30.04.2013 Views

revista estudos lingüísticos - GEL

revista estudos lingüísticos - GEL

revista estudos lingüísticos - GEL

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>GEL</strong><br />

GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS<br />

DO ESTADO DE SÃO PAULO<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS<br />

LINGÜÍSTICA: INTERFACES<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 1-168, maio-ago. 2008


REVISTA ESTUDOS LINGÜÍSTICOS<br />

GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO - <strong>GEL</strong><br />

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP<br />

Depto de Estudos Lingüísticos e Literários - Sala 21<br />

Rua Cristóvão Colombo, 2265- Jd. Nazareth<br />

CEP 15054-000 - São José do Rio Preto - SP - Brasil<br />

<strong>estudos</strong>linguisticos@gel.org.br<br />

Comissão Editorial<br />

Claudia Zavaglia<br />

Gladis Massini-Cagliari<br />

Juanito Ornelas de Avelar<br />

Manoel Mourivaldo Santiago Almeida<br />

Marco Antônio Domingues Sant´Anna<br />

Maximina M. Freire<br />

Olga Ferreira Coelho<br />

Oto Araujo Vale<br />

Vandersí Sant'Ana Castro<br />

Vanice Maria Oliveira Sargentini<br />

Editora responsável<br />

Luciani Ester Tenani<br />

Capa<br />

Wilker Ferreira Cação<br />

Conselho Editorial (Pareceristas ”ad hoc”)<br />

Ademar da Silva (UFSCAR), Alessandra Del Re (UNESP), Alexandre de Oliveira Martins (UNIP), Alvaro<br />

Luiz Hattnher (UNESP), Ana Cristina Carmelino (UNIFRAN), Ana Lúcia de Paula Müller (USP), Ana Mariza<br />

Benedetti (UNESP), Ana Paula Scher (USP), Angelica Karim Garcia Simão (UNESP), Anna Christina<br />

Bentes da Silva (UNICAMP), Anna Flora Brunelli (UNESP), Arnaldo Cortina (UNESP), Arnaldo Franco<br />

Junior (UNESP), Beatriz Nunes de Oliveira Longo (UNESP), Bento Carlos Dias da Silva (UNESP), Carolina<br />

María Rodríguez Zuccolillo (UNICAMP), Cássia Regina Coutinho Sossolote (UNESP), Cássio Florêncio<br />

Rubio (UNESP), Claudia Maria Xatara (UNESP), Claudia Regina Castellanos Pfeiffer (UNICAMP), Claudia<br />

Zavaglia (UNESP), Cláudia Maria Ceneviva Nigro (UNESP), Cristiane Carneiro Capristano (CEJA), Cristina<br />

Martins Fargetti (CEJA), Dilson Ferreira da Cruz Júnior (USP), Diva Cardoso de Camargo (UNESP), Edna<br />

Fernandes Nascimento (UNIFRAN), Edvania Gomes da Silva (UESB), Eli Nazareth Bechara (UNESP),<br />

Emerson de Pietri (USP), Erica Iliovitz (UFRPE), Erotilde Goreti Pezatti (UNESP), Evani Viotti (USP),<br />

Fabiana Cristina Komesu (UNESP), Fábio César Montanheiro (UFSCAR), Fernanda Correa Silveira Galli<br />

(UNICAMP), Fernanda Mussalim (UFU), Flávia Bezerra de Menezes Hirata Vale (UFSCAR), Gabriel<br />

Antunes de Araujo (UFSCAR), Geraldo Cintra (USP), Gisele Cássia de Sousa (UNESP), Gladis Maria de<br />

Barcellos Almeida (UFSCAR), Ieda Maria Alves (USP), Ivã Carlos Lopes (USP), João Azenha (USP), João<br />

Bôsco Cabral dos Santos (UFU), Larissa Cristina Berti (UNESP), Lauro José Siqueira Baldini (UNIVAS),<br />

Lenita Maria Rimoli Esteves (USP), Leticia Marcondes Rezende (UNESP), Lígia Negri (UFPR), Luciano<br />

Novaes Vidon (UFES), Luiz Carlos Cagliari (UNESP), Luiz Gonzaga Marchezan (UNESP), Mara Lucia Faury<br />

(PUC - SP), Maria Célia Lima-Hernandes (USP), Maria Cristina Parreira da Silva (UNESP), Maria da<br />

Conceição Fonseca Silva (UESB), Maria do Rosario Gregolin (UNESP), Maria Flávia de Figueiredo Pereira<br />

Bollela (UNIFRAN), Marilei Amadeu Sabino (UNESP), Marisa Corrêa Silva (UEM), Marize Mattos Dall Aglio<br />

Hattnher (UNESP), Marymarcia Guedes (UNESP), Mauricio Mendonça Cardozo (UFPR), Nelson Luís<br />

Ramos (UNESP), Olga Ferreira Coelho (USP), Paulo Chagas de Souza (USP), Pedro Luis Navarro Barbosa<br />

(UEM), Roberto Gomes Camacho (UNESP), Ronald Beline Mendes (USP), Rosa Maria da Silva (UNESP),<br />

Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi (UNESP), Sandra Denise Gasparini-Bastos (UNESP), Sandra<br />

Madureira (PUC - SP), Sebastião Carlos Leite Gonçalves (UNESP), Sheila Vieira de Camargo Grillo (USP),<br />

Solange Aranha (UNESP), Sônia Piteri (UNESP), Sueli Salles Fidalgo (PUC - SP), Sumiko Nishitani Lkeda<br />

(PUC - SP), Susanna Busato (UNESP), Thomas Bonnici (UEM), Valdemir Miotello (UFSCAR), Vanice Maria<br />

Oliveira Sargentini (UFSCAR), Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS).<br />

Publicação quadrimestral<br />

Estudos Lingüísticos / Organizado pelo Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo - v. 1<br />

(1978). - Campinas, SP : [s.n.], 1978-<br />

Publicada em meio eletrônico (CD-ROM) a partir de 2001.<br />

Publicada em meio eletrônico (http://www.gel.org.br/) a partir de 2005.<br />

Anual<br />

ISSN 14130939<br />

1. Lingüística. 2. Lingüística Aplicada 3. Literatura I. Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São<br />

Paulo.


AQUISIÇÃO DE L2/LE<br />

SUMÁRIO<br />

A importância da língua francesa no Brasil: marcas e marcos<br />

dos primeiros períodos de ensino<br />

Cristina Casadei Pietraróia......................................................................<br />

Uso de aspectos morfológicos na leitura de textos da mídia<br />

Maria Inez Mateus Dota..........................................................................<br />

AQUISIÇÃO DE PRIMEIRA LÍNGUA<br />

Estudo experimental sobre o formato prosódico inicial na<br />

aquisição do português brasileiro<br />

Maria de Fátima de Almeida Baia.............................................................<br />

LINGÜÍSTICA APLICADA AO ENSINO DE LÍNGUAS<br />

Concepções de linguagem e ensino da escrita em materiais didáticos<br />

Émerson de Pietri..................................................................................<br />

Gêneros textuais no processo de ensinoaprendizagem<br />

Rosa Maria Nechi Verceze......................................................................<br />

Teorias da linguagem e ação pedagógica:<br />

um olhar sobre as atividades de produção/recepção de gêneros orais<br />

Rozana Aparecida Lopes Messias..............................................................<br />

Interação pela linguagem na avaliação de produções escritas:<br />

ordem ou diálogo?<br />

Silvia Augusta de Barros Albert................................................................<br />

NEUROLINGÜÍSTICA<br />

Centro de Convivência de Afásicos: Uma abordagem<br />

etnográfica da afasia<br />

Nirvana Ferraz Santos Sampaio...............................................................<br />

PSICOLINGÜÍSTICA<br />

Algumas considerações em torno da identificação dos<br />

estados internos em situações de narrativa oral por criança<br />

Lélia Erbolato Melo.................................................................................<br />

Narrativas orais produzidas por crianças: a explicação em foco<br />

Priscila Peixinho Fiorindo.........................................................................<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 1-168, maio-ago. 2008<br />

7<br />

17<br />

27<br />

37<br />

47<br />

55<br />

65<br />

75<br />

85<br />

95<br />

3


SOCIOLINGÜÍSTICA E DIALETOLOGIA<br />

Crenças e atitudes lingüísticas: o que dizem os falantes das<br />

capitais brasileiras<br />

Vanderci de Andrade Aguilera..................................................................<br />

A redução de proparoxítonas no português popular do Brasil:<br />

estudo com base em dados do Atlas lingüístico do Paraná (ALPR).<br />

Vandersí Sant’Ana Castro......................................................................<br />

TRADUÇÃO<br />

Uso de corpora customizados para aperfeiçoar o texto traduzido<br />

Ana Julia Perrotti-Garcia.........................................................................<br />

Tradutor: Personagem de ficção<br />

Dircilene Fernandes Gonçalves.................................................................<br />

Diferenças estilísticas entre o autor e o auto-tradutor em<br />

Viva o Povo Brasileiro e An Invincible Memory<br />

Diva Cardoso de Camargo.......................................................................<br />

O impacto das novas tecnologias no tempo e na qualidade da<br />

produção tradutória<br />

Érika Nogueira de Andrade Stupiello.........................................................<br />

Olhares sobre a violência no Brasil:<br />

as leituras do The New York Times e de sua tradução<br />

Fernanda Cristina Lima...........................................................................<br />

Relações discurso-história em “Curtamão”, de Guimarães Rosa,<br />

e sua versão alemã<br />

Gilca Machado Seidinger.........................................................................<br />

4 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 1-168, maio-ago. 2008<br />

105<br />

113<br />

123<br />

129<br />

135<br />

145<br />

155<br />

163


Apresentação do volume 37 (2008)<br />

Com a edição do volume 37 (2008) da Revista Estudos Lingüísticos, o Grupo de<br />

Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo – <strong>GEL</strong> – comemora 30 anos de publicação<br />

de pesquisas apresentadas em seminários realizados em diferentes cidades paulistas.<br />

Nas páginas dessas publicações, há várias histórias a serem contadas sobre, por<br />

exemplo, as reflexões lingüísticas debatidas no âmbito dos Seminários do <strong>GEL</strong>, ou<br />

ainda sobre as mudanças pelas quais passaram as publicações, chegando atualmente à<br />

publicação on-line. Mais do que comemorar, a Comissão Editorial deseja tornar a<br />

<strong>revista</strong> eletrônica um excelente canal de divulgação das pesquisas e reflexões feitas<br />

pela comunidade de pesquisadores da linguagem.<br />

Neste volume 37 (2008), são publicados 83, sendo 75 selecionados dos 123 artigos<br />

submetidos à avaliação, todos apresentados durante o 55º Seminário do <strong>GEL</strong> (2007), e<br />

também oito artigos provenientes de apresentações em mesas-redondas. Os textos<br />

encontram-se reunidos em três números, organizados por temas.<br />

O número 1, com o tema “Descrição e Análise Lingüística”, reúne 26 artigos das<br />

seguintes áreas, organizadas por ordem alfabética: Fonologia, Lexicologia e<br />

Lexicografia, Línguas Indígenas e Africanas, Morfologia, Pragmática, Semântica,<br />

Sintaxe. Não houve artigos submetidos na área de Fonética.<br />

O número 2, com o tema “Lingüística: Interfaces”, reúne 18 artigos das seguintes<br />

áreas, organizadas por ordem alfabética: Aquisição de L2/LE, Aquisição de Primeira<br />

Língua, Historiografia Lingüística, Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas,<br />

Neurolingüística, Psicolingüística, Sociolingüística e Dialetologia e Tradução. Não houve<br />

artigos submetidos nas áreas de Filologia, Lingüística Computacional e Lingüística<br />

Histórica.<br />

O número 3, com o tema “Análise do Texto e do Discurso”, reúne 39 artigos das<br />

seguintes áreas, organizadas por ordem alfabética: Análise da Conversação, Análise do<br />

Discurso, Lingüística Textual, Literatura Brasileira, Literatura Estrangeira, Retórica e<br />

Estilística, Semiótica e Teoria e Crítica Literária. Não houve artigos submetidos na área<br />

de Literatura Infanto-Juvenil.<br />

A Comissão Editorial agradece a todos os autores que submeteram artigos para<br />

avaliação e todos os pareceristas que contribuíram para esta publicação, emitindo<br />

pareceres de forma criteriosa. Tem-se como produto, neste volume, o resultado de<br />

pesquisas em <strong>estudos</strong> da linguagem, representativo não só de universidades do Estado<br />

de São Paulo, mas de todo o território brasileiro.<br />

Luciani Tenani<br />

Presidente da Comissão Editorial<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 1-168, maio-ago. 2008<br />

5


A importância da língua francesa no Brasil: marcas e marcos<br />

dos primeiros períodos de ensino<br />

Cristina Casadei Pietraróia 1<br />

1 Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo –<br />

crispi@usp.br<br />

Abstract: The study of school subjects allows us to understand not only the<br />

background and the transformation of contents vehiculated by them, but also<br />

their important role in the overall formation of students as school culture is a<br />

complex mechanism connected to political, religious and cultural contexts of<br />

each epoch that promotes both the instruction and the moral education of the<br />

students. Taking this importance into consideration, we are interested in the<br />

teaching of one the school subjects that contributed greatly to the cultural<br />

formation of several generations of Brazilian students during most part of the<br />

twentieth century: the French language. We present in this article some<br />

important landmarks of its teaching from 1837 to 1942.<br />

Key words: School subjects; school books; French; teaching<br />

Resumo: O estudo das disciplinas escolares permite-nos compreender não<br />

apenas a trajetória e a transformação dos conteúdos por elas veiculados,<br />

como também seu importante papel na formação geral dos alunos, pois a<br />

cultura escolar é um complexo mecanismo ligado aos contextos político,<br />

religioso e cultural de cada época, promovendo tanto a instrução quanto a<br />

educação moral dos aprendizes. Considerando essa importância,<br />

interessamos-nos pelo ensino de uma de suas disciplinas que muito contribuiu<br />

para a formação cultural de várias gerações de aprendizes brasileiros<br />

durante grande parte do século XX: a língua francesa. Nesse artigo serão<br />

apresentados alguns marcos importantes de seu ensino de 1837 a 1942.<br />

Palavras-chave. Disciplinas escolares; manuais; francês; ensino.<br />

1. Introdução<br />

O estudo das disciplinas escolares permite-nos compreender, segundo autores<br />

como Chervel (1990) e Julia (2001) 1 , não apenas a trajetória e a transformação dos<br />

conteúdos por elas veiculados, como também seu importante papel na formação geral<br />

dos alunos, pois a cultura escolar é um complexo mecanismo ligado aos contextos<br />

político, religioso e cultural de cada época, promovendo tanto a instrução (transmissão<br />

de conteúdos programáticos) quanto a educação moral dos aprendizes. Segundo<br />

Bourdieu (1967), a cultura escolar dota os indivíduos de um corpo comum de categorias<br />

de pensamento e cumpre por isso uma função de integração lógica, moral e social.<br />

Nesse importante sistema de formação que é a escola, as disciplinas e os<br />

manuais utilizados adquirem um papel fundamental. E é esse papel que nos interessa<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008<br />

7


aqui observar e analisar a respeito de uma disciplina que muito contribuiu para a<br />

formação cultural de muitos aprendizes brasileiros durante grande parte do século XX: a<br />

língua francesa. Nosso estudo faz parte do Projeto Temático FAPESP “Livros e<br />

Memória”, coordenado pela Profa. Dra. Circe Bittencourt (FE-USP), e a pesquisa dos<br />

manuais aqui citados foi realizada junto ao acervo didático da APFESP (Associação dos<br />

Professores de Francês do Estado de SP), na Biblioteca do Livro Didático e nas<br />

bibliotecas Paulo Bourroul e Macedo Soares, essas três últimas localizadas na<br />

Faculdade de Educação da USP. Contamos também com os dados coletados em<br />

pesquisa de iniciação científica realizada por Sahsha Kiyoko Watanabe Dellatorre<br />

(bolsa FAPESP IC) sob nossa orientação.<br />

2. A língua francesa como instrumento<br />

Em um texto de grande relevância para a história dos <strong>estudos</strong> brasileiros – “O<br />

francês instrumento de desenvolvimento” –, Antônio Cândido de Mello e Souza (1977)<br />

distingue alguns traços que definem a grande influência da cultura francesa nos países<br />

da América Latina a partir de suas independências. Segundo o autor, esta cultura e sua<br />

língua tiveram, primeiramente, um papel de mediação entre as jovens nações e as<br />

demais culturas vigentes. Foi por intermédio das traduções francesas, por exemplo, que<br />

os brasileiros do século XIX leram autores clássicos da literatura mundial, como<br />

Goethe, Byron, Schiller, absorvendo tanto as interpretações feitas quanto as lacunas<br />

deixadas. Tal mediação trouxe, como conseqüência, a paulatina substituição do estudo<br />

das culturas e línguas clássicas pelo estudo do francês, língua considerada “universal”<br />

no início do século XIX, em que a França atingira seu apogeu de prestígio e de função<br />

civilizadora. Foi, portanto, por meio do francês – cujo ensino era obrigatório — que<br />

aprendemos a “ver o mundo, que adquirimos o senso da História, que lemos os clássicos<br />

de todos os países, inclusive gregos e romanos” (Cândido, 1977:12). O contato com a<br />

língua e a cultura francesa também nos permitiu adquirir uma maior humanidade nas<br />

questões sociais, uma vez que não apenas a elite dominadora delas se alimentava, mas<br />

também as classes dominadas buscavam sua inspiração nos ideais revolucionários<br />

franceses. Socialistas e anarquistas liam e se inspiravam na literatura francesa,<br />

“trocavam entre eles livros de Balzac e principalmente de Zola, considerado como um<br />

grande escritor humanitário; gostavam de evocar os “filósofos” do século XVIII (...),<br />

chegavam mesmo a dar aos filhos nomes como Germinal”. (Cândido, 1977:14). O hino<br />

nacional francês, no início do século XX, era executado em manifestações políticas, em<br />

comícios, em reuniões operárias. E, finalmente, graças à flexibilidade e à universalidade<br />

da cultura francesa, esta respondeu, mais do que qualquer outra, a inúmeras<br />

necessidades da constituição de nosso país.<br />

O ensino obrigatório da língua francesa na escola secundária brasileira teve<br />

início no século XIX, em 1837, com a criação do Colégio Pedro II, instituição imperial<br />

destinada à formação secundária e cujos currículos, enciclopédicos, apresentavam-se<br />

com uma feição dominantemente literária. Em um de seus primeiros programas de<br />

ensino (1856, in Vechia, 1998:28), o francês consta como uma das principais<br />

disciplinas, a ser ensinada já no primeiro dos sete anos do curso:<br />

No primeiro anno, o alumno, depois de algumas prelecções de Grammatica<br />

geral, aperfeiçoa-se na Grammatica e Língua Portugueza, e começa a estudar<br />

latim, francez, e arithmetica. (Vechia, 1998:28)<br />

8 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008


Percebe-se, nessa citação, a importância da língua francesa na formação básica<br />

do aluno e isso em dois eixos. Primeiramente em relação a sua proficiência lingüística,<br />

uma vez que, já a partir do segundo ano, os manuais de algumas disciplinas, como<br />

zoologia, botânica, física e química, eram franceses (p.ex.: Guerin-Varry: Eléments de<br />

chimie, précédés de notions de physique). No livro Belle Époque Tropical, Jeffrey<br />

Needell afirma sobre o ensino ministrado no Colégio Imperial:<br />

O ensino ministrado sob olhares tão severos baseava-se em obras de clérigos (...)<br />

bem como em textos franceses, tais como o Atlas de Delamarche, a<br />

Grammatica Franceza de Sévene, as Nouvelles narrations françaises de<br />

Filon, a História romana de De Rosoir e Dumont, o Cours de Littérature<br />

française de Charles André, o Cours élémentaire de philosophie de Barbe e o<br />

Manuel d’études pour la préparation du baccalauréat em lettres: Histoire<br />

de temps modernes. (Needell, 1993:78)<br />

A proficiência lingüística capaz de dar conta de tantas leituras em diferentes<br />

disciplinas era buscada por meio do ensino tradicional da língua, metodologia também<br />

conhecida como “gramática-tradução”, vigente até o início do século XX e que consistia<br />

no estudo do vocabulário, da gramática e da prática da tradução-versão. Herdeira do<br />

ensino ministrado para o estudo do grego e do latim, tendo de um lado um livro de<br />

gramática normativa e de outro um dicionário bilíngüe ou listas temáticas de palavras<br />

com os termos equivalentes na língua materna, o aluno exercitava-se traduzindo textos<br />

— de preferência e sempre que possível literários — da língua estrangeira para a língua<br />

materna e vice-versa. (Coste, 1978).<br />

Christian Puren, em seu livro Histoire des méthodologies de l’enseignement des<br />

langues (1988), comenta um aspecto bastante interessante dessa metodologia. Para esse<br />

autor, a metodologia tradicional implantada na escola, ao herdar os pressupostos do<br />

ensino do latim, herdou também uma coerência fornecida do exterior pelo sistema<br />

educativo que permitiu uma economia em termos metodológicos. Na realidade, sua<br />

principal característica técnica não é a articulação entre a aprendizagem das regras e sua<br />

aplicação em exercícios, mas sim seu fraquíssimo nível de integração didática. Isso<br />

explica a justaposição de diferentes atividades, propostas em uma ordem aleatória,<br />

durante uma mesma aula: os alunos podiam recitar uma lista de palavras e algumas<br />

regras de gramática, como também fazer o ditado de um poema, corrigir uma tradução<br />

ou ainda começar uma versão oral sem que houvesse, entre os diversos materiais<br />

apresentados, uma coesão temática ou gramatical. E Puren conclui:<br />

Este fraco nível de integração didática explica porque na MT [metodologia<br />

tradicional] escolar não se sente a necessidade do manual [grifo do autor] como<br />

o generalizará a metodologia direta (...) Até os anos 1870, em efeito, as grandes<br />

editoras escolares só propõem dicionários, gramáticas (“simplificadas”, sem<br />

exercícios, ou “cursos”, com exercícios), obras e trechos escolhidos de autores<br />

clássicos. (Puren, 1988 :60)<br />

Efetivamente, entre os livros indicados pelo Colégio Pedro II para o primeiro<br />

ano (programa de 1856), consta, no que diz respeito ao ensino do francês, a<br />

Grammatica franceza, de Emilio Sevène. A edição por nós localizada, tomo 1 –<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008<br />

9


Theoria, sem data, indica tratar-se de um “novíssima edição, corrigida e augmentada<br />

por um habilíssimo professor de lingua franceza” 2 e estrutura-se em torno de tópicos<br />

gramaticais a partir do “nome” até “as quatro figuras da syntaxe”.<br />

Ao lado dessa gramática, o programa indicava ainda duas outras obras —<br />

Télémaque e Fables choisies, de Fénelon — que, a nosso ver, indicam o segundo eixo<br />

de formação: o eixo moral. Les aventures de Télémaque, romance didático de Fénelon,<br />

publicado em 1699 e dedicado à educação do Duque de Borgonha, herdeiro presumido<br />

de Luis XIV. Dessa forma, essa obra faz parte do gênero literário “Espelhos dos<br />

príncipes”, que compreende as obras destinadas à educação principesca na Europa dos<br />

séculos XVII e XVIII, mas que se tornaram exemplares da educação como um todo e<br />

serviam de modelo e de referência para o público culto da época. Nesse livro, Fénelon<br />

retrata as peregrinações de Telêmaco em busca de seu pai Ulisses, durante as quais é<br />

amparado por Mentor, responsável por sua educação na ausência paterna.<br />

Nas atas do colóquio “Les Aventures de Télémaque: trois siècles d’enseignement<br />

du français”, organizado em Bolonha em 2003 pela Sociedade Internacional para a<br />

História do Francês Língua Estrangeira ou Segunda (SIHFLES), os autores dos diversos<br />

artigos são unânimes em afirmar a importância não apenas moral e política da obra, mas<br />

também seu interesse educacional, uma vez que entre as figuras de Telêmaco e Mentor<br />

estabelece-se uma verdadeira relação pedagógica e, nesta relação, Fénelon muda o<br />

centro de interesse do projeto pedagógico do “objeto” a ser ensinado para o sujeito, o<br />

“eu” do aluno.<br />

Era grande a preocupação com a formação dos jovens da época, pois a escola<br />

formava a elite brasileira. É Sévene que nos fala de seu público no “Aviso aos Editores<br />

da gramática já citada:<br />

Indispensavel a muitos, a lingua franceza é de summa utilidade para todos. A<br />

consideração de que ella goza no Brazil, onde occupa distincto lugar a par da<br />

educação, é prova bastante da utilidade da obra cuja nova edição, hoje<br />

apresentamos ao Publico, e offerecemos em particular á mocidade que frequenta<br />

os collegios, e aos mancebos que se preparão para depois nas Academias e nas<br />

Faculdades, entregarem-se a <strong>estudos</strong> mais elevados. (Sévene, s/d)<br />

Efetivamente, no Segundo Reinado (1840-1889) e na República Velha (1889-<br />

1930), como afirma Needell (1993: 74, 75) apenas as famílias abastadas tinham acesso à<br />

educação secundária. Na infância, essa elite, composta pelos filhos de fazendeiros ricos,<br />

grandes comerciantes e homens de negócios, bem como filhos de altos burocratas e de<br />

profissionais bem-sucedidos, era educada por preceptores e tutores para depois<br />

continuar seus <strong>estudos</strong> nos colégios, em geral nas capitais dos estados e das províncias,<br />

onde tinham acesso a uma formação humanista, conservadora e católica, voltada para<br />

futuros líderes. Estes, além de aprender a conjugar verbos, também aprendiam nas aulas<br />

de francês orientações de boa conduta, de honestidade, de civismo, como aquelas que<br />

compõem os 180 exercícios do segundo volume de uma outra famosa gramática,<br />

Grammatica Theorica e Pratica da Língua Franceza, de Francisco Halbout (Livraria<br />

Francisco Alves, 1921 para a 33ª edição):<br />

L’homme instruit parle peu et bien; l’ignorant parle beaucoup et mal. L’homme<br />

ami du bien public est estimable. La crainte de Dieu est le commencement de la<br />

sagesse.<br />

10 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008


Assim, entre lições de civismo e moral, os alunos eram conduzidos aos textos<br />

literários franceses, uma vez que ter acesso a esses textos era essencial num mundo em<br />

que a França era um referencial literário e cultural. E isso não poderia ser diferente.<br />

Iniciando um de seus artigos com a frase “Tantos caminhos levam a Paris”, Gilberto<br />

Pinheiro Passos (2006:61) coloca de imediato a pergunta “até que ponto uma literatura<br />

nova, como a nossa, em pleno século XIX, escaparia à força da circulação artística, cujo<br />

centro emissor seria a velha Europa?”.<br />

O objetivo, portanto, do ensino da língua francesa era levar o aluno a ter,<br />

sobretudo, uma proficiência de compreensão escrita nessa língua, e também – como já<br />

foi dito - ler os grandes autores franceses, como indica o programa dos exames do<br />

Colégio Pedro II em 1850:<br />

1º ano : Gramática (formação do plural dos substantivos e dos adjetivos,<br />

formação do feminino dos adjetivos, adjetivos e pronomes possessivos, verbos)<br />

2º ano : Buffon, Morceaux Choisis<br />

3º ano: Fénelon, Morceaux Choisis<br />

4º ano: Massillon, Petit Garême<br />

5º ano: Montesquieu: Selecta de Blair<br />

6º ano: Racine, Athalia<br />

7º ano: Bossuet, orações fúnebres<br />

A ênfase em um ensino centrado nos textos literários, de caráter moralizante,<br />

cristão e educador manteve-se até o início do século XX, quando então o francês já era<br />

ensinado em muitas outras instituições de todo o país e um número maior de manuais<br />

entra em cena. Além dos manuais importados da França, como Le livre unique de<br />

français, de L. Dumas (Paris, Hachette, 1928), também eram utilizados manuais<br />

franceses impressos no Brasil em edições fac-similadas, como a Grammaire Cours<br />

Moyen de Claude Auge (s/d, Paris, Larousse, Porto Alegre, Livraria do Globo) ou ainda<br />

totalmente editados e impressos no Brasil, como Nouvelle Anthologie d’Auteurs<br />

Français, de Henri de Lanteuil (Biblioteca Didática Brasileira, nº1, Rio de Janeiro,<br />

1934), publicada conforme os programas oficiais. Henri de Lanteuil, aliás, fez parte de<br />

toda uma geração de professores catedráticos de francês no Brasil que eram também<br />

escritores.<br />

Nessas obras, a exploração dos textos era ainda feita pelo método gramáticatradução,<br />

e grande era a função educadora das mesmas, como se pode observar na capa<br />

do livro de Claude Auge e também na primeira lição do Le livre unique de français:<br />

lecture, grammaire, vocabulaire, orthographe, composition française , de L. Dumas,<br />

publicado pela Hachette em 1928 para os cours moyen e supérieur – “ouvrage adopté<br />

pour les Écoles primaires de la Ville de Paris. Partindo do mundo do aluno, o manual<br />

trazia pouco a pouco outras aberturas e novos textos, cada vez mais literários. Assim,<br />

textos de autores como Balzac, Daudet, Anatole France, Pierre Loti, Guy de Maupassant<br />

eram lidos, estudados, repetidos, decorados.<br />

Aline Gohard-Radenkovi (1999) lembra bem que os tipos de discurso<br />

encontrados nesses manuais, assim como a escolha do nível de língua utilizado, são<br />

representativos de uma concepção do ensino da língua e da civilização francesas<br />

característica do século XIX e vigente até metade do século XX. Essa concepção<br />

humanista, baseada no ensino das línguas clássicas e com ênfase aos textos literários ou<br />

moralizadores, coincidia, na verdade, com o papel da própria língua francesa no império<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008<br />

11


colonial francês nascente. Valorizar as qualidades morais, a família, a casa, o país,<br />

levava o aprendiz a sair de um círculo mais imediato para alcançar um espaço mais<br />

vasto, indo do concreto e do conhecido para o abstrato e o desconhecido, E, em um<br />

sistema de “inclusões encadeadas”, eram-lhe inculcados valores moralizadores e<br />

patrióticos que, aos poucos, podiam ser transpostos do solo natal para o novo país e a<br />

nova cultura que se descortinava.<br />

3. A metodologia direta<br />

Em 1931, a República impõe, com a reforma Francisco de Campos, uma nova<br />

metodologia de ensino de línguas, destinada a “fazer falar” os alunos que, até então, só<br />

praticavam a compreensão e a expressão escrita, a tradução e a versão. Segundo<br />

Chagas:<br />

No que tange à orientação propriamente didática, o regime de 1931 constituiu a<br />

primeira tentativa realmente séria já empreendida entre nós para atualizar o<br />

estudo dos idiomas modernos. Outros fins foram visados e novos processos de<br />

ensino se recomendaram para adoção do que se chamou o “método direto<br />

intuitivo” (Chagas, 1957:110).<br />

A metodologia direta já havia sido implantada na França em 1901 e —<br />

rompendo completamente com a metodologia tradicional, à qual criticava o fraco<br />

desempenho de comunicação dos aprendizes — tinha como principais orientações 1. o<br />

ensino das palavras estrangeiras sem passar pelo intermediário de seus equivalentes na<br />

língua materna do aluno; 2. o ensino da língua oral sem passar pelo intermediário de sua<br />

forma escrita; 3. o ensino da gramática sem passar pelo intermédio de sua regra<br />

explícita (Puren, 1988).<br />

A implantação de uma metodologia que privilegiava o oral era resultante<br />

também de uma demanda social de maior praticidade no aprendizado de uma língua<br />

estrangeira e da necessidade francesa de conquista de novos espaços. Pode-se ler nas<br />

Instruções Oficiais francesas de 1901 (apud Puren, 1988:99) : “O conhecimento prático<br />

das línguas vivas tornou-se uma necessidade tanto para o comerciante e o industrial<br />

quanto para o sábio e o letrado”.<br />

As aulas se baseavam em situações concretas do próprio ambiente escolar, sendo<br />

o professor o responsável pela descrição das mesmas e pela introdução de todos os<br />

elementos necessários à sua compreensão: o professor nomeava objetos, descrevia<br />

gestos, atitudes e movimentos rotineiros de sua prática, tais como abrir a porta, fechar a<br />

janela, apontar algo ou alguém. Depois de realizadas, essas situações suscitavam<br />

diálogos de tipo pedagógico, em sentido único e na forma interrogativa (pergunta do<br />

professor, resposta do aluno). Essa prática da denominação e da descrição do real,<br />

seguida das constantes repetições orais, obrigava assim o aluno a se «impregnar» do<br />

sentido e a ele aceder diretamente, uma vez que a tradução interlingual estava<br />

completamente banida do curso.<br />

Se no método gramática-tradução o ponto de partida eram os textos, no método<br />

direto este era o léxico e as estruturas básicas da língua (interrogação, negação,<br />

afirmação). Assim, por exemplo, no método de Marc Valette, La méthode directe<br />

12 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008


(Londres: Hachette & Cia, 1914), a primeira lição se inicia pela aprendizagem de uma<br />

série de palavras e construções consideradas básicas para o desenrolar de uma aula:<br />

Le bras, le doigt, le pied. Est-ce le bras? Est-ce le doigt? Est-ce le pied? Oui,<br />

c’est le bras. Non, ce n’est pas le bras, c’est le doigt (Valette, 1914:3)<br />

Procurando oferecer ao aluno uma língua mais cotidiana, que pudesse ser<br />

utilizada em seu dia-a-dia, a metodologia direta abusava de textos fabricados, artificiais<br />

e destinados sobretudo à aquisição lexical, prioridade da que se traduzia na<br />

memorização, por parte do aluno, de listas inteiras de palavras. Um exemplo desse tipo<br />

de texto e do trabalho lexical proposto pode ser visto na décima-quarta lição do método<br />

Le Français par la méthode directe II (Robin, Bergeaud, Paris: Librairie Hachette<br />

1951):<br />

Le cerveau se trouve dans le crâne. La circulation du sang se fait par le coeur, les<br />

artères (une artère) et les veines (une veine). (...) Le géant est un homme très<br />

grand qui a souvent plus de deux mètres de hauteur (*la hauteur). Un nain (une<br />

naine) est un homme qui reste tout petit. (p.33)<br />

Mais uma vez, além dos processos ditos “intuitivos”, tais como gestos e<br />

mímicas, e dos recursos como a demonstração de objetos, de imagens e exemplos, não<br />

se sabe bem ao certo como o aluno construía o sentido das palavras e do próprio texto,<br />

que nada mais era do que um conjunto de frases sem qualquer coesão ou característica<br />

realmente textual.<br />

Na medida em que vão se esgotando as situações passíveis de uma<br />

demonstração na própria sala de aula, recorre-se a imagens que ilustram, por exemplo,<br />

um dia de inverno, uma casa, a fazenda. Aos poucos também a leitura, a escrita e o<br />

estudo da gramática vão sendo integrados ao método, mas percebe-se que a questão do<br />

trabalho com textos mais longos e a compreensão da escrita é um problema de difícil<br />

solução.<br />

No manual Lecture expliquée – Le Français par plaisir - Dois últimos anos do<br />

curso ginasial, de J. de Matos Ibiapina (Porto Alegre – Edição da Livraria do<br />

Globo,1941), o autor aponta no prefácio as dificuldades de trabalho com a metodologia<br />

direta:<br />

(...) O método direto exige que o professor argua todos os alunos, todos os dias<br />

de aula, fazendo a cada um tantas perguntas quantas forem necessárias à<br />

assimilação perfeita do vocabulário de cada lição. Isso não é possível em turmas<br />

de mais de quinze alunos. Nos ginásios e escolas normais do Brasil, as turmas<br />

são, na sua generalidade, de mais de trinta alunos, o que torna dificílima a<br />

aplicação eficiente do método direto.<br />

Para dar conta dessa situação, Ibiapina propõe o fim do uso das seletas e<br />

coletâneas e apresenta em seu método leituras agradáveis e de temas apropriados “que<br />

divirtam o aluno e arrastem-no a compreensão do texto, levado menos pela obrigação da<br />

tarefa a executar do que pelo prazer de chegar ao fim da história, da anedota, do<br />

‘’calembour’’ etc.”.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008<br />

13


As dificuldades metodológicas encontradas geram novas publicações menos<br />

radicais, como o Cours de français – méthode semidirecte à l’usage des écoles<br />

supérieures, lycées et collèges. 1 ère année, de Suzanne Burtin-Vinholes (Porto Alegre:<br />

Edição da Livraria do Globo - Barcellos, Bertaso & Cia,1934). Neste método, a autora –<br />

francesa — afirma que não é possível trabalhar com o método direto na escola, tal como<br />

ela o faz em suas aulas particulares:<br />

Após alguns meses de ensino na Escola Normal desta cidade onde o número de<br />

alunos é muito elevado chegamos à conclusão que era necessário empregar o<br />

meio têrmo, isto é, das lições práticas e teóricas (...).<br />

Sendo assim, embora o método direto se mostrasse eficaz em suas aulas<br />

particulares, a autora admite que este encontrava problemas quando se tratava de uma<br />

classe numerosa, propondo então um método “semidireto”, com exercícios de<br />

gramática, fonética e conversação. O manual traz ainda lições de dificuldade gradativa,<br />

propondo a leitura e o comentário de trechos escolhidos de grandes autores. Além da<br />

descrição do próprio manual, a autora também sublinha que seguiu “escrupulosamente”<br />

os programas do Colégio Pedro II e o programa da Escola Normal do Rio de Janeiro.<br />

Outro aspecto bastante importante desse prefácio refere-se à importância<br />

atribuída aos laços que ligam a França ao Brasil como um meio de facilitar a<br />

aprendizagem da língua:<br />

Procurando facilitar aos jovens brasileiros o estudo de nossa língua, pensamos<br />

estreitar os laços de solidariedade e simpatia que ligam a nossa pátria à risonha<br />

terra brasileira.<br />

Isso pode ser percebido principalmente no final do livro, onde é apresentada<br />

uma série de textos sobre o Brasil, suas cidades e belezas naturais.<br />

Trazer para o aluno brasileiro elementos de seu ambiente é também um dos<br />

recursos utilizados por Edgard Liger Belair, no método Francez pelo methodo direto<br />

(Rio de Janeiro: Livraria Educadora Eugenio Braga da Silva, 1932), adotado no Colegio<br />

Pedro II. Professor catedrático de Francês não apenas desta instituição (para a qual<br />

escreveu uma tese de ingresso na cátedra de francês – Prêmio Faguet, 1953 –<br />

“Comment La Fontaine est devenu fabuliste”), mas também do Externato Frei de<br />

Guadalupe, da Faculdade de Humanidades Pedro II e da Faculdade de Filosofia Souza<br />

Marques do Rio de Janeiro, Belair faz parte do grupo dos grandes mestres de francês de<br />

nossa história: escreveu prosa, poesia, livros infantis, fábulas, canções, teatro, filmes<br />

educativos, fez traduções e versões. Em suas Fables de mon Brésil (Rio de Janeiro:<br />

Livraria Educadora Eugenio Braga da Silva, 1938),, encontramos histórias com várias<br />

animais brasileiros como “L’once et le chat”, “Le caracara et le busard”, “Le tamanoir<br />

et le tatou”, “L’ara et le jaboti”, “Le jeune singe et les combucas”, “Le coati, le maître et<br />

le valet”.<br />

Percebe-se, dessa forma, que o valor moral dos textos presentes nos métodos<br />

permanece, mas com temas mais próximos ao aluno, no caso, brasileiro. Isso condiz<br />

com a própria gradação dos temas no método direto, que parte dos universos e<br />

referências mais próximos do jovem aprendiz para, aos poucos, levá-lo à literatura<br />

francesa que continuava a fazer parte do programa nos níveis mais avançados (3º e 4º<br />

anos do Ginásio) e trabalhados segundo a metodologia gramática-tradução, uma vez que<br />

14 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008


não se descobriu um modo de fazer o aluno compreender diretamente um texto escrito<br />

em língua estrangeira....<br />

4. Conclusão<br />

O que podemos observar no espaço de tempo aqui analisado — que vai da<br />

implantação do francês na escola secundária até as vésperas da Reforma Capanema, em<br />

1942 — é a grande preocupação em, pelo ensino do idioma francês, trazer uma<br />

formação literária e humanística ao aluno brasileiro, focalizando, é claro, a importância<br />

cultural francesa na época, mas buscando um diálogo com esse aluno, tanto por meio<br />

dos conteúdos veiculados quanto por meio da metodologia utilizada.<br />

O manual de francês contribuiu, dessa forma, para a construção da cultura que<br />

imperava no início e meados do século XX, cultura que, segundo Jérôme Bruner (1986),<br />

é um fenômeno simbólico, produzido pelo homem, que legitima a realidade de certos<br />

produtos do espírito em detrimento de outros e, o mais importante a nosso ver, é<br />

construída:<br />

A cultura é construída.(…) E embora seja transmitida de geração em geração,<br />

ela deve ser, a cada vez, reatualizada e relegitimada pela nova geração. O que dá<br />

a uma cultura sua continuidade « intergeracional » são as obras que ela cria e<br />

que transmite de uma geração à próxima: sua ciência, suas artes, suas leis, seus<br />

dispositivos institucionais, sua mitologia (Bruner, 1986:7)<br />

Os manuais aqui apresentados são as obras que nos permitem, hoje, melhor<br />

compreender a escola e a educação brasileira no contato que estabeleceram com outras<br />

culturas.<br />

Notas:<br />

1 Manual escolar: “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e<br />

condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses<br />

conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas<br />

a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas<br />

ou simplesmente de socialização)” (JULIA, 2001:10).<br />

2 São Paulo, Casa Garraux, Fischer Fernandes & Cia, Successores. 40, rua da<br />

Imperatriz, 40. Paris, 15, rua d’Hauteville, 15. Typografia A. Parent, 52, Rua Madame<br />

et rua Corneille, 3. A edição que nos serve de referência, sabe-se pelo “Aviso aos<br />

editores”, data de 40 anos após a primeira edição e é dedicada, em particular, “á<br />

mocidade que frequenta os collegios, e aos mancebos que se preparão para depois nas<br />

Academias e nas Faculdades, entregarem-se a <strong>estudos</strong> mais elevados”<br />

Referências<br />

BOURDIEU, Pierre. Systèmes d’enseignement et systèmes de pensée, Revue<br />

Internationale des Sciences Sociales, Paris: Unesco, vol. 3, pp. 367-409, 1967.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008<br />

15


BRUNER Jérôme. Culture et modes de pensée: L’esprit humain dans ses oeuvres, Paris,<br />

Retz, 1986.<br />

CHERVEL, André. História das disciplinas escolares. Reflexões sobre um campo de<br />

pesquisa, Teoria & Educação, nº2, Porto Alegre: Pannonica Editora, 1990, pp.<br />

177-229.<br />

COSTE, Daniel. Le renouvellement méthodologique dans l’enseignement du français<br />

langue étrangère, in BOUACHA, A. Sel. — La pédagogie du français langue<br />

étrangère. Paris: Hachette, pp. 10-28, 1978.<br />

GOHARD-RADENKOVIC, Aline. Représentations culturelles véhiculées sur l’<br />

Orient et l’Occident dans un manuel intitulé Le Tour d’Europe. in SALEMA,<br />

M.J., KAHN, G. dir. – Atas do Colóquio L’enseignement de la langue et de<br />

littérature françaises dans la seconde moitié du XIX e siècle, Documents pour<br />

l’histoire du français langue étrangère ou seconde, n.23, Saint-Cloud: SIHFLES,<br />

1999.<br />

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico, Revista Brasileira de<br />

História da Educação, Campinas, n. 1, p. 9-44, 2001.<br />

MINERVA, Nadia (dir.). Les Aventures de Télémaque: trois siècles d’enseignement du<br />

français, Atas do Colóquio organizado em Bolonha, de 12 a 14 de junho de 2003.<br />

Revista Documents pour l’histoire du français langue étrangère ou seconde ,<br />

Saint-Cloud: SIFLES, nº 30, 2003.<br />

NEEDELL, Jeffrey. Belle époque tropical : sociedade e cultura de elite no Rio de<br />

Janeiro na virada do século, São Paulo, Companhia das Letras, 1993.<br />

PASSOS, Gilberto Pinheiro. Cintilações Francesas, Revista da Sociedade Filomática,<br />

Machado de Assis e José de Alencar. São Paulo: Ed. Nankin, 2006.<br />

PUREN, Christian. Histoire des méthodologies de l'enseignement des langues, Paris :<br />

Clé International, 1988.<br />

SOUZA, Antônio Cândido de Mello e. O francês instrumento de desenvolvimento, in<br />

SOUZA, Antônio Cândido de Mello e 1977 – O Francês Instrumental, a<br />

experiência da Universidade de São Paulo, São Paulo: Hemus, pp. 9-17, 1977.<br />

VECHIA, Ariclê, LORENZ, Karl Michael. (orgs.). Programa de ensino da escola<br />

secundária brasileira 1850-1951, Curitiba: Editora do Autor, 1998.<br />

16 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 7-16, maio-ago. 2008


Uso de aspectos morfológicos na leitura de textos da mídia<br />

Maria Inez Mateus Dota<br />

Universidade Estadual Paulista (UNESP)<br />

Av. Luiz Edmundo Coube, s/n – 17033-360 – Bauru – SP - Brasil<br />

Abstract. This paper presents a didactic proposal concerning the use of<br />

morphological aspects in English media texts reading, aiming at favoring the<br />

comprehension activities. Based on reading interactive models and on the<br />

English for Specific Purposes approach, it tries to relate the student´s<br />

previous knowledge and the text linguistic aspects – prefixes and suffixes.<br />

Keywords. Reading; English language; media texts.<br />

Resumo. Este artigo apresenta uma proposta didática que diz respeito ao uso<br />

de aspectos morfológicos na leitura de textos da mídia em língua inglesa,<br />

visando a facilitar a atividade de compreensão. Fundamentando-se nos<br />

modelos interativos de leitura e na abordagem instrumental do ensino de<br />

inglês, procura relacionar o conhecimento prévio do aluno com aspectos<br />

<strong>lingüísticos</strong> do texto – prefixos e sufixos.<br />

Palavras-chave. Leitura; língua inglesa; textos da mídia.<br />

1. Introdução<br />

A leitura de textos em língua inglesa é uma necessidade que se apresenta para alunos<br />

das diversas áreas do conhecimento, entre elas a Comunicação. A expansão da Internet<br />

oferece aos acadêmicos uma enorme quantidade de material produzido e/ou publicado<br />

em inglês (80%, de acordo com a Wikipedia, 2007), ao mesmo tempo em que permite ao<br />

cidadão do mundo divulgar o conhecimento para os quatro cantos do globo. Nesse<br />

contexto, o domínio da leitura em língua inglesa favorece o acesso à informação e a<br />

troca do saber entre os povos.<br />

A proposta didática que aqui apresentamos – uso de aspectos morfológicos na leitura<br />

de textos da mídia – insere-se num programa mais amplo do ensino de leitura em língua<br />

inglesa, dentro da abordagem instrumental do ensino de línguas, em que se enfatiza o<br />

uso de estratégias de leitura tais como skimming, scanning, uso de informação nãolinear<br />

e pistas tipográficas, inferência contextual, reconhecimento de grupos nominais,<br />

funções retóricas e elementos coesivos do texto (DOTA, 2006, p. 1368).<br />

Nessa direção e ancorando-se nos modelos interativos de leitura (CARRELL, 1988,<br />

p. 101), propomos atividades em que os alunos, levando em conta o conhecimento de<br />

mundo e o conhecimento do assunto que já possuem, interagem com aspectos<br />

<strong>lingüísticos</strong> do texto em foco, especificamente com os aspectos morfológicos – prefixos<br />

e sufixos.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008<br />

17


2. Uso de aspectos morfológicos<br />

Ao iniciarmos a proposta didática, desenvolvemos uma atividade de warm-up em<br />

que solicitamos aos alunos que observem algumas palavras em inglês e que apontem<br />

suas correspondentes em português. Trata-se de palavras cognatas que possuem a<br />

mesma raiz em ambas as línguas em questão. Após acolher as respostas dos alunos,<br />

apresentamos o quadro abaixo com as palavras nas duas línguas e com a respectiva<br />

comparação dos prefixos e sufixos que ocorrem nesses termos:<br />

IMPOSSIBLE = impossível; “im-” = “im-”; “-ible” = “-ível”<br />

COMMUNISM = comunismo; “-ism” = “-ismo”<br />

INTERNATIONAL = internacional; “-al” = “-al”<br />

DISCOVER = descobrir; “dis-” = “des-”<br />

Com esse quadro permite-se verificar que existem afixos (prefixos e sufixos) que são<br />

cognatos entre o português e o inglês e que podem ser identificados porque têm uma<br />

origem comum – o latim ou o grego.<br />

Na seqüência, lançamos uma atividade de pré-leitura com relação ao primeiro texto a<br />

ser trabalhado – Newsweek Special Issues (anexo 1). Introduzimos um quadro (abaixo)<br />

com três colunas e pedimos aos alunos que prestem atenção às palavras da segunda<br />

coluna, as quais encontrarão no texto objeto da próxima leitura. Solicitamos que<br />

preencham a primeira coluna com as palavras primitivas correspondentes e que usem os<br />

prefixos/sufixos dados, se necessário:<br />

tradução<br />

order extraordinary (linhas 1-2)________________<br />

labor collaboration (l. 2) ________________<br />

____________ leaders (l. 14) ________________<br />

____________ globalization (l. 16) ________________<br />

____________ meeting (l. 19) ________________<br />

____________ arrangement (l. 31) ________________<br />

____________ highly (l. 32) ________________<br />

____________ successful (l. 32) ________________<br />

____________ relationship (l. 33) ________________<br />

____________ founder (l. 34) ________________<br />

____________ readers (l. 39) ________________<br />

Prefixos:<br />

extra- = além de - extraordinary<br />

co- (col-, con-) = junto de – collaboration<br />

Suffixos:<br />

18 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008


-ary = que tem a qualidade de (adjectivo) - extraordinary<br />

-er (-or) = uma pessoa que; uma coisa que (subs.) – reader<br />

-ment = estado, ação (subs.) - arrangement<br />

-ship = condição, estado (subs.) – relationship<br />

-tion, ation = o ato de (subs.) - collaboration<br />

-ful = caracterizado por (adjectivo) - successful<br />

-ly = de mameira (advérbio) - highly<br />

Observamos que a terminação –ing pode ser usada como um substantivo, como um<br />

adjetivo ou como um verbo. Exemplos:<br />

a) substantivo – This issue marks the beginning of an extraordinary collaboration…<br />

b) adjetivo – The opposing forces are criticizing the president.<br />

c) verbo – You´re smoking too much these days.<br />

Em seguida, observamos que CEOs (l. 25) são “chief executive officers” e<br />

solicitamos aos alunos as seguintes atividades:<br />

a. Agora leiam o texto. Prestem atenção aos aspectos morfológicos, à ilustração, às dicas<br />

tipográficas e às cognatas.<br />

b. Tentem identificar os pontos principais do texto.<br />

c. Vocês podem traduzir as palavras listadas no quadro acima?<br />

d. “Policymakers” e “network” são palavras compostas:<br />

policy+maker (l. 25)<br />

net+work (l. 25)<br />

Vocês podem inferir o significado delas?<br />

e. Voltem para o texto. Procurem uma informação específica. Qual o papel do “World<br />

Economic Forum”? O que ele faz?<br />

f. Os aspectos morfológicos o ajudaram a entender o texto?<br />

g. Vocês já ouviram falar de um outro fórum que se opõe ao “World Economic Forum”?<br />

A seguir, introduzimos o texto Globalization Activists Draw up Battle Lines (anexo<br />

2), solicitamos que façam um “skimming” do texto e, posteriormente, que observem as<br />

palavras do quadro abaixo e encontrem suas derivadas no texto, usando, se necessário,<br />

os afixos dados:<br />

active activists<br />

global ______________________<br />

solidary ______________________<br />

move ______________________<br />

determine ______________________<br />

concentrate ______________________<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008<br />

