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A cidade é de Deus ou do diabo? O Rio de Janeiro em Cidade de Deus

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A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>é</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> <strong>ou</strong> <strong>do</strong> <strong>diabo</strong>? O <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong> <strong>em</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong><br />

A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>é</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> <strong>ou</strong> <strong>do</strong> <strong>diabo</strong>?<br />

O <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong> <strong>em</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong><br />

Vilma Costa*<br />

Resumo – Parte-se <strong>de</strong> uma leitura crítica <strong>do</strong> romance Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, <strong>de</strong> Paulo Lins, que<br />

procura estabelecer algumas coor<strong>de</strong>nadas <strong>em</strong> torno da questão da violência urbana, como<br />

esta se faz representar, tanto nas narrativas literárias quanto nas cin<strong>em</strong>atográficas. Neste<br />

senti<strong>do</strong> <strong>é</strong> que o filme Como Nasc<strong>em</strong> os Anjos?, <strong>de</strong> Murilo Salles, ao t<strong>em</strong>atizar a mesma<br />

probl<strong>em</strong>ática <strong>do</strong> romance e se contextualizar na mesma <strong>cida<strong>de</strong></strong> – o <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong> –,<br />

introduz a discussão. No romance, observan<strong>do</strong>-se as fronteiras territoriais e simbólicas <strong>do</strong><br />

bairro popular, focaliza-se o <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong> imaginário heróico da malandrag<strong>em</strong> para a<br />

atuação profissional <strong>do</strong> traficante e <strong>de</strong>mais “trabalha<strong>do</strong>res” envolvi<strong>do</strong>s.<br />

Palavras-chave: experiência urbana; violência; comunida<strong>de</strong>; imaginário; <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>.<br />

Experiência urbana e violência<br />

No alto <strong>de</strong> um morro carioca, homens<br />

limpam as armas. Num tom ríspi<strong>do</strong>, um <strong>de</strong>les<br />

esbraveja com <strong>ou</strong>tro que tenta pôr uma das<br />

R-15 para funcionar. A operação esten<strong>de</strong>-se<br />

por alguns minutos com o nervosismo <strong>de</strong> qu<strong>em</strong><br />

se vê acua<strong>do</strong>, sob pressão. O chefe exige<br />

imediato reparo da metralha<strong>do</strong>ra e ameaça<br />

Maguila <strong>de</strong> morte se não cumprir a tarefa a<br />

contento. Por fim, manda que ele teste a arma<br />

imediatamente. Oferece o peito como alvo, <strong>em</strong><br />

seu acesso <strong>de</strong> fúria frente à inoperância e<br />

subserviência <strong>do</strong> <strong>ou</strong>tro. A metralha<strong>do</strong>ra dispara<br />

sobre o po<strong>de</strong>roso e o tolo Maguila vê-se <strong>em</strong><br />

maus lençóis, obriga<strong>do</strong> a fugir para livrar a pele.<br />

Com essa cena, inicia-se o filme Como<br />

Nasc<strong>em</strong> os Anjos? <strong>de</strong> Murilo Salles (1996).<br />

Em paralelo, duas crianças conversam,<br />

tranqüilamente, entre ca<strong>de</strong>rnos e livros <strong>de</strong><br />

escola, <strong>em</strong> uma casa simples <strong>do</strong> morro, sob<br />

cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma mãe <strong>de</strong>votada que prepara<br />

uma refeição. Japa <strong>é</strong> o menino preocupa<strong>do</strong><br />

com os estu<strong>do</strong>s e com a segurança da amiga<br />

Branquinha, que se <strong>de</strong>clara casada com<br />

Maguila. Para ela, o envolvimento no tráfico<br />

confere ao mari<strong>do</strong> a categoria <strong>de</strong> herói,<br />

enquanto, na prática, ele <strong>de</strong>monstra ser um<br />

<strong>de</strong>sastra<strong>do</strong>, s<strong>em</strong> as <strong>de</strong>vidas habilida<strong>de</strong>s e<br />

espertezas que a ativida<strong>de</strong> exige.<br />

De uma hora para <strong>ou</strong>tra, a vida das duas<br />

crianças toma <strong>ou</strong>tro rumo. Branquinha segue<br />

o mari<strong>do</strong> na fuga e arrasta seu amigo com eles<br />

* D<strong>ou</strong>tora <strong>em</strong> Estu<strong>do</strong>s da Literatura pela Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong> (PUC-<strong>Rio</strong>) e Professora <strong>de</strong> Literatura<br />

Brasileira e Teoria da Literatura <strong>do</strong> Centro Universitário da Cida<strong>de</strong> (UniverCida<strong>de</strong>). E-mail: vilmacosta@terra.com.br.<br />

Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007 215


Literatura e Imag<strong>em</strong><br />

na confusão da perseguição. Depois <strong>de</strong> uma<br />

sucessão <strong>de</strong> equívocos, estão <strong>de</strong> arma na mão<br />

no palacete <strong>de</strong> uma família americana, toma<strong>do</strong>s<br />

por perigosos seqüestra<strong>do</strong>res.<br />

O envolvimento das crianças com as<br />

ativida<strong>de</strong>s criminosas <strong>é</strong> dramatiza<strong>do</strong> <strong>em</strong> seus<br />

diversos aspectos <strong>em</strong> muitas obras cont<strong>em</strong>porâneas.<br />

Em Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, não são p<strong>ou</strong>cas<br />

as confusões <strong>em</strong> que elas se met<strong>em</strong>: r<strong>ou</strong>bos,<br />

assaltos e cruelda<strong>de</strong>s vividas e executadas sob<br />

a mira <strong>de</strong> armas <strong>de</strong> fogo e <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong><br />

bastante cruel e violenta.<br />

No filme, a inocência, o acaso e a falta <strong>de</strong><br />

senti<strong>do</strong> são componentes fortes da trama <strong>de</strong><br />

como nasc<strong>em</strong> e morr<strong>em</strong> esses anjos. À revelia<br />

<strong>do</strong> juízo <strong>de</strong> valor que se possa atribuir a esses<br />

inocentes, culpa<strong>do</strong>s e responsáveis pelas<br />

cruelda<strong>de</strong>s executadas, as cenas <strong>de</strong> violência<br />

da ativida<strong>de</strong> criminosa têm si<strong>do</strong> <strong>de</strong>talhadamente<br />

narradas e reinventadas, não apenas pelas<br />

páginas sangrentas <strong>do</strong>s jornais, mas pelos filmes<br />

<strong>de</strong> ação e pelas obras literárias.<br />

Não são p<strong>ou</strong>cas as narrativas cont<strong>em</strong>porâneas<br />

que se utilizam <strong>de</strong>ssas cenas para pôr<br />

<strong>em</strong> discussão a violência urbana. Em Cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, per<strong>de</strong>-se facilmente a conta da sua<br />

incidência. O fato <strong>é</strong> que elas muitas vezes serv<strong>em</strong><br />

para ilustrar uma tese, <strong>ou</strong> repisar a falta <strong>de</strong><br />

perspectiva <strong>de</strong> se encontrar senti<strong>do</strong> na irracionalida<strong>de</strong><br />

da violência, muitas vezes tentan<strong>do</strong><br />

antever uma gratuida<strong>de</strong> que se constitui <strong>em</strong><br />

excesso e exuberância da própria condição<br />

humana. Esta questão po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada<br />

