Quem é Godofredo de Oliveira Neto? - Umdedodeprosa.cce.ufsc.br
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<strong>Quem</strong> <strong>é</strong> <strong>Godofredo</strong><<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong> <strong>Neto</strong>?<<strong>br</strong> />
<strong>Godofredo</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong> <strong>Neto</strong> nasceu em Blumenau, SC, em 1951, cida<strong>de</strong><<strong>br</strong> />
on<strong>de</strong> morou at<strong>é</strong> os 17 anos. Estudou nos col<strong>é</strong>gios Santo Antônio e Pedro II. Aí publicou<<strong>br</strong> />
seus primeiros contos e poemas. Foi para o Rio <strong>de</strong> Janeiro em fins <strong>de</strong> 1968. Ingressou<<strong>br</strong> />
na Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> janeiro em 1970 (Letras e Direito) e se transferiu<<strong>br</strong> />
para Paris em 1973. Publicou, em 1981, inaugurando a Editora Taurus, do Rio<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> Janeiro, Faina <strong>de</strong> Jurema, romance experimental escrito em Paris nos anos 70<<strong>br</strong> />
baseado nas propostas pós-mo<strong>de</strong>rnistas que começavam a ser amplamente difundidas nos<<strong>br</strong> />
meios acadêmicos parisienses. Graduado em Letras e Relações Internacionais, pela Sorbonne,<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> Paris, Mestre e Doutor em Letras pelas Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro e<<strong>br</strong> />
Sorbonne, entra para a UFRJ como professor da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras em 1980. Começa<<strong>br</strong> />
a escrever, nesse ano, o seu segundo romance, O Bruxo do Contestado. Ocupa cargos<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> relevância na administração central da Universida<strong>de</strong>, ensina literatura <strong>br</strong>asileira em<<strong>br</strong> />
universida<strong>de</strong>s francesas e dinamarquesas e escreve so<strong>br</strong>e literatura em jornais e revistas.<<strong>br</strong> />
Publica trabalho crítico so<strong>br</strong>e Graciliano Ramos em 1990 e o O Bruxo do<<strong>br</strong> />
Contestado em 1996, pela Editora Nova Fronteira, do Rio <strong>de</strong> Janeiro. O Bruxo do<<strong>br</strong> />
Contestado foi classificado entre os <strong>de</strong>z mais importantes lançamentos do ano pelo jornal<<strong>br</strong> />
Folha <strong>de</strong> São Paulo e teve gran<strong>de</strong> repercussão nacional. A editora Nova Fronteira<<strong>br</strong> />
a pôs na terceira edição, lançada rapidamente, faixa na capa do livro reproduzinho<<strong>br</strong> />
os seguintes parágrafos <strong>de</strong> textos escritos por Ivan Angelo e Antonio Houaiss so<strong>br</strong>e o<<strong>br</strong> />
romance: “<strong>Quem</strong> se queixa <strong>de</strong> que faltam autores novos <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ler O<<strong>br</strong> />
Bruxo do Contestado” (Ivan Angelo, Revista Veja). “O<strong>br</strong>a <strong>de</strong> envergadura nacional,<<strong>br</strong> />
não nos <strong>de</strong>ixando saudosos <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s da Cunha, pela proposta ficcional audaz e<<strong>br</strong> />
válida”. (Antonio Houaiss, carta). Seguem-se na área ficcional, pela mesma editora, os<<strong>br</strong> />
livros Pedaço <strong>de</strong> Santo (1997), Oleg e os clones( 1999) e Marcelino Nanm<strong>br</strong>á,<<strong>br</strong> />
o Manumisso(2000). Na quarta capa <strong>de</strong>sse livro a editora Nova Fronteira elenca<<strong>br</strong> />
os romances do autor “que o fizeram ser saudado pela crítica como revelação da literatura<<strong>br</strong> />
<strong>br</strong>asileira”. Em 2002 publica, pela Editora Record , o romance Ana e a margem<<strong>br</strong> />
do rio, que recebeu em 2003, o selo <strong>de</strong> “altamente recomendável”, concedido pela<<strong>br</strong> />
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Todos os seus livros têm gran<strong>de</strong><<strong>br</strong> />
fortuna crítica, são adotados e estudados em universida<strong>de</strong>s ( Oleg e os clones está,<<strong>br</strong> />
neste ano, no Vestibular no Maranhão e O <strong>br</strong>uxo do Contestado no Vestibular<<strong>br</strong> />
da Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina) e escolas. Pedaço <strong>de</strong> Santo está sendo filmado pelos<<strong>br</strong> />
diretores Marco Antônio Simas e Zelito Viana.<<strong>br</strong> />
O autor vem tendo gran<strong>de</strong> espaço na mídia eletrônica (entrevista à Globo News,<<strong>br</strong> />
concedida a Pedro Bial; TVE, entrevista concedida a Beatriz Resen<strong>de</strong> e Leda Nagle; TV<<strong>br</strong> />
Futura, etc). Oleg e os clones foi transformado em li<strong>br</strong>eto <strong>de</strong> música contemporânea<<strong>br</strong> />
na Pós-Graduação da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná. O autor <strong>é</strong> atualmente “ escritorresi<strong>de</strong>nte”<<strong>br</strong> />
do Programa Avançado <strong>de</strong> Cultura Contemporânea da UFRJ dirigido pela<<strong>br</strong> />
professora Heloísa Buarque <strong>de</strong> Holanda e está escrevendo o romance Menino Morto.<<strong>br</strong> />
1
O Bruxo do Contestado - Capítulo 15<<strong>br</strong> />
Texto extraído do livro O <strong>br</strong>uxo do Contestado<<strong>br</strong> />
Numa das reuniões culturais das quintas-feiras do GDD, Elsa<<strong>br</strong> />
Bonnatti, mem<strong>br</strong>o da diretoria, fez uma palestra so<strong>br</strong>e o Contestado. A<<strong>br</strong> />
escolha do tema <strong>de</strong>u-se, segundo a expositora, porque o conflito tocara<<strong>br</strong> />
diretamente a região <strong>de</strong> Diamante, já que significativo contingente <strong>de</strong> seus<<strong>br</strong> />
moradores, em consequência da proximida<strong>de</strong> geográfica, mudara-se para<<strong>br</strong> />
lá nas duas primeiras d<strong>é</strong>cadas <strong>de</strong>sse s<strong>é</strong>culo. Após relem<strong>br</strong>ar a programação<<strong>br</strong> />
do mês, Elsa começou a leitura do seu trabalho.<<strong>br</strong> />
Referiu-se a lí<strong>de</strong>res que, em aparência, se propunham a saciar as<<strong>br</strong> />
aspirações populares - citou Hitler e Mussolini - e lí<strong>de</strong>res que simbolizavam<<strong>br</strong> />
os movimentos populares que passaram por etapas <strong>de</strong> conscientização e<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> organização, como a revolução bolchevique que, em 1917, logrou êxito.<<strong>br</strong> />
Após analisar a trajetória <strong>de</strong> Lênin, relem<strong>br</strong>ou Canudos, <strong>de</strong> fins do s<strong>é</strong>culo<<strong>br</strong> />
XIX, a li<strong>de</strong>rança messiânica <strong>de</strong> António Conselheiro, o nor<strong>de</strong>ste da<<strong>br</strong> />
Bahia e a o<strong>br</strong>a Os sertões, <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s da Cunha. Citou o falanst<strong>é</strong>rio do<<strong>br</strong> />
Saí, baseado nas id<strong>é</strong>ias socialistas <strong>de</strong> Fourier, criado em 1848 em São<<strong>br</strong> />
Francisco do Sul, Santa Catarina, por Benoít Mure, on<strong>de</strong> já era proibido<<strong>br</strong> />
o trabalho escravo e se dividia o lucro entre a população, e mencionou<<strong>br</strong> />
a colônia Cecília, <strong>de</strong> inspiração anarquista, fundada por Giovanni Rossi<<strong>br</strong> />
em Palmeiras, nos campos gerais do Paraná, em 1890, on<strong>de</strong> cada um<<strong>br</strong> />
trabalhava segundo sua força, sem impostos, sem serviço militar, sem patrões,<<strong>br</strong> />
sem Deus e on<strong>de</strong> tudo era <strong>de</strong> todos. Fez tamb<strong>é</strong>m referência aos Muckers,<<strong>br</strong> />
movimento ocorrido em São Leopoldo, Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, em 1872,<<strong>br</strong> />
com uma população exclusivamente <strong>de</strong> imigrantes alemães, sob as or<strong>de</strong>ns<<strong>br</strong> />
messiânicas <strong>de</strong> Jacobina e seus doze apóstolos e com a proposta <strong>de</strong> um<<strong>br</strong> />
novo reino <strong>de</strong> justiça e <strong>de</strong> fartura. Citou finalmente o padre Cícero e seus<<strong>br</strong> />
milagres <strong>de</strong> 1870 a 1934 em Juazeiro, no Ceará. Lem<strong>br</strong>ou que os fi<strong>é</strong>is acreditam<<strong>br</strong> />
que o padre Cícero voltará e transformará Juazeiro, a Nova Jerusal<strong>é</strong>m, no<<strong>br</strong> />
