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A cidade é de Deus ou do diabo? O Rio de Janeiro em Cidade de Deus

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Literatura e Imag<strong>em</strong><br />

Acreditava que se tivesse t<strong>em</strong>po para se<br />

arrepen<strong>de</strong>r po<strong>de</strong>ria se salvar e ludibriar o D<strong>em</strong>o.<br />

É assim que se comportava ao rebater a culpa<br />

<strong>do</strong> seu primeiro assassinato, que foi, para ele,<br />

s<strong>em</strong> querer, uma casualida<strong>de</strong> no meio <strong>de</strong> um<br />

assalto que realizava. “Olh<strong>ou</strong> para o c<strong>é</strong>u, <strong>de</strong>pois<br />

para o chão, concluiu que <strong>Deus</strong> ficava muito<br />

longe... T<strong>em</strong>ia a ira <strong>de</strong> <strong>Deus</strong>, mas tinha vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> conhecer o Diabo, faria um pacto com ele<br />

para ter tu<strong>do</strong> na terra.” (Lins, 1997, p. 280)<br />

Os maiores <strong>de</strong>sejos <strong>do</strong>s primeiros Faustos<br />

situavam-se no campo <strong>do</strong> saber: possuir<br />

conhecimento conferia po<strong>de</strong>r. O Fausto cont<strong>em</strong>porâneo<br />

negocia sua alma para ter tu<strong>do</strong><br />

na terra, mesmo que perca a possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

c<strong>é</strong>u e da sua eterna tranqüilida<strong>de</strong>. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

ter supera o <strong>de</strong> ser e o <strong>de</strong> saber. Marreco<br />

“repetiu sete vezes que era filho <strong>do</strong> Diabo e<br />

precipit<strong>ou</strong>-se para a rua com o pensamento<br />

vasculhan<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> para achar um lugar<br />

on<strong>de</strong> tivesse bastante dinheiro”. (Lins,1997,<br />

p.145) Circula pelas ruas da <strong>cida<strong>de</strong></strong>, cruza as<br />

esquinas <strong>em</strong> que estabelece o pacto para ter<br />

tu<strong>do</strong> na vida. “Sua obrigação era enviar uma<br />

alma toda segunda-feira para o quinto <strong>do</strong>s<br />

infernos. Ficaria rico, já que <strong>de</strong> tiro não<br />

morreria...” (Lins, 1997, p.145) De fato não<br />

morreu <strong>de</strong> tiro, foi golpea<strong>do</strong> a facadas por um<br />

mari<strong>do</strong> tripudia<strong>do</strong> <strong>em</strong> sua honra, s<strong>em</strong> ter lá<br />

muito t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> se arrepen<strong>de</strong>r e se salvar,<br />

justamente na primeira segunda-feira <strong>em</strong> que<br />

se esqueceu <strong>de</strong> cumprir a obrigação <strong>de</strong> matar<br />

algu<strong>é</strong>m. “Quan<strong>do</strong> se l<strong>em</strong>br<strong>ou</strong> <strong>do</strong> D<strong>em</strong>ônio já<br />

passava da meia-noite. Era a primeira vez que<br />

<strong>de</strong>ixara furo com o hom<strong>em</strong>. Acreditava que não<br />

teria probl<strong>em</strong>as com o chefe <strong>do</strong> inferno, pois já<br />

lhe <strong>de</strong>ra diversas vezes almas <strong>de</strong> quebra.” (Lins,<br />

1997, p. 145) Esse foi seu erro, acreditar mais<br />

no seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sedução <strong>do</strong> que na <strong>de</strong>terminação<br />

<strong>do</strong> próprio <strong>de</strong>mônio. Preso aos<br />

prazeres presentes, como Fausto, não lev<strong>ou</strong><br />

muito a s<strong>é</strong>rio o preço a pagar pelas concessões<br />

recebidas, preocupa<strong>do</strong> que estava <strong>em</strong> fugir da<br />

frustração <strong>de</strong> tantos <strong>de</strong>sejos irrealiza<strong>do</strong>s nesse<br />

inferno terrestre. Isto porque, “um inferno, <strong>em</strong><br />

resumo, <strong>é</strong> indubitavelmente real – o da<br />

experiência cotidiana: como diz Mefistófeles, ‘o<br />

inferno <strong>é</strong> on<strong>de</strong> estamos e on<strong>de</strong> o inferno está,<br />

<strong>de</strong>verá para s<strong>em</strong>pre estar’”. As diferentes<br />

modalida<strong>de</strong>s que o personag<strong>em</strong> v<strong>em</strong> assumin<strong>do</strong><br />

encontram-se no aspecto mitológico por um<br />

eixo comum <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação: “Fausto permanecerá<br />

<strong>em</strong> nossa imaginação como o hom<strong>em</strong><br />

que foi puni<strong>do</strong> por querer tu<strong>do</strong> – o mesmo<br />

que o restante da humanida<strong>de</strong> quer” (Watt,<br />

1997, p. 56), mas que só alguns têm a <strong>ou</strong>sadia<br />

<strong>de</strong> ir at<strong>é</strong> ao inferno para conseguir.<br />

Marimbon<strong>do</strong> tamb<strong>é</strong>m agia sozinho, com a<br />

alma penhorada para ter tu<strong>do</strong> na vida. Fausto,<br />

mito <strong>do</strong> individualismo mo<strong>de</strong>rno, sofre transformações<br />

profundas que inviabilizam sua<br />

sobrevivência. Uma alma <strong>é</strong> muito p<strong>ou</strong>co para o<br />

D<strong>em</strong>o. A ativida<strong>de</strong> individual não dá conta da<br />

tarefa, muitas almas tornaram-se necessárias<br />

para tal. O crime organiza-se <strong>em</strong> quadrilhas,<br />

grupos arma<strong>do</strong>s, re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tráfico cada vez mais<br />

complexas.<br />

220 Revista <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> <strong>Janeiro</strong>, n. 20-21, jan.-<strong>de</strong>z. 2007

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