19


proliferate ______________________<br />

equal ______________________<br />

destroy ______________________<br />

Prefixos:<br />

anti- = oposto – anti-globalisation<br />

in- (im-, ir-, il-) = negação– inequalities<br />

Suffixos:<br />

-ist (yst) – uma pessoa que (subs.) – activist<br />

-ity – estado, qualidade (subs.) – inequality<br />

Apontamos que, como se pode ver, existem muitas palavras (e afixos) nesse texto<br />

que os alunos provavelmente conheciam. Então, pedimos que, usando as palavras que já<br />

conheciam (incluindo as cognatas) e os aspectos morfológicos, leiam o texto<br />

novamente, definam o que é o “World Social Forum” e externem sua opinião sobre os<br />

objetivos desse fórum.<br />

Dando seqüência à utilização dos aspectos morfológicos na compreensão de textos,<br />

apresentamos um trecho da matéria Walk, Don´t Run (anexo 3), para que os alunos<br />

desenvolvam as seguintes atividades:<br />

a. Analisem a ilustração. Usem seu conhecimento prévio da situação.<br />

b. O que as pessoas estão fazendo na ilustração?<br />

c. O que vocês esperam de um texto com essa ilustração?<br />

d. Analisem as pistas tipográficas (título, subtítulo, números, abreviações, etc.). Prestem<br />

atenção às palavras cognatas.<br />

e. Vocês podem prever a idéia geral do texto?<br />

f. Façam um “skimming” do texto. As palavras cognatas ajudá-los-ão.<br />

g. De que trata o texto? A previsão que vocês fizeram estava correta?<br />

h. Vamos analisar alguns aspectos morfológicos do texto:<br />

-reasonably (l. 2) tem dois sufixos – -able e –ly (reason + -able + -ly); -able é um<br />

sufixo formador de adjetivos; -ly é um sufixo formador de advérbios. O que reasonably<br />

significa?<br />

-outros sufixos formadores de adjetivos:<br />

-ous = cheio de – vigorous (l. 2);<br />

-ar = que tem a qualidade de – regular (l. 7);<br />

-ive = que tem a qualidade de - preventive (l. 8);<br />

-ic = que tem a qualidade de – chronic (l. 25).<br />

Observamos que esses sufixos formadores de adjetivos nos ajudam a identificar os<br />

modificadores de um substantivo e a entender melhor o significado de um grupo<br />

nominal, como por exemplo em chronic disease (l. 25).<br />

- o prefixo un- = negação – untoward (l. 17). Vocês podem inferior o significado dessa<br />

palavra?<br />

20 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008


-comparação:<br />

- a terminação –er + than são marcas de comparativo – easier…than (l. 15);<br />

- the … + a terminação -est são marcas de superlativo – the safest (l. 13).<br />

Enfatizamos que esses aspectos morfológicos nos ajudam a identificar as idéias<br />

apresentadas pelo texto e damos seqüência às atividades de compreensão:<br />

i. Leiam o texto novamente. Ele tem dois parágrafos. Quais são os pontos principais em<br />

cada um deles? Discutam essa questão com o seu colega.<br />

j. Vocês concordam com o ponto de vista do texto? Vocês fazem caminhadas?<br />

l. Vocês praticam alguma outra atividade física?<br />

3. Conclusão<br />

Para concluir, apontamos aos alunos que os prefixos geralmente mudam o<br />

significado de uma palavra. Ex.: globalization – anti-globalization. Os sufixos mudam a<br />

classe de uma palavra. Ex.: high (adjetivo) – highly (advérbio). Enfatizamos que os<br />

aspectos morfológicos podem ajudá-los a usar as palavras conhecidas que ocorrem com<br />

afixos (prefixos e sufixos), para entenderem a idéia geral e os pontos principais de um<br />

texto. Especificamente, os aspectos morfológicos podem ajudá-los a inferir o significado<br />

de palavras desconhecidas, uma vez que os prefixos carregam um significado e os<br />

sufixos marcam uma classe gramatical.<br />

4.Referências<br />

CARRELL, Patricia L. Some causes of text-boundedness and schema interference in<br />

ESL reading. In: CARRELL, Patricia L.; DEVINE, Joanne; ESKEY, David E.<br />

(Eds.). Interactive approaches to second language reading. New York: Cambridge<br />

University Press, 1988, p. 101-113.<br />

CEPRIL. Resouce package number IV. São Paulo: PUC-SP, 1986.<br />

DOTA, Maria Inez M. Leitura crítica de textos da mídia em língua inglesa. Estudos<br />

Lingüísticos, São Paulo, v. 35, p. 1368-1374, 2006.<br />

ENGLISH on the Internet. In: WIKIPEDIA. Disponível em:<br />

. Acesso em: 20 ago. 2007.<br />

GLOBALIZATION activists draw up battle lines. Financial Times, Londres, 4 fev.<br />

2002. Disponível em: .<br />

Acesso em: 4 fev. 2002.<br />

GORMAN, Christine. Walk, dont´t run. Time, Amsterdam, v. 159, n.3, p. 54, 21 jan.<br />

2002.<br />

GRELLET, F. Developing reading skills: a practical guide to teaching comprehension<br />

exercises. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008<br />

21


NUTTAL, C. Teaching reading skills in a foreign language. London: Heinemann<br />

Educational Books, 1995.<br />

REVELL, R.; SWEENEY, S. In print. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.<br />

ZAKARIA, Fareed. Newsweek special issues. Newsweek, New York, v. 139, n. 14, p.<br />

54, 8/15 abr. 2002.<br />

5. Anexos<br />

22 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008


Anexo 1<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008<br />

23


Anexo 2<br />

24 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008


Anexo 3<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 17-25, maio-ago. 2008<br />

25


ESTUDO EXPERIMENTAL SOBRE O FORMATO PROSÓDICO INICIAL NA<br />

AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO<br />

Maria de Fátima de Almeida Baia<br />

Departamento de Lingüística – Universidade de São Paulo (USP)<br />

Departamento de Lingüística<br />

Universidade de São Paulo<br />

av. Luciano Gualberto, 403<br />

cep: 05508-900 São Paulo<br />

baiamfa@usp.br<br />

ABSTRACT: This experimental study claims at analyzing the prosodic template in<br />

Brazilian Portuguese acquisition. Special attention is given to two hypothesis on initial<br />

prosodic template: 1) Trochaic Bias (Allen & Hawkins 1980); 2) Neutral Start<br />

(Hochberg 1988). Also, this article investigates the discrepancy between the results of<br />

longitudinal and experimental studies on Brazilian Portuguese acquisition: an iambic<br />

bias is found by longitudinal studies (Santos & Fikkert 2005, Baia 2006), whereas<br />

experimental studies claim that there is a trochaic bias (Rapp 1994). The results of<br />

this article do not show a trochaic or iambic bias. Both prosodic templates are used by<br />

Brazilian children as well. There is a difference between longitudinal and<br />

experimental results because of the particular lexicon in spontaneous data.<br />

Keywords: language acquisition, prosody, trochaic bias.<br />

RESUMO: Este estudo experimental visa analisar o formato prosódico na aquisição<br />

do português brasileiro. Uma atenção especial é dada para duas hipóteses sobre o<br />

formato prosódico inicial: 1) Tendência Trocaica (Allen & Hawkins 1980), 2) Início<br />

Neutro (Hochberg 1988). Este artigo investiga também a discrepância entre os<br />

resultados dos <strong>estudos</strong> longitudinais e experimentais: uma tendência iâmbica é<br />

encontrada pelos <strong>estudos</strong> longitudinais (Santos & Fikkert 2005, Baia 2006) enquanto<br />

que os <strong>estudos</strong> experimentais apontam uma tendência trocaica (Rapp 1994). Os<br />

resultados deste artigo não mostram uma tendência trocaica ou iâmbica.Ambos<br />

modelos prosódicos são usados pelas crianças. Há uma diferença entre os resultados<br />

longitudinais e experimentais devido ao léxico particular nos dados espontâneos.<br />

Palavras-chave: aquisição de linguagem, prosódia, tendência trocaica.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 27-36, maio-ago. 2008<br />

27


1. Sobre o formato prosódico inicial<br />

A investigação acerca do formato prosódico inicial na aquisição da linguagem não é<br />

recente. Allen & Kawkins (1980), estudando a elisão de sílabas fracas no inglês, lançaram<br />

na comunidade lingüística a hipótese da tendência trocaica. Segundo os autores, os<br />

primeiros enunciados teriam o formato SW¹. Gerken (1994) retoma o estudo de Allen &<br />

Hawkins (1980), analisa novos dados da aquisição do inglês e confirma a hipótese de que o<br />

pé trocaico é o pé default.<br />

A maior parte dos <strong>estudos</strong> realizados concentra-se no estudo da aquisição do inglês<br />

e a maioria corrobora o que já foi afirmado por Allen & Hawkins (1980) (cf. Gerken 1994,<br />

Archibald 1995). Há outros <strong>estudos</strong> que questionam o fato do pé trocaico ser<br />

predominantemente inicial no inglês (cf. Stoel Gammon & Kehoe 1997) e para validar tal<br />

questionamento, exemplos de erros direcionados para o pé iâmbico são levantados e<br />

analisados. No holandês, temos <strong>estudos</strong> que apontam uma tendência trocaica inicial (cf.<br />

Demuth 1995, Wijnem et al. 1994) e <strong>estudos</strong> que questionam a sua universalidade<br />

levantando truncamento de palavras trissílabas favorecendo o pé iâmbico (cf. Taelman<br />

2004). No alemão, o único estudo encontrado (cf. Grimm 2004) afirma a predominância de<br />

troqueus nos enunciados iniciais.<br />

Pensando na possibilidade da tendência trocaica apontada na literatura ser apenas<br />

um reflexo do pé predominante na forma alvo das línguas germânicas – o pé trocaico -<br />

procurou-se <strong>estudos</strong> sobre o modelo métrico inicial em outras línguas não germânicas. Nas<br />

românicas, foram encontrados <strong>estudos</strong> sobre o espanhol que não confirmam a hipótese da<br />

universalidade do troqueu (cf. Hochberg 1988). No francês, há o estudo de Allen (1983)<br />

que, estudando o contorno supra-segmental de crianças francesas adquirindo a primeira<br />

língua, nota a existência de uma restrição prosódica trocaica; um outro estudo (cf. Demuth<br />

& Johnson 2003) observa a predominância de iambos (o pé predominante na forma alvo do<br />

francês), e um dos pesquisadores (cd. Demuth, 2003) vai mais adiante dizer que o que<br />

predomina nos primeiros enunciados da aquisição do francês são os monossílabos, sílabas<br />

fortes finais, resultado de truncamento. No catalão (cf. Prieto 2005) os dados parecem<br />

indicar uma tendência trocaica, pois SW é produzido como SW enquanto que WS é<br />

produzido como S e WSW como SW. No português europeu (doravante PE), Correia<br />

(2006) encontra uma tendência iâmbica nos enunciados iniciais.<br />

Em línguas de outras famílias os seguintes <strong>estudos</strong> puderam ser encontrados: na<br />

língua bantu sesoto (ou soto sul) (cf. Demuth 1996), que marca o acento com o<br />

alongamento da penúltima sílaba, os troqueus são predominantes no primeiro estágio de<br />

aquisição; em quiché (cf. Demuth 1996), um dos 21 dialetos maias falados na Guatemala,<br />

língua na qual a sílaba proeminente sempre é a final, as primeiras palavras sempre são<br />

monossílabas; em hebraico (cf. Berman 1997), língua iâmbica, a criança começa<br />

produzindo monossílabos retirados de dissílabos com proeminência final; em japonês é<br />

difícil afirmar a tendência prosódica inicial, pois, segundo Ota (2001, 2002), trata-se de<br />

uma língua que não possui um sistema de acento, no entanto, nota-se no início uma<br />

predominância de enunciados monossílabos.<br />

Dos <strong>estudos</strong> acima mencionados, cabe destacar o de Hochberg (1988) que não<br />

confirma a tendência trocaica na aquisição do espanhol. A conclusão da autora é de que<br />

28 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 27-36, maio-ago. 2008


não há uma tendência prosódica inicial, mas sim um início neutro. Devido a esse início<br />

neutro a criança começaria produzindo erros de acento até adquirir as regras de acentuação,<br />

pois, segundo a autora, a criança adquire as regras de acordo com a exposição que ela tem<br />

da língua.<br />

Assim, dos trabalhos acima, duas hipóteses sobre aquisição puderam ser<br />

encontradas:<br />

(i) Há uma tendência trocaica no início;<br />

(ii) Não há uma tendência trocaica no início (início neutro)².<br />

2. Sobre o formato prosódico inicial do PB<br />

Na literatura aquisicionista brasileira são poucos os trabalhos que abordam a<br />

tendência prosódica inicial. A maioria dos trabalhos utiliza a metodologia do estudo<br />

naturalístico (Santos 2001, Bonilha 2004, Santos & Fikkert 2005, Baia 2006); apenas dois<br />

investigam por meio da metodologia experimental, o de Rapp (1994) e este presente<br />

trabalho.<br />

É importante citar o que a literatura diz a respeito da forma prosódica predominante<br />

na língua adulta. Cintra (1997) investiga a distribuição dos padrões acentuais no vocábulo<br />

em português em textos literários e conclui que a maioria dos vocábulos é composta por<br />

paroxítonos (63%); Albano (2001) investiga as entradas do mini-dicionário Aurélio e<br />

conclui a predominância de paroxítonos (53,5%).<br />

A maior parte dos <strong>estudos</strong> que propõem um algoritmo de acentuação do PB indicam<br />

o pé trocaico como pé do PB: Massini-Cagliari (1995) e Bisol (1992) afirmam que o pé<br />

básico do PB é o troqueu . Lee (1995), no âmbito da fonologia lexical, argumenta que o PB<br />

comporta tanto pés trocaicos como iâmbicos.<br />

O único estudo de percepção de acento lexical feito com adultos que há na literatura<br />

brasileira é o de Consoni (2006). A autora diz que a escolha dos falantes brasileiros é<br />

norteada pelo padrão acentual do português, o paroxítono.<br />

Depois do exposto acima, é de se esperar que as crianças produzam mais troqueus<br />

se estiverem produzindo o acento lexical de acordo com o que é apresentado pela forma<br />

alvo.<br />

Apresento um quadro que resume os achados pela literatura brasileira até agora:<br />

Estudo Experimental – Estudo Longitudinal –<br />

tendência<br />

tendência<br />

RAPP (1994) – trocaica (++) SANTOS (2001) – iâmbica (++)<br />

BONILHA (2004) – iâmbica (+)<br />

SANTOS & FIKKERT (2005) –<br />

iâmbica (++)<br />

BAIA (2006) – iâmbica [++]<br />

(++) = indícios fortes<br />

(+) = indícios não tão fortes<br />

Quadro 1: tendência prosódica no PB.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 27-36, maio-ago. 2008<br />

29


Estudos longitudinais: Bonilha (2004), por meio de um estudo que toma como<br />

base a Teoria da Otimalidade, afirma que no primeiro estágio de aquisição há a emergência<br />

tanto de pés troqueus como também de iambos, mas observa que na faixa inicial há uma<br />

emergência maior de iambos. Santos & Fikkert (2005) notam que os iambos são realizados<br />

corretamente antes de troqueus, palavras monossilábicas são transformadas em iambos<br />

(S>WS), palavras WSW são truncadas em WS, e os erros de acento transformam troqueus<br />

em iambos e não vice-versa. Baia (2006), investigando o modelo prosódico predominante<br />

no léxico particular na aquisição (LEPAC³), as criações lexicais e os erros de acento; nota,<br />

em seus resultados percentuais, a falta de evidências para uma tendência trocaica e levanta<br />

a existência de indícios de tendência iâmbica no léxico inicial do PB.<br />

Estudos Experimentais: O primeiro estudo sobre a forma prosódica nos<br />

enunciados infantis na literatura brasileira é o de Rapp (1994) que, em um estudo na linha<br />

da fonologia natural, analisa o processo de elisão de sílabas fracas na aquisição do PB como<br />

língua materna de 1;6 – 2;0. Por meio da análise de sílabas omitidas, a pesquisadora busca<br />

observar uma preferência prosódica-lexical inicial. A amostra de dados é composta de 393<br />

enunciados produzidos por 8 crianças (1;6 – 2;0) e após análise é concluído o seguinte:<br />

Em síntese, o padrão lexical preferencial, na faixa etária investigada (1;6 – 2;0), é o<br />

dissílabo paroxítono, impulsionando, desta forma, nesta direção, as simplificações<br />

de ordem prosódico-lexical encontradas nos enunciados infantis investigados (...)<br />

(Rapp, 1994:162)<br />

O fato de haver uma tendência apontada nos <strong>estudos</strong> naturalísticos (iâmbica) e outra<br />

no estudo experimental (trocaica) é uma evidência de que precisa haver outro estudo<br />

experimental para dialogar com o de Rapp (1994), por isso o presente estudo é feito. A<br />

análise e resultados serão discutidos a seguir.<br />

3. Metodologia<br />

Os dados deste estudo são dados experimentais de produção. Participaram do<br />

experimento 14 crianças de 1;5 – 3;0, que adquirem o PB como língua materna. As 14<br />

crianças pertencem à uma mesma creche – Creche Maria de Nazaré (SP).<br />

Técnica utilizada: A técnica utilizada no experimento é a tarefa de elicitação. Como<br />

a criança na faixa etária estudada (1;5 – 3;0) não é capaz de reconhecer todas as figuras que<br />

lhe são mostradas, e o léxico precisa ser testado, utilizei a estratégia da imitação quando<br />

necessária<br />

Crain & Thorton (2000) afirmam que na imitação as crianças não falam como o<br />

adulto, e que na verdade as mudanças (ou erros) que elas produzem podem indicar como<br />

que a gramática subjacente está se diferenciando da do adulto. A imitação não é um meio<br />

30 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 27-36, maio-ago. 2008


experimental duvidoso para testar a forma prosódica inicial investigada neste estudo, pois<br />

ela não é uma cópia passiva, mas a reconstrução do estímulo. Nos dados produzidos por<br />

meio da imitação, encontram-se casos de epêntese e truncamento, por exemplo. Cabe<br />

ressaltar que essa “saída” só foi utilizada quando necessária e que prevaleceu na faixa etária<br />

de 1;5 – 1;11.<br />

A formulação dos dados testados: O léxico a ser testado foi formulado de acordo<br />

com o objetivo desta pesquisa. Selecionei número de iambos equivalente ao de troqueus.<br />

Utilizei o mesmo número de troqueus e iambos no experimento para que não houvesse<br />

predominância de um padrão prosódico. Por exemplo, Rapp (1994), estudando o processo<br />

de elisão das sílabas fracas na aquisição do PB, utiliza 49 itens lexicais no seu experimento<br />

(43% troqueus; 36,7% iambos & 20,3% dátilos) e verifica a predominância de troqueus.<br />

Porém, se analisarmos o léxico utilizado pela pesquisadora, verificamos que houve um<br />

maior número de troqueus (43%) e talvez isso tenha contribuído para a predominância<br />

trocaica na produção infantil.<br />

Desconsidero aqui o fato da criança, na faixa etária investigada, ainda não ter<br />

adquirido alguns fones, e coloco palavras que contêm esse tipo de som (como as palavras<br />

com tepe alveolar, por exemplo, ‘varal’). Isso porque o que interessa neste estudo é o<br />

modelo prosódico presente na produção da criança. Assumo neste trabalho que a<br />

comutação de algum segmento não interfere na produção prosódica. Essa assunção será<br />

alvo de pesquisas futuras.<br />

O experimento – nomeação de figuras: O experimento foi realizado em situações<br />

que evocavam o lúdico. Para que o interesse das crianças fosse motivado, utilizei fantoches<br />

e figuras em papel ; tudo bem colorido. Antes de começar o experimento, interagi com elas<br />

para que ficassem à vontade e participassem. Foram utilizados: um gravador de áudio,<br />

fantoches, desenhos em papel e alguns brinquedos.<br />

A criança tinha que ajudar o boneco a falar o nome de cada desenho. Na atividade o<br />

boneco dizia para a criança que estava aprendendo a falar o nome de alguns desenhos e<br />

pedia para ela o ajudar.<br />

4. Resultados e discussão<br />

Dissílabos trocaicos: Foram recolhidos 140 dados de troqueus (tokens) produzidos<br />

a partir da nomeação de 10 figuras (types). As palavras eram: carro, lápis, bola, copo, prato,<br />

ovo, chave, calça, uva e gato.<br />

Os troqueus dissílabos não são truncados freqüentemente. Do total de dados (140)<br />

houve truncamento em 9 dados (6,4%). Alguns exemplos abaixo:<br />

(1) [ka] = ‘carro’ (L.G 1;5)<br />

(2) [pa] = ‘prato’ (L.G 1;5)<br />

(3) [b] = ‘bola’ (J.P 1;8)<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 27-36, maio-ago. 2008<br />

31


(4) [o] = ‘ovo’ (G.V 2;0)<br />

(5) [va] = ‘uva‘ (C.M 2;1)<br />

Nos dados de dissílabos trocaicos, houve deslocamento de acento em 9 dados<br />

(6,4%), ou seja, dissílabo trocaico produzido como dissílabo iâmbico. Apenas em um caso<br />

houve a inserção de um segmento na sílaba que recebeu o acento: [ka.’kaw] – ‘carro’.<br />

Outros exemplos estão logo abaixo:<br />

(6) [u.’ va] = ‘uva’ (J.P 1;8)<br />

(7) [ga.’ku] = ‘gato’ (J.P 1;8)<br />

(8) [o.’ta] = ‘bola’ (G.V 2;0)<br />

(9) [a.’bo] = ‘bola’ (C. M 2;1)<br />

Dissílabos iâmbicos: Foram recolhidos 140 dados de iambos (tokens) produzidos a<br />

partir da nomeação de 10 figuras (types). As palavras eram: fogão, boné, café, sofá, maçã,<br />

anel, bombom, balão, sabão e varal.<br />

Os iambos dissílabos são truncados mais do que os troqueus dissílabos. Do total de<br />

dados (140) houve truncamento em 30 dados (21,4%). Dos 30 dados de monossílabos<br />

(100%), resultado de truncamento, a sílaba tônica foi predominantemente mantida. Houve<br />

um caso que não foi possível categorizar como truncamento de sílaba átona ou tônica, por<br />

isso ele foi deixado no que chamo de ‘outros casos’:<br />

(10) [ba] = ‘fogão’ (J.P 1;8)<br />

Outros exemplos de truncamento em dissílabos iâmbicos encontram-se logo abaixo:<br />

(11) [n] = ‘anel’ (L.G 1;5)<br />

(12) [n] = ‘boné’ (J.P 1;8)<br />

(13) [gãw] = ‘fogão’ (J.C 2;3)<br />

Não houve nenhum erro de acento direcionado para o troqueu.<br />

Dados WSW: Foram recolhidos 82 dados (tokens) produzidos a partir da nomeação<br />

de 6 figuras (types). As palavras eram: estrela, boneca, girafa, cachorro, dinheiro e sapato.<br />

Houve produção de 3 monossílabos (3,6%), 2 eram a sílaba tônica e 1 a átona:<br />

(14) [] = ‘boneca’ (L.G 1;5)<br />

(15) [di] = ‘dinheiro’ (L.G 1;5)<br />

32 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 27-36, maio-ago. 2008


(16) [pa] = ‘sapato’ (J.P 1;8)<br />

Houve o total de 21 truncamentos resultando em dissílabos. Desse número total, 20<br />

foram produções SW (95,2%):<br />

(17) [‘te.j ɐ ] = ‘estrela’ (J.P 1;8)<br />

(18) [‘n.k ɐ ] = ‘boneca’ (J.H 1;11)<br />

(19) [‘a.k ɐ ] = ‘girafa’ (G.F 2;6)<br />

Das 21 produções com truncamento, houve apenas 1 dado (4,8%) de truncamento<br />

em WS, e é um caso de reduplicação:<br />

(20) [pa.’pa] = ‘sapato’ (L.G 1;5)<br />

Dados WWS: Foram recolhidos 81dados (tokens) produzidos a partir da nomeação<br />

de 6 figuras (types). As palavras eram: violão, jacaré, bambolê, caminhão, avião, macarrão.<br />

Houve uma maior produção de monossílabos neste caso: 10 monossílabos (12,3%),<br />

9 eram a sílaba tônica e 1 átona:<br />

(21) [e] = ‘bambolê’ (L.G 1;5)<br />

(22) [ãw] = ‘avião’ (J.P 1;8)<br />

(23) [va] = ‘violão’ (C.M 2;1)<br />

Houve o total de 30 truncamentos resultando em dissílabos. Desse número total, 1<br />

foi produção SW (3,4%) e 29 WS (96,6%).Como o contexto é WWS, para haver<br />

truncamento em SW precisa ocorrer mudança de acento, ocasionando assim erro de acento:<br />

(24) [‘ka. ] = ‘caminhão’ (J.O 1;8)<br />

As crianças não produziram erros de acento para encaixar a sua produção em um<br />

modelo SW, ao contrário do que Gerken (1994) observou no inglês. As crianças recortam o<br />

enunciado e produzem as duas sílabas finais do contexto WWS, ou seja, WS. Houve<br />

predominância de WS, 29 exemplos (96,6%).<br />

(25) [ka.’ka] = ‘macarrão’ (L.G 1;5)<br />

(26) [bã.’le] = ‘bambolê’ (J.H 1;11)<br />

(27) [o.’lãw] = ‘violão’ (G.V 2;0)<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 27-36, maio-ago. 2008<br />

33


Dados SWW: Foram recolhidos 78 dados (tokens) produzidos a partir da nomeação<br />

de 6 figuras (types). As palavras eram: mágico, fósforo, ônibus, lâmpada, árvore e óculos.<br />

Houve o total de 44 truncamentos resultando em dissílabos. Desse número total, 43 foram<br />

produções SW (97,8%):<br />

(28) [‘ã.pɐ] = ‘lâmpada’ (J.P 1;8)<br />

(29) [‘.k] = ‘óculos’ (G.V 2;0)<br />

(30) [‘fs.f] = ‘fósforo’ (A. I 2;2)<br />

Houve apenas 1 dado com truncamento resultando em um dissílabo iâmbico:<br />

(31) [o.’ni] = ‘ônibus’ (J.C 2;3)<br />

5. Considerações finais<br />

No estudo experimental, não foi encontrada nenhuma tendência prosódica<br />

predominante, as crianças produziram iambos como iambos e troqueus como troqueus. Os<br />

dados não corroboram o que foi observado por Rapp (1994) em seu estudo.<br />

Considerando os resultados em geral, nota-se que eles não apontam uma tendência<br />

ou existência de um modelo prosódico default . A tendência observada é a de recorte<br />

dissilábico com a permanência da sílaba tônica, essa parece ser a exigência no recorte; se a<br />

fraca é posterior, ela permanece SW, se antecede também WS. WSW é truncado e resulta<br />

em produção SW na maioria dos casos (95,2%), SWW resulta em SW após truncamento<br />

(97,9%) e WWS resulta em WS (96,6%).<br />

Portanto, não se confirma, assim como os <strong>estudos</strong> naturalísticos já fizeram, a<br />

hipótese trocaica, pois não houve estratégias favorecendo a produção de troqueus<br />

predominantemente; também não se confirma a hipótese de Hochberg (1988) do início<br />

neutro, pois a produção do acento não foi aleatória, ou seja, os dados de erros foram muito<br />

poucos. Além do mais, as produções não foram neutras em relação a nenhum modelo,<br />

houve produções de troqueus e de iambos.Os dados apontam que nessa faixa etária as<br />

crianças percebem e produzem o ‘local’ do acento tônico, mesmo que por causa disso<br />

tenham que produzir tantos iambos como troqueus.<br />

A diferença nos resultados do estudo naturalístico e experimental pode estar na<br />

metodologia e, especificamente, no tipo de dados. No estudo experimental, os dados foram<br />

controlados e no naturalístico foram espontâneos. Em relação ao estudo de Rapp (1994),<br />

este estudo não confirma a tendência encontrada pela autora, pois não houve uma maior<br />

produção de troqueus nos dados aqui controlados. A tendência iâmbica presente nos dados<br />

naturalísticos pode ocorrer devido à presença do léxico particular, que em PB tem<br />

predominância à direita (cf. Baia 2006). Isso é algo a ser verificado futuramente.<br />

34 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 27-36, maio-ago. 2008


6. Notas<br />

1. S – strong / W – weak.<br />

2. Voltarei para cada uma das hipóteses nas considerações finais deste artigo.<br />

3. No primeiro momento, no estudo de 2006, Baia utiliza o termo ‘produções<br />

familiares’ para o LEPAC (léxico específico produzido entre adultos e crianças).<br />

7. Bibliografia<br />

ALBANO, E. C. O gesto e suas bordas: esboço de fonologia acústico-articulatória do<br />

português brasileiro. Campinas/SP: Mercado de Letras, São Paulo: Associação de<br />

Leitura do Brasil- ALB; Fapesp, 2001.<br />

ALLEN, G.D. & S. HAWKINS “Phonological rhythm: definition and development” em G.<br />

Yeni-Konishian; J.F. Kavanagh & C.A. Ferguson (eds) Child Phonology vol. 1: production<br />

227-256 NY Academic Press, 1980.<br />

ALLEN, G. D. “Some suprasegmental contours in French Two-Year-Old Children’s<br />

speech” In Phonetica, Vol.40, No. 4, 269-292, 1983.<br />

BAIA, M.F.A. O pé trocaico frente aos dados do português brasileiro. Comunicação<br />

individual no VII ENAL (a ser publicado), 2006.<br />

BERMAN, R. A. “Natural phonological process at the one-word stage”, Língua 43, 1-21,<br />

1997.<br />

BISOL, L. “O acento e o pé métrico binário” In Cadernos de Estudos Lingüísticos,<br />

Campinas, (22): 69-80, jan./jun, 1992.<br />

BONILHA, G. F. G. Aquisição Fonológica do português brasileiro:uma abordagem<br />

conexionista da Teoria da Otimalidade. Rio Grande do Sul:PUC, Dissertação de<br />

doutorado, 2004.<br />

CINTRA, G. “Distribuição de padrões acentuais no vocábulo em português” em<br />

Confluência vol. 5. n. 3 83-92 ed. Unesp Assis, 1997.<br />

CONSONI, F. O acento lexical como pista para o reconhecimento das palavras. Dissertação<br />

de mestrado FFLCH-USP, 2006.<br />

CORREIA, S. O pé no PE. Comunicação no VII ENAL, 2006.<br />

CRAIN, S. & THORNTON, R. Investigations in Universal Grammar: A guide to<br />

experiments on the acquisition of syntax and semantics, The MIT Press:<br />

Cambridge, MA, 2000.<br />

DEMUTH, K. “Markedness and the development of Prosodic Structure” em Proceedings<br />

of the NELS vol.25, 1995.<br />

____________ “The prosodic structure of early words” em J. Morgan & K. Demuth (eds)<br />

Signal to Syntax: Bootstrapping from Speech to Grammar in Early Acquisition,<br />

171-184 Lawrence Erlbaum ed., 1996.<br />

____________ “The satus od feet in early acquisition” in 15 th International Congress od<br />

Phonetic Sciences (ICPhS). Universidad Autonima de Barcelona, p.151-154, 2003.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 27-36, maio-ago. 2008<br />

35


DEMUTH & JOHNSON “Truncation to subminimal wors in early French” in Canadian<br />

Journal of Linguistics. 48 (3/4): 211:241, 2003.<br />

GERKEN, L. A. “A metrical template account of children’s weak syllable omissions from<br />

multisyllabic words” em Journal of Child Language, vol.21 565-584, Cambridge<br />

University Press s in early French” in Canadian Journal of Linguistics. 48 (3/4): 211:241,<br />

2004.<br />

GRIMM, A. “The prosodic pattern of words and phrases in the acqusition of German” in<br />

9 th Conference on Laboratory Phonology. Alemanha: Universidade Iiibinguen, 2004.<br />

HAYES, B. Metrical Stress Theory – Principles and Case Studies. UCLA, 1994.<br />

HOCHBERG, J. G. “First steps in the acquisition of spanish stress” em Journal of Child<br />

Language n. 15 273-292 Cambridge University Press, 1988.<br />

KEHOE,M. & STOEL-GAMMON, C. “The acquisition of prosodic structure: An<br />

investigation of current accounts of children’s prosodic development” IN Language,<br />

Volume 73, Number 1, 1997.<br />

LlÉO, C. “Acquisition of Prosodic Word Structures in Spanish” IN 2 nd Lisbon Meeting on<br />

Language Acquisition with Special Reference to Romance Languages. 1-4 Junho, 2004.<br />

MASSINI-CAGLIARI, G.“Cantigas de amigo: do ritmo poético ao lingüístico. Um estudo<br />

do percurso histórico da acentuação em português. Tese de Doutorado, UNICAMP,, 1995.<br />

OTA, M. “Phonological theory and the development of prosodic structure” in Annual<br />

Review of Language Acquisition 1, 65-118, 2001.<br />

_________________ “Early prosodic phonology as constraint interaction” in Oh’in Kenkyu<br />

(Studies in Phonology), 5, 79-86, 2002<br />

PRIETO, P. “Early prosodic word acquisition in Catalan” in Second Lisbon Meeting on<br />

Language Acquisition with special reference to Romance Languages. Lisboa, 2005.<br />

RAPP, C. A Elisão de Sílabas Fracas nos Estágios Iniciais da Aquisição da<br />

Fonologia do Português, dissertação de mestrado UFB, 1994.<br />

SANTOS, R.S. A aquisição do acento primário no Português Brasileiro, dissertação de<br />

doutorado UNICAMP, 2001.<br />

SANTOS & FIKKERT, P. “The Acquisition of word stress: bottom-up or top-down: a<br />

cross-linguistic perspective”.In V Workshop on Phonological Acquisition. Holanda:<br />

Rodbod Universiteit, 2005.<br />

SECCO, G. Criações lexicais em uma criança de 20 meses de idade.Dissertação de<br />

Mestrado. Florianópolis: UFSC, 1994.<br />

TAELMAN, H. Syllable omissions and additions in Dutch child language in inquiry into<br />

the function of rhythm and the link with innate grammar. Tese de Doutorado. Holanda:<br />

Universidade Antwerpen, 2004.<br />

WIJNEN, KRIKHAAR & DEN OS “The (non)realization of unstressed elements in<br />

children’s utterances: evidence for a rhythmic constraint”. IN Journal of Child Language,<br />

21, 59-83, 1994.<br />

36 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 27-36, maio-ago. 2008


Concepções de linguagem<br />

e ensino da escrita em materiais didáticos<br />

Émerson de Pietri 1<br />

1 Faculdade de Educação – Universidade de São Paulo (USP)<br />

pietri@usp.br<br />

Abstract. This work presents some results of an investigation about<br />

appropriation of linguistic knowledge in writing teaching proposals. The<br />

analysis of textbooks is intended to reveal the effects of academic and official<br />

mediation in the elaboration of didactic materials.<br />

Keywords. Applied linguistics; writing teaching; knowledge production and<br />

divulgation.<br />

Resumo. O presente trabalho apresenta resultados de investigação sobre os<br />

modos de apropriação de conhecimentos <strong>lingüísticos</strong> em propostas de ensino<br />

de escrita presentes em livros didáticos. A pesquisa tem o objetivo de<br />

conhecer os efeitos das mediações acadêmicas e oficiais no processo de<br />

didatização dos conhecimentos sobre linguagem.<br />

Palavras-chave. Lingüística aplicada; ensino da escrita; produção e<br />

circulação de saberes.<br />

1. Apresentação<br />

Este trabalho se insere num percurso de pesquisa em que se observa a constituição<br />

da língua portuguesa em objeto de estudo e de ensino, no país, em função das condições<br />

históricas que se desenvolveram a partir da década de 70 do século passado.<br />

São apresentados, nesse momento, resultados obtidos num processo de investigação<br />

sobre os modos de apropriação de saberes sobre escrita escolar, por instâncias que<br />

realizam a mediação entre o conhecimento produzido em pesquisas acadêmicas e o<br />

trabalho do professor em sala de aula.<br />

O material de análise, nesta etapa da pesquisa, se constituiu de livros didáticos<br />

publicados nas décadas de 70 a 90 do século XX. O objetivo é compreender a<br />

influência, na elaboração do referido material, das concepções de linguagem presentes<br />

em diretrizes oficiais ou em textos acadêmicos publicados ao longo do período<br />

mencionado.<br />

O período observado neste trabalho apresenta algumas características que fazem<br />

dele um momento interessante para se considerar as relações entre instituições e a<br />

função de determinados agentes que se ocupam de questões referentes ao ensino de<br />

língua portuguesa, em geral, e ao ensino de sua modalidade escrita, em específico.<br />

Nesse período houve, no Brasil, um estreitamento das relações entre políticas de<br />

Educação do Estado, produção de conhecimentos <strong>lingüísticos</strong> em pesquisas acadêmicas,<br />

e a presença cada vez mais constante do livro didático na organização dos saberes e das<br />

práticas de sala de aula.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 37-46, maio-ago. 2008<br />

37


2. Características do período observado<br />

Com a denominada democratização do ensino, realizada pelo regime militar nas<br />

décadas de 60 e 70 do século passado, camadas da população que até então não tinham<br />

tido acesso às práticas escolares ou às variedades lingüísticas de maior prestígio social<br />

passaram a freqüentar os bancos escolares.<br />

Sob a ditadura militar e seu projeto de “desenvolvimento”, a disciplina que<br />

tradicionalmente se denominou português passou a ser denominada, nas séries<br />

fundamentais do ensino, comunicação e expressão (séries iniciais 1º grau), e<br />

comunicação em língua portuguesa (séries finais do 1º grau). Apenas no 2º grau ela<br />

continuou sendo denominada língua portuguesa e literatura brasileira.<br />

Essa alteração se fundamentou na teoria da comunicação. O objetivo do ensino<br />

assumiu então um caráter pragmático e utilitarista: o desenvolvimento do uso da língua.<br />

O aluno passou a ser visto como um emissor-receptor de códigos os mais diversos, e<br />

não mais apenas do verbal. Houve também a valorização da oralidade para a<br />

comunicação cotidiana e a ampliação do conceito de leitura (não mais apenas voltada<br />

para a recepção do texto verbal, mas também do não verbal — a escolha dos textos para<br />

uso no ensino não se faz mais exclusivamente segundo critérios literários, mas segundo<br />

a intensidade de sua presença nas práticas sociais).<br />

A elaboração de guias e propostas curriculares<br />

A necessidade de formação de professores de língua portuguesa, com o objetivo de<br />

alterar as práticas de ensino então em vigência, ou de garantir ao professor maior<br />

autonomia em relação a seu trabalho, produziu um grande movimento institucional no<br />

sentido de promover o acesso a conhecimentos <strong>lingüísticos</strong> produzidos na academia.<br />

As Secretarias Estaduais de Educação, nos anos finais da década de 70, iniciaram<br />

um processo de estabelecimento de convênios com Universidades para o<br />

aperfeiçoamento de professores da rede pública do Estado de São Paulo e para a<br />

produção de propostas curriculares e subsídios a essas propostas.<br />

As ações promovidas tinham o objetivo de proporcionar o intercâmbio de<br />

experiências entre professores de 1º e 2º graus e professores e pesquisadores<br />

universitários que tinham como interesse a mediação entre teorias da linguagem e o<br />

ensino e aprendizagem da produção e interpretação de textos.<br />

Entre essas ações estavam, além da publicação de guias e propostas curriculares, e<br />

de subsídios a eles, também a organização de cursos em convênio com universidades,<br />

ou a formação de monitorias com o objetivo de se organizarem encontros e cursos<br />

regionais. Trata-se de um período de intenso trabalho no sentido de promover melhorias<br />

no ensino com base na apropriação, com objetivos didáticos, de saberes acadêmicos, e<br />

na formação do professor a fim de promover alterações em sua prática pedagógica (c.f.:<br />

Geraldi, Silva & Fiad, 1996).<br />

Promovidas a partir das novas perspectivas que a Lingüística veio oferecer para se<br />

repensar a educação e seu espaço institucional, as propostas de ensino que começavam a<br />

ser elaboradas tinham a finalidade de substituir as orientações que anteriormente<br />

predominavam no ensino de língua portuguesa na escola, ou mesmo de fornecer ao<br />

professor conhecimentos que não lhe foram proporcionados em sua formação inicial.<br />

A constituição da escrita escolar em objeto dos <strong>estudos</strong> <strong>lingüísticos</strong><br />

38 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 37-46, maio-ago. 2008


Nos anos finais da década de 70, a escrita escolar se constituiu em objeto de <strong>estudos</strong><br />

<strong>lingüísticos</strong>. Ou seja: a escrita se constituiu em objeto de investigação acadêmica num<br />

momento em que o valor tradicionalmente atribuído à escrita na escola era relativizado,<br />

e em que se atribuía à oralidade um valor que esta não possuía na perspectiva<br />

tradicional de linguagem. Inversamente, os <strong>estudos</strong> <strong>lingüísticos</strong> modernos, que possuem<br />

na relação língua X fala a constituição de seu objeto de análise, redimensionaram seu<br />

domínio ao considerar a escrita como um objeto válido.<br />

A redação escolar se constituiu em objeto de estudo em pesquisas acadêmicas, no<br />

Brasil, quando passou a integrar o exame vestibular do CESCEM (Centro de Seleção de<br />

Candidatos às Escolas Médicas e Biológicas), em São Paulo. Não havia no país, até<br />

então, pesquisas que tivessem como objeto de estudo o texto escrito produzido em<br />

contexto escolar.<br />

Em 1976, a primeira pesquisa que tratou da redação produzida em prova de<br />

vestibular recorreu a trabalhos estrangeiros para fundamentar a análise sobre a eficácia<br />

dessa produção escrita enquanto recurso de avaliação. O número 16 dos Cadernos de<br />

Pesquisa apresenta um estudo realizado Vianna (1976) a respeito da eficácia do uso da<br />

redação como instrumento de avaliação e “medição da expressão escrita”. O autor<br />

aponta a então pouca produção sobre vestibular e a inexistência de <strong>estudos</strong> sobre<br />

redação.<br />

A constituição desse objeto para os <strong>estudos</strong> <strong>lingüísticos</strong> tornou possível a ampliação<br />

do conjunto de materiais a serem explorados cientificamente pela Lingüística. A<br />

ampliação, nesse caso, não se fez apenas em relação ao interesse por outros tipos de<br />

estruturas semióticas, interesse existente nos <strong>estudos</strong> <strong>lingüísticos</strong> daquele período (c.f.:<br />

Altman (1998)). Ao constituir a escrita escolar em material de análise, os <strong>estudos</strong><br />

<strong>lingüísticos</strong> redimensionaram seu campo de pesquisa ao considerar a modalidade escrita<br />

um objeto válido.<br />

A apresentação, acima realizada, das características do período em questão, teve<br />

o objetivo de mostrar a complexidade das condições em que foram produzidos os<br />

documentos analisados no presente estudo. A seguir, trata-se da fundamentação teórica<br />

e do processo de constituição do corpus para análise.<br />

3. Fundamentação teórica e metodológica e constituição do corpus<br />

Uma vez que as principais questões abordadas neste trabalho dizem respeito a<br />

relações discursivas, e que essas relações são situadas historicamente, a Análise do<br />

Discurso de linha francesa constituiu a fundamentação teórica para o trabalho de análise<br />

realizado.<br />

Partindo da hipótese de que a determinados discursos correspondem estruturações<br />

textuais específicas, isto é, que os gêneros textuais estão em concordância com a<br />

semântica de uma dada formação discursiva (c.f.: Maingueneau, 2005), a observação de<br />

determinados elementos constituintes de determinada estruturação textual, do<br />

intradiscurso, do modo como um discurso se desenvolve na materialidade, sua<br />

formulação, se constitui um meio de observação das características do(s) discurso(s) em<br />

que o(s) texto(s) se inscreve(m). Maingueneau (2005), ao considerar como unidade de<br />

análise não o discurso (entendido como “dispersão de textos cujo modo de inscrição<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 37-46, maio-ago. 2008<br />

39


histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas”), mas um<br />

espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos, estabelece a<br />

precedência do interdiscurso sobre o discurso.<br />

Nesse sentido, a identidade discursiva se estrutura a partir de relações<br />

interdiscursivas, caracterizadas por se fazer como uma interação semântica entre<br />

discursos. Essa interação se constitui como um processo de tradução, de<br />

interincompreensão regrada: um sistema de regras define a especificidade de uma<br />

enunciação com base numa coerência global. Segundo Maingueneau (2005: 22), “o<br />

caráter “global” dessa semântica se manifesta pelo fato de que ela restringe<br />

simultaneamente o conjunto dos “planos” discursivos: tanto o vocabulário quanto os<br />

temas tratados, a intertextualidade ou as instâncias de enunciação...”.<br />

Associada ao processo de constituição dos discursos como o concebe Maingueneau<br />

(2005), a noção de apropriação tal como compreendida por Chartier (1990: 136) — que<br />

considera as diferenças na divisão, a invenção criadora no próprio cerne dos processos<br />

de recepção, nos empregos diferenciados, nos usos contrastantes dos mesmos bens, dos<br />

mesmos textos, das mesmas idéias — possibilita considerar as diferenças existentes nos<br />

processos de recepção em função das regras que definem o estabelecimento das relações<br />

interdiscursivas. Essa perspectiva parece interessante para se observar os modos de<br />

apropriação de concepções de linguagem, para o ensino de sua modalidade escrita,<br />

realizados no processo de elaboração de livros didáticos.<br />

O corpus de análise do presente trabalho é formado por quatro coleções de livros<br />

didáticos para o nível que atualmente se denomina ensino fundamental II (de 5ª a 8ª<br />

séries), publicadas nas décadas de 70, 80 e 90. A escolha do material se fez em função<br />

do momento de sua publicação e sua representatividade para o período, e da<br />

disponibilidade para consulta (os documentos analisados compõem o acervo de livros<br />

didáticos, existente na Biblioteca da Faculdade de Educação da Universidade de São<br />

Paulo, referente ao Projeto Livres). Foram consideradas as atividades referentes a<br />

ensino de escrita presentes nos volumes de cada uma das coleções: Comunicação e<br />

expressão em língua portuguesa (Azavedo Filho et al., 1973); Estudos de linguagem:<br />

área de comunicação e expressão (Lídia Bechara et al., 1983); Descoberta &<br />

Construção (Bisognin, 1991); e Interação e transformação: língua portuguesa<br />

(Bourgogne & Silva, 1996).<br />

Com o objetivo de conhecer as propostas dos livros analisados, em função das<br />

concepções de ensino de língua que as fundamentariam, foram observados os textos de<br />

apresentação encontrados no início dos volumes. As referências a determinadas<br />

concepções teóricas e metodológicas possibilitaram reconhecer as relações estabelecidas<br />

entre as propostas de ensino de escrita e as concepções de ensino e de linguagem que<br />

circulavam, no momento histórico em questão, em documentos oficiais ou acadêmicos.<br />

Uma observação necessária se refere à relação entre data de publicação e o período<br />

em que o material didático em análise fora elaborado: as considerações sobre os<br />

aspectos sociais e políticos devem se referir ao momento da elaboração do material, e<br />

não de sua publicação, quando, muitas vezes, a situação social e política já apresentava<br />

características muito diferentes daquelas que possibilitaram a produção dos livros<br />

publicados.<br />

4. Análise dos dados<br />

40 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 37-46, maio-ago. 2008


A seguir se apresenta a análise dos documentos que compõem o corpus do presente<br />

trabalho. Uma vez que se pretende observar as relações estabelecidas entre um<br />

momento histórico e o(s) posterior(es), a ordem de apresentação das considerações<br />

sobre os dados se faz segundo a cronologia de publicação das coleções analisadas. As<br />

seções recebem a denominação referente ao material observado.<br />

4.1. Comunicação e expressão em língua portuguesa, de 1973<br />

A observação do texto de apresentação encontrado em Azavedo Filho et al. (1973)<br />

possibilita conhecer os modos como foram apropriadas as diretrizes para o ensino<br />

estabelecidas pelas reformas educacionais operadas durante o regime militar. Lê-se, na<br />

apresentação: “Como se sabe, além do código verbal, que tem evidente prioridade no<br />

processo de comunicação e expressão, a linguagem de nossa época freqüentemente<br />

recorre a outros códigos, pois vivemos na era planetária da imagem”. Em consonância<br />

com as diretrizes oficiais, o objetivo é levar ao estabelecimento da “comunicação<br />

moderna”, que se faria “não apenas através da palavra, mas também através do desenho,<br />

do símbolo e dos gestos”.<br />

A coleção se propõe a “aplicar a nova Lei de Ensino”, que entendia ser o objetivo<br />

central do ensino de Língua Portuguesa o de “levar o aluno a comunicar-se melhor, a<br />

fim de que possa emitir e receber mensagens, falando ou escrevendo, lendo ou<br />

ouvindo”.<br />

Em relação ao ensino da escrita, parece haver uma tentativa de conciliação entre os<br />

objetivos até então existentes para formar o bom escritor e os novos objetivos que<br />

aproximavam, da escrita, “outros códigos”: “Quanto ao ensino da redação, procura<br />

motivá-lo [o aluno] em função dos textos lidos, conforme a boa norma, mas com<br />

recursos de visualidade, numa experiência até certo ponto inédita”.<br />

Nesse sentido, as propostas para produção textual (encontradas na seção intitulada<br />

“Atividades de Comunicação e Expressão”) apresentam uma situação inicial, a partir da<br />

qual determinadas tarefas deveriam ser cumpridas, para, a seguir, ser realizado o<br />

trabalho de produção escrita. As situações iniciais consistem, em geral, na apresentação<br />

de um título, um fragmento de texto, ou um texto curto, com base nos quais se propõe<br />

alguma atividade que recorra ao trabalho com a oralidade (dramatização; elaboração de<br />

jornal falado; composição musical), com a plasticidade (expressar idéias com palavras e<br />

cores; elaboração de colagem a partir de materiais impressos), ou com a expressão<br />

corporal.<br />

Dentre os elementos que compõem a situação inicial e sua relação com a posterior<br />

produção escrita, evidencia-se a preocupação em oferecer ao aluno a caracterização de<br />

um modelo que, muitas vezes, fundamenta a solicitação para que se produza um texto<br />

pertencente a um gênero determinado: desde a apresentação dos textos ou solicitação<br />

para sua produção, há referência a poemas, peças de teatro, letras de hinos, ou ainda a<br />

preleção, telegrama etc.<br />

O que parece caracterizar as atividades propostas é a preocupação em oferecer<br />

parâmetros para a elaboração dos textos, que vão desde a continuação de um trecho de<br />

narrativa, à apresentação de roteiro para produção de texto argumentativo, ou mesmo à<br />

reprodução de modelos de textos pertencentes a gêneros discursivos bastante<br />

estabilizados.<br />

4.2. Estudos de linguagem: área de comunicação e expressão, de 1983<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 37-46, maio-ago. 2008<br />

41


Nesta coleção, as propostas para produção textual são encontradas nas seções<br />

intituladas “Criando com palavras” e “Criando não só com palavras”, nos volumes<br />

referentes às 5ª e 6ª séries, e “Produção de textos” para as 7ª e 8ª séries.<br />

São recorrentes, neste material didático, as propostas de produção textual em que se<br />

faz apelo a que o aluno seja criativo. Evidencia-se concepção de produção escrita que<br />

considera a liberdade, a ausência de restrições ao processo de elaboração textual, como<br />

um elemento importante para o desenvolvimento da expressão do aluno.<br />

Assim, as propostas de atividades se fazem comumente fundadas em instruções para<br />

que o aluno crie e/ou utilize a imaginação, ainda que a situação inicial da proposta<br />

muitas vezes solicite trabalho de pesquisa a respeito de determinado tema. Mesmo<br />

nesses casos, as informações obtidas com a pesquisa são desconsideradas no momento<br />

da produção escrita, quando a imaginação é requisitada para o cumprimento da tarefa<br />

proposta.<br />

A liberdade é outro termo bastante recorrente nos enunciados das atividades.<br />

Solicita-se ao aluno que produza seu texto “usando livremente” as palavras e, quando o<br />

tema possibilita, a produção é associada a algo relacionado à realidade do próprio aluno<br />

(sua infância; o lugar onde mora; sua família).<br />

Percebe-se, nesta publicação, uma forte relação com as diretrizes estabelecidas para<br />

o ensino de língua portuguesa, durante o regime militar, quanto à ênfase naquilo que se<br />

concebera, no período, sobre o que fosse comunicação e expressão, e, nesta perspectiva,<br />

sobre o trabalho com códigos outros que não apenas o verbal, principalmente em sua<br />

modalidade escrita.<br />

Porém, é também visível, nesta coleção, a predominância de propostas de atividades<br />

que se pautam fortemente sobre a idéia de critatividade, mas de modo a associar esta<br />

idéia a aspectos relacionados a imaginação e liberdade. Esta característica pode ajudar a<br />

compreender os modos como a apropriação de concepções de linguagem foi realizada,<br />

no material didático analisado, em função dos saberes acadêmicos então em evidência,<br />

dos usos desses saberes na elaboração de documentos oficiais para o ensino de língua<br />

portuguesa, e do próprio contexto social e político em que esse processo se realizou.<br />