<strong>em</strong> se tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> observação <strong>de</strong> casos<br />

individualiza<strong>do</strong>s; por<strong>é</strong>m, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista mais<br />

amplo, existe toda uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações e<br />

interesses que exige um estu<strong>do</strong> mais apura<strong>do</strong>,<br />

o que já v<strong>em</strong> sen<strong>do</strong> feito com muita competência<br />

por alguns pesquisa<strong>do</strong>res sociais. Essa <strong>é</strong> a área<br />

<strong>de</strong> atuação <strong>do</strong> autor <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> e da<br />

socióloga Alba Zaluar, que, com relação à re<strong>de</strong><br />

<strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> drogas no <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, adverte:<br />

“A subcultura criminosa no <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong><br />

parece, portanto, ter se <strong>de</strong>sloca<strong>do</strong> <strong>do</strong> culto da<br />

malandrag<strong>em</strong> <strong>de</strong>scompromissada, cujo principal<br />

valor era a ojeriza ao batente, para um<br />

culto da violência que não <strong>é</strong> gratuita, pois isso<br />

serve para montar um gran<strong>de</strong> negócio”. (1994,<br />

p. 77)<br />

Isso implica que, por mais que a sobrevivência<br />

<strong>de</strong> um imaginário mítico <strong>de</strong> herói possa<br />

fascinar meninas como Branquinha, precisase<br />

compreen<strong>de</strong>r que essas pessoas “não são<br />

bandi<strong>do</strong>s sociais, vinga<strong>do</strong>res <strong>de</strong> seu povo; são<br />

<strong>em</strong>presários <strong>do</strong> crime e seus <strong>em</strong>prega<strong>do</strong>s(...)<br />

Isso porque trata-se <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> <strong>em</strong>presarial<br />

altamente lucrativa, mo<strong>de</strong>rna e<br />

baseada <strong>em</strong> uma i<strong>de</strong>ologia individualista”.<br />

(Zaluar, 1994, p.144)<br />

A i<strong>de</strong>ologia individualista aqui ressaltada <strong>é</strong><br />

um componente indispensável da ativida<strong>de</strong><br />

capitalista e mo<strong>de</strong>rna que caracteriza a re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

tráfico <strong>de</strong> drogas, não só no <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>,<br />

como mundialmente. Dada sua complexida<strong>de</strong>,<br />

constitui-se <strong>em</strong> um po<strong>de</strong>r paralelo que atua <strong>em</strong><br />

vários âmbitos, utilizan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> um contingente<br />

<strong>de</strong> massa marginal, excluída <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

trabalho e <strong>de</strong> consumo. O que <strong>é</strong> importante<br />

216 Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>é</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> <strong>ou</strong> <strong>do</strong> <strong>diabo</strong>? O <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong> <strong>em</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong><br />

<strong>de</strong>stacar <strong>é</strong> como esse mun<strong>do</strong> fecha<strong>do</strong> <strong>em</strong><br />

códigos próprios vai-se fazen<strong>do</strong> representar<br />

num plano mais amplo, <strong>de</strong>rruban<strong>do</strong> fronteiras<br />

antes intransponíveis.<br />

Em Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, há uma nítida distinção<br />

<strong>do</strong>s níveis <strong>em</strong> que a marginalida<strong>de</strong> vai-se<br />

constituin<strong>do</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a proposta inicial <strong>de</strong><br />

historicizar o crime a partir <strong>do</strong> momento que<br />

se preten<strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentar a vida <strong>do</strong> bairro <strong>em</strong><br />

suas origens, composição e o cotidiano <strong>de</strong> sua<br />

população, at<strong>é</strong>, propriamente, à guerra <strong>de</strong><br />

quadrilhas. Nesse universo, <strong>de</strong> certa forma,<br />

limita<strong>do</strong> pelas fronteiras territoriais e simbólicas<br />

<strong>do</strong> bairro popular <strong>é</strong> que <strong>é</strong> focaliza<strong>do</strong> e<br />

fotografa<strong>do</strong> o <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong> imaginário<br />

heróico da malandrag<strong>em</strong> para a atuação<br />

profissional <strong>do</strong> traficante e <strong>de</strong>mais trabalha<strong>do</strong>res<br />

<strong>de</strong>sse <strong>em</strong>preendimento comercial.<br />

É nesse senti<strong>do</strong> que a construção <strong>do</strong> romance<br />

<strong>em</strong> três capítulos se esforça por <strong>de</strong>limitar essa<br />

transição pelo envolvimento diferencia<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />

personagens. O primeiro <strong>de</strong>fine-se, prioritariamente,<br />

por ativida<strong>de</strong>s individuais <strong>ou</strong> <strong>de</strong><br />

parcerias que se recompõ<strong>em</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> das<br />

perdas que ocorram no percurso.<br />

No segun<strong>do</strong>, apesar <strong>de</strong> essas ativida<strong>de</strong>s<br />

sobreviver<strong>em</strong>, já se <strong>de</strong>lineia a inserção<br />

<strong>do</strong>s personagens no movimento <strong>do</strong> tráfico,<br />

entendi<strong>do</strong> por eles como uma forma mais<br />

avançada <strong>de</strong> obtenção <strong>de</strong> dinheiro fácil,<br />

<strong>de</strong> ascensão ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> consumo e, conseqüent<strong>em</strong>ente,<br />

maior po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação <strong>do</strong>s<br />

que os cercam. E no terceiro e último capítulo,<br />

a guerra <strong>do</strong> tráfico pela disputa <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r local<br />

<strong>é</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada com fero<strong>cida<strong>de</strong></strong> e violência,<br />

arrastan<strong>do</strong> para a morte gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />

pessoas. Sua banalização chega a um nível<br />

exacerba<strong>do</strong>, atingin<strong>do</strong> tanto qu<strong>em</strong> fez a escolha<br />

