong>literária</strong>.<br />
PALAVRAS-CHAVE: música, literatura, tema, forma, discurso.<br />
É intensa e marcante a presença <strong>de</strong> elementos <strong>musicais</strong> ilustrando,<br />
nomeando, origi<strong>na</strong>ndo e estruturando o texto cortazariano. Música e literatura, duas<br />
paixões do escritor, estabelecem em sua <strong>escrita</strong> adoções recíprocas, <strong>de</strong>lineando uma<br />
harmonia entre som e palavra, construindo um ambiente passível <strong>de</strong> várias leituras<br />
e escutas. A música norteia tanto a criação cortazaria<strong>na</strong> que se tor<strong>na</strong> <strong>de</strong>marcatória da<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e da origi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua <strong>escrita</strong>. Muito além <strong>de</strong> escrever a partir <strong>de</strong><br />
impressões sugeridas pela atmosfera dos concertos ou pela figura dos músicos, ou <strong>de</strong><br />
usar formas <strong>musicais</strong> como mo<strong>de</strong>lo à sua <strong>escrita</strong> inquietante, Cortázar escreve musicalmente.<br />
O mapeamento <strong>de</strong> como a música se coloca nos textos, a análise da<br />
integração <strong>de</strong> formas e termos <strong>musicais</strong> no resultado literário e a visualização da<br />
dinâmica da pulsação musical <strong>na</strong> <strong>escrita</strong> <strong>de</strong> Cortázar, constituem um caminho para<br />
<strong>de</strong>svendar enlaces importantes à sua literatura. Além disso, o estudo <strong>de</strong> como música<br />
e palavra atuam juntas e uma sobre a outra ajuda a esclarecer a complementarida<strong>de</strong><br />
e o jogo dinâmico entre os discursos musical e literário.<br />
* Mestre em Letras: Estudos Literários (Área <strong>de</strong> concentração: Teoria da Literatura), 2002.<br />
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A MÚSICA COMO ENUNCIADO<br />
Belo Horizonte, v. 7, p. 1–110, <strong>de</strong>z. 2003<br />
Como ilustração ou metáfora, a música enriquece a <strong>escrita</strong> <strong>de</strong> Cortázar.<br />
Enquanto motivo, ela provoca e possibilita textos. Como citação ou epígrafe, é sua<br />
chave <strong>de</strong> elucidação. Assumindo funções no texto cortazariano, compositores,<br />
intérpretes, discos e concertos <strong>de</strong>marcam espaço e tempo, atuam como elemento <strong>de</strong><br />
condução <strong>na</strong>rrativa e <strong>de</strong> caráter remissivo, facultam acesso a sentimentos e idéias.<br />
A música vence a linearida<strong>de</strong> temporal, abre frestas no tempo contemporâneo aos<br />
perso<strong>na</strong>gens, impulsio<strong>na</strong> vivências, <strong>de</strong>marca i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, recompõe histórias.<br />
Como elemento <strong>de</strong>marcatório <strong>de</strong> status sócio-cultural, ela critica o<br />
mundo e facilita o humor cortazariano. A música dá leveza aos temas pesados. Sempre<br />
carregada <strong>de</strong> história, ela salta <strong>de</strong> seu contexto histórico e visita perso<strong>na</strong>gens,<br />
aponta idéias e possibilida<strong>de</strong>s, lhes dá suporte <strong>na</strong> solidão e no cansaço, encoraja<br />
movimentos e falas, propicia indagações existenciais.<br />
A MÚSICA COMO ENUNCIAÇÃO<br />
A partir do <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Cortázar em “Nota sobre o tema <strong>de</strong> um rei e a<br />
vingança <strong>de</strong> um príncipe” sobre o uso da estrutura da peça A <strong>oferenda</strong> musical (Das<br />