Nesse sentido, se, por exemplo, os guias curriculares para o ensino de língua<br />

portuguesa (São Paulo, 1975), publicadas no Estado de São Paulo na década de 70, se<br />

fundamentavam em concepção gerativista de linguagem, e se houve, na elaboração<br />

desses documentos, a apropriação da noção de criatividade presente nesta concepção, é<br />

possível perceber que a apropriação dessa noção nos documentos oficiais, em função<br />

das condições em que estes foram produzidos, ensejam leitura já em desacordo com a<br />

compreensão do conceito de criatividade na elaboração teórica chomskyana. Some-se a<br />

esse distanciamento, outro, promovido pela apropriação realizada, no livro didático<br />

analisado, a partir das diretrizes oficiais e, provavelmente, em função das condições<br />

sociais e políticas em que fora elaborado esse material, isto é, em pleno processo de<br />

abertura política, iniciado a partir de 1979, somado aos movimentos que começaram a<br />

se intensificar, no período, pela redemocratização.<br />

A apropriação desse conceito, portanto, foi mediada por fatores que modalizaram<br />

sua recepção em função das regras próprias às condições discursivas que direcionavam<br />

essa apropriação em diversas instâncias e momentos (a produção acadêmica; a produção<br />

oficial; a produção do material didático), e suas relações com as condições sociais e<br />

políticas mais amplas.<br />

42 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 37-46, maio-ago. 2008


4.3. Descoberta & Construção, de 1991<br />

Na apresentação da coleção, a seção intitulada “Para começo de conversa” informa<br />

os objetivos do material didático: desenvolver a comunicação, considerada<br />

“fundamental para viver, compreender, interpretar, criticar e até mesmo transformar a<br />

sociedade”, o que seria feito de forma “atraente”, tornando o estudo mais prazeroso, de<br />

modo a que o aluno pudesse fazer “a sua história, construindo seu próprio<br />

conhecimento”.<br />

É característica desse material a manutenção de alguns elementos encontrados nas<br />

coleções observadas anteriormente, porém de modo a conciliá-los com concepção de<br />

linguagem que, a partir de seu próprio título, ou das palavras lidas em seu texto de<br />

apresentação, pode ser relacionada à tentativa de levar o aluno a construir-se<br />

autonomamente, em função de suas próprias experiências: sua expressão seria ao<br />

mesmo tempo possibilidade de atuação no mundo, de construção de seu conhecimento e<br />

de consciência de si mesmo. Talvez possa ser observada aí influência de concepção<br />

construtivista de linguagem.<br />

Há outros elementos encontrados nesse material que permitem reconhecer a idéia de<br />

autonomia, de construção do próprio conhecimento, nos fundamentos das propostas: as<br />

atividades de produção de textos escritos são acompanhadas de seções em que são feitas<br />

sugestões para a realização das tarefas. Em mais de uma delas, sugere-se ao aluno que<br />

não se preocupe, a princípio, com questões de caráter formal, mas que escreva como se<br />

fala, sem se preocupar com a escrita; depois de “despejar as idéias no papel”,<br />

produzindo-se o rascunho, conserta-se, trocam-se palavras, cortam-se frases, confirmase<br />

se o que se escreveu é aquilo que se pretendia. Diz-se, por exemplo, para o aluno não<br />

apagar, mas riscar as palavras no rascunho, pois elas podem ser reaproveitadas,<br />

“ressucitadas”. Aconselha-se ao aluno que se expresse, em primeiro lugar, pois o mais<br />

importante é o conteúdo.<br />

Ainda que apresente informações sobre a necessidade de considerar a elaboração do<br />

rascunho como um ponto de partida, ou de chamar a atenção do aluno para as relações<br />

entre texto e suporte, o que poderia revelar preocupação com as condições de produção<br />

do texto, o objetivo de fato é que a elaboração de textos funcione como instrumento de<br />

organização e de expressão do pensamento. Afirma-se, nesse sentido, que “uma redação<br />

com boa fluência tem as idéias bem encadeadas, os pensamentos escoando, passando<br />

espontaneamente pelos nossos olhos”. Do mesmo modo que as frases, também os<br />

pensamentos devem ser “bem emendados”.<br />

Dessa maneira, fatores relacionados às condições de produção do texto são<br />

colocados em função desse objetivo primeiro que possui na linguagem instrumento para<br />

o pensamento, mediadora das relações do sujeito com a realidade e possibilitadora, para<br />

ele, sujeito, da construção de seus conhecimentos. Encontram-se, por exemplo,<br />

instruções em que se afirma não ser preciso “fazer uma redação muito grande”, pois<br />

“escrevendo um pouco mais de dez linhas já está bom”; ou, em relação ao gênero do<br />

texto a ser produzido, encontram-se passagens em que, após instruir para que se faça um<br />

rascunho, “jogando as palavras todas no papel”, sugere-se que, caso se considere mais<br />

fácil, o texto seja escrito “em forma de poesia”.<br />

Mesmo quando um determinado gênero é focalizado, não se estabelecem parâmetros<br />

para a elaboração do texto, mas propõe-se que a atenção se volte para a avaliação do<br />

resultado final, como pode ser percebido na seguinte proposta de atividade: “você não<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 37-46, maio-ago. 2008<br />

43


precisa colocar ritmo nem rima no poema que vai escrever. Depois de escrito é que você<br />

verá se tem ritmo. O importante é o conteúdo”.<br />

Outro elemento que se evidencia neste material é a preocupação em levar o aluno à<br />

constituição de sua identidade. As propostas de produção de textos para que o aluno<br />

trate de si mesmo são recorrentes e associadas ao uso da imaginação.<br />

Encontramos, então, nesse material, a co-ocorrência de concepções de linguagem e<br />

de ensino de escrita de forma a, ao que parece, tentar solidarizar propostas já existentes<br />

com novas perspectivas de linguagem e de ensino de língua. O uso da língua para a<br />

comunicação se associa, neste momento, à possibilidade de compreensão, interpretação<br />

e crítica, sendo considerada, inclusive, um instrumento para transformar a sociedade.<br />

Essas possibilidades todas, porém, se encontram subordinadas à concepção de<br />

linguagem como instrumento para a construção individualizada do conhecimento e da<br />

identidade.<br />

A coleção observada é publicada no momento mesmo em que a democracia<br />

começava a ser reconstruída no país; porém, dado o tempo necessariamente dispendido<br />

para a elaboração do material didático, as condições em que foi produzido são aquelas<br />

encontradas nos momentos finais do processo de abertura política. Nessas condições, a<br />

análise mostra que os modos de apropriação de saberes sobre escrita, para a elaboração<br />

de propostas de ensino, se caracterizaram pela tensão entre o individual e o social.<br />

4.4. Interação e transformação: língua portuguesa, de 1996.<br />

Em sua apresentação, denominada Mensagem ao professor, afirma-se que os livros<br />

componentes da coleção que então se publicava haviam surgido na sala de aula, da<br />

experiência dos autores como docentes e de suas relações com o grupo de professores e<br />

de alunos com quem trabalharam, além de “todos aqueles que estão ou estiveram, um<br />

dia, engajados num processo de reconstrução social”.<br />

O objetivo da coleção é que “o aluno observe, apreenda e interfira de forma criativa<br />

no sistema lingüístico de que se utiliza (a aprendizagem com função social)”.<br />

Conhecimento lingüístico e sociedade estão fortemente relacionados nesse material.<br />

Nesse sentido, a consciência do funcionamento da língua está associada à formação do<br />

cidadão ou cidadã capaz de refletir sobre seu papel e suas intencionalidades. Nos<br />

procedimentos propostos para as aulas, a fundamentação na noção de texto e de<br />

contexto é acompanhada das noções de grupo, de comunidade, que perpassam as<br />

propostas de atividades.<br />

Em sua relação com propostas de ensino anteriores, é possível perceber que parte<br />

dos objetivos é compartilhada — por exemplo, em relação ao desenvolvimento da<br />

“capacidade de comunicação (emissão e recepção) através de diferentes linguagens”; a<br />

esses objetivos comuns somam-se outros próprios à concepção sócio-interacionista de<br />

linguagem, que fundamenta a elaboração do material: a adequação da linguagem e a<br />

noção de texto, por exemplo, são dois elementos valorizados pela referida concepção e<br />

estão entre os objetivos principais do material didático observado.<br />

O que se evidencia nas atividades propostas, entretanto, é a ênfase na expressão do<br />

aluno quanto ao tratamento de questões sociais e políticas, não havendo atividades que<br />

focalizem a elaboração do texto em relação a sua composição e a aspectos <strong>lingüísticos</strong>.<br />

Assim, há propostas de atividades de pesquisa sobre temas como a ditadura, ou os<br />

Direitos Humanos, em seção denominada “Fazendo valer o contexto”, mas essas<br />

atividades não subsidiam o trabalho de produção escrita. Este trabalho, proposto em<br />

44 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 37-46, maio-ago. 2008


seção intitulada “De leitor a escritor”, enfatiza temas de caráter social, histórico e<br />

político, em geral de modo a relacioná-los a aspectos culturais próprios à comunidade<br />

do aluno. Os gêneros a serem produzidos, ou não são definidos — pede-se ao aluno que<br />

elabore “um pequeno texto” —, ou são gêneros escolares; por vezes, a escolha do<br />

gênero é de responsabilidade do aluno: “O tema para seu texto é “fome”, mas o estilo do<br />

texto você é quem vai decidir: pode ser um artigo, uma notícia, uma narrativa ficcional,<br />

um poema, uma dissertação... A opção é sua”.<br />

Quando há proposta de elaboração de um determinado gênero, como o artigo, por<br />

exemplo, não são oferecidos elementos que evidenciem para o aluno características do<br />

texto a ser produzido ou aspectos das condições de produção do gênero indicado.<br />

O principal objetivo, nesse material, é o de formar o cidadão capaz de tratar de<br />

temas de caráter social, histórico ou político. Aspectos relacionados a conhecimentos<br />

<strong>lingüísticos</strong> se encontram em segundo plano, ou não se aproximam das atividades de<br />

produção escrita.<br />

5. Algumas considerações<br />

A análise das quatro coleções que compõem o corpus definido para esta etapa da<br />

pesquisa possibilitou evidenciar alguns elementos sobre os modos como as propostas de<br />

produção de textos escritos respondem às perspectivas teóricas e políticas existentes nos<br />

momentos históricos em que os livros didáticos foram elaborados.<br />

Os dados obtidos até esse momento permitem afirmar que a apropriação de<br />

conhecimentos <strong>lingüísticos</strong> em materiais didáticos é determinada por fatores políticos,<br />

seja em relação ao estabelecimento, oficial ou acadêmico, da concepção de linguagem<br />

que fundamentará as atuações sobre o ensino, seja em relação aos modos como a<br />

concepção estabelecida fundamentará a elaboração das atividades a serem realizadas<br />

pelos alunos.<br />

A análise evidencia que as propostas de produção escrita, produzidas durante o<br />

período do regime militar, enfatizam a composição dos textos e o aprendizado dos<br />

recursos <strong>lingüísticos</strong>, apresentando ao aluno, inclusive, modelos que o auxiliassem na<br />

realização das tarefas. Em consonância com o projeto econômico estabelecido pelos<br />

militares, as propostas de ensino de língua portuguesa em sua modalidade escrita<br />

privilegiam o desenvolvimento de determinadas competências, colocando ênfase nos<br />

objetos e objetivos do aprendizado.<br />

Após esse momento histórico, quando os movimentos pela redemocratização se<br />

iniciam, as propostas de ensino da produção escrita são mais fortemente influenciadas<br />

pela imagem do sujeito escritor e pelos papéis sociais a ele atribuídos, do que pelos<br />

conhecimentos sobre linguagem e sua relações com a estruturação do texto quanto à<br />

composição e à escolha dos recursos <strong>lingüísticos</strong>.<br />

Essas características se mostram na ausência de restrições ou parâmetros formais<br />

para a elaboração do texto escrito; na ausência de determinação quanto aos gêneros<br />

propostos para a produção escrita; no tratamento conferido aos temas propostos para a<br />

elaboração do texto, direcionado por noções como as de liberdade, criatividade ou<br />

criticidade.<br />

Nesse sentido, percebe-se que a produção dos materiais didáticos, em sua relação<br />

com instâncias oficiais ou acadêmicas, se fundamenta em perspectivas teóricas que<br />

assumem relevância política no período: há, nesses casos, sempre tensão entre o político<br />

e o acadêmico, com as propostas didáticas ora se contrapondo, ora se aproximando, ou<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 37-46, maio-ago. 2008<br />

45


das diretrizes oficiais, ou das produções acadêmicas, em função de questões sóciohistóricas<br />

mais amplas.<br />

6. Referências Bibliográficas<br />

ALTMAN, C. A pesquisa lingüística no Brasil (1968-1988). São Paulo:<br />

Humanitas/FFLCH/USP, 1998.<br />

CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL,<br />

1990.<br />

GERALDI, J. W., SILVA, L.L.M. & FIAD, R. S. “Lingüística, Ensino de Língua<br />

Materna e Formação de Professores”, in D.E.L.T.A., vol.12, nº 2, pp.307–326,<br />

1996.<br />

MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba, PR: Criar Edições, 2005.<br />

SÃO PAULO (Estado) Guias curriculares para o ensino de 1. Grau. São Paulo:<br />

Cerhupe, 1975.<br />

SOARES, M. “Português na escola: história de uma disciplina curricular.” In: BAGNO,<br />

M. (org.) Lingüística da norma. São Paulo, Loyola, 2002.<br />

VIANNA, H. M. “Redação e medida da expressão escrita: algumas contribuições da<br />

pesquisa educacional.” Cadernos de Pesquisa, n. 16, p.41-47, 1976.<br />

Coleções analisadas:<br />

AZAVEDO FILHO, L. A.; THOMAZ, L. S.; COUTTO BOUÇAS, M. A. Comunicação<br />

e expressão em língua portuguesa. Rio de Janeiro, Edições Gernasa, 1973.<br />

BECHARA, L.; BEAUCHAMP, J.; SCHAPOCHNIK, E.; MACHADO, K. B. Estudos<br />

de linguagem: área de comunicação e expressão. São Paulo, Editora Moderna,<br />

1983.<br />

BISOGNIN, T. R. Descoberta & Construção. São Paulo, FTD, 1991.<br />

BOURGOGNE, C. V. B. & SILVA, L. S. Interação e transformação: língua<br />

portuguesa. São Paulo, Editora do Brasil, 1996.<br />

46 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 37-46, maio-ago. 2008


GÊNEROS TEXTUAIS NO PROCESSO DE ENSINO-<br />

APRENDIZAGEM<br />

Rosa Maria Nechi Verceze<br />

Universidade Federal de Rondônia - UNIR<br />

Rosa_nechi@hotmail.com<br />

rosanechi@uol.com.br<br />

Abstrat:This paper examines the knowledge of secondary level students about<br />

discursive genres’ foundations and presents a diagnosis on the use in textual<br />

productions on the basis of theoretical reflections able to help teachers in<br />

their reading and writing activities in the classroom. It is based on authors<br />

who treat texts’ heterogeneity, emphasize interaction and recognize different<br />

text types and different textualization types: Bakhtin, Gumperz e Koch.<br />

Key Words: construction of the write do text; discursive genres; processes of<br />

the inference; teaching; textual processing.<br />

Resumo: Este artigo examina o conhecimento de alunos do ensino médio<br />

sobre os fundamentos dos gêneros discursivos, apresentando um diagnóstico<br />

do uso em produções textuais com base em reflexões teóricas passíveis de<br />

subsidiar o professor em seu trabalho de leitura e produção textual.<br />

Fundamenta-se em autores que abordam a heterogeneidade dos textos,<br />

privilegiam a interação, reconhecendo tipos diferentes de textos e diferentes<br />

formas de textualização: Bakhtin, Gumperz, Koch.<br />

Palavras chaves: Construção do texto escrito; ensino; gêneros discursivos;<br />

processos de Inferência; processamento textual.<br />

1. Introdução<br />

Várias pesquisas recentes sobre o ensino-aprendizagem de produção escrita<br />

mostram a importância de atividades de produção de textos na escola em situações<br />

concretas, reais e precisas. Esta abordagem permite colocar em prática os<br />

conhecimentos advindos das últimas décadas de pesquisa de campo da lingüística<br />

textual, da sociolingüística interacional e da pragmática que, em síntese, procuram dar<br />

ao texto uma dimensão textual-discursiva, centrada na interlocução (Brandão, 2000).<br />

Para o desenvolvimento deste estudo, a pesquisa focalizou o ensino/aprendizagem em<br />

escolas da rede pública de Guajará-Mirim, em Rondônia, visando à verificação dos<br />

conhecimentos adquiridos por alunos do ensino médio sobre os fundamentos que regem<br />

os gêneros discursivos e ao diagnóstico do uso em produções textuais.<br />

Esta pesquisa faz parte de um projeto intitulado "Lingüística Aplicada no Ensino<br />

de Língua Materna" que vem sendo desenvolvido com o objetivo de investigar como o<br />

professor administra os processos de interação professor/aluno na sala de aula. Sob<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 47-53, maio-ago. 2008<br />

47


minha orientação, alunos PIBIC do Curso de Graduação em Letras da Universidade<br />

Federal de Rondônia-UNIR - Campus de Guajará-Mirim desenvolvem pesquisas várias<br />

para subsidiar o professor da rede pública. Os alunos PIBIC ministraram algumas aulas<br />

a fim de verificar com vem sendo realizado o trabalho de leitura e produção de textos.<br />

Para isso, introduziram conceitos para a elaboração dos gêneros discursivos nessas aulas<br />

e trabalharam com algumas modalidades de gêneros – propaganda, notícia, ent<strong>revista</strong>,<br />

etc. –, coletando várias produções de alunos, duas das quais selecionadas para análise<br />

neste artigo.<br />

2. Gêneros discursivos, interação, texto<br />

Os gêneros discursivos são unidades de sentido com propósitos comunicativos, pois<br />

manifestam diferentes intenções do autor: informar, convencer, seduzir, entreter, sugerir<br />

etc. Em função dessas intenções, pode-se categorizar os gêneros discursivos<br />

considerando a função comunicativa que neles predomina. O texto jornalístico, por<br />

exemplo, caracterizado como opinativo, informativo, interpretativo e diversional,<br />

obedece às funções comunicativas da atividade jornalística: persuadir, informar, orientar<br />

e divertir. Mas as funções comunicativas não são os únicos elementos que configuram<br />

um gênero discursivo; seus propósitos enunciativos dependem das condições de sua<br />

produção e circulação. É preciso assim levar em conta as situações enunciativas. O<br />

editorial, por exemplo, se comparado a outro gênero opinativo, certamente vai revelar<br />

mais diferenças que semelhanças, uma vez que orienta o público para a opinião do<br />

próprio jornal sobre um determinado assunto, enquanto os demais casos cumprem a<br />

função de apresentar a opinião do jornalista ou do colaborador. Sua estrutura<br />

argumentativa clássica e o seu conteúdo temático, por serem bem definidos,<br />

comprometem a liberdade de estilo: sujeito implícito, sentido denotativo, argumentos<br />

lógicos, adjetivação controlada, voz passiva, objeto destacado e sujeito que se oculta em<br />

função da busca da conquista de credibilidade do leitor.<br />

Para Bakhtin (1992) o gênero se define como "tipos relativamente estáveis de<br />

enunciados" elaborados pelas diferentes esferas de utilização da língua. Considera três<br />

elementos "básicos" que configuram um gênero discursivo: conteúdo temático, estilo e<br />

forma composicional. Nas condições de produção dos enunciados e dos gêneros<br />

discursivos inserem-se as intenções comunicativas e as necessidades sócio-interativas<br />

dos sujeitos nas esferas de atividade, em que o papel e o lugar de cada sujeito são<br />

determinados socialmente. Em cada esfera de uso da linguagem há uma concepção<br />

padrão de destinatário a que se dirige o locutor; esse destinatário sempre adota uma<br />

atitude responsiva ativa adiante da totalidade acabada do gênero. O discurso estabelece<br />

intercâmbios sócio-culturais, fruto de processos cognitivos e conhecimentos<br />

acumulados historicamente que atendem a essa atitude responsiva ativa. Bakhtin (1992)<br />

enfatiza que quando fala/escreve ou lê/ouve, o indivíduo ativa seu conhecimento prévio<br />

do paradigma dos gêneros a que ele teve acesso nas suas relações com a linguagem. Em<br />

conseqüência, há de se considerar na prática pedagógica, ao orientar os alunos para a<br />

produção textual ou para a leitura, essa dimensão que constitui o que Bakhtin chamou<br />

de relação entre forças centrípetas (concentração) e forças centrífugas (expansão). Nos<br />

textos, as forças de concentração atuam ao lado das forças de expansão. É a<br />

concentração que garante a economia nas relações de comunicação e a<br />

intercompreensão entre os falantes pela estabilidade do sistema, e é a expansão que<br />

48 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 47-53, maio-ago. 2008


permite a variabilidade: a criação, a inovação, a escolha do idioleto e do estilo etc.<br />

(Brandão 2000).<br />

Para Gumperz (2002), a diversidade lingüística advém das necessidades das<br />

diferentes maneiras de expressão com que o falante depara ao se comunicar. Para dar<br />

conta disso, ele se baseia em conhecimentos e estereótipos utilizados para categorizar<br />

eventos, inferir intenções e apreender expectativas como recurso comunicativo nas<br />

interações verbais, nas mais variadas situações sociais. O conjunto de informações<br />

internalizadas é crucial para a manutenção do envolvimento do falante num discurso e<br />

para o uso eficaz de estratégias persuasivas. O autor procura evitar o dilema inerente às<br />

abordagens tradicionais da Sociolingüística, que explicam os fenômenos sociais como<br />

generalizações sobre grupos isolados mediante critérios não-<strong>lingüísticos</strong> como classe,<br />

sexo, idade, profissão, etnia, etc. para justificar os comportamentos individuais. Para<br />

ele, os fenômenos socio<strong>lingüísticos</strong> se baseiam em evidências empíricas de cooperação<br />

social e são a priori independentes de categorias sociais.<br />

São pistas de contextualização todos os traços <strong>lingüísticos</strong> que contribuem para a<br />

sinalização de pressuposições contextuais. Isso implica dizer que os falantes utilizam as<br />

constelações de traços presentes na estrutura de superfície das mensagens para sinalizar,<br />

e os ouvintes para interpretar, qual é a atividade que está ocorrendo, como o conteúdo<br />

semântico deve ser entendido e como cada frase se relaciona ao que precede ou sucede.<br />

Na maioria dos casos, estas não são percebidas conscientemente pelos falantes,<br />

constituindo mudanças de código, dialeto, estilo, fenômenos prosódicos, escolhas<br />

lexicais e sintáticas, expressões pré-formuladas e estratégias de seqüenciamento que têm<br />

funções semelhantes de contextualização. Os fenômenos de contextualização<br />

subjacentes aos julgamentos que os participantes de uma conversa tecem uns sobre os<br />

outros durante as trocas interacionais são as inferências. Para Gumperz (2002), "o<br />

processo inferencial é de natureza sugestiva, nunca assertiva, baseado em<br />

pressuposições: são pressuposições hipotéticas sobre os propósitos comunicativos."<br />

Quanto mais compartilhado for o conhecimento social na interlocução, tanto mais esta<br />

tende à normalidade – o diálogo bem-sucedido, em que as inferências são<br />

compreendidas sem problemas.<br />

O estudo de Gumperz sobre as pistas de contextualização e as inferências sustentase<br />

na modalidade falada da língua, nos processos de interpretação quando da negociação<br />

de significados numa conversa. Como esta análise refere-se à modalidade escrita, tentarse-á<br />

realizar um estudo das produções textuais de alunos adaptando-se a teoria de<br />

Gumperz ao discurso escrito. Pode-se legitimamente pensar que as pistas de<br />

contextualização e as inferências são aplicáveis também à escrita, pois o que está em<br />

jogo é a construção do sentido do discurso. Na escrita, não há o interlocutor em<br />

presença, e disso vem a necessidade de se resgatar por meio de signos convencionais<br />

todas as informações relevantes para dotar de coerência o discurso/texto, o que na fala<br />

envolve sinais para<strong>lingüísticos</strong> e não-verbais, dado que o interlocutor se acha em<br />

presença no ato de interação.<br />

Além disso, o texto falado ou escrito é parte de um gênero, assim como toda<br />

tipologia de gênero é sustentada por um texto, falado ou escrito. Afirma Koch (2003)<br />

que "O conhecimento superestrutural (...) permite reconhecer textos como exemplares<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 47-53, maio-ago. 2008<br />

49


de determinado gênero ou tipo; envolve (...) conhecimentos sobre as macrocategorias ou<br />

unidades globais que distinguem os vários tipos de textos, sobre a sua ordenação ou<br />

seqüenciação...”, definindo texto como a “manifestação verbal, constituída de elementos<br />

<strong>lingüísticos</strong> de diversas ordens, selecionados e dispostos de acordo com as virtualidades<br />

que cada língua põe à disposição dos falantes no curso de uma atividade verbal, de<br />

modo a facultar aos interactantes não apenas a produção de sentidos, como a fundar a<br />

própria interação como prática sociocultural."<br />

Marchuschi (2005), por sua vez, afirma que “... ao escolher um gênero, já se escolhe<br />

aproximadamente uma forma textual, mas a recíproca não é verdadeira. Não há relação<br />

de biunivocidade entre texto e gênero...” Ao perguntar “quais as relações entre a forma<br />

textual e os propósitos do gênero?”, introduz elementos de cunho discursivo que vão<br />

além da textualidade em si. Nesse sentido, Sobral (2005), partindo de Bakhtin, alega:<br />

“... os textos são “o plano material de realização dos discursos e gêneros ... O que [os]<br />

mobiliza são as estratégias discursivas,... que lhes impõem inflexões e formas de<br />

realização/estruturação a partir de um dado projeto enunciativo, de uma dada<br />

arquitetônica, [unindo elementos] estáveis e instáveis, objetivos e subjetivos, cognitivos<br />

e práticos, textuais e discursivos/genéricos.<br />

Por outro lado, as estratégias cognitivas presentes aos textos são estratégias de uso<br />

do conhecimento partilhado. E esse uso depende, em cada situação de fala, dos<br />

objetivos, da quantidade de conhecimento disponível, das crenças, opiniões e atitudes.<br />

As inferências a elas ligadas geram informações novas subjacentes ao texto na estrutura<br />

de superfície; a intertexualidade torna necessário explicitar no texto o conhecimento<br />

mais relevante. O professor pode usar as pistas de contextualização, representadas na<br />

escrita pelos conectivos de coesão, por operadores argumentativos e por seleção léxica,<br />

identificando por meio delas as inadequações semânticas, lexicais, fragmentos de<br />

orações, ausência de conectivos coesivos, etc., o que compromete a compreensão na<br />

interlocução discursiva.<br />

3. Análise dos gêneros notícia e editorial em produções textuais de alunos<br />

Exemplo 1 - Análise de uma “notícia de jornal” de um aluno do 1º ano do<br />

ensino médio<br />

Palestra de Conscientização<br />

Neste sábado, dia 24 de julho de 2005, o Sebrae Ideal em parceria com a<br />

Associação de Guajará-Mirim promoverá uma palestra de prevenção, quanto ao<br />

uso da camisinha, envolvendo toda a população. É com a participação da<br />

Associação de Moradores do Município será possível contar com um grande<br />

número de participantes neste evento, onde haverá orientações e conscientização<br />

no uso da camisinha no ato da relação sexual, prevenindo assim, um maior índice<br />

de contágil de doenças sexualmente transmissíveis na hora da prática de relações<br />

sexual.<br />

A “notícia” apresenta problemas devido à falta de domínio de elementos <strong>lingüísticos</strong><br />

pelos quais o texto se atualiza no momento da enunciação, o que torna a estrutura<br />

lingüística confusa e incompleta. Essa incompletude causa uma compreensão parcial do<br />

objeto em relação ao leitor, que com sua atitude responsiva ativa, não consegue detectar<br />

na totalidade, o que está sendo dito. Uma notícia deve apresentar a concentração de<br />

50 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 47-53, maio-ago. 2008


elementos constitutivos: quem, o quê, o como, o por quê, o quando e o onde e uma<br />

determinada regularidade e estabilidade. Aqui, esses elementos aparecem parcialmente.<br />

Logo no início temos o quando "dia 24 de julho de 2005", em seguida um quem<br />

Sebrae Ideal e Associação de Guajará-Mirim e um o quê uma palestra. Os demais<br />

elementos que sustentam a base do corpo da notícia: o como e o por quê não são<br />

apresentados de forma explícita ao leitor, pode pressupor-se que o como seja entendido<br />

no enunciado "haverá orientações e conscientização no uso da camisinha no ato da<br />

relação sexual" que na verdade seria trocado por um para quê neste caso e, o por quê,<br />

também aparece, numa estrutura lingüística confusa, pressupondo ser o enunciado<br />

"prevenindo ... sexual". Na verdade esse por quê é estendido como a conseqüência<br />

favorável da palestra - o ato de prevenir. Deduzindo, assim, o como e o por quê ficam<br />

comprometidos na estrutura lingüística, pois o interlocutor tanto pode entender que<br />

orientar, conscientizar e prevenir respondem o para que, como o por quê, causando um<br />

mal-entendimento na notícia. Do ponto de vista semântico, não existe o como, que<br />

responderiam as perguntas de que forma? ou como acontecerá? Isso deveria ser<br />

contextualizado em outro enunciado explícito. Por exemplo: "se a palestra será<br />

composta por mesa redonda com várias palestras, apenas um palestrante, por um debate<br />

com o público, etc". Observa-se, também, a falta dos outros elementos como: quando,<br />

demarcando o dia e a hora do evento, como também o onde - o local de sua realização.<br />

(veja negrito no texto).<br />

Faltam assim informações que deveriam ser explicitadas nesta notícia para tornar o<br />

texto coerente. Nessa notícia, por exemplo, o autor, ao informar seu interlocutor sobre<br />

quem realizará a palestra, deixa inferida uma ambigüidade: O evento será no Sebrae ou<br />

na Associação de Guajará? Isso precisaria estar na superfície. Outro exemplo, refere-se<br />

à passagem onde ... sexual, que de certa forma é interpretada pelo leitor como a<br />

conscientização da população para prevenir-se contra Aids. Essa inferência do leitor<br />

deveria estar explícita no texto, uma vez que o objetivo pressupõe o controle da Aids.<br />

Neste caso, a generalização” “doenças sexualmente transmissíveis” não destaca o que<br />

seria primordial na informação. Neste sentido, deve-se chamar a atenção do aluno para<br />

questionamentos como qual o objetivo central da Palestra? Como posso dizer isso?<br />

Como organizar meu texto, destacando a Aids como o chamariz para persuadir minha<br />

platéia a participar do evento? para ajudá-lo a separar as informações pertinentes para<br />

tal propósito e dispensando outras menos necessárias. As pistas de contextualização<br />

poderiam ser marcadas pelos elementos <strong>lingüísticos</strong>-"chave" (seleção léxica)<br />

necessários para a objetividade: dia (sábado 24 de julho), (local Sebrae e Associação de<br />

Guajará), palestra, prevenção, orientação, conscientização, doenças sexuais, Aids,<br />

relação sexual, que certamente auxiliariam o aluno numa melhor concentração das<br />

informações.<br />

Exemplo 2 - Redação de um aluno do 2º ano do ensino médio.<br />

Os deputados sem máscaras<br />

Atualmente no estado de Rondônia e nos municípios e também no Brasil todo o<br />

povo cada dia se decepciona com os parlamentares que sobem no palanque<br />

prometendo mudar a região e o mundo para melhor. Os deputados parecem<br />

conduzir o acordo e negociações que interessem a eles, só pensam em si próprio.<br />

Nas campanhas eleitorais contratam cantores famosos, carros de propaganda dos<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 47-53, maio-ago. 2008<br />

51


mais bonitos, sobrem em palanque com os alto-falantes, falando dos outros<br />

candidatos, pedindo apoio de voto. Aqui, os Deputados depois que são eleitos<br />

esquecem das pessoas que os elegeram, mostrando emendas para as negociações e<br />

para aprovação, somente para o interesse deles, onde vão adotar a política<br />

econômica deles e convencer a população por 4 anos. As pessoas pelo que<br />

entendo tudo isso, acreditam que estas autoridades têm que se interessar pelo<br />

povo, tem que achar um novo caminho. Sou uma eleitora que acredito que a<br />

construção de uma política digna tem que ser feita com os trabalhadores.<br />

A análise aqui se restringe a identificar os problemas de argumentação que possam<br />

auxiliar o professor a instruir o aluno. Como a argumentação se baseia em opiniões<br />

pessoais ou coletivas que expressam apreciações, pontos de vista, julgamentos,<br />

aprovação ou desaprovação, a fundamentação dos fatos em provas concretas é de<br />

extrema importância, donde a necessidade de exemplos concretos para extrair uma<br />

conclusão. A redação contém afirmações generalizantes: Atualmente ... melhor. Nessa<br />

passagem faltam informações – dados ou fatos que sirvam de suporte para a préformulação<br />

o povo cada dia se decepciona. Ou seja, é preciso encontrar dados<br />

consistentes de apoio para justificar o por quê o povo cada dia se decepciona. Isso por<br />

ser feito por exemplos concretos de um fato particular da vida política do nosso país.<br />

Na passagem "Nas campanhas eleitorais...” “a política econômica deles", a<br />

fundamentação para essas informações poderia ser sustentada com o acréscimo de<br />

dados histórico, por exemplo; pois todos sabemos que em toda história do Brasil, o<br />

povo, por falta de informação é sempre persuadido a votar naqueles que usam máscaras<br />

como sugere o título. O povo "embarca" em promessas e conseqüentemente vota errado.<br />

O ponto para a argumentação é utilizar-se de acontecimentos históricos concretos de<br />

autoridades eleitas durante todo o percurso da política no Brasil que foram corruptos,<br />

agiram em benefício próprio e não de uma coletividade, etc ou mesmo de argumentos<br />

recentes que estão na mídia.<br />

De forma clara, este fragmento "As pessoas ... os trabalhadores." Representa o<br />

discurso popular, fragmentado da mídia, "revela um autor acrítico, preso a lugarescomuns<br />

imerso num universo conceitual muito pobre" (Platão & Fiorim 1997). O<br />

acréscimo para fundamentar os argumentos neste fragmento seria o questionamento,<br />

também com provas concretas da política brasileira. Por que não há uma política digna<br />

que beneficie o povo? Quais os interesses que impedem isso? Qual o papel do trabalho<br />

diante da política atual? Qual o papel dos sindicatos? Etc. Contudo, sempre é preciso<br />

delimitar e selecionar os argumentos que são mais importantes para o texto e, sem<br />

dúvida, é o professor que deve despertar no aluno estas reflexões. As generalizações não<br />

têm aqui o apoio de dados consistentes (Platão e Fiorin, 1997). Como a inferência só<br />

pode partir da interpretação que o ouvinte faz do que o falante deseja ou pretende<br />

comunicar, é na fundamentação em provas concretas e fatos comprobatórios, exemplos<br />

específicos, que este poderá negociar sentidos e compartilhar informações. Na escrita, é<br />

preciso explicitar partes das inferências no nível de superfície, transformando-as em<br />

constituintes <strong>lingüísticos</strong> e contribuindo para fornecer informações e argumentos que<br />

ficam implícitos no discurso.<br />

4. Considerações finais<br />

52 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 47-53, maio-ago. 2008


O conhecimento das teorias lingüísticas, sobretudo da pragmática, da lingüística<br />

textual e da sociolingüística interacional, é crucial para mediar o processo de leitura e<br />

produção de texto em sala de aula. O professor precisa ainda atualizar-se sempre, e<br />

fornecer aos alunos leituras que também possam ampliar seu conhecimento para além<br />

do senso comum, pois só assim o aluno terá condições de iniciar bem a produção<br />

escrita, e paulatinamente sanar as deficiências lingüísticas e argumentativas. A partir<br />

dessa etapa, a obtenção de informações necessárias para a construção do texto pode ser<br />

realizada com mais propriedade. Por isso, o questionamento aqui proposto pode tem<br />

bons resultados se o professor tiver conhecimentos necessários para auxiliar o aluno na<br />

ampliação do que fica inferido no texto escrito, principalmente por causa da falta de<br />

leitura. Trazer as inferências necessárias para a estrutura de superfície ajuda na<br />

completude do texto, na coerência que o texto deve ter e é um trabalho que o professor<br />

pode realizar através de correção participativa das produções no processo de reescrita.<br />

Isso lhe permitirá intervir no domínio da microestrutural textual, propiciando assim o<br />

acesso ao domínio da argumentação e da escrita.<br />

1 Referências Bibliográficas<br />

BAKHTIN, M. (1992). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes<br />

BRANDÃO, H. N. (2000). Texto, Gênero do Discurso e Ensino. In: Gêneros do<br />

discurso na Escola. BRANDÃO, H. N. (Org.), São Paulo: Editora Cortez<br />

BRASIL. (1999) Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e<br />

Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC<br />

GUMPERZ, J.J. (2002). Convenções de Contextualização. In Sociolingüística<br />

Interacional. RIBEIRO, B. T. & GARCEZ, P. M. (Orgs.), São Paulo: Edições<br />

Loyola<br />

KOCH, I. V. (2003). O Texto e a Construção dos Sentidos. São Paulo: Contexto<br />

MARCUSCHI, L. A. (2005). Novas perspectivas para o ensino da linguagem. Plenária<br />

2, III SIGET, 17 a 19 de agosto de 2005, UFSM, RS.<br />

PÉCORA, A. (1989). Problemas de Redação: São Paulo: Martins Fontes<br />

PLATÃO, F. S. & FIORIN, J.L. (1997). Lições de Texto: leitura e redação. São Paulo:<br />

Ática<br />

SOBRAL, A.U. (2005). Gêneros textuais ou tipos de textualização? Comunicação<br />

apresentada ao III SIGET, 17 a 19 de agosto de 2005, UFSM, RS.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 47-53, maio-ago. 2008<br />

53


TEORIAS DA LINGUAGEM E AÇÃO PEDAGÓGICA:<br />

UM OLHAR SOBRE AS ATIVIDADES DE<br />

PRODUÇÃO/RECEPÇÃO DE GÊNEROS ORAIS<br />

Rozana Aparecida Lopes Messias<br />

Rua: Santos Dumont, 1193 – CEP. 19806-062 – Assis/SP<br />

e-mail: romessias@hotmail.com<br />

Pós-graduação em Educação – UNESP/ Marília<br />

Abstract. The unsatisfactory levels of writing and reading in formal situations<br />

of communication presented by the students that finish the elementary and<br />

secondary education got relevance in the last decades. This context has<br />

permitted a variety of studies focused on oral genres at school, besides the<br />

researches centered on the theoretical and methodological aspects that guide<br />

this practice. Thus, we discuss the attitude of a teacher of Portuguese<br />

concerning the work with the production/reception of oral texts in a 5th grade<br />

classroom. As a way of illustrating the educative actions, we compared the<br />

teaching plan of Portuguese to the activities concretely performed.<br />

Keywords. Language theories; PCNs; Pedagogical practice;<br />

Production/reception of oral texts.<br />

Resumo. A preocupação com os níveis insatisfatórios de expressão oral, em<br />

situações formais de comunicação, apresentados pelos egressos do ensino<br />

Fundamental e Médio ganhou relevância na última década. Tal panorama tem<br />

gerado inúmeros <strong>estudos</strong> focados na produção/recepção de gêneros orais na<br />

escola, assim como nos aspectos teóricos e metodológicos que norteiam essa<br />

prática. Discutiremos, então, neste espaço, o posicionamento de um professor<br />

de língua portuguesa da Rede Oficial de Ensino no que tange ao trabalho com<br />

a produção/recepção de textos orais em sala de aula, a partir da observação de<br />

suas aulas e de seu plano de ensino.<br />

Palavras-Chave. Teorias da linguagem; PCNs; Prática pedagógica;<br />

Produção/recepção de textos orais.<br />

1. O contexto<br />

O trabalho que ora apresentamos possui como foco norteador a observação de como<br />

são entendidas e efetuadas as atividades de produção/recepção de textos orais na sala de<br />

aula. Assim sendo, inserimo-nos em uma escola de Ensino Fundamental e Médio da<br />

Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo e acompanhamos o trabalho de um<br />

professor de língua portuguesa, em uma classe de 5ª série, durante um ano letivo. Antes<br />

de adentrarmos à realidade encontrada na sala de aula observada faremos algumas<br />

considerações acerca do ambiente e dos participantes da pesquisa empreendida. O Plano<br />

de Gestão – documento que retrata a realidade da escola e o seu projeto político<br />

pedagógico – a que tivemos acesso descreve a escola como emergente. È ressaltado o<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 55-64, maio-ago. 2008<br />

55


fato de que criada em 1986, caracterizava-se, assim como a vila em que se situava, por<br />

sua simplicidade refletida não só nas instalações, mas também na clientela, em sua<br />

maior parte constituída por crianças humildes do bairro.<br />

Esse quadro, porém, aos poucos foi alterado devido ao crescimento e melhoria das<br />

condições de vida do bairro, que passou a abrigar “residências e casas de comércio de<br />

características melhores” (Plano de Gestão, p.1). Assim, melhorias foram executadas<br />

no ambiente escolar do ponto de vista estrutural, ressaltando-se que isso foi possível<br />

devido a “uma equipe administrativa e docente unida, compromissada e muito bem<br />

vista pela comunidade” (Plano de Gestão, p.1).<br />

Sobre este aspecto, a coordenadora pedagógica, com quem tivemos um longo<br />

contato, esclareceu-nos que a diminuição na rotatividade de professores foi o que<br />

permitiu a construção e execução de projetos direcionados à recuperação da auto-estima<br />

das crianças. Propiciando, dessa maneira, condições para que estas mostrassem sua<br />

capacidade criativa para a comunidade, através de exposições, feiras científicas etc.<br />

A escola passou, então, a ser procurada por outro contingente da sociedade e,<br />

segundo relato da coordenadora, isso constituiu um fator positivo, pois auxiliou na<br />

formação de uma clientela mais heterogênea; possibilitando aos alunos de classes<br />

sociais menos favorecidas serem vistos pela sociedade pelo seu desempenho positivo e<br />

não por seus problemas e dificuldades.<br />

Ademais, o perfil dos estudantes, projetado pelo Plano de Gestão da escola,<br />

ratificava nossa impressão de que os alunos da 5ª série, foco de nossa observação,<br />

enquadravam-se entre aqueles de poder aquisitivo menor. Além disso, a classe em<br />

questão fazia parte do período vespertino, retratado como sendo freqüentado por alunos<br />

do próprio bairro ou adjacências, cujos pais trabalham na zona rural, ausentado-se quase<br />

o dia todo. Assim, muitas dessas crianças “alimentam-se na escola e por diversas vezes<br />

a escola faz o papel da família, orientando-os para a vida” (PLANO DE GESTÃO, p.<br />

8).<br />

No que tange à faixa etária, dos trinta educandos da classe observada, a maioria<br />

tinha entre 11 e 12 anos, apenas quatro tinham 13 anos, e dois, 14 anos. Neste sentido,<br />

não havia choque entre os interesses comuns, pois mesmo os mais velhos, pelo que<br />

pudemos perceber, não apresentavam atitudes diferentes dos demais. Além disso, a<br />

classe pareceu-nos ter um desempenho mediano.<br />

Quanto à professora, constatamos que se formara por uma universidade pública<br />

estadual em 1988, e, desde o início da carreira havia se dedicado ao ensino de língua<br />

estrangeira e à educação infantil (pré-escola), assumindo o cargo de professora de<br />

Língua Portuguesa 12 anos depois. Assim, em nossas conversas, sempre procurou<br />

deixar claro que não tinha muita experiência no ensino de língua materna para o nível<br />

Fundamental (5ª a 8ª séries), mas que estava aberta às novas propostas e que procurava<br />

sempre fazer o melhor possível. Mostrava, também, preocupação com as “deficiências<br />

de alfabetização” com que algumas crianças chegavam à 5ª série. Tal apreensão estava<br />

sempre presente em seu discurso, quando conversávamos e, até mesmo, em comentários<br />

durante as aulas, nos momentos em que estimulava os alunos com dificuldades a não<br />

faltarem às aulas de reforço 1 . Essas afirmações podem ser constatadas nos protocolos de<br />

observação:<br />

“(...) a professora explica, novamente, a importância das aulas de reforço e que as faltas em<br />

demasia prejudicam o aprendizado”, “(...) apesar de os livros estarem na classe resolve passar<br />

os exercícios na lousa por causa de um aluno que não consegue copiar do livro para o caderno.<br />

(Não consegue passar de letra de forma para letra cursiva, explica para mim)” (Prot. nº 2).<br />

56 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 55-64, maio-ago. 2008


A propósito de seu entendimento sobre nossa real intenção em observar suas aulas,<br />

notamos que, apesar da explicação do conteúdo de nosso projeto, a professora<br />

acreditava que observaríamos se era permitida aos alunos a utilização da fala durante as<br />

aulas. Esse fator fez com que demorássemos um pouco para perceber como as<br />

atividades orais eram encaminhadas, uma vez que havia, por parte da mesma, certa<br />

insistência em interagir oralmente com os alunos. Porém, isto não constituiu um<br />

obstáculo para nossos apontamentos, pois, no decorrer do tempo, a superficialidade de<br />

suas ações foi substituída por uma postura de naturalidade diante de nossa presença.<br />

Portanto, as explicitações até aqui postas representam o panorama em que<br />

concentramos nossos <strong>estudos</strong>; os interlocutores representados pela coordenadora, pelos<br />

alunos, bem como da professora que nos permitiu partilhar de suas aulas e utilizar seu<br />

trabalho como fonte para análise de uma situação tão complexa como é o ensino de<br />

língua na escola. E, inseridos neste contexto, partilhando dos momentos vividos nas<br />

aulas de língua portuguesa por estes parceiros, foi que desenvolvemos nosso trabalho.<br />

2. Práticas de oralidade: plano de ensino e ação pedagógica<br />

Durante o processo de pesquisa, observamos diferentes fontes de dados. Porém, para<br />

explicitar um pouco do que notamos a respeito das práticas de produção de textos orais<br />

na sala de aula, analisaremos, neste espaço, algumas ações dos interlocutores<br />

(professora e alunos); tendo em vista as proposições acerca da produção oral expressas<br />

no plano de ensino de língua portuguesa, da classe acompanhada. Antes de adentrar a<br />

esta questão, discorreremos, brevemente, acerca do documento observado.<br />

De maneira geral, o Plano de Ensino é um documento cuja elaboração, pelo menos<br />

em tese, é iniciada com o ano letivo, no período de planejamento que antecede o início<br />

das aulas e tem continuidade durante o primeiro bimestre, quando os professores<br />

conhecem melhor os grupos em cujas classes serão aplicados os planos. Participam de<br />

sua elaboração os professores das séries equivalentes, com o intuito de trabalhar<br />

conteúdos afins, além de tentar seguir o mesmo cronograma de execução destes. Assim,<br />

o plano de ensino da 5ª série C foi elaborado conjuntamente pela professora da classe e<br />

pelos professores das outras quintas séries da escola.<br />

Com relação ao que é proposto no respectivo plano, iniciando pelos objetivos gerais<br />

da disciplina naquela série, temos uma preocupação explícita voltada para a questão da<br />

linguagem oral: “desenvolver no aluno o hábito da leitura, despertando seu senso<br />

crítico, assim como a habilidade para utilizar a linguagem oral e escrita para<br />

estruturar sua experiência, entender, analisar e explicar a realidade” (grifo nosso).<br />

Esta preocupação pode ser ratificada nos objetivos específicos da disciplina na série,<br />

com afirmações do tipo: “Fazer com que o aluno consiga reconhecer as intenções do<br />

enunciador de um texto oral“ ou ainda “(...) além disso, espera-se que o aluno seja<br />

capaz de planejar o uso da linguagem oral e redigir diferentes tipos de textos,<br />

utilizando com desenvoltura os padrões da escrita” (grifo nosso).<br />

Uma análise prévia destas afirmações nos leva a acreditar que há, por parte dos<br />

professores, um conhecimento, mesmo que superficial, do que propõem os PCNs para o<br />

ensino de língua portuguesa, no que diz respeito ao trabalho com a linguagem oral e sua<br />

importância para a vida do aluno:<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 55-64, maio-ago. 2008<br />

57


(...) cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral no planejamento e<br />

realização de apresentações públicas: realização de ent<strong>revista</strong>s, debates, seminários,<br />

apresentações teatrais etc. Trata-se de propor situações didáticas nas quais essas<br />

atividades façam sentido de fato, pois é descabido treinar um nível mais formal da fala,<br />

tomado como mais apropriado para todas as situações. A aprendizagem de<br />

procedimentos apropriados de fala e escuta, em contextos públicos, dificilmente<br />

ocorrerá se a escola não tomar para si a tarefa de promovê-la (PCNs, 1998, p. 25).<br />

Contudo, quando comparamos os objetivos com os conteúdos propostos para serem<br />

trabalhados no decorrer do ano, notamos que, apesar de os objetivos estarem em<br />

consonância com a ênfase no ensino do oral, os conteúdos se dividem em leitura e<br />

interpretação de textos escritos, produção de textos escritos (redação) e aspectos<br />

gramaticais da língua, não havendo nenhuma explicitação sobre escuta e produção de<br />

textos orais. Desta forma, voltando nossa atenção para a divisão das atividades durante<br />

os quatro bimestres temos:<br />

1º bimestre: Leitura, interpretação, reescrita e elaboração de textos diversificados:<br />

jornalísticos, histórias em quadrinhos; processo de coesão e coerência nos textos estudados;<br />

significado das palavras: sinônimo e antônimo; fonemas e letras; encontros vocálicos e<br />

consonantais.<br />

2º bimestre: Leitura, interpretação e elaboração de textos diversificados: jornalísticos,<br />

histórias em quadrinhos; processos de coesão e coerência nos textos estudados; ortografia,<br />

acentuação e sinais de pontuação; classes gramaticais (substantivos, adjetivos e verbos); tipos<br />

de frases.<br />

3º bimestre: Leitura, interpretação e elaboração de textos diversificados (propaganda);<br />

processo de coesão e coerência dos textos estudados; ortografia; procedimento e organização<br />

do discurso direto e indireto; classes gramaticais (pronomes, artigos); formação de palavras,<br />

prefixo e sufixo.<br />

4º bimestre: Leitura, interpretação e elaboração de textos diversificados (texto literário);<br />

processo de coesão e coerência nos textos estudados; ortografia; tipos de texto: narração e<br />

descrição; sujeito e predicado; revisão dos conteúdos estudados nos bimestres anteriores.<br />

Percebemos, na divisão dos conteúdos a serem estudados durante os quatro<br />

bimestres, que a preocupação com atividades voltadas para a ênfase do oral, ou que<br />

tenham neste um ponto de partida, inexiste. Esse fato mostra uma dissonância entre os<br />

objetivos e os conteúdos contemplados. Além disso, retirando os pontos relacionados à<br />

produção de textos escritos e leitura, a divisão dos conteúdos centra-se em pontos<br />

direcionados à nomenclatura gramatical, mais especificamente à tradicional. Não há<br />

referência a atividades que enfatizem a reflexão lingüística. Assim, da maneira como<br />

está organizado o plano, a metalíngua é o ponto de partida, caracterizando o quadro,<br />

apontado pelos PCNs, de um ensino de gramática desarticulado das práticas de<br />

linguagem 2 .<br />

Além disso, no que diz respeito à produção textual, nota-se um direcionamento para<br />

atividades de produção escrita, dividida em produção de textos jornalísticos e<br />

quadrinhos (1º e 2º bimestres), propaganda (3º bimestre) e literários (4º bimestres). Esta<br />

proposta, por sua vez, distancia-se do continuum de gêneros textuais proposto por<br />

Marcuschi (2001, p.42):<br />

O contínuo dos gêneros textuais distingue e correlaciona os textos de cada modalidade<br />

(fala e escrita) quanto às estratégias de formulação que determinam o contínuo das<br />

58 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 55-64, maio-ago. 2008


características que produzem as variações das estruturas textuais-discursivas, seleções<br />

lexicais, estilo, grau de formalidade etc., que se dão num continuo de variações,<br />

surgindo daí semelhanças e diferenças ao longo de contínuos sobrepostos.<br />

Por exemplo, na indicação de produção de textos jornalísticos não há referência a<br />

quais gêneros textuais serão enfocados, se notícia, artigo, carta do leitor ou ent<strong>revista</strong>,<br />

considerando que estes são sugeridos como possibilidades de textos a serem trabalhados<br />

na categoria “gêneros de imprensa”. O mesmo ocorre com a proposta de produção de<br />

textos literários, para os quais os PCNs sugerem crônicas, contos e poemas, que, da<br />

mesma forma, não estão especificados.<br />

Esta atitude faz emergir o desconhecimento, por parte dos elaboradores do plano, do<br />

conceito de gênero textual e da diversidade de textos que podem ser trabalhados dentro<br />

de cada gênero proposto. Isto, além de acarretar a falta de direcionamento adequado nas<br />

atividades de produção escrita, distancia os alunos de uma visão mais ampla da relação<br />

entre a escrita enquanto uma atividade vinculada às situações reais de uso da língua.<br />