<strong>de</strong> participação na guerra, como inocentes que<br />

foram atingi<strong>do</strong>s <strong>ou</strong> pesca<strong>do</strong>s pela re<strong>de</strong> instaurada.<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente da condição <strong>de</strong><br />

adulto <strong>ou</strong> criança, a inocência <strong>de</strong> alguns e o<br />

acaso circunstancial contribu<strong>em</strong> para o<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento da <strong>de</strong>sgraça coletiva.<br />

A limitação <strong>do</strong> romance <strong>em</strong> uma narrativa<br />

que se preten<strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentar <strong>é</strong> a prisão t<strong>em</strong>ática<br />

ao crime e aos tentáculos finca<strong>do</strong>s nas bases<br />

territoriais <strong>do</strong> bairro-favela. A pretensão inicial<br />

<strong>de</strong> historicização, presa à realida<strong>de</strong> local, <strong>de</strong>ixa<br />

a <strong>de</strong>sejar à medida que, ao fotografar o visível<br />

<strong>de</strong>ssa guerra, abre-se mão <strong>do</strong>s aspectos<br />

invisíveis da re<strong>de</strong> que se tece <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> um<br />

universo muito mais amplo e global. Corre-se o<br />

risco <strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r a referência da complexida<strong>de</strong><br />

<strong>do</strong> t<strong>em</strong>a proposto e reduzir uma guerra social<br />

muito peculiar e específica a uma brinca<strong>de</strong>ira<br />

<strong>de</strong> acasos, azar e sorte, <strong>de</strong> gatos e ratos que<br />

disputam espaço s<strong>em</strong> maiores conseqüências.<br />

Essas questões, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> cunho<br />

social e individual, e a narração <strong>de</strong>talhada da<br />

ação <strong>de</strong> violência e cruelda<strong>de</strong> encontram-se<br />

<strong>em</strong> muitos escritores cont<strong>em</strong>porâneos, por<br />

diferentes matizes. É o ódio manifesto <strong>de</strong> Jos<strong>é</strong><br />

Marimbon<strong>do</strong> pelos brancos, <strong>em</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Deus</strong>, que, <strong>de</strong> certa forma, tenta explicar suas<br />

atitu<strong>de</strong>s cru<strong>é</strong>is e vingativas: “(...) o assaltante<br />

não gostava <strong>de</strong> branco b<strong>em</strong>-arruma<strong>do</strong>. Achava<br />

que eles tomavam o lugar <strong>do</strong>s negros <strong>em</strong> tu<strong>do</strong><br />

Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007 217


Literatura e Imag<strong>em</strong><br />

(...) quan<strong>do</strong> via um branco b<strong>em</strong>-arruma<strong>do</strong>, assaltava,<br />

cometia violências para vingar o negro<br />

que teve seu lugar r<strong>ou</strong>ba<strong>do</strong> na socieda<strong>de</strong>”.<br />

(Lins, 1997, p.158)<br />

Apesar <strong>de</strong> este trecho insinuar um conteú<strong>do</strong><br />

anti-racista, o <strong>de</strong>senvolvimento das ações <strong>do</strong><br />

personag<strong>em</strong> não aponta para qualquer<br />

motivação coletiva <strong>de</strong> luta social organizada.<br />

Durante to<strong>do</strong> o romance, sua ativida<strong>de</strong><br />

se manifesta cobran<strong>do</strong> <strong>do</strong>s brancos b<strong>em</strong>arruma<strong>do</strong>s,<br />

não propriamente o lugar que foi<br />

r<strong>ou</strong>ba<strong>do</strong> <strong>do</strong> negro na socieda<strong>de</strong>, mas seu<br />

próprio espaço e <strong>de</strong>sejos, cuja realização v<strong>em</strong><br />

sen<strong>do</strong> negada. Não está muito longe, portanto,<br />

<strong>do</strong> personag<strong>em</strong> <strong>do</strong> conto “O Cobra<strong>do</strong>r”, <strong>do</strong><br />

livro <strong>de</strong> mesmo nome, <strong>de</strong> Rub<strong>em</strong> Fonseca.<br />

Ambos assum<strong>em</strong> a posição <strong>de</strong> vinga<strong>do</strong>res, que<br />

resolv<strong>em</strong> minimizar as injustiças sociais, por<br />

meio <strong>de</strong> cobrança <strong>do</strong> que lhes parece ser<br />

<strong>de</strong>vi<strong>do</strong>. Diferenciam-se apenas pela voz<br />

narrativa, no primeiro caso, <strong>de</strong> um narra<strong>do</strong>robserva<strong>do</strong>r<br />

onisciente e ausente da ação, e no<br />

segun<strong>do</strong> por um narra<strong>do</strong>r-personag<strong>em</strong> atuante<br />

e assumi<strong>do</strong>: “Fico na frente da televisão para<br />

aumentar o meu ódio. Quan<strong>do</strong> minha cólera<br />

está diminuin<strong>do</strong> e eu perco a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> cobrar<br />

o que me <strong>de</strong>v<strong>em</strong> eu sento na frente da televisão<br />

e <strong>em</strong> p<strong>ou</strong>co t<strong>em</strong>po meu ódio volta. Quero muito<br />

pegar um camarada que faz anúncio <strong>de</strong> uísque”.<br />

(Fonseca, 1994, p. 493)<br />

A cobrança, por meio da ação <strong>de</strong> violência<br />

individual, <strong>é</strong> motivada <strong>em</strong> um caso <strong>ou</strong> <strong>ou</strong>tro<br />

pelo rancor pessoal <strong>de</strong> um sujeito que se sente<br />

tripudia<strong>do</strong> e r<strong>ou</strong>ba<strong>do</strong> <strong>em</strong> seus direitos <strong>de</strong> ser,<br />

ter e po<strong>de</strong>r. É esse mesmo rancor que leva, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, Dadinho, i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> como Z<strong>é</strong><br />

Pequeno, o chefe <strong>do</strong> tráfico da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>,<br />

a atacar e torturar um rapaz que <strong>em</strong> criança lhe<br />

r<strong>ou</strong>bara uma pipa: “Chega aí! – disse, já <strong>de</strong><br />

arma engatilhada. – Tu me tom<strong>ou</strong> a pipa,<br />

agora v<strong>ou</strong> te tomar teu dinheiro.” (Lins, 1997,<br />

p. 274) Pelos mesmos impulsos <strong>é</strong> movi<strong>do</strong> o<br />

personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Rub<strong>em</strong> Fonseca, que sai<br />

torturan<strong>do</strong>, tiran<strong>do</strong> a vida das pessoas que ele<br />

acredita lhe <strong>de</strong>ver<strong>em</strong> algo, seja este um b<strong>em</strong><br />

material <strong>ou</strong> simbólico. É assim que se refere ao<br />

episódio com o <strong>de</strong>ntista, que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tirarlhe<br />

um <strong>de</strong>nte apresenta-lhe a conta a pagar:<br />

“Eu não pago mais nada. Cansei <strong>de</strong> pagar! Gritei<br />

para ele, agora só cobro! Dei um tiro no joelho<br />

<strong>de</strong>le. Devia ter mata<strong>do</strong> aquele filho da puta.”<br />

