Mito e História entre os gregos antigos: aspectos sobre a questão ...
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<strong>Mito</strong> e <strong>História</strong> <strong>entre</strong> <strong>os</strong> greg<strong>os</strong> antig<strong>os</strong>:<br />
aspect<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> a <strong>questão</strong> na obra de Paul Veyne<br />
<strong>História</strong>, imagem e narrativas<br />
N o 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br<br />
Bruno Francisco Diniz Marinho<br />
Graduado em história UFOP<br />
bfdmarinho@gmail.com<br />
Resumo: comumente, <strong>os</strong> conceit<strong>os</strong> de mito e história são classificad<strong>os</strong> como op<strong>os</strong>t<strong>os</strong>. <strong>Mito</strong> é mentira, fábula,<br />
invenção de mentes ingênuas. A história é considerada um relato verdadeiro, já que ela deve, segundo Ranke,<br />
conhecer “o que realmente aconteceu”. Essa pesquisa procura problematizar essa <strong>questão</strong> a partir da obra:<br />
“Acreditavam <strong>os</strong> greg<strong>os</strong> em seus mit<strong>os</strong>?”, de Paul Veyne. Investigam<strong>os</strong> aqui como esse autor coloca a distinção<br />
<strong>entre</strong> <strong>os</strong> conceit<strong>os</strong> de história e de mito na sociedade que estuda.<br />
Palavras-Chave: <strong>Mito</strong>, <strong>História</strong>, veracidade, mentira, Grécia antiga, fábula<br />
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<strong>História</strong>, imagem e narrativas<br />
N o 12, abril/2011 - ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br<br />
<strong>Mito</strong> e <strong>História</strong> são dois conceit<strong>os</strong> que geralmente são classificad<strong>os</strong> como op<strong>os</strong>t<strong>os</strong>. O<br />
mito, na linguagem comum, é entendido como uma história falsa, fantasi<strong>os</strong>a. No livro “Myth: A<br />
Very Short Introduction”, publicada pela Oxford, o autor Robert Segal nota essa concepção:<br />
In today’s parlance, myth is false. Myth is ‘mere’ myth. For example, in 1997 historian William<br />
Rubinstein published The Myth of Rescue: Why the Democracies Could Not Have Saved More<br />
Jews from the Nazis. The title says it all. The book challenges the common conviction that many<br />
Jewish victims of the Nazis could have been saved if only the Allies had committed themselves to<br />
rescuing them. Rubinstein is challenging the assumption that the Allies were indifferent to the fate<br />
of European Jews and were indifferent because they were anti-Semitic. For him, the term ‘myth’<br />
captures the sway of the conviction about the failure to rescue more fully than would tamer<br />
phrases like ‘erroneous belief’ and ‘popular misconception’. A ‘myth’ is a conviction false yet<br />
tenacious(SEAGAL: 2004: 6). 1<br />
O mito contrapõe-se, nessa concepção, à história que é entendida aí como um discurso<br />
verdadeiro, que trata de aconteciment<strong>os</strong> reais, uma vez que a função do historiador é, como<br />
afirma Ranke, “m<strong>os</strong>trar o que realmente aconteceu” (VEYNE, 1985: 124/125). A distinção <strong>entre</strong><br />
a história e o mito pode ser encontrada n<strong>os</strong> pesquisadores greg<strong>os</strong> como Pausânias, que dizia:<br />
(...) contam-se muitas vezes coisas nada verdadeiras <strong>entre</strong> a multidão, que não compreende nada<br />
da história e que acredita digno de fé o que ela escutou desde a infância n<strong>os</strong> cor<strong>os</strong> e nas tragédias.<br />
Narram-se tais coisas a propósito de Teseu, por exemplo; mas, na realidade, Teseu foi um rei que<br />
subiu ao trono com a morte de Menesteu, e seus descendentes conservaram o poder até a quarta<br />
geração (VEYNE, 1985: 25).<br />
Essa distinção não é idêntica à n<strong>os</strong>sa. O mito, para <strong>os</strong> greg<strong>os</strong>, era considerado uma<br />
história falseada. Mas havia nessa narrativa um fundo de verdade que a crítica histórica deveria<br />
recuperar. Os mit<strong>os</strong> teriam parte de seu enredo “falsificado” pela ingenuidade das pessoas. Os<br />
historiadores efetuavam seu método crítico, utilizando aquilo que Paul Veyne chama de<br />
“doutrina das coisas atuais”. Esse método consistia em julgar o que existia ou não no passado a<br />
partir do que existe na atualidade. Ora, pensavam <strong>os</strong> greg<strong>os</strong>, se <strong>os</strong> minotaur<strong>os</strong> não existem n<strong>os</strong><br />
dias de hoje, por que existiriam no passado?<br />
1<br />
N<strong>os</strong> dizeres de hoje em dia, o <strong>Mito</strong> é falso. O <strong>Mito</strong> é “o mero” <strong>Mito</strong>. Por exemplo, em 1997, o historiador William<br />
Rubinstein publicou “O mito do Resgate: por que as democracias não salvaram mais judeus d<strong>os</strong> nazistas”. O título<br />
diz tudo. O livro desvia a convicção comum de que muit<strong>os</strong> Judeus vítimas do Nazismo poderiam ser salvas se<br />
apenas <strong>os</strong> Aliad<strong>os</strong> se comprometessem a resgatá-las. Rubinstein está desafiando a concepção de que <strong>os</strong> Aliad<strong>os</strong><br />