Musikalische Opfer), <strong>de</strong> Johann Sebastian Bach, como arcabouço do conto “Clone”, é<br />
razoável investigar o uso <strong>de</strong> formas <strong>musicais</strong> como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sua <strong>escrita</strong>, o que<br />
muitas vezes só se tor<strong>na</strong> visível numa leitura musical <strong>de</strong> seu texto, esclarecedora<br />
<strong>de</strong> momentos em que a música, encoberta por outras estruturas, aflora sem se nomear.<br />
Nesse campo, o conto “Você se <strong>de</strong>itou a teu lado”, com o tratamento da mãe <strong>na</strong> terceira<br />
pessoa e do filho <strong>na</strong> segunda, leva à forma musical dueto, que em Prosa do observatório<br />
molda o diálogo entre mar e céu, e, em “Anel <strong>de</strong> Moebius”, parágrafos alter<strong>na</strong>m a<br />
<strong>na</strong>rração dos fatos com as impressões sobre eles. Em “As caras da medalha” a
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estratégia <strong>de</strong> revezamento entre a primeira pessoa do singular e a terceira pessoa<br />
do plural remete ao concerto para solista e orquestra. Em Um tal Lucas, a primeira<br />
parte dos textos conta vivências do perso<strong>na</strong>gem-título, a segunda versa sobre<br />
assuntos diversos sem referência ao protagonista, e a terceira retoma as aventuras<br />
do herói, estrutura que coinci<strong>de</strong> com a forma musical ternária a-b-a. As <strong>na</strong>rrativas<br />
sobre Lucas remetem à forma variações, com exposições sucessivas <strong>de</strong> um mesmo tema<br />
tratadas com alterações. Em Histórias <strong>de</strong> cronópios e <strong>de</strong> famas, os episódios “Terapia”<br />
e “História” usam a forma cíclica, em que o mesmo material temático ocorre em<br />
diferentes movimentos da peça.<br />
Entre os elementos <strong>de</strong> estruturação musical, em História <strong>de</strong> cronópios e<br />
<strong>de</strong> famas, uma reflexão inicial sem título, <strong>de</strong> caráter pessoal, <strong>de</strong>stoante do tema do<br />
livro, remete à cadência, passagem virtuosística para a expressão do intérprete.<br />
Ainda <strong>na</strong> coletânea acha-se o ritornello, repetição <strong>de</strong> trecho numa peça, e o take <strong>de</strong><br />
jazz, visível nos vários ângulos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição dos seres.<br />
A MÚSICA COMO ENUNCIADO E ENUNCIAÇÃO<br />
Ao usar a música simultaneamente como forma e conteúdo <strong>de</strong> sua <strong>escrita</strong>,<br />
Cortázar tece os liames mais firmes da junção música-literatura. Enunciação e<br />
enunciado não mais se contentam em coexistir ou suce<strong>de</strong>r-se nos textos; eles se<br />
entremeiam inseparavelmente, consolidam a união da música com a literatura pelo<br />
estreitamento <strong>de</strong> seus parentescos léxicos e sintáticos. Isso é visto em sua obra em<br />
três níveis: primeiro, quando ele expressa a apropriação do recurso musical como<br />
estratégia <strong>de</strong> <strong>escrita</strong>, como em “Clone”; segundo, quando ele, através <strong>de</strong> termos e<br />
espaçamentos literários similares aos <strong>musicais</strong>, dá pistas <strong>de</strong> que está usando tal<br />
procedimento formal, como em “Reunião”; e terceiro, quando a reincidência contínua<br />
<strong>de</strong> formas <strong>musicais</strong> autoriza a suposição <strong>de</strong> que sua presença como enunciado favorece<br />
que o texto se aproxime <strong>de</strong>la enquanto enunciação, como em O jogo da amarelinha. Nos<br />