Assim sendo, não há nenhuma referência à produção de textos orais, o mesmo<br />

acontecendo com as atividades de escuta de textos orais, que, por sua vez, constituem-se<br />

em algo essencial no contexto do plano em questão, pois somente através de exercícios<br />

de escuta de textos orais seria possível alcançar o que é proposto no objetivo específico<br />

da disciplina: “fazer com que o aluno consiga reconhecer as intenções do enunciador<br />

de um texto oral”.<br />

Por outro lado, no item destinado aos procedimentos metodológicos, local em que<br />

os professores expõem a forma como pretendem trabalhar os conteúdos planejados, há<br />

ênfase na utilização de “aulas expositivas, leituras silenciosa e em voz alta pelos<br />

alunos. Leitura de pequenas histórias pelo professor, atividades que propiciem a<br />

produção de textos orais e escritos” (Grifo nosso). Novamente, encontramos expressa a<br />

preocupação com as atividades voltadas para a produção de textos orais, porém, não em<br />

conformidade com as concepções que norteiam a aplicação de tais atividades.<br />

Este fator é facilmente detectado se verificarmos que as atividades em que há<br />

utilização da linguagem oral estão direcionadas para a leitura. Neste caso, apesar de<br />

utilizada, a linguagem oral serve de representação ao texto escrito, ou seja, o aluno não<br />

cria um texto oral, pois a base discursiva é a modalidade escrita da língua. Os conteúdos<br />

do plano estão, portanto, divididos em leitura e produção de textos escritos. Em<br />

conseqüência, a proposta de escuta e produção de textos orais não é contemplada.<br />

É importante salientar, então, que, ao mencionarem a questão da escuta de textos<br />

orais, os PCNs antevêem que esta atividade deve objetivar o desenvolvimento do<br />

domínio dos gêneros que apóiam a aprendizagem escolar de Língua Portuguesa, bem<br />

como de outras áreas. Nesse contexto, sugerem gêneros como a exposição oral, o<br />

relatório de experiência, a ent<strong>revista</strong>, o debate, a palestra, o teatro, entre outros, como<br />

forma de exercitar gêneros da vida pública. Sendo, esta, considerada uma das funções<br />

da escola no tocante ao trabalho com os gêneros orais.<br />

Por este prisma, a desconsideração das atividades de escuta de gêneros orais, que<br />

serviriam como suporte para levar os alunos a “construir, progressivamente, modelos<br />

apropriados ao uso do oral nas circunstâncias p<strong>revista</strong>s” (PCNs, p.68) representa um<br />

entrave ao desenvolvimento da habilidade de produção de textos orais mais<br />

formalizados, representativos das exigências do dia a dia em sociedade.<br />

Ao retomarmos o plano de ensino produzido pelos professores encontramos na<br />

proposição de trabalho com os textos jornalísticos uma possibilidade de exercitar<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 55-64, maio-ago. 2008<br />

59


gêneros orais relacionados aos usos públicos da linguagem 3 . Porém, não há, como<br />

vimos, definição dos tipos de textos jornalísticos que serão enfatizados, o que dificulta a<br />

observação da divisão dos textos em gêneros, bem como sua relação a situações<br />

concretas de comunicação oral ou mesmo escrita. Neste caso, a produção textual está,<br />

apesar de vaga, veiculada à produção escrita, não havendo nenhuma relação com a<br />

elaboração de textos orais.<br />

Consequentemente, o fato de vincular a afirmação “atividades que propiciem a<br />

produção de textos orais e escritos” (grifo nosso) à metodologia, nos leva a acreditar<br />

que os professores pensam em atividade oral como meio de trabalhar os demais<br />

conteúdos (leitura ou mesmo respostas em voz alta) e não como um conteúdo que pode<br />

ser trabalhado em si (produção e escuta de textos orais). Ou, como ponto de partida para<br />

a reflexão de elementos formais da língua.<br />

3. O professor, os alunos e as formas não-padrão de expressão oral na sala de aula<br />

Não há como examinar o desenvolvimento das atividades orais em sala de aula sem<br />

tropeçar no problema do preconceito frente ao conjunto de variedades de uso nãopadrão.<br />

Desta forma, durante a observação da sala de aula, algumas questões<br />

relacionadas a este tema nos saltaram aos olhos.<br />

Nesse caso, percebemos que, com relação às manifestações orais que fugiam do<br />

padrão, muitas vezes a professora corrigia as colocações dos alunos. Estas ocorrências<br />

podem ser verificadas em algumas passagens dos protocolos de registro, como por<br />

exemplo:<br />

“um aluno diz: Professora eu ponhei manso, os colegas dizem ponhei não, coloquei, a<br />

professora reforça: coloquei ou pus.” (prot. Nº 3)<br />

“em meio às perguntas alguém diz: é só ponhá, a professora corrige ‘ponhá não, pôr”<br />

(Prot. Nº 12)<br />

“alguém diz que logo ‘vorta’, a professora corrige ‘vorta não, pelo amor de Deus’,<br />

simultaneamente os colegas também corrigem ‘volta” (Prot. Nº 12)<br />

“A professora inicia a chamada. Um aluno responde: fartô! Os outros corrigem e ele diz: É<br />

qui nóis fala errado! A professora não comenta” (prot. Nº 3).<br />

“Alguns alunos conversam em voz baixa, percebo que estão falando de paqueras, um diz<br />

para o outro: ‘aí nós foi na casa dela’, uma menina que ouve a conversa diz: ‘nós fomos, seu<br />

besta.” (Prot. Nº 4)<br />

“o aluno diz e se não cabê? Prontamente um colega corrige cabê não, couber” (prot.<br />

Nº12).<br />

Os excertos das observações transcritos anteriormente mostram uma postura<br />

corretiva da professora diante da manifestação oral não-padrão. O que comprova, mais<br />

uma vez, o desconhecimento por parte da mesma do que dizem os PCNs a respeito da<br />

variação lingüística e da importância da adequação da fala em determinadas situações<br />

enunciativas. Em conseqüência disto, os alunos, apesar de falarem uma variedade<br />

distanciada da considerada padrão pela escola, posicionavam-se da mesma forma<br />

corretiva entre si.<br />

60 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 55-64, maio-ago. 2008


Sobre esta questão, Ramos (1997, p.11) ressalta que as formas estigmatizadas<br />

“devem ser tratadas na escola com naturalidade e ‘traduzidas’ por formas do dialeto<br />

padrão. E é exatamente por seu peso social que seria importante o professor estar atento<br />

a elas, de modo a evitar que sua atitude de rejeição se manifeste”. Neste caso, o que<br />

verificamos é justamente o contrário. Isto acarreta um posicionamento preconceituoso<br />

também por parte dos alunos, que não têm consciência de que seu dialeto não-padrão é<br />

igualmente uma maneira válida de comunicação, e agem como se a única forma de<br />

expressão “correta” fosse representada pelo padrão ensinado pela escola.<br />

Este quadro vai de encontro a tudo que a lingüística moderna prega com relação ao<br />

ensino de língua materna, primeiramente porque esta forma de agir auxilia o<br />

apagamento da variedade falada pelos alunos e, conseqüentemente, pela comunidade em<br />

que vivem. O fato incute-lhes a concepção de que sua forma de falar é “errada”, o que é<br />

altamente prejudicial para sua auto-estima, além de não oportunizar a aquisição de<br />

outras formas de expressão, fazendo com que tenham uma visão dicotômica da língua,<br />

dividida entre o que é certo (português aprendido na escola) e errado (português falado<br />

por eles).<br />

Castilho (1988, p.54), ao expor a questão da visão que os professores possuem da<br />

norma, ressalta que a postura acima relatada é infundada, pois não há português certo e<br />

errado e, sim, “modalidades de prestígio e desprestigiadas, cada qual correspondendo ao<br />

meio em que se encontra o falante”.<br />

Assim, devido à miscigenação social ocorrida nas escolas, nas últimas décadas, esta<br />

visão calcada no preconceito frente ao português não-padrão é incoerente com a<br />

realidade escolar. Isto porque na rede pública de ensino a maioria absoluta dos alunos<br />

não provém de um meio em que a modalidade padrão seja a adotada. Neste sentido, o<br />

autor, entre outras idéias, defende “o estudo da variação lingüística entre nossas práticas<br />

costumeiras de ensino de língua materna”, além de reforçar o fato de que:<br />

do ponto de vista do ensino da norma, uma das finalidades da escola, conquanto não a<br />

única, a maior dificuldade a considerar pelos professores está na imposição brusca do<br />

padrão lingüístico de uma classe sobre outra, com o que continuaremos a promover nas<br />

classes mais baixas o ‘complexo de incompetência lingüística (CASTILHO, 1988, p.<br />

57).<br />

Considerando os apontamentos de Castilho, verificamos que a professora<br />

desconhece (ou conhece e não pratica) o conceito da variação lingüística. Assim, sua<br />

ação faz com que se perpetue a idéia infundada de que a língua portuguesa é<br />

complicada, difícil de ser aprendida. Ainda sobre este aspecto, Bagno (2002, p.70)<br />

coerentemente afirma que cabe ao professor de língua portuguesa o papel de auxiliar na<br />

extinção do preconceito lingüístico. Para tal, deveria apresentar “os valores sociais<br />

atribuídos a cada variedade lingüística”, extirpando a noção de erro, pois já está mais<br />

do que comprovado cientificamente que “não existe erro em língua; o que existe é<br />

variação e mudança”, característica esta comum a todas as línguas vivas. Diante disto, a<br />

escola deveria, concernente ao ensino de língua,<br />

discutir os valores sociais atribuídos a cada variante lingüística, enfatizando a carga de<br />

discriminação que pesa sobre determinados usos da língua, de modo a conscientizar o<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 55-64, maio-ago. 2008<br />

61


aluno de que sua produção lingüística, oral ou escrita, estará sempre sujeita a uma<br />

avaliação social, positiva ou negativa (Bagno, 2002, p. 75).<br />

Igualmente, Bagno (p.79) relaciona esta forma de encarar o ensino de língua com a<br />

questão da formação do professor, que precisa ser <strong>revista</strong>. Segundo ele, é preciso<br />

distinguir o que os universitários dos cursos de Letras estudarão na Faculdade e o que<br />

aplicarão na sala de aula. Para isso, é necessário que tenham uma formação científica<br />

sólida, como a de qualquer outro profissional, o que não significa “que ele vá transmitir<br />

aos seus alunos exatamente aquilo que aprendeu na universidade”. Significa que é<br />

necessário que ele possua conhecimentos científicos suficientes para que saiba lidar<br />

com os “fenômenos <strong>lingüísticos</strong> e pedagógicos que vai encontrar em sua atuação<br />

profissional”.<br />

As afirmações de Bagno encaixam-se perfeitamente no quadro que vislumbramos na<br />

sala de aula observada, tendo em vista nossa constatação de que a falta de suporte<br />

teórico, por parte da professora, dificulta o apagamento do preconceito lingüístico,<br />

reforçando, assim, a atitude preconceituosa nos alunos e fazendo com que tenham uma<br />

visão deturpada da Língua Portuguesa, afastada da variedade falada por eles e próxima à<br />

ensinada pela escola como padrão.<br />

O autor formula, também, reflexões contundentes sobre a necessidade de mudança<br />

pedagógica frente aos objetivos do ensino de língua, pela escola. Primeiramente,<br />

sustenta que as escolas de Ensino Fundamental e Médio pareciam ter como objetivo<br />

formar professores de português ou escritores e poetas. E esta atitude é, no mínimo,<br />

irracional, pois professores se formam na Faculdade e escritores e poetas, por sua vez,<br />

não se formam na escola. Estes, na maioria das vezes, são autodidatas.<br />

Portanto, os professores precisam ter em mente que o objetivo da escola, no que diz<br />

respeito à língua, é:<br />

formar cidadãos capazes de se exprimir de modo adequado e competente, oralmente e<br />

por escrito, para que possam se inserir de pleno direito na sociedade e ajudar na<br />

construção e na transformação dessa sociedade – é oferecer a eles uma verdadeira<br />

educação lingüística (Bagno, 2002, p. 80).<br />

4. Considerações para finalizar<br />

Durante todo o processo de confecção de nosso trabalho, cujo fragmento ora<br />

apresentamos, procuramos seguir o percurso dos pressupostos orientadores de um<br />

trabalho de valorização do oral, atrelados ao ensino de Língua Portuguesa. Assim,<br />

optamos por desvendar as teorias cujo enfoque incidisse na oralidade, bem como as<br />

propostas das teorias lingüísticas do texto acerca da inclusão da fala no ensino de língua<br />

materna. Destarte, procuramos desvelar pontos intrínsecos ao oral, quais sejam: os<br />

gêneros textuais e o preconceito lingüístico. Além disso, buscamos nos PCNs para o<br />

ensino de língua portuguesa o direcionamento que as atividades voltadas para o trabalho<br />

com a linguagem oral deveriam tomar, na escola.<br />

Para a verificação de como a oralidade efetuava-se no processo ensinoaprendizagem<br />

de Língua Portuguesa, voltamos nosso olhar para uma realidade<br />

específica. Assim, durante a observação, nossos interlocutores, ou seja, a professora e os<br />

62 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 55-64, maio-ago. 2008


alunos, representantes diretos do processo de ensino de Língua Portuguesa naquela<br />

realidade, foram os responsáveis por nossas inquietações acerca do que vivenciávamos.<br />

Isto deveu-se tanto pelo hábito de olharmos a prática do professor da posição de quem<br />

ensina, quanto pelas reflexões a que fomos remetidos, acerca de situações, antes<br />

vivenciadas, e, não entendidas.<br />

E foi assim, partilhando o processo ensino-aprendizagem de língua, como<br />

pesquisadora, que vislumbramos nuances antes obscurecidas pela posição de quem<br />

protagoniza a cena. Descobrimos que, por trás do trabalho real efetuado pela professora<br />

e da maneira como esta encarava as atividades com a linguagem oral, existiam pontos<br />

importantes a serem refletidos. Vimo-nos, então, diante de questões como teoria/prática,<br />

formação do professor, deficiência de cursos que auxiliem a formação do professor em<br />

serviço, carga de trabalho excessiva acarretando cansaço e desânimo, por parte do<br />

professor, frente ao estudo de novos materiais direcionados à melhoria das aulas. Entre<br />

estas dificuldades externas à prática da sala de aula vimos, ainda, a sobrecarga de<br />

atividades atribuídas à coordenação, dificultando um trabalho que, realmente, pudesse<br />

auxiliar o professor a repensar as novas propostas e a direcioná-las a sua prática. Todos<br />

estes fatores mostraram-se, para nós, como obstáculos representativos da falta de um<br />

trabalho direcionado para a produção e escuta de textos orais, da forma como os PCNs<br />

postulam.<br />

Constatamos que estas questões estão imbricadas e não há como não enxergá-las por<br />

trás das ações do professor. Um exemplo é o posicionamento preconceituoso, frente às<br />

variedades não-padrão, por parte da professora e dos alunos. Esta postura comprova o<br />

quanto a falta de embasamento acerca da variação lingüística pode dificultar o<br />

entendimento da língua como atividade produzida em situações concretas de<br />

enunciação, que varia de acordo com o grau de formalidade exigido pela situação. Ao<br />

posicionar-se de forma corretiva frente às manifestações orais que fogem do padrão, o<br />

professor perpetua uma visão sistemática da língua, em que a dicotomia certo e errado<br />

dita as regras. E, mais ainda, este posicionamento leva a um distanciamento ainda maior<br />

do contínuo de gêneros textuais, proposto por Marcuschi e enfatizados pelos PCNs,<br />

fazendo do ideal de um trabalho voltado para a produção e escuta de textos orais algo<br />

difícil de ser concretizado.<br />

Deste modo, toda riqueza dialogal presente na sala de aula, a esperteza e inquietação<br />

das crianças, em participar das atividades propostas pela professora, perdiam-se em<br />

atividades em que o oral era apenas um pretexto para a explanação sobre conteúdos<br />

estudados, concretizando a ação criticada pelos PCNs:<br />

acreditando que a aprendizagem da língua oral, por se dar no espaço doméstico, não é<br />

tarefa da escola, as situações de ensino vêm utilizando a modalidade oral da linguagem<br />

unicamente como instrumento para permitir o tratamento dos diversos conteúdos<br />

(PCNs, p. 24).<br />

Finalmente, esperamos que nossos interlocutores tenham encontrado neste resumido<br />

trabalho uma orientação que lhes permita refletir sobre suas próprias ações, ou, ainda,<br />

um direcionamento para outros <strong>estudos</strong> mais aprofundados, tanto em relação ao tema<br />

tratado, como aos que não foram analisados, pois a realidade da sala de aula é<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 55-64, maio-ago. 2008<br />

63


complexa, composta por fatores que ultrapassam o mero ensinar e aprender. E esta<br />

complexidade é o que a torna interessante, fascinante.<br />

1<br />

Os alunos que apresentavam problemas de alfabetização assistiam às aulas de reforço, ao final das aulas<br />

programadas para o dia.<br />

2 Sobre o ensino de aspectos gramaticais na escola observamos, além dos PCNs para o ensino de língua<br />

portuguesa, POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola; GERALDI, J. W. Portos de<br />

passagem, entre outros.<br />

3 Segundo os PCNs, (1998, p. 24), “por usos públicos da linguagem entendem-se aqueles que implicam<br />

interlocutores desconhecidos que nem sempre compartilheam sistemas de referênsia (... exigem por parte<br />

do enunciador um maior controle para dominar as convenções que regulam e definem seu sentido<br />

institucional”<br />

Referências bibliográficas:<br />

BAGNO, M.; STUBBS, M.; GAGNÉ, G. Língua materna: letramento, variação &<br />

ensino. São Paulo: Parábola, 2002.<br />

CASTILHO, A. T. A língua falada no ensino de português. 2ª ed. São Paulo: Contexto,<br />

2000.<br />

________. Variação lingüística, norma culta e ensino de língua materna. In: Subsídios à<br />

Proposta Curricular de Língua Portuguesa para o 1º e 2º Graus. São Paulo: SE/<br />

CENP, 1988, 3º v.<br />

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo:<br />

Cortez, 2001.<br />

BRASIL Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino<br />

fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental – Brasília:<br />

MEC/SEF, 1998.<br />

PLANO DE GESTÃO, E.E Profª Maria Aparecida Galharini dos Santos, 1999 a 2002.<br />

RAMOS, J. M.O espaço da oralidade na sala de aula. São Paulo: Martins Fontes,<br />

1997.<br />

64 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 55-64, maio-ago. 2008


Interação pela linguagem na avaliação de produções escritas:<br />

ordem ou diálogo?<br />

Silvia Augusta de Barros Albert 1<br />

1 Mestranda em Língua Portuguesa do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua<br />

Portuguesa da PUC-SP, CEP:05014-901, São Paulo, SP, Brasil. E-mail:<br />

silviaalbert@osite.com.br<br />

Abstract. This text is the result of a broad research work which theme is the<br />

interaction through language in the teacher´s evaluative feedbacks about the<br />

student´s written production, concerning the teaching and learning of writing.<br />

Based on the Theory of Enunciation (Kerbrat-Orecchioni) and on the Theory of<br />

Speech Acts (Searle), the aim of this study is to carry out a study of linguistics<br />

strategies of interaction showing that, although the teacher intends to propose a<br />

dialogue, it overlaps to this intention an attitude in terms of order and judgment.<br />

Key words. interaction; evaluation; student’s writing.<br />

Resumo. Esse texto resulta de um trabalho mais amplo de pesquisa cujo tema é a<br />

interação pela linguagem nas devolutivas de avaliação do professor sobre a<br />

produção escrita do aluno, tendo em vista o ensino e a aprendizagem da escrita.<br />

Com base na Teoria da Enunciação (Kerbrat-Orecchioni) e na Teoria dos Atos de<br />

Fala (Searle), analisam-se, nessas devolutivas, as estratégias lingüísticas de<br />

interação, evidenciando-se que, embora o professor tenha a intenção de propor um<br />

diálogo, sobrepõe-se a essa intenção uma atitude mais em termos de ordem e<br />

de julgamento.<br />

Palavras-chave. interação; avaliação; produção escrita.<br />

Introdução<br />

O presente artigo tem como tema a interação pela linguagem na avaliação de<br />

produções escritas no Ensino Fundamental II (EFII) sob o enfoque do ensino e da<br />

aprendizagem da escrita. A escolha desse tema partiu de nossas inquietações cotidianas.<br />

Percebemos, em nossa prática, que a avaliação de produções escritas constitui um dos<br />

grandes problemas do trabalho do professor de língua materna. A maioria dos professores<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 65-74, maio-ago. 2008<br />

65


freqüentemente se queixa de que a avaliação não serve senão para atribuir nota, pouco<br />

contribuindo para o incremento das habilidades de escrita dos alunos.<br />

Partimos do pressuposto que a avaliação de produções escritas dos alunos do EF II,<br />

hoje, está mais próxima da noção de julgamento e sanção do que de aprendizagem. Em<br />

geral, não se leva em conta a complexidade do processo de escrita nem o caráter<br />

interacional da linguagem. Sendo assim, a avaliação que se realiza não conduz os alunos a<br />

refletirem sobre o que escrevem, não permitindo nem mesmo que eles atribuam sentido à<br />

correção. Trata-se, por conseguinte, de uma avaliação que não promove aprendizagem,<br />

tornando os alunos arquivistas de erros, e o professor, o juiz que sanciona, e também é<br />

julgado.<br />

Entretanto, temos claro que toda avaliação encontra-se necessariamente ligada a<br />

uma determinada prática educativa, da qual é uma etapa que, no caso da produção escrita,<br />

deveria remeter a uma reflexão sobre a linguagem, sobre o processo de escrever e sobre o<br />

próprio produto, o texto escrito. Com base nessa constatação apresentamos uma análise de<br />

devolutivas de avaliação de produções escritas, procurando verificar em que medida elas<br />

confirmam nosso pressuposto acima explicitado.<br />

Por uma pedagogia da escrita: diálogo e interação<br />

Em seus postulados teóricos, Plane (1994) afirma que, além da atividade de escrever<br />

ser considerada como um processo, a escrita constitui um conjunto complexo de operações,<br />

é o resultado de uma rede de escolhas interativas e inscritas no tempo. Por isso, a autora<br />

assevera que o importante é identificar as competências que estão em jogo na produção da<br />

escrita e determinar as situações de aprendizagem. Entre essas operações complexas e<br />

imbricadas está a capacidade de refletir sobre o próprio texto e retomá-lo aprimorando-o.<br />

Embora muitos esforços tenham sido feitos para transformar a função da avaliação<br />

no ensino e aprendizagem da escrita, no EF II, em uma etapa que contribui para o<br />

aprendizado, a exemplo dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), o que se mantém na<br />

prática é uma avaliação meramente classificatória: o professor solicita um texto escrito (não<br />

entraremos em detalhes em que situação), o aluno produz e entrega a tarefa. O professor<br />

corrige, avalia e devolve ao aluno o trabalho, que o guarda muitas vezes sem sequer ter lido<br />

as anotações que o professor levou horas para escrever.<br />

66 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 65-74, maio-ago. 2008


Entendemos que a atividade de escrita assim realizada, quase não permite interação<br />

no processo de avaliação, e instala, outrossim, atitudes desestimuladoras de julgamento e<br />

sanção. Instaura-se um processo de ensino e aprendizagem que não leva o aluno a refletir<br />

nem a transformar sua competência escritora. Para que se incorpore realmente uma<br />

pedagogia da escrita, é necessário modificar essa prática. E tomá-la na perspectiva da<br />

avaliação é uma, entre outras formas, de procurar transformar o que está incorporado ao<br />

cotidiano de sala de aula. Entre as diversas etapas de aprendizagem, a avaliação pode<br />

exercer a função de levar o aluno a refletir sobre o ato de escrever.<br />

A nosso ver, urge estabelecer no processo de produção escrita etapas bem<br />

delimitadas que prevejam interação e diálogo entre professor e alunos. Precisamos<br />

necessariamente conceber a avaliação como interna (quando critério e forma são definidos<br />

no interior do grupo considerado, no caso o professor e seus alunos); e formativa (interna e<br />

centrada sobre o aluno, com a finalidade de guiar o aluno no seu trabalho escolar, situar<br />

suas dificuldades e ajudar a descobrir os processos que lhe permitem progredir na<br />

aprendizagem), como postula Pierre Bach (1998).<br />

Cabral (1994) postula que os novos programas preconizam novos contratos<br />

pedagógicos, em que os alunos estão mais implicados e responsabilizados pelas tarefas que<br />

realizam. Dessa forma, a regulação da aprendizagem é também interior ao sujeito que<br />

aprende, e estamos aqui no campo da pedagogia de interação formativa, em que a avaliação<br />

está integrada ao processo de aprender.<br />

Para nós, a grande contribuição de uma pedagogia da escrita assim pensada e<br />

sistematizada é, por um lado, conferir à escrita seu caráter de atividade de comunicação<br />

verbal estabelecida sócio-cognitiva e interacionalmente; por outro, instituir o ensino e<br />

aprendizagem da escrita como um processo de interação em que é possível intervir com o<br />

objetivo de regulação e reformulação, sempre.<br />

Para Plane (1994), a avaliação assim considerada permite ao aluno apropriar-se não<br />

só das características específicas de um dado texto, mas também analisar previamente a<br />

tarefa de escrever e seus desafios. A autora propõe a convocação dos alunos para<br />

participarem da definição de critérios de avaliação a fim de orientar objetivos e estabelecer<br />

uma progressão durante um período mais longo de trabalho.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 65-74, maio-ago. 2008<br />

67


Esse tipo de avaliação transforma-se num momento privilegiado de aprendizagem,<br />

em que os alunos fazem parte de um processo autêntico de produção escrita e vivenciam a<br />

oportunidade de desenvolver sua competência escritora.<br />

Teoria da Enunciação e Teoria dos Atos de Fala: perspectiva pragmática e<br />

interacional da linguagem<br />

A Teoria da Enunciação, concebida extensivamente, segundo Kerbrat-Orecchioni<br />

(1997), procura descrever as relações que ocorrem entre o enunciado e os diferentes<br />

elementos do quadro enunciativo, ou seja, os protagonistas do discurso e a situação de<br />

comunicação (circunstâncias espaços-temporais e condições gerais de produção). Ao<br />

considerar a interlocução num dado contexto, essa teoria evidencia em suas análises a<br />

importância do enfoque pragmático por ter como objeto de pesquisa a ação humana<br />

realizada pela linguagem, indicando suas condições e seu alcance. (Cabral, 2000, p.19).<br />

Kerbrat-Orecchioni (2001, p.1) ressalta que as falas são ações: dire, c’est sans<br />

doute transmettre à autrui certaines informations sur l’objet dont on parle, mais c’est aussi<br />

faire, c’est-à-dire tenter d’agir sur son interlocuteur, voire sur le monde environnant.<br />

A linguagem foi primeiramente concebida como forma de ação pelos filósofos da<br />

Escola Analítica de Oxford, entre os quais se destaca John L. Austin (1911-1960), para<br />

quem dizer é um fazer. Esse autor postula a noção de enunciados performativos, que<br />

servem para agir, opondo-os aos constativos, que se prestam a atualizar proposições do tipo<br />

verdadeiro ou falso.<br />

Kerbrat-Orecchini (2001) incorpora a seus <strong>estudos</strong> alguns princípios fundadores<br />

dessa teoria e defende a noção de performativo por ser ele um valor inerente à linguagem.<br />

A autora atribui a Austin a responsabilidade de lançar as bases da Teoria dos Atos de Fala,<br />

por ele ter estabelecido os principais componentes que serão desenvolvidos por seus<br />

sucessores: o primeiro deles é o fato de todo enunciado ser dotado de uma força<br />

ilocucional, isto é, carregar um valor de ato; e o outro é a distinção de três tipos de atos de<br />

fala: locutórios, ilocutórios e perlocutórios. Nesse sentido, Kerbrat-Orecchioni (2001)<br />

ratifica que todo enunciado é dotado de uma carga pragmática, de maior ou menor força, ou<br />

seja, o conteúdo proposicional não se realiza jamais sozinho, ele sempre é carregado de um<br />

valor ilocucional de natureza variável.<br />

68 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 65-74, maio-ago. 2008


Searle (1981), filósofo americano, e um dos principais seguidores e defensores das<br />

idéias de Austin, postula que todo enunciado lingüístico funciona como um ato particular<br />

(ordem, questão, promessa etc.) cujo objetivo é produzir certo efeito e causar determinada<br />

mudança na situação de interlocução.<br />

Ao incorporar a noção de atos de fala a seus <strong>estudos</strong>, Kerbrat-Orecchioni (2001)<br />

observa que eles funcionam em contexto, no interior de uma seqüência de atos e seu<br />

funcionamento depende de dois interlocutores que possuem características próprias. A<br />

lingüista considera que esses são aspectos essenciais para uma abordagem interacional.<br />

A interação transforma, pois, tanto o contexto, quanto o enunciado ou os próprios<br />

interlocutores. Para a autora, considerar os enunciados como atos implica admitir que eles<br />

não são produzidos só para agir sobre outrem, mas também para levá-los a reagir. Na troca<br />

comunicativa, os interactantes sofrem e exercem influências entre si e do próprio contexto,<br />

podendo sofrê-las ou exercê-las. Assim, para construir cooperativamente um discurso<br />

coerente, eles estabelecem entre si um tipo de relação de distância ou de proximidade, de<br />

hierarquia ou de igualdade etc.<br />

Tomar a linguagem em uso significa também considerar as condições de emprego e<br />

de êxito, propriedades essenciais para o tratamento dos atos de fala. As condições de uso<br />

são as necessárias, aquelas que fazem parte da própria definição do ato; aquelas de que<br />

depende o êxito do ato são a condição preliminar (de ordenar, prometer etc) e a de<br />

sinceridade (ordenar para se fazer cumprir etc).<br />

No entanto, nem sempre dizemos claramente o que desejamos de nossos<br />

interlocutores; ao mesmo tempo, nem tudo o que dizemos é percebido conforme nossas<br />

intenções. Essa constatação conduz a uma outra distinção importante: a atualização de atos<br />

de fala direto e indireto.<br />

Para Kerbrat-Orecchioni (2001), o valor ilocucional nem sempre corresponde ao<br />

que é esperado para tal enunciado ou está expresso por ele, no sentido de uma<br />

correspondência biunívoca significante/significado, ou seja, nem toda forma interrogativa<br />

corresponde a uma pergunta, nem todo enunciado negativo tem intenção de negar uma<br />

asserção apenas. É o que define atos de fala indireto: expression elliptique pour acte de<br />

langage formulé indirectement, sous le couvert d’un autre acte de langage.. Et l’on dirá<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 65-74, maio-ago. 2008<br />

69


littérale (ou primitive) la valeur apparente de question, et derivée la valeur réelle de<br />

requête. (Kerbrat-Orecchioni, 2001, p. 35).<br />

Segundo a autora, há várias maneiras de se realizarem atos de fala indireto: um<br />

mesmo valor ilocucional pode realizar-se de diferentes maneiras (1); uma mesma realização<br />

(uma estrutura, uma frase) pode receber valores ilocucionais diversos (2). No primeiro caso<br />

(1), para inquerir –se o nome de alguém, por exemplo, é possível dizer Qual é o seu nome?<br />

Eu gostaria muito de saber seu nome. No segundo caso (2), um enunciado como Pode me<br />

passar o sal, por favor? tem a aparência de uma pergunta, mas pode ser uma reclamação.<br />

Segundo Benveniste (1976), quando um locutor usa a linguagem para exercer<br />

influência sobre o comportamento do alocutário, ele dispõe de um aparato de funções,<br />

como interrogar, afirmar e intimar. Com base em Benveniste, Kerbrat-Orecchioni (1991)<br />

afirma que tais funções, correspondem a três grandes categorias de atos primitivos, dos<br />

quais derivam todos os outros: asserção (falar sobre o mundo); interrogação (interrogar<br />

sobre o mundo); ordem (agir sobre o mundo). (Kerbrat-Orecchioni, 1991, p.5).<br />

A asserção pode ser expressa por uma frase declarativa afirmativa ou negativa. Ela<br />

fornece informação, formula julgamentos; explicita atitude do locutor frente a seu<br />

enunciado. Dependendo do contexto, pode atualizar atos de fala indireto. A negação indica<br />

muitas vezes que o locutor tem mais suposições sobre o conhecimento do alocutário.<br />

A ordem pertence à modalidade deôntica que diz respeito à obrigação e à permissão.<br />

A modalidade é a gramaticalização de atitudes e opiniões dos falantes. Realiza-se a<br />

modalidade deôntica no português principalmente por meio do imperativo. Podemos<br />

afirmar ainda que o uso do imperativo é um elemento revelador da presença do alocutário<br />

no enunciado.<br />

A pergunta como valor ilocucional pode ser veiculada por frase interrogativa. É um<br />

ato de fala e se inclui nos atos diretivos, ou seja, é um meio de tentar fazer o alocutário<br />

realizar uma ação. O conceito de pergunta, segundo Rodrigues (1998), releva-se do âmbito<br />

pragmático: verbal ou não verbal. É um ato de fala intrinsecamente interativo. A autora<br />

refere-se também ao que denomina perguntas orientadas: aquelas em que o locutor não<br />

quer informação, ao contrário, está transmitindo-a e quer uma confirmação. São perguntas<br />

que desejam orientar a resposta do alocutário num certo sentido.<br />

70 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 65-74, maio-ago. 2008


A interação pela linguagem na avaliação de produções escritas<br />

Ao tratar da avaliação da produção escrita promotora de aprendizagem, observamos<br />

na linguagem seu caráter de atividade de comunicação verbal estabelecida sócio-cognitiva e<br />

interacionalmente.<br />

Encontramos, nos bilhetes que os professores escrevem aos alunos como devolutiva<br />

de sua avaliação, o espaço de interação verbal possível e pertinente entre professor e aluno<br />

na etapa da avaliação. Os bilhetes configuram-se, pois, como um importante espaço de<br />

interação pela linguagem, de interlocução, e, por conseguinte, de relação interpessoal,<br />

constituindo uma das formas privilegiadas, às vezes única, de encaminhar a devolutiva da<br />

avaliação do professor para o aluno, para sua reflexão sobre o que escreveu, orientando-o<br />

para os procedimentos de revisão e de reescrita, essenciais para o seu aprendizado.<br />

Para nosso trabalho, solicitamos a 15 professores de 5 escolas particulares do<br />

município de São Paulo redações corrigidas por eles. Ao todo, obtivemos 30 bilhetes que<br />

constituem nosso corpus de pesquisa. Verificamos neles as estratégias lingüísticas de<br />

interação atualizadas pelos atos de fala da asserção, da ordem e da pergunta. Apresentamos<br />

no presente artigo trechos dos bilhetes e parte da análise realizada no corpus.<br />

a) Da asserção<br />

A asserção se realiza por meio de uma frase declarativa afirmativa ou negativa. Ela<br />

não apenas informa, mas também pode apresentar julgamentos, positivos ou negativos.<br />

Seus argumentos também são muito bons. (B2 R10)<br />

Você tem ótimas idéias. (E2 R2)<br />

Camila, esta ficou bem melhor! (B2 R7)<br />

Nos exemplos acima, o professor julga positivamente a linguagem, o tom do texto<br />

ou as idéias e os argumentos usados, aprovando a produção escrita do aluno. A afirmação<br />

direta do professor, empregando o verbo no presente do indicativo atribui um valor de<br />

verdade a seu julgamento. A asserção pode também ser enunciada na negação, como no<br />

exemplo a seguir:<br />

Não é adequado você narrar uma resenha como se estivesse contando para<br />

alguém, usando repetidamente os verbos “diz” e “fala”. (A1 R3)<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 65-74, maio-ago. 2008<br />

71


A negação, nesse caso, não apenas indica um julgamento negativo, mas também, e,<br />

sobretudo, marca a ausência de um fato esperado, supostamente do conhecimento do<br />

alocutário. Um outro exemplo:<br />

Vocês não corrigiram de acordo com as anotações anteriores. (E3 R2)<br />

Nesse exemplo, o enunciado do professor explicita a cobrança em relação a um<br />

contrato estabelecido anteriormente, ou na própria proposta de produção escrita, ou em<br />

situação anterior de correção e avaliação do texto. A cobrança do que foi acordado assume,<br />

por sua vez, valor de ordem para que a ação de corrigir seja executada. Temos aí um ato de<br />

fala de ordem duplamente indireto, ou seja, há uma asserção negativa que expressa uma<br />

cobrança; a cobrança, por sua vez, tem valor de ordem: asserção cobrança ordem.<br />

b) Da ordem<br />

A ordem, em português, se expressa fundamentalmente pelo modo imperativo,<br />

forma verbal essencial de expressão da modalidade deôntica. O imperativo mostra-se assim<br />

como a forma mais intensa de ordem, como podemos observar nos exemplos a seguir:<br />

Reescreva seu texto observando minhas anotações. (B2 R1)<br />

Marque claramente os parágrafos. (D2 R1)<br />

Observe o encadeamento de idéias! (E4 R2)<br />

Entretanto, é preciso esclarecer que existe uma gradação na intensidade do valor<br />

ilocucional de ordem, marcado lingüisticamente. A ordem manifesta-se nos bilhetes,<br />

claramente, de outras maneiras menos intensas do que com o uso do verbo no imperativo.<br />

Entre essas formas, destacamos o infinitivo ou ainda a forma mais atenuada do verbo<br />

auxiliar modal poder:<br />

Reescrever! (B2 R7)<br />

Rever pontuação, ortografia, acentuação. (D1 R1)<br />

Você pode melhorar essa história que parece um desenho animado. (E2 R1)<br />

O emprego do infinitivo realiza o valor ilocucional da ordem, atenuando a<br />

intensidade do valor deôntico contido nela. O uso do verbo poder indica que o locutor<br />

conhece o potencial do alocutário, revelando mais uma vez a existência de um contrato que<br />

deve ser cumprido. O estatuto do professor outorga a ele a autoridade para ordenar, por isso<br />

72 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 65-74, maio-ago. 2008


ele pode utilizar uma forma atenuada já que o aluno compreenderá o valor de<br />

obrigatoriedade: poder assume o valor de dever, nesse caso.<br />

c) Da pergunta<br />

Segundo Kerbrat-Orecchioni (1991), a pergunta constitui o ato de fala mais<br />

intrinsecamente interativo, pois pressupõe uma resposta. É exatamente por demandar uma<br />

ação futura do alocutário, por expressar também o desejo/vontade/querer do locutor de que<br />

o alocutário faça algo, que acreditamos funcionarem as perguntas nos bilhetes como ordens<br />

atenuadas.<br />

Isabel, e a organização no papel? (B2 R3)<br />

Que tal mudar esses pronomes por outras palavras? (E2 R2)<br />

Ao utilizar a pergunta, o professor exige do aluno um desempenho ativo na própria<br />

avaliação, pressupondo que esse conheça os critérios pelos quais está sendo avaliado e<br />

saiba elaborar as mudanças necessárias para atender a eles. A nosso ver, a pergunta<br />

posiciona-se no grau menos intenso em relação ao valor de ordem. Seu uso nos bilhetes<br />

evidencia a intenção por parte do professor de estabelecer uma interação em que o aluno<br />

participe efetivamente.<br />

Cabe-nos ressaltar que as perguntas, mesmo as carregadas de valor de ordem, não<br />

aparecem com freqüência nos bilhetes. Sua incidência é menor do que a de asserções e a de<br />

ordens expressas por meio do imperativo e do verbo no infinitivo, o que evidencia nas<br />

devolutivas analisadas a maior tendência para julgar e ordenar do que para dialogar.<br />

A análise revela, pois, que a despeito da intenção de orientar o aluno e convocá-lo a<br />

refletir sobre sua produção estabelecendo o diálogo, o professor imprime um tom de<br />

julgamento e ordem, assumindo o seu estatuto de superioridade, expresso por suas<br />

estratégias lingüísticas de interação.<br />

Conclusão<br />

As análises evidenciam o tom de julgamento nas devolutivas de avaliação, o que<br />

mantém o aluno distante, não comprometido com o processo avaliativo. Sendo assim, ele<br />

não é instado a compartilhar problemas e soluções do texto nem a refletir sobre a<br />

linguagem, criando-se uma situação pouco propícia à revisão e à reescrita, etapas<br />

importantes para a aprendizagem da escrita. A nosso ver, a instauração de diálogo efetivo<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 65-74, maio-ago. 2008<br />

73


entre professor e aluno nas devolutivas de avaliação constitui uma forma de mudar essa<br />

situação e implicar o aluno, cada vez mais, em seu aprendizado da escrita.<br />

Para nós, o professor que ensina a escrever precisa dar a palavra ao aluno, não a<br />

palavra já pré-estabelecida, p<strong>revista</strong>, que depois será julgada, mas a palavra inesperada, que<br />

será tomada, no sentido mesmo de tomar a palavra como numa conversa, em turnos. É<br />

nesse diálogo entre professor e aluno, autor e leitor, reescritas e revisões que é possível<br />

transformar arquivistas de erros em produtores de textos.<br />

Referências :<br />

BACH,P. (1998). O Prazer na Escrita. Rio Tinto/Portugal: Edições ASA.<br />

BENVENISTE, E. (1976). Problemas de Língüística Geral. São Paulo:<br />

Companhia Editora Nacional e Editora da Universidade de São Paulo.<br />

CABRAL, A. L. T. (2000). Modalização e Interação na Linguagem: A<br />

Subjetividade em Processos Civis. Dissertação (Mestrado em Língua<br />

Portuguesa). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo.<br />

CABRAL, M. (1994). Avaliação e Escrita: Um Processo Integrado. In:<br />

FONSECA,F.I.(org). (1994). Pedagogia da Escrita.Perspectivas.Porto:<br />

Porto Editora.<br />

KERBRAT-ORECCHIONI, C. (1991). Introduction e L’acte de question et l’acte<br />

d’assertion: opposition discrète ou continuum? In: (2001). KERBRAT-<br />

ORECCHIONI, C. (dir.).La Question. Lyon: Presses Universitaires de Lyon.<br />

____________. (1997). L’énonciation. Paris: Armand Colin.<br />

____________.(2001). Les Actes de langages dans le discours. Paris:<br />

Éditions Nathan/VUEF .<br />

PLANE, S. (1994). Didactique et Pratiques d’Écriture Écrire au Collège. Paris:<br />

Édition Nathan.<br />

RODRIGUES, M.C.C. (1998). A seqüência discursiva pergunta e resposta, in:<br />

(1998). FONSECA, J (Org.). A Organização e o Funcionamento dos<br />

Discursos: Estudos sobre o Português. Tomo II. Porto: Porto Editora<br />

SEARLE, J. R. (1981). Os actos de Fala. Coordenação de trad. VOGT,C.<br />

Coimbra: Livraria Almedina.<br />

74 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 65-74, maio-ago. 2008


Centro de Convivência de Afásicos: Uma abordagem<br />

etnográfica da afasia<br />

Nirvana Ferraz Santos Sampaio 1<br />

1 Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários – Universidade Estadual do<br />

Sudoeste da Bahia (UESB)<br />

Estrada do Bem-querer km 04, s/n,<br />

CEP: 45 083 - 900 – Vitória da Conquista – Bahia – Brasil<br />

nirvanafs@terra.com.br<br />

Abstract. In this paper we examine the Centro de Convivência de Afásicos<br />

(CCA). Based upon theoretical concepts and postulates of the Ethnography of<br />

Communication’s theoretical framework and concepts and postulates of<br />

Discursive Neurolinguistics, we have analyzed the research corpus which is<br />

constituted of recording transcriptions from communicative situations and<br />

communicative events realized from 2002 to 2004 at CCA’s Group II. The<br />

results suggests that as the non-aphasics-subjects at CCA, the aphasic ones<br />

who are part of this speech community face aphasia by acting with and about<br />

the language, using linguistic and non-linguistic resources in different<br />

discursive/communicative situations and discursive/communicative events.<br />

Keywords. Ethnography of Communication; speech community;<br />

Neurolinguistics; aphasia<br />

Resumo. Neste trabalho, investigamos o Centro de Convivência de Afásicos<br />

(CCA). Baseado nos conceitos e postulados teóricos da Etnografia da<br />

Comunicação, aliados a conceitos e postulados da Neurolingüística<br />

Discursiva, analisamos transcrições de gravações de situações comunicativas<br />

e eventos comunicativos vivenciados entre 2002 e 2004, no Grupo II do CCA.<br />

Os resultados indicam que, ao lado dos sujeitos não afásicos do CCA, os<br />

sujeitos afásicos, inseridos nessa comunidade de fala, são levados a enfrentar<br />

a afasia, agindo com e sobre a linguagem, a partir de repertório comunicativo<br />

variado que inclui recursos <strong>lingüísticos</strong> e não <strong>lingüísticos</strong>, em diferentes<br />

situações discursivas/comunicativas e eventos discursivos/comunicativos.<br />

Palavras-chave. Etnografia da Comunicação; comunidade de fala;<br />

Neuroligüística; afasia<br />

1. Introdução<br />

A avaliação de linguagem em contextos patológicos (afasia), em sua grande<br />

maioria, não se insere no exercício de práticas relacionadas a situações de uso social da<br />

linguagem. No geral, as abordagens tradicionais incidem em tarefas metalingüísticas,<br />

descontextualizadas e baseadas em uma concepção normativa e culta da língua.<br />

Partindo da perspectiva de Coudry (1986, 1993, 1995; 1999; 2002a, 2002b,<br />

2006), a avaliação da linguagem em contextos patológicos não pode ser dissociada das<br />

situações de uso social e, neste trabalho, a partir da prática clínica com a linguagem<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 75-83, maio-ago. 2008<br />

75


desenvolvida no Laboratório de Neurolingüística (LABONE/IEL) e no Centro de<br />

Convivência de Afásicos (CCA), ligado ao Departamento de Lingüística do Instituto de<br />

Estudos da Linguagem (IEL) e ao Departamento de Neurologia da Faculdade de<br />

Ciências Médicas (FCM), da UNICAMP, observamos as situações de interação<br />

comunicativa com todos os membros que compõem o CCA, a partir da Etnografia da<br />

Comunicação.<br />

2. Opção teórica<br />

Em maio de 1964, em um congresso na Universidade da Califórnia em Los<br />

Angeles (UCLA), por iniciativa de Bright, o termo sociolingüística é estabelecido para<br />

nomear esse campo de <strong>estudos</strong>. Os trabalhos apresentados nesse congresso foram<br />

publicados em 1966, na obra de referência da área, com o título Sociolinguistics.<br />

Nesse período a Sociolingüística define o seu objeto de estudo, a diversidade<br />

lingüística, tendo como tarefa descrever a covariação sistemática entre estrutura<br />

lingüística e a estrutura social. A partir do final dos anos 60 do século XX, paralelos ao<br />

avanço dos <strong>estudos</strong> gerativistas, <strong>estudos</strong> e pesquisas com a temática voltada para os<br />

aspectos sociais e culturais da linguagem, oriundos da Antropologia, da Sociologia e da<br />

Lingüística, começam a ter um maior impulso nos Estados Unidos. É nesse período que<br />

se solidificam o nome de pesquisadores como William Labov, John Gumperz, Dell<br />

Hymes, Joshua Fishman, William Bright, entre outros.<br />

A partir do momento em que se conjuga a análise do fenômeno lingüístico com a<br />

consideração da realidade sócio-cultural, segundo Alkmim (2003), essa área privilegia o<br />

trato com dados empíricos, ou seja, a coleta de dados <strong>lingüísticos</strong> no contato direto com<br />

a realidade que se pretende estudar. Nos dizeres de Alkmim (2003), essa teoria ainda<br />

está por se fazer: a autora afirma que tendo surgido da preocupação com questões<br />

empíricas, a Sociolingüística não tem sido capaz de contribuir decisivamente para a<br />

formulação de uma teoria que responda às suas necessidades. Essa área tem acumulado<br />

um conjunto de “<strong>estudos</strong> de casos” e, não obstante, apontado questões pertinentes.<br />

Com o surgimento do interesse sociolingüístico, passaram a existir,<br />

contemporaneamente, três das disciplinas: a Etnografia da Comunicação, a<br />

Sociolingüística Variacionista e a Sociologia da Linguagem que, apesar de pertencerem<br />

ao âmbito geral da investigação sociolingüística e terem o estudo da língua em relação<br />

com a cultura e a sociedade, como interesse comum, diferem-se quanto ao enfoque de<br />

análise.<br />

Com relação aos postulados teóricos da Etnografia da Comunicação, opção deste<br />

trabalho, lembramos que com os precedentes Boas, Sapir e Malinowski, a Etnografia da<br />

Comunicação, proposta por Dell Hymes na década de 60 do século XX, foi a primeira<br />

formulação teórica que estabeleceu o princípio de que uma interação comunicativa entre<br />

indivíduos está ligada e determinada por constituintes <strong>lingüísticos</strong> e por circunstâncias<br />

sociais, culturais e psicológicas.<br />

Em 1962, Hymes publica o artigo “The Ethnography of Speaking”. Nesse<br />

texto, o autor apresenta o que seria a primeira versão de um novo domínio de<br />

investigação dedicado ao estudo da fala concebida como fenômeno sociocultural. Dessa<br />

forma, inaugura-se, naquele momento, em nível teórico, a etnografía da fala<br />

(ethnography of speaking). Em 1964, Hymes publica, junto com Gumperz, um<br />

suplemento da <strong>revista</strong> American Anthropologist intitulado “The Ethnography of<br />

76 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 75-83, maio-ago. 2008


Communication” (Gumperz e Hymes, 1964). Essa obra apresenta, de maneira oficial e<br />

real, o nascimento da Etnografia da Comunicação (Ethnography of Communication),<br />

dando continuidade com Gumperz e Hymes, 1972.<br />

Desde o momento de seu surgimento, a Etnografia da Comunicação supôs, para<br />

a antropologia lingüística e outras disciplinas encarregadas do estudo da linguagem,<br />

uma troca de enfoque importante. A língua, entendida como objeto social, passa a ser<br />

estudada, também, no contexto de uso.<br />

As propostas de Hymes iniciam um método de trabalho de caráter<br />

pluridisciplinar. Com esse método que leva em consideração os modelos formais de<br />

lingüística e dos elementos comunicativos de natureza estrutural, combinados com<br />

elementos de caráter funcional, o autor pretendia interpretar o comportamento<br />

comunicativo em contextos culturais. Para investigar esse comportamento<br />

comunicativo, Hymes propôs uma série de conceitos que denominou unidades sociais,<br />

tais como: competência comunicativa (communicative competence), repertório<br />

comunicativo e comunidade de fala (speech community), de um lado; e de outro,<br />

situação comunicativa (speech situation), evento comunicativo (speech event) e ato de<br />

fala (speech act). Consideramos essas unidades como ferramentas teóricas úteis para o<br />

nosso trabalho.<br />

3. A Prática clínica com a linguagem do CCA<br />

Assim, ao observar a Prática clínica com a linguagem do CCA, sustentamos o<br />

conceito de comunidade de fala a partir dos <strong>estudos</strong> de Neurolingüística de orientação<br />

discursiva que combate a medicalização que se pratica quando a língua(gem) é tomada<br />

como determinada, padrão para todos os falantes, o que condiciona o que é certo e o que<br />

é errado, além de estigmatizar as variedades que fogem à norma padrão. São<br />

preocupações fundantes dessa prática (clínica) com a linguagem: o não isolamento<br />

social dos afásicos, o enfrentamento da afasia e a construção de possibilidades de o<br />

afásico estar no mundo e o exercício com e sobre a linguagem, nas diferentes situações<br />

discursivas/comunicativas e eventos discursivos/comunicativos. Na comunidade de fala<br />

do CCA, são vivenciadas, verbal e não verbalmente, situações discursivas ou de<br />

comunicação articuladas teórico-metodologicamente.<br />

Fazem parte das atividades lingüístico-cognitivas desenvolvidas no CCA:<br />

dramatizar cenas da vida cotidiana, cozinhar, fazer festas, pintar e desenhar, dançar,<br />

cantar, assistir a filmes, ler e comentar o noticiário escrito e falado, bem como as<br />

anotações dos participantes em sua agenda.<br />

As sessões do CCA, que denominamos de situações comunicativas, ocorrem,<br />

semanalmente, com duas horas de duração. Nas situações comunicativas, os sujeitos<br />

afásicos, junto com os sujeitos não afásicos, participam de eventos comunicativos que<br />

possibilitam a vivência de situações de uso sociocultural da linguagem, em contextos<br />

verbais e não verbais, na construção de sentidos. Os sujeitos afásicos são motivados, em<br />

grupo, a exercer a linguagem em diversos eventos comunicativos (diálogos, narrativas,<br />

comentários) em que há alternância de interlocutores, diferentes posições enunciativas e<br />

configurações textuais.<br />

Em geral, as situações comunicativas são organizadas da seguinte forma: a<br />

sessão tem início com comentários sobre os acontecimentos da cidade, do Brasil e do<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 75-83, maio-ago. 2008<br />