centro do paraíso terrestre. A explanação <strong>de</strong> Elsa foi interrompida por<<strong>br</strong> />
Jorge Ernesto, tamb<strong>é</strong>m da diretoria do GDD:<<strong>br</strong> />
— Padim Ciço ainda tem influência na política do Palácio do Catete!<<strong>br</strong> />
Todos riram, e Elsa prosseguiu a leitura. Não <strong>de</strong>scolou os olhos do texto.<<strong>br</strong> />
A área territorial <strong>de</strong> aproximadamente 48.000 quilómetros quadrados<<strong>br</strong> />
disputada pelas Províncias do Paraná e <strong>de</strong> Santa Catarina e com a<<strong>br</strong> />
Argentina <strong>de</strong>s<strong>de</strong> fins do s<strong>é</strong>culo XVIII caracterizava-se, no início <strong>de</strong>ste s<strong>é</strong>culo, por<<strong>br</strong> />
uma estrutura agrária dominada pêlos “coron<strong>é</strong>is”. As fazendas eram formadas<<strong>br</strong> />
por gran<strong>de</strong>s extensões <strong>de</strong> ervais, florestas virgens, matas <strong>de</strong> pinheiros e<<strong>br</strong> />
imensos campos <strong>de</strong> pastagem. Mais da meta<strong>de</strong> do território, no entanto,<<strong>br</strong> />
era <strong>de</strong> terras <strong>de</strong>volutas. O coronelato julgava, o coronelato <strong>de</strong>cidia,<<strong>br</strong> />
o coronelato matava. Esse sistema reduzia a zero a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
2
ascensão económica da população local, cuja miserabilida<strong>de</strong> e marginalização<<strong>br</strong> />
aumentavam. Famílias inteiras foram ocupando as terras do governo,<<strong>br</strong> />
lí<strong>de</strong>res religiosos foram ocupando o espírito dos sertanejos. O monge<<strong>br</strong> />
João Maria <strong>de</strong> Agostini, <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong> italiana, natural do Piemonte,<<strong>br</strong> />
que pregava na região sudoeste do Brasil em meados do s<strong>é</strong>culo XIX,<<strong>br</strong> />
foi sendo substituído por outros — que usavam o mesmo nome — at<strong>é</strong><<strong>br</strong> />
o surgimento <strong>de</strong> Jos<strong>é</strong> Maria, que se dizia seu irmão, por volta <strong>de</strong> 1912.<<strong>br</strong> />
(Consta que o último monge era um sírio, <strong>de</strong> nome Atanás Marcaf.).Todos<<strong>br</strong> />
esses monges, <strong>de</strong>nominados beatos nos movimentos semelhantes nas<<strong>br</strong> />
outras regiões do país, reuniam em torno <strong>de</strong> si um número cada vez maior<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> seguidores. O movimento aumentou com a a<strong>de</strong>são <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> contingente<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> operários da Brazil Railway Co., firma encarregada da construção da<<strong>br</strong> />
estrada <strong>de</strong> ferro São Paulo—Rio Gran<strong>de</strong>.<<strong>br</strong> />
Dieter comentou em voz alta que a sigla EFSPRG, <strong>de</strong> Estrada <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
Ferro São Paulo—Rio Gran<strong>de</strong>, passou a ser chamada pelos trabalhadores<<strong>br</strong> />
“estrada feita somente pra roubar pro governo”. Elsa riu e continuou a leitura.<<strong>br</strong> />
A empresa contratou <strong>de</strong>z mil operários, principalmente no Rio <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
Janeiro e em Pernambuco. As o<strong>br</strong>as foram iniciadas na região do Contestado<<strong>br</strong> />
em 1908. A Railway recebeu o direito <strong>de</strong> explorar as terras — quinze<<strong>br</strong> />
quilómetros <strong>de</strong> cada lado dos trilhos — ao longo <strong>de</strong> toda a extensão<<strong>br</strong> />
da via f<strong>é</strong>rrea. Muitas <strong>de</strong>ssas terras eram habitadas por posseiros, quase<<strong>br</strong> />
todos trabalhadores sazonais na indústria da erva-mate. A colonização<<strong>br</strong> />
da faixa margeando a linha ferroviária foi feita pela Brazil Development<<strong>br</strong> />
and Colonization, empresa subsidiária da Brazil Railway Co., com se<strong>de</strong><<strong>br</strong> />
em Portiand, Estados Unidos. O conflito entre novos colonos, trazidos<<strong>br</strong> />
principalmente da região sul do país, e posseiros foi inevitável. Para explorar as<<strong>br</strong> />
reservas ma<strong>de</strong>ireiras nas terras da Brazil Development and Colonization<<strong>br</strong> />
— a ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> lei era abundante na região —, foi criada a Southem<<strong>br</strong> />
Brazil Lumber and Colonization Co., que, com uma produção <strong>de</strong> trezentos<<strong>br</strong> />
metros cúbicos por dia, <strong>de</strong>u início à exportação <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. Desavenças<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> toda sorte eclodiam, e os operários da Lumber, já, <strong>de</strong> alguma maneira,<<strong>br</strong> />
antecipando a formação <strong>de</strong> movimentos organizados na região, chegaram<<strong>br</strong> />
a entrar em greve por melhores condições <strong>de</strong> trabalho.<<strong>br</strong> />
A leitura <strong>de</strong> Elsa foi novamente interrompida por perguntas da<<strong>br</strong> />
plateia e por muitos palavrões contra os coron<strong>é</strong>is pronunciados por Benno,<<strong>br</strong> />
mem<strong>br</strong>o da diretoria do GDD. Após algumas pon<strong>de</strong>rações, ela voltou ao<<strong>br</strong> />
seu texto.<<strong>br</strong> />
Com o t<strong>é</strong>rmino das o<strong>br</strong>as, os operários, <strong>de</strong>sempregados, foram<<strong>br</strong> />
engrossar a massa <strong>de</strong> intrusos — como eram chamados — nas terras<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong>volutas e nas terras da Brazil Railway Co. Calcula-se que três mil<<strong>br</strong> />
operários da firma construtora da estrada <strong>de</strong> ferro instalaram-se nessas<<strong>br</strong> />
terras. O processo <strong>de</strong> expulsão dos intrusos pela milícia da firma <strong>de</strong> colonização<<strong>br</strong> />
e pelas autorida<strong>de</strong>s estaduais, feito sempre com extrema violência<<strong>br</strong> />
e frequentemente com mortes, al<strong>é</strong>m <strong>de</strong> alimentar o ódio contra o Estado<<strong>br</strong> />
Republicano — se fosse na Monarquia não seria assim, muitos diziam —,<<strong>br</strong> />
3
o<strong>br</strong>igava os <strong>de</strong>salojados a procurarem uma alternativa <strong>de</strong> so<strong>br</strong>evivência.<<strong>br</strong> />
Iam surgindo, então, lí<strong>de</strong>res com propostas <strong>de</strong> solucão. Muitos — a<<strong>br</strong> />
maioria — passaram a ver no monge Jos<strong>é</strong> Maria a salvação e a expectativa<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> dias melhores, com mais justiça, num reino <strong>de</strong> paz e <strong>de</strong> fartura sob a<<strong>br</strong> />
proteção <strong>de</strong> Jesus Cristo. Outros, em proporções menores, vislum<strong>br</strong>aram<<strong>br</strong> />
a possibilida<strong>de</strong> da criação <strong>de</strong> um território em que não houvesse a exploração<<strong>br</strong> />
do homem pelo homem, sem necessida<strong>de</strong> do escudo da religião, e com a<<strong>br</strong> />
esperança <strong>de</strong> que o mo<strong>de</strong>lo pu<strong>de</strong>sse se espalhar para todo o país. Os a<strong>de</strong>ptos<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> um novo mundo passaram a dominar quase trinta mil quilómetros quadrados<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> terras dos 48 mil da região conhecida como o Contestado.<<strong>br</strong> />
Aldo Ortigão atalhou, do fundo da sala, sugerindo que Elsa falasse<<strong>br</strong> />
mais nas condições <strong>de</strong> vida a que eram submetidos os trabalhadores dos<<strong>br</strong> />
ervais, com uma jornada <strong>de</strong> trabalho nos mol<strong>de</strong>s da escravidão e com<<strong>br</strong> />
um pagamento simbólico e que, por isso, entre vários lemas, adotaram o<<strong>br</strong> />
“chega <strong>de</strong> po<strong>br</strong>eza, chega <strong>de</strong> po<strong>br</strong>eza”. Dieter propôs que se <strong>de</strong>ixassem<<strong>br</strong> />
as observações para o final da s<strong>é</strong>rie <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates, relem<strong>br</strong>ando que se po<strong>de</strong>ria<<strong>br</strong> />