três casos, a música é um duplo do texto.<br />
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“CLONE”<br />
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Matéria e maneira se equivalem equilibradamente neste conto em que os<br />
campos musical e literário se interpenetram todo o tempo. Seu processo <strong>de</strong> composição<br />
corrobora a tese estruturalista <strong>de</strong> que o significante prece<strong>de</strong> e <strong>de</strong>termi<strong>na</strong> o significado,<br />
pois no início “Clone” é para Cortázar ape<strong>na</strong>s código. Uma brinca<strong>de</strong>ira para tor<strong>na</strong>r<br />
menos monóto<strong>na</strong> a <strong>escrita</strong> entrega o <strong>de</strong>senrolar do conto a uma fórmula em que as falas<br />
dos perso<strong>na</strong>gens seguem os instrumentos da peça feita por Bach a partir <strong>de</strong> um tema dado<br />
pelo imperador da Prússia, para <strong>de</strong>monstrar o sistema polifônico <strong>de</strong> composição. Para<br />
Cortázar, i<strong>de</strong>ntificar a ação dramática com os movimentos da peça constituía o <strong>de</strong>safio.<br />
Bach não <strong>de</strong>ixou instruções sobre a or<strong>de</strong><strong>na</strong>ção dos movimentos, procedimento<br />
<strong>de</strong> Cortázar em O jogo da amarelinha. Deslocamentos e superposições do tema <strong>na</strong> peça<br />
aparecem no conto em diálogos que se interrompem e retor<strong>na</strong>m, e através dos mecanismos<br />
<strong>de</strong> metonímia e metáfora. Relações intersemióticas presentes <strong>na</strong>s peças <strong>de</strong> Bach<br />
mostram que ele estrutura seu discurso musical, relacio<strong>na</strong>ndo-o com outros discursos,<br />
fato coerente com um compositor que foi o mestre maior da polifonia, sistema musical<br />
baseado <strong>na</strong> superposição e entrelaçamento <strong>de</strong> discursos. “Clone” refaz inversamente<br />
esse movimento, subordi<strong>na</strong>ndo a <strong>escrita</strong> a princípios <strong>musicais</strong>. Outra semelhança<br />
entre os dois é o prazer lúdico em guiar suas obras por equações numéricas, como a<br />
insistência do compositor em temas <strong>musicais</strong> baseados em números <strong>de</strong> seu nome ou datas<br />
<strong>de</strong> sua biografia e do autor em livros com oito contos cada: Bestiário, Todos os<br />
fogos o fogo, Fora <strong>de</strong> hora e Octaedro.<br />
A obra <strong>de</strong> Bach se <strong>de</strong>senvolve em dois planos <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong>: reflete a<br />
preocupação pedagógica lutera<strong>na</strong> em obras didáticas e alinha peças cuja interpretação<br />
<strong>de</strong>manda conhecimentos restritos a iniciados, como os cânones <strong>de</strong> A <strong>oferenda</strong> musical,<br />
on<strong>de</strong> a interpretação musical é conseqüência <strong>de</strong> uma interpretação <strong>literária</strong>: embora<br />
escritos em duas pautas, a resolução <strong>de</strong>les se faz em três pautas, a terceira sujeita<br />
à <strong>de</strong>cifração <strong>de</strong> seus títulos-enigmas. O fato <strong>de</strong> a interpretação <strong>de</strong> um texto ser<br />
imprescindível à execução musical mostra o estreito laço entre música e literatura<br />
<strong>na</strong>s obras <strong>de</strong> Bach. De forma recíproca, embora a leitura do texto cortazariano seja<br />
possível em níveis superficiais, as citações dos mais diversos campos exige a<br />
<strong>de</strong>cifração <strong>de</strong> muitos códigos.