eram indiferentes ao destino d<strong>os</strong> Judeus Europeus e eram indiferentes porque eram Anti-Semitas. Para ele, o termo<br />
‘<strong>Mito</strong>’, captura o balanço da convicção <strong>sobre</strong> a falha em resgatar mais completamente do que poderiam frases<br />
moderadoras como ‘crenças errôneas’ e ‘equívoc<strong>os</strong> populares’. Um ‘<strong>Mito</strong>’ é uma convicção falsa e persistente<br />
(Tradução n<strong>os</strong>sa).<br />
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Paul Veyne comenta um trecho de Pausânias e afirma que o pesquisador separou na<br />
história de Teseu, o joio do trigo, distinguindo nela o que havia de autêntico do que tinha de<br />
fantasi<strong>os</strong>o. Separou n<strong>os</strong> relat<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> o rei o que pertenceria à história e seria digno de crença de<br />
acordo com o pensamento histórico, daquilo que era lenda e que não poderia ter acontecido. Essa<br />
forma de proceder era comum <strong>entre</strong> outr<strong>os</strong> pesquisadores antig<strong>os</strong>, procedimento que “consiste<br />
em ver no mito uma tradição oral, uma fonte histórica, que é necessário criticar (...)” (VEYNE,<br />
1985: 25). Para eles <strong>os</strong> relat<strong>os</strong> mític<strong>os</strong> remetem a aconteciment<strong>os</strong> de períod<strong>os</strong> longínqu<strong>os</strong>. Só que<br />
no decorrer do tempo <strong>os</strong> relat<strong>os</strong> transmitid<strong>os</strong> geração a geração teriam adquirido versões<br />
fantasi<strong>os</strong>as. A missão do historiador antigo seria, então, descobrir o núcleo “verdadeiro” desses<br />
relat<strong>os</strong>. Nota-se que <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> historiadores já criticavam o mito e viam nele uma versão<br />
“fantasi<strong>os</strong>a” daquilo que aconteceu. Ao assumir essa p<strong>os</strong>tura, <strong>os</strong> historiadores delimitaram o<br />
campo que pertence à história e que deve ser julgado como verdadeiro de acordo com o<br />
pensamento histórico.<br />
Como m<strong>os</strong>tra Paul Veyne, para <strong>os</strong> greg<strong>os</strong>, a distinção <strong>entre</strong> as concepções de história e de<br />
mito implicavam um grande número de questões: Acreditavam eles em seus mit<strong>os</strong>?<br />
Acreditavam, mas não como “acreditam<strong>os</strong> na realidade que n<strong>os</strong> circunda”, e sim como as<br />
crianças acreditam em Papai Noel embora saibam que são seus pais que deixam <strong>os</strong> presentes<br />
para elas durante a noite, ou até mesmo como se acredita em fantasmas. Verem<strong>os</strong> com Veyne<br />
que não é contraditório acreditar em dois programas de verdade. Portanto, é p<strong>os</strong>sível conciliar a<br />
verdade contida n<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> com a verdade colocada pela história.<br />
É necessário lembrar que o estudo d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> engloba uma infinidade de questões e que<br />
existem diversas interpretações para um mito específico como para a mitologia em geral. Mircea<br />
Eliade lembra que “seria difícil uma definição de mito que f<strong>os</strong>se aceita por tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> erudit<strong>os</strong> e,<br />
ao mesmo tempo, acessível a<strong>os</strong> não-especialistas” (ELIADE, 1972: 11). E Lévi-Strauss vai<br />
criticar a p<strong>os</strong>tura de Sigmund Freud ao tentar dar uma interpretação definitiva a<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>, na qual<br />
ele acreditava ser a visão “original”:<br />
Nunca a psicanálise pôde demonstrar que suas interpretações d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> recuperam formas<br />
originais — mesmo porque a forma original (supondo-se que a noção tenha algum sentido) é e<br />
sempre será inatingível, já que todo mito, por mais que se retroceda, só é conhecido porque foi<br />
ouvido e repetido... (LÉVI-STRAUSS, 1985: 234).<br />
Ao invés disso, lembra o etnólogo, o que Freud fez foi dar a<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> uma versão atual.<br />
Essa interpretação original é para Lévi-Strauss, inalcançável. O mito p<strong>os</strong>sui diversas<br />
interpretações. Cada uma delas é, à sua maneira, verdadeira.<br />
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Verem<strong>os</strong> aqui que a separação radical <strong>entre</strong> mito e história é apenas aparente. A partir do<br />
século XX alguns autores vão trazer um novo olhar <strong>sobre</strong> o mito, como afirma Mircea Eliade:<br />
Há mais de meio século, <strong>os</strong> erudit<strong>os</strong> ocidentais passaram a estudar o mito por uma perspectiva que<br />
contrasta sensivelmente com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de tratar, como seus<br />
predecessores, o mito na acepção usual do termo, i.e, como “fábula”, “invenção”, “ficção”, eles o<br />
aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário,<br />
uma história verdadeira e, ademais, extremamente preci<strong>os</strong>a por seu caráter sagrado, exemplar e<br />
significativo (ELIADE, 1972: 7).<br />