igualmente tratar do papel da Igreja e dos santos no conflito. Elsa prosseguiu.<<strong>br</strong> />
Nesse contexto havia, ainda, como pano <strong>de</strong> fundo, a disputa por<<strong>br</strong> />
limites territoriais entre os estados do Paraná e <strong>de</strong> Santa Catarina. O Governo<<strong>br</strong> />
Fe<strong>de</strong>ral interveio; o gabinete <strong>de</strong> Hermes da Fonseca via com preocupação<<strong>br</strong> />
o crescimento das i<strong>de</strong>ias monarquistas — os fi<strong>é</strong>is a tinham ressuscitado<<strong>br</strong> />
nos campos do Irani —, e a República se viu ameaçada nos seus princípios<<strong>br</strong> />
mais fundamentais. A<strong>de</strong>mais, Canudos ainda estava fresco e não por<<strong>br</strong> />
outra razão foi enviado pelo Rio <strong>de</strong> Janeiro para reconhecimento o<<strong>br</strong> />
general Mesquita, que se tornara conhecido no território <strong>de</strong> Antônio<<strong>br</strong> />
Conselheiro, em 1892.<<strong>br</strong> />
— Acho que o Hermes da Fonseca estava mais preocupado com<<strong>br</strong> />
o carnaval das ca<strong>br</strong>ochas do Ameno Resedá durante o seu primeiro<<strong>br</strong> />
casamento e com a irreverência das caricaturas da segunda mulher, a Nair<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> Tef<strong>é</strong> — ironizou Arcângelo.<<strong>br</strong> />
—Talvez — disse Elsa sorrindo e dando continuação à leitura.<<strong>br</strong> />
Destarte, num conflito recheado <strong>de</strong> elementos religiosos, i<strong>de</strong>ológicos,<<strong>br</strong> />
sociais e <strong>de</strong> simples guerra <strong>de</strong> fronteiras, o vácuo <strong>de</strong> administração pública<<strong>br</strong> />
e a ausência <strong>de</strong> uma política social, aliada a uma forte concentração <strong>de</strong> rendas e <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
terras, <strong>de</strong>terminaram, por um lado, o recuo a propostas psicorreligiosas<<strong>br</strong> />
e, por outro, o avanço a i<strong>de</strong>ias comportando uma maior distribuição <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
rendas e em sintonia com os movimentos internacionais.<<strong>br</strong> />
Elsa interrompeu a leitura e disse possuir documentos comprovando<<strong>br</strong> />
a troca <strong>de</strong> correspondência entre lí<strong>de</strong>res sindicais da Inglaterra e da<<strong>br</strong> />
Rússia e seus emissários na Guerra do Contestado. Esses embaixadores<<strong>br</strong> />
do movimento revolucionário mundial acompanhavam <strong>de</strong> perto o <strong>de</strong>senrolar<<strong>br</strong> />
do conflito e mantinham contato frequente com lí<strong>de</strong>res dos caboclos<<strong>br</strong> />
e com intelectuais e políticos em Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre.<<strong>br</strong> />
Lênin chegou a enviar observadores da Suíça. Coincidência ou não, o<<strong>br</strong> />
presi<strong>de</strong>nte Hermes da Foncesa nomeou um político <strong>de</strong> Santa Catarina,<<strong>br</strong> />
4
Lauro Müller, para a pasta do Exterior após a morte do Rio Branco.<<strong>br</strong> />
Venceslau Brás manteve-o no cargo. Serviços secretos <strong>de</strong> vários países<<strong>br</strong> />
aventavam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o conflito ser manipulado e transformar-se,<<strong>br</strong> />
rapidamente, numa luta pela in<strong>de</strong>pendência da região do Contestado e na<<strong>br</strong> />
criação <strong>de</strong> um país com um regime <strong>de</strong> governo socialista. O contrapeso<<strong>br</strong> />
capitalista mundial não se fez tardar, e o governo <strong>br</strong>asileiro recebeu apoio<<strong>br</strong> />
internacional, principalmente dos Estados Unidos e da Inglaterra, para<<strong>br</strong> />
reprimir a rebelião popular.<<strong>br</strong> />
A uma observação <strong>de</strong> Dieter so<strong>br</strong>e o movimento maçônico e o<<strong>br</strong> />
Contestado, Elsa retrucou:<<strong>br</strong> />
— Parte da maçonaria, que ainda sonhava com a volta da monarquia<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> D. Pedro, dava apoio velado aos fi<strong>é</strong>is at<strong>é</strong> certa altura do conflito. Uma<<strong>br</strong> />
das li<strong>de</strong>ranças maçónicas na capital fe<strong>de</strong>ral era Quintino Bocaiuva, que<<strong>br</strong> />
morreu em 1912. A id<strong>é</strong>ia <strong>de</strong> irmanda<strong>de</strong> levou os mem<strong>br</strong>os do movimento<<strong>br</strong> />
do Contestado a lutarem por uma nova or<strong>de</strong>m social que, por ter que<<strong>br</strong> />
ser diferente da injusta (com aspas) República, era monárquica, o outro<<strong>br</strong> />
regime <strong>de</strong> governo que conheciam. Os maçons do Brasil, instruídos pelo<<strong>br</strong> />
movimento maçônico internacional, tiveram que recuar, pois a guerra do<<strong>br</strong> />
Contestado podia ganhar perigosos contornos <strong>de</strong> um conflito mundial<<strong>br</strong> />
entre capitalismo e socialismo.<<strong>br</strong> />
Gianfranco Bruno Gerin, <strong>de</strong>safeto <strong>de</strong> Dieter, levantou-se e fechou<<strong>br</strong> />
as janelas. Chovia forte. O ribombar dos trovões parece as Mata<strong>de</strong>iras do<<strong>br</strong> />
Setem<strong>br</strong>ino, observou. Todos aproveitaram a pausa para tomar caf<strong>é</strong>, alguns<<strong>br</strong> />
preferiam chimarrão. Gianfranco perguntou a Dieter se ele conhecia<<strong>br</strong> />
essas informações so<strong>br</strong>e o Contestado. O Heinzer riu amarelo e não respon<strong>de</strong>u.<<strong>br</strong> />
Com o retorno daspessoas aos seus lugares, Elsa voltou os olhos<<strong>br</strong> />
ao texto.<<strong>br</strong> />
O país inteiro se <strong>de</strong><strong>br</strong>uçou so<strong>br</strong>e a questão do Contestado. Na<<strong>br</strong> />
capital fe<strong>de</strong>ral, era um dos principais assuntos no Caf<strong>é</strong> Belas-Artes, no<<strong>br</strong> />
Caf<strong>é</strong> do Rio, no Rio Branco, no Jeremias, no Suisso e na Livraria Garnier.<<strong>br</strong> />
Epitácio Pessoa, <strong>de</strong>pois presi<strong>de</strong>nte da República, foi um dos advogados<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> Santa Catarina; Rui Barbosa, do Paraná. Havia quem, por interesses<<strong>br</strong> />
regionais, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>sse os <strong>de</strong>votos <strong>de</strong> Jos<strong>é</strong> Maria. O Supremo Tribunal<<strong>br</strong> />
Fe<strong>de</strong>ral chegou a analisar pedido <strong>de</strong> habeas-corpus em favor dos fi<strong>é</strong>is<<strong>br</strong> />
reunidos em Taquaruçu. O Correio da Manhã, do Rio <strong>de</strong> Janeiro, acusou<<strong>br</strong> />
o governo <strong>de</strong> Santa Catarina <strong>de</strong> fomentar o movimento dos fanáticos. O<<strong>br</strong> />
envio <strong>de</strong> tropas foi indispensável para a manutenção, segundo o governo<<strong>br</strong> />
fe<strong>de</strong>ral, da República, da Fe<strong>de</strong>ração, da or<strong>de</strong>m pública e do Brasil.<<strong>br</strong> />
Mais <strong>de</strong> três mil e quinhentos partidários dos monges foram mortos<<strong>br</strong> />
por seis mil soldados e mil civis a serviço do Ex<strong>é</strong>rcito em todo o conflito do<<strong>br</strong> />
Contestado. Morreram quase mil soldados estaduais e fe<strong>de</strong>rais (incluídos<<strong>br</strong> />
os civis pagos e armados pelo Rio <strong>de</strong> Janeiro), e a guerra <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong>z<<strong>br</strong> />
mil feridos: mais <strong>de</strong> vinte mil pessoas participaram do conflito. Só nes<<strong>br</strong> />
ataques à cida<strong>de</strong> santa <strong>de</strong> Santa Maria foram trucidados mil sertanejos.<<strong>br</strong> />
Na ofensiva final (em meados <strong>de</strong> 1915, já na presidência <strong>de</strong> Venceslau<<strong>br</strong> />
5
Brás, governo submerso em grave crise económica e política, agravada<<strong>br</strong> />
com a Primeira Guerra Mundial — o Brasil <strong>de</strong>clararia guerra à Alemanha<<strong>br</strong> />
em 26 <strong>de</strong> outu<strong>br</strong>o <strong>de</strong> 1917 — e a <strong>br</strong>aços com a insatisfação dos<<strong>br</strong> />
movimentos operários), o general Setem<strong>br</strong>ino <strong>de</strong> Carvalho, após aplicar<<strong>br</strong> />
os mais mo<strong>de</strong>rnos planos <strong>de</strong> estrat<strong>é</strong>gia militar, não evitou o banho <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