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Ajustadas as seções do conto aos movimentos da peça, <strong>na</strong> seção correspon<strong>de</strong>nte<br />
ao canon por aumentação, as palavras refletem o sistema <strong>de</strong> composição (“há noites<br />
agora em que tudo parece prolongar-se intermi<strong>na</strong>velmente”). Na seção do canon<br />
circular por tons, o texto diz que “como em uma modulação ascen<strong>de</strong>nte, os conflitos<br />
duravam horas até a negociação ou o acordo momentâneo.” O retorno ao tom é mencio<strong>na</strong>do:<br />
“Cada madrigal <strong>de</strong> Gesualdo acrescentado ao repertório era um novo confronto, talvez<br />
o retorno à noite em que o príncipe havia <strong>de</strong>sembainhado o punhal olhando os amantes<br />
nus e adormecidos.” O texto do largo do trio-so<strong>na</strong>ta tem caráter reflexivo enquanto<br />
os dos allegro têm diálogos, as vozes seguem direções contrárias, e se diz que “o<br />
problema não é mudar <strong>de</strong> direção”. O cantus firmus que esteia uma das séries <strong>de</strong><br />
cânones vem ao texto: “Transforma-se, porém, em uma obsessão, uma espécie <strong>de</strong> cantus<br />
firmus em torno do qual gira a vida do grupo.” Na seção do canon caranguejo, o<br />
<strong>de</strong>stino do grupo é Buenos Aires, seu ponto <strong>de</strong> partida.<br />
Enfocando um grupo vocal que canta madrigais <strong>de</strong> Gesualdo, príncipe<br />
italiano re<strong>na</strong>scentista, alaudista e mece<strong>na</strong>s, “Clone” tem <strong>referências</strong> <strong>musicais</strong> que<br />
vão <strong>de</strong> tango a ricercari. Tudo ocorre “diante <strong>de</strong> uma partitura”, “entre dois<br />
concertos, quase entre dois madrigais”, “no fi<strong>na</strong>l das turnês”. Os perso<strong>na</strong>gens<br />
entrelaçam vida e música (“a mulher o enga<strong>na</strong>va e ele a matou, um tango a mais”),<br />
creditando ao tormento a belíssima música (“...encerrar-se em castelos on<strong>de</strong> haviam<br />
<strong>de</strong> se tecer ao longo dos anos as refi<strong>na</strong>das teias <strong>de</strong> aranha dos madrigais”),<br />
reverenciando um compositor que propôs em música o mesmo que Cortázar <strong>na</strong> literatura:<br />
o esgarçamento do material em busca <strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s. “Clone” prossegue o<br />
trabalho <strong>de</strong> Gesualdo, “buscando a melhor maneira <strong>de</strong> aliar os poemas à melodia como<br />
o príncipe <strong>de</strong> Venosa fizera à sua obscura, genial maneira”. Segundo Cortázar, sua<br />
gran<strong>de</strong> surpresa, a certeza <strong>de</strong> que a idéia tinha um sentido maior que o vislumbrado<br />
inicialmente, foi perceber que, no fi<strong>na</strong>l do conto ainda sem <strong>de</strong>sfecho, o fato do<br />
último movimento da peça usar ape<strong>na</strong>s sete vozes implicava a ausência <strong>de</strong> um dos<br />
perso<strong>na</strong>gens, relacio<strong>na</strong>ndo o conto, do ponto <strong>de</strong> vista temático, à tragédia <strong>de</strong><br />
Gesualdo, que matou a esposa A<strong>na</strong> d’Avalos e seu amante por traição.<br />
A música como tema do conto atesta seu valor <strong>na</strong> <strong>escrita</strong> <strong>de</strong> Cortázar. O<br />