(Fonseca, 1994, p. 492)<br />

Nos primeiros capítulos <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Deus</strong>, observa-se com os vários personagens o<br />

cunho mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia individualista<br />

da criminalida<strong>de</strong>, mesmo que ainda<br />

não estivesse <strong>de</strong>lineada sua organização no<br />

tráfico. Dos bandi<strong>do</strong>s sociais vinga<strong>do</strong>res<br />

<strong>do</strong> seu povo at<strong>é</strong> os <strong>em</strong>presários <strong>do</strong> crime,<br />

<strong>ou</strong>tras categorias se faz<strong>em</strong> representar<br />

como el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> transição. Uma <strong>de</strong>las<br />

<strong>é</strong> chamada por Zaluar <strong>de</strong> “malandrag<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>scompromissada com ojeriza ao batente”.<br />

A bandidag<strong>em</strong> assume o lugar da antiga<br />

malandrag<strong>em</strong>, que primava pela sobrevivência<br />

<strong>de</strong> expedientes. Circulava <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s trâmites<br />

<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r vigente, quase que nos limites das<br />

regras das instituições, extrain<strong>do</strong> vantagens e<br />

218 Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>é</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> <strong>ou</strong> <strong>do</strong> <strong>diabo</strong>? O <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong> <strong>em</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong><br />

garantin<strong>do</strong> a sobrevivência à marg<strong>em</strong> da<br />

produção econômico-social, portanto, s<strong>em</strong><br />

compromisso com a <strong>é</strong>tica <strong>do</strong> trabalho. Mas n<strong>em</strong><br />

por isso po<strong>de</strong>riam ser incluí<strong>do</strong>s na lista <strong>de</strong><br />

bandi<strong>do</strong>s e criminosos, como comumente são<br />

compreendi<strong>do</strong>s hoje. Isto porque esses<br />

expedientes, apesar da forte presença <strong>do</strong><br />

individualismo mo<strong>de</strong>rno, exigiam, se não uma<br />

<strong>é</strong>tica, pela menos uma est<strong>é</strong>tica. Ou seja, um<br />

maneirismo <strong>de</strong> trânsito <strong>em</strong> mun<strong>do</strong>s diferentes<br />

e a observância minuciosa <strong>de</strong> suas leis, <strong>em</strong> cujas<br />

brechas e pontos vulneráveis seria possível ao<br />

malandro-artista criar caminhos rumo ao<br />

próprio sucesso.<br />

Um pacto a cada esquina<br />

Jos<strong>é</strong> Marimbon<strong>do</strong>, Cabeleira <strong>ou</strong> Marreco,<br />

personagens <strong>de</strong> Paulo Lins, assim como o<br />

Cobra<strong>do</strong>r, <strong>do</strong> conto <strong>de</strong> Rub<strong>em</strong> Fonseca, são<br />

movi<strong>do</strong>s por impulsos individuais que não<br />

conhec<strong>em</strong> e muito menos observam a <strong>é</strong>tica <strong>do</strong><br />

trabalho <strong>ou</strong> a est<strong>é</strong>tica da malandrag<strong>em</strong>. São,<br />

<strong>em</strong> última instância, <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos <strong>do</strong> mito<br />

<strong>de</strong> Fausto. O herói se situa entre figura histórica<br />

e personag<strong>em</strong> imaginário <strong>de</strong> representação<br />

po<strong>é</strong>tica <strong>de</strong> vários autores. Em linhas gerais,<br />

assina um pacto com o <strong>de</strong>mônio, hipoteca nada<br />

mais nada menos que sua alma <strong>em</strong> troca <strong>de</strong><br />

conhecimento, po<strong>de</strong>r e realização durante<br />

alguns anos <strong>de</strong> sua vida, ao cabo da qual <strong>é</strong><br />

con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> eternamente ao fogo <strong>do</strong> inferno.<br />

Ian Watt comenta que <strong>em</strong> Doctor Faustus,<br />

<strong>de</strong> Marlowe, por ex<strong>em</strong>plo, “<strong>de</strong>pois que o<br />

contrato fatal <strong>é</strong> assina<strong>do</strong>, o inferno aparece<br />

como o assunto principal <strong>do</strong> Fausto. Inicialmente<br />

ele não acredita no tormento eterno”<br />

(1997, p.53), confiante que se encontra na<br />

própria autonomia e na referência pagã <strong>do</strong> pósmorte<br />

representar um reencontro com amigos<br />

e filósofos. Sua ação postula e reafirma<br />

el<strong>em</strong>entos importantes <strong>do</strong> individualismo, entre<br />

os quais a questão da sua autonomia enquanto<br />

sujeito com direitos às próprias escolhas.<br />

É assim que “antes <strong>de</strong> assinar o pacto, Fausto<br />

justifica a penhora <strong>de</strong> sua ‘alma’ mediante a<br />

alegação <strong>de</strong> que t<strong>em</strong> o direito <strong>de</strong> fazer com ela<br />

aquilo que quiser”. At<strong>é</strong> o último momento, no<br />

qual seu prazo <strong>de</strong> vida vai se esgotan<strong>do</strong>, ainda<br />

tenta fracassadamente <strong>de</strong>ter o t<strong>em</strong>po e reter<br />

seu avanço, paran<strong>do</strong> o relógio.<br />

Marreco, personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>,<br />

segue tamb<strong>é</strong>m o ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> Fausto, <strong>em</strong> <strong>ou</strong>tro<br />

espaço e t<strong>em</strong>po históricos, o que o faz, <strong>de</strong>ssa<br />

maneira, não apenas seu segui<strong>do</strong>r mas tamb<strong>é</strong>m<br />

um atualiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mito. Ele, como tantos <strong>ou</strong>tros<br />

personagens, escolhe o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> crime não<br />

só por ter ojeriza ao batente, mas tamb<strong>é</strong>m pelo<br />

<strong>de</strong>sejo confesso <strong>de</strong> fugir <strong>do</strong> inferno <strong>de</strong> suas<br />

aspirações irrealizadas, concentran<strong>do</strong>-se <strong>em</strong><br />

extrair to<strong>do</strong> prazer no aqui e agora. Prefere o<br />

risco da con<strong>de</strong>nação ao fogo <strong>do</strong> inferno após<br />

a morte, ao inferno da privação e da mis<strong>é</strong>ria<br />

da vida <strong>de</strong> otário. Está preso ao aqui e agora<br />

e, como Fausto, imagina-se mais esperto que o<br />

<strong>de</strong>mônio, capaz <strong>de</strong> evitar a con<strong>de</strong>nação.<br />