Basta uma leitura d<strong>os</strong> grandes autores (Lévi-Strauss, Ricoeur, Veyne...) que trabalharam<br />
essa <strong>questão</strong> para perceberm<strong>os</strong> que a op<strong>os</strong>ição mito/história deve ser problematizada e verem<strong>os</strong><br />
que em alguns pont<strong>os</strong> <strong>os</strong> dois camp<strong>os</strong> se parecem ocupando a mesma função, este é o argumento<br />
de Claude Lévi-Strauss:<br />
O que se descobre ao ler estes livr<strong>os</strong> é que a op<strong>os</strong>ição – a op<strong>os</strong>ição simplificada <strong>entre</strong> mitologia e<br />
história a que estam<strong>os</strong> habituad<strong>os</strong> a fazer – não se encontra bem definida, e que há um nível<br />
intermédio (LÉVI-STRAUSS, 1978: 41).<br />
Em outro trecho o autor diz: “Não ando longe de pensar que, nas n<strong>os</strong>sas sociedades, a<br />
<strong>História</strong> substitui a <strong>Mito</strong>logia e desempenha a mesma função (...)”(LÉVI-STRAUSS, 1978: 63).<br />
Paul Ricoeur também problematiza a <strong>questão</strong>:<br />
Tratando do mito e da história neste nível, devem<strong>os</strong> evitar a tentação de empenhar-n<strong>os</strong> em<br />
contrap<strong>os</strong>ições simplistas <strong>entre</strong> tip<strong>os</strong> diferentes de civilizações, ou utilizar interpretações genéticas<br />
excessivamente lineares (RICOEUR, 1993: 373). 2<br />
O objetivo de pesquisar <strong>os</strong> conceit<strong>os</strong> de “mito” e de “história” é entender como essa<br />
distinção pode ser feita para que p<strong>os</strong>sam<strong>os</strong>, no final, ter uma compreensão de como ela é<br />
articulada nas narrativas. Não convém pensar no estudo da história como um avanço na <strong>História</strong><br />
do homem, que já não acredita em “lendas” e “histórias fantasi<strong>os</strong>as ou irreais” e sim trabalhar<br />
com a noção de Paul Veyne, da “pluralidade de mund<strong>os</strong> da verdade”. Nesse sentido, a verdade é<br />
heterogênea. Não considerarem<strong>os</strong> a verdade da <strong>História</strong> mais real que aquela do <strong>Mito</strong>. Sabem<strong>os</strong>,<br />
porém, que são verdades de natureza distinta. Acreditarem<strong>os</strong> no argumento de Veyne que diz:<br />
2 Grifo n<strong>os</strong>so.<br />
(...) mais precisamente seria necessário saber se a literatura ou a religião são mais ficções do que a<br />
história ou a física e vice-versa; dizem<strong>os</strong> que uma obra de arte é, á sua maneira, considerada como<br />
verdadeira, mesmo onde ela passa por ficção, pois a verdade é uma palavra homônima que não<br />
deveria se empregar senão no plural: só existem programas heterogêne<strong>os</strong> de verdade e Fustel de<br />
Coulanges não é nem mais nem men<strong>os</strong> verdadeiro que Homero, ainda que seja de outra forma<br />
(...)”(VEYNE, 1985: 31).<br />
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Este trabalho adota como procedimento, a princípio, uma análise arqueológica da obra de<br />
Paul Veyne: “Acreditavam <strong>os</strong> greg<strong>os</strong> em seus mit<strong>os</strong>?.” Na tentativa de encontrar nessa obra<br />
como se articula a distinção <strong>entre</strong> história e mito no mundo grego, buscarem<strong>os</strong> entender como<br />
historiadores e leig<strong>os</strong> viam <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> e sua relação com a história. Verem<strong>os</strong>, também quais eram<br />
as implicações dessa visão para o entendimento da verdade. Procedendo assim farem<strong>os</strong><br />
colocações que a própria obra não abrangia. Como define Michel Foucault, o método guiará esse<br />
trabalho:<br />
Não é nada mais e nada diferente de uma re-escrita: isto é, na forma mantida da exterioridade, uma<br />
transformação regulamentada do que já foi escrito. Não é o retorno ao segredo da origem; é a<br />
descrição sistemática de um discurso-objeto (FOUCALT, 1971: 173)<br />
<strong>História</strong> e <strong>Mito</strong> no mundo grego a partir da obra de Paul Veyne<br />
Paul Veyne trabalha de forma interessante <strong>os</strong> limites <strong>entre</strong> <strong>os</strong> camp<strong>os</strong> da <strong>História</strong> e do<br />
<strong>Mito</strong> em seu livro: “Acreditavam <strong>os</strong> Greg<strong>os</strong> n<strong>os</strong> seus mit<strong>os</strong>?”. O historiador investiga como no<br />
imaginário d<strong>os</strong> Greg<strong>os</strong> a verdade era entendida, e como eram as diferentes modalidades de<br />
crença do popular e do letrado. Isso não é feito apenas para conhecer o imaginário antigo e nem<br />
somente observar como eles viam a verdade. Seu interesse ao estudar essas questões é repensar o<br />
conceito moderno de verdade e n<strong>os</strong> m<strong>os</strong>trar que ela só pode ser entendida de forma heterogênea.<br />
Lembrando Foucault diríam<strong>os</strong> que só é p<strong>os</strong>sível uma história das idéias quando já não existe uma<br />
idéia de verdade única e é isso que constatam<strong>os</strong> no trabalho de Veyne. Seu trabalho m<strong>os</strong>tra como<br />