emparelhamento rigoroso da métrica do conto à da peça mostra o quanto o autor<br />
aprofunda a influência da música em sua <strong>escrita</strong>. Mas Cortázar vai além do proposto:<br />
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ao adotar o mo<strong>de</strong>lo musical barroco <strong>na</strong> textura do conto, realiza uma literatura<br />
polifônica e tor<strong>na</strong> forma e conteúdo reflexos <strong>de</strong> um princípio musical único que<br />
orienta em muitos níveis a <strong>escrita</strong> do conto. “Clone” tem a variação e o contraponto<br />
como influências diretas em sua textura, em diálogos que alter<strong>na</strong>m, retomam, repetem<br />
e avançam o tema, trançando-o com material secundário em momentos <strong>de</strong> reexposição ou<br />
transição, numa recorrência contínua, própria da estrutura contrapontística. A<br />
alternância <strong>de</strong> vozes se afirma <strong>na</strong> frase que abre o conto: “Tudo parece girar em<br />
torno <strong>de</strong> Gesualdo, se tinha direito <strong>de</strong> fazer o que fez ou se se vingou em sua mulher<br />
<strong>de</strong> alguma coisa que <strong>de</strong>via ter vingado em si mesmo.” Ao dizer que tudo parece girar<br />
em torno <strong>de</strong> um músico que assassinou a mulher por tê-lo traído, numa <strong>na</strong>rrativa que<br />
gira em torno da traição da mulher <strong>de</strong> outro músico que também parece chegar ao<br />
assassi<strong>na</strong>to, Cortázar faz, nos mol<strong>de</strong>s bachianos, um <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> quatro séculos<br />
entre duas vozes que cantam o mesmo tema. E pisca ao leitor logo <strong>na</strong> abertura do<br />
conto, porque a polifonia imitativa é exatamente isso: tudo parecer girar em torno <strong>de</strong>.<br />
A música <strong>de</strong> Bach e Gesualdo têm, em muitos momentos, a literatura como<br />
chave. Cortázar, o escritor recolhe a garrafa-ao-mar das músicas que o acompanham,<br />
se <strong>de</strong>ixa guiar pelo velho Bach e pelo sofrido Gesualdo e faz o movimento contrário<br />
(uma das estratégias da peça), molda com elas sua <strong>escrita</strong>, compõe com os mestres um<br />
canon por retrogradação. A música dos dois e o texto <strong>de</strong> Cortázar <strong>de</strong>screvem uma fala<br />
única, num diálogo atemporal que as artes conduzem, continuida<strong>de</strong> infinita <strong>de</strong><br />
<strong>oferenda</strong> da música e da literatura ao homem.<br />
“REUNIÃO”<br />
No conto, o <strong>na</strong>rrador tece as lembranças do quarteto A caça, <strong>de</strong> Wolfgang<br />
Ama<strong>de</strong>us Mozart, com a caça a um grupo <strong>de</strong> guerrilheiros. O quarteto <strong>de</strong> cordas “que sempre<br />
o acompanhou” surge como um segundo tema, introduzindo momentos <strong>de</strong> intenso lirismo à<br />
<strong>na</strong>rrativa épica, fazendo o salto do sofrimento real para o prazer trazido pela peça:<br />
Penso em meu filho que está longe [e] em compensação, me faz tanto bem<br />
lembrar o tema <strong>de</strong> Mozart, que sempre me acompanhou, o movimento inicial do<br />
quarteto A caça, a evocação do halali <strong>na</strong> voz mansa dos violinos, essa<br />
transposição <strong>de</strong> uma cerimônia selvagem para um claro gozo pensativo.