sangue. Os pouquíssimos so<strong>br</strong>eviventes disseram que os soldados estavam<<strong>br</strong> />
endia<strong>br</strong>ados, o que os levava a crer que as tropas da República<<strong>br</strong> />
eram mesmo enviadas <strong>de</strong> Satanás. Isso explica a existência, at<strong>é</strong> hoje.<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> movimentos espargidos na região <strong>de</strong> Diamante que pregam a vingança<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> Cristo e a instalação do reino dos campos do Irani Dieter interveio<<strong>br</strong> />
e informou que um mem<strong>br</strong>o da família Wolland, <strong>de</strong> Diamante, lutara e<<strong>br</strong> />
morrera no Contestado ao lado dos fi<strong>é</strong>is.<<strong>br</strong> />
— Era chamado <strong>de</strong> o Alemãozinho, e foi nomeado comandante<<strong>br</strong> />
por Maria Rosa, uma das virgens. Conheço o so<strong>br</strong>inho <strong>de</strong>le. Mora lá pras<<strong>br</strong> />
bandas <strong>de</strong> Stresa. Tem um documento <strong>de</strong> nomeação do tio. Me lem<strong>br</strong>o<<strong>br</strong> />
que o papel fala <strong>de</strong> Deus, São Sebastião e Jos<strong>é</strong> Maria e acaba com tudo <strong>é</strong><<strong>br</strong> />
nada. Pró so<strong>br</strong>inho do Alemãozinho, a Campanha do Contestado foi apenas<<strong>br</strong> />
<strong>br</strong>iga pelo po<strong>de</strong>r local entre dois mandões da região <strong>de</strong> Curitibanos: o<<strong>br</strong> />
coronel Henrique <strong>de</strong> Almeida, protetor do monge Jos<strong>é</strong> Maria e que usou a maior<<strong>br</strong> />
parte dos fanáticos em proveito próprio, e o po<strong>de</strong>roso coronel Francisco<<strong>br</strong> />
Ferreira <strong>de</strong> Albuquerque, dono do jornal O Trabalho, <strong>de</strong> Curitibanos. Todos<<strong>br</strong> />
dois acabaram assassinados por pistoleiros numa emboscada. Ainda segundo<<strong>br</strong> />
o so<strong>br</strong>inho do Alemãozinho, tentou-se passar uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> guerra por<<strong>br</strong> />
princípios religiosos e políticos, mas no fundo era uma simples disputa<<strong>br</strong> />
pelo po<strong>de</strong>r local. Os jagunços acabaram sendo, direta ou indiretamente,<<strong>br</strong> />
capangas dos coron<strong>é</strong>is. Essa interpretação <strong>é</strong> <strong>de</strong>le.<<strong>br</strong> />
— Alemãozinho passou <strong>de</strong>pois pro lado das tropas fe<strong>de</strong>rais —<<strong>br</strong> />
corrigiu Elsa, dando sequência à leitura.<<strong>br</strong> />
A carnificina fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Setem<strong>br</strong>ino <strong>de</strong> Carvalho incluiu mulheres,<<strong>br</strong> />
crianças e velhos. Pequenos grupos conseguiram fugir <strong>de</strong> Santa Maria e<<strong>br</strong> />
formaram outros redutos, os quadros santos. Os civis a serviço do estado<<strong>br</strong> />
<strong>br</strong>asileiro acabaram a tarefa em fins <strong>de</strong> 1915, início <strong>de</strong> 1916. Os últimos<<strong>br</strong> />
a<strong>de</strong>ptos e partidários dos monges foram presos e <strong>de</strong>capitados a golpes <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
facão, foice ou machado. Conta-se que centenas <strong>de</strong> cabeças <strong>de</strong>sfiguradas<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> crianças entre sete e quatorze anos ficaram expostas durante dias na<<strong>br</strong> />
beira das estradas e sangas do que pretendia ser o reino da paz e da justiça<<strong>br</strong> />
dos campos do Irani. O pinheiro, a imbuía e a erva mate da curiirama<<strong>br</strong> />
tornaram-se ru<strong>br</strong>os. Há aqui mesmo, em Diamante, entre loucos, <strong>é</strong><strong>br</strong>ios e<<strong>br</strong> />
quejandos, alguns remanescentes que, por milagre, escondidos nos arroios<<strong>br</strong> />
e córregos <strong>de</strong> sangue, nas grotas, nos lajeados, nas caívas, nas catanduvas<<strong>br</strong> />
e faxinais, sob cadáveres <strong>de</strong>capitados ou em algum capão, conseguiram<<strong>br</strong> />
evadir-se da sanha da injusta estrutura social <strong>br</strong>asileira que o general<<strong>br</strong> />
Setem<strong>br</strong>ino apenas representava. Uma família <strong>de</strong> poloneses do Baixo<<strong>br</strong> />
Diamante, moradores da rua Justiça, ulica justiç, como a chamam, e que,<<strong>br</strong> />
crianças, viveram com os pais a experiência do Contestado po<strong>de</strong> contar<<strong>br</strong> />
minudências <strong>de</strong>ssa batalha final. Ainda que a paz e o reino <strong>de</strong> fartura que os<<strong>br</strong> />
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fi<strong>é</strong>is almejavan fossem tamb<strong>é</strong>m exclu<strong>de</strong>ntes, faz-se mister que a república<<strong>br</strong> />
garanta a paz, o trabalho e o indispensável para a população <strong>br</strong>asileira<<strong>br</strong> />
excluída do processo económico. A guerra contra o nazi-fascismo <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
Hitíer e Mussolini <strong>de</strong>ve tamb<strong>é</strong>m ser travada <strong>de</strong>ntro das nossas próprias<<strong>br</strong> />
instituições e nas estruturas <strong>de</strong> funcionamento do país. Tomar-se-ão <strong>de</strong>snecessários,<<strong>br</strong> />
assim. Canudos e Contestados.<<strong>br</strong> />
Os estados do Paraná e <strong>de</strong> Santa Catarina chegaram a um acordo<<strong>br</strong> />
em 1916 — com a Argentina, as fronteiras tinham sido marcadas em<<strong>br</strong> />
1903, a partir <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcação iniciado em 1895, com o<<strong>br</strong> />
arbítrio do presi<strong>de</strong>nte Cleveland, dos Estados Unidos —, e os limites<<strong>br</strong> />
territoriais foram <strong>de</strong>finitivamente estabelecidos.<<strong>br</strong> />
Permitam-me, mem<strong>br</strong>os e simpatizantes do Grupo <strong>de</strong> Defesa da<<strong>br</strong> />
Democracia, a leitura <strong>de</strong> um pequeno texto do jornal <strong>de</strong> Florianópolis O<<strong>br</strong> />
Estado, <strong>de</strong> 12/08/1916, relativo à entrevista feita na prisão com A<strong>de</strong>odato,<<strong>br</strong> />
o maior estrategista militar dos sertanejos na Guerra do Contestado:<<strong>br</strong> />
Nós, que esperávamos ver nesse instante um bandido cujos traços<<strong>br</strong> />
fisionómicos estivessem a <strong>de</strong>notar a sua filiação entre os <strong>de</strong>generados e os<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong>sclassificados do crime, víamos, pelo contrário, diante <strong>de</strong> nós, um mancebo<<strong>br</strong> />
em todo o vigor da juventu<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma compleição física admirável, esbelto,<<strong>br</strong> />
fronte larga, lábios finos, o superior vestido <strong>de</strong> um buço pouco <strong>de</strong>nso,<<strong>br</strong> />
cabelos negros, olhos <strong>de</strong> azeviche pequenos e <strong>br</strong>ilhantes, <strong>de</strong>ntes claros,<<strong>br</strong> />
perfeitos e regulares, om<strong>br</strong>os largos, estatura mediana, tez acaboclada e<<strong>br</strong> />
rosto levemente alongado.<<strong>br</strong> />
Em 1923, A<strong>de</strong>odato foi morto com dois tiros na ca<strong>de</strong>ia pública <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
Florianópolis. Alegou-se, algo contraditoriamente, ter sido consequência<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> uma tentativa <strong>de</strong> fuga.<<strong>br</strong> />
Elsa juntou as suas folhas, olhou para o fundo da sala e, visivelmente<<strong>br</strong> />
emocionada, disse com voz cansada<<strong>br</strong> />
— Parafraseando Eucli<strong>de</strong>s da Cunha: “Fechemos esta exposição.<<strong>br</strong> />
O Contestado não se ren<strong>de</strong>u.”<<strong>br</strong> />
Ela ainda agra<strong>de</strong>ceu, foi aplaudida, e relem<strong>br</strong>ou que Aldo Ortigão<<strong>br</strong> />
faria, na semana seguinte, uma exposição so<strong>br</strong>e os inúmeros movimentos<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> libertação dos escravos no Brasil, cuja importância a história oficial<<strong>br</strong> />
insiste em ignorar, como o Levante dos males, frisou. Luise Pinto Ramos<<strong>br</strong> />