Enquanto o Fausto <strong>de</strong> Marlowe tenta paralisar<br />

o relógio, evitan<strong>do</strong> a hora fatídica, Marreco<br />

só torce para não morrer <strong>de</strong> repente.<br />

Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007 219


Literatura e Imag<strong>em</strong><br />

Acreditava que se tivesse t<strong>em</strong>po para se<br />

arrepen<strong>de</strong>r po<strong>de</strong>ria se salvar e ludibriar o D<strong>em</strong>o.<br />

É assim que se comportava ao rebater a culpa<br />

<strong>do</strong> seu primeiro assassinato, que foi, para ele,<br />

s<strong>em</strong> querer, uma casualida<strong>de</strong> no meio <strong>de</strong> um<br />

assalto que realizava. “Olh<strong>ou</strong> para o c<strong>é</strong>u, <strong>de</strong>pois<br />

para o chão, concluiu que <strong>Deus</strong> ficava muito<br />

longe... T<strong>em</strong>ia a ira <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, mas tinha vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> conhecer o Diabo, faria um pacto com ele<br />

para ter tu<strong>do</strong> na terra.” (Lins, 1997, p. 280)<br />

Os maiores <strong>de</strong>sejos <strong>do</strong>s primeiros Faustos<br />

situavam-se no campo <strong>do</strong> saber: possuir<br />

conhecimento conferia po<strong>de</strong>r. O Fausto cont<strong>em</strong>porâneo<br />

negocia sua alma para ter tu<strong>do</strong><br />

na terra, mesmo que perca a possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

c<strong>é</strong>u e da sua eterna tranqüilida<strong>de</strong>. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

ter supera o <strong>de</strong> ser e o <strong>de</strong> saber. Marreco<br />

“repetiu sete vezes que era filho <strong>do</strong> Diabo e<br />

precipit<strong>ou</strong>-se para a rua com o pensamento<br />

vasculhan<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> para achar um lugar<br />

on<strong>de</strong> tivesse bastante dinheiro”. (Lins,1997,<br />

p.145) Circula pelas ruas da <strong>cida<strong>de</strong></strong>, cruza as<br />

esquinas <strong>em</strong> que estabelece o pacto para ter<br />

tu<strong>do</strong> na vida. “Sua obrigação era enviar uma<br />

alma toda segunda-feira para o quinto <strong>do</strong>s<br />

infernos. Ficaria rico, já que <strong>de</strong> tiro não<br />

morreria...” (Lins, 1997, p.145) De fato não<br />

morreu <strong>de</strong> tiro, foi golpea<strong>do</strong> a facadas por um<br />

mari<strong>do</strong> tripudia<strong>do</strong> <strong>em</strong> sua honra, s<strong>em</strong> ter lá<br />

muito t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> se arrepen<strong>de</strong>r e se salvar,<br />

justamente na primeira segunda-feira <strong>em</strong> que<br />

se esqueceu <strong>de</strong> cumprir a obrigação <strong>de</strong> matar<br />

algu<strong>é</strong>m. “Quan<strong>do</strong> se l<strong>em</strong>br<strong>ou</strong> <strong>do</strong> D<strong>em</strong>ônio já<br />

passava da meia-noite. Era a primeira vez que<br />

<strong>de</strong>ixara furo com o hom<strong>em</strong>. Acreditava que não<br />

teria probl<strong>em</strong>as com o chefe <strong>do</strong> inferno, pois já<br />

lhe <strong>de</strong>ra diversas vezes almas <strong>de</strong> quebra.” (Lins,<br />

1997, p. 145) Esse foi seu erro, acreditar mais<br />

no seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sedução <strong>do</strong> que na <strong>de</strong>terminação<br />

<strong>do</strong> próprio <strong>de</strong>mônio. Preso aos<br />

prazeres presentes, como Fausto, não lev<strong>ou</strong><br />

muito a s<strong>é</strong>rio o preço a pagar pelas concessões<br />

recebidas, preocupa<strong>do</strong> que estava <strong>em</strong> fugir da<br />

frustração <strong>de</strong> tantos <strong>de</strong>sejos irrealiza<strong>do</strong>s nesse<br />

inferno terrestre. Isto porque, “um inferno, <strong>em</strong><br />

resumo, <strong>é</strong> indubitavelmente real – o da<br />

experiência cotidiana: como diz Mefistófeles, ‘o<br />

inferno <strong>é</strong> on<strong>de</strong> estamos e on<strong>de</strong> o inferno está,<br />

<strong>de</strong>verá para s<strong>em</strong>pre estar’”. As diferentes<br />

modalida<strong>de</strong>s que o personag<strong>em</strong> v<strong>em</strong> assumin<strong>do</strong><br />

encontram-se no aspecto mitológico por um<br />

eixo comum <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação: “Fausto permanecerá<br />

<strong>em</strong> nossa imaginação como o hom<strong>em</strong><br />

que foi puni<strong>do</strong> por querer tu<strong>do</strong> – o mesmo<br />

que o restante da humanida<strong>de</strong> quer” (Watt,<br />

1997, p. 56), mas que só alguns têm a <strong>ou</strong>sadia<br />

<strong>de</strong> ir at<strong>é</strong> ao inferno para conseguir.<br />

Marimbon<strong>do</strong> tamb<strong>é</strong>m agia sozinho, com a<br />

alma penhorada para ter tu<strong>do</strong> na vida. Fausto,<br />

mito <strong>do</strong> individualismo mo<strong>de</strong>rno, sofre transformações<br />

profundas que inviabilizam sua<br />

sobrevivência. Uma alma <strong>é</strong> muito p<strong>ou</strong>co para o<br />

D<strong>em</strong>o. A ativida<strong>de</strong> individual não dá conta da<br />

tarefa, muitas almas tornaram-se necessárias<br />

para tal. O crime organiza-se <strong>em</strong> quadrilhas,<br />

grupos arma<strong>do</strong>s, re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tráfico cada vez mais<br />

complexas.<br />

220 Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>é</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> <strong>ou</strong> <strong>do</strong> <strong>diabo</strong>? O <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong> <strong>em</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong><br />

O romance estrutura-se a partir <strong>de</strong> narrativas<br />

que privilegiam o aspecto comunitário, mesmo<br />

que já <strong>de</strong>stituí<strong>do</strong> <strong>do</strong> antigo significa<strong>do</strong> unifica<strong>do</strong>r<br />