77


mundo, baseados no noticiário impresso e/ou falado, ou no registro, nas agendas, de<br />

fatos da vida pessoal (anotações que valem a pena ser compartilhadas com o grupo são<br />

postos em cena); podendo haver na sessão a teatralização e as atividades práxicas<br />

(cozinhar, cantar, narrar, discutir, entre outros) que, também, funcionam como evento<br />

comunicativo. Em seguida, há um evento comunicativo denominado “hora do café”,<br />

que possibilita os participantes socializarem os lanches, descontraírem e conversarem.<br />

Detalhamos os eventos comunicativos que têm sistematicamente relação com<br />

atividades lingüístico-cognitivas: leitura da agenda de cada um dos participantes -<br />

contém todas as atividades ligadas aos participantes como: trabalho, passeios, idas a<br />

médicos, etc.; leitura e discussão de recortes de jornais e de <strong>revista</strong>s levados pelos<br />

participantes; conversa sobre fotos (familiares, passeio, festas ou do próprio<br />

participante). Ocorre também o inverso, ou seja, inicia-se com o evento comunicativo<br />

da leitura da agenda, leitura e discussão de recorte de jornais, conversas para depois<br />

realizar o evento da expressão teatral pela dramatização. Os eventos comunicativos são<br />

coordenados por um pesquisador, a quem cabe o papel de organizar os recortes trazidos<br />

pelos integrantes e auxiliar, se necessário, na introdução de temas para conversação.<br />

Com o uso da agenda como instrumento metodológico, toma-se parte de dados e<br />

fatos sobre a vida do afásico que, no grupo, tornam-se tópicos de eventos comunicativos<br />

em que predominam dialógos e narrativas. De acordo com Coudry (1997), são fatos que<br />

merecem ser contados, indicando a presença e a ação do sujeito na linguagem. A agenda<br />

é preenchida, a depender da história do sujeito (escolaridade, uso pré-morbido da<br />

escrita, sinais de hemiparesia, etc.), por ele, por um membro da família ou por um<br />

investigador. Trabalha-se com a linguagem a partir das chamadas “práticas sociais da<br />

memória”: as estórias de vida/doença, os álbuns de família, etc.<br />

Esses eventos comunicativos objetivam fazer com que os participantes<br />

compartilhem com todos a memória e a vida de cada um fora do CCA. Nesses eventos,<br />

os sujeitos afásicos (re)tomam e trabalham os usos da linguagem, exercitam sua<br />

capacidade pragmática de reconhecer seus interlocutores e suas propostas discursivas e<br />

trabalham as possibilidades de inserção em diferentes situações e eventos<br />

comunicativos, ou seja, são motivados a mobilizar diferentes movimentos de sentido:<br />

cognitivos (mnêmicos, perceptivos e atencionais), enunciativos, pragmáticos,<br />

discursivos, semióticos (gestuais, corporais, situacionais).<br />

Outras situações comunicativas, também, são desenvolvidas no Centro, como as<br />

que objetivam a inclusão digital dos afásicos: aulas com noções básicas para a utilização<br />

de computador e navegação na rede Internet. Além disso, há oficinas de arranjo de<br />

flores, de fabricação de velas, de pintura em tela, de culinária.<br />

São comuns, ainda, as seguintes situações comunicativas: palestras (com<br />

convidados); passeios (museu, exposição); festas comemorativas (encerramento de<br />

período letivo, aniversários, carnaval, junina, natal, etc.), em que os eventos<br />

comunicativos giram em torno do cardápio e músicas que serão tocadas visando à<br />

dança; almoços comunitários, cuja organização (cardápio, ingredientes) fica por conta<br />

de todo o grupo e é anotada nas agendas. Esses eventos proporcionam momentos em<br />

que os integrantes do grupo exercem vários papéis como sujeitos da linguagem, visam à<br />

reinserção ocupacional, à partilha de um espaço simbólico de experiências, à restituição<br />

de papéis sociais e ao fortalecimento de quadros interativos.<br />

Na perspectiva teórico-metodológica-assistencial da prática (clínica) com a<br />

78 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 75-83, maio-ago. 2008


linguagem exercida no CCA, os sujeitos afásicos tem um acompanhamento longitudinal<br />

em grupo, que possibilita que as alterações apresentadas, as tentativas de superação<br />

dessas alterações e a motivação para identificar dificuldades e eleger processos<br />

alternativos de significação possam ser viabilizadas. Além da sessão coletiva, todos os<br />

afásicos são acompanhados individualmente por um(a) cuidador(a): aluno de graduação<br />

(iniciação, <strong>estudos</strong> monográficos e estágio) em Lingüística, Letras e Fonoaudiologia;<br />

aluno de mestrado e doutorado (incluindo o Programa de Estágio Docente) em<br />

Lingüística, sob orientação do pesquisador líder do grupo de pesquisa.<br />

Assim, no CCA, o corpo patológico (que se diferencia do corpo social pelo que<br />

escapa à maior parte dos sujeitos) é inserido num contexto em que há regras, normas e<br />

espaço para a heterogeneidade, para as diferenças entre os sujeitos, seus modos de agir e<br />

de se colocar no mundo.<br />

A Etnografia da Comunicação não chegou a oferecer formulações teóricas gerais<br />

sobre o processo comunicativo, mas, conforme Bachmann et al., (1981), apresentou<br />

dados interessantes relacionados aos padrões da fala de diferentes comunidades nas<br />

sociedades. Esses dados demonstram que cada sociedade estabelece padrões<br />

comunicativos distintos, que cada sociedade interpreta de maneira diferente o<br />

funcionamento de uma língua, ou seja, os fatores que relacionam a língua com a cultura<br />

e a sociedade.<br />

Consideramos que tanto os princípios metodológicos quanto os conceituais da<br />

Etnografia da Comunicação têm grande utilidade descritiva e analítica para o estudo do<br />

mecanismo geral da interação e das interações produzidas em contextos específicos. Os<br />

conceitos propostos, por Hymes, denominados de unidades sociais, tais como:<br />

competência comunicativa, repertório comunicativo, comunidade de fala, situação<br />

comunicativa, evento comunicativo e ato de fala, constituem ferramentas importantes<br />

para pensarmos o campo de análise das interações no contexto do CCA e da prática<br />

clínica com a linguagem que nele se desenvolve.<br />

Podemos reafirmar que, no sentido de Hymes, o CCA se caracteriza como um<br />

todo organizado por normas compartilhadas que regulam as diferentes situações e<br />

eventos comunicativos (no entrecruzamento do verbal e do não verbal), que tem a<br />

mesma concepção social e cultural do mundo. Mas defendemos que não é só isso que o<br />

define como uma comunidade de fala, mas, também, a prática (clínica) com a<br />

linguagem e a construção do saber dessa prática na relação entre língua(gem), cultura e<br />

sociedade.<br />

3.1 Competência Comunicativa e Repertório Comunicativo do grupo II CCA um<br />

exemplo<br />

Na prática clínica com a linguagem exercida no CCA, vimos que os sujeitos<br />

afásicos participam de situações comunicativas e, dentro dessas, de eventos<br />

comunicativos demonstrando o conhecimento e habilidade de contextualização<br />

apropriada e uso/interpretação da linguagem em comunidade, que se refere ao<br />

conhecimento comunicativo e habilidades partilhadas pelo grupo. Abaixo, apresentamos<br />

um exemplo de situação comunicativa (sessão do dia 28/10/02). No trecho, o evento<br />

comunicativo parte da conversa em torno da apresentação de MM, um novo integrante<br />

do grupo, a partir do tópico “o que se faz no grupo”, o que é usual fazer todas as vezes<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 75-83, maio-ago. 2008<br />

79


em que há apresentação de um novo participante.<br />

Sigla do<br />

interlocutor<br />

Situação comunicativa 1 – sessão do dia 28/10/02<br />

Transcrição<br />

Imc Gente, vamos contar pro seu MM o que a gente faz nesse<br />

grupo? Como é que esse grupo funciona?<br />

RL A gente //segmento ininteligível// seu SL//segmento<br />

ininteligível// só isso<br />

Observação sobre as<br />

condições de produção<br />

de processos de<br />

significação verbais<br />

Tom de brincadeira<br />

RL Zoa com SL. Tom de brincadeira<br />

Todos Dão risadas<br />

Imc Ela é das antigas. O que que a gente faz aqui? Perguntando para CF<br />

CF Eh ... ah...<br />

Imc<br />

A gente vem aqui pra quê? Pra se conhecer.<br />

[<br />

CF<br />

Imc Pra falar.<br />

[<br />

CF<br />

falar<br />

Imc Pra trocar idéias.<br />

[<br />

CF<br />

déias<br />

CF Putado::<br />

Cer<br />

Imc Computador... a gente também uma coisa que a gente vai<br />

retomar agora que tem bastante pessoas nesse grupo<br />

//pausa// dramatizar situações da vida cotidiana por<br />

exemplo, sei lá ...CF vai na receita federal pegar um papel<br />

//segmento ininteligível//<br />

CF Ai Bate palma<br />

Imc Então, a gente vai dramatizar//segmento ininteligível//<br />

porque é uma coisa que todo mundo passa, por exemplo,<br />

agora nesses últimos tempos eu fui ao DETRAN com a GR.<br />

A GR, ela participou do grupo de quinta feira, mas ela foi<br />

avaliada comigo, ficou um ano e tanto comigo, então, ...<br />

uma relação bastante próxima e me pediu pra ir com ele no<br />

DETRAN fazer um exame de perícia pra ela voltar a dirigir,<br />

né?<br />

CF Ai [e’saw][e’saw] eh::<br />

Imc Então ai tem uma serie de dificuldade tem que ir tem que<br />

pegar papel te que fazer a perícia tem uma serie de coisas pra<br />

fazer e a gente acompanha o que mais a gente faz nesse<br />

grupo?a gente vê fotos um do outro? Vê<br />

CF Vê<br />

Imc<br />

CF<br />

Por que que a gente vê foto um do outro? Pra conhecer<br />

[<br />

Conhecer<br />

Imc É um modo de conhecer pessoas as pessoas que fazem parte<br />

da vida nossa e aqueles momentos que foram fotografados<br />

//segmento ininteligível// o que mais a gente faz aqui, dona<br />

IC?<br />

SL Eh:: a gente fazemo:: começa ...<br />

Imc A gente come aqui?<br />

IC<br />

Eh<br />

[<br />

Cf<br />

eh<br />

Imc De vez em quando, a gente faz uma comidinha.<br />

SL Bom, pra, de vez em quando, o bo bo hesitação<br />

Observação sobre as<br />

condições de produção de<br />

processos de significação<br />

não-verbais<br />

Gesto de dirigir<br />

Gesto de comer<br />

80 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 75-83, maio-ago. 2008


RL Bolo?<br />

SL Eh<br />

Imc Essa aqui... ele faz um bolo bom também. Aponta para dona IC<br />

falando de SL<br />

Todos Dão risadas<br />

CF Pintar<br />

Imc Pintar, a gente pinta aqui? Não, você trás as suas pinturas pra<br />

gente ver, né?<br />

CF [e’saw]<br />

SL Eu tinha, eu sei //segmento ininteligível// e eu tinha ...<br />

RL Ce tira foto de planta, né?<br />

Imc Ele é fotografo, então traz as fotos //segmento ininteligível//<br />

né? Então, na semana que vem, o senhor pode trazer<br />

algumas fotos da sua família, da sua esposa, os seus filhos,<br />

né? pra gente conhecer. O que mais que a gente faz? A gente<br />

passeia<br />

CF Oh e[‘saw][e’saw] ...<br />

Imc A gente ta programando um passeio no museu do Ipiranga<br />

em São Paulo<br />

CF Olha [e’saw][e’saw]<br />

SL Eu vou lá, eu vou lá .<br />

Imc Cê vai lá //segmento ininteligível// pra vender, a gente vai no<br />

museu do Ipiranga ou no memorial da América latina, né?<br />

Passear.<br />

Na situação comunicativa 1, podemos observar um evento comunicativo cuja<br />

circunstância de ocorrência está relacionada ao primeiro momento da inserção de um<br />

novo membro na prática (clínica) com a linguagem no CCA. Os interlocutores (sujeitos<br />

afásicos e não afásicos) vivenciam uma situação de uso sociocultural da linguagem, em<br />

contexto verbal e não verbal, com o propósito de informar o ingressante MM sobre as<br />

atividades desenvolvidas pelo grupo.<br />

Os sujeitos envolvidos lançam mão da competência comunicativa.<br />

Consideramos que o conceito de competência comunicativa está encaixado na noção de<br />

competência cultural, ou totalmente fixada no conhecimento e habilidades que falantes<br />

trazem para uma situação comunicativa. Isso nos proporciona uma visão harmônica da<br />

definição de cultura como significado, direcionando-nos ao trabalho com símbolos.<br />

Os sistemas de culturas são normas de símbolos, e língua é somente um dos<br />

sistemas simbólicos da rede social. Interpretar o significado de comportamento<br />

lingüístico requer (re)conhecer o significado em que ele está inserido. Dessa forma,<br />

todos aspectos da cultura são relevantes para a comunicação nas situações<br />

comunicativas do CCA, mas aqueles aspectos que têm a maior parte de procedimentos<br />

dirigidos em formas e processos comunicativos são: estrutura social, valores e atitudes<br />

tomadas pela língua e modos de falar. Categorias conceituais de redes que resultam de<br />

experiências partilhadas e meios de conhecimento e habilidades (incluindo língua) são<br />

transmitidos de geração para geração e para novos membros do grupo. Na situação<br />

comunicativa 1, observamos a atividade lingüístico-discursiva voltada para as instruções<br />

sobre as práticas que convergem em linguagem.<br />

O conceito de competência comunicativa – ou seja, o conhecimento que<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 75-83, maio-ago. 2008<br />

81


combina o saber gramatical com saber social – está relacionado à idéia de um repertório<br />

comunicativo. Esse repertório se refere à totalidade de recursos <strong>lingüísticos</strong> disponíveis<br />

aos membros de uma comunidade. Cada indivíduo seleciona os recursos mais<br />

apropriados para determinados contextos, podendo transitar de um para outro em um<br />

mesmo ato de fala. Reiteramos que a linguagem deve ser vista como um fenômeno<br />

dinâmico e interativo entre os interlocutores do processo comunicativo tanto na<br />

realização oral ou escrita quanto na interação não-verbal, o que possibilita uma seleção<br />

mais ampla de recursos (estendendo-se a outros sistemas semióticos) do que o repertório<br />

lingüístico. Dessa forma, o sujeito afásico pode ter dificuldade de linguagem, mas pode<br />

usar outros elementos para fazer sentido.<br />

No episódio acima, o verbal, o não verbal, as pausas e as hesitações que<br />

aparecem fazem parte do repertório comunicativo do grupo, mas não são exclusivos<br />

dele, porque são fenômenos estruturadores e organizadores do fluxo discursivo nos<br />

eventos comunicativos em geral, que são interligados e determinados por constituintes<br />

<strong>lingüísticos</strong> e por circunstâncias sociais, bem como culturais. Esse saber acumulado que<br />

faz parte do repertório comunicativo é de natureza individual, ou seja, cada falante<br />

desenvolve o seu próprio conhecimento de maneira particular conforme sua experiência.<br />

Mas, ao mesmo tempo, esse saber, que se acumula no repertório comunicativo, é<br />

compartilhado, é comum ao grupo social no qual o indivíduo está inserido, ou seja, é<br />

comum à comunidade de fala.<br />

Uma comunidade de fala é definida como uma comunidade que compartilha as<br />

regras de interpretação dos atos de fala, participação de atitudes e valores considerando<br />

forma e uso da língua, e participação da compreensão sócio-cultural e pressuposições a<br />

respeito da fala. Os lingüistas estão, na sua maioria, de acordo com o fato de que uma<br />

comunidade de fala não pode ser exatamente igual a um grupo de pessoas que falam a<br />

mesma língua, o conceito de comunidade de fala, postulado por Hymes, é uma unidade<br />

importante de análise etnográfica. Com esse critério de agrupamento, de base<br />

sociocultural, podemos identificar as comunidades de fala e não as comunidades<br />

lingüísticas e analisar os grupos socioculturais e não as pessoas que falam uma mesma<br />

língua.<br />

4. Considerações finais<br />

Os sujeitos afásicos nesta comunidade são atuantes no curso de suas vidas,<br />

através do exercício - reflexivo e intersubjetivo - com a linguagem, a memória, a<br />

percepção, o corpo, tal como que se estabelece na sociedade em que se inserem.<br />

Assim, os resultados indicam que, ao lado dos sujeitos não afásicos do CCA, os<br />

sujeitos afásicos, inseridos nessa comunidade de fala, são levados a enfrentar a afasia,<br />

agindo com e sobre a linguagem, a partir de repertório comunicativo variado que inclui<br />

recursos <strong>lingüísticos</strong> e não <strong>lingüísticos</strong>, em diferentes situações<br />

discursivas/comunicativas e eventos discursivos/comunicativos.<br />

5. Referências bibliográficas<br />

ABAURRE, M. B. M. e COUDRY, M. I. H. Em torno de sujeitos e de olhares, 2005 (a<br />

sair).<br />

ALKMIM, T.M. Considerações sobre o campo da sociolingüística. In: ALBANO, E. et<br />

al. Saudades da língua. 1ª. Ed. Campinas: Mercado de Letras, 2003.<br />

82 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 75-83, maio-ago. 2008


BACHMANN, C. (1981) Langage et communications sociales. Paris, Hâtier.COUDRY,<br />

M. I. H. (1986) Diário de Narciso: discurso e afasia. São Paulo: Martins Fontes. 1988.<br />

___ Neuropsicologia: Aspectos biológicos e sociais. In: Temas em Neuropsicologia e<br />

Neurolingüística – Vol. I (38-57). Rodrigues, N. & Mansur, L.L. (eds). São Paulo: Tec<br />

Art., 1993.<br />

___ Temas em Neuropsicologia e Neurolingüística. São Paulo: TecArt Editora, 1995. v.<br />

IV. 1, 1995.<br />

___ 10 anos de Neurolingüística no IEL. In: Cadernos de Estudos Lingüísticos , 32: 09-<br />

23. 1997.<br />

___ Pressupostos teóricos e dinâmica de funcionamento do Centro de Convivência de<br />

Afásicos (CCA). Mesa Redonda: Aspectos neuropsicológicos e discursivos: Centro de<br />

Convivência de Afásicos (CCA).In: IV Congresso Brasileiro de Neuropsicologia.<br />

Sociedade Brasileira de Neurologia, Rio de Janeiro, R.J., 1999.<br />

___ Linguagem e Afasia: Uma abordagem discursiva da Neurolingüística . In: Cadernos<br />

de Estudos Linguísticos, 42, Campinas, IEL, UNICAMP, 99-129, 2002 a.<br />

___ Conceitos de Afasia: clássico é clássico e vice-versa. Aula apresentada à Banca<br />

Examinadora do Concurso de Livre-docência do Departamento de Lingüística do<br />

Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, 2002b.<br />

___ Projeto Integrado em Neurolingüística:avaliação e banco de dados. CNPq:<br />

521773/95-4 (impresso), 2006.<br />

COUDRY, M. I. H., FREIRE, F. M. P., GOMES, T. M. Sem falar, escrever e ler e<br />

ainda sujeito da linguagem. Revista eletrônica do <strong>GEL</strong>, 2005.<br />

FREIRE, F. M. P. Agenda Mágica: linguagem e memória. Tese de Doutoramento.<br />

IEL/UNICAMP. 2005.<br />

GUMPERZ, J.; HYMES, D. Directions in sociolinguistics: The ethnography of<br />

speaking. New York: Holt, Rinehart & Winston, 1972.<br />

________ The ethnography of communication. American Anthropologist, v. 66, n. 6,<br />

1964.<br />

HYMES, D (1967): Models of the Interaction of Language and Social Setting, Journal<br />

of social issues, vol XXIII, n.º 2, pp 8-28. 1967.<br />

___. (1973) Vers la Compétence de Communication. Paris: Hatier , 1984.<br />

___ Foundations in Sociolinguistics. Philadelphia: University or Philadelphia Press,<br />

1974.<br />

___. Fundations in sociolinguistics. An Ethnographic Approach. Tavistock Publications,<br />

London, 1977.<br />

JAKOBSON, R. (1955) A afasia como um problema lingüístico. In: LEMLE, M. e<br />

LEITE, Y. (orgs) Nova Perspectivas lingüística. Petrópoles: Vozes , 1972.<br />

___ (1969) Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In: Lingüística e<br />

comunicação. São Paulo: Cultrix, 1999.<br />

LURIA, A. R. Fundamentos em Neuropsicologia. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e<br />

Científicos; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1981.<br />

SAVILLE-TROIKE, M. (1982). The Ethnography of communication: an introduction.<br />

New York: Basil Blackwell.1989.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 75-83, maio-ago. 2008<br />

83


Algumas considerações em torno da identificação dos<br />

estados internos em situações de narrativa oral por criança<br />

Lélia Erbolato Melo<br />

Departamento de Lingüística-FFLCH/USP<br />

leliaerbolato@hotmail.com<br />

Abstract. The chief aim of this paper is to examine 5, 8 and 10-year-old<br />

children’s ability to refer to physical, emotional, intentional and<br />

episthemic internal states in narratives taken into consideration a<br />

sequence of five images without text (Furnari, 1988), wich were<br />

transformed into a computer programme. These images “tell” the story<br />

a misunderstanding between two characters. The date analysis and<br />

interpretion will be based on the literature (Linguistics,<br />

Psycholinguistics and Pragmatics) and the results will be presented and<br />

discussed taken examples from the research undertook.<br />

Keywords. internal states; belief and false belief; explanation; child’s<br />

narrative.<br />

Resumo. O objetivo principal deste trabalho é examinar a capacidade<br />

das crianças de 5, 8 e 10 anos para se referir aos estados internos de<br />

tipo físico, emocional, intencional e epistêmico, em narrativas<br />

construídas a partir de uma seqüência de cinco imagens sem texto<br />

(Furnari, 1988), transformadas em programa informatizado/Unicsul,<br />

que “contam” a história de um mal-estendido entre dois personagens. A<br />

análise e interpretação dos dados se basearão na literatura<br />

(Lingüística, Psicolingüística e Pragmática). Os resultados obtidos<br />

serão apresentados e comentados, tendo como referência exemplos<br />

representativos do material coletado em pesquisa realizada.<br />

Palavras-chave. estados internos; crença e falsa crença; explicação;<br />

narrativa infantil.<br />

O presente trabalho tem como objetivo, inicialmente, identificar em situações de<br />

narrativa oral, produzidas por crianças de 5, 8 e 10 anos, de ambos os sexos, a menção<br />

de quatro tipos diferentes de estados internos (físico, emocional, intencional e<br />

epistêmico), conforme Veneziano & Hudelot (2006). As narrativas, construídas a partir<br />

de uma seqüência de cinco imagens (Furnari, 1988), transformadas em programa<br />

informatizado pela Unicsul (2005), dentro de um Projeto de pesquisa conjunta Brasil/<br />

USP (CAPES) e França/ Paris V(COFECUB), “contam” a história de um mal-entendido<br />

entre dois personagens, na medida em que os dois personagens da história têm uma<br />

apreciação diferente de um acontecimento-chave, e permitem a expressão precoce de<br />

estados internos. Aqui, a intenção é determinar se os estados internos são ou não<br />

utilizados no interior de uma relação explicativa, bem como mostrar também que essas<br />

narrativas implicam da parte do narrador um trabalho interpretativo importante em<br />

diferentes níveis: da situação e do contexto, da identificação dos objetos, dos<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 85-93, maio-ago. 2008<br />

85


personagens e das ações que se ocultam por trás das imagens estáticas e, talvez, no nível<br />

dos liames causais e motivacionais, indicando os acontecimentos e os comportamentos<br />

inferidos dos personagens. Como veremos mais adiante, esta história pode ser<br />

simplesmente contada, permanecendo em um nível descritivo, mas pode ser contada<br />

também em um nível elaborado que implica a atribuição de intenções e crenças aos<br />

personagens, para assinalar que eles têm visões diferentes da mesma realidade, sendo<br />

uma de falsa crença. Assim, a partir de 4-5 anos, as crianças produzem em geral<br />

narrativas de tipo descritivo, em que os acontecimentos se encadeiam de maneira<br />

temporal e, somente mais tarde, entre 6-7 anos, começam a tecer liames causais, uma<br />

capacidade que melhora progressivamente até 9 –10 anos, culminando com a presença<br />

importante e coerente de uma atitude avaliativa (François, 2004, entre outros). A coleta<br />

de dados se desenvolveu em quatro tempos. No primeiro tempo – visualização das<br />

cinco imagens da história, elas foram apresentadas uma após a outra na tela do<br />

computador e, finalmente, em conjunto, durante cerca de dois minutos. O segundo<br />

tempo – narrativa inicial ou narrativa antes da tutela, quando a criança contava a<br />

história sem ter as imagens diante dos olhos. O terceiro tempo – narrativa com tutela,<br />

quando a pesquisadora questionava a criança sobre as razões dos acontecimentos.<br />

Enfim, o quarto tempo – narrativa após a tutela, quando a pesquisadora pedia à criança<br />

para contar a história, mais uma vez, dizendo tudo o que havia compreendido. A<br />

transcrição dos dados foi feita segundo as normas do Projeto NURC/ SP.<br />

Como dissemos anteriormente, este trabalho propõe-se a observar o<br />

desenvolvimento das capacidades das crianças para contar uma história coerente a<br />

propósito de uma série de imagens. Dentro deste contexto, interessa-nos observar a<br />

capacidade da criança em tomar a perspectiva de um personagem, o que ela pensa a<br />

propósito da perspectiva do outro, e também sua capacidade para exprimir a existência<br />

de dois pontos de vista diferentes sobre uma mesma realidade. Além disso, temos<br />

interesse também pelo componente avaliativo da narrativa (Labov, 1978), que vai além<br />

do factual descritivo dos acontecimentos eventualmente colocados em sua dimensão<br />

temporal e espacial, para dar conta de sua própria ocorrência, a fim de explicá-los como<br />

resultantes de causas físicas ou razões psicológicas, estados de alma, de motivações, ou<br />

de crenças dos personagens (Veneziano & Hudelot, op. cit.).<br />

Retomando Bruner (1986), “o mundo da ação é colocado na perspectiva do mundo<br />

da consciência”, enquanto o narrador toma a perspectiva dos personagens e fala dos<br />

acontecimentos, tendo como referência suas emoções, intenções e crenças a propósito<br />

do mundo físico. Para Olson (1997: 251), ”o fato de que as crianças pequenas entendem<br />

que podem existir falsas crenças, assim como o engano, indica que compreendem até<br />

certo ponto o papel desempenhado por certos estados mentais, como as crenças e as<br />

intenções, na ação e na comunicação”.<br />

A expressão da falsa crença acontece porque a criança não somente atribui a um<br />

personagem uma crença sobre as intenções do outro (P1), o que já foi percebido pela<br />

análise dos estados internos (“ele pensa que fez de propósito”), mas exprime também a<br />

causa física e, portanto, acidental, do primeiro empurrão (ele tropeça em uma pedra ele<br />

empurra a outra criança /depois a outra criança/... ele pensava que ele tinha feito de<br />

propósito). Considerando que a criança apresenta o acontecimento como produzido<br />

“objetivamente”, não atribui somente uma crença ao personagem P2, mas exprime<br />

claramente que esta crença é falsa, uma vez que ele diz que o outro personagem (P1)<br />

empurrou P2 de maneira acidental, caindo em uma pedra e não de maneira intencional.<br />

O narrador exprime, portanto, duas versões da mesma realidade.<br />

86 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 85-93, maio-ago. 2008


O que não captamos necessariamente nesta codificação é a expressão explícita dos<br />

dois pontos de vista diferentes no interior da história, isto é, dos pontos de vista dos<br />

dois personagens, um que vê o acontecimento como sendo causado acidentalmente (P1)<br />

e o outro (P2) que o vê como sendo intencional. Este duplo ponto de vista “interno” à<br />

história e sua expressão explícita se encontram na codificação que compreende a<br />

“retificação” da falsa crença e a supressão do mal-entendido inerente correspondente.<br />

A referida retificação foi codificada nos casos em que, após sua manifestação em<br />

relação ao personagem (P2), a criança exprime o ponto de vista alternativo do<br />

personagem (P1), seja em discurso direto, seja em discurso indireto, e os personagens<br />

desfazem o mal-entendido criado anteriormente. Por exemplo, quando a criança faz P1<br />

dizer - “eu não empurrei”, e P2 -“desculpa, eu pensei que foi de propósito”.<br />

A criança que narra (o narrador) exprime, ao mesmo tempo, o ponto de vista dos<br />

dois personagens sobre o mesmo acontecimento, um como sendo acidental e outro<br />

intencional, tem-se um nível superior de conceitualização da teoria da mente, o nível<br />

“interpretativo”, segundo o qual o conhecimento é relativo e depende da interpretação e,<br />

portanto, das construções mentais das pessoas. Daí, a denominação “teoria relativista<br />

da mente”, conforme Veneziano & Hudelot.<br />

A seguir, introduzimos brevemente as considerações teóricas de Perner e Wimmer<br />

(1985) sobre os estados epistêmicos atribuídos às pessoas, com base em experimentos<br />

por eles realizados.<br />

Para estes autores, embora descrever o que as pessoas pensam sobre eventos reais<br />

(crenças de primeira ordem) represente um papel crucial na explicação de sua interação<br />

física com objetos e com outras pessoas, esta descrição não pode apreender<br />

integralmente a interação social. A interação entre as pessoas baseia-se em grande parte<br />

na interação de mentes, as quais só podem ser devidamente compreendidas, quando se<br />

leva em conta o que as pessoas pensam sobre os pensamentos de outras pessoas<br />

(crenças de segunda ordem) e até o que as pessoas pensam que as outras pessoas sobre<br />

seus pensamentos (crenças de ordem mais elevada). A propósito, a importância das<br />

crenças de segunda ordem e de ordem mais elevada para nossa compreensão da<br />

sociedade humana foi enfatizada por teóricos em diversos campos.<br />

Em síntese, estamos diante de dois fatos importantes, conforme Perner (1991): a) da<br />

meta-representação de “primeira ordem”(= entendimento do entendimento); b) da<br />

meta-representação de “segunda ordem” (= compreensão da interpretação). Para<br />

enfrentar a questão da intenção comunicativa, as crianças precisam adquirir uma<br />

determinada noção de subjetividade.<br />

Na seqüência da análise, preservamos as exigências da memória, na medida em que<br />

as crianças contam suas histórias, quando as imagens não são visualizadas, e de<br />

produção monologal da narrativa introduzindo duas características suscetíveis de<br />

facilitar a consideração dos estados internos e mentais e de seu papel na explicação dos<br />

acontecimentos por ocasião da narração.<br />

Por um lado, contar o mal-entendido deveria solicitar a referência às intenções e<br />

crenças. Por outro lado, a utilização de um procedimento de tutela tipo “reflexivo”<br />

(Hudelot & Vasseur, 1997: 13) permitiria centrar a atenção das crianças nas causas ou<br />

razões de alguns acontecimentos sem, todavia, fazer referência explícita aos estados<br />

internos dos personagens. Paralelamente, após identificarmos a menção de diferentes<br />

tipos de estados internos pelas crianças, verificaremos o lugar que eles ocupam na<br />

tessitura explicativa (Veneziano & Hudelot, 2002; 2005).<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 85-93, maio-ago. 2008<br />

87


No que diz respeito aos critérios utilizados para a análise geral das explicações, o<br />

propósito é verificar (a) até que ponto os componentes da relação explicativa e da<br />

relação semântica estão interligados; (b) se a relação explicativa é apresentada de<br />

maneira retroativa, isto é, do que é para explicar – o explanandum – ao que explica, o<br />

explanans; (c) se o movimento da relação é proativo, isto é, se vai do antecedente ao<br />

conseqüente.<br />

Antes de apresentar os resultados referentes à expressão de estados internos e sua<br />

implicação nas relações explicativas, citamos exemplos representativos que ilustram a<br />

variedade das narrativas coletadas. Assim, embora a maioria dessas narrativas partilhe<br />

traços comuns, algumas crianças narram a história interpretando as imagens de maneira<br />

diferente, como no segmento a seguir.<br />

Exemplo 1 – JR (10 a.)<br />

quando ... na primeira imagem um amigo encontrô/ o outro ... um fala pro outro ... aí<br />

(meu) quanto tempo ... como é que você vai? ... aí um chega/ LÁ ... vai (tipo assim)<br />

dá um abraço ... tropeça na pedra ... AÍ:::... aí o outro falô/ ... ooh:::... que história é<br />

essa de já vim me empurrando? ... e o outro (fala) ah me desculpe é que eu caí<br />

naquela pedra ... aí o outro na última imagem ... ah:::... desculpa eu não sabia<br />

* Na seqüência, selecionamos exemplos que mostram o enriquecimento crescente<br />

do componente explicativo/avaliativo da narrativa na criança.<br />

Exemplo 2 – May (5 a.; e 4 m.)<br />

uma menina e um menino... eles estavam no jardim... mas só ... que o menino ... ele<br />

foi lá e falou pra ela fechá / os olhos né ... aí.. ela fechô/ os olhos .. e quando ela<br />

fechô / os olhos... ele saiu de perto ... e aí quando ele saiu de perto... e ela tava com<br />

os olhos fechAdu... ele empurrô/ ela ... aí ...ela caiu...aí ela ele ficô/ com dó<br />

também... aí né.. ele pediu desculpa e tal... aí na outra ela empurrô / ele... daí ele ...<br />

ele... quer dizer... ela pediu desculpa pa/ ele e eles ficaram amigos<br />

Exemplo 3 – MAR (8 a.)<br />

é:::...o Paulo e o André chegaram na escola ... se cumprimentaram... aí o André<br />

tropeçô/ na pedra e sem querê/ ... empurrô/o o Paulo... aí o Paulo se sentiu ofendido<br />

e empurrô/ o André... aí ... o Paulo ... se explicô/ porque ele tinha:::: empurrado o<br />

André sem querê/ ... aí eles voltaram a ser amigos e foram para a escola<br />

Exemplo 4 – GAL (10 a.)<br />

um menino tava falando oi pro outro... quando eles tavam passando... e daí... um<br />

menino sem querer tropeçou numa pedra... e daí ele esbarrou no outro... e daí ele<br />

começou a chorar... não...(( movimento de negação com a cabeça)) o outro bateu<br />

nele de volta... e ele começou a chorar... e falando... aí foi sem querer... eu tropecei<br />

nessa pedra e sem querer te esbarrei... e você caiu...aí o outro levantou o outro... e o<br />

outro... eles dois pediram desculpa um pro outro... eles começaram a brincá/ ... e daí<br />

mais tarde... eles foram para casa... no outro dia começaram a brincá/ tudo de novo<br />

* Prosseguindo, na referência aos estados internos dos personagens constatamos<br />

que, até 8 anos, as crianças verbalizam pouco os estados internos dos personagens em<br />

suas narrativas iniciais ( ou antes da tutela) um resultado que está de acordo com vários<br />

88 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 85-93, maio-ago. 2008


<strong>estudos</strong> anteriores registrados pela literatura (apud Veneziano & Hudelot, 2006).<br />

Preferem referir-se, geralmente, aos estados internos de tipo físico ou emocional.<br />

Exemplo 5 – BEA (5 a.)<br />

era uma vez ... um menino e uma menina que eles... eles... estavam se encontrando<br />

dando tchau... aí... é::: o::: o menino atropeçou no outro ... e empurrou o outro... o<br />

outro ficou bravo... aí o outro começou a chorar pra ele não contá/ pro pai ... aí no<br />

fim... eles ficaram amigo<br />

Exemplo 6 – GAC (8 a.)<br />

era uma vez dois meninos ... eles se encontraram num dia ... e::.. o::.. e um falô /<br />

assim pro outro....você qué / brincá / ...o outro falô / ...sim ....aí eles começou a<br />

brincá/...aí...aí um atropeçô numa pedra... e::... caiu em cima du::: colega...aí o<br />

amigo que ficô/ embaixo...caiu numa pedra...começô/ a chorá / ....depois....depois....<br />

o outro amigo DEli...deu a mão pra ele... levantô/ o outro né... aí eles se entenderam<br />

e ficô/ ... certo...<br />

* Todavia, nas narrativas após a tutela, as referências aos estados internos (físico,<br />

emocional e intencional) tendem a aumentar significativamente no conjunto das<br />

crianças.<br />

Exemplo 7 – BEA ( 5 a.)<br />

que o menino... tava dando tchau... e ele tropeçou na pedra e caiu em cima do<br />

outro... aí... NÉ::: ( ) o outro levantou e começou a chorá/ porque tinha caído em<br />

cima da pedra... é na pedra né... aí... aí depois ele... ele caiu na pedra... aí depois ele<br />

ajudô/( o outro levantou) e foram brincá/<br />

Exemplo 8 - DOR (8 a.; 3 m.)<br />

Joãozinho estava passeando...então...encontrou o André... quando Joãozinho foi<br />

falá/ co/ o André... ele atropeçô/ numa pedra...empurrô o André no chão...então<br />

André ficô/ furioso...nervoso...e empurrô / Joãozinho no chão...Joãozinho começô/<br />

a chorá/...((silêncio)) pediu desculpa... desculpa... ((muda bem pouco o tom de voz))<br />

desculpa é que eu atropecei numa pedra por isso ... eu empurrei você no chão...<br />

depois... ((retoma seu tom de voz)) André deu a mão a Joãozinho... levantô / ele e<br />

eles ficaram felizes para sempre<br />

Exemplo 9 – GAC (8 a.)<br />

era uma vez dois amigos eles tavam passeando...aí... eles se encontram... e um falô /<br />

assim pro outro... você qué/ brincá/ de pega-pega?... aí...aí ele... aí eles começaram a<br />

brincá / ...aí um tava olhando prum/ lado e outro tava olhando pro/ outro lado... aí<br />

eles bateram frente a frente... trombaram aí... aí::::... aí ... aí um ficô/ bravo com o<br />

outro... o outro empurrô / com tanta força que .. ele caiu na pedra... começô/ a chorá/<br />

.. aí o outro pediu desculpa... levantô / ele e ... tudo certo<br />

Exemplo 10 – IGO (8 a.; 9 m.)<br />

oi .... tudo bem?... tudo... é AÍ:::... por que você me empurrô/? ... ah não ... é porque<br />

eu escorreguei numa pedra ... aí ele...OPA desculpa é que... aí escorregô/ numa pedra<br />

... depois ele pensô/ que ele empurrô/ de propósito ... depois ele ... ele percebeu...<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 85-93, maio-ago. 2008<br />

89


aí:::... ele empurrô/ o outro de novo ... ele ele ... respondeu que ele ele tinha caído<br />

caído numa pedra pá/ se segurá/ nele ... aí ele num cai ... aí depois ele (disse) por<br />

favor deixa eu te ajudá/ a levantá/<br />

* Em compensação, as crianças de 10 anos, antes e depois da tutela, referem-se com<br />

freqüência ao estado epistêmico, que se baseia em crenças, conhecimentos, ou não, dos<br />

personagens.<br />

Exemplo 11 – DAN ( 10 a.; 2m.)<br />

(a) antes da tutela<br />

tinha o Luís e o Otávio ... os dois eram amigos ... o Luís tropeçô/ na pedra e caiu em<br />

cima do Otávio ... o Otávio pensô/ que foi de propósito e empurrô/ o Luís ... o Luís<br />

caiu se machucô/ e pediu desculpa para o Otávio ... o Otávio pediu desculpa para o<br />

Luís e voltaram a ser amigos<br />

(b) depois da tutela<br />

tinha o Luís e o Otávio eles eram amigos ... o Luís foi na direção do Otávio ...<br />

tropeçô/ na pedra e caiu em cima do Otávio ... o Otávio pensô/ que foi de propósito<br />

e empurrô/ o Luís ... o Luís caiu se machucou e mostrô/ que tropeçô/ na pedra ...<br />

pediu desculpa pro Otávio ... o Otávio pediu desculpa pro Luís ... então eles<br />

voltaram a ser amigos<br />

Exemplo 12 – BER (10; 6m.)<br />

(a) antes da tutela<br />

os dois estava andando ... e falô/ oi...oi... ((mudou um pouco o tom da voz)) e ...<br />

aí... um caiu aí e empurrou o outro e ele pensô/ que era assim .....de propósito ...e<br />

aí o menino falou ... ah cê vai ver ... porque ele não gostô/ né ... aí ele pegô/ e<br />

empurrô/ a aí o menino começô/ a chorá/ e aí o menino falô / que não era ...que ele<br />

tinha atropeçado na pedra e tudo ... e aí eles fizeram as pazes<br />

(b) depois da tutela<br />

tá (( sim com a cabeça))...os dois tavam andando né assim por acaso eles se<br />

encontraram...aí tinha uma pedrinha ali ... aí ele pegô / e não deu nada.... foi<br />

andando e atropeçô / ... a aí caiu em cima do outro ... e o .. ele pensô / que era<br />

briga mesmo... pra brigá / e aí o outro empurrô/ ... ele de novo e falô / ... aí ele pegô/<br />

e começô/ a chorá / .... ele falô / que tinha ... caído da pedra e tudo ... e ele contô /<br />

a história assim... e ele pegô / falô/ vamu/ (briga não)... aí eles ficaram de bem<br />

Exemplo 13 – TAY (10 a.; 4 m.)<br />

(a) antes da tutela<br />

era uma vez um menino que:::... um menino que se chamava Ricardo... aí::: ele tava<br />

andando... assim... na rua ... aí ele encontrô/ o outro menino que se chama ...<br />

Anderson... aí eles tavam andando... aí sem querê/ o Anderson ... ele levou um<br />

tombo na pedra... aí o Ricardo pensô/ que o Anderson fez de propósito... aí o<br />

Anderson começô/ a brigá/... aí o Ricardo deixô/ o Anderson caí né... aí o Ricardo<br />

fez as pazes de novo com ele<br />

90 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 85-93, maio-ago. 2008


(b) depois da tutela<br />

era uma vez dois meninos... um se chamava Ricardo... e o e outro se chama<br />

Anderson... eles tavam dando oi um pra cada um... aí sem querer o Anderson... ele<br />

foi muito para frente e levô/ um tombo... e caiu em cima do Ricardo... aí o Ricardo<br />

foi e pensou que o Anderson... é:::... fez isso de propósito... ele empurrou ele... aí o<br />

Anderson... ele bateu na pedra... começou a chorar... aí o Ricardo... ele foi levantá/<br />

ele e pediu desculpas... e disse que nunca mais ia fazê/ isso<br />

Exemplo 14 – CAR (10 a.; 3 m.)<br />

(a) antes da tutela<br />

era uma vez... dois meninos chamado João e Miguel..um dia no parque... eles...se<br />

encontraram... quando eles foram se cumprimentar....os dois... é:::: João caiu e sem<br />

querer....empurrô / Miguel...Miguel pensando que:::. era de propósito empurrô / o<br />

João.... daí .... quando João caiu..... João explicô/ que tinha caído por causa da<br />

pedra.... então Miguel foi lá e ajudô/ e depois eles brincaram<br />

(b) depois da tutela<br />

era uma vez dois meninos chamado João e Miguel.... um dia eles se encontraram no<br />

parque... eles se encontraram no parque... quando eles foram se cumprimentar ...<br />

João atropeçô/ na pedra...e sem querê/ empurrô / o Miguel... Miguel pensando que<br />

foi de propósito... foi lá e empurrô/ o João ... daí o João caiu ... e quando ele caiu...<br />

depois que ele caiu ele explicô/ que ... empurrô/ porque tinha atropeçado na pedra ...<br />

depois Miguel ajudô/ ele a levantar e eles brincaram... começou a brincar<br />

* A partir destes exemplos, podemos pensar na ocorrência do contexto no sentido<br />

extenso de Stalnaker (1972, apud Armengaud, 2006: 65), ou seja, ampliado ao que é<br />

presumido pelos interlocutores. É um contexto de informações e de crenças partilhadas.<br />

Não se trata [conforme a autora] de um contexto “mental”, mas de um contexto<br />

traduzido em termos de mundos possíveis (exemplos de 11 a 14). Esta reflexão nos leva<br />

a ver as narrativas sobre a “história da pedra”, que acabamos de relatar, na perspectiva<br />

de uma pragmática de segundo grau , na medida em que se propõe a distinguir entre<br />

sentido literal e sentido comunicado ou expresso (Hansson, 1974; Armengaud, op. cit.:<br />

64-65; 84-91).<br />

Considerações finais<br />

Os resultados obtidos sugerem que a “leitura” de uma série de imagens mobiliza<br />

pelo menos três tipos de operações cognitivas que condicionam as produções<br />

linguageiras (a) identificação dos elementos representativos, animados e não-animados;<br />

(b) inferência dos acontecimentos identificados; (c) seqüenciação dos acontecimentos<br />

isolados.<br />

Mostram também que nem os estados internos dos personagens, nem a dupla<br />

perspectiva dos pontos de vista sobre os eventos constituem objeto de tutela. Somente<br />

indagando as razões por trás das ações, obtemos uma colocação linguageira centrada<br />

nos aspectos mentalistas dos comportamentos. Retomando François (1993: 130), a<br />

tutela vai então bem além de um simples “programador” que pode ajudar a criança a<br />

realizar o que ela não conseguiu cumprir sozinha, ou como uma relação entre signos,<br />

meios e fins (Bruner & Hickmann, 1983: 289). Conforme Veneziano & Hudelot (2006:<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 85-93, maio-ago. 2008<br />

91


13), [a tutela] “parece funcionar como um catalisador de competências obstruídas em<br />

sua manifestação por pressões variadas de funcionamento”.<br />

Neste sentido, em suas primeiras narrativas, as crianças antes dos 10 anos raramente<br />

mencionam os estados epistêmicos baseados na crença, conhecimento ou não dos<br />

personagens. No entanto, uma tutela que atraia a atenção da criança de 8 anos, em<br />

relação às causas dos acontecimentos, por um lado, faz com que ela aumente<br />

consideravelmente suas referências aos estados internos dos personagens, incluindo os<br />

de tipo epistêmico. Por outro lado, uma criança desta idade mostra-se capaz de<br />

explicitar que a crença de um dos personagens é falsa e encontra meios narrativos para<br />

retificá-la, confirmando uma teoria relativista da mente. Neste sentido, podemos afirmar<br />

também que, de um modo geral, a maioria dos estados internos estão implicados em<br />

relações explicativas, antes e depois da tutela.<br />

Finalmente, constatamos a necessidade de uma avaliação mais detalhada para tirar<br />

conclusões sobre as capacidades efetivas das crianças, em termos de seu<br />

desenvolvimento cognitivo, a partir de intervenções externas.<br />

Referências bibliográficas<br />

ARMENGAUD, F. A pragmática. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo, Parábola, 2006.<br />

BRUNER, J. & HICKMANN, M. (éds.). Le développement de l’enfant: savoir faire,<br />

savoir dire, 1983.<br />

BRUNER, J. Actual minds, possible worlds. Cambridge, MA: Harvard University<br />

Press, 1986.<br />

FURNARI, E. Esconde- esconde. 4ª ed. São Paulo, Ática, 1988.<br />

FRANÇOIS, F. Pratiques de l’oral: Dialogue, jeu et variations des figures du sens.<br />

Paris, Nathan, 1993.<br />

FRANÇOIS, F. Enfants et récits. Mise en mots et «reste». Villeneuve d’ Ascq (Nord) :<br />

Presses Universitaires du Septentrion, 2004.<br />

HANSSON, B. A program for Pragmatics. In S. STENLAND (org.), Logical theory and<br />

semantic analysis. Dordrecht: Reidel, 1974.<br />

HUDELOT, C. & VASSEUR, M.- T. Peut-on se passer de la notion d’étayage pour<br />

rendre compte de l’élaboration langagière en L1 et L2? Cahiers d’ Acquisition et de<br />

Pathologie du Language (CALaP), 15 , 1997 :109- 135.<br />

LABOV,W. La transformation du vécu à travers la syntaxe narrative, in Le parler<br />

ordinaire, la langue dans les ghettos noirs des États- Unis, Éditions de Minuit, 1978.<br />

OLSON, D. R. O mundo no papel. As leituras conceituais e cognitivas da leitura e da<br />

escrita. Trad. Sérgio Bath. São Paulo, Ática, 1997.<br />

92 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 85-93, maio-ago. 2008


PERNER, J. & WIMMER, H. John thinks that Mary thinks that… Attribution of<br />

second-order beliefs by 5-to10-year- old children. Journal of Experimental Child<br />

Psychology 39, 1985: 437-471.<br />

PERNER, J. Understanding the representational mind. Cambridge MA, Bradford<br />

Books/ MIT Press, 1991.<br />

STALNAKER, R. Pragmatics. In DAVIDSON & HARMAN (orgs.), Semantics of<br />

natural languages. Dordrecht: Reidel, 1972.<br />

VENEZIANO, E. & HUDELOT, C. Conduites explicatives dans la narration et effet de<br />

l’étayage : Méthodes d’analyse et quelques résultats qualitatifs tirés d’une étude<br />

développementale et comparative d’enfants typiques et d’enfants dysphasiques.<br />

Travaux Neuchâtelois de Linguistique ( TRANEL), 42 , 2005 : 81-103.<br />

_________ Développement des compétences pragmatiques et théorie de l’esprit chez<br />

l’enfant : Le cas de l’explication. In BERNICOT, J. et al.(éds), Pragmatique et<br />

psychologie. Nancy, Presses Universitaires de Nancy , 2002: 215 – 236. Trad. e<br />

adaptação ao português de MELO, L.E. Desenvolvimento das competências<br />

pragmáticas e teoria da mente na criança: o caso da explicação. Revista Unicsul,<br />

Ano 10 – nº12, junho/ 2005: 6-29.<br />

_________ États internes, fausse croyance et explications dans les récits : effets de<br />

l’étayage chez les enfants de 4 à 12 ans. Langage et l’ Homme, 41 (2), 2006 : 117-<br />

138.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 85-93, maio-ago. 2008<br />

93


NARRATIVAS ORAIS PRODUZIDAS POR CRIANÇAS: A<br />

EXPLICAÇÃO EM FOCO<br />

Priscila Peixinho FIORINDO (Universidade de São Paulo)<br />

Av. Drº Guilherme Dumont Vilares, nº 3052 apto 63 - CEP: 05640-004 - Morumbi -<br />

São Paulo - SP - Brasil<br />

priscilafiorindo@hotmal.com<br />

Abstract: This study intends to show how the explanation and the narration<br />

can be involved in oral stories invented by children in two different situations:<br />

situation (a) - children invented narratives from a pictorial representation<br />

(drawing made by the subjects); situation (b) - children invented stories from<br />

the two narratives read by the researcher.<br />

Keywords: oral language; narrative; explanation; child.<br />

Resumo: Este estudo pretende mostrar como a explicação e a narração se<br />

articulam nas histórias orais produzidas pelas crianças em duas situações<br />

diferentes: situação (a) - as crianças inventaram narrativas a partir de uma<br />

representação pictográfica (desenho feito pelos próprios sujeitos); situação<br />

(b) - as crianças contaram histórias a partir de duas narrativas lidas pela<br />

pesquisadora.<br />

Palavras-chave: linguagem oral; narrativa; explicação; criança.<br />

1. Introdução<br />

O presente trabalho tem a intenção de mostrar a articulação dos aspectos<br />

explicativo e narrativo, com o objetivo de esclarecer o lugar que a “explicação” ocupa<br />

no interior das produções de narrativas infantis.<br />

A opção foi pelo estudo da produção de histórias orais com apoio da<br />

representação pictográfica, desenho feito pelo sujeito, e também a partir de histórias<br />

lidas pela pesquisadora, a fim de verificarmos as diferentes características semânticosintáticas<br />

presentes em quatro situações.<br />

De acordo com Bitar (2002), a leitura da imagem é parte da leitura de mundo e<br />

ao mesmo tempo é influenciada pelas experiências e conhecimentos prévios do sujeitoleitor.<br />