as idéias de <strong>História</strong> e de <strong>Mito</strong> foram transformadas ao longo do tempo. Isso só é p<strong>os</strong>sível porque<br />
se sabe que não existe somente um mundo de verdade no qual podem<strong>os</strong> acreditar. Nessa<br />
investigação observarem<strong>os</strong> <strong>os</strong> lugares da história e do mito no pensamento grego, e como a partir<br />
desses conceit<strong>os</strong> podem<strong>os</strong> pensar em diferentes programas de verdade.<br />
Verdade histórica <strong>entre</strong> <strong>os</strong> antig<strong>os</strong>: tradição e vulgata:<br />
Os historiadores antig<strong>os</strong> nunca citavam suas fontes e nem mesmo distinguiam as fontes<br />
primárias das secundárias. Ao tentar buscar as razões para esse silêncio, Paul Veyne nota que a<br />
história como conhecem<strong>os</strong> hoje é totalmente diferente daquela feita pel<strong>os</strong> historiadores clássic<strong>os</strong>,<br />
tendo em comum somente o nome. Isso não implica dizer que aquela forma de se fazer história<br />
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f<strong>os</strong>se imperfeita: “estava tão acabada, como meio de merecer crédito quanto o n<strong>os</strong>so jornalismo<br />
(...)” (VEYNE: 1983: 15). O historiador antigo não colocava notas de rodapé, pois queria que<br />
acreditassem na sua palavra.<br />
O historiador Estienne Pasquier em 1560 era bastante criticado por fornecer, com<br />
freqüência, a referência de suas fontes. Não se esperava que o historiador m<strong>os</strong>trasse de onde ele<br />
tinha tirado aquela informação para que seu relato tivesse credibilidade. Essa credibilidade viria<br />
com o tempo, assim como aconteceuram com <strong>os</strong> historiadores antig<strong>os</strong>.<br />
Paul Veyne lembra que, <strong>entre</strong> <strong>os</strong> greg<strong>os</strong>, a idéia de história era diferente: “a verdade<br />
histórica era uma vulgata que consagra o acordo d<strong>os</strong> espírit<strong>os</strong> ao longo d<strong>os</strong> sécul<strong>os</strong>, esse acordo<br />
sanciona a verdade” (VEYNE, 1983: 16). Ao invés de estabelecer a verdade por referência, o<br />
autor deveria esperar “que ele mesmo f<strong>os</strong>se reconhecido como texto” (VEYNE, 1983: 16). Ao<br />
colocar referências ele iria tentar “forçar o consenso da p<strong>os</strong>teridade em torno da sua obra”<br />
(VEYNE, 1983: 16). Não podem<strong>os</strong> considerar que a distinção <strong>entre</strong> fontes primárias e<br />
secundárias f<strong>os</strong>se ignorada, ou ainda não tivesse sido descoberta, ela simplesmente não era<br />
necessária.<br />
Os historiadores modern<strong>os</strong> vêem <strong>os</strong> seus antecessores como fontes, porém <strong>os</strong><br />
historiadores antig<strong>os</strong> percebiam a versão de seus predecessores como uma tradição que deveria<br />
ser retomada no sentido de melhorá-la. Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso reuniam o que<br />
diziam seus antecessores sem questionar se o que eles diziam era ou não verdade. Somente<br />
suprimiam <strong>os</strong> detalhes que lhes pareciam fals<strong>os</strong>, tampouco questionavam como <strong>os</strong> historiadores<br />
sabiam <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong> que relatavam, ou <strong>sobre</strong> a distância temporal do historiador e<br />
seu objeto. Eles sabiam que <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> historiadores de Roma tinham sido p<strong>os</strong>teriores a<br />
Rômulo quatro sécul<strong>os</strong>, mas para eles “a tradição estava lá e ela era a verdade, eis tudo”<br />
(VEYNE, 1983: 17).<br />
Outra função considerada importante pel<strong>os</strong> historiadores antig<strong>os</strong> era a de se relatar a<br />
história de seu tempo. Isso porque o passado já tinha seus historiadores. Já na<br />
contemporaneidade precisaríam<strong>os</strong> de um historiador que se tornasse fonte histórica para o futuro,<br />
estabelecendo-se assim a tradição. O historiador antigo não utilizava fontes e document<strong>os</strong>, pois<br />
ele mesmo assumia esse papel de fonte e documento. Tornava-se, então, um porta-voz da<br />
história.<br />
Por algumas vezes, o historiador antigo poderia falar que suas fontes apresentavam<br />
alguma divergência, mas não fazia disso um elemento de prova, somente citava algum detalhe<br />
duvid<strong>os</strong>o. Podia ele também transcrever um documento, mas com a intenção de ilustrar o leitor e<br />
não de provar algo. No passado, <strong>os</strong> historiadores eram autoridades para seus sucessores, poderia<br />
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ser, no entanto, que estes <strong>os</strong> criticassem. Faziam isso para eliminar <strong>os</strong> sup<strong>os</strong>t<strong>os</strong> err<strong>os</strong> e não para<br />
reconstruir o trabalho já feito.<br />
O historiador antigo não citava suas “autoridades”, pois ele mesmo se considerava uma.<br />
Não é p<strong>os</strong>sível saber de onde Políbio ou Tucídides tiraram as informações contidas em seus<br />
relat<strong>os</strong>, porém se n<strong>os</strong> empenharm<strong>os</strong> em traçar uma origem de como a verdade histórica surgiu<br />