incumbira-se <strong>de</strong> abordar o estado livre <strong>de</strong> Palmares, com uma palestra<<strong>br</strong> />
intitulada “De Ganga Zumba a Zumbi”, na reunião subsequente.<<strong>br</strong> />
Seguiram-se algumas observações quanto ao movimento do Contestado<<strong>br</strong> />
e à sua relação com os movimentos políticos ocorridos na Europa <strong>de</strong>s<strong>de</strong><<strong>br</strong> />
o início do s<strong>é</strong>culo XX. A reunião encerrou-se às duas horas da manhã <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
sexta-feira.<<strong>br</strong> />
7
O Bruxo do Contestado - Capítulo 21<<strong>br</strong> />
Texto extraído do livro O <strong>br</strong>uxo do Contestado<<strong>br</strong> />
Meta<strong>de</strong> do dinheiro pagou a dívida com o A<strong>de</strong>mir; com a outra<<strong>br</strong> />
meta<strong>de</strong>, Gerd conseguiu comprar, a muito custo, uma vaca, filha da Stille,<<strong>br</strong> />
galinhas, patos, uma ca<strong>br</strong>a e alguns porcos. A novilha era a cara da mãe,<<strong>br</strong> />
só um pouco mais <strong>br</strong>asina, leiteira que só, mansa como um cachorro<<strong>br</strong> />
velho. Deu-lhe o nome <strong>de</strong> Eva. Ele passou horas consertando o estábulo.<<strong>br</strong> />
Trocou fasquias podres, mudou o cercado da vaca <strong>de</strong> lugar, fechou gretas<<strong>br</strong> />
entre as tábuas do rancho.<<strong>br</strong> />
Juta, naquele dia, veio com a conversa <strong>de</strong> que <strong>de</strong>veria trabalhar fora,<<strong>br</strong> />
em casa <strong>de</strong> família, na cida<strong>de</strong>. O salário da serraria, ainda que baixo, pelo<<strong>br</strong> />
menos garantia as compras no armaz<strong>é</strong>m. Agora, sem ele, não dava mais.<<strong>br</strong> />
Gerd se opôs. Aceitou várias empreitadas <strong>de</strong> marcenaria em toda a região.<<strong>br</strong> />
At<strong>é</strong> as janelas da casa <strong>de</strong> Iria e <strong>de</strong> Maja ele consertou, por um preço baixo.<<strong>br</strong> />
Construiu ranchos, arrumou telhados, cortou lenha para o carvoeiro.<<strong>br</strong> />
Mas a incerteza era gran<strong>de</strong>. Juta trabalhar fora, por<strong>é</strong>m, jamais!<<strong>br</strong> />
Ela pon<strong>de</strong>rou os fatos. Disse ter sabido, com o A<strong>de</strong>mir, que a família<<strong>br</strong> />
Jonhasky precisava <strong>de</strong> algu<strong>é</strong>m para trabalhar na limpeza e ajudar na cozinha.<<strong>br</strong> />
Gerd continuava contra. Refugiava-se no estábulo com Eva e lá ficava<<strong>br</strong> />
por horas a eito. Voltava com a boca meio torta, os olhos foscos, e punha-se a<<strong>br</strong> />
afiar o facão no rebolo, um dos seus passatempos preferidos. Interrompia<<strong>br</strong> />
o trabalho, sacava do bolso o fumo-<strong>de</strong>-corda, esmiuçava-o, enrolava o palheiro,<<strong>br</strong> />
acendia-o, dava longas e espessas baforadas e voltava a lâmina ao seixo.<<strong>br</strong> />
Tinha adquirido o hábito <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar o facão perto da vaca, numa fenda entre<<strong>br</strong> />
um sarrafo e a om<strong>br</strong>eira da porta do rancho. Rosa não se acostumara com<<strong>br</strong> />
Eva. Dizia não ser como a Stille. Eva era mocha.<<strong>br</strong> />
Um dia, pela manhã, Gerd, como <strong>de</strong> costume, dirigiu-se ao curral<<strong>br</strong> />
a fim <strong>de</strong> cortar capim para a criação. A<strong>br</strong>iu a tramela da porta e encontrou<<strong>br</strong> />
Rosa, em p<strong>é</strong>, diante <strong>de</strong> Eva, os olhos fixos no animal. A entrada inopinada<<strong>br</strong> />
do pai no rancho não a fez mover um músculo do corpo. Só o olhar transferiuse<<strong>br</strong> />
para os olhos do intruso. Ele tremeu novamente.<<strong>br</strong> />
Desta vez Rosa tinha nas mãos o facão. O olhar <strong>de</strong>la <strong>de</strong> fogo: ameaçador,<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> bicho do mato! Gerd pensou ver pêlos escuros crescendo no corpo<<strong>br</strong> />
daquela mulher; viu a madrasta gritando, os lanhos nas pernas <strong>de</strong> menino,<<strong>br</strong> />
a varanda da casa on<strong>de</strong> tinha passado a infância, o irmão enforcado, a<<strong>br</strong> />
prancha <strong>de</strong> secar frutas dos Bonnatti, a índia Felícia, o guarda índio da<<strong>br</strong> />
serraria com o uniforme azul <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma mancha púrpura, Krüger,<<strong>br</strong> />
Stille com o sangue esguichando, o cabo Arnaldo e o praça, as cabeças<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong>goladas no Contestado, o primo Rodolfo no chão chorando... Saiu à<<strong>br</strong> />
fula do rancho, que<strong>br</strong>ou um galho do pessegueiro ao lado e voltou.<<strong>br</strong> />
8
Rosa ali, imóvel.<<strong>br</strong> />
A primeira varada pegou o pescoço, a segunda o peito, a terceira as<<strong>br</strong> />
pernas, a quarta os <strong>br</strong>aços, com os quais a filha tentou escon<strong>de</strong>r o rosto,<<strong>br</strong> />
a quinta cortou-lhe profundamente a face direita. Rosa caiu,balbuciando:<<strong>br</strong> />
pai! pai!, e saiu do rancho <strong>de</strong> quatro, recebendo, ainda, uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> golpes<<strong>br</strong> />
violentos nas costas. Juta viu a cena. Armou-se <strong>de</strong> uma pá para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a<<strong>br</strong> />
filha, clamando por Deus, gritando para que Gerd parasse e chamando-o<<strong>br</strong> />
assassino. As visões ensur<strong>de</strong>ciam-no. Ele viu com niti<strong>de</strong>z os monges Jos<strong>é</strong><<strong>br</strong> />
e João Maria fitando-o da serra do Taió com olhar severo e censurador,<<strong>br</strong> />
uma mulher falando com Cristo, o reino da paz <strong>de</strong>sabando, o praça que<<strong>br</strong> />
lhe confiscou a vaca Stille arrasando casas, matando velhos e crianças,<<strong>br</strong> />
chicoteando com uma vara <strong>de</strong> pessegueiro o primo <strong>de</strong> cabeça raspada. O<<strong>br</strong> />
único projeto <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> Gerd era passado e <strong>de</strong>smoronava.<<strong>br</strong> />
Os gritos da esposa como que, <strong>de</strong> repente, o acordaram.<<strong>br</strong> />
Ele abaixou-se para levantar a filha. De joelhos, pôs-se a soluçar,<<strong>br</strong> />
pedindo perdão às duas, tentando tocar o sangue que escorria do rosto<<strong>br</strong> />
ferido <strong>de</strong> Rosa. A imagem <strong>de</strong> sua mãe, Sônia Rünnel, preencheu novamente<<strong>br</strong> />
todo o espaço <strong>de</strong> seu pensamento. Porque veio <strong>de</strong> novo, mãe? Por quê?<<strong>br</strong> />
Eu disse para esperar! Os soluços passaram a gritos, e Gerd levantouse<<strong>br</strong> />
a<strong>br</strong>uptamente, apanhou o facão, a espingarda, a garrafa <strong>de</strong> cachaça e<<strong>br</strong> />
entrou no mato urrando. Vinagre foi junto. Juta chorava copiosamente.<<strong>br</strong> />
Rosa só dizia: “Pai, não! Não! Pai, não! Pai, pai, pai, não!” entre soluços<<strong>br</strong> />
e sussurros.<<strong>br</strong> />
Gerd voltou quatro dias <strong>de</strong>pois.<<strong>br</strong> />
A casa estava fechada. Juta tinha aceitado trabalhar nos Jonhasky,<<strong>br</strong> />
que já a conheciam, principalmente por sua habilida<strong>de</strong> culinária. Aceitaram,<<strong>br</strong> />
a<strong>de</strong>mais, <strong>de</strong> bom grado, que Rosa viesse com a mãe, a única reivindicação<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> Juta aos novos patrões.Clara U<strong>de</strong>nreich, a vizinha e avó da guriazinha<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> cabelos escorridos, cuidava dos animais em Alto Diamante.<<strong>br</strong> />
9
Marcelino Nam<strong>br</strong>a,<<strong>br</strong> />
o manumisso - Capítulo 1<<strong>br</strong> />
Texto extraído do livro Marcelino Nanm<strong>br</strong>á, o manumisso<<strong>br</strong> />
A noite voltou, assim, <strong>de</strong> repente. O alaranjado do sol ia surgindo,<<strong>br</strong> />
a Divino Espírito Santo tinha atravessado a linha <strong>de</strong> arrebentação, Marcelino<<strong>br</strong> />
içado a rústica vela, já quase saíam da baía <strong>de</strong> Praia do Nego Forro quando<<strong>br</strong> />
a noite toldada voltou, assim, <strong>de</strong> uma hora para a outra. O clarão insinuante<<strong>br</strong> />
lá atrás da fím<strong>br</strong>ia <strong>de</strong> água do horizonte se embaciou, nuvens espessas<<strong>br</strong> />