Belo Horizonte, v. 7, p. 35-43, <strong>de</strong>z. 2003 <br />
Numa situação <strong>de</strong> extrema necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atenção aos fatos, a música é<br />
cantarolada <strong>de</strong> memória, tor<strong>na</strong>-se parte da realida<strong>de</strong>. O quarteto, enquanto um<br />
segundo tema do conto, leva a uma das principais formas <strong>musicais</strong> do classicismo, a<br />
forma-so<strong>na</strong>ta. Nascida da junção <strong>de</strong> uma segunda idéia musical, em outro tom, à so<strong>na</strong>ta<br />
monotemática, ela se firma com Haydn, como um conflito e resolução entre dois temas<br />
contrastantes. “Reunião” mostra interseções com os movimentos da peça: “estávamos<br />
entrando no adagio do quarteto, numa precária plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> poucas horas [...] a<br />
vonta<strong>de</strong> or<strong>de</strong><strong>na</strong>va outra vez o caos, impunha-lhe o <strong>de</strong>senho do adagio que um dia<br />
entraria no allegro fi<strong>na</strong>l.” Entrelaçando os dois temas e usando como conteúdo uma<br />
forma musical que se pauta pelo entrelaçamento <strong>de</strong> dois temas, o texto induz à<br />
suposição <strong>de</strong> que a influência da música se estenda além do tema, influindo <strong>na</strong> forma<br />
<strong>literária</strong>. A frase que abre a terceira seção do conto (“mas qual adagio qual<br />
<strong>na</strong>da...”) mencio<strong>na</strong> o terceiro movimento do quarteto, mostra que a forma musical da<br />
peça po<strong>de</strong> estar amparando a criação <strong>literária</strong>. A caça faz parte dos seis quartetos<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> varieda<strong>de</strong> expressiva que Mozart <strong>de</strong>dicou a Haydn. O <strong>de</strong>staque brilhante da<br />
voz do primeiro violino, característica haydnia<strong>na</strong> que Mozart adota nesta série, é<br />
análoga à predominância da fala do <strong>na</strong>rrador sobre a dos outros perso<strong>na</strong>gens. O<br />
caráter <strong>de</strong> cada movimento da peça é rigorosamente seguido pelo texto. Na seção<br />
inicial, correspon<strong>de</strong>nte ao allegro vivace assai, é <strong>de</strong>scrito movimentadamente o<br />
<strong>de</strong>sembarque tumultuado. Na segunda seção, o menuetto mo<strong>de</strong>rato da peça propicia uma<br />
mudança acentuada do tom do texto, com o <strong>na</strong>rrador entregue às reflexões da noite.<br />
O adagio do terceiro movimento conta um momento mais tranqüilo em que “continuamos<br />
assim, durante certo tempo, trocando pilhérias”. E o Allegro assai fi<strong>na</strong>l (“esse<br />
allegro fi<strong>na</strong>l que suce<strong>de</strong> ao adagio como um encontro com a luz”) conta o reencontro<br />
com Luís, a alegria <strong>de</strong> revê-lo vivo. E, conforme o alerta <strong>de</strong> Davi Arrigucci Júnior,<br />
“com cronópios, nunca se sabe on<strong>de</strong> parar”; o título do conto, além <strong>de</strong> se referir ao<br />
reencontro dos revolucionários, <strong>de</strong>staca o entrelaçamento dos dois discursos: música<br />
e literatura.<br />
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O JOGO DA AMARELINHA<br />
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No romance, o alto grau <strong>de</strong> citações <strong>musicais</strong> faz supor que a música,<br />
presente como tema, interfere <strong>na</strong> estrutura das frases, <strong>na</strong> construção dos parágrafos<br />
e <strong>na</strong> organização dos capítulos, <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ndo a arquitetura do livro. No campo<br />
temático, ela cria alguns trechos, como as vinte pági<strong>na</strong>s sobre um concerto<br />
contemporâneo. Os perso<strong>na</strong>gens são apresentados através <strong>de</strong> sua relação com a música:<br />
Horacio é gran<strong>de</strong> conhecedor do jazz cool; a Maga “cantarolava melodias ainda não<br />
inventadas” e Ro<strong>na</strong>ld, “sozinho ao piano, ficava com todo o tempo necessário para<br />
trabalhar as suas idéias sobre o be-bop”. Músicas e músicos dialogam com perso<strong>na</strong>gens,<br />
