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As Confissões de S. Agostinho: retóricas da fé José M. Silva Rosa

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tornar o auditor benevolente, atento ou dócil <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o exórdio, mas que os <strong>de</strong>fensores<br />

do ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, porém, não o <strong>de</strong>vem saber? Então uns <strong>de</strong>veriam apresentar as<br />

coisas falsas com concisão (breuiter), clari<strong>da</strong><strong>de</strong> (aperte), verosimilhança (uerisimiliter),<br />

e os outros apresentar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> tornando-a fastidiosa <strong>de</strong> ouvir (ut audire tae<strong>de</strong>at),<br />

difícil <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r (intellegere non pateat) e, por fim, <strong>de</strong>sagradável <strong>de</strong><br />

crer (cre<strong>de</strong>re non libeat)? Os primeiros, através <strong>de</strong> argumentos falaciosos (fallacibus<br />

argumentis), atacariam a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> (ueritatem oppugnent) e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>riam a<br />

mentira (adserant falsitatem), os segundos seriam incapazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />

e <strong>de</strong> refutar o falso! Os primeiros arrastando e empurrando o espírito dos ouvintes<br />

para o erro, <strong>de</strong>ixá-los-iam aterrados com os seus discursos, entristecê-los-iam,<br />

alegrá-los-iam e exortá-los-iam com ardor; os outros, preguiçosos e arrefecidos ao<br />

serviço <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, adormeceriam! Quem será tão irracional que assim pense?<br />

Uma vez, pois, que a arte <strong>da</strong> palavra está à nossa disposição, com tão gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> persuasão, quer se trate do mal quer se trate do bem, por que razão é que os homens<br />

<strong>de</strong> bem não <strong>de</strong>veriam <strong>de</strong>dicar-se com ardor a adquiri-la, a fim <strong>de</strong> combater<br />

ao serviço <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, se os maldosos a usurpam para fazer triunfar as causas perversas<br />

e vãs, em prol <strong>da</strong> iniqui<strong>da</strong><strong>de</strong> e do erro?<br />

No âmbito <strong>da</strong> evolução intelectual e religiosa <strong>de</strong> <strong>Agostinho</strong> – o estu<strong>da</strong>nte<br />

<strong>de</strong> retórica, em Ma<strong>da</strong>ura e Cartago, <strong>de</strong>slumbrado com <strong>da</strong>s divin<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

pagãs; o estóico leitor <strong>de</strong> Cícero; o ouvinte maniqueu; o admirador dos<br />

cépticos; o neoplatónico; o convertido, enfim, ao cristianismo –, este texto<br />

<strong>de</strong> De Doctrina christiana coloca um problema crucial ao autor <strong>da</strong>s <strong>Confissões</strong>:<br />

a íntima palavra <strong>da</strong> convicção e <strong>da</strong> <strong>fé</strong> (verbum animo impressum), a ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

irrefragável <strong>de</strong> uma experiência interior, po<strong>de</strong>, sem se trair, ser<br />

expressa (verbum expressum), ser trazi<strong>da</strong> ao espaço público <strong>de</strong> uma plurali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> outras palavras, <strong>de</strong>vendo aí conviver com elas, com possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ser acolhi<strong>da</strong> e aplaudi<strong>da</strong> – e as <strong>Confissões</strong> foram-no como nenhuma outra<br />

obra, ain<strong>da</strong> em vi<strong>da</strong> do autor 1–, mas também po<strong>de</strong>r ser rebati<strong>da</strong>, relativiza<strong>da</strong>,<br />

contesta<strong>da</strong>, recusa<strong>da</strong>, ridiculariza<strong>da</strong>? A pretensão à ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

sobretudo quando invoca uma revelação religiosa transcen<strong>de</strong>nte, não comporta<br />

eo ipso a recusa <strong>da</strong>s pretensões <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> dos outros discursos concorrentes<br />

em presença? Não haverá nessa pretensão uma dissimetria<br />

inultrapassável?<br />

1 De Dono perseuerantiae, 53: «Quid autem meorum opusculorum frequentius et <strong>de</strong>lectabilius innotescere<br />

potuit, quam libri confessionum mearum?»<br />

josé m. silva rosa di<strong>da</strong>skalia xxxvii (2007)2

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