foram enco<strong>br</strong>indo a <strong>br</strong>asa nascente, Maneco, em p<strong>é</strong>, apontava, nervoso,<<strong>br</strong> />
na direção da barra, Lino, na popa, parou <strong>de</strong> remar. A Divino recebia no<<strong>br</strong> />
nariz um sopro cada vez mais forte, o mesmo que zunia na sua vela retesada e<<strong>br</strong> />
nas orelhas dos seus tripulantes. Maneco olhou firme nos olhos <strong>de</strong> Marcelino<<strong>br</strong> />
como se dissesse <strong>é</strong> melhor a gente voltar, não tem? Marcelino não esperou.<<strong>br</strong> />
O rebojo vem forte, Maneco, quando aparece assim <strong>de</strong> repente <strong>é</strong> pior<<strong>br</strong> />
que a pior das lestadas, vamos voltar ligeiro, recolhe a vela, gritou para<<strong>br</strong> />
um contra-mestre atarantado, não, rema antes, rema pró outro lado, aí,<<strong>br</strong> />
não, nesse lado não, do outro, o ajudante fazia que sim com a cabeça,<<strong>br</strong> />
acho melhor o outro remo, acho melhor o outro remo,repetia aos berros<<strong>br</strong> />
Marcelino aflito, Maneco, equili<strong>br</strong>ando o material na Divino, respondia<<strong>br</strong> />
que não com o <strong>de</strong>do em movimentos rápidos, tem muito peso <strong>de</strong> um<<strong>br</strong> />
lado só, larga o remo, espalha as coisas, homem, o contramestre, mal e<<strong>br</strong> />
mal se equili<strong>br</strong>ando, ia esticando a re<strong>de</strong> amontoada na frente da canoa,<<strong>br</strong> />
voltava para o remo, levantava, remava <strong>de</strong> novo.<<strong>br</strong> />
A embarcação, arrojada pela ventania, ia saindo da baía <strong>de</strong> Praia<<strong>br</strong> />
do Nego Forro, o vento aumentava, as rajadas balançavam o tronco <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
garapuvu, a Divino tremia. As luzes ainda acesas nas duas extremida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
Praia do Nego Forro — uma <strong>de</strong>las era da casa do senador, a Vïlla Faial,<<strong>br</strong> />
a outra da venda do seu Ézio — tremeluziam, cuidado Maneco, bo- ta<<strong>br</strong> />
tento, as ondas tão vindo <strong>de</strong> todo lado, <strong>br</strong>adava, já rouco, Marcelino, <strong>de</strong>ixa<<strong>br</strong> />
que eu recolho a vela, vai remando com força.<<strong>br</strong> />
Maneco agitava-se, remava, arrumava as tralhas, ajeitava a trouxa<<strong>br</strong> />
com o farnel, respirava ruidosamente, apiançado, vogava com firmeza.<<strong>br</strong> />
As lufadas batiam violentas ora no bojo ora no beque ora na proa.<<strong>br</strong> />
A Divino Espírito Santo voava em círculos por so<strong>br</strong>e respingos e espumas<<strong>br</strong> />
salgadas. Não <strong>de</strong>ixa rebojar, Maneco, rema do outro lado, embica na direção<<strong>br</strong> />
do seu Ézio, do outro lado, Maneco, do outro lado, a gente tá entrando<<strong>br</strong> />
no re<strong>de</strong>moinho, o Sete-Cuias hoje tá <strong>de</strong>sgraçado, <strong>de</strong>ixa que eu remo <strong>de</strong>sse<<strong>br</strong> />
lado, vociferava Marcelino. As poucas e distantes luzes <strong>de</strong> Praia do Nego<<strong>br</strong> />
Forro tamb<strong>é</strong>m se revezavam, numa remada postavam-se à direita, logo<<strong>br</strong> />
apareciam à esquerda, o garapuvu rodava indiferente ao esforço do remo<<strong>br</strong> />
e do leme <strong>de</strong> Marcelino e <strong>de</strong> Maneco. Vai tirando a água <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, or<strong>de</strong>nava<<strong>br</strong> />
o mestre.<<strong>br</strong> />
10
Fuzis cortavam os c<strong>é</strong>us e entranhavam-se no mar. Trovões estouravam.<<strong>br</strong> />
Começou a chover fino.<<strong>br</strong> />
Maneco volta e meia se acocorava e enfiava a mão entre os sarrafos<<strong>br</strong> />
do paneiro. A figa contra o mau-olhado continuava lá, <strong>de</strong>baixo do tablado<<strong>br</strong> />
no fundo da canoa, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>bateriam e amontoariam os peixes fisgados.<<strong>br</strong> />
O pampeiro assobiava nas ventas e nos ouvidos dos dois pescadores<<strong>br</strong> />
e vomitava água na palamenta espalhada pela Divino Espírito Santo, Maneco,<<strong>br</strong> />
tragueado, virava-se <strong>de</strong> um lado para outro e, tal Danai<strong>de</strong> <strong>é</strong><strong>br</strong>ia, tentava,<<strong>br</strong> />
com uma gran<strong>de</strong> cuia, esvaziar o mar acumulado no fundo da canoa. O<<strong>br</strong> />
dia tentava trespassar a cortina <strong>de</strong> nuvem. Marcelinolargara a cana do<<strong>br</strong> />
leme e remava compulsivamente, já não alternava o lado, vogava agora<<strong>br</strong> />
sempre do mesmo bordo, como a dar mais impulso ao girar, Maneco<<strong>br</strong> />
fitou o companheiro, enten<strong>de</strong>u a mano<strong>br</strong>a, e continuou a sua faina.<<strong>br</strong> />
O tronco <strong>de</strong> garapuvu, pen<strong>de</strong>ndo para um lado, seguia rodando, o<<strong>br</strong> />
vento silvando, a gran<strong>de</strong> enseada <strong>de</strong> Praia do Nego Forro borrifando com<<strong>br</strong> />
gotas gigantescas as feições crispadas e soturnas dos dois pescadores.<<strong>br</strong> />
O rodopio continuou por algum tempo, cada vez mais rápido. Os<<strong>br</strong> />
dois tripulantes mareados. Me ajuda a remar do mesmo lado, Maneco, temos<<strong>br</strong> />
que sair da roda.<<strong>br</strong> />
A Vilia Faial e a venda do seu Ézio ao longe ainda apareceram três<<strong>br</strong> />
ou quatro vezes, ora do lado esquerdo, ora do direito, at<strong>é</strong> que a quilha<<strong>br</strong> />
da Divino Espírito Santo ultrapassou, num farfalho espúmeo, o círculo do<<strong>br</strong> />
re<strong>de</strong>moinho e, empurrada pelo bojo, logo pela popa, a canoa foi cuspida,<<strong>br</strong> />
num safanão, fora do vórtice.<<strong>br</strong> />
O arrais e o contramestre se olharam. Agora vamos pró outro lado,<<strong>br</strong> />
Maneco, me ajuda a remar, camba pro costão gran<strong>de</strong>, pras bandas da casa<<strong>br</strong> />
do senador, na direção da croa. O banco <strong>de</strong> areia estava encoberto pelo mar<<strong>br</strong> />
encrespado, mas os marinheiros conheciam bem a sua posição, por ali, na<<strong>br</strong> />
entrada da baía <strong>de</strong> Praia do Nego Forro, mais para o lado do costão gran<strong>de</strong>.<<strong>br</strong> />
O vento continuava a soprar com energia, as ondas se mantinham<<strong>br</strong> />
vigorosas, as rajadas, no entanto, passaram a vir com regularida<strong>de</strong> do Sul,<<strong>br</strong> />
o que facilitava a navegação. Passou a chover forte. A venda do seu Ézio e<<strong>br</strong> />
a casa do doutor Nazareno <strong>de</strong>sapareceram mergulhadas no temporal. Os<<strong>br</strong> />
dois companheiros remavam com convicção. O cacau veio tar<strong>de</strong>, Maneco,<<strong>br</strong> />
nós já estamos molhados at<strong>é</strong> as espinhas, ainda zombou Marcelino, mais<<strong>br</strong> />
aliviado com a uniformida<strong>de</strong> do vento. Nesse exato momento a Divino Espírito<<strong>br</strong> />
Santo levou um tranco na proa, foi como um tapa gigantesco que tivesse<<strong>br</strong> />
acertado exatamente na ma<strong>de</strong>ira pregada na parte da frente da quilha<<strong>br</strong> />
usada para evitar o <strong>de</strong>sgaste do garapuvu on<strong>de</strong> o atrito com as ondas era<<strong>br</strong> />
maior. O vagalhão <strong>de</strong>sparelhado e inesperado, empuxado por lestada curta<<strong>br</strong> />
e solitária, que bateu na subsão da quilha levantou a proa da Divino Espírito<<strong>br</strong> />
Santo a altura tal que, na volta, a canoa, <strong>de</strong>sequili<strong>br</strong>ada, tombou do lado<<strong>br</strong> />
esquerdo, mas se endireitou. Espinheis, garat<strong>é</strong>ias, a tarrafa, a re<strong>de</strong>, remos,<<strong>br</strong> />
puçás, a verga <strong>de</strong> bambu, tralhas com bóias, iscas, a trouxa com cuscuz<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> milho espalharam-se na água em volta da embarcação. Marcelino<<strong>br</strong> />
11
conseguiu segurar-se no banco da vela, Maneco se equili<strong>br</strong>ou como pô<strong>de</strong>,<<strong>br</strong> />
agadanhado nas bordas da Divino.<<strong>br</strong> />
Mantiveram-se ambos imóveis por alguns segundos, temerosos <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