Portanto, a imagem não é apenas reflexo do mundo, mas ela remete também a<br />

história individual e social de cada leitor. Dessa forma é possível verificarmos a<br />

produção narrativa a partir do desenho feito pela própria criança.<br />

Para a observação das histórias, nos apoiamos no modelo geral de organização<br />

da narrativa proposto por Labov (1972), que se divide em: 1) resumo dos fatos da<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 95-104, maio-ago. 2008<br />

95


narrativa; 2) indicações – indica o lugar, o tempo, as pessoas e a situação da fala; 3)<br />

ação complicadora – desenvolvimento da história; 4) avaliação – o narrador informa a<br />

carga dramática ou clima emocional; 5) resultado – causalidades entre os<br />

acontecimentos; e 6) coda – a finalização/ moral da história.<br />

Com base no modelo laboviano da avaliação (Labov, 1972), partimos do<br />

pressuposto de que não há oposição fundamental entre explicação e narração, pois ao<br />

contar uma história, explicamos, e ao explicar, legitimamos o caráter memorável<br />

daquilo que contamos.<br />

De acordo com o autor, a avaliação é um dos elementos estruturais da narrativa,<br />

que tem por finalidade comunicar ao ouvinte o ponto de vista do narrador em relação à<br />

história por ele narrada.<br />

Sob esta ótica, considera a narrativa como uma técnica de construção de<br />

unidades, que recapitulam a experiência na mesma ordem dos eventos originais e<br />

mostram que a seqüência temporal é sua prioridade definidora. Ele também ressalta que,<br />

para existir a narrativa, é indispensável o acontecimento singular e inédito, digno de ser<br />

narrado.<br />

Nesta perspectiva, analisamos o papel da avaliação na narrativa de acordo com o<br />

modelo referido. No artigo “Le rôle de l’évaluation dans le récit”, Melo (2000)<br />

considera a avaliação um dos elementos estruturais da narrativa que informa ao ouvinte<br />

o ponto de vista do narrador em relação à história por ele narrada; e ela pode tomar<br />

formas muito variadas, manifestando-se após o desenvolvimento ou em todo o momento<br />

da narrativa.<br />

Labov distingue quatro tipos de avaliação: avaliação externa; avaliação<br />

encaixada; ação avaliativa; e avaliação por suspensão da ação. Neste estudo<br />

levaremos em conta os três primeiros tipos, observando que, segundo Labov, quase<br />

todos os procedimentos de avaliação têm como fim suspender a ação do narrar. Dessa<br />

forma, exemplificamos, a seguir, apenas os três tipos de avaliação proposto pelo autor:<br />

a) avaliação externa: o narrador interrompe a narrativa, vira-se para o ouvinte e<br />

lhe comunica qual é o seu ponto de vista sobre o fato narrado, ocorre a suspensão da<br />

ação (ato de narrar). Vejamos o exemplo:<br />

M: (...) e aí os três meninos ... que eram espertos ... saíram<br />

b) avaliação encaixada: o narrador não interrompe a história, ele indica seu<br />

ponto de vista durante o desenvolvimento da narrativa através de elementos sintáticos<br />

que podem ser considerados elementos avaliativos:<br />

● os intensificadores – as repetições: ele ele ele ... saiu; - a fonologia expressiva<br />

– GRITOOU<br />

● os comparadores : (...) ... é um era bem alto tinha um que era MAIS alto ...<br />

● os correlativos – aposto ... BEATRIZ ...<br />

● os explicativos – (...) a mãe não viu porque estava nas compras<br />

96 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 95-104, maio-ago. 2008


Como vemos, o narrador por meio dos elementos avaliativos, informa a carga<br />

dramática sem interromper a ação de narrar.<br />

c) ação avaliativa: o narrador descreve o que os personagens fizeram, em vez de<br />

relatar o que disseram. Do mesmo modo, neste caso, o locutor se revela capaz de<br />

encaixar seu comentário inesperado:<br />

V: o golfinho foi lá na água ... ele viu uma baleia ENORME ... aí:::... ele foi lá<br />

na onde tinha os peixe ... aí ele comeu o peixe porque ele tava com fome aí aí ele<br />

... viu o TUBARÃO que comeu um MONTE DE PEIXE aí ... ele comeu aí ele ( )<br />

aí comeu o peixe ... aí veio o gigante ... comeu o peixe dele aí:::... o gigante deu<br />

um soco bem na baRRIGA dele ... ele caiu e ele morreu para sempre ... aí viveu<br />

de novo<br />

Até aqui constatamos os procedimentos de avaliação, segundo Labov, através<br />

dos quais o locutor pode marcar o interesse em relação ao que narra.<br />

Visando o nosso objetivo de estabelecer uma relação entre o narrar e o explicar<br />

com base no procedimento da avaliação (Labov), abordamos a seguir alguns aspectos<br />

relativos à explicação.<br />

Segundo Hudelot et al. (2003), o termo explicação remete a um universo de<br />

sentidos pois para explicar o significado de uma palavra ou de uma ação é necessário<br />

levar em conta o contexto e o sentido da mesma, de modo que seja possível torná-la<br />

inteligível para o interlocutor.<br />

De acordo com Leclaire–Halté (1990), a argumentação e a explicação, em<br />

textos de ficção, fazem parte das estratégias discursivas. A explicação surge quando há<br />

um problema de ordem cognitiva a resolver, e a fase de problematização sucede a fase<br />

de resolução do problema. Assim, notamos que a ação de explicar se faz necessária na<br />

narrativa a fim de esclarecer ou enfatizar a mensagem que o narrador transmite ao<br />

ouvinte.<br />

2. Metodologia<br />

Para este estudo foram escolhidas quatro crianças, dois meninos (F e V) e duas<br />

meninas (B e J), ambas de 5 anos, de uma pré-escola. A escolha das crianças foi<br />

decidida em comum acordo com a orientadora da pré-escola, por elas não apresentarem<br />

patologias, como problemas auditivos, visuais, fonológicos e psicomotores, que<br />

comprometessem a pesquisa.<br />

A proposta apresentada foi de produção de narrativas orais em duas situações: na<br />

situação (a), elaboração de histórias a partir de uma representação pictográfica (desenho<br />

feito pelos próprios sujeitos); na situação (b), elaboração de histórias a partir de duas<br />

histórias (Fita Verde no cabelo – Rosa; e Menina bonita do laço de fita – Machado)<br />

lidas pela pesquisadora.<br />

Os dados foram coletados em sala de leitura, durante duas sessões semanais de<br />

aproximadamente trinta minutos cada, e transcritos com base nas normas do Projeto<br />

NURC/USP – Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta de São Paulo,<br />

proposto por Preti e Urbano (1990).<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 95-104, maio-ago. 2008<br />

97


3. Uma proposta de análise<br />

Como nosso interesse não se restringe apenas à organização do texto, nesta<br />

etapa, nos interessa também o que o texto organiza em sua discursividade. Assim, em<br />

torno da dupla de eixos (o da estrutura sintática e o da organização semântica),<br />

exploram-se procedimentos <strong>lingüísticos</strong> e discursivos. Consideramos P para<br />

pesquisadora, F, V, B e J para as crianças.<br />

Situação (a) – produção de histórias com apoio do desenho<br />

Nos exemplos que seguem (1 e 2) as duas crianças, estavam nos esperando na<br />

sala de leitura, então quando chegamos, conversamos um pouco sobre o que elas mais<br />

gostavam de fazer na escola, e ambas responderam que gostavam muito de desenhar. A<br />

partir daí, os materiais (folhas de sulfite, canetinhas e lápis de cor) foram distribuídos<br />

para que desenhassem e depois contassem uma história sobre o desenho.<br />

Exemplo 1<br />

A baleia<br />

1.VH: o golfinho foi lá na água ... ele viu uma baleia ENORME ... aí:::... ele foi<br />

lá na onde tinha os peixe ... aí ele comeu o peixe porque ele tava com fome aí aí<br />

ele ... viu o TUBARÃO que comeu um MONTE DE PEIXE aí ... ele comeu aí ele<br />

( ) aí comeu o peixe ... aí veio o gigante ... comeu o peixe dele aí:::... o gigante<br />

deu um soco bem na baRRIGA dele ... ele caiu e ele morreu para sempre ... aí<br />

viveu de novo ((a criança faz gestos de soco no ar))<br />

(Victor Hugo 5; 0)<br />

Logo na primeira linha, de acordo com Labov (1972), temos a avaliação<br />

encaixada, o narrador informa seu ponto de vista – “baleia ENORME”, sem<br />

interromper a ação de narrar. Na segunda linha, verificamos o elemento avaliativo –<br />

explicativo (Labov) “porque” funcionando como um conectivo lógico para ligar duas<br />

proposições interdependentes, além de indicar, segundo o autor, o resultado – causa (ele<br />

estava com fome) / conseqüência (comeu o peixe). Como vemos, a explicação se fez<br />

necessária para completar e justificar a ação do personagem. E de acordo com Leclaire-<br />

Halté (1990), este recurso que a criança usa faz parte das estratégias discursivas a fim de<br />

chamar a atenção do ouvinte, tornando o relato mais interessante.<br />

Na linha 4, observamos a presença do inesperado ou mistura de mundos, de<br />

acordo com François (1996), a criança inicia sua narrativa com personagens que vivem<br />

no mar, e de repente insere o “gigante” que embora se assemelhe pelo tamanho à baleia<br />

e ao tubarão, não faz parte desse universo marítimo.<br />

Ao relatar o soco do gigante, VH gesticula murros no ar complementando sua<br />

fala. De acordo com Rector e Trinta (1993), quando a criança realiza tais ações<br />

corporais temos os gestos ilustradores, que servem para enfatizar a atividade verbal. E<br />

segundo Perroni (1992), temos um tipo de caso - denominado apoio no presente - que<br />

são exemplos de combinações livres em nível de discurso, onde não há compromisso<br />

com o enredo fixo, nem com a verdade, em que a criança insere experiências pessoais<br />

98 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 95-104, maio-ago. 2008


vividas na situação imediata de interação lingüística - “o gigante deu um soco bem na<br />

barriga dele...”.<br />

Na última linha “ele caiu e ele morreu para sempre ... aí viveu de novo”, temos<br />

a coda (Labov), a finalização da história.<br />

Exemplo 2<br />

O golfinho<br />

1. F: um golfinho ... o golfinho ... ele achô/ um ... e aí o golfinho ele tirô/ ...<br />

depois caiu na pescaria aí ele falô/ ... que qué/ isso? e aí apareceu um boné ... aí<br />

eles mergulharam ... o boné tava numa cabeça deles e ele foi nadando nadando<br />

e mergulhô/ porque lá tinha um CARANGUEJÃO e apareceu um TUBARÃO e<br />

comeu tudo ... ele ficô/ pequenininho ...<br />

2. P: quem o caranguejo?<br />

3. F: a baleia comeu TUDO ... aí a baleia morreu aí ... acabô/<br />

(Fernando 5; 0)<br />

No turno 1, identificamos a ação avaliativa (Labov), o narrador descreve as<br />

ações dos personagens em vez de relatar o que disseram. Notamos também freqüentes<br />

pausas, indicando mudanças das ações do personagem (achô/; tirô/; caiu; falô/). A<br />

criança aqui parece não saber ainda como conduzir sua história, por isso apresenta essa<br />

miscelânea de ações. De acordo com François (1996), na segunda linha ocorre o<br />

inesperado ou mistura de mundos, pois F inicia sua narrativa com “um golfinho” e<br />

depois acrescenta um objeto pertencente aos humanos -“um boné”.<br />

Segundo Mac-kay (2000), a presença do boné mostra a inferência que a criança<br />

faz da realidade – sua vida cotidiana tornando autêntico seu posicionamento como<br />

autora. Ainda nesta linha, verificamos o resultado (Labov) – causa (apareceu um boné) /<br />

conseqüência (aí eles mergulharam). Na quanrta linha, o “porque”, estabelece relação<br />

do domínio do conteúdo, em que é apresentada a causa (tinha um caranguejão) para o<br />

fato (mergulhar). Como vemos, a explicação é um elo de causalidade e o “porque”<br />

funciona como um conectivo lógico, ligando duas proposições interdependentes.<br />

Em 3, fica claro que F realmente não queria continuar a atividade proposta,<br />

encerrando sua história – “a baleia comeu TUDO ... aí a baleia morreu aí ... acabô/ .<br />

Também aqui, de acordo com Labov, temos o resultado – causa (a baleia comeu tudo) /<br />

conseqüência (aí a baleia morreu); e nesta relação, identificarmos, implicitamente, a<br />

explicação da criança, quando justifica a morte da baleia; seguido da coda, finalização<br />

e moral da história, por meio dos verbos morreu e acabou.<br />

Situação (b) - produção de narrativas a partir de histórias lidas pela pesquisadora<br />

Nos próximos exemplos - 3 e 4 -, as crianças ouviram duas narrativas (Fita<br />

Verde no cabelo – Rosa; e Menina bonita do laço de fita – Machado). E posteriormente<br />

contaram suas histórias, na interação criança-criança e criança-adulto.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 95-104, maio-ago. 2008<br />

99


Exemplo 3<br />

Lala e Paulinho<br />

1. J: era uma vez ... uma menininha chamada Lala ... ela tinha um amigo<br />

chamado Paulinho e um dia eles dois se encontraram ... e foram pela floresta<br />

sozinho ... mas só que um dia eles tava cum medo de se perdê/ eles foram pro<br />

caminho ERRADO ... porque eles foram do lado de lá ... aí eles se perderam ...<br />

num sabia onde era .. mais a casa ...<br />

2. J: aí eles tinha medo de ficá/ sozinho pela floresta ... eles pensaram que tinha<br />

lobo mas NÃO TINHA ... tinha só animais que eram bonzinho ... e:::... apareceu<br />

um monte de animal que quando acendeu a luz apareceu um monte de animal<br />

(bum)<br />

3. P: animal o que?<br />

4. J: BOOM ... eles fazia careta pros dois ... aí:::... os dois achava medo aí eles<br />

tinha MEDO aí eles queria ir pra casa ( ) não sabia onde era ... mas a fada<br />

APARECEU e:::... a fada apareceu ... e deixô/ os animais lá embaixo e ficaram<br />

felizes para sempre<br />

(Jeniffer 5; 0)<br />

No turno 1, encontramos a característica da estrutura narrativa - “era uma vez<br />

.....; seguido das indicações (Labov) – apresentação dos personagens (Lala e Paulinho);<br />

do lugar (floresta) e do tempo (um dia). Pelo fato da criança ter ouvido a narrativa de<br />

Fita Verde no Cabelo (Rosa, 1992), que é uma estilização da história de Perrault -<br />

Chapeuzinho Vermelho - a narradora tenta reproduzir os eventos daquela narrativa, e ao<br />

fazer isso temos o desenvolvimento de histórias (Perroni, 1992), que são narrativas<br />

típicas de nossa cultura com enredo fixo. As histórias assumem um papel significativo<br />

na aquisição da estrutura do discurso narrativo.<br />

Na continuidade narrativa, “... e foram pela floresta sozinho ... mas só que um<br />

dia eles tava cum medo de se perdê/ eles foram pro caminho ERRADO ... porque eles<br />

foram do lado de lá ... aí eles se perderam”, ainda de acordo Labov (1972),<br />

identificamos a avaliação encaixada, em que o narrador apresenta seu ponto de vista,<br />

sem interromper o ato narrativo quando relata os sentimentos dos personagens – estar<br />

com medo; também, notamos, a ação avaliativa (Labov) – descrição das ações dos<br />

personagens.<br />

Sobre o segmento citado, a criança quando utiliza o “porque”, introduz uma<br />

evidência (uma prova) que justifica sua conclusão: o fato dos personagens terem ido<br />

pelo lado de lá, mais longe, a leva a crer que era o lado errado. Como percebemos,<br />

através das escolhas dos personagens que quiseram e puderam escolher o caminho que<br />

lhe convinham. Aqui, a criança faz inferência a uma das histórias lidas - Fita Verde no<br />

Cabelo, cujo personagem também preferiu ir pelo caminho mais longo. Paralelamente,<br />

observamos o resultado (Labov) – causa (ir pelo caminho errado) / conseqüência (se<br />

perderam).<br />

No turno 2, verificamos no início da unidade comunicativa o marcador<br />

conversacional – “aí” que, segundo Marcuschi (2003), serve para orientar o ouvinte,<br />

além do conectivo - “e”, indicando uma progressão semântica no discurso. Esses<br />

recursos, de acordo com Labov (1972), contribuem para a ação complicadora – ou seja,<br />

para o desenvolvimento da história.<br />

100 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 95-104, maio-ago. 2008


Em 4, ocorre a ampliação do discurso: “BOOM ... eles fazia careta pros dois ...<br />

aí:::... os dois achava medo aí eles tinha MEDO aí eles queria ir pra casa ( ) não sabia<br />

onde era ... mas a fada APARECEU e:::... a fada apareceu ... e deixô/ o os animais lá<br />

embaixo e ficaram felizes para sempre”. Neste último fragmento (grifo nosso), notamos<br />

os sentimentos dos personagens – ficar feliz, juntamente com a coda (Labov), que tem a<br />

função de finalizar a narrativa. Também observamos a ocorrência da fórmula típica de<br />

encerramento dos contos de fada (felizes para sempre), em que o bem sempre vence o<br />

mal.<br />

Exemplo 4<br />

A menina e o coelho<br />

1. J: era uma vez ... uma menina era ADULTA ... que o nome dela era ... era:::...<br />

calma aí o coelhinho apareceu e todos adulto apareceu ... todos animais ... eles<br />

tava todo no cio ... mais a vovó ( ) animais ficava preso ... (...) que o moço do<br />

circo vendeu eles ... o moço do circo era um moço também era ... um moço ... o<br />

nome dele era Danilo<br />

2. B: só porque tem o Danilo do pré né Jeniffer?<br />

3. J: mas só que o ... era o Danilo o Danilo ...<br />

4. P: é seu namorado?<br />

5. J: Não<br />

6. P: seu amigo?<br />

7. ((a criança balança a cabeça dizendo que sim))<br />

8. J: mas só que ele era do circo do ... do .. que mais do TREM mais todos tava<br />

no trem e ... uma corrente ia atrás porque tinha um MONTE DE TREM ... mas<br />

só ... todos passearam no trem ... o Danilo era MUITO BRAVO ... mas só que<br />

explodiu o trem e todo mundo morreu menos o dono do trem<br />

9. P: e quem era o dono o Danilo?<br />

10. J: é ... e foram lá pro céu ... e o amigo do Danilo eles era má também ...<br />

11. P: e foram pro céu?<br />

12. J: e eles foram lá pro outro trem e o outro trem também EXPLODIU e foram<br />

pro céu ... e só os animais ficaram triste ... acabô/<br />

(Jeniffer 5; 0 e Beatriz 5; 0)<br />

No turno 1, assim como no exemplo anterior (3), temos o estilo narrativo “era<br />

uma vez”, seguido da avaliação externa (Labov) “calma aí”, em que o narrador<br />

interrompe a ação de narrar para se posicionar diante do fato narrado. Ao fazer a pausa<br />

para organizar seu pensamento, o narrador insere em sua história novos personagens<br />

(coelho, adulto, animais, vovó e Danilo), que segundo Labov (1972) são as indicações.<br />

De acordo com Perroni (1992), temos o relato - narrativas que contam experiências<br />

pessoais vividas em momentos anteriores ao da enunciação que podem ser considerados<br />

não ordinários ou não habituais. Pois, no dia anterior as crianças tinham ido ao circo, e o<br />

compromisso do relato não é com o enredo fixo, mas com a verdade.<br />

No turno 2, “só porque tem o Danilo do pré né Jeniffer?”, verificamos a<br />

avaliação externa (Labov), em que a outra criança na interação se posiciona em relação<br />

ao que a colega está contando. Aqui a criança explica o desenvolvimento da história da<br />

colega/narradora, por meio do explicativo “porque”, que segundo Leclaire- Halté<br />

(1990) trata-se de uma estratégia inerente ao discurso narrativo da criança.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 95-104, maio-ago. 2008<br />

101


No turno 3, percebemos que J tem dificuldade de prosseguir com sua narrativa,<br />

assim, no turno 4, P faz uma pergunta para estimular a criança na narração, mas ela<br />

oferece resposta mínima – “não”, temos, então, uma situação de tutela insistente<br />

(François,1996).<br />

Entre os turnos 6 P: seu amigo?; e 7 ((a criança balança a cabeça dizendo que<br />

sim)), observamos uma situação tutela paralela estrita em que o adulto faz o que a<br />

criança deveria fazer, pois ele fornece a reposta. Mesmo no turno 7, ocorrem os gestos<br />

ilustradores, que segundo Rector e Trinta (1993) servem para acompanhar e enfatizar a<br />

comunicação verbal.<br />

No turno 8, verificamos a ação complicadora (Labov) – o desenvolvimento da<br />

história; o elemento avaliativo – explicativo “porque” funcionando como um conectivo<br />

lógico para ligar duas proposições interdependentes, além de indicar, segundo o autor, o<br />

resultado – causa ( um monte de trem) / conseqüência (uma corrente ia atrás). Em “o<br />

Danilo era MUITO BRAVO”, ocorre à avaliação externa (Labov), em que o narrador,<br />

por meio do intensificador (muito) e do adjetivo (bravo), interrompe a narração para<br />

expor seu ponto de vista sobre o fato narrado.<br />

Como esse dado foi coletado em março (2004), época em que aconteceu o<br />

atentado ao trem em Madri – Espanha e todos os passageiros morreram, percebemos a<br />

inferência da realidade cotidiana, na narrativa de J. De acordo com Mac-kay (2000):<br />

este deslocamento revela uma realidade próxima da criança, evidenciando sua posição<br />

de autora.<br />

No turno 12, quando J diz “acabô/”, verificamos a coda (Labov), indicando a<br />

finalização do processo narrativo.<br />

Considerando que a narrativa é um gênero de texto que possui uma unidade e<br />

significado delimitado por princípios de constituição bastante precisos, é possível<br />

especificar seu início, desenvolvimento e fim, através de características peculiares<br />

como: organização lingüística e componentes estruturais.<br />

Neste sentido, as histórias produzidas nesta situação (b): sem o apoio do<br />

desenho, mas a partir de histórias lidas pela pesquisadora, apresentam construção típica<br />

do estilo narrativo “era uma vez...” , e independência contextual, ao contrário das<br />

histórias produzidas na situação(a). Além disso, devido ao apoio contextual das histórias<br />

lidas, as crianças frequentemente, recorrem à coesão recorrencial parafrástica (Fávero,<br />

1999) reformulando parte da narrativa ouvida, e o que Perroni (1992) denomina de<br />

história.<br />

Diferentemente das ocorrências na situação (a), aqui, a manutenção do tópico<br />

discursivo, a continuidade das relações coesivas, por meio de conjunções (aditivas,<br />

continuativas, temporais, causais, adversativas), indicam uma progressão semântica no<br />

discurso em desenvolvimento (Fiorin e Saviolli, 2002).<br />

4. Considerações finais<br />

Com base nos dados analisados, as narrativas produzidas a partir do desenho<br />

feito pelo sujeito – narrativas na situação (a), apresentam características típicas da<br />

linguagem oral, com elementos próprios do estilo conversacional, enunciados<br />

fragmentados, freqüentes pausas, elipses, e, portanto, dependentes da representação<br />

pictográfica, na medida em que as crianças olhavam e apontavam para o desenho<br />

102 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 95-104, maio-ago. 2008


durante o desenvolvimento da história, ou seja, elas buscaram no desenho o apoio<br />

contextual necessário para veicular às informações.<br />

As narrativas produzidas a partir de histórias lidas pela pesquisadora – narrativas<br />

na situação (b), apresentam características da linguagem escrita, independência<br />

contextual e construções próprias do estilo narrativo: era uma vez... . Aqui, a coesão se<br />

dá através de recursos lexicais e estruturas sintáticas com a utilização de conectivos<br />

lógicos. Na ausência da representação pictográfica, as crianças tentaram fazer do texto<br />

da história uma reflexão mais precisa de suas intenções comunicativas.<br />

Embora as histórias elaboradas nas duas situações propostas, apresentem<br />

características distintas da linguagem oral e da escrita, notamos que ambas mantêm em<br />

comum a articulação do explicar e do narrar que, segundo Labov (1972), não se<br />

diferenciam na narrativa. Quanto ao elemento da avaliação, verificamos que em todas as<br />

situações apresentadas (com ou sem o apoio do desenho), as crianças se posicionam<br />

diante da narrativa, mostrando seus pontos de vista em relação ao fato narrado; ora<br />

suspendendo a ação de narrar, ora inserindo opiniões sem interromper o ato narrativo.<br />

Assim como ocorre a explicação nas narrativas de ficção, devido a um problema<br />

de ordem cognitiva a ser resolvido, de acordo com Halté (1990), é possível também<br />

notarmos a presença desse fenômeno nas narrativas produzidas pelas crianças, pois a<br />

explicação juntamente com a avaliação (Labov) parecem ser o cerne da produção de<br />

histórias e a razão principal para que se tornem significativas.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

BITAR, M. A. Produção oral de crianças a partir da leitura de imagens. São Paulo:<br />

Humanitas, 2002.<br />

FÁVERO, L. L.Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ática, 1999.<br />

FIORIN, J. L. e SAVIOLI, F. P. Para entender o texto: leitura e redação. 16º ed.<br />

São Paulo: Ática, 2002.<br />

FIORINDO, P. P. Em torno da narrativa/narração: a proposta revisitada do modelo<br />

laboviano de narrativa oral. [Dissertação de Mestrado]. São Paulo, FFLCH/USP,<br />

2005.<br />

FRANÇOIS, F. Práticas do oral: diálogo, jogo e variações das figuras do sentido.<br />

Trad. de Lélia Erbolato Melo. São Paulo: Pró-Fono,1996.<br />

HUDELOT, C.; PRÉNERON,C.; ORVIG, A. Explicações, distância e interlocução na<br />

criança de dois a quatro anos. In: FERNANDES. Aquisição da linguagem: conceito,<br />

definição e explicação na criança. Araraquara: Cultura Acadêmica, 2003.<br />

LABOV, W. ([1972] 1978). La transformation du vécu à travers la syntaxe narrative. Le<br />

parler ordinaire, Paris: Les Éditions de Minuit, 289-335.<br />

LECLAIRE –HALTÉ, A. Explication et récit dans les textes de fiction. Pratiques, Paris,<br />

67:15- 34, 1990.<br />

MACHADO, A. M. Menina bonita do laço de fita. São Paulo: Ática, 1997.<br />

MAC-KAY, A. P. Atividade verbal: processo de diferença e integração entre fala<br />

escrita. São Paulo: Plexus, 2000.<br />

MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. 5º ed. São Paulo: Ática, 2003.<br />

MELO, L. E. Le rôle de l’évaluation dans le récit. CAlap, Paris, n.20, p.25-44, 2000.<br />

PERRONI, M. C. desenvolvimento do discurso narrativo. São Paulo: Martins Fontes,<br />

1992.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 95-104, maio-ago. 2008<br />

103


PRETI, D. & URBANO, H. A linguagem falda culta na cidade de São Paulo –<br />

Projeto NURC/SP. São Paulo: Queiroz, 1990.<br />

RECTOR, M. e TRINTA, A. R. Comunicação do corpo. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1993.<br />

ROSA, J. G. Fita verde no cabelo: nova velha estória. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova<br />

Fronteira, 1992.<br />

104 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 95-104, maio-ago. 2008


Crenças e atitudes lingüísticas: o que dizem os falantes das<br />

capitais brasileiras<br />

Vanderci de Andrade Aguilera<br />

Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas – Universidade Estadual de Londrina<br />

vanderci.aguilera@terra.com.br<br />

Abstract. This article discusses the beliefs and the linguistic attitudes both<br />

expressed and identified in speech by urban informants from twenty-five<br />

Brazilian capital cities. The analysis is based on the components of<br />

sociolinguistic attitudes, according to Lambert (1967) and Gómez Molina<br />

(1987). The corpus consists of answers given in the Metalinguistic Questions<br />

section of the questionnaires used in the Linguistic Atlas of Brasil – ALiB<br />

(Comitê Nacional: 2001) project.<br />

Keywords. Portuguese language; linguistic attitudes; urban informants.<br />

Resumo. Este artigo discute as crenças e as atitudes lingüísticas assumidas e<br />

realizadas na fala de informantes urbanos de vinte e cinco capitais<br />

brasileiras. A análise faz-se com base nos componentes que integram as<br />

atitudes sociolingüísticas, segundo Lambert (1967) e Gómez Molina (1987). O<br />

corpus constitui-se das respostas dadas na seção de Questões<br />

Metalingüísticas dos Questionários do Atlas Lingüístico do Brasil – ALiB<br />

(Comitê Nacional: 2001).<br />

Palavras-chave. Língua portuguesa, atitudes lingüísticas, falantes urbanos.<br />

1. Introdução<br />

Os <strong>estudos</strong> socio<strong>lingüísticos</strong> no Brasil vêm explorando uma ampla gama de temas<br />

nos últimos vinte e cinco anos, concentrando-se sobretudo nos níveis fonéticofonológico<br />

e morfossintático. Um campo pouco explorado, entretanto, é o das crenças e<br />

atitudes lingüísticas, embora a sociolingüística insista na importância do estudo desse<br />

campo, apontando que a atitude lingüística: atua de forma muito ativa nas mudanças de<br />

código ou alternância de línguas; é um fator decisivo, junto à consciência lingüística,<br />

na explicação da competência dos falantes; permite ao pesquisador aproximar-se do<br />

conhecimento das reações subjetivas diante da língua e/ou línguas que usam os<br />

falantes; e influi na aquisição de segundas línguas (GÓMEZ MOLINA, 1987, p. 25).<br />

Relembramos, inicialmente, que já na década de 1960, mais precisamente em 1967,<br />

Lambert chamava a atenção para a manifestação de preferências e convenções sociais<br />

acerca do status e prestígio de seus usuários que ele chamou de atitude, observando que<br />

os grupos sociais de mais prestígio social, ou os mais altos na escala sócio-econômica,<br />

ditam a pauta das atitudes lingüísticas das comunidades de fala.<br />

A atitude lingüística assumida pelo falante implica a noção de identidade, que se<br />

pode definir como a característica ou o conjunto de características que permitem<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 105-112, maio-ago. 2008<br />

105


diferenciar um grupo de outro, uma etnia de outra, um povo de outro. A identidade pode<br />

ser definida sob duas formas: (i) objetiva, ou seja, caracterizando-a pelas instituições<br />

(educacionais, artísticas, políticas, culturais, sociais, religiosas) que a compõem e pelas<br />

pautas culturais (usos, costumes, tradições) que lhe dão personalidade; ou (ii) subjetiva,<br />

antepondo o sentimento de comunidade partilhado por todos os seus membros e a idéia<br />

de diferenciação com respeito aos demais (Moreno Fernández: 1998, p. 180). Na<br />

maioria das vezes, ao caracterizar um grupo ao qual não pertence, a tendência é o<br />

usuário fazê-lo de forma subjetiva, procurando preservar o sentimento de comunidade<br />

partilhado e classificando o outro como diferente.<br />

Um traço definidor da identidade do grupo (etnia, povo) é a variedade lingüística<br />

assumida e, desse modo, qualquer atitude em relação aos grupos com determinada<br />

identidade pode, na realidade, ser uma reação às variedades usadas por esse grupo ou<br />

aos indivíduos usuários dessa variedade, uma vez que normas e marcas culturais dos<br />

falantes se transmitem ou se sedimentam por meio da língua, atualizada na fala de cada<br />

indivíduo.<br />

2. Componentes da atitude lingüística<br />

Sobre os elementos que compõem a atitude, Lambert, citado por Moreno Fernandez<br />

(1998: 182), registra que a atitude se constitui de três componentes colocados no mesmo<br />

nível: o saber ou crença (componente cognoscitivo); a valoração (componente afetivo);<br />

e a conduta (componente conativo), o que significa dizer que a atitude lingüística de um<br />

indivíduo é o resultado da soma de suas crenças, conhecimentos, afetos e tendências a<br />

comportar-se de uma forma determinada diante de uma língua ou de uma situação<br />

sociolingüística.<br />

Gómez Molina (1998: 31), no estudo sobre as atitudes lingüísticas na região<br />

metropolitana de Valença - Espanha, discute o papel que cada um desses componentes<br />

representa na manifestação da atitude lingüística do falante diante da fala do outro. Para<br />

o autor, o componente cognoscitivo teria o maior peso sobre os demais por conformar,<br />

em larga escala, a consciência sociolingüística, uma vez que nele intervêm os<br />

conhecimentos e pré-julgamentos dos falantes: consciência lingüística, crenças,<br />

estereótipos, expectativas sociais (prestígio, ascensão), grau de bilingüismo,<br />

características da personalidade, etc.. O componente afetivo, por sua vez, está<br />

alicerçado em juízos de valor (estima-ódio) acerca das características da fala:<br />

variedade dialetal, acento; da associação com traços de identidade; etnicidade,<br />

lealdade, valor simbólico, orgulho; e do sentimento de solidariedade com o grupo a que<br />

pertence. O componente conativo, por sua vez, reflete a intenção de conduta, o plano de<br />

ação sob determinados contextos e circunstâncias. Mostra a tendência a atuar e a reagir<br />

com seus interlocutores em diferentes âmbitos ou domínios: rua, casa, escola, loja,<br />

trabalho.<br />

3. O falante das capitais brasileiras diante da própria variedade lingüística e da<br />

variedade do outro<br />

Analisamos as atitudes sociolingüísticas de 200 falantes de vinte e cinco capitais<br />

brasileiras a partir das respostas dadas às Questões Metalingüísticas, que integram os<br />

Questionários do Projeto Atlas Lingüístico do Brasil – ALiB (Comitê Nacional: 2001).<br />

106 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 105-112, maio-ago. 2008


Os grupos de informantes são formados por dois níveis de escolaridade: 100 deles<br />

têm apenas o nível fundamental de escolaridade, sendo 25 homens jovens e 25 mulheres<br />

jovens (entre 18 e 30 anos); os outros 50 estão na faixa dos 50 aos 65 anos, sendo 25<br />

homens e 25 mulheres. A mesma distribuição se dá em relação aos 100 informantes de<br />

nível superior, isto é, 50 jovens e 50 na segunda faixa etária, distribuídos<br />

equitativamente por ambos os sexos.<br />

A primeira questão indaga sobre a língua que o informante acredita falar e das<br />

respostas dadas pelos 200 informantes, ou seja, oito informantes em cada uma das 25<br />

capitais, a grande maioria afirma falar o português ou a língua portuguesa. No entanto,<br />

8% deles inicialmente assumiram como a denominação mais apropriada para a língua<br />

que falam ou o brasileiro/a língua brasileira; ou o cuiabanês; ou a língua nativa.<br />

Verificamos, da mesma forma, que quase todos, ao serem questionados pela segunda<br />

vez, prontamente retificaram a resposta anterior, retomando a denominação oficial –<br />

português/língua portuguesa.<br />

Ao analisar, nesses depoimentos sobre crença e atitudes lingüísticas, os<br />

componentes acima mencionados, verificamos alguns casos que merecem destaque. O<br />

primeiro deles diz respeito à prevalência do componente cognoscitivo. Isto fica muito<br />

claro na declaração veemente do informante 7 (homem, de nível superior, na faixa etária<br />

dos 50 aos 65 anos) do ponto 006 (Manaus), ao ser indagado sobre a língua que fala:<br />

1. A língua portuguesa, aliás eu acho errado isso, devia ser língua brasileira, né.<br />

Aliás já tem movimento aí pra ... é língua brasileira.<br />

Por ser um defensor do purismo lingüístico de sua comunidade de fala – ao<br />

assegurar que a nossa língua é a brasileira –, invoca seus conhecimentos sobre as<br />

episódicas manifestações nacionalistas, alertando que já existe um movimento para a<br />

mudança do nome oficial da língua falada no Brasil.<br />

O mesmo informante, durante toda a ent<strong>revista</strong>, manifestou a segurança lingüística<br />

de que trata Moreno Fernández (1998, p. 182), mantendo todas as características<br />

fonéticas tipicamente nortistas, as quais representam para o informante a fala normal,<br />

correta, sem sotaque. Sobre as perguntas 2 e 3, das Questões Metalingüísticas, indagado<br />

se na localidade havia grupos que falavam diferente, e se poderia identificá-los, é<br />

taxativo:<br />

2. Não, não, não, ih, não, eu abomino esse negócio de sotaque... o mineiro adora<br />

isso, o paulista fala com aquele... não. Aqui o amazonense... todos falamos iguais, não<br />

tem esse negócio. Quando a senhora vê alguém hãhãhãhãhã, o cara não é daqui ou<br />

passou uma temporada fora e absorveu aquilo. Não, nós falamos aqui télévisão e não<br />

têlêvisão, Roráima e não Rorãima, nós falamos... as nossas palavras são bem<br />

explicadas, letra por letra.<br />

O componente cognoscitivo, presente na atitude lingüística manifestada no<br />

depoimento 1, cede lugar ao afetivo, reforçando o mito do não sotaque na fala dos<br />

naturais da localidade, que falam igual, portanto sem o abominável sotaque que<br />

caracteriza os brasileiros mineiros e paulistas. Além disso, acredita ser o Amazonas o<br />

único estado em que todos falam bem explicado. A ênfase dada pela reiteração da<br />

negativa mostra o alto grau de rejeição às outras modalidades de fala e,<br />

conseqüentemente, aos outros grupos de falantes. Essa postura de rejeição ao que é<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 105-112, maio-ago. 2008<br />

107


diferente ou regional leva, com certeza, à inclusão do componente conativo. Moreno<br />

Fernandez (1998, p. 189), ao tratar do comportamento do falante em relação à própria<br />

variedade, admite a ocorrência de duas atitudes: a de valorização e a de rejeição. A<br />

valorização remete à noção de prestígio lingüístico, ou seja, o processo de concessão de<br />

estima e respeito para indivíduos ou grupos que reúnem certas características e que<br />

leva à imitação das condutas e crenças desses indivíduos ou grupos. No caso em<br />

análise, o informante nega qualquer valor positivo à fala do outro, atribuindo prestígio<br />

apenas à própria fala e à de seus conterrâneos.<br />

Sem a veemência do depoimento anterior, temos a resposta do informante 108/7,<br />

natural de Cuiabá, informante masculino, de nível superior de escolaridade e da segunda<br />

faixa etária, alicerçada no componente cognoscitivo, associado ao afetivo :<br />

3. No centro de Cuiabá mesmo, existe (sic) alguns que, com estilo intelectual, se<br />

julgam mais sabidos, né. (...) Quando você analisa a questão do cuiabano saindo para<br />

ir pro Rio de Janeiro pra estudar, (...) você via que a maioria deles se deixavam (sic)<br />

adulterar pela fala, vinham de lá, como eu digo no meu livrinho lá, 'com ti ti ti na boca'<br />

(refere-se ao s africado em sílaba travada), um horror, do carioca, entendeu? E perdia<br />

aquela identidade filológica, ou lingüística, entendeu? Perdia lá... E ainda encontramos<br />

esse tipo, que hoje em dia tem até vergonha de falar como cuiabano. (108/7)<br />

O informante do exemplo 3 chama a atenção para os efeitos negativos do contato<br />

lingüístico do cuiabano com outros dialetos, como o carioca. O cuiabano pseudointelectual<br />

correria o risco de se deixar contaminar ou adulterar pela fala do grande<br />

centro, modelo de prestígio lingüístico para o viajante, mas um horror, um<br />

desencadeador da perda da identidade filológica ou lingüística, para o historiador e<br />

jornalista cuiabano. O contato com outros falantes, segundo o informante, pode levar à<br />

insegurança lingüística decorrente da alternância ou mudança de código, mas, pior<br />

ainda, à deslealdade lingüística expressa na vergonha de falar como cuiabano.<br />

Essa mesma perda de identidade é manifestada pelo informante jovem, de baixa<br />

escolaridade, descendente de índios wapichana de Roraima:<br />

4. Não. Esse “wapichana”.... esse negócio aí não é pra mim, não (003/1).<br />

A questão da ‘morte’ de línguas nativas no Brasil é assunto de centenas de teses,<br />

cada qual assumindo posturas teóricas e ideológicas distintas que não cabe aqui discutir.<br />

O exemplo acima foi tomado para ilustrar um caso de deslealdade lingüística, em que a<br />

língua dos antepassados, grupo minoritário frente à língua portuguesa, é sentida não<br />

como um marcador de identidade do falante, mas um negócio, algo confuso com o qual<br />

ele não tem, nem pretende ter, qualquer afinidade.<br />

Outro depoimento significativo diz respeito ao contato lingüístico de falantes<br />

nativos devido à chegada de agricultores do sul do Brasil às terras do Mato Grosso e à<br />

reação negativa dos autóctones em relação ao diferente:<br />

5. (...) Já mais pra cima, o nortão, se você pegar, por exemplo, Sinop, Vera Cruz,<br />

Colider, então já são barriga verde, é pessoal do Paraná, já é gaúcho já... lá tem o Rio<br />

Grande do Sul, você imagina.(...) Eu na campanha política fui lá. Todos loirinhos de<br />

olhos azuis, cabelo de milho, né, um linguajar totalmente diferente, um costume<br />

totalmente diferente, usando a cuia do gaúcho, o chimarrão, né?(...) tudo é ô tchê, né,<br />

108 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 105-112, maio-ago. 2008


tchê, dançando o vanerão, te cuida, guaíba!, aquele linguajar todo cantarolado,<br />

totalmente diferente do nosso. (108/7)<br />

O depoimento 5 do informante masculino, de alta escolaridade e na faixa etária de<br />

50 a 65 anos, natural de Cuiabá, refere-se aos efeitos do encontro de duas culturas<br />

diametralmente opostas: a matogrossense que vê chegar ao Estado numeroso<br />

contingente de agricultores sulistas formado por gaúchos, catarinenses (barriga-verde) e<br />

paranaenses. Até o início da década de 1950, a população do Mato Grosso era<br />

constituída basicamente de indígenas não miscigenados e outros brasileiros setecentistas<br />

e oitocentistas, descendentes de portugueses, indígenas e africanos. Em menos de meio<br />

século, porém, o estado vê mudar substancialmente o perfil do estado, desde a<br />

composição étnica da população – a chegada e estabelecimento dos loirinhos de olhos<br />

azuis, cabelo de milho – ao contrário da gente autóctone de pele morena e cabelos<br />

negros; passando pela introdução de culturas e de hábitos diferentes, usando a cuia do<br />

gaúcho, o chimarrão, dançando o vanerão; atingindo a linguagem com a presença de<br />

um linguajar todo cantarolado, marcado pelo ô tchê! né, tchê! e pelas frases<br />

interjectivas, como te cuida, guaíba!<br />

A rejeição, o choque diante daquilo que destoa da paisagem anterior, começa pelo<br />

aspecto físico, passa para os elementos da cultura e se concentra na linguagem.<br />

O informante 7, do ponto 21 (Rio Branco), da segunda faixa etária e de nível<br />

superior, por sua vez, partilha as mesmas atitudes dos informantes anteriores, ao analisar<br />

a presença do outro, de pessoas diferentes no espaço que habita, e que lhe parecia, até<br />

então, relativamente homogêneo:<br />

6. Ah todos, todos (falam diferente)... sobe esse interior aí, tem pessoal do Sul,<br />

Sudeste, Centro-Oeste (...) uma mistura, um mosaico assim. É nego andando de<br />

bombacha e com bota, botina no sol quente, chapéu, uma maluquice... (021/7).<br />

4. Rumo a conclusões<br />

Analisados os depoimentos de 200 informantes, moradores de 25 capitais<br />

brasileiras, relativos às Questões Metalingüísticas constantes dos Questionários do Atlas<br />

Lingüístico do Brasil e, particularmente, que dizem respeito à língua que cada um fala; e<br />

sobre a existência ou não de grupos que falam diferente na localidade, verificamos que a<br />

grande maioria (92%) acredita falar o português ou língua portuguesa. Outras<br />

manifestações minoritárias (o falar brasileiro, o cuiabano, o nativo) eram corrigidas na<br />

reformulação da pergunta em favor da crença majoritária.<br />

As questões 2 e 3 – Você sabe se aqui nesta cidade há pessoas que falam diferente e<br />

se poderia dar exemplo desses prováveis falares diferentes – ensejaram as mais diversas<br />

manifestações que foram analisadas à luz de variáveis extralingüísticas, como faixa<br />

etária, nível de escolaridade, sexo e região de origem.<br />

Sobre a Questão 1, verificamos que a faixa etária é definidora da incerteza e da<br />

vacilação no momento de o informante expor sua crença sobre a língua que fala: os mais<br />

idosos demonstraram essa oscilação com muito mais ênfase que os da faixa I. No<br />

entanto, pode-se concluir que a faixa etária não atua sozinha, ela está associada ao nível<br />

de escolarização. O pouco tempo de permanência na escola, ou o fato de ter se<br />

distanciado dela por muitos anos, pode ter colaborado para essa vacilação na hora de<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 105-112, maio-ago. 2008<br />

109


denominar a língua que fala. As mulheres, por sua vez, demonstraram menos oscilação<br />

que os homens, independentemente do nível de escolaridade. Relativamente à origem do<br />

informante, os naturais das regiões Norte e Nordeste demonstraram uma tendência<br />

maior à incerteza sobre a crença de falar o português. Essa tendência pode, também,<br />

estar associada à variável nível de escolaridade.<br />

Quanto às respostas dadas às questões 2 e 3, conforme expusemos de início, o AliB,<br />

ao, pela primeira vez na história da geolingüística do Brasil, no instrumento de recolha<br />

de dados, Questões Metalingüísticas, que levam a respostas sobre crenças e atitudes<br />

lingüísticas, dá um passo à frente nessa área do conhecimento e abre perspectivas de<br />

aprofundamento de <strong>estudos</strong> a partir da base que ora oferece aos interessados no assunto.<br />

Por outro lado, esperamos que a inserção de questões dessa natureza possa motivar<br />

futuros autores de projetos geo-socio<strong>lingüísticos</strong> a contemplar, em suas investigações,<br />

um tema cujos resultados podem indicar a direção da mudança lingüística que se<br />

processa em dada comunidade, bem como esclarecer em que medida os fatos<br />

<strong>lingüísticos</strong> valorizados ou estigmatizados podem interferir nessa mudança.<br />

Referências<br />

ALMEIDA, Manuel. Sociolingüística. La Laguna, Santa Cruz de Tenerife: Universidad<br />

de Laguna, 1999.<br />

ALVAR, M. Actitud del hablante y Sociolingüística, em M. Alvar: hombre, etnia y<br />

estado. Madrid, Gredos, 1986.<br />

_____. Español de Santo Domingo y Español de España: análisis de unas actitudes<br />

lingüísticas, Lingüística Española Actual. V 225-239, 1983.<br />

_____. Español e inglés. Actitudes lingüísticas en Puerto Rico, Revista de Filología<br />

Española, LXII, 1-38, 1982.<br />

_____. Español, castellano, lenguas indígenas (actitudes lingüísticas en Guatemala<br />

occidental), Logos semantikos: Studia Linguistica in honorem Eugenio Coseriu.<br />

Española, vol. 5, Madrid, Gredos, 1981, págs. 393-406.<br />

_____; QUILIS, A. Reacciones de unos hablantes cubanos ante diversas variedades del<br />

Español. Lingüística Española Actual. VI, 229-265, 1984.<br />

AMARAL, Amadeu [1920] O dialeto caipira. 3 ed. São Paulo: HUCITEC; Secretaria<br />

da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976.<br />

BLANCO CANALES, A. Estudio sociolinguístico de Alcalá de Henares. Alcalá de<br />

Henares – Madrid: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Alcalá, 2004.<br />

BLAS, J. L. Valenciano y castellano. Actitudes lingüísticas en la sociedad valenciana,<br />

Hispania, 77, 1, 143-156, 1994.<br />

COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB. Atlas Lingüístico do Brasil: questionários<br />

2001. Londrina: Ed. UEL, 2001.<br />

FASOLD, R. La sociolingüística de la sociedad. 2 ed. Madrid: Visor, 1996.<br />

GILES, H. Linguistic differentiation in ethnic groups. Differentiation between social<br />

groups. London: H. Tajfel, 1978.<br />

110 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 105-112, maio-ago. 2008


GÓMEZ MOLINA, J. R. Actitudes lingüísticas en una comunidad bilíngüe y<br />

multidialectal: area metropolitana de Valencia. Anejo n. o XXVIII dela Revista<br />

Cuadernos de Filología. Valencia, Universitat de Valencia, 1998.<br />

GRANDA, G. de. Actitudes sociolingüísticas en el Paraguay, Revista Paraguaya de<br />

Sociología, 18, 7-22, 1981.<br />

HOUAISS, Antônio. O português no Brasil. Rio de Janeiro: UNIBRADE, 1985.<br />

_____. Sugestões para uma política da língua. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e<br />

Cultura; Instituto Nacional do Livro. 1960<br />

LABOV, William. Princípios del cambio lingüístico. Versão española de Pedro Martín<br />

Butragueño. Madrid: Gredos, 2006.<br />

LAMBERT, W. E. A social psychology of bilingualism. Journal of Social Issues, 23,<br />

91-109, 1967.<br />

LÓPEZ MORALES, H. Sociolingüística. Madrid, Gredos, 1989.<br />

_____. Estratificación sociolectal frente a diglosia en el Caribe hispánico, Lingüística<br />

Española Actual V, 205-224, 1983.<br />

_____. Dialectología y Sociolingüística. Temas puertorriquenos. Madrid, Hispanova de<br />

Ediciones, 1979.<br />

MALANCA DE RODRÍGUEZ, Alícia et al. Actitud del hablante frente a su lengua.<br />

Resultado de una encuesta realizada en la ciudad de Cordoba (Argentina),<br />

Lingüística Española Actual III/1, 33-47, 1981.<br />

MARTIN BUTRAGUEÑO, Pedro. Actitudes y creencias lingüísticas en immigrantes<br />

dialectales. El caso de Madrid, Lingüística Española Actual XV/2, 265-294, 1993.<br />

MELO, Gladstone Chaves de. A língua do Brasil. Rio de Janeiro: Padrão, 1981.<br />

MORENO FERNÁNDEZ, Francisco. Los modelos de lengua. Del Castellano al<br />

panhispanismo. in Lingüística aplicada a la enseñanza de español como lengua<br />

extranjera: desarollos recientes. Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, 2006.<br />

_____. Princípios de sociolingüística y sociología del lenguaje. Barcelona, Ariel, 1998.<br />

_____. (ed.) Trabajos de sociolingüística hispánica. Alcalá de Henares: Universidad de<br />

Alcalá, 1997.<br />

_____. Metodología sociolingüística. Madrid, Gredos, 1990a.<br />

_____. (rec.) Estudios sobre variación lingüística. Alcalá de Henares: Universidad de<br />

Alcalá, 1990b.<br />

_____. Análisis sociolingüístico de actos de habla coloquiales (I) LEA, 51, p. 5-51,<br />

1989a.<br />

_____. Análisis sociolingüístico de actos de habla coloquiales (II) LEA, 52, p. 5-57,<br />

1989b.<br />

_____. Intercorrelaciones lingüísticas en una comunidad rural. Revista Española de<br />

Lingüísticas Aplicada, 6, pp. 87-107, 1986a.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 105-112, maio-ago. 2008<br />

111


_____. Sociolingüística de los tratamientos. Estudio sobre una comunidad rural.<br />

Anuario de Letras de Mexico, XXIV, p. 245-267, 1986b.<br />

NASCENTES, Antenor. [1922] O linguajar carioca. 2 ed. Rio de Janeiro: Organização<br />

Simões, 1953.<br />

POSTIGO, Ana M a y DIAZ, Luz del Carmen. Actitud lingüística de hablantes bilingües<br />

de origen boliviano residentes en Jujuy (Argentina), en Actas del X Cóngreso<br />

Internacional dela ALFAL. págs. 877-883. Mexico, UNAM, 1996.<br />

QUILIS, Antonio. Actitud de los ecuatoguineanos ante la lengua Española, Lingüística<br />

Española Actual V, 269-275, 1983.<br />

RAMIREZ, A. G. Bilingüismo y actitudes hacia variedades del Español en estudiantes<br />

de Texas y California, Lingüística Española Actual V, 249-268, 1983.<br />

RAYA, L. Conciencia lingüística y otras cuestiones en torno a la sociolingüística:<br />

esbozo de un estudo práctico, Revista Española de Lingüística, 12, 1, 107-118,<br />

1982.<br />

REBELLO DA SILVA, Larissa Kashina. A migração dos trabalhadores gaúchos para<br />

a Amazônia Legal (1970-1985) III - Os projetos de colonização da Amazônia e<br />

suas oposições.<br />

ROJO, G. Conductas y actitudes lingüísticas en Galicia, Revista Española de<br />