entregues “ao jazz como um mo<strong>de</strong>sto exercício <strong>de</strong> libertação”.<br />
Refletindo a música dos períodos barroco e clássico, muito presentes no<br />
texto, a disposição dos capítulos sob os títulos “do lado <strong>de</strong> lá”, “do lado <strong>de</strong> cá”<br />
e “<strong>de</strong> outros lados” (recortes <strong>de</strong> textos que remetem às <strong>na</strong>rrativas <strong>de</strong> um ou outro<br />
lado), assemelha-se às formas ternárias eruditas, com a terceira parte como um<br />
<strong>de</strong>senvolvimento das duas primeiras. A divisão <strong>de</strong> capítulos entre Paris e Buenos<br />
Aires tem ressonâncias da retomada do <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lismo <strong>na</strong> música romântica, muito<br />
citada. Procedimentos da música contemporânea estão <strong>na</strong> imprevisibilida<strong>de</strong> possibilitada<br />
pelo embaralhamento aleatório dos capítulos. Mas é principalmente no campo do jazz<br />
que o reflexo das citações <strong>musicais</strong> transparece <strong>na</strong> forma do romance, que se<br />
<strong>de</strong>senvolve através <strong>de</strong> contínuas recorrências jazzísticas em sua busca inquietante<br />
do que nunca é alcançado. Mais do que usar elementos apreendidos do jazz, Cortázar<br />
usa sua forma para moldar um texto que, com múltiplas variações em torno do mesmo<br />
tema, está sempre retomando a busca anunciada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a frase que abre o livro:<br />
“Encontraria a Maga?”. Neste sentido, é razoável pensar que os vários enfoques sob<br />
os quais <strong>de</strong>corre a busca <strong>de</strong> Horacio são uma coletânea <strong>de</strong> takes <strong>de</strong> jazz.<br />
CONCLUSÃO<br />
Em tantas aparições e sob tantos aspectos, a música configura quase uma<br />
assi<strong>na</strong>tura <strong>de</strong> Cortázar. Lançando mão <strong>de</strong> um material especialmente rico em possibilida<strong>de</strong>s
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<strong>de</strong> significações, o autor se abre a outras lógicas e realiza um discurso próprio.<br />
Trompetista amador, compositor e letrista <strong>de</strong> tangos, seu envolvimento com a música<br />
como intenso fruidor é suficiente para transitar com <strong>de</strong>senvoltura entre os dois<br />
discursos, juntando dois campos artísticos que inva<strong>de</strong>m as mútuas vizinhanças e<br />
entrelaçam ca<strong>de</strong>ias semióticas, oferecendo aos leitores redobrado prazer. A música<br />
é uma formulação incancelável em sua <strong>escrita</strong>, a única maneira que o escritor po<strong>de</strong><br />
usar, sendo ele quem é, para realizar sua <strong>escrita</strong>.<br />
ABSTRACT:<br />
This article studies the presence of musical elements in<br />
<strong>Julio</strong> Cortázar’s writing, and a<strong>na</strong>lyses its relevance to<br />
his literary production, in or<strong>de</strong>r to explore the connections<br />
between musical and literary discourses in relation to<br />
the literary creation.<br />
KEY WORDS: music, literature, theme, form, discourse.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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London: Ernst Eulenburg Ltd, 1986.<br />
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Alfaguara, 1997.<br />
CORTÁZAR, <strong>Julio</strong>. Cuentos completos, vol. 2. Argenti<strong>na</strong>:<br />
Alfaguara, 1996.<br />
CORTÁZAR, <strong>Julio</strong>. “Nota sobre o tema <strong>de</strong> um rei e a<br />
vingança <strong>de</strong> um príncipe”. In Orientação dos gatos. 2. ed.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1981.<br />
CORTÁZAR, <strong>Julio</strong>. O jogo da amarelinha. 4. ed. Rio <strong>de</strong><br />
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CORTÁZAR, <strong>Julio</strong>. “Reunião”. In Todos os fogos o fogo.<br />
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458 Hunt, CD 8.550542. Germany, HNH Inter<strong>na</strong>tio<strong>na</strong>l Ltd.,<br />
1992.<br />
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