uma nova onda traiçoeira. As albitanas da re<strong>de</strong> tinham prendido no capelo<<strong>br</strong> />
da canoa. Marcelino foi o primeiro a reagir. Salva a re<strong>de</strong>, Maneco, puxa<<strong>br</strong> />
pra <strong>de</strong>ntro, a malineza do Demo ficou na meta<strong>de</strong>.<<strong>br</strong> />
Marcelino segurava o leme. O leme tá diferente, Maneco, tá diferente,<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong>u algum problema. Maneco, se aprumando na ma<strong>de</strong>ira azul, tr<strong>é</strong>mulo, <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>u<<strong>br</strong> />
as malhas da ponta do beque e lentamente foi puxando a pesada re<strong>de</strong> para<<strong>br</strong> />
o interior da canoa, no final da tarefa encontrou tempo para apertar a figa,<<strong>br</strong> />
ela estava ainda lá, fagueira, ele fez o sinal-da-cruz, Marcelino o imitou.<<strong>br</strong> />
O barco ainda on<strong>de</strong>ou solto, arrastado, <strong>br</strong>inquedo <strong>de</strong> ventos e águas, por<<strong>br</strong> />
quase uma hora.<<strong>br</strong> />
Nesse sábado não houve pesca para quase ningu<strong>é</strong>m. Só mestre Janjão<<strong>br</strong> />
conseguiu parte <strong>de</strong> uma pequena manta <strong>de</strong> tainha e uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> linguados.<<strong>br</strong> />
A Divino Espírito Santo, sem remos, sem mantimentos e material <strong>de</strong> pesca,<<strong>br</strong> />
o leme avariado, foi rebocada at<strong>é</strong> a praia. Outras embarcações tamb<strong>é</strong>m<<strong>br</strong> />
passaram maus momentos. Uma baleeira — do mestre Abelardo — se<<strong>br</strong> />
estraçalhou contra os rochedos do costão <strong>de</strong> Itapema. Os seus tripulantes,<<strong>br</strong> />
sentindo o perigo, tinham se jogado na água e foram salvos por um navio<<strong>br</strong> />
da salga <strong>de</strong> Itajaí. Não houve mortos, para o padre Arlindo da capela <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
Praia do Nego Forro foi um milagre. At<strong>é</strong> dona Edn<strong>é</strong>ia, professora da escola<<strong>br</strong> />
primária Luís Delfino, da vizinha Santo António <strong>de</strong> Lisboa e moradora<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> Nego Forro, veio engrossar o coro, as rezas e as testas rociadas <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
água-benta em agra<strong>de</strong>cimento a Deus.<<strong>br</strong> />
Dona Edn<strong>é</strong>ia, na saída da capela, entre conversas <strong>de</strong> greves no porto<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> Itajaí, submarinos que ameaçavam barcos <strong>br</strong>asileiros, <strong>de</strong> racionamento<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> gasolina e escassez <strong>de</strong> alguns gêneros alimentícios não cessava <strong>de</strong> relem<strong>br</strong>ar<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> seu aluno.<<strong>br</strong> />
Foi at<strong>é</strong> o terceiro ano, se a avó não tivesse morrido conseguia acabar<<strong>br</strong> />
o primário, um dos melhores alunos, asseado e aplicado, o avô foi escravo<<strong>br</strong> />
e <strong>de</strong>pois trabalhou para o coronel Laurindo na cida<strong>de</strong> vindo lá das bandas <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
Hamônia, a avó era meio índia daquele fim <strong>de</strong> mundo ainda mais pra cima,<<strong>br</strong> />
lá pro alto da serra, vieram pra cá fugidos do posto dos índios, Marcelino<<strong>br</strong> />
não conheceu nem pai nem mãe, pai conhecido não tinha mesmo e a<<strong>br</strong> />
mãe morreu parindo, veio com os velhos nenenzinho, Marcelino Alves<<strong>br</strong> />
Nanm<strong>br</strong>á dos Santos, nunca esqueci o nome <strong>de</strong>le, dizia que Nanm<strong>br</strong>á tinha<<strong>br</strong> />
que ser escrito separado Nanm<strong>br</strong>a, erraram no cartório, era <strong>de</strong> pouca fala,<<strong>br</strong> />
quase sempre quieto num canto, <strong>é</strong> bom rapaz, todo mundo diz bom pescador,<<strong>br</strong> />
mas as pessoas falam que ele <strong>é</strong> <strong>de</strong> poucas palavras, então continua o mesmo,<<strong>br</strong> />
igualzinho ao que era antes, não se libertou pra valer, não saiu bem da casca<<strong>br</strong> />
do ovo, tá preso a alguma coisa por <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, não sei, mas um dia vai<<strong>br</strong> />
se soltar, vai encontrar a sua liberda<strong>de</strong>.<<strong>br</strong> />
A professora se aproximou <strong>de</strong> Marcelino na saída da missa, conversaram<<strong>br</strong> />
Deus te abençoe meu filho, a bênção dona Edn<strong>é</strong>ia, quantos anos agora,<<strong>br</strong> />
12
<strong>de</strong>zesseis, <strong>de</strong>zessete? Vou fazer <strong>de</strong>zessete dona Edn<strong>é</strong>ia, te cuida então Marcelino<<strong>br</strong> />
Alves Nanm<strong>br</strong>á dos Santos, Nan-m<strong>br</strong>a separado, eu me lem<strong>br</strong>o, te cuida<<strong>br</strong> />
pescador, sim senhora, dona Edn<strong>é</strong>ia, sim senhora, o<strong>br</strong>igado. A tempesta<strong>de</strong><<strong>br</strong> />
<strong>de</strong>sa<strong>br</strong>ida já no primeiro mês do ano foi o assunto mais importante no<<strong>br</strong> />
domingo entre os pescadores na rinha <strong>de</strong> galo e canários <strong>de</strong> <strong>br</strong>iga, aon<strong>de</strong><<strong>br</strong> />
Marcelino sempre ia após a missa, e no armaz<strong>é</strong>m do seu Ézio.<<strong>br</strong> />
13
Marcelino Nam<strong>br</strong>a,<<strong>br</strong> />
o manumisso - Capítulo 37<<strong>br</strong> />
Texto extraído do livro Marcelino Nanm<strong>br</strong>á, o manumisso<<strong>br</strong> />
No domingo <strong>de</strong> manhã o senador apareceu na rinha <strong>de</strong> <strong>br</strong>iga<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong>canários. Os apostadores estavam tensos, os pássaros amarelos batiam-se<<strong>br</strong> />
ferozmente no meio da arena, no interior <strong>de</strong> uma das gaiolas sob o olhar<<strong>br</strong> />
complacente das respectivas fêmeas pardas isoladas em compartimentos<<strong>br</strong> />
menores.<<strong>br</strong> />
Doutor Nazareno sentou no fundo, só os que estavam <strong>de</strong> frente<<strong>br</strong> />
notaram sua presença. Em certo momento, um corrichado mais longo<<strong>br</strong> />
indicou que um dos canários fugira e se <strong>de</strong>batia, sem a pompa e a pose<<strong>br</strong> />
do início da refrega, contra as varetas <strong>de</strong> taquara da sua gaiola ao lado<<strong>br</strong> />
do compartimento da fêmea <strong>de</strong>samparada. Todos se acercaram das duas<<strong>br</strong> />
gaiolas encostadas, trataram <strong>de</strong> separar os machos.<<strong>br</strong> />
O pássaro <strong>de</strong> Abelardo — o do aci<strong>de</strong>nte nos costões <strong>de</strong> Itapema<<strong>br</strong> />
— era o vencedor, o do mestre António, o corrido, como chamaram.<<strong>br</strong> />
Dia da revanche <strong>de</strong> Abelardo, não por conta do aci<strong>de</strong>nte com a sua baleeira,<<strong>br</strong> />
mas por seu galo inglês Adamastor, que nessa mesma rinha, num<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong>sses domingos passados, foi quase arrebentado pêlos esporões do<<strong>br</strong> />
galo <strong>de</strong> nome Pirata <strong>de</strong> um comerciante <strong>de</strong> Santo António <strong>de</strong> Lisboa.<<strong>br</strong> />
Adamastor saiu cego, ensanguentado e manco para sempre, virou galo<<strong>br</strong> />
cozido um mês <strong>de</strong>pois.<<strong>br</strong> />
Abelardo apostou uma boa soma naquela luta, recuperava um<<strong>br</strong> />
pouco do dinheiro agora com o seu canário <strong>de</strong> <strong>br</strong>iga.<<strong>br</strong> />
Era talvez a única situação e espaço em que o senador se mantinha<<strong>br</strong> />
como qualquer um e os pescadores <strong>de</strong> Praia do Nego Forro o tratavam<<strong>br</strong> />
como um <strong>de</strong>les. Findo o espetáculo, claro, a autorida<strong>de</strong> do doutor<<strong>br</strong> />
Nazareno voltava com toda a liturgia.<<strong>br</strong> />
O senador aproveitou então para pôr a plat<strong>é</strong>ia a par dos acontecimentos<<strong>br</strong> />
do Rio <strong>de</strong> Janeiro, seus eleitores mereciam todo o respeito.<<strong>br</strong> />
Agora vocês imaginam, a Eve, que todos sabiam ser alemã, jurava <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