Lingüística, 11,2, 269-310, 1981.<br />

RUBAL RODRIGUES, Xosé. Actitudes lingüísticas do alumnado de bacharelato en<br />

Galícia. Actes du XVIIIe. Congrès International de Linguistique et de Philologie<br />

Romanes: Université de Trèves (Trier) 1986. vol. V Tübingen: Max Niemeyer<br />

Verlag. 1988.<br />

SILVA-CORVALÁN, Carmen. Sociolingüística: teoria y análisis. Madrid: Alambra,<br />

1989.<br />

112 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 105-112, maio-ago. 2008


A redução de proparoxítonas no português popular do Brasil:<br />

estudo com base em dados do Atlas lingüístico do Paraná<br />

(ALPR).<br />

Vandersí Sant’Ana Castro<br />

Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)<br />

vandersi@iel.unicamp.br<br />

Résumée: Il s’agit d’une étude à propos d’un phénomène du portugais<br />

populaire brésilien, à savoir, la réduction de mots proparoxytons. À partir des<br />

données de l’Atlas lingüístico do Paraná (Aguilera 1994), nous analysons<br />

l’occurrence du phénomène en ce qui concerne sa fréquence, sa distribution<br />

géographique et les procedés employés pour sa réalisation dans cet État<br />

brésilien.<br />

Mots-clés: portugais populaire brésilien; proparoxytons; atlas linguistique<br />

Resumo: Trata-se de um estudo sobre a redução de proparoxítonas no<br />

português popular do Brasil, com base em dados do Atlas lingüístico do<br />

Paraná (Aguilera 1994). Analisa-se a ocorrência do fenômeno, na área em<br />

questão, no que diz respeito a sua freqüência, seu alcance diatópico e os<br />

processos utilizados em sua realização.<br />

Palavras-chave: português popular brasileiro; proparoxítonas; atlas<br />

lingüístico.<br />

Introdução<br />

O processo de redução de proparoxítonas a paroxítonas foi historicamente atestado<br />

na passagem do latim para o português – cf. calidu > caldo; littera > letra; viride ><br />

verde; apicula > abelha (Coutinho 1974; Câmara Jr. 1976). Essa foi a evolução natural<br />

das formas proparoxítonas, observada já no latim vulgar – cf. oculus > oclus; altera ><br />

altra; socerus > socrus (Coutinho 1974). Tanto assim que, como enfatiza Câmara Jr.<br />

(1976: 35), “os vocábulos portugueses de acentuação na antepenúltima sílaba raramente<br />

provêm da evolução no latim vulgar”. A presença de proparoxítonas em nosso léxico,<br />

continua o autor, “decorre do empréstimo em massa de palavras do latim clássico, que<br />

se processou em português, especialmente a partir do séc. XVI; entre elas vieram<br />

palavras gregas que o latim clássico tinha adotado e adaptado à sua estrutura. Mais tarde<br />

houve empréstimos diretos do português ao grego clássico com a tendência a acentuálos<br />

com o princípio geral da prosódia latina. Também aumentaram o número de<br />

esdrúxulos os empréstimos ao italiano pela língua literária portuguesa, a partir do séc.<br />

XVI, pois em italiano não houve a supressão românica da penúltima sílaba átona dos<br />

esdrúxulos latinos”. As proparoxítonas que temos hoje vieram, portanto, sobretudo por<br />

via erudita, e são, em nossa língua, “um tanto marginais”, na expressão de Câmara Jr.<br />

(1976: 35).<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 113-121, maio-ago. 2008<br />

113


Ora, o processo de redução de proparoxítonas verificado na história do português (e<br />

que foi a deriva natural da língua) continua, todavia, ativo na nossa linguagem popular,<br />

agindo sobre as proparoxítonas que entraram tardiamente em nosso léxico, como<br />

atestam diversos autores que se dedicaram ao estudo de variedades regionais do<br />

português popular (Amaral 1920; Nascentes 1923; Marroquim 1934) ou fizeram<br />

apresentações gerais sobre nossa língua popular (Elia 1975; Câmara Jr. 1970, 1976;<br />

Castilho 1992). Um material propício para verificar a ocorrência do processo no<br />

português popular de hoje pode ser encontrado nos atlas <strong>lingüísticos</strong> regionais<br />

brasileiros (Rossi 1963; Ribeiro et alii 1977; Aragão & Menezes 1984; Ferreira et alii<br />

1987; Aguilera 1994; Cardoso 2005), que documentam a linguagem usada por falantes<br />

com pouca ou nenhuma escolaridade.<br />

Nesta apresentação, justamente, focalizarei algumas cartas do Atlas lingüístico do<br />

Paraná - ALPR (Aguilera 1994), que reúnem dados pertinentes ao tema. Com base na<br />

análise desse material, procurarei: a) mostrar a freqüência do uso e o alcance geográfico<br />

da redução de proparoxítonas a paroxítonas no Paraná; b) descrever os variados<br />

processos de redução utilizados pelos informantes paranaenses; c) verificar em que<br />

medida os processos atestados nos dados correspondem às descrições propostas na<br />

literatura pertinente ou permitem complementá-las.<br />

A redução de proparoxítonas a paroxítonas no Paraná<br />

O ALPR traz oito cartas relevantes para o estudo da redução da proparoxítona a<br />

paroxítona: árvore (carta 104), amígdalas (105), estômago (106), relâmpago (107),<br />

útero (108), eucalipto (125), eclipse (152) e glândula (155).<br />

Inicialmente cabe justificar a inclusão de eclipse e eucalipto nesse conjunto de<br />

dados. Aparentemente paroxítonas, como sugere sua grafia, essas palavras apresentam,<br />

em posição postônica, uma seqüência de consoantes (oclusiva + oclusiva - p t - , no caso<br />

de eucalipto; e oclusiva + fricativa – p s -, no caso de eclipse), seqüência que,<br />

efetivamente, costuma se desfazer pela ocorrência de um /i/ epentético, que se torna<br />

núcleo de uma nova sílaba. Dessa forma, essas palavras, na verdade, tornam-se<br />

proparoxítonas – eclípise, eucalípito. Câmara Jr. já chamou a atenção para esse fato.<br />

Sobre os vocábulos de origem erudita que apresentam, na escrita, seqüências<br />

consonantais como as que ocorrem nos dois casos em questão, o autor observa que “na<br />

realidade há entre uma e outra consoante a intercalação de uma vogal, que não parece<br />

poder ser fonemicamente desprezada, apesar da tendência a reduzir a sua emissão no<br />

registro formal da língua culta.” (Câmara Jr. 1970: 47). Justifica-se, assim, a<br />

consideração de eclipse e eucalipto ao lado das autênticas proparoxítonas examinadas<br />

(árvore, amígdalas, estômago, relâmpago, útero, glândula).<br />

Analisando essas oito cartas do ALPR, pude constatar a presença de realizações<br />

paroxítonas e proparoxítonas conforme os índices que figuram no quadro apresentado a<br />

seguir.<br />

114 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 113-121, maio-ago. 2008


CARTA<br />

Nº de LOCALIDADES<br />

total com paroxítonas com proparoxítonas<br />

104 - árvore 65 61 (93%) 28 (43%)<br />

108 - útero 57 54 (94%) 9 (15%)<br />

125 - eucalipto 64 59 (92%) 18 (28%)<br />

152 - eclipse 64 63 (98%) 5 (7%)<br />

105 - amígdalas 25 16 (64%) 12 (48%)<br />

107 - relâmpago 55 47 (85%) 26 (47%)<br />

155 - glândula 51 34 (66%) 32 (62%)<br />

106 - estômago 64 28 (43%) 58 (90%)<br />

QUADRO I - ALPR : redução de proparoxítonas<br />

O quadro acima indica o nº da carta, a palavra em questão, e, para cada palavra, o nº<br />

total de localidades em que a palavra foi registrada; o nº de localidades em que houve<br />

registro de realização paroxítona (e a porcentagem correspondente); o nº de localidades<br />

em que se atestou realização proparoxítona (e a porcentagem correspondente).<br />

Assim, árvore ocorreu em 65 localidades (ou seja, todas as localidades estudadas no<br />

atlas). Em 61 delas (93%) foram atestadas realizações paroxítonas (ex.: arve, arvre,<br />

auve). Em 28 das localidades (43%), foram registradas realizações proparoxítonas (ex.:<br />

árvore, áuvore). (Como em várias localidades ocorrem os dois tipos de realização –<br />

paroxítona e proparoxítona -, a soma das porcentagens (paroxítona + proparoxítona) é<br />

superior a 100%, bem como a soma das localidades correspondentes é superior ao<br />

número total das localidades em que a palavra ocorre. Essa observação se aplica aos<br />

índices de todas as palavras estudadas.)<br />

O que se constata, portanto, é que a redução de proparoxítonas a paroxítonas tem<br />

presença notória e importante nos dados, como mostram os índices do quadro<br />

apresentado: a realização paroxítona, de um modo geral, é sempre mais ampla (isto é, é<br />

registrada em um maior número de localidades) que a ocorrência da realização<br />

proparoxítona, mostrando-se nitidamente predominante no caso de árvore, útero,<br />

eucalipto e eclipse.<br />

Há três casos em que não se registra a presença predominante das paroxítonas e eles<br />

merecem uma explicação. Trata-se de amígdalas, glândula e estômago. Na realização<br />

de amígdalas e glândula, variantes proparoxítonas e paroxítonas ocorrem de forma mais<br />

equilibrada. Sobre essas palavras pode-se observar que: amígdalas é pouco registrada –<br />

só ocorre em 25 das 65 localidades do ALPR. Pode-se deduzir que se trata de uma<br />

palavra pouco familiar aos informantes. A pouca familiaridade da palavra poderia<br />

explicar também a ocorrência de variantes mais inesperadas, atestadas no desempenho<br />

dos informantes, como: [az»midula], [a»migola], [»miglas], [a»miwda], [a»mi)gwa].<br />

Na realização de glândula também se registra a ocorrência equilibrada de variantes<br />

paroxítonas e proparoxítonas. Embora de distribuição mais ampla que amígdalas,<br />

glândula também não é uma palavra de uso cotidiano, o que poderia explicar a<br />

presença mais significativa de variantes que preservam a realização proparoxítona,<br />

atestada em 62% das localidades.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 113-121, maio-ago. 2008<br />

115


Com relação a estômago, predominam as realizações proparoxítonas – é a única<br />

palavra do corpus em que isso ocorre. A explicação poderia ser uma atuação contrária<br />

do mesmo fator apresentado em referência a amígdalas e glândula. É justamente a<br />

familiaridade da palavra (observe-se que foi atestada em 64 das 65 localidades do<br />

ALPR) que contribuiria para sua fixação na forma proparoxítona.<br />

Um outro aspecto a ser considerado nos dados é o alcance geográfico ou diatópico<br />

das ocorrências paroxítonas. Os índices do quadro já comentado evidenciam que a<br />

redução da proparoxítona é atestada em grande extensão do Paraná, o que pode ser<br />

inferido pelo número de localidades em que o processo é registrado: em relação a<br />

eclipse, ocorrem realizações paroxítonas em 63 localidades (quase a totalidade das 65<br />

localidades estudadas no atlas); quanto a árvore, as realizações paroxítonas ocorrem em<br />

61 localidades; para eucalipto, o registro é feito em 59 localidades; e quanto a útero, as<br />

paroxítonas são atestadas em 54 localidades.<br />

Constata-se que as realizações paroxítonas são observadas em todo o território<br />

paranaense, como se pode verificar na carta apresentada em anexo (de Castro 2006), em<br />

que os dados das oito cartas analisadas são considerados em conjunto. Estão indicadas<br />

nessa carta todas as localidades em que houve registro de uma ou mais de uma<br />

realização paroxítona. Como se pode ver, a redução da proparoxítona foi atestada em<br />

todas as 65 localidades estudadas no ALPR.<br />

A carta também registra as realizações proparoxítonas atestadas entre os informantes<br />

paranaenses. Como se pode verificar, a distribuição das proparoxítonas também é ampla<br />

– só na localidade 40 (Guaraniaçu) não se registrou nenhuma realização proparoxítona<br />

para nenhuma das palavras do corpus. Em vista disso, pode-se concluir que o fator<br />

geográfico não parece ser definitivo na alternância, o que já era de se esperar, dado que<br />

a redução de proparoxítona tem sido reconhecido como um traço geral (e não regional)<br />

do português popular brasileiro.<br />

Considerando carta a carta os dados referentes às diferentes palavras estudadas,<br />

constatou-se que, de um modo geral, predominam as formas paroxítonas (só na<br />

realização de estômago a situação se inverte, e em amígdala e eclipse há equilíbrio na<br />

alternância paroxítona/proparoxítona), o que parece apontar a expansão do processo de<br />

redução da proparoxítona no Paraná, ou, no mínimo, o vigor com que o processo se<br />

apresenta. As diferenças observadas entre as cartas, no que se refere à ocorrência maior<br />

ou menor de um ou outro tipo de realização poderiam ser associadas ao item lexical em<br />

questão – assim, estômago favoreceria a manutenção da proparoxítona, como procurei<br />

explicar anteriormente.<br />

Outras variáveis poderiam ser relevantes na alternância paroxítona/proparoxítona,<br />

como o grau de escolaridade e o gênero do informante.<br />

O exame da primeira variável fica de certa forma prejudicado nos dados do ALPR<br />

por duas razões: a) não há grandes diferenças entre os informantes quanto ao grau de<br />

escolaridade, que varia entre analfabetismo / Mobral / primário incompleto / primário<br />

completo; b) não há uma distribuição equilibrada dos informantes entre os diferentes<br />

116 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 113-121, maio-ago. 2008


graus de escolaridade – 77 informantes (mais da metade, portanto) são analfabetos; 13<br />

cursaram o Mobral; 39 têm o primário incompleto; e 1 tem o primário completo.<br />

Mesmo com essas ressalvas, em caráter exploratório, procurei verificar, em<br />

referência a útero (carta 108), quais informantes teriam realizado as poucas ocorrências<br />

proparoxítonas, e quais teriam realizado as formas paroxítonas. Foram encontrados os<br />

seguintes índices:<br />

ESCOLARIDADE<br />

PAROXÍTONAS PROPAROXÍTONAS<br />

nº de informantes nº de informantes<br />

analfabetos 48 3<br />

Mobral 7 1<br />

primário incompleto 24 6<br />

primário completo _ 1<br />

QUADRO II – ALPR: redução de proparoxítonas e escolaridade (carta 108: útero)<br />

O que se pode observar nesse quadro é que tanto analfabetos como falantes com<br />

Mobral ou primário incompleto realizam útero como paroxítona ou como<br />

proparoxítona. É fato que, entre os que usam realizações paroxítonas, são mais<br />

numerosos os analfabetos, mas deve-se lembrar que os informantes com essa<br />

característica constituem mais da metade do total de informantes. Por outro lado, entre<br />

os que usam realizações proparoxítonas, inclui-se o único informante que tem primário<br />

completo, e os que têm primário incompleto são mais numerosos que os analfabetos. Os<br />

dados não permitem, porém, conclusões seguras, tendo em vista o desequilíbrio no<br />

número de representantes de cada grau de escolaridade – são, todavia, sugestivos e<br />

apontam para uma direção de pesquisa que parece promissora.<br />

Considerando o gênero do informante, procurei analisar a mesma carta (108 –<br />

útero), observando quais falantes teriam realizado a palavra como paroxítona ou como<br />

proparoxítona. Foi possível constatar os seguintes índices:<br />

GÊNERO PAROXÍTONAS<br />

nº de informantes<br />

PROPAROXÍTONAS<br />

nº de informantes<br />

feminino 38 6<br />

masculino 41 5<br />

QUADRO III – ALPR: redução de proparoxítonas e gênero (carta 108: útero)<br />

Os números não mostram grandes diferenças entre os dois gêneros e não permitem<br />

conclusões precisas. Observa-se uma mínima superioridade das mulheres no uso das<br />

formas de prestígio (proparoxítonas), e um número ligeiramente menor no uso das<br />

formas estigmatizadas (paroxítonas), o que se harmoniza com constatações de pesquisas<br />

anteriores que apontam maior adesão de falantes do sexo feminino às formas de<br />

prestígio. A consideração do conjunto dos dados a partir dessa variável talvez leve a<br />

resultados mais consistentes, tarefa a ser feita na continuidade deste estudo.<br />

Os processos de redução utilizados<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 113-121, maio-ago. 2008<br />

117


Nos dados analisados, a redução das proparoxítonas se realiza através de processos<br />

variados, a seguir identificados e exemplificados:<br />

a) síncope da penúltima vogal da palavra: [»a”vRe, »utRu, a»midla];<br />

b) síncope da penúltima vogal e da consoante seguinte: [»a”vi, »awvi, e»kRipe,<br />

»utu, re»lA)po, »gRA)da, is»to)mo, is»tA)mu];<br />

c) síncope da consoante da última sílaba: [»utiw, ka»lipiw];<br />

d) queda da última sílaba: [»ute, ka»lipi];<br />

e) apócope da vogal átona final: [»uteR, »utRe, »kRipis];<br />

f) síncope da penúltima vogal e da consoante precedente: [is»to)go, is»tA)go];<br />

g) queda da penúltima sílaba: [ka»lito, »gRA)na].<br />

Nem todos os processos acima arrolados têm sido mencionados nas descrições da<br />

redução da proparoxítona no português popular brasileiro. Em geral, enfatiza-se a<br />

síncope da penúltima vogal ou se fazem menções mais genéricas à perda de segmentos<br />

postônicos. Amaral (1982: 49), por exemplo, em sua descrição do dialeto caipira,<br />

constata, em referência às proparoxítonas, “a tendência (...) a suprimir a vogal da<br />

penúltima sílaba ou mesmo toda esta, fazendo grave o vocábulo”. Cita como exemplos:<br />

ridico = ridículo, cosca = cócega, legite = legítimo, musga = música. Deve-se observar<br />

que entre os próprios exemplos dados pelo autor, ridico e legite ilustram um processo<br />

diferente dos que são descritos (no caso dos dois vocábulos, com a vogal da penúltima<br />

sílaba cai também a consoante seguinte). Elia (1975) também só menciona a queda da<br />

vogal postônica. Câmara Jr. (1970: 55) faz uma referência genérica à “supressão de um<br />

segmento postônico”. Castilho (1992: 248) menciona a “queda da vogal átona<br />

postônica, acompanhada ou não de outros elementos fonéticos”.<br />

Neste sentido, a identificação dos processos ilustrados nos dados do ALPR pode<br />

contribuir para tornar mais precisa a descrição da redução da proparoxítona no<br />

português popular brasileiro.<br />

Considerações finais<br />

O exame dos dados pertinentes do Atlas lingüístico do Paraná (Aguilera 1994)<br />

mostrou a ampla ocorrência do processo de redução da proparoxítona no português<br />

popular falado nessa área do território brasileiro, tanto em termos diatópicos (o processo<br />

é atestado em todas as localidades estudadas no ALPR), como em termos da freqüência<br />

do uso (em relação a cada palavra, a ocorrência das formas paroxítonas é, em geral,<br />

predominante). As realizações proparoxítonas são também atestadas em praticamente<br />

toda a extensão do Estado (só não ocorrem em uma localidade), mas, tipicamente,<br />

sempre em desvantagem em relação às realizações reduzidas. O fator geográfico, como<br />

se pode concluir, não se mostra definitivo nessa alternância.<br />

Em caráter exploratório, foram consideradas, em relação à carta 108 – útero, as<br />

variáveis grau de escolaridade e sexo dos informantes em correlação com o tipo de<br />

118 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 113-121, maio-ago. 2008


ealização atestado – proparoxítona ou paroxítona. Quanto à primeira variável, não<br />

havendo uma distribuição equilibrada dos informantes entre os diferentes níveis de<br />

instrução contemplados, não foi possível chegar a conclusões seguras, sugerindo,<br />

todavia, os índices encontrados que se trata de direção relevante para pesquisa. Em<br />

referência ao sexo do informante, os índices encontrados não assinalam diferenças<br />

nítidas no desempenho de falantes de sexo diferente, apontando apenas uma leve<br />

superioridade das mulheres na adesão a formas de prestígio (proparoxítonas), mas um<br />

adensamento dos dados com o exame de todas as cartas poderá levar a resultados mais<br />

consistentes.<br />

A consideração dos dados tendo em vista a maneira como os informantes levam a<br />

cabo a redução da proparoxítona mostrou o uso de uma grande variedade de processos,<br />

alguns dos quais têm escapado à descrição da literatura pertinente. Quero com isso, e<br />

para finalizar, acentuar a importância de se buscar nos dados dos nossos atlas<br />

<strong>lingüísticos</strong> regionais elementos para a descrição do português brasileiro. A riqueza<br />

desses materiais nem sempre tem sido devidamente explorada pelos estudiosos da<br />

língua.<br />

Referências bibliográficas<br />

AGUILERA, V. de A. Atlas lingüístico do Paraná Curitiba: Imprensa Oficial do<br />

Estado, 1994.<br />

AMARAL, A. O dialeto caipira: gramática, vocabulário. 4ª ed., São Paulo:<br />

Hucitec/INL, 1982 (1ª ed. de 1920).<br />

ARAGÃO, M. do S. S. de & MENEZES, C. P.B. de . Atlas lingüístico da Paraíba.<br />

Brasília: UFPB/CNPq, Coordenação Editorial, 2v., 1984.<br />

CÂMARA Jr., J. M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970.<br />

_____. História e estrutura da língua portuguesa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Padrão,<br />

1976.<br />

CARDOSO, S. A. M. Atlas lingüístico de Sergipe – II. Salvador: EDUFBA, 2005.<br />

CASTILHO, A. T. de. O português do Brasil. In: ILARI, R. Lingüística românica.<br />

São Paulo: Ática, 1992, p. 237-269.<br />

CASTRO, V. S. A resistência de traços do dialeto caipira: estudo com base em atlas<br />

<strong>lingüísticos</strong> regionais brasileiros. Tese (Doutorado em Lingüística) – Instituto de<br />

Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 2006.<br />

COUTINHO, I. de L. Pontos de gramática histórica. 6ª ed. rev., Rio de Janeiro:<br />

1974.<br />

ELIA, S. Ensaios de filologia e lingüística. 2ª ed., Rio de Janeiro: Grifo/MEC, 1975.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 113-121, maio-ago. 2008<br />

119


FERREIRA, C. et alii . Atlas lingüístico de Sergipe. Salvador: EDUFBA/FUNDESC,<br />

1987.<br />

MARROQUIM, M. A língua do nordeste. 2ª ed., São Paulo: Edit. Nacional, 1945.<br />

(1ª ed. 1934).<br />

NASCENTES, A. O linguajar carioca. 2ª ed. ref., Rio de Janeiro: Organização Simões,<br />

1953 (1ª ed. 1923).<br />

RIBEIRO, J. et alii. Esboço d e um atlas lingüístico de Minas Gerais. Rio de Janeiro:<br />

MEC/ Casa de Rui Barbosa/UFJF, 1977.<br />

ROSSI, N. Atlas prévio dos falares baianos. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1963.<br />

Anexo<br />

Carta XXV (Castro 2006)<br />

120 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 113-121, maio-ago. 2008


CARTA XXV<br />

PARANÁ<br />

REDUÇÃO DE PROPAROXÍTONA<br />

árvore, amígdalas, estômago, relâmpago,<br />

útero, eucalipto, eclipse, glândula<br />

(cf. cartas 104 – 108, 125, 152, 155 do<br />

ALPR)<br />

realizações paroxítonas<br />

realizações proparoxítonas<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 113-121, maio-ago. 2008<br />

121


Uso de corpora customizados para aperfeiçoar o texto<br />

traduzido<br />

Ana Julia Perrotti-Garcia<br />

Faculdades Montessori de Ibiúna – (FMI); Unibero/ Faculdades Anhanguera;<br />

Universidade de Franca (UniFran); Mestranda LAEL PUC-SP<br />

Caixa Postal 11746 CEP 05049-970 São Paulo SP<br />

anajulia@corpuslg.org<br />

Abstract. To translate is to make choices. The precision of these choices is<br />

directly related to the quality of search sources used by the translator. Using<br />

the Internet as a source of information is a simple and affordable method, but<br />

the results can lack precision accuracy. Ready corpora seem to be more<br />

reliable, although the majority of them are not composed by texts of specialty<br />

language. The author proposes the establishment of customized corpora –<br />

attending to specific research needs (register, linguistic variants, types of<br />

documents, target public, among others). Customized corpora, together with<br />

WordSmith tools set, will help translators make the final text more natural and<br />

precise, in a quick and cheap way. Customized corpora may be modified,<br />

enriched or altered whenever necessary, in order to be used in a new<br />

translation project, or even to continue a current project.<br />

Keywords. Customized corpora; corpus linguistics; translation; WordSmith<br />

tools.<br />

Resumo. Traduzir é fazer opções. A precisão dessas opções está diretamente<br />

relacionada com a qualidade das fontes de pesquisa utilizadas pelo tradutor.<br />

Usar a rede mundial de computadores (Internet) como fonte de pesquisa,<br />

embora seja um método simples e de baixo custo (que vem se difundindo entre<br />

a comunidade de tradutores), nem sempre é uma forma segura e garantida de<br />

resultados precisos e naturais. A pesquisa em corpora prontos tem mostrado<br />

ser uma alternativa mais confiável. Contudo, para textos científicos,<br />

praticamente não existem corpora prontos que respondam às principais<br />

dúvidas lexicais dos tradutores. Sendo assim, a autora propõe que sejam<br />

coletados corpora customizados – adaptados ao público-alvo do texto meta;<br />

levando em consideração, durante a coleta, outros aspectos como: registro;<br />

campo semântico (e suas subáreas); variações regionais, diafásicas,<br />

diacrônicas e dialógicas; entre outros. Assim, de posse de um corpus<br />

customizado, lançando mão de um programa computadorizado apropriado<br />

(WordSmith tools, mesmo na versão gratuita, para demonstração), o tradutor<br />

irá conseguir produzir textos mais naturais, precisos e adequados, sem<br />

aumentar muito o tempo de pesquisa, com um custo baixo e acessível.<br />

Palavras-chave. Corpora customizados; lingüística de corpus; tradução;<br />

WordSmith tools.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 123-128, maio-ago. 2008<br />

123


.<br />

1. Introdução<br />

Traduzir é fazer opções. A precisão dessas opções está diretamente relacionada com<br />

a qualidade das fontes de pesquisa utilizadas pelo tradutor. O avanço qualitativo<br />

representado pelo advento dos computadores e da Internet é inegável. E o trabalho do<br />

tradutor certamente foi influenciado positivamente pela introdução dos motores de<br />

busca, pela pesquisa na rede mundial de computadores e pela facilidade de acesso a um<br />

conteúdo vasto e constantemente atualizado. Entretanto, muitas vezes o tradutor precisa<br />

de muito mais do que velocidade e variedade de informações. O processo tradutório<br />

envolve pesquisas em assuntos técnicos, científicos e, muitas vezes, é preciso pesquisar<br />

assuntos quase inéditos, ou apenas abordados em sites muito específicos.<br />

A fim de comparar as opções oferecidas ao tradutor ao pesquisar na Internet e<br />

aquelas fornecidas pelos corpora customizados 1 , faremos a seguir uma análise empírica<br />

dos resultados obtidos com cada uma dessas fontes.<br />

2. Internet e motores de busca<br />

Usar a rede mundial de computadores (Internet) como fonte de pesquisa, embora<br />

seja um método simples e de baixo custo (que vem se difundindo entre a comunidade de<br />

tradutores), nem sempre é uma forma segura e garantida de resultados precisos e<br />

naturais. A variedade e a quantidade crescente de textos disponibilizados pela rede<br />

mundial de computadores são dois aspectos que certamente devem ser levados em<br />

consideração, ao escolher a Internet como fonte para pesquisas, ao realizar trabalhos de<br />

tradução. A rapidez com que os resultados são apresentados é extremamente<br />

interessante, promovendo uma maior agilidade ao processo de tradução.<br />

Por outro lado, o tradutor precisa ponderar muito bem, para não ser seduzido por<br />

essa grande quantidade de textos disponíveis que, algumas vezes, em sentido inverso,<br />

acaba comprometendo a qualidade dos resultados das pesquisas – pois oferece opções<br />

heterogêneas, com mistura de registros, variantes lingüísticas, público alvo. Além disso,<br />

sem menções claras ao autor, local e data da redação e da publicação implicando na<br />

ausência de comprometimento com a qualidade e a precisão de alguns textos.<br />

Partiremos da seguinte situação verídica e muito freqüente no dia-a-dia do<br />

profissional que atua com textos da área de saúde: um tradutor precisa fazer uma<br />

tradução português – inglês de um resumo (abstract) de um artigo médico para ser<br />

publicado em uma <strong>revista</strong> científica que tem, entre outras exigências, como requisito o<br />

uso de inglês britânico. Para simplificar nossa explanação, faremos a análise de um<br />

termo, entre os muitos que foram pesquisados durante o processo de tradução. Como o<br />

artigo referia-se a enxertos ósseos, faremos a análise de um termo composto<br />

extremamente representativo do tema: sobrevivência do enxerto. Para a tradução, o<br />

termo sugerido seria graft survival, e este foi então pesquisado pelo motor Google. Ao<br />

usar esse sistema de busca, a avaliação dos resultados obtidos deve sempre ser feita com<br />

bom-senso e com rigor científico, pois da escolha feita irá depender diretamente a<br />

124 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 123-128, maio-ago. 2008


qualidade do texto traduzido. Assim, foi feita a pesquisa do termo graft survival na<br />

Internet, pelo buscador Google, e de posse dos resultados obtidos (figura 1), passaremos<br />

à análise dos resultados.<br />

Primeiros resultados obtidos para o termo graft survival<br />

(Internet, buscador Google).<br />

Figura 1.<br />

A análise da Figura 1 revela que a pesquisa pelo termo graft survival, feita em 23 de<br />

junho de 2007, produziu 644 mil resultados (hits). O número parece bastante<br />

convincente, para servir de fiador de uso, se fizermos um julgamento estritamente<br />

quantitativo. Entretanto, convém lembrar que os textos apresentados ao pesquisar na<br />

Internet, seja qual for o motor de busca ou sistema de pesquisa utilizado, podem ser<br />

extremamente valiosos, mas também podem ser inúteis, enganosos e mal redigidos, uma<br />

vez que não há qualquer tipo de seleção ou pré-requisito para a publicação de textos na<br />

web.<br />

Passemos, então, à análise dos resultados da busca. Por questões de restrição de<br />

espaço e de tempo (e até porque, há uma crença, anedótica e empírica, mas que alguns<br />

tradutores costumam considerar com fundamentada, que afirma que “os primeiros<br />

resultados de uma pesquisa na Internet são os de melhor qualidade”), analisaremos os<br />

primeiros quatro resultados obtidos:<br />

U.S Transplant: Website redigido em inglês americano, e textos dirigidos a<br />

pacientes (os textos são apresentados em linguagem leiga e os termos mais técnicos,<br />

quando citados, são explicados ou facilitados).<br />

2003 OPTN/SRTR Annual Report Reprodução do relatório anual de um órgão<br />

estadunidense responsável pela localização de doadores e pela rede de transplantes<br />

naquele país (OPTN/SRTR). Aqui podemos notar a heterogeneidade dos textos<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 123-128, maio-ago. 2008<br />

125


apresentados na Internet, pois este resultado e o anterior são procedentes do mesmo<br />

website, no entanto têm público-alvo diverso, são gêneros textuais diferentes e, a menos<br />

que o tradutor faça uma leitura mais aprofundada (indo além das poucas linhas<br />

apresentadas pelo buscador), muitas dessas informações podem passar despercebidas.<br />

NEJM: A <strong>revista</strong> médica New England Journal of Medicine, uma das mais<br />

tradicionais publicações da área da saúde, certamente é uma fonte de textos bem<br />

redigidos, confiáveis e que podem ser aproveitados como base de pesquisa para<br />

tradutores. Entretanto, é conveniente lembrar que neste texto temos um vocabulário<br />

dirigido aos médicos, o que não pode ser esquecido, principalmente se o texto a ser<br />

traduzido tiver como destino leitores não médicos. Além disso, por exigência da própria<br />

<strong>revista</strong>, a variante adotada nos textos é o inglês americano.<br />

Hindu on Net: este hit traz uma ent<strong>revista</strong> concedida por um médico japonês a<br />

um repórter indiano. Sendo assim, temos no mínimo, influências regionais bem<br />

marcantes. Mesmo partindo do pressuposto que o médico ent<strong>revista</strong>do seja (o que deve<br />

realmente ser) fluente em inglês, é importante ponderar quanto à conveniência de usar<br />

este material como guia para a produção de um texto em inglês, uma vez que muito já se<br />

falou sobre a influência do falante não nativo sobre a qualidade e a naturalidade do texto<br />

produzido.<br />

Assim, podemos observar, em uma primeira análise rápida, que os quatro primeiros<br />

resultados da pesquisa não apontam para um horizonte muito animador: textos em<br />

inglês americano, lado a lado com textos produzidos por não nativos, variedade de<br />

público alvo, de registro e de tipo textual. Seria conveniente que cada tradutor, antes de<br />

eleger a web como sua fonte única ou principal de informações lingüísticas, refletisse<br />

um pouco mais sobre a qualidade e a adequação dos textos que circulam nesse oceano<br />

imenso de opções quase intangíveis.<br />

3. Corpus customizado<br />

A pesquisa em corpora prontos 2 (por exemplo, apenas para citar alguns dos mais<br />

relevantes, BNC e Collins Cobuild, para pesquisas de inglês, e Banco de Português e<br />

LacioWeb, para pesquisas de português) tem mostrado ser uma alternativa muito mais<br />

confiável. Os textos são pré-selecionados, vindo em sua maioria de fontes fidedignas e<br />

que cuja origem e data de produção e coleta costumam ser explicitadas para o<br />

pesquisador. Contudo, para textos científicos, praticamente não existem corpora prontos<br />

que respondam às principais dúvidas lexicais dos tradutores. Sendo assim, para esta<br />

análise comparativa, coletamos um corpus customizado – adaptado ao público-alvo do<br />

texto meta (especialistas em gastroenterologia, neste caso) – levando em consideração,<br />

outros aspectos como: registro; campo semântico (e suas subáreas); variações regionais<br />

(apenas foram coletados textos em inglês britânico), diafásicas (coletamos textos de<br />

artigos médicos, publicados em <strong>revista</strong>s especializadas e conceituadas), diacrônicas<br />

(somente foram coletados textos produzidos na última década) e dialógicas; entre outros<br />

(Perrotti-Garcia, 2007). Assim, de posse de um corpus customizado, lançando mão de<br />

um programa computadorizado apropriado (WordSmith tools, na versão 4.0, para<br />

demonstração), repetimos a busca, desta vez usando apenas o termo survival (um<br />

procedimento que, como sabemos, se fosse feito pelo buscador Google produziria um<br />

resultado tão heterogêneo, numeroso e impreciso que seria impossível de ser<br />

126 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 123-128, maio-ago. 2008


aproveitado da maneira que fizemos aqui). Os resultados da pesquisa feita pela<br />

ferramenta Concordance do programa WordSmith são apresentados na Figura 2.<br />

Figura 2. Primeiros resultados obtidos para o termo survival<br />

(Programa WordSmith, ferramenta Concordance, a partir de corpus customizado).<br />

Mesmo para o observador que avalia a figura 2 pela primeira vez, já é possível notar<br />

algumas diferenças marcantes entre os resultados obtidos com a ferramenta<br />

Concordance: a palavra de busca (aqui chamada de nódulo) aparece centralizada,<br />

grafada de cor diferente, e com um número fixo de palavras a esquerda e à direita. A<br />

esse conjunto, chamamos “linhas de concordância”. A ferramenta Concordance mostra<br />

as linhas de concordância existentes com a palavra de busca selecionada. Além disso, é<br />

possível aumentar ou diminuir o número de palavras à direita e à esquerda do nódulo,<br />

bastando para isso um simples ajuste no programa ou um clique em um botão<br />

determinado.<br />

Além das diferenças estruturais nos resultados obtidos, podemos notar diferenças<br />

qualitativas importantíssimas: como os textos pesquisados foram pré-selecionados pelo<br />

próprio tradutor, seguindo critérios rígidos, não há termos suspeitos, todos os artigos<br />

foram redigidos em inglês britânico e o público alvo é sempre o médico especialista.<br />

Deste modo, notamos que as diversas linhas de concordância fornecem muito mais do<br />

que uma mera confirmação do uso de um termo pesquisado. Podemos depreender o uso<br />

de preposições, padrões colocacionais, termos compostos e, obviamente, vários<br />

exemplos autênticos de uso do termo pesquisado graft survival, além de termos como<br />

patient survival, retransplantation e liver transplant, que certamente serão úteis durante<br />

o processo de tradução.<br />

4. Internet X corpus customizado - o que concluímos?<br />

Ao fazermos a comparação entre os resultados obtidos pelos motores de busca, na<br />

Internet, e pelo programa WordSmith, em corpora customizados, percebemos que há<br />

diferenças marcantes, não apenas do ponto de vista estrutural (formatação, apresentação<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 123-128, maio-ago. 2008<br />

127


do resultados, organização das linhas de concordância), mas também diferenças na<br />

qualidade dos resultados obtidos. Como o corpus customizado é composto<br />

exclusivamente por textos coletados em fontes consideradas fidedignas, seguindo<br />

parâmetros relacionados aos aspectos textuais, que estarão em harmonia com o texto de<br />

chegada, os resultados são absolutamente precisos e adequados para ir ao encontro das<br />

necessidades de pesquisa do tradutor. Ainda muito precisa ser analisado sobre este tema<br />

tão fascinante: os corpora customizados como fonte de pesquisa para tradutores e o<br />

assunto certamente ainda será explorado futuramente. Assim, o tradutor irá conseguir<br />

produzir textos mais naturais, precisos e adequados, sem aumentar muito o tempo de<br />

pesquisa, com um custo baixo e acessível.<br />

Notas<br />

1 Para obter maiores informações sobre a coleta e a montagem de corpora customizados,<br />

recomendamos a leitura de Perrotti-Garcia (2005)<br />

2 Para obter os endereços de acesso aos corpora citados, consulte o item 6. Anexo(s).<br />

Referências<br />

2006 Annual Report of the U.S. Organ Procurement and Transplantation Network and<br />

the Scientific Registry of Transplant Recipients: Transplant Data 1996-2005. Health<br />

Resources and Services Administration, Healthcare Systems Bureau, Division of<br />

Transplantation, Rockville, MD.<br />

BERBER SARDINHA, Tony. Lingüística de Corpus. Manole, São Paulo, 2004.<br />

PERROTTI-GARCIA, Ana Julia. O Uso de Corpus Customizado como Fonte de<br />

Pesquisa para Tradutores. Confluências Revista de Tradução Científica e Técnica,<br />

Lisboa, v. 3 p. 62-79. 2005. Disponível em: Acesso em<br />

28 set. 2007<br />

_____ Customised corpora – a source of information for translators, In: Institute of<br />

Translation and Interpreting Conference. 2007. Anais eletrônicos. Disponível em:<br />

Acesso em 28 set.<br />

2007<br />

6. Anexo<br />

Endereços eletrônicos dos corpora e programas citados no artigo:<br />

Banco de Português: <br />

British National Corpus (BNC): <br />

Collins Cobuild: <br />

Lacio Web <br />

WordSmith tools: <br />

128 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 123-128, maio-ago. 2008


Tradutor: Personagem de ficção<br />

Dircilene Fernandes Gonçalves<br />

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo (USP)<br />

São Paulo – SP – Brasil – lenefg@uol.com.br<br />

Resumo. A pseudotradução é uma técnica na qual um texto original é<br />

apresentado como sendo uma tradução. Conhecida desde a Idade Média, ela é<br />

utilizada pelas mais diversas razões: literárias, estilísticas, editoriais,<br />

políticas, entre outras. Diferentemente do comportamento em geral observado<br />

em casos de pseudotradução, em O Senhor dos Anéis, de J R. R. Tolkien –<br />

como na maior parte de sua obra ficcional – o "tradutor" não aparece como<br />

um indivíduo exterior à obra. O "tradutor-narrador" de Tolkien é personagem<br />

da tradução fictícia que serve de moldura aos eventos narrados; e é somente<br />

por meio de seu trabalho que a narrativa da saga pode existir.<br />

Palavras-chave. pseudotradução; O Senhor dos Anéis; tradutor; personagem;<br />

tradução fictícia.<br />

Abstract. Pseudotranslation is a technique in which an original text is<br />

presented as being a translation. It has been used since Middle Ages for<br />

diverse reasons: literary, stylistic, editorial and political, among others.<br />

Unlike what is generally observed in cases of pseudotranslation, in J. R. R.<br />

Tolkien's The Lord of the Rings – as well as in most of his fictional work – the<br />

"translator" is not an individual outside the work. Tolkien's "translatornarrator"<br />

is the character of the fictitious translation that works as a frame for<br />

the account of the events; and it is only through his work that the saga can be<br />

told.<br />

Keywords. pseudotranslation; The Lord of the Rings; translator; character;<br />

fictitious translation.<br />

O Senhor dos Anéis: quando traduzir é criar<br />

Em seu ensaio "Cuando la ficción vive en la ficción", Jorge Luis Borges fala<br />

sobre como, tal qual pintores inserem quadros dentro de quadros, escritores inserem<br />

narrativas dentro de narrativas, criando perspectivas que se desdobram umas a partir das<br />

outras.<br />

Não se sabe se durante a observação desse fenômeno a idéia de tradução tenha<br />

passado pelo menos de leve pelo pensamento de Borges. No entanto, sem sequer<br />

resvalar o assunto, ele oferece uma definição perfeita para a pseudotradução: uma ficção<br />

interpolada em outra ficção; por isso mesmo, o outro nome pelo qual ela é conhecida é<br />

"tradução fictícia".<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 129-133, maio-ago. 2008<br />

129


Tecnicamente, a pseudotradução ocorre quando um texto original é apresentado<br />

como sendo uma tradução, e ela é uma prática utilizada desde a Idade Média por<br />

diversas razões, com objetivos variados.<br />

As motivações mais comuns observadas pelos estudiosos 1 para a concepção de<br />

um texto como pseudotradução são: 1) inserir um novo elemento numa cultura; 2)<br />

aventurar-se (um autor) num estilo diferente; 3) driblar a censura; 4) responder a<br />

interesses editoriais e comerciais; 5) conferir autoridade política ou religiosa a fim de<br />

convencer o público e conquistar simpatizantes e/ou adeptos para uma determinada<br />

causa ou doutrina.<br />

Obras conhecidas, como Orlando Inammorato, de Mateo Maria Boiardo (1453),<br />

Dom Quixote, de Cervantes (1595/1605), Cartas Chilenas, de Tomáz Antônio Gonzaga<br />

(século XVIII) e O nome da rosa, de Umberto Eco (1980), são exemplos de<br />

pseudotradução, embora esse fato geralmente passe despercebido. Outros exemplos<br />

dignos de nota são canções e poemas em apoio ao regime stalinista quando de sua<br />

implantação na extinta União Soviética, parte da produção de ficção científica na<br />

Hungria entre 1989 e 1995 e o Livro de Mórmon, "revelado" por Joseph Smith em 1830,<br />

que levou à fundação da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.<br />

O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien – assim como grande parte de sua obra<br />

ficcional – também foi concebido como uma pseudotradução. No entanto, observando-o<br />

em relação a cada uma das motivações apontadas acima, é possível concluir que<br />

nenhuma delas pode ser indicada como justificativa para o autor ter feito essa opção.<br />

Motivo número um: Tolkien certamente não pretendia inserir um elemento novo<br />

na cultura de seu país, visto que, quando começou a escrever O Senhor dos Anéis, no<br />

final de 1937, a literatura de fantasia já estava praticamente consolidada como gênero e<br />

tinha entre seus maiores representantes vários escritores de língua inglesa.<br />

Motivo número dois: Tolkien era um admirador e um paladino da literatura de<br />

fantasia e já havia publicado vários trabalhos no gênero, entre poemas e contos; além de<br />

O Hobbit, cujo grande sucesso editorial gerou a solicitação de uma seqüência, a qual se<br />

transformou em O Senhor dos Anéis.<br />

Motivo número três: Tolkien não tinha necessidade de driblar a censura; seus<br />

escritos, acadêmicos ou ficcionais, não eram considerados perigosos em nenhum<br />

sentido. Talvez depois da publicação de O Senhor dos Anéis, alguns críticos e<br />

acadêmicos possam tê-lo considerado perigoso para o conceito vigente de literatura, e<br />

até mesmo tenham tido vontade de censurá-lo.<br />

Motivo número quatro: Tolkien não escrevia para responder a nenhum tipo de<br />

exigência do mercado editorial. Embora, como ocorre em qualquer publicação, tenha<br />

existido a necessidade do estabelecimento de compromissos comerciais, tais<br />

compromissos eram meras relações de trabalho, não premissas que determinavam as<br />

escolhas do autor. O próprio Tolkien sempre afirmou que escrevia em primeiro lugar<br />

para sua satisfação pessoal 2 .<br />

Motivo número cinco. Talvez este se aproxime um pouco de alguma motivação<br />

de Tolkien além de sua satisfação pessoal. No entanto, não do mesmo modo que nos<br />

casos das canções de apoio ao regime stalinista ou do Livro de Mórmon, que visavam<br />

respectivamente conquistar o apoio a uma nova ordem política e seguidores para uma<br />

nova religião. Defensor apaixonado da fantasia, Tolkien deve ter sido motivado pela<br />

130 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 129-133, maio-ago. 2008


idéia de provar seu ponto de vista e conquistar leitores para o gênero, porém sempre<br />

assinou suas criações como autor.<br />

Quiçá a explicação que mais se aproxime de pelo menos uma parte da motivação<br />

de Tolkien seja a observada por Julio Cesar Santoyo em um artigo sobre<br />

pseudotradução (SANTOYO, 1984): uma escolha puramente estética. Além de defensor<br />

da fantasia, Tolkien era amante da literatura antiga, especialmente da poesia que remetia<br />

ao mito; paixão que embalava seu trabalho como professor, filólogo e tradutor e que<br />

inspirava sua produção ficcional.<br />

Sentindo falta, em seu tempo, de uma literatura que produzisse nele a mesma<br />

emoção que aquelas obras, instigado pelo fascínio da pesquisa filológica e movido pelo<br />

desejo de criar uma mitologia genuinamente inglesa, travestiu-se de tradutor para criar<br />

uma narrativa no limiar da realidade e da fantasia.<br />

Ao escrever O Senhor dos Anéis como se estivesse reunindo e traduzindo<br />

documentos antigos reveladores de uma época distante, Tolkien se comporta como mais<br />

que um tradutor; ele é um pesquisador: filólogo, arqueólogo, historiador, cujo papel é<br />

trazer à luz uma parte da história apagada da memória dos homens. Ao mesmo tempo<br />

em que constrói seu mito fictício, aproxima-o da realidade, fazendo uma ponte entre ele<br />

e o tempo Histórico da humanidade 3 . Sua narrativa, sempre construída de modo a<br />

autenticar a "veracidade" dos eventos, cria no leitor a sensação de estar realmente diante<br />

do relato de um passado possível da humanidade. Nessa mistura de estilos, ficcional e<br />

acadêmico, Tolkien é, ao mesmo tempo, artista, pesquisador e tradutor. Do lado de fora,<br />

aquele que cria e, dentro de sua criação, aquele que reúne, interpreta, traduz e relata.<br />

O material utilizado pelo tradutor não é uma narrativa única, mas é composto de<br />

várias narrativas, dado que os personagens vivem situações diferentes paralelamente. É<br />

o encontro dos personagens durante o desenrolar e após a conclusão dos eventos que<br />

permite a unificação dos fatos numa narrativa comum. Surgem daí os "registros<br />

históricos" escritos pelos diversos participantes da saga, aos quais o tradutor teve acesso<br />

para sua composição.<br />

O papel do tradutor, por conseguinte, vai além de verter textos de uma língua<br />

para outra. Ele reorganiza os fatos dentro de uma ordem lógica e cronológica,<br />

amarrando os detalhes individuais vividos pelos personagens a fim de proporcionar um<br />

panorama completo dos aspectos históricos, geográficos, sociais, culturais e emocionais.<br />

Nenhum acontecimento surge do nada e deixa de ser esclarecido; para tudo há uma<br />

explicação, um fundamento, uma fonte.<br />

O trabalho do tradutor atinge verdadeiro status de pesquisa acadêmica, criando<br />

um tipo de ficção que confunde o leitor, não quanto à compreensão da obra, mas quanto<br />

a que tipo de obra ele está lendo: "ficção ou história?". Logicamente, sabe-se desde o<br />

princípio que se trata de ficção – não consta que a intenção do autor tenha sido criar tal<br />

ilusão. Porém, uma ficção engendrada de maneira a deixar um rastro de dúvida em<br />

relação a sua virtualidade.<br />

O tradutor se configura como um personagem que não participa da trama, mas<br />

sabe cada um de seus detalhes. Note-se que, apesar de ser uma "tradução" de narrativas<br />

feitas em registros de participantes ativos na saga, em nenhum momento narra-se em<br />

primeira pessoa. Como reorganizador de documentos antigos, o tradutor conta a história<br />

de outros, eliminando o "eu" da narrativa.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 129-133, maio-ago. 2008<br />

131


O foco narrativo é invariavelmente em terceira pessoa, sem que, no entanto, o<br />

narrador-tradutor se comporte como um Deus onisciente que conhece passado, presente<br />

e futuro e até os sentimentos e pensamentos mais profundos de cada personagem ativo<br />

da trama; ou, numa atitude contrária, se limite a contar os fatos sem passar pelo<br />

subjetivo. Como tradutor, o limite do que ele narra é o que foi dado a conhecer por esses<br />

personagens em seus registros, e seus comentários e intrusões na narrativa atêm-se<br />

também a esse conhecimento documental.<br />

No texto "Da Tradução", parte II do Apêndice F de O Senhor dos Anéis, Tolkien<br />

incorpora declaradamente o papel de tradutor e, com rigor acadêmico, descreve sua<br />

metodologia de tradução, comenta e justifica suas escolhas. Esse texto funciona como<br />

uma "nota do tradutor" e é parte da ficção. Nele, o tradutor fictício emerge como<br />

personagem principal e Tolkien compõe uma história para sua "tradução". Como<br />

Velázques, que se retrata no quadro As Meninas, revelando o pintor em ação, ele se<br />

insere na obra revelando o autor-tradutor em pleno processo criativo.<br />

Nessa tradução fictícia, na qual "tradução e criação são operações gêmeas" 4 , é<br />

somente pelo trabalho desse tradutor imaginário que podemos tomar conhecimento dos<br />

eventos. Para chegarmos ao espaço dos fatos narrados, precisamos passar pela<br />

antecâmara da tradução: uma ficção que dá acesso a outra ficção. Sem essa passagem a<br />

narrativa de O Senhor dos Anéis não seria possível, ou melhor, seria outra narrativa.<br />

O tradutor de Tolkien não existe, mas tudo funciona como se ele de fato existisse<br />

e executasse todo um trabalho minucioso para revelar ao homem moderno parte de sua<br />

história perdida na distância do tempo.<br />

Em O Senhor dos Anéis, a tradução não é pseudo, é ficção: criação e criadora. E<br />

o tradutor não é farsante, é personagem: criatura e criador.<br />

Notas:<br />

1. Os <strong>estudos</strong> mais aprofundados da pseudotradução são os de Gideon Toury; seus<br />

trabalhos são sempre citados por outros estudiosos do assunto.<br />

2. CARPENTER, 1995a (cartas 163, p. 211 e 328, p. 412).<br />

3. Os eventos narrados em O Senhor dos Anéis marcam o final da Terceira Era e o<br />

início da Quarta Era, ou Era dos Homens, que aponta para o Tempo Histórico<br />

conhecido. Para uma linha do tempo aproximada, ver KYRMSE, 2003.<br />

4. Octavio Paz, citado por José Paulo Paes (PAES, 1990, p. 9).<br />

Referências bibliográficas<br />

BASSNETT, Susan. When is a Translation not a Translation? In: BASSNETT, Susan;<br />

LEFÉVERE, André. Constructing Cultures: Essays on Literary Translation. [S.l.]:<br />

Multilingual Matters Ltd., 1998, p. 25-40 (Topics in Translation, 11).<br />

BORGES, Jorge Luis. Cuando la ficción vive en la ficción. In: Textos cautivos. Madrid:<br />

Alianza Editorial, 1999, p. 56-59 (Biblioteca Borges).<br />

132 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 129-133, maio-ago. 2008


CARPENTER, Humphrey. J. R. R. Tolkien: a Biography. London: Harper Collins,<br />