como vulgata, a encontraríam<strong>os</strong> na Grécia. A história não surgiu, como em n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> temp<strong>os</strong>, da<br />
controvérsia, mas sim da investigação. Quando se investiga, só se pode dizer: “eis o que eu<br />
constatei, eis o que foi me dito n<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> geralmente bem informad<strong>os</strong> (...)” (VEYNE, 1983: 20).<br />
Tanto é que a veracidade de um relato jornalístico não se faz pela citação das fontes contidas no<br />
texto, mas pela crítica interna feita pelo jornalista. Veyne citando um historiador antigo lembra<br />
que “um bom historiador, diz Tucídides, não acolhe cegamente todas as tradições que lhe foram<br />
narradas: ele deve saber verificar a informação, como dizem n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> repórteres” (VEYNE, 1983:<br />
21).<br />
O historiador antigo não precisava colocar o processo de seleção das informações a<strong>os</strong><br />
olh<strong>os</strong> d<strong>os</strong> leitores. Ele assumia a responsabilidade <strong>sobre</strong> a informação que fornecia. O historiador<br />
moderno, por outro lado, propõem uma interpretação e fornece a<strong>os</strong> leitores mei<strong>os</strong> de verificar<br />
essas informações. O antigo não se preocupava em deixar claro de onde tirou suas informações,<br />
pois considerava que o trabalho de investigar era do historiador e não do leitor: “Pois seu leitor<br />
não era ele mesmo um historiador, não mais do que <strong>os</strong> leitores de jornais são jornalistas: uns e<br />
outr<strong>os</strong> confiam no profissional” (VEYNE, 1983: 21).<br />
<strong>História</strong> Moderna: Quando o historiador começa a citar suas referências.<br />
Em certo momento de seu texto Paul Veyne se pergunta: “Quando e por que mudou a<br />
relação do historiador com seus leitores? Quando e por que se começou a dar suas referências?”<br />
(VEYNE, 1983: 21). O autor lembra que Gassendi em seu “Syntazma phil<strong>os</strong>ophiae Epicurae”<br />
não citava suas referências, de forma que nada distinguia o pensamento de Epicuro e de<br />
Gassendi. Pretendia assim retomar o epicurismo na sua verdade eterna, verdade essa que é<br />
anônima.<br />
O hábito de citar as fontes não vem de historiadores, mas sim de “controvérsias<br />
teológicas e práticas juristas” (VEYNE, 1983: 22). Esta idéia cresce juntamente com o aumento<br />
das universidades e o crescimento de sua importância. Nesse contexto era preciso atirar “(...) as<br />
provas no r<strong>os</strong>to, antes de dá-las a compartilhar a<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> da “comunidade científica””<br />
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(VEYNE, 1983: 22). Na Universidade, <strong>os</strong> historiadores não escrevem mais para <strong>os</strong> leitores e sim<br />
para outr<strong>os</strong> historiadores, daí a necessidade de m<strong>os</strong>trar suas provas. Em Pausânias e Heródoto,<br />
Veyne m<strong>os</strong>tra que muitas vezes <strong>os</strong> historiadores demonstraram que não acreditam em parte do<br />
que eles relatam, o dever destes historiadores era como diz Heródoto de “(...) dizer o que me foi<br />
dito, mas não o de acreditar em tudo (...)”(VEYNE, 1983: 23).<br />
Caso um historiador moderno quisesse contar lendas e fat<strong>os</strong> n<strong>os</strong> quais ele mesmo não<br />
acredita, ele atentaria contra a ciência. Por outro lado o historiador antigo p<strong>os</strong>suía um público<br />
mais amplo e men<strong>os</strong> especializado, de forma que alguns queriam ler história por diversão, outr<strong>os</strong><br />
traziam um olhar mais crítico ou ainda liam história para usá-la na política e na estratégia. Dessa<br />
forma o historiador poderia m<strong>os</strong>trar a verdade de maneira variada, atentando para o seu público.<br />
Antes da era Nietzsche e Max Weber, a era da controvérsia segundo Paul Veyne, <strong>os</strong> fat<strong>os</strong><br />
existiam, o historiador não precisava interpretá-l<strong>os</strong>, pois eles estavam dad<strong>os</strong>. Veyne diz que<br />
nesse momento o historiador precisava p<strong>os</strong>suir três características que são as de um bom<br />
jornalista hoje: “diligência, competência e imparcialidade”. Ele vai agir diligentemente<br />
informando-se n<strong>os</strong> livr<strong>os</strong>, tradições e mit<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> o fato que esta pesquisando, deverá ter<br />
competência em assunt<strong>os</strong> polític<strong>os</strong> para compreender as ações humanas e sua imparcialidade:<br />
“fará com que ele não minta por comissão ou omissão” (VEYNE, 1983: 25).<br />
<strong>Mito</strong>s de Deuses e mit<strong>os</strong> de heróis: A cultura popular e letrada frente à mitologia<br />
Se a história antiga se difere da moderna em vári<strong>os</strong> pont<strong>os</strong>, num ponto elas se parecem.<br />
Ambas têm certa desconfiança com relação ao mito. Se para o historiador moderno o mito<br />
deveria ser desconsiderado uma vez que não tem valor 3 factual, para o antigo existiria uma<br />