p<strong>é</strong>s juntos que <strong>de</strong>testava a i<strong>de</strong>ologia nazista, as crianças a adoravam,<<strong>br</strong> />
Marcelino foi envolvido nessa história mas foi graças a um cidadão <strong>de</strong>sta<<strong>br</strong> />
belíssima Praia do Nego Forro que o Brasil escapou das garras da águia<<strong>br</strong> />
nazista, amanhã mesmo ou <strong>de</strong>pois viajo para o Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> avião,<<strong>br</strong> />
minha esposa permanece mais alguns dias, viaja pelo Hoepke, tem pavor<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> alturas, está tudo bem com a minha filha Sibila, Marcelino chegará em<<strong>br</strong> />
<strong>br</strong>eve, nos cruzaremos, eu, minha família e ele, no mar e no ar. Mas o que<<strong>br</strong> />
me traz aqui hoje, meus caros conterrâneos, não <strong>é</strong> a infelicida<strong>de</strong> que se<<strong>br</strong> />
abateu momentaneamente so<strong>br</strong>e a minha casa, não, Eve foi um episódio<<strong>br</strong> />
nefasto que está terminado, pretendo, em contrapartida, inscrever todos,<<strong>br</strong> />
absolutamente todos os pescadores <strong>de</strong> Praia do Nego Forro e <strong>de</strong> Santo<<strong>br</strong> />
14
António <strong>de</strong> Lisboa no Instituto <strong>de</strong> Aposentados e Pensões dos Marítimos<<strong>br</strong> />
que, apesar <strong>de</strong> já existir há nove anos, criado pelo nosso excelentíssimo<<strong>br</strong> />
presi<strong>de</strong>nte da República, não tem o registro <strong>de</strong> todos, os benefícios são<<strong>br</strong> />
inúmeros e vocês estão contemplados no item G dos estatutos do referido<<strong>br</strong> />
instituto, at<strong>é</strong> hoje à noite, por favor, queiram <strong>de</strong>ixar no armaz<strong>é</strong>m do seu<<strong>br</strong> />
Ézio nomes, tarefa precisa na indústria da pesca e número <strong>de</strong> carteira <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, o Brasil tem que crescer, ter fá<strong>br</strong>icas, chamin<strong>é</strong>s subindo aos<<strong>br</strong> />
c<strong>é</strong>us, movimento nas ruas, emprego pras pessoas, fim da intolerância e<<strong>br</strong> />
do racismo, bom domingo a todos. Ouviu-se em coro, como resposta, a<<strong>br</strong> />
palavra o<strong>br</strong>igado.<<strong>br</strong> />
Marcelino viajou num navio cargueiro, o Rio dos Cedros, dormia<<strong>br</strong> />
numa cama improvisada no <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e <strong>de</strong> placas <strong>de</strong> aço.<<strong>br</strong> />
Completou <strong>de</strong>zessete anos no trajeto, pensou na vó Chiquinha, viu-a sorrindo,<<strong>br</strong> />
adormeceu uma noite pensando nela, no sonho que teve a Divino Espírito<<strong>br</strong> />
Santo se alternava com a pequena Nossa Senhora dos Pretos oferecida pelo<<strong>br</strong> />
amigo Tião.<<strong>br</strong> />
A viagem levou doze dias. O navio fez escala em Santos e Paranaguá.<<strong>br</strong> />
Em certo momento, entre Paranaguá e Itajaí, algu<strong>é</strong>m apontou para um<<strong>br</strong> />
gran<strong>de</strong> navio que navegava em sentido inverso, <strong>é</strong> o Hoepke indo para o<<strong>br</strong> />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, disseram no conv<strong>é</strong>s do Rio dos Cedros.<<strong>br</strong> />
O Rio dos Cedros aportou em Florianópolis numa manhã cinzenta,<<strong>br</strong> />
chovia fino, Marcelino <strong>de</strong>sembarcou do navio ainda mareado, carregava<<strong>br</strong> />
a pequena mala, no guichê perto do portão <strong>de</strong> saída um cartaz colado<<strong>br</strong> />
na vitrine mural exibia com letras gran<strong>de</strong>s a<strong>br</strong>il, sábado <strong>de</strong> aleluia, boa<<strong>br</strong> />
páscoa, seja bem-vindo a Florianópolis, Marcelino se <strong>de</strong>teve por algum<<strong>br</strong> />
tempo diante do letreiro, só mais alguns dias pra fazer um ano que a<<strong>br</strong> />
vó Chiquinha morreu, se tivesse voltado mais cedo naquele dia acho<<strong>br</strong> />
que dava pra salvar ela da falta <strong>de</strong> ar medonha e assassina, a saída <strong>é</strong> por<<strong>br</strong> />
ali mesmo, avisou-lhe um funcionário do porto, o pescador atravessou<<strong>br</strong> />
o portão <strong>de</strong> ferro, o andar flexuoso pelos paralelepípedos molhados<<strong>br</strong> />
das cercanias do porto repetiram o balanço do Rio dos Cedros, com<<strong>br</strong> />
o dinheiro que lhe <strong>de</strong>ra Éldio hesitou entre o velho ônibus e o gran<strong>de</strong><<strong>br</strong> />
carro-<strong>de</strong>-mola puxado por duas parelhas <strong>de</strong> mulas que fazia o trajeto<<strong>br</strong> />
mercado municipal-Santo António <strong>de</strong> Lisboa em três etapas, optou pelo<<strong>br</strong> />
gran<strong>de</strong> carro-<strong>de</strong>-mola, mais barato, o cheiro do pêlo encharcado dos<<strong>br</strong> />
muares, da maresia misturada ao das r<strong>é</strong><strong>de</strong>as molhadas, do toldo perlando<<strong>br</strong> />
chuva, o ruído dos cascos ferrados no barro da estrada, do chicote nas ancas<<strong>br</strong> />
dos animais, a visão do recorte das montanhas no continente, à esquerda,<<strong>br</strong> />
do mar asperso pela garoa persistente, a bal<strong>de</strong>ação, novo carro-<strong>de</strong>-mola<<strong>br</strong> />
puxado por cavalos tordilhos, outra troca, voltam mulas passarinheiras<<strong>br</strong> />
com antolhos, Santo António <strong>de</strong> Lisboa.<<strong>br</strong> />
Desceu cabisbaixo na pequena freguesia, se realizava no Centro o<<strong>br</strong> />
boi-na-vara, o animal investia contra o boneco, a vara vergada retornava<<strong>br</strong> />
à posição vertical, o boi tentava fugir, o boneco <strong>de</strong>scia novamente perto<<strong>br</strong> />
dos chifres, nova investida do boi.<<strong>br</strong> />
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Todos reconheceram Marcelino, ele não olhou para ningu<strong>é</strong>m,<<strong>br</strong> />
seguiu a p<strong>é</strong> pela estrada, uma carroça lhe ofereceu transporte, respon<strong>de</strong>u<<strong>br</strong> />
negativamente com a cabeça, no meio do caminho sentiu um calafrio,<<strong>br</strong> />
a enseada <strong>de</strong> Praia do Nego Forro surgiu <strong>de</strong> repente na virada <strong>de</strong> uma<<strong>br</strong> />
das curvas, o mar estava prateado, esquadrinhado por traços <strong>br</strong>ilhantes<<strong>br</strong> />
e salpicado <strong>de</strong> rendas, Marcelino diminuiu o passo, tonto, uma escuridão<<strong>br</strong> />
escon<strong>de</strong>u-lhe a paisagem, sentou-se na estrada empoeirada, ali ficou,<<strong>br</strong> />
por um bom tempo, a luz foi pouco a pouco voltando aos seus olhos,<<strong>br</strong> />
levantou-se e seguiu caminho.<<strong>br</strong> />
Uma aglomeração a esperá-lo já se formara. Marcelino passou<<strong>br</strong> />
por todos quieto, tamb<strong>é</strong>m os outros estavam quietos, Martinha não<<strong>br</strong> />
estava, Tião a<strong>br</strong>açou o amigo pela cintura e o acompanhou at<strong>é</strong> a porta<<strong>br</strong> />
da casa, o senador contou tudo pra gente, Lino, os Di Montibellos foram<<strong>br</strong> />
embora há duas semanas ou mais no Hoepke, o senador foi antes <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
avião, a dona Emma ficou um pouco mais pra resolver algumas coisas,<<strong>br</strong> />
vocês <strong>de</strong>vem ter se cruzado no mar e no ar, o Crodoaldo tá preso, o<<strong>br</strong> />
Maneco, coitado, não pô<strong>de</strong> vir, tá <strong>de</strong> cama pra mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z dias, dizem<<strong>br</strong> />
que <strong>é</strong> tripa virada das s<strong>é</strong>rias, a comida empedrou na barriga, o Salim<<strong>br</strong> />
das Maletas passou e prometeu trazer um rem<strong>é</strong>dio estrangeiro pra<<strong>br</strong> />
pedra no rim que funciona pra essas coisas, mas ele tá um pouquinho<<strong>br</strong> />
melhor, tá tomando chá <strong>de</strong> picão e <strong>de</strong> que<strong>br</strong>a-pedra, fica com Deus,<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong>scansa, os teus passarinhos estão bem, tudo está em or<strong>de</strong>m, vamos<<strong>br</strong> />
embora gente, disse Tião, <strong>de</strong>ixa o nosso Marcelino <strong>de</strong>scansar, ele precisa.<<strong>br</strong> />
O ajuntamento se <strong>de</strong>sfez em silêncio.<<strong>br</strong> />
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