<strong>de</strong> individualida<strong>de</strong>s num corpo coletivo, nos<br />

mol<strong>de</strong>s clássicos. Assim, o bairro assume um<br />

papel importante como el<strong>em</strong>ento aglutina<strong>do</strong>r<br />

das heterogeneida<strong>de</strong>s, menos pela uniformização<br />

<strong>de</strong> interesses e mais pela possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> comunicação e inter-relação <strong>de</strong> diferentes<br />

anseios e i<strong>de</strong>ntificações culturais e sociais.<br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> <strong>é</strong> formada por grupos<br />

originários <strong>de</strong> diferentes recantos da <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>do</strong><br />

<strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, na sua maioria pobres <strong>de</strong> favelas<br />

con<strong>de</strong>nadas à extinção pelos planeja<strong>do</strong>res<br />

urbanos que pretendiam limpar o Centro e a<br />

Zona Sul e ao mesmo t<strong>em</strong>po garantir a<br />

disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses espaços para os altos<br />

lucros da especulação imobiliária. Alia<strong>do</strong> a isso<br />

tu<strong>do</strong>, o país acabava <strong>de</strong> sofrer um golpe militar<br />

que estreitava os vínculos com os mo<strong>de</strong>los<br />

americanos <strong>de</strong> planejamento urbano e repressão<br />

política. Esses mo<strong>de</strong>los financiavam, por<br />

meio <strong>do</strong> projeto “Aliança para o Progresso”,<br />

entre <strong>ou</strong>tras coisas, construções <strong>de</strong> bairros<br />

or<strong>de</strong>-na<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a dispersar grupos marginaliza<strong>do</strong>s<br />

e, portanto, <strong>de</strong> mais fácil controle para<br />

os po<strong>de</strong>res públicos e policiais. Controle esse<br />

bastante dificulta<strong>do</strong> pela forma <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada e<br />

labiríntica como se estruturavam os mora<strong>do</strong>res<br />

pobres nos becos <strong>do</strong>s morros e guetos das<br />

gran<strong>de</strong>s <strong>cida<strong>de</strong></strong>s.<br />

Nenhuma das favelas teve sua população<br />

totalmente transferida para as casas <strong>do</strong><br />

conjunto. A distribuição aleatória da<br />

população entre Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, Vila<br />

Kennedy e Santa Aliança, os <strong>do</strong>is conjuntos<br />

cria<strong>do</strong>s na Zona Oeste para aten<strong>de</strong>r os<br />

flagela<strong>do</strong>s das enchentes, acab<strong>ou</strong> mutilan<strong>do</strong><br />

famílias e antigos laços <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>.<br />

(Lins, 1997, p. 35)<br />

Faz-se referência aqui à Vila Aliança,<br />

conjunto resi<strong>de</strong>ncial <strong>de</strong> Bangu que, como Vila<br />

Kennedy, teve tamb<strong>é</strong>m, por essa <strong>é</strong>poca, sua<br />

orig<strong>em</strong> nas r<strong>em</strong>oções <strong>de</strong> favelas. O romance<br />

parece preten<strong>de</strong>r resgatar essa história e<br />

reforçar a id<strong>é</strong>ia <strong>de</strong> que se a imposição sofrida<br />

pelos grupos r<strong>em</strong>ovi<strong>do</strong>s para lugares distantes<br />

obrig<strong>ou</strong>-os à mutilação familiar e <strong>de</strong> antigos<br />

laços <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, tamb<strong>é</strong>m favoreceu novas<br />

formas <strong>de</strong> sobrevivência nas adversas condições<br />

estabelecidas. Foram elas que possibilitaram<br />

a criação, mesmo que forçada, <strong>de</strong><br />

novas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, com laços frágeis,<br />

mas visíveis <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> e auto-ajuda social,<br />

<strong>em</strong>ocional e afetiva.<br />

Os grupos vin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> cada favela integraram-se<br />

<strong>em</strong> uma nova re<strong>de</strong> social<br />

forçosamente estabelecida. A princípio,<br />

alguns grupos r<strong>em</strong>anescentes tentaram o<br />

isolamento, por<strong>é</strong>m <strong>em</strong> p<strong>ou</strong>co t<strong>em</strong>po a força<br />

<strong>do</strong>s fatos <strong>de</strong>u novo rumo ao dia a dia:<br />

nasceram os times <strong>de</strong> futebol, a escola <strong>de</strong><br />

samba <strong>do</strong> conjunto, os blocos carnavalescos...<br />

Tu<strong>do</strong> concorria para a integração<br />

<strong>do</strong>s habitantes <strong>de</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, o<br />

que possibilit<strong>ou</strong> a formação <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s,<br />

rixas e romances entre essas pessoas<br />

reunidas pelo <strong>de</strong>stino. (Lins, 1997, p.35)<br />

Se muita coisa foi <strong>de</strong>struída e relações e<br />

estruturas grupais e sociais <strong>de</strong>smontadas, <strong>ou</strong>tras<br />

Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007 221


Literatura e Imag<strong>em</strong><br />

tantas foram se forman<strong>do</strong> e forçan<strong>do</strong> o<br />

reagrupamento da localida<strong>de</strong> enquanto espaço<br />

habitável. As formas <strong>de</strong> convívio social, baseadas<br />

no lazer e <strong>em</strong> interesses comuns, foram aspectos<br />

aglutina<strong>do</strong>res importantes. Resultaram, daí, os<br />

times <strong>de</strong> futebol, blocos carnavalescos e escolas<br />

<strong>de</strong> samba, por ex<strong>em</strong>plo. A consolidação <strong>de</strong><br />

núcleos que convivam e compartilh<strong>em</strong> entre si<br />

os mesmos <strong>de</strong>sejos, gostos e imaginário <strong>é</strong> a<br />

condição para que a localida<strong>de</strong> torne-se<br />

habitável, mesmo que <strong>em</strong> novos mol<strong>de</strong>s.<br />

Não <strong>é</strong> nova a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> que o indivíduo<br />

não po<strong>de</strong> viver isola<strong>do</strong>, entretanto, o que<br />

mudam são as formas fluidas encontradas para<br />

garantir a sobrevivência da ligação social e<br />

interpessoal, que muitas vezes são irreconhecíveis,<br />

se comparadas com a perspectiva<br />

<strong>de</strong> formas fixadas <strong>em</strong> projetos <strong>ou</strong> propostas<br />

coletivas que reuniam antigas socieda<strong>de</strong>s. Essa<br />

relação estabelecida da localida<strong>de</strong>, como um<br />

conjunto massifica<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> espaço<br />

físico, geográfico, cultural e imaginário,<br />

com os grupos que se formam e nela estão<br />

circunscritos.<br />

Falha a fala! Fala a bala!<br />

Paulo Lins participava <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong><br />

pesquisa orienta<strong>do</strong> pela socióloga Alba Zaluar.<br />

Ela <strong>de</strong>senvolveu uma s<strong>é</strong>rie <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s sobre<br />

criminalida<strong>de</strong>, com auxílio <strong>de</strong> <strong>ou</strong>tros pesquisa<strong>do</strong>res,<br />

como o autor <strong>do</strong> romance <strong>em</strong><br />

discussão. O bairro Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>sse enfoque, <strong>é</strong> registra<strong>do</strong> <strong>em</strong> análises políticas<br />

e antropológicas reunidas <strong>em</strong> seus livros, a<br />

ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> Con<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> Diabo (1994) e<br />