verdade n<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>. Para este último <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> se referiam a uma história verdadeira que tinha<br />
ganhado características fantasi<strong>os</strong>as com o passar do tempo. O papel do historiador era o de<br />
buscar esse fundo de verdade d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>.<br />
Pausânias, n<strong>os</strong> seus estud<strong>os</strong>, recolhia lendas e histórias n<strong>os</strong> vilarej<strong>os</strong> por onde passava.<br />
Nesses lugares as pessoas não duvidavam d<strong>os</strong> relat<strong>os</strong> mític<strong>os</strong>. Esses se remetiam à vida de sant<strong>os</strong><br />
ou de mártires e retomavam genealogias heróicas ou divinas, porém não acreditavam neles como<br />
(...) se acredita na realidade que n<strong>os</strong> circundam. Para o comum d<strong>os</strong> fiéis, as vidas d<strong>os</strong> mártires<br />
permeadas de maravilhas, situavam–se num passado distante, do qual se sabe apenas que era<br />
anterior, exterior e heterogêneo do tempo atual; era o “tempo d<strong>os</strong> pagã<strong>os</strong> (VEYNE, 1983: 28)<br />
3<br />
Fontenelle foi o primeiro a assumir essa p<strong>os</strong>tura, como afirma Paul Veyne neste trecho: “Fontenelle foi o primeiro<br />
a dizê-lo: as fábulas não têm nenhum núcleo de verdade e não são nem mesmo alegorias (...)” (Veyne, 1983: 72)<br />
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Era assim que se explicavam <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> greg<strong>os</strong>: eles aconteciam nas gerações heróicas,<br />
tempo onde <strong>os</strong> deuses ainda se misturavam com <strong>os</strong> human<strong>os</strong>. Segundo Paul Veyne um grego<br />
teria ficado atônito “se tivesse de aceitar o problema do tempo, e que lhe ensinassem que<br />
Héfes<strong>os</strong> acabava de se casar novamente ou que Atena tinha envelhecido muito esses últim<strong>os</strong><br />
temp<strong>os</strong>” (VEYNE, 1983: 28). O mito não pertencia ao mesmo regime de crença que o da<br />
história. As ações míticas realizavam-se numa temporalidade diferente, exterior.<br />
Havia então para <strong>os</strong> greg<strong>os</strong> antig<strong>os</strong>, antes do passado da humanidade, um período<br />
maravilh<strong>os</strong>o que foi a era d<strong>os</strong> Deuses. Esse período, segundo Veyne, era “Real em si mesmo e<br />
irreal em relação ao n<strong>os</strong>so”. Heródoto já distinguia as gerações heróicas e as gerações humanas.<br />
Veyne m<strong>os</strong>tra como, <strong>entre</strong> <strong>os</strong> antig<strong>os</strong>, se entendia a cronologia a partir de Varrão:<br />
De Deucalião ao dilúvio estendia-se a idade obscura; do dilúvio à primeira olimpíada (onde a<br />
cronologia tornava-se mais segura) estava a idade mítica, “assim chamada porque ela comporta<br />
muitas fábulas”; da primeira olimpíada em 776 a.C. à época de Varrão e de Cícero, estende a idade<br />
histórica, onde “<strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong> são narrad<strong>os</strong> n<strong>os</strong> livr<strong>os</strong> de história autêntic<strong>os</strong>” (VEYNE, 1983:<br />
62).<br />
Vem<strong>os</strong> aí um discurso que separava a verdade histórica da verdade mítica, numa<br />
cronologia que narrava o processo de humanização do mundo: a separação d<strong>os</strong> Deuses com o<br />
mundo d<strong>os</strong> homens. Esse mundo d<strong>os</strong> homens era “narrado n<strong>os</strong> livr<strong>os</strong> de história autêntic<strong>os</strong>”, já a<br />
época d<strong>os</strong> Deuses era narrada n<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>, um relato sem autor que era sempre feito a partir de um<br />
discurso indireto, começando sempre com um “diz-se”.<br />
Para pensarm<strong>os</strong> essa distinção do mundo mítico para o mundo humano, Veyne n<strong>os</strong><br />
lembra de Píndaro, que narrava <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> a<strong>os</strong> vencedores. Fazia isso não porque considerava que<br />
o guerreiro devia seguir a vida do herói como modelo, pelo contrário, o mundo d<strong>os</strong> heróis era um<br />
mundo muito mais nobre. O poeta fazia isso para elevar o atleta ao mundo d<strong>os</strong> heróis, uma vez<br />
que ele (o poeta) era familiar a esse mundo, “Píndaro enaltece a glória de seu vencedor exaltando<br />
esse outro mundo mais elevado, onde a própria glória é maior” (VEYNE, 1983:31).<br />
Outra particularidade do mito é que se trata de um relato sem autor. Se a partir de<br />
Túcidides ele era interpretado como uma tradição histórica, como uma lembrança d<strong>os</strong><br />
aconteciment<strong>os</strong> transmitida de geração para geração, antes disso o mito era outra coisa, não se<br />
tratava de “comunicar o que se tinha visto, mas em repetir o que se dizia d<strong>os</strong> deuses e d<strong>os</strong><br />
heróis” (VEYNE, 1983: 34). Veyne lembra que o exegeta fazia de seu discurso um discurso<br />
indireto ao dizer: “diz que...”, “a musa canta que...”, “um log<strong>os</strong> diz que...”. Esse discurso não<br />
