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As Confissões de S. Agostinho: retóricas da fé José M. Silva Rosa

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Acontece, porém, que não estamos hoje em boa posição para apreciar<br />

tal novi<strong>da</strong><strong>de</strong> agostiniana. Somos her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> uma mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> que parece<br />

ter percorrido todos os caminhos <strong>da</strong> subjectivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os mais transparentes<br />

– <strong>de</strong> Descartes a Husserl – até os mais escabrosos e obscuros: Marquês<br />

<strong>de</strong> Sa<strong>de</strong>, S. Freud, J.-P. Sartre et alii. Com efeito, po<strong>de</strong>mos até ficar<br />

incomo<strong>da</strong>dos e sentir-nos agredidos ou manipulados com o género confessional,<br />

fartos que estamos <strong>da</strong> atroz e <strong>de</strong>spudora<strong>da</strong> exposição pública <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

em programas televisivos (<strong>de</strong> teor familiar, amoroso, religioso, etc.),<br />

on<strong>de</strong> proliferam os programas-confessionário, bem assim os temas do jornalismo<br />

tablói<strong>de</strong> e persecutório que <strong>de</strong>vassa a vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>. Parece que o espaço<br />

público <strong>da</strong> pólis, mercê do apelo mediático, se transformou em vomitório<br />

público. Já não há palavra, mas ruídos e <strong>de</strong>jectos no meio dos quais ca<strong>da</strong> um<br />

clama pelo seu minuto <strong>de</strong> protagonismo, exibindo (literalmente) o umbigo<br />

narcísico e o seu fetiche, querendo erigir a pequenina história mais ou menos<br />

bizarra, em gran<strong>de</strong> narrativa e mo<strong>de</strong>lo universalizável, mesmo à custa <strong>de</strong><br />

expor a vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong> e esventrar a digni<strong>da</strong><strong>de</strong> pessoal. Afirma G. Steiner, criticando<br />

a patologia do actual <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> exposição mediática:<br />

(...) Detesto esta explosão <strong>de</strong> indiscrição total que caracteriza a nossa época, on<strong>de</strong><br />

não há mais vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>. Esta doença <strong>da</strong> confissão não me interessa. É uma coisa<br />

que <strong>de</strong>strói a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> haver política em <strong>de</strong>mocracia, porque ninguém po<strong>de</strong><br />

sobreviver a um exame minucioso <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> <strong>de</strong>talhe <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong>: sabemo-lo<br />

bem; tal <strong>de</strong>strói uma certa digni<strong>da</strong><strong>de</strong> interior... 17<br />

Dizíamos supra: o facto <strong>de</strong> a nossa época e o nosso espaço público,<br />

mercê <strong>da</strong> hiper-mediatização, estarem cativos <strong>da</strong> proliferação <strong>de</strong> subjectivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

selvagens, patológicas e <strong>de</strong> historietas pessoais, não nos aju<strong>da</strong> a compreen<strong>de</strong>r<br />

historicamente a novi<strong>da</strong><strong>de</strong> agostiniana, correndo até o risco <strong>de</strong>,<br />

anacronicamente, a associarmos a este fenómeno. Com efeito, as <strong>Confissões</strong><br />

parece que também se alimentam <strong>de</strong> algo semelhante: a difusão mais ou<br />

menos controla<strong>da</strong> dos primeiros nove livros, cujo rumor não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ir<br />

além <strong>de</strong>sse pequeno círculo, <strong>de</strong>ve ter acirrado o voyeurisme <strong>da</strong> parte <strong>de</strong> mui-<br />

17 «George Steiner sort “Errata” et crève le petit écran», in Construire, nº 39, 22 <strong>de</strong> septembre <strong>de</strong> 1998: «(...)<br />

Je déteste ce déferlement <strong>de</strong> l'indiscrétion totale qui caractérise notre époque, où il n'y a plus <strong>de</strong> vie privée. Cette<br />

maladie <strong>de</strong> la confession ne m'intéresse pas. C'est une chose qui détruit la possibilité <strong>de</strong> la politique en démocratie,<br />

car personne ne peut survivre à un examen minutieux <strong>de</strong> chaque détail <strong>de</strong> sa vie privée: nous le savons, grands<br />

dieux! ça détruit une certaine dignité intérieure...»<br />

josé m. silva rosa di<strong>da</strong>skalia xxxvii (2007)2

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