A Máquina e a Revolta (1985). O romance<br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> v<strong>em</strong>, subseqüent<strong>em</strong>ente, da<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reutilização, <strong>em</strong> <strong>ou</strong>tra forma <strong>de</strong><br />

linguag<strong>em</strong>, <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s e relatos reuni<strong>do</strong>s por<br />

estu<strong>do</strong>s realiza<strong>do</strong>s, com a pretensão <strong>de</strong><br />

confirmá-los e referendá-los.<br />

Deve-se levar <strong>em</strong> conta que Paulo Lins <strong>é</strong> um<br />

mora<strong>do</strong>r <strong>do</strong> bairro, vizinho e amigo <strong>de</strong> muitas<br />

pessoas que lhe inspiram os personagens.<br />

Teoricamente, está <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> mesmo espaço<br />

físico, que <strong>de</strong>screve e probl<strong>em</strong>atiza <strong>em</strong> sua<br />

narrativa. Entretanto, no recorte que estabelece<br />

e privilegia, está fora. Não participa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> crime e <strong>do</strong> imaginário no qual este se insere.<br />

A ele t<strong>em</strong> acesso pela proximida<strong>de</strong> e não,<br />

propriamente, pela inserção pessoal. O lugar<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> fala <strong>é</strong>, portanto, ambivalente. Sua<br />

posição <strong>é</strong> <strong>de</strong> intelectual que estuda as relações<br />

sociais, apoia<strong>do</strong> e subsidia<strong>do</strong> por instituições<br />

como a Antropologia, a Sociologia e a Literatura.<br />

O da<strong>do</strong> novo <strong>é</strong> que não está distante, como a<br />

gran<strong>de</strong> maioria <strong>do</strong>s estudiosos. Está, literalmente,<br />

no meio <strong>do</strong> tiroteio, <strong>do</strong> fogo cruza<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

uma violência urbana vivida no cotidiano.<br />

Dessa forma, a posição <strong>de</strong> intelectual não <strong>é</strong><br />

pura, encontra-se contaminada por respingos<br />

<strong>do</strong> sangue verti<strong>do</strong> pelas esquinas <strong>ou</strong> pela<br />

vermelhidão <strong>do</strong> riacho on<strong>de</strong> são <strong>de</strong>sova<strong>do</strong>s<br />

cadáveres:<br />

A vermelhidão prece<strong>de</strong>ra um corpo humano<br />

morto. O cinza daquele dia intensific<strong>ou</strong>se<br />

<strong>de</strong> maneira apreensiva. (...) A chuva fina<br />

222 Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>é</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> <strong>ou</strong> <strong>do</strong> <strong>diabo</strong>? O <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong> <strong>em</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong><br />

vir<strong>ou</strong> t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong>. Vermelhidão novamente<br />

seguida <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto. Sangue diluin<strong>do</strong>-se <strong>em</strong><br />

água podre acompanha<strong>do</strong> <strong>de</strong> mais um corpo<br />

trajan<strong>do</strong> calça Lee, tênis Adidas e sanguessugas<br />

sugan<strong>do</strong> o líqui<strong>do</strong> encarna<strong>do</strong>, e<br />

ainda quente. (Lins, 1997, p.15)<br />

Por <strong>ou</strong>tro la<strong>do</strong>, a vida <strong>do</strong> crime não diz<br />

respeito diretamente à <strong>do</strong> autor pesquisa<strong>do</strong>r,<br />

<strong>de</strong>la ele po<strong>de</strong> <strong>ou</strong>vir o barulho <strong>do</strong>s tiros e sentir<br />

os respingos <strong>de</strong> sangue, mas nela não se<br />

dissolve. Está, portanto, <strong>de</strong>ntro e fora, envolvi<strong>do</strong><br />

com a trama pela proximida<strong>de</strong> física e psicológica<br />

e <strong>de</strong>la afasta<strong>do</strong> pela postura racional que<br />

assume ao se propor a registrar proble-máticas<br />

resultantes <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s e pesquisas.<br />

Essa posição ambivalente, lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> fala<br />

o autor, resvala tamb<strong>é</strong>m na construção <strong>do</strong><br />

narra<strong>do</strong>r, que oscila, por um la<strong>do</strong>, pelo distanciamento<br />

onipresente e onisciente <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> tu<strong>do</strong><br />

sabe e tu<strong>do</strong> vê por estar acima <strong>do</strong>s acontecimentos<br />

e ações; e, por <strong>ou</strong>tro, manifesta-se por meio <strong>de</strong><br />

uma voz dissonante que toma parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s personagens,<br />

intrometen<strong>do</strong>-se na narrativa, expressan<strong>do</strong><br />

sentimentos e <strong>em</strong>itin<strong>do</strong> opiniões:<br />

- Salgueirinho morreu, Salgueirinho<br />

morreu, Salgueirinho morreu!!!<br />

Deu-se um corte na manhã, oriun<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

uma oração <strong>de</strong> verbo intransitivo e sujeito<br />

morto. As ruas ficam cheias <strong>de</strong> choro pelas<br />

esquinas. Capengam todas as hipóteses <strong>de</strong><br />

ser mentira o final <strong>do</strong> malandro. (Lins,<br />

1997, p. 111)<br />

Para isso, aproxima-se da linguag<strong>em</strong> po<strong>é</strong>tica,<br />

trazen<strong>do</strong> à tona um sujeito lírico que se <strong>de</strong>rrama<br />

sobre as ações narradas, mesmo que isso não<br />

seja suficiente para torná-lo personag<strong>em</strong>, <strong>ou</strong><br />

melhor, mesmo que o <strong>ou</strong>tro aspecto, que se<br />

sobrepõe como <strong>do</strong>minante, atue no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

impedir qualquer possibilida<strong>de</strong> disso ocorrer.<br />

O fato, entretanto, não consegue anular a<br />

presença marginal, que volta e meia se<br />

expressa:<br />

São as pessoas nesse <strong>de</strong>sespero absoluto que<br />

a polícia procura, espanca com seus<br />

cassetetes possíveis e suas razões impossíveis,<br />

fazen<strong>do</strong> com que elas, com seus<br />

olhares carcomi<strong>do</strong>s pela fome, ach<strong>em</strong><br />

plausíveis os feitos e os passos <strong>de</strong> Pequeno<br />

e <strong>de</strong> sua quadrilha pelos becos que, por<br />

ter<strong>em</strong> só uma entrada, se tornam becos s<strong>em</strong><br />

saídas. (Lins, 1997, p. 314)<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma voz narrativa que eclo<strong>de</strong><br />

no meio das ações, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> a câmera<br />

fotográfica disposta a registrar os fatos visíveis,<br />

passan<strong>do</strong> a tecer comentários sobre os<br />

acontecimentos. Nesses momentos, larga-se<br />

mão da perspectiva realista, que prima pelo<br />

distanciamento crítico e científico <strong>de</strong> estudioso,<br />

e assume-se o papel <strong>de</strong> artista, que toma parti<strong>do</strong><br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>fesa das criaturas criadas com paixão<br />

