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Quatro estrelas e uma cidade: o Rio espectral de Lima Barreto ...

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Marques Rebelo<br />

amaciaria o suplício premente, cruciante e<br />

onímodo <strong>de</strong> minha cor (...) Não titubearia, não<br />

hesitaria, livremente po<strong>de</strong>ria falar, dizer bem<br />

alto os pensamentos que se estorciam no meu<br />

cérebro.” (I<strong>de</strong>m, p.21)<br />

Não ao acaso, seu <strong>de</strong>sencanto com a<br />

ilustração e com a eqüida<strong>de</strong> da pólis carioca se<br />

consolida <strong>de</strong>ntro da própria redação d’O Globo,<br />

on<strong>de</strong> nosso escrivão, por sua origem e cor, acaba<br />

empregado como contínuo. Condizentemente,<br />

o pacto da imprensa com estruturas arcaicas <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r prospera num nicho i<strong>de</strong>ológico on<strong>de</strong><br />

discursos e <strong>de</strong>mais práticas sociais não coin-<br />

ci<strong>de</strong>m. Alimenta-se a supervalorização do<br />

indivíduo isolado e <strong>de</strong> sua capa<strong>cida<strong>de</strong></strong> própria<br />

em vencer adversida<strong>de</strong>s cuja histori<strong>cida<strong>de</strong></strong>,<br />

convenientemente, lhe é sempre ocultada. Neste<br />

texto <strong>de</strong> <strong>Lima</strong> <strong>Barreto</strong>, tal voluntarismo se acerca<br />

romanticamente do narrador nos anos mais<br />

tenros <strong>de</strong> sua juventu<strong>de</strong>. IC é presenteado pela<br />

professora Ester, sua estrela guia, como<br />

recompensa pelos extraordinários resultados<br />

acadêmicos, com nada mais nada menos do<br />

que o Po<strong>de</strong>r da Vonta<strong>de</strong>:<br />

A minha energia no estudo não diminuiu<br />

com os anos, como era <strong>de</strong> esperar; cresceu<br />

sempre progressivamente. A professora<br />

admirou-me e começou a simpatizar comigo.<br />

De si para si (suspeito eu hoje), ela imaginou<br />

que lhe passava pelas mãos um gênio.<br />

Correspondi-lhe à afeição com tanta<br />

força d’alma, que tive ciúmes <strong>de</strong>la, dos<br />

seus olhos azuis e dos seus cabelos<br />

castanhos quando se casou. (...) Daí a um<br />

ano saí do colégio, dando-me ela, como<br />

136 Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007<br />

recordação, um exemplar do Po<strong>de</strong>r da<br />

Vonta<strong>de</strong>, luxuosamente enca<strong>de</strong>rnado, com<br />

<strong>uma</strong> <strong>de</strong>dicatória afetuosa e lisonjeira. Foi o<br />

meu livro <strong>de</strong> cabeceira. Li-o com mão diurna<br />

e noturna, durante o meu curso secundário,<br />

<strong>de</strong> cujos professores poucas recordações<br />

importantes conservo hoje. Eram banais!<br />

Nenhum <strong>de</strong>les tinha os olhos azuis <strong>de</strong> Dona<br />

Ester, tão meigos e transcen<strong>de</strong>ntes que<br />

pareciam ler o meu <strong>de</strong>stino, beijando as<br />

páginas em que estava escrito!... (I<strong>de</strong>m, p.16)<br />

Presente por merecimento e promessa <strong>de</strong><br />

sucesso, a edição luxuosa funciona praticamente<br />

como um talismã nesses momentos <strong>de</strong> formação<br />

do narrador. Suas ‘biografias heróicas’ constituem<br />

mo<strong>de</strong>lo ao jovem, que refuta os índices da<br />

memória pessoal aflorados pela cor, pelo<br />

feminino e pela pobreza. Inegáveis fetiches,<br />

“livro por corpo <strong>de</strong> mulher, olhos azuis por<br />

corpo branco”, produzem efeitos <strong>de</strong> metonímia<br />

e emergem como objetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e um futuro<br />

iluminado por Ester, a professora-estrela, fadamadrinha,<br />

apoteose da ilustração e do voluntarismo.<br />

Ainda que “perverso”, o objeto sagrado<br />

acompanha o narrador mais tar<strong>de</strong> na <strong>cida<strong>de</strong></strong>.<br />

Diante da experiência do brilho da tar<strong>de</strong> num<br />

certo jardim, recorda aturdido aquelas primeiras<br />

sensações animadoras:<br />

A tar<strong>de</strong> punha um brilho particular nas<br />

coisas, <strong>de</strong> doçura e satisfação. Aquele<br />

<strong>de</strong>scanso no jardim fez-me lembrar não sei<br />

que passagem do meu livro <strong>de</strong> cabeceira,<br />

<strong>de</strong>sse perverso livro <strong>de</strong> que eu quis fazer<br />

bússola para minha vida. Abri-o e, <strong>de</strong>sejoso<br />

por encontrar a passagem, não reparei que<br />

<strong>uma</strong> pessoa viera sentar-se no mesmo<br />

banco que eu. (I<strong>de</strong>m, p.72)

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