remetia a nenhum autor, uma vez que mesmo as musas não faziam mais do que “redizer”.<br />
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Havia então dois domíni<strong>os</strong>, um d<strong>os</strong> Deuses e outro d<strong>os</strong> heróis. Existiam pessoas que<br />
duvidavam da existência d<strong>os</strong> Deuses, mas ninguém duvidava da existência d<strong>os</strong> heróis. Os heróis<br />
eram homens normais que o tempo e a imaginação das pessoas atribuíram-lhes características<br />
<strong>sobre</strong>-humanas. Então “a crítica das gerações heróicas consistia em transformar <strong>os</strong> heróis em<br />
simples homens” (VEYNE, 1983: 53).<br />
Em contrapartida, o grande público acreditava n<strong>os</strong> mit<strong>os</strong> sem nenhuma crítica “por<br />
docilidade à palavra de outrem, por ausência de sistematização da experiência cotidiana e por um<br />
estado de espírito respeit<strong>os</strong>o e edificante” (VEYNE, 1983: 53). Os letrad<strong>os</strong> criticavam <strong>os</strong> mit<strong>os</strong><br />
da forma como já explicam<strong>os</strong>. O povo conhecia a existência d<strong>os</strong> mit<strong>os</strong>, mas ignorava detalhes<br />
que não precisava saber. O poeta contava <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> como se ele mesmo tivesse inventado. Não se<br />
colocava, por isso, acima do público, o mito era conhecido por tod<strong>os</strong> e o poeta “não sabia mais<br />
do que <strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, não fazia literatura erudita” (VEYNE, 1983: 57).<br />
Na época helenística observarem<strong>os</strong> uma mudança de p<strong>os</strong>tura com relação ao mito. Nesse<br />
momento: “a literatura faz <strong>questão</strong> de se considerar douta, não que ela se reserve pela primeira<br />
vez a uma elite” (Píndaro ou Ésquilo não eram exatamente escritores populares)” (VEYNE,<br />
1983: 57). O mito passa a ser erudito, transformando-se no que nós conhecem<strong>os</strong> hoje por<br />
mitologia. A mitologia afasta-se, então, do povo, que continuou com seus cont<strong>os</strong> e superstições.<br />
Gramátic<strong>os</strong> e retóric<strong>os</strong> irão codificar a mitologia simplificando-a. Os cicl<strong>os</strong> vão ganhar uma<br />
versão oficial esquecendo-se as variantes, exigindo-se então um novo maravilh<strong>os</strong>o que não podia<br />
se situar além do verdadeiro e do falso: “Desejava-se que f<strong>os</strong>se científico, ou melhor histórico”<br />
(VEYNE, 1983: 59). O gênero histórico crescia e por isso <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> deveriam passar pela história.<br />
Exemplo disso é Diodoro, que faz uma crítica d<strong>os</strong> temp<strong>os</strong> mític<strong>os</strong> dizendo que Zeus foi um rei e<br />
que Cron<strong>os</strong> teria reinado por todo o ocidente. “Pois uma coisa é acreditar que no passado já<br />
tenham existido reis, outra coisa é acreditar que no passado existiram monstr<strong>os</strong>, assim como não<br />
existem mais. Para o milênio seguinte, <strong>os</strong> princípi<strong>os</strong> da crítica das tradições estavam<br />
determinad<strong>os</strong>: já estão em Platão” (VEYNE, 1983: 66).<br />
A palavra mito muda de valor após a época arcaica, pois ao falar nela o autor diz “um<br />
mito diz que”. Ele quer com isso “tirar o corpo da jogada e deixar cada um pensar o que quiser”<br />
(VEYNE, 1983: 66). A palavra mito torna-se pejorativa, transformando-se em um conceito que<br />
“qualifica uma tradição suspeita” (VEYNE, 1983: 66).<br />
Os pesquisadores greg<strong>os</strong> acreditavam que parte do mito era mentira, mas não se<br />
perguntavam por que se mentia. A mentira não era uma <strong>questão</strong> relevante para eles, uma vez que<br />
ela não tinha nada de p<strong>os</strong>itivo. Eles entendiam o mito como uma tradição histórica, pois “pode-se<br />
alterar a verdade, mas não poderia falar de nada” (VEYNE, 1983: 72).<br />
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O mito era um acontecimento histórico que com o passar o tempo recebeu versões<br />
fantasi<strong>os</strong>as. Quanto mais antiga a história narrada pelo mito, men<strong>os</strong> digna de crédito ela era. Para<br />
<strong>os</strong> modern<strong>os</strong> o mito é basicamente a narração de um acontecimento, por isso seu aspecto<br />
lendário. Veyne argumenta que “(...) antig<strong>os</strong> e modern<strong>os</strong> acreditam na historicidade da guerra de<br />
Tróia, mas por razões op<strong>os</strong>tas; nós acreditam<strong>os</strong> nela por causa do seu caráter maravilh<strong>os</strong>o, eles<br />
acreditam nela apesar do maravilh<strong>os</strong>o” (VEYNE, 1983: 72). Com essa p<strong>os</strong>tura, pouco importava<br />
a<strong>os</strong> greg<strong>os</strong> se <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> continham uma mentira com ou sem sentido. Importava, antes, se<br />
defenderem dessa mentira “E já que existe policiamento é men<strong>os</strong> urgente compreender <strong>os</strong><br />
motiv<strong>os</strong> do falsário do que identificá-lo” (VEYNE, 1983: 74).<br />
Os greg<strong>os</strong> queriam saber se um mito era total ou parcialmente verdadeiro. Com isso<br />