(e compaixão).<br />

Se, por vezes, isso po<strong>de</strong> acontecer <strong>de</strong> forma<br />

discreta e disfarçada, como a ex<strong>em</strong>plificada<br />

logo acima, <strong>em</strong> <strong>ou</strong>tras, essa intervenção <strong>do</strong><br />

narra<strong>do</strong>r dá-se <strong>de</strong> maneira clara e explícita,<br />

como na introdução <strong>do</strong> romance, <strong>de</strong>dicada às<br />

musas inspira<strong>do</strong>ras:<br />

Poesia, minha tia, ilumine as certezas <strong>do</strong>s<br />

homens e os tons <strong>de</strong> minhas palavras. ... É o<br />

verbo, aquele que <strong>é</strong> maior que o seu<br />

tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele<br />

Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007 223


Literatura e Imag<strong>em</strong><br />

cambaleia balea<strong>do</strong>. Dito por bocas s<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>ntes e olhares caria<strong>do</strong>s, nos conchavos<br />

<strong>de</strong> becos, nas <strong>de</strong>cisões da morte. A palavra<br />

nasce no pensamento, <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>-se <strong>do</strong>s<br />

lábios adquirin<strong>do</strong> alma nos <strong>ou</strong>vi<strong>do</strong>s,(...)<br />

massacrada no estômago com arroz e feijão<br />

a quase palavra <strong>é</strong> <strong>de</strong>fecada ao inv<strong>é</strong>s <strong>de</strong><br />

falada.<br />

Falha a fala. Fala a bala. (Lins, 1997, p. 23)<br />

A evocação às musas r<strong>em</strong>ete imediatamente<br />

à po<strong>é</strong>tica das epop<strong>é</strong>ias clássicas, <strong>de</strong>sconstruída<br />

pela ostensiva <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> fragilida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

verbo que costumava ser revesti<strong>do</strong>, <strong>é</strong>pica e<br />

miticamente, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e força. Aqui ele<br />

cambaleia balea<strong>do</strong>, na precarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> bocas<br />

s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ntes e olhares caria<strong>do</strong>s, entre a vida e a<br />

morte. O verbo balea<strong>do</strong> cambaleia <strong>em</strong> uma área<br />

<strong>de</strong> silêncio na qual a fala estruturada falha, para<br />

dar lugar ao vazio que se fixa nos intervalos <strong>do</strong>s<br />

estampi<strong>do</strong>s da fala das balas. Algo fica por dizer<br />

e <strong>de</strong>ixa o seu rastro na angústia que prece<strong>de</strong> a<br />

morte, indizível e, portanto, irrepresentável.<br />

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<strong>Rio</strong>/Departamento <strong>de</strong> Letras, 2001.<br />

DUMONT, L<strong>ou</strong>is. O individualismo: uma perspectiva antropológica da i<strong>de</strong>ologia mo<strong>de</strong>rna. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong><br />

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FONSECA, Rub<strong>em</strong>. O cobra<strong>do</strong>r. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.<br />

LINS, Paulo. Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.<br />

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Referência Cin<strong>em</strong>atográfica<br />

COMO NASCEM OS ANJOS? Direção: Murilo Salles. Roteiro: Murilo Sales e Jorge Duran, Agnal<strong>do</strong><br />

Silva e Nelson Ta<strong>do</strong>tti. Produtora: Empória <strong>de</strong> Cin<strong>em</strong>a. Brasil, 1996.<br />

224 Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007


A <strong>cida<strong>de</strong></strong> <strong>é</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong> <strong>ou</strong> <strong>do</strong> <strong>diabo</strong>? O <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong> <strong>em</strong> Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong><br />

Abstract – This article starts <strong>ou</strong>t with a critical reading of the novel Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, by<br />

Paulo Lins, which en<strong>de</strong>avors to set up a few gui<strong>de</strong>lines on the issue of urban violence,<br />

as it is represented both in literary and in film narratives. In this sense, the movie Como<br />

Nasc<strong>em</strong> os Anjos?, by Murilo Salles, introduces the discussion by <strong>em</strong>bracing the core<br />

issues of the novel and by building up its context in the same city – <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>.<br />

Observing territory and symbolic frontiers of the poor neighborhood, the novel focuses<br />

on the displac<strong>em</strong>ent of the heroic imaginary involving roguery to professional action<br />

of the drug <strong>de</strong>aler and other “workers” involved.<br />

Keywords: urban experience; violence; community; imaginary; <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>.<br />

Resumen – A partir <strong>de</strong> una lectura crítica <strong>de</strong> la novela Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, <strong>de</strong> Paulo Lins,<br />

se intenta establecer algunas coordinadas en torno <strong>de</strong> la cuestión <strong>de</strong> la violencia<br />

urbana, como <strong>é</strong>sta se hace representar, tanto en las narraciones literarias como en<br />

las cin<strong>em</strong>atográficas. Es en este senti<strong>do</strong> que la película Como Nasc<strong>em</strong> os Anjos?, <strong>de</strong><br />

Murilo Salles, al t<strong>em</strong>atizar el mismo conjunto <strong>de</strong> cuestiones <strong>de</strong> la novela y tener su<br />

marco en la misma ciudad –Río <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>–, introduce la discusión. En la novela,<br />

observán<strong>do</strong>se las fronteras territoriales y simbólicas <strong>de</strong>l barrio popular, se subraya el<br />

trasla<strong>do</strong> <strong>de</strong>l i<strong>de</strong>ario heroico <strong>de</strong> los malandrines a la actuación profesional <strong>de</strong>l<br />

narcotraficante y <strong>de</strong>más «trabaja<strong>do</strong>res» envueltos.<br />

Palabras-clave: experiencia urbana; violencia; comunidad; i<strong>de</strong>ario; Río <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>.<br />

Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007 225

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