surgem duas escolas: uma que entende o mito como verdadeiro pelo seu sentido figurado,<br />
alegórico e outra que segue a já citada crítica histórica. Com referência à primeira escola cumpre<br />
notar que ela não vê o mito como um misto de verdades e imp<strong>os</strong>turas, mas este seria totalmente<br />
verdadeiro, exprimindo uma verdade fil<strong>os</strong>ófica quando entendido de forma alegórica.<br />
No mundo grego, para tornar o mito exclusivamente histórico, era preciso retirar dele<br />
tudo o que não existia naquela atualidade, pois as coisas acontecidas nela, pensavam <strong>os</strong> greg<strong>os</strong>,<br />
estavam sendo devidamente comprovadas. Não era p<strong>os</strong>sível, para <strong>os</strong> historiadores, acreditar no<br />
deus Hércules, mas era totalmente plausível pensar em Hércules como um grande homem que<br />
por reconhecimento foi considerado um deus.<br />
Acreditavam <strong>os</strong> greg<strong>os</strong> em seus mit<strong>os</strong>?<br />
Não há verdades contraditórias num mesmo cérebro, mas apenas programas diferentes que<br />
encerram cada uma verdades e interesses diferentes, ainda que essas verdades levem o mesmo<br />
nome (VEYNE, 1983: 101).<br />
Os greg<strong>os</strong>, segundo Veyne, acreditavam e não acreditavam n<strong>os</strong> seus mit<strong>os</strong>. Eles<br />
deixavam de acreditar neles quando não mais <strong>os</strong> interessavam. O mito era, para eles, uma crença<br />
de semiletrad<strong>os</strong> que <strong>os</strong> dout<strong>os</strong> invalidavam. A coexistência de duas formas de verdades num<br />
mesmo pensamento não é própria d<strong>os</strong> greg<strong>os</strong>. Levi-Strauss fala do feiticeiro que “acredita na sua<br />
magia e a manipula cinicamente” (VEYNE, 1983: 99). E Veyne relata um fato que demonstra<br />
uma relação dúbia com relação à verdade:<br />
De minha parte, considero <strong>os</strong> fantasmas como simples ficções, mas não deixo de comprovar sua<br />
verdade: tenho deles um temor quase neurótico e <strong>os</strong> meses que passei fazendo triagem de papéis<br />
de um amigo morto foram um longo pesadelo; no momento mesmo em que datilografo estas<br />
frases, uma crista de terror começa a se elevar <strong>sobre</strong> minha nuca. Nada me tranqüilizaria mais que<br />
aprender que <strong>os</strong> fantasma existem “realmente”: ele seriam então um fenômeno como <strong>os</strong> outr<strong>os</strong>,<br />
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que se estudaria com <strong>os</strong> instrument<strong>os</strong> adequad<strong>os</strong>, câmara ou registrador Geiger (VEYNE, 1983:<br />
103).<br />
Podem<strong>os</strong> dizer que <strong>os</strong> greg<strong>os</strong> acreditavam em seus mit<strong>os</strong>, embora vissem o mundo d<strong>os</strong><br />
Deuses como um mundo exterior e anterior, de forma que não poderíam<strong>os</strong> julgá-l<strong>os</strong> a partir de<br />
n<strong>os</strong>sa experiência. Como diz Veyne, “essa relação não n<strong>os</strong> faz acreditar n<strong>os</strong> Deuses greg<strong>os</strong>, mas<br />
no faz entender <strong>sobre</strong> como a verdade pode ser entendida pel<strong>os</strong> homens” (VEYNE, 1983: 104).<br />
Notam<strong>os</strong> a partir do texto de Veyne, <strong>sobre</strong> a relação d<strong>os</strong> greg<strong>os</strong> com seus mit<strong>os</strong>, que além<br />
de existirem vári<strong>os</strong> programas de verdade, sendo que “todas as verdades são analógicas <strong>entre</strong><br />
si”, é p<strong>os</strong>sível que uma pessoa acredite em diferentes programas sem que isso seja contraditório,<br />
Por isso, a crítica do gênero histórico <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> mit<strong>os</strong> deve ser substituída pela idéia de que o mito<br />
trabalha com uma verdade que não é a mesma da verdade histórica, e que nenhuma dessas<br />
verdades deve ser considerada como superior, mas ambas tem a sua eficácia n<strong>os</strong> context<strong>os</strong> nas<br />
quais são utilizadas.<br />
Nesse sentido, uma mentira não passa de uma verdade fora de lugar. É um discurso que<br />
atua num programa de verdade diferente. Como m<strong>os</strong>tra Veyne:<br />
Um falsário é um peixe que, por razões de caráter não se colocou dentro do aquário certo; sua<br />
imaginação científica segue <strong>os</strong> métod<strong>os</strong> que não estão mais no programa. Acredito piamente que<br />
esse programa seja com freqüência, ou seja sempre, tão imaginário quanto o do falsário(VEYNE,<br />
1983: 124)<br />
Assim, o papel da história será o de estudar como a verdade é pensada através d<strong>os</strong><br />
temp<strong>os</strong>, e como se acreditou nas verdades, e o historiador não deve acreditar numa verdade única<br />
e superior, nem mesmo na sua: “A reflexão histórica é uma crítica que diminui as pretensões do<br />
saber e que se limita a dizer a verdade <strong>sobre</strong> as verdades, sem presumir que existe uma política<br />
verdadeira ou uma ciência com maiúscula” (VEYNE, 1983: 144).<br />
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