1995a.<br />

_____ (ed.). The Letters of J. R. R. Tolkien. London: Harper Collins, 1995b.<br />

KYRMSE, Ronald. Explicando Tolkien. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />

PAES, José Paulo. Tradução: a ponte necessária: aspectos e problemas da arte de<br />

traduzir. São Paulo: Ática, 1990 (Temas, Estudos Literários, 22).<br />

SANTOYO, Julio Cesar. La traducción como técnica narrativa. In: IV CONGRESO DE<br />

LA ASOCIACIÓN ESPAÑOLA DE ESTUDIOS ANGLO-<br />

NORTEAMERICANOS – SALAMANCA, 1980, Actas del IV Congreso de la<br />

Asociación Española de Estudios Anglo-Americanos. Salamanca: Ediciones<br />

Universidad de Salamanca, 1984, p. 37-51.<br />

SOHÁR, Anikó. Hungarian Books as Translations, or the Strange World of<br />

Pseudotranslations. In: SOHÁR, Anikó. The Cultural Transfer of Science Fiction<br />

and Fantasy in Hungary 1989-1995. [S.l.]: Peter Lang, s.d., p. 135-199.<br />

TOLKIEN, J. R. R. The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring; The Two<br />

Towers, The Return of the King. London: Harper Collins, 2002.<br />

_____ O Senhor dos Anéis. Trad. Lenita Maria Rimoli Esteves e Almiro Pisetta.<br />

Revisão técnica e consultoria Ronald Kyrmse. 1 ed. reimp. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 2001a.<br />

TOURY, Gideon. A Rationale for Descriptive Translation Studies: Chapter 1:<br />

Translations as Facts of a 'Target' Culture; Excursus A: Pseudotranslations and<br />

Their Significance. In: Descriptive Translation Studies and Beyond. [S.l.]: John<br />

Benjamins Publishing Company, 1995, p. 21-52 (Benjamins Translation Library,<br />

v. 4).<br />

_____ Communication in Translated Texts: A Semiotic Approach. In: In Search of a<br />

Theory of Translation. Tel Aviv: The Porter Institute for Poetics and Semiotics,<br />

Tel Aviv University, 1980, p. 11-18.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 129-133, maio-ago. 2008<br />

133


Diferenças estilísticas entre o autor e o auto-tradutor em<br />

Viva o Povo Brasileiro e An Invincible Memory*<br />

Diva Cardoso de Camargo<br />

Universidade Estadual Paulista (UNESP – IBILCE)<br />

diva@ibilce.unesp.br<br />

Resumo. O estudo tem por objetivo identificar o estilo de João Ubaldo<br />

Ribeiro enquanto autor e enquanto tradutor de si mesmo no par de obras Viva<br />

o Povo Brasileiro e An Invincible Memory. A fundamentação teórica apóiase<br />

nos <strong>estudos</strong> da tradução baseados em corpus (Baker, 1993, 1995, 1996,<br />

2000, 2004; Camargo, 2005) e na lingüística de corpus (Berber Sardinha,<br />

2004). O cálculo estatístico gerado para a razão forma/item padronizada<br />

mostra que o auto-tradutor Ubaldo Ribeiro (44,34) apresenta um resultado<br />

menor em relação ao autor Ubaldo Ribeiro (49,07), indicando menos<br />

diversidade vocabular na obra traduzida.<br />

Palavras-chave. Tradução literária; estilo do tradutor; <strong>estudos</strong> da tradução<br />

baseados em corpus; lingüística de corpus; literatura brasileira traduzida.<br />

Abstract. This paper aims at observing a particular case of an author’s and<br />

self-translator’s style in the pair of works Viva o Povo Brasileiro and An<br />

Invincible Memory. Our investigation has its theoretical starting point based<br />

on Corpus-Based Translation Studies (Baker, 1993, 1995, 1996, 2000, 2004;<br />

Camargo, 2005), and Corpus Linguistics (Berber Sardinha, 2004). By<br />

comparing the standardized type/token ratio of the translation and its<br />

respective original, the result shown by the self-translator Ubaldo Ribeiro<br />

(44.34) indicates a lower difference in relation to the result presented by the<br />

author Ubaldo Ribeiro (49.07).<br />

Keywords. Literary translation; translator’s style; Corpus-Based Translation<br />

Studies; Corpus Linguistics; translated contemporary Brazilian Literature.<br />

1. Introdução<br />

Nos últimos anos, alguns teóricos da tradução têm enfatizado a presença do<br />

tradutor; no entanto, não apresentam nenhuma demonstração dos traços efetivamente<br />

deixados nos textos traduzidos (TTs). Venuti (1995, 1998) recrimina a transparência<br />

como efeito ilusionístico da presença do autor que seria [supostamente] alcançada pelas<br />

estratégias da tradução “domesticadora” e advoga a visibilidade do tradutor por meio de<br />

estratégias de resistência da tradução “estrangeirizadora”, mas sem explicitar quais<br />

seriam as marcas de uma “fidelidade abusiva”. De modo análogo, Hermans (1996)<br />

claramente reconhece a voz do tradutor; porém, focaliza principalmente a “voz do<br />

outro” no que tange ao emprego auto-referencial de primeira pessoa nas notas do<br />

tradutor.<br />

No que concerne à sua presença e à noção de estilo, poderíamos incluir a escolha<br />

da parte de cada tradutor de material a ser traduzido, a utilização consistente de<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 135-143, maio-ago. 2008<br />

135


estratégias tradutórias e, sobretudo, o modo de expressão que é típico de um dado<br />

tradutor (mais do que simplesmente instâncias de intervenção aberta de material<br />

extratextual).<br />

Por seu turno, mesmo com as disciplinas da crítica literária, da estilística e dos<br />

<strong>estudos</strong> da tradução não tendo chegado a um consenso geral sobre a concepção de<br />

estilo, Munday (1997: 117) explica que a estilística computacional (embora sendo ainda<br />

uma disciplina relativamente nova, e não existindo um arcabouço consolidado para<br />

<strong>estudos</strong> na área) parece já ter mais estabelecido o conceito básico de perfil estilístico<br />

apoiado em medidas estatísticas. No campo geral da estilística computacional, o<br />

conceito de estilo é visto como um fenômeno quantitativo, destacando-se as linhas de<br />

investigação desenvolvidas por Leech e Short (1981) sobre freqüência e estilo, e por<br />

Biber (1986) sobre análise de características múltiplas. Butler (1990), outro<br />

pesquisador importante nesse campo, descreve <strong>estudos</strong> que usam a estatística para<br />

observar aspectos estilísticos de determinados textos, autores e gêneros, e para examinar<br />

grandes quantidades de características lingüísticas de textos individuais (incluindo a<br />

freqüência e a extração de palavras mais comuns) numa tentativa de isolar o perfil<br />

estilístico ou “marca digital”, útil em casos de atribuição de autoria ou de determinação<br />

da cronologia dos textos. Contudo, Munday (ibidem) é de opinião que “deveria ser<br />

possível desenvolver um perfil estilístico amplo, além de sistemático, dos corpora sem<br />

ter de recorrer a estatísticas demasiadamente complexas de freqüência de palavras” 1 .<br />

Nesse sentido, os <strong>estudos</strong> da tradução baseados em corpus têm trazido<br />

importantes contribuições para a teoria e prática tradutórias ao procurar descrever o que<br />

o tradutor realmente faz com a língua de chegada (LC).<br />

2. Perspectiva teórica<br />

Dado que o conceito de estilo tem-se mostrado ainda de difícil definição, esta<br />

investigação sobre o estudo do estilo do auto-tradutor representado no corpus de estudo<br />

optou por fundamentar-se na noção fornecida por Baker, que entende:<br />

estilo como uma espécie de impressão digital que fica expressa [no TT] por uma<br />

variedade de características lingüísticas [...] as quais estão provavelmente mais no<br />

domínio do que algumas vezes é chamado de “estilística forense” que no da<br />

estilística literária (Leech & Short, 1981: 14). Tradicionalmente, a estilística<br />

literária focaliza o que se assume serem escolhas lingüísticas conscientes da parte<br />

do autor, porque os estilistas literários estão principalmente interessados na relação<br />

entre as características lingüísticas e a função artística, em como um dado autor<br />

obtém certos efeitos artísticos. Por outro lado, a estilística forense tende a focalizar<br />

hábitos <strong>lingüísticos</strong> razoavelmente sutis e moderados que estão bem acima do<br />

controle consciente do autor e que nós, como receptores, registramos, na maioria<br />

das vezes, de forma subliminar. Todavia, como ambos os ramos da estilística,<br />

estou interessada em padrões de escolha (quer essas escolhas sejam conscientes ou<br />

subconscientes) mais do que em escolhas individuais isoladas 2<br />

. (BAKER, 2000:<br />

245-6).<br />

Com o propósito de observar padrões de escolha estilística do auto-tradutor<br />

selecionado para análise, o termo “estilo” é definido no âmbito deste estudo como o<br />

perfil de seus hábitos <strong>lingüísticos</strong> individuais, recorrentes, preferenciais e distintivos,<br />

referentes à variação e diversidade de vocabulário, a qual pode ser medida em termos da<br />

razão forma/item (type/token ratio). Dentre as diferentes concepções de estilo<br />

136 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 135-143, maio-ago. 2008


oferecidas pela literatura e pela lingüística, proponho, com base em Baker (2000), esta<br />

noção de estilo focalizada em padrões de variação vocabular empregados pelo tradutor<br />

por mostrar-se a mais adequada às necessidades da presente investigação.<br />

Com referência à linguagem do TT, a utilização de corpora eletrônicos paralelos<br />

ou comparáveis possibilita maior amplitude e funcionalidade para <strong>estudos</strong> da natureza<br />

da tradução e do uso do léxico. Investigações realizadas no Centre for Translation and<br />

Intercultural Studies − CTIS têm detectado certas características recorrentes (Baker,<br />

1996: 180-184) que se apresentam tipicamente na tradução.<br />

Dentre os traços recorrentes, um dos que mais especificamente se relacionam com<br />

este trabalho é a simplificação (Baker, ibidem), que pode ser identificada como uma<br />

tendência em tornar mais simples e de mais fácil compreensão a linguagem empregada<br />

na tradução, como, por exemplo, a utilização de uma quantidade maior de repetições em<br />

relação à obra original. Uma medida possível de traços de simplificação é fornecida<br />

pela razão forma/item (FI), por permitir o exame da variação e diversidade de<br />

vocabulário empregadas pelo tradutor e pelo escritor num dado corpus ou corpora. São<br />

contadas todas as palavras corridas (running words ou tokens) nos textos, e cada forma<br />

ou vocábulo (type) é contado apenas uma vez a fim de identificar padrões de repetição<br />

nos TTs e nos texto originais (TOs). Por exemplo, o fragmento: “I shall answer you. I shall<br />

answer that question with another question, even though, ha-ha, l am not a Jesuit” contém 20<br />

itens (tokens), mas somente 15 formas (types), porquanto há 3 itens para a forma: I e 2 itens para<br />

as formas: shall, answer e question.<br />

Na maneira tradicional, a razão é obtida dividindo-se o total de formas pelo total<br />

de itens. Já na função WordList Statistics, disponibilizada pelo programa<br />

computacional WordSmith Tools, transforma-se esse valor em porcentagem: divide-se o<br />

total de formas pelo total de itens dividido por cem (Berber Sardinha, 2004). Desse<br />

modo, o cálculo gerado para esta pesquisa é o fornecido pelo WordList Statistics para a<br />

razão forma/item padronizada (standardised type/token ratio), apropriada para<br />

observação em textos de tamanhos diferentes. Ao contrário da razão FI, a forma FI<br />

padronizada calcula FI em intervalos regulares, ou seja, faz este mesmo cálculo por<br />

partes do texto e, depois, tira a média dos valores FI entre os vários trechos.<br />

No tocante a outra característica apontada por Baker (1996: 180-184), destaca-se a<br />

explicitação, que consiste na tendência geral de explicar e expandir dados do TO, por<br />

meio de uma linguagem mais explícita, mais clara para o leitor do TT. Manifestações<br />

dessa tendência podem ser expressas sintática e lexicalmente, e podem ser observadas<br />

habitualmente, em relação aos TOs, como a maior extensão dos TTs, o emprego<br />

exagerado de vocabulário e de conjunções coordenativas explicativas.<br />

Com referência ao material, a compilação dos subcorpora de TO e TT teve por<br />

objetivo a observação de padrões estilísticos de um caso particular de um escritor e<br />

também tradutor de si mesmo. Com esse propósito, o critério de seleção favoreceu uma<br />

obra da literatura brasileira, escrita por um autor contemporâneo de renome<br />

internacional, com vários livros traduzidos em diferentes idiomas. Em Viva o Povo<br />

Brasileiro, João Ubaldo Ribeiro faz uma experimentação de estilos e vozes narrativas<br />

que marca todo o desenvolvimento do tempo e da ação ficcional em um tipo de “mockheroic<br />

epic”. A obra aborda o problema da decantada procura de uma identidade<br />

nacional, e revisita o Brasil em três épocas: o século XVII com a colonização, o século<br />

XIX com o mito das narrativas de fundação, e o século XX com as ditaduras. No<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 135-143, maio-ago. 2008<br />

137


omance, destaca-se a forte presença da cultura popular, com manifestações das<br />

religiões afro-brasileiras, festas, costumes, lendas, bem como expressões variadas e<br />

fragmentos de “língua de preto” (conforme notados por Pasta Júnior, 2002). Já na<br />

tradução, Ubaldo Ribeiro recria a própria ficção sobre a história moral do sofrido povo<br />

brasileiro, traduzindo para uma língua estrangeira e para leitores com sensibilidades e<br />

vivência cultural distintas.<br />

Para uma observação do seu perfil estilístico, procurei identificar usos <strong>lingüísticos</strong><br />

característicos e individuais, ou seja, traços de seu comportamento lingüístico<br />

relacionados à variação vocabular, efetuando comparações internacorpus − na obra<br />

traduzida (variação intratextual), − na obra traduzida em relação à respectiva obra<br />

original (variação intersubcorpora da pesquisa); e ainda estabelecendo comparações<br />

externacorpora − na obra traduzida com os corpora de referência Translational English<br />

Corpus − TEC, e British National Corpus − BNC; bem como − na obra original com o<br />

corpus de referência Banco de Português − BP (variações interna e externacorpora).<br />

3. Resultados e discussão<br />

A razão de formas em relação aos itens (ocorrências) indica a variedade de<br />

vocábulos (formas) em um determinado texto ou corpus de tradução. De acordo com o<br />

programa WordSmith Tools, se for empregado um grande número de repetições, podese<br />

esperar uma razão FI mais baixa; em decorrência, havendo maior diversidade de<br />

vocabulário a razão FI tenderia a ser mais alta.<br />

Contudo, é preciso ter cuidado no uso da razão forma/item. Esse cálculo<br />

estatístico é extremamente sensível ao comprimento do texto, uma vez que as palavras<br />

têm maior probabilidade de se repetirem em textos mais extensos, conseqüentemente<br />

levando a uma razão FI mais baixa. Por esse motivo, costuma-se utilizar a razão FI<br />

padronizada.<br />

3.1. Alguns padrões distintivos de vocabulário entre o TT e o TO (comparações<br />

internacorpus)<br />

A fim de observar a distribuição de itens e formas no corpus de TT e de TO,<br />

foram extraídas as Tabelas 1-2:<br />

Tabela 1. Estatística do TT pelo auto-tradutor João Ubaldo em relação ao TO do autor<br />

Subcorpus de TT Subcorpus de TO<br />

An Invincible Memory Viva o Povo Brasileiro<br />

Itens (tokens) 256.951 236.300<br />

Formas (types) 18.075 25.113<br />

Razão FI pdr (Stnd tt ratio) 44,34 49,07<br />

Tabela 2. Diferença da razão FI padronizada entre o TT e o TO<br />

Resultado do TT pelo Razão FI pdr<br />

Diferença da razão FI<br />

auto-tradutor<br />

44,34 padronizada<br />

Resultado do TO do autor Razão FI pdr 49,07 4,73<br />

Procedi, separadamente, a comparações dos textos, a fim de examinar se o uso de<br />

vocabulário na obra traduzida para o inglês é mais ou menos variado do que o da<br />

respectiva obra originalmente escrita em português. Algumas evidências puderam ser<br />

encontradas nas variações intratextuais.<br />

138 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 135-143, maio-ago. 2008


Para as comparações do par de obras consideradas individualmente, a distribuição<br />

dos itens e das formas (Tabela 1) aponta, em termos absolutos, que esse TT registra,<br />

como esperado com base no princípio de explicitação, um número mais alto de itens<br />

(256.951) e um menor número de formas (18.075) em relação ao respectivo TO<br />

(236.300 itens e 25.113 formas).<br />

Por sua vez, uma indicação de que haveria um uso menos ou mais variado de<br />

vocabulário no TT é fornecida pelo exame da razão FI padronizada ou densidade lexical<br />

simples e em intervalos regulares. Para An Invincible Memory tomada conjuntamente<br />

em relação a Viva o Povo Brasileiro, a forma padronizada gerada no TT (44,34) é<br />

menor em relação ao respectivo TO (49,07). A diferença de 4,73 (cf. Tabela 2) indica<br />

que existe, na verdade, menos palavras ‘diferentes’ na obra traduzida, o que mostra que<br />

há mais repetições nas escolhas efetuadas pelo tradutor de si mesmo. O comportamento<br />

lingüístico observado parece evidenciar uma maneira de tornar a tradução mais fácil de<br />

ser processada pelo leitor de língua inglesa, confirmando o princípio da simplificação.<br />

Contudo, é necessário ter em mente, de um lado, que as listas de palavras e as<br />

estatísticas disponíveis para este tipo de estudo, geradas pelo WordSmith Tools, versão<br />

4, são ainda incipientes, porque o programa permite somente a identificação de<br />

repetições exatas de palavras, não sendo sensível a tipos de palavras resultantes das<br />

variantes morfológicas. Por outro lado, esse programa computacional possibilita a<br />

busca de padrões lexicais na totalidade dos textos que compõem o corpus, o que,<br />

provavelmente, não seria exeqüível de ser obtido na mesma extensão apenas pela<br />

análise manual.<br />

3.2. Alguns padrões distintivos de vocabulário do TT em relação ao TEC e ao BNC<br />

(comparações externacorpora)<br />

A fim de distinguir entre a variação de vocabulário empregada pelo autotradutor<br />

e a encontrada no inglês traduzido, foi examinado um corpus de referência: o<br />

Translational English Corpus − TEC. Nesse corpus, os textos estão compilados na<br />

íntegra, englobando quatro tipologias textuais: ficção, <strong>revista</strong>s de bordo, biografia e<br />

artigos de jornais. O tipo de texto predominante é o ficcional, que abarca 82% do total<br />

do corpus e 84 arquivos por ocasião da coleta de dados efetuada para este trabalho;<br />

como os outros tipos de texto constituem apenas uma pequena porção do TEC, somente<br />

o subcorpus de textos de ficção foi aqui considerado para fins estatísticos. As traduções<br />

armazenadas no TEC são realizadas por tradutores falantes nativos de língua inglesa, e a<br />

maior parte desses TTs foi feita a partir de 1983. Os dados extraídos do TEC constam<br />

da tabela abaixo:<br />

Tabela 3. Estatística do corpus de referência TEC<br />

TEC Subcorpus de ficção<br />

Itens 5.848.203<br />

Formas 70.700<br />

Razão FI padronizada 44,53<br />

Tabela 4. Diferença da razão FI padronizada entre o TT e o TEC<br />

Resultado do TT pelo Razão FI pdr<br />

Diferença da razão FI<br />

auto-tradutor<br />

44,34 padronizada<br />

Resultado do TEC Razão FI pdr 44,53 0,19<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 135-143, maio-ago. 2008<br />

139


No TEC, há 5.848.203 itens e 70.700 formas, e uma razão FI padronizada de<br />

44,53 (Tabela 3). Já o cálculo efetuado para o TT An Invincible Memory, ao gerar um<br />

resultado de 44,34, mostra um valor ligeiramente menor do que a forma padronizadada<br />

apresentada pelo TEC. Conforme a Tabela 4, os dados revelam uma diferença muito<br />

pequena para o auto-tradutor João Ubaldo (0,19), indicando uma variação próxima do<br />

empate quanto ao padrão vocabular do seu TT em comparação ao uso de padrões<br />

lexicais registrados por parte dos tradutores representados no TEC.<br />

Por sua vez, com o propósito de observar a linguagem empregada pelo tradutor de<br />

si mesmo em relação à linguagem normalmente usada em textos originalmente escritos<br />

em inglês, utilizei o corpus de referência British National Corpus − BNC. É<br />

considerado um marco histórico por ter sido o primeiro corpus eletrônico a conter cem<br />

milhões de palavras no inglês britânico, escrito e falado; ainda é, dentre os megacorpora,<br />

o único disponível para compra. De modo análogo ao TEC, os TOs<br />

compilados para o BNC são produzidos por autores falantes nativos de língua inglesa.<br />

Diferentemente do TEC, porém, os tipos de texto predominantes são os de língua geral;<br />

o subcorpus de textos de ficção do BNC contava, no momento da coleta para este<br />

estudo, com 485 arquivos e alguns dos textos são fragmentos − ainda que com a<br />

extensão de 40.000 a 50.000 palavras. Por essa razão, tanto o BNC como o subcorpus<br />

de textos de ficção do BNC foram tomados em consideração na tabela abaixo:<br />

Tabela 5. Estatística do corpus de referência BNC<br />

BNC BNC Ficção<br />

Itens 90.748.880 19.444.150<br />

Formas 377.784 101.577<br />

Razão FI padronizada 44,04 41,54<br />

Tabela 6. Diferença da razão FI padronizada entre o TT e o BNC<br />

Resultado do TT pelo<br />

Diferença da razão FI<br />

auto-tradutor<br />

Razão FI pdr 44,34 padronizada<br />

Resultado do BNC Razão FI pdr 44,04 0,30<br />

Resultado do BNC ficção Razão FI pdr 41,54 2,80<br />

De acordo com a Tabela 5, no BNC há 90.748.880 itens e 377.784 formas, o que<br />

corresponde a uma razão FI padronizada de 44,04. No subcorpus de ficção do BNC, os<br />

dados levantados mostram 19.444.150 itens e 101.577 formas, gerando uma razão FI<br />

padronizada de 41,54.<br />

No que concerne ao cálculo estatístico gerado para o tradutor de si mesmo<br />

(Tabela 6), a forma padronizada de 44,34 é só um pouco maior, com uma diferença de<br />

apenas 0,30 do que a gerada para o BNC (44,04); já em relação à forma padronizada<br />

extraída do subcorpus de ficção do BNC (41,54), passa a ser mais alta com uma<br />

diferença de 2,80. Esses dados indicam que João Ubaldo emprega, no seu TT em<br />

inglês, uma variação vocabular similar à encontrada nos TOs do BNC e maior do que a<br />

presente no BNC ficção.<br />

3.3. Alguns padrões distintivos de vocabulário entre o TO e o BP (comparação<br />

externacorpora)<br />

Com a intenção de obter um parâmetro similar a respeito da linguagem utilizada<br />

pelo autor em relação à linguagem habitualmente empregada em textos originalmente<br />

escritos em português, foram efetuados os mesmos procedimentos entre o TO e o corpus<br />

140 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 135-143, maio-ago. 2008


de referência Banco de Português − BP, sediado na Universidade Católica de São Paulo<br />

(PUC/SP − LAEL). A versão 2.0 do Banco de Português possui 660 milhões de<br />

palavras, de português contemporâneo do Brasil. A preponderância é de textos<br />

acadêmicos (52%), jornalísticos (34%) e debates do congresso nacional (12%). Como o<br />

conjunto de textos literários constitui apenas uma pequena parte do BP, foram utilizados<br />

os dados totais para o levantamento estatístico, os quais podem ser observados na tabela<br />

abaixo:<br />

Tabela 7. Estatística do corpus de referência BP<br />

BP<br />

Itens 230.460.560<br />

Formas 607.392<br />

Razão FI padronizada 46,08<br />

Tabela 8. Diferença da razão FI padronizada entre o TO e o BP<br />

Resultado do TO pelo Razão FI pdr<br />

Diferença da razão FI<br />

autor<br />

49,07 padronizada<br />

Resultado do BP Razão FI pdr 46,08 2,99<br />

No BP, de acordo com os resultados obtidos por ocasião da coleta (Tabela 7), há<br />

230.460.560 itens e 607.392 formas, e uma razão FI padronizada de 46,08.<br />

A respeito do autor João Ubaldo (Tabela 8), a forma padronizada de 49,07 é maior<br />

do que a extraída para o BP (46,08), com uma diferença de 2,99. Tais resultados<br />

mostram que, enquanto autor, João Ubaldo utiliza, no seu TO em português, uma<br />

variação vocabular mais alta do que a encontrada nos TOs do BP. A diferença acentuase<br />

mais se comparada na relação autor/tradutor que, conforme a Tabela 2, atinge a ordem<br />

de 4,73 diante do respectivo TT em inglês.<br />

A diversidade de vocabulário já era esperada para o escritor João Ubaldo, uma vez<br />

que a crítica literária enfatiza a sua habilidade na exploração do verbo brasileiro, e que o<br />

seu TO apresenta uma predominância de termos culturalmente marcados.<br />

4. À guisa de conclusão<br />

Como já comentado acima a respeito das deficiências nas listas de palavras e de<br />

estatísticas do programa WordSmith Tools, não é possível fazer conclusões definitivas<br />

para as comparações automáticas geradas pelo software para esta investigação. No<br />

entanto, os resultados da razão forma/item padronizada sugerem diferenças acentuadas<br />

tanto entre a obra traduzida e a obra original como também entre, respectivamente, o<br />

subcorpus de ficção do BNC e o corpus de referência BP, que parecem validar o exame<br />

proposto.<br />

O acesso ao corpus paralelo tornou possível a identificação de uma freqüência<br />

acentuadamente mais baixa nos padrões estilísticos do TT em relação aos do TO, o que<br />

significa que, embora o auto-tradutor João Ubaldo Ribeiro registre uma forma<br />

padronizada alta (44,34), o seu comportamento lingüístico apresenta uma diversidade<br />

lexical menor do que o autor João Ubaldo Ribeiro (49,07).<br />

Em contraste, levando em conta o processo de simplificação, seria esperada uma<br />

freqüência mais baixa de formas (types) para um dado tradutor em relação ao BNC.<br />

Mesmo com a restrição de apenas um par de obras para este estudo de pequena escala, o<br />

uso do corpus paralelo em formato eletrônico permitiu observar que o auto-tradutor<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 135-143, maio-ago. 2008<br />

141


João Ubaldo também apresenta maior diversidade de usos de padrões <strong>lingüísticos</strong> e<br />

menor repetição vocabular do que os padrões registrados nos textos ficcionais escritos<br />

originalmente em inglês armazenados no subcorpus de ficção do BNC (41,54).<br />

Desta feita, se considerarmos a razão FI padronizada como uma indicação do<br />

emprego que os tradutores fazem da linguagem, pode-se destacar, apesar da influência<br />

de possíveis variáveis, que é significativa a diferença apresentada por João Ubaldo,<br />

enquanto auto-tradutor, em relação a João Ubaldo, enquanto autor. Os resultados<br />

observados revelam marcas próprias, individuais e recorrentes da utilização de padrões<br />

estilísticos preferenciais e distintivos desse tradutor de si mesmo, as quais evidenciam o<br />

impacto da extensão dessa diferença, respectivamente na obra traduzida para o inglês<br />

An Invincible Memory em comparação com a obra originalmente escrita em português<br />

Viva o Povo Brasileiro.<br />

Nota<br />

* Parte deste estudo baseia-se em trabalho preliminar apresentado na “ACLA 2007<br />

Conference”, patrocinada pela American Comparative Literature Association, em Puebla,<br />

México, de 19 a 22/04/2007 (Auxílio FAPESP, proc. 2007/00516-5). A autora também<br />

agradece o apoio da FAPESP (04/13154-7) e CNPq (303029/05-6).<br />

1<br />

[...] it should be possible to carry out a broad, yet systematic, stylistic profiling of corpora<br />

without resorting to overcomplex word statistics. [A tradução das citações é de minha<br />

responsabilidade.]<br />

2<br />

style as a kind of thumb-print that is expressed in a range of linguistic features [...] which are<br />

probably more in the domain of what is sometimes called “forensic stylistics” than literary<br />

stylistic (Leech & Short, 1981, p. 14). Traditionally, literary stylistics has focused on what are<br />

assumed to be conscious linguistic choices on the part of the writer, because literary<br />

stylisticians are ultimately interested in the relationship between linguistic features and artistic<br />

function, in how a given writer achieves certain artistic effects. Forensic stylistics, on the other<br />

hand, tends to focus on quite subtle, unobtrusive linguistic habits which are largely beyond the<br />

conscious control of the writer and which we, as receivers, register mostly subliminally. But<br />

like both branches of stylistics, I am interested in patterns of choice (whether these choices are<br />

conscious or subconscious) rather than individual choices in isolation.<br />

Referências bibliográficas<br />

BAKER, M. Corpus linguistics and translation studies: implications and applications.<br />

In: BAKER, M.; FRANCIS, G.; TOGNINI-BONELLI, E. (Ed.). Text and<br />

technology: in honour of John Sinclair. Amsterdam: John Benjamins, 1993. p.<br />

233-250.<br />

______. Corpora in translation studies: an overview and some suggestions for future<br />

research. Target, v. 7, n. 2, p. 223-243, 1995.<br />

______. Corpus-based translation studies: the challenges that lie ahead In: SOMERS, H.<br />

(Ed.). Terminology, LSP and translation studies in language engineering: in<br />

honour of Juan C. Sager. Amsterdam: John Benjamins, 1996. p. 175-186.<br />

_____. Towards a methodology for investigating the style of a literary translator.<br />

Target. v. 12, n. 2, p. 241-266, 2000.<br />

142 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 135-143, maio-ago. 2008


_____. A corpus-based view of similarity and difference in translation. In ARDUINI,<br />

S.; HODGSON, R. (Ed.) Translating similarity and difference. Manchester: St.<br />

Jerome. 2004.<br />

BANCO DE PORTUGUÊS: corpus do Português escrito, de língua geral. São Paulo:<br />

LAEL/PUC/SP. Disponível em: http://www2.lael.puc.sp.br/corpora . Acesso em:<br />

18 jul. 2007.<br />

BERBER SARDINHA, A. P. Lingüística de Corpus. São Paulo: Manole. 2004.<br />

BIBER, D.; FINEGAN, E. An initial typology of English text types. In: J. AARTS, J.;<br />

MEIJS, W. (Ed). Corpus Linguistics II − new studies in the analysis and<br />

exploitation of computer corpora. Amsterdam: Rodopi, 1986.<br />

BRITISH National Corpus: Written corpus design specification. OUP Promotional<br />

Document, Oxford: Oxford University Press. 1991.<br />

BUTLER, J. Gender Trouble. Feminism and the subersion of identity. London:<br />

Routledge, 1990.<br />

CAMARGO, D. C. Padrões de Estilo de Tradutores: Um estudo de semelhanças e<br />

diferenças em corpora de traduções literárias, especializadas e juramentadas.<br />

2005. 512 f. Tese (Livre-Docência em Estudos da Tradução) – Instituto de<br />

Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, São José do<br />

Rio Preto, 2005.<br />

HERMANS, T. The translator’s voice in translated narrative. Target. v. 8, n. 1, p. 23-48,<br />

1996.<br />

LEECH, G.; SHORT, M. H. Style in fiction: A linguistic introduction to English<br />

fictional prose. Harlow: Longman. 1981.<br />

MUNDAY, J. Systems in Translation − A computer-assisted systemic analysis of the<br />

translation of Garcia Márquez. 1997. Tese (Doutorado em Estudos da Tradução) –<br />

Universidade de Bradford, Bradford, Inglaterra, 1997.<br />

PASTA JÚNIOR, J.A. Prodígios de ambivalência: notas sobre João Ubaldo Ribeiro.<br />

Novos Estudos CEBRAP. 64. São Paulo: USP/FFLCH – LE, 2002, p. 61-71.<br />

RIBEIRO, J.U. Viva o Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.<br />

_____. An Invincible Memory. Tradução João Ubaldo Ribeiro. New York:<br />

Harpercollins, 1991.<br />

SCOTT, M. WordSmith Tools. Software for Windows 3.1, 95 e 98. Oxford: Oxford<br />

University Press. Versão demo com funções limitadas, disponível em:<br />

http://www.liv.ac.uk/~ms2938. Acesso em: 18 mar. 2007.<br />

Translational English Corpus − TEC. Centre for Translation and Intercultural Studies −<br />

CTIS. The University of Manchester. Disponível para pesquisadores do CTIS em:<br />

.<br />

VENUTI, L. The translator’s invisibility. London: Routledge, 1995.<br />

______. The scandals of translation. London: Routledge, 1998.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 135-143, maio-ago. 2008<br />

143


O impacto das novas tecnologias no tempo e na qualidade da<br />

produção tradutória<br />

Érika Nogueira de Andrade Stupiello<br />

Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - Universidade Estadual Paulista (Unesp)<br />

erika@traducao-interpretacao.com.br<br />

Abstract. The technological advances reached in the so-called digital era have<br />

fostered deep and definite changes in the practice of translation and the<br />

expectations sustained for the translator s work. On the one hand, machine<br />

translation and translation memory programs are currently deemed as helpful<br />

tools to keep the translator's performance competitive. On the other, these tools<br />

may be nurturing the illusion of instantaneity, or that texts may be translated at<br />

almost the same speed as that of their receipt and transmission. This paper aims<br />

to contemplate how the new technologies have been reshaping the conception of<br />

time and quality in translation, mainly with regard to the relationship between<br />

translators and clients.<br />

Keywords. translation memories; machine translation; technology; translation;<br />

translator<br />

Resumo. Os avanços tecnológicos alcançados na chamada era digital têm<br />

promovido profundas e definitivas mudanças na prática de tradução e nas<br />

expectativas sustentadas para o trabalho do tradutor. Por um lado, programas de<br />

tradução automática e memórias de tradução são atualmente considerados<br />

ferramentas úteis para manter a competitividade do desempenho do tradutor. Por<br />

outro, tais ferramentas podem estar promovendo a ilusão da instantaneidade, ou<br />

seja, de que textos traduzidos podem ser produzidos quase na mesma velocidade<br />

em que são recebidos e transmitidos. Este trabalho busca refletir sobre como as<br />

novas tecnologias têm redefinido a concepção de tempo e de qualidade de<br />

produção tradutória, principalmente, a relação entre tradutores e clientes.<br />

Palavras-chave. memórias de tradução; tradução automática; tecnologia;<br />

tradução; tradutor<br />

Introdução<br />

O desenvolvimento de ferramentas eletrônicas de auxílio à tradução em muito tem<br />

transformado o trabalho do tradutor contemporâneo. Traduzir nos dias de hoje envolve,<br />

principalmente, estar munido de dicionários eletrônicos, glossários e bancos de dados na<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 145-154, maio-ago. 2008<br />

145


internet, e, na maioria das vezes, abrange também utilizar programas de tradução<br />

automática e de memórias de tradução. A velocidade com que a informação é produzida e<br />

necessita ser utilizada em diferentes partes do mundo requer o emprego de meios que<br />

confiram agilidade à produção tradutória. De acordo com Biau Gil e Pym (2006), o uso de<br />

ferramentas eletrônicas afeta a comunicação (entre clientes e tradutores e tradutores entre<br />

si), os textos (que se tornam combinações temporárias de conteúdo) e a memória (quanta<br />

informação é possível recuperar e com que velocidade).<br />

A primeira mudança a qual os autores se referem envolve a comunicação<br />

cliente/tradutor. Se já é notório que a internet derrubou as barreiras da distância física à<br />

comunicação, é possível afirmar que ela também conferiu aos tradutores uma mobilidade<br />

extraterritorial, abrindo-lhes portas a clientes nos mais remotos locais. Todavia, o acesso a<br />

esse mercado potencial e a expectativa de que as práticas de tradução se tornem também<br />

globalizadas parecem ainda encontrar certa resistência, uma vez que, conforme<br />

argumentam Biau Gil e Pym, a tradução ainda é um serviço que depende de um alto grau<br />

de confiança entre o tradutor e o cliente (2006:7). Por esse motivo, a busca por tradutores<br />

para projetos de grande porte muitas vezes ainda depende de um contato direto entre cliente<br />

e tradutor, geralmente possibilitado por indicação. Por outro lado, a indicação de um<br />

tradutor hoje já não é mais restrita à distância física. Outro fator que influencia a busca é a<br />

lei da oferta, a qual a internet também se encarregou de tornar abundante. Conforme aponta<br />

Esselink (2001, apud CRONIN, 2006:46), a qualidade de um texto, traduzido no país da<br />

língua de chegada, é em geral mais alta e o preço muitas vezes bem mais baixo .<br />

A concepção de texto também é influenciada pelas mudanças de nossa era. É cada<br />

vez mais incomum se pensar em um texto linear, como tradicionalmente se conhecia, mas<br />

146 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 145-154, maio-ago. 2008


em um texto eletrônico que se comunica com outros textos por um simples clique do mouse<br />

em um link específico. Para Biau Gil e Pym, os links mostram como os textos são<br />

produzidos em uma grande rede de comunicação virtual, sem início e fim demarcados,<br />

como reconhecidos pela tradição. Essa configuração atual dos textos apresentados ao<br />

tradutor modifica enormemente sua maneira de trabalhar. Se, anteriormente, o tradutor<br />

tinha como ferramentas básicas seus diversos dicionários impressos, hoje eles estão cada<br />

vez mais em formato eletrônico e são compartilhados e, muitas vezes aumentados, por<br />

diversos tradutores em um mesmo projeto. Uma outra inovação na prática tradutória,<br />

relacionada à adoção de programas de tradução automática e de memórias de tradução, está<br />

no fato de que, freqüentemente, os tradutores já recebem o texto, com o qual trabalharão,<br />

parcialmente traduzido de modo automático ou semi-automático. Também é comum o<br />

trabalho de atualização de conteúdos já traduzidos e que requeiram somente tradução de<br />

novos trechos inseridos ao original.<br />

A tradução preliminar de textos é, em algumas situações, realizada por programas<br />

de tradução automática, atualmente considerados eficazes em meios bastante restritos,<br />

como na tradução do jargão técnico e repetitivo de manuais. O emprego desses programas,<br />

por outro lado, exige um aparente engessamento do texto original, o qual seria atingido<br />

pela elaboração de textos com língua de partida supostamente controlada, envolvendo<br />

construções lingüísticas padronizadas que permitiriam o reconhecimento, ainda que parcial,<br />

por programas automáticos desenvolvidos para esses fins.<br />

Outro recurso usado visando a acelerar a produção tradutória é a recuperação<br />

eletrônica de traduções anteriores, possibilitada pelo uso de programas de memórias de<br />

tradução. Esses programas são desenvolvidos para possibilitar o pareamento de trechos de<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 145-154, maio-ago. 2008<br />

147


texto original e de sua respectiva tradução para reaproveitamento em traduções posteriores.<br />

Como explicam Biau Gil e Pym (2006:8), em alguns setores, o uso de ferramentas de<br />

memórias de tradução acelerou o processo tradutório e diminuiu seus custos, e isso levou a<br />

um aumento na demanda por serviços de tradução . Um dos argumentos mais fortes em<br />

favor da adoção dos programas de memórias estaria no fato de eles não representarem uma<br />

ameaça à substituição do trabalho do tradutor como pareciam ser os primeiros projetos de<br />

tradução automática , mas de serem um adjunto importante na realização de tarefas<br />

repetitivas, como traduções de termos, expressões e trechos recorrentes.<br />

Se os programas de memória não ameaçam tomar o espaço do tradutor, certamente<br />

têm demonstrado o poder de mudar a maneira como este traduz. A utilização desses<br />

programas, seja por escolha do tradutor, por critérios impostos pelo cliente ou por ambas as<br />

situações, só é eficaz se forem respeitadas as opções terminológicas ou fraseológicas<br />

armazenadas na memória, deixando muito pouco ou quase nenhum espaço para as escolhas<br />

pessoais do tradutor. Além disso, pressupõe-se que o uso dos recursos disponibilizados<br />

pelos programas de memórias possibilite que a tradução seja necessariamente melhor<br />

elaborada e mais consistente, por dispensar a atenção do tradutor das tarefas repetitivas e<br />

por permitir que ele se concentre no que a memória não recuperou.<br />

Atendo-se à questão do impacto do emprego das memórias de tradução no trabalho<br />

do tradutor contemporâneo, busca-se, a partir de agora, analisar como as concepções de<br />

tempo e de qualidade da produção tradutória se redefinem quando se associa a qualidade de<br />

uma tradução à crença de que seria possível recuperar significados de trabalhos anteriores.<br />

148 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 145-154, maio-ago. 2008


A qualidade da produção tradutória redefinida pelas noções contemporâneas de<br />

tempo e espaço<br />

As noções de tempo e espaço são diretamente afetadas pela revolução da<br />

comunicação promovida pela internet. Transmitir e receber informações eletronicamente<br />

dispensou por definitivo a exigência de movimentos de corpos físicos, que podem se limitar<br />

hoje a inserir comandos em teclados para permutar mensagens a tempo real. Bauman<br />

(1999) vislumbra essa realidade como responsável pela independência que os objetos<br />

ganharam dos meios sobre os quais informam. Conforme explica,<br />

a separação dos movimentos da informação em relação aos movimentos dos seus<br />

portadores e objetos permitiu por sua vez a diferenciação de suas velocidades; o movimento<br />

da informação ganhava velocidade num ritmo muito mais rápido que a viagem dos corpos<br />

ou a mudança da situação sobre a qual informava. (BAUMAN, 1999: 21-2)<br />

A instantaneidade com que mensagens, textos e documentos de naturezas diversas<br />

viajam e são disponibilizados em diversas partes do planeta exige que todo conhecimento<br />

produzido possa ser entendido e processado com a mesma velocidade, requerendo, para<br />

isso, que o trabalho de tradução disponibilize essas informações em outras línguas também<br />

de maneira instantânea.<br />

Além disso, o caráter efêmero das informações produzidas impõe um ritmo<br />

acelerado à atividade tradutória, ritmo esse que parece não constituir um problema, uma<br />

vez que é bastante disseminada a idéia de que traduzir envolveria basicamente transmitir<br />

um significado já constituído em uma língua para outra, portanto, sendo de possível<br />

recuperação com o uso de programas de memórias, por exemplo.<br />

No momento em que se associa o dinamismo da produção tradutória à capacidade<br />

de recuperação de significados já prontos e, de certa forma, válidos em contextos diversos,<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 145-154, maio-ago. 2008<br />

149


passa-se a considerar a figura do tradutor muito mais como a de um transmissor de<br />

significados de uma língua para outra, ignorando-se o trabalho de mediação inerente a<br />

qualquer ato de tradução. A abordagem da tradução, isolada de suas condições sociais de<br />

produção e recepção, parece ser favorecida pelo crescente aumento do uso de ferramentas<br />

que, idealmente, permitiriam uma recuperação rápida da informação e seu envio quase<br />

instantâneo.<br />

Por outro lado, o conhecimento profundo e histórico de línguas e culturas, que<br />

exige tempo e esforço, não é sempre valorizado em uma cultura em que a informação é<br />

onipresente (CRONIN, 2003:21). Ao mesmo tempo em que se constata a imensa<br />

quantidade de informação disponibilizada e, muitas vezes, à espera de uma desejada<br />

transmissão para outras línguas, percebe-se que grande parte do que se produz atualmente<br />

tem caráter efêmero e, por esse motivo, requer uma tradução que atenda, acima de tudo, aos<br />

prazos exíguos impostos pelo mercado. Com o foco no produto final, considerar a<br />

mediação do tradutor como parte do processo parecer ir contra o fluxo urgente de<br />

transmissão de informações e de comunicação, em que são valorizadas trocas rápidas e<br />

presumidamente diretas. Conforme explica Cronin:<br />

de fato, a tendência em um mundo de compressão tempo-espaço é favorecer intercâmbios<br />

de primeira ordem em detrimento daqueles de segunda ordem, isto é, transações rápidas<br />

limitadas em tempo e envolvendo contato limitado em detrimento de compromissos mais<br />

longos, multidimensionais e complexos. (CRONIN, 2003:49)<br />

Para Cronin, a pressão exagerada que a tecnologia da informação exerce sobre o<br />

modo como nos comunicamos faz com que a atenção seja deslocada do processo para o<br />

produto, ignorando-se a dificuldade e o tempo exigido para que o tradutor construa a<br />

comunicação entre línguas diferentes. Em um mundo que valoriza o imediato, a tradução<br />

150 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 145-154, maio-ago. 2008


parece ser um incômodo justamente por ser uma lembrança viva das diferenças entre<br />

línguas e culturas que, embora pareçam mais próximas com os avanços promovidos na<br />

comunicação, ainda mantêm suas particularidades, afinal, a proximidade técnica não<br />

elimina a distância cultural (CRONIN, 2003:49).<br />

Com base na afirmação de Cronin, é possível indagar se os recursos tecnológicos<br />

desenvolvidos e disponibilizados nas últimas décadas aos tradutores, especialmente os<br />

programas de memórias de tradução, não estariam gerando a impressão de serem capazes<br />

aliviar os desafios das particularidades e das variações das línguas, ao oferecerem a<br />

possibilidade de recuperação de trechos de traduções anteriores, as quais são<br />

ordenadamente armazenadas na memória ao lado dos respectivos trechos do texto original.<br />

A idéia de reciclagem constitui a base dos programas de memórias e, por esse motivo,<br />

um texto a ser traduzido é tratado como um conjunto de segmentos , que são armazenados<br />

na memória para uso posterior (BOWKER, 2002:92-3).<br />

A expectativa criada pela aplicação de programas de memória de tradução seria a de<br />

que, com a possibilidade de reaproveitamento de traduções anteriores, o tradutor<br />

necessariamente ganhará tempo no trabalho, o que pode ser um atrativo importante para um<br />

mercado que demanda traduções com prazos cada vez menores. Segundo Bowker<br />

(2002:115), a idéia de economia de tempo pode ser um mito, principalmente quando se<br />

considera o tempo que o tradutor deve investir para dominar os programas disponíveis,<br />

sendo que, nem sempre o programa de preferência do tradutor é aquele também escolhido<br />

por quem contrata um projeto de tradução. Além disso, considera-se essencial que o<br />

tradutor desenvolva uma sensibilidade que lhe permita estabelecer o grau de semelhança,<br />

entre segmentos do original e da tradução, que pretende utilizar em um trabalho. Como<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 145-154, maio-ago. 2008<br />

151


explica Bowker, se o grau de equivalência ajustado no programa for muito alto, as<br />

chamadas equivalências difusas [fuzzy matches], correspondência parciais entre original e<br />

tradução, poderão não ser recuperadas. Por outro lado, se o limite for baixo demais, o<br />

programa pode apresentar opções de tradução consideradas inúteis. Por esse motivo,<br />

Bowker relata que alguns tradutores sentem que editar uma equivalência difusa pode levar<br />

mais tempo do que traduzir um segmento a partir do nada (BOWKER, 2002:116).<br />

Uma outra questão que parece ser ignorada, quando se estabelece como prioridade<br />

uma redução substancial de tempo para execução de uma tradução, estaria na variação<br />

semântica que as opções armazenadas na memória podem sofrer ao longo do tempo. Não<br />

há como garantir que segmentos traduzidos e armazenados na memória manterão o mesmo<br />

significado em tempos e contextos diferentes. Embora tradutores e clientes possam<br />

declarar-se cientes que tais variações acontecem, Bowker sugere que existe o receio de que<br />

alguns tradutores que trabalham com prazos curtos demais possam recorrer rápido demais<br />

às opções oferecidas pela memória, substituindo cegamente as traduções propostas sem<br />

verificar sua exatidão (2002:117).<br />

A possibilidade de ganho de tempo mediante substituição rápida de segmentos<br />

originais por aqueles traduzidos teria influência já na maneira como o tradutor lida com o<br />

texto a ser traduzido, um fato com conseqüências diretas na qualidade do texto final. Se a<br />

eficiência das memórias atrela-se à rapidez de recuperação de opções armazenadas, e se a<br />

utilização desses programas envolve a segmentação do texto original, o trabalho de<br />

tradução passa a restringir-se ao nível da frase, ou do segmento delimitado entre pontos<br />

finais pelo programa. O ganho de eficiência da memória pode estar sendo alcançado à custa<br />

de um texto traduzido fragmentado, tratado como um conjunto de segmentos, e a rigidez<br />

152 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 145-154, maio-ago. 2008


da manutenção da mesma ordem e do número de frases no texto de chegada, como<br />

encontrado no texto de origem, pode afetar a naturalidade e a qualidade da tradução<br />

(BOWKER, 2002:117).<br />

A adoção de programas de memórias de tradução não está necessariamente<br />

associada a ganhos na qualidade da produção tradutória, mas, sim, em tempo. Em uma era<br />

de constantes mudanças e avanços tecnológicos e com um crescente volume de<br />

documentação a ser traduzida, os valores temporais podem estar passando a ser controlados<br />

pela máquina, especialmente quando a contratação de um trabalho depende do domínio dos<br />

programas disponíveis para fazê-lo. Entretanto, como bem lembra Cronin (2003:109), o<br />

tempo da tradução não é o tempo da transmissão e textos e línguas resistem em suas<br />

particularidades e desafios, os quais não se abrandam com a automação parcial do trabalho<br />

do tradutor.<br />

Referências:<br />

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel.<br />

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.<br />

BIAU GIL, JOSÉ RAMÓN; PYM, ANTHONY. Technology and translation (a pedagogical<br />

overview). In: PYM, A. , A., PEREKRESTENKO, A., STARINK, B. (2006).<br />

Translation technology and its teaching. Tarragona, Espanha. Disponível em<br />

. Acesso em:<br />

22 jun. 2006.<br />

BOWKER, Lynne. Computer-aided Translation: a Practical Introduction. Ottawa<br />

(Canadá): Ottawa University Press, 2002.<br />

CRONIN, Michael. Translation and Globalization. London: Routledge, 2003.<br />

ESSELINK, Bert. Leningrad Meets Amsterdam Meets Aquarius. Language International,<br />

v. 14, n. 1, p. 10-11, 2001.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 145-154, maio-ago. 2008<br />

153


This document was created with Win2PDF available at http://www.win2pdf.com.<br />

The unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only.<br />

154 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 145-154, maio-ago. 2008


Olhares sobre a violência no Brasil:<br />

as leituras do The New York Times e de sua tradução<br />

Fernanda Cristina Lima<br />

Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos – Universidade Estadual Paulista<br />

(UNESP) Campus de São José do Rio Preto – Bolsista FAPESP Proc. 05/57720-9<br />

fernandac.lima@yahoo.com.br<br />

Abstract. On the one hand, this paper aims to analyze the way The New York<br />

Times represents the violence associated with Brazil and the Brazilians. On<br />

the other hand, the paper examines how the translation of the issues into<br />

Portuguese deals with the cultural representation shaped by the newspaper. In<br />

this case, translation denies the representation of Brazil as a violent country<br />

with savage people and, as a result, is able to influence the way the Brazilians<br />

view the violence subject in Brazil.<br />

Keywords. Translation; journalistic translation; cultural representation;<br />

violence; Brazil.<br />

Resumo. Este trabalho analisa como o jornal norte-americano The New York<br />

Times realiza a representação da violência relacionada ao Brasil e aos<br />

brasileiros e a forma pela qual a tradução das notícias para o português<br />

reconstrói essa representação cultural. Neste caso, a tradução rejeita a<br />

representação do Brasil como um país violento e cujo povo é selvagem, o que<br />

pode influenciar no modo como os brasileiros vêem a violência em seu país.<br />

Palavras-chave. Tradução; tradução jornalística; representação cultural;<br />

violência; Brasil.<br />

Os <strong>estudos</strong> a respeito do discurso jornalístico têm reconhecido que, longe de<br />

simbolizar uma prática totalmente imparcial e neutra, o ato de noticiar implica, em<br />

algum nível, a veiculação de avaliações e interpretações a respeito daquilo que é<br />

noticiado (MARIANI, 1998). Nos casos em que as notícias tratam de determinados<br />

países, culturas e povos estrangeiros, é possível afirmar que os textos jornalísticos<br />

constroem representações culturais que são veiculadas para o público leitor do jornal e<br />

assumem assim também um papel ideológico, já que passam a orientar maneiras de<br />

olhar o Outro. De forma semelhante, a tradução, como o discurso dos jornais, é capaz de<br />

construir representações culturais e formar identidades nacionais, principalmente<br />

quando o texto a ser traduzido trata de nações e culturas (VENUTI, 2002).<br />

Num caso em que essas duas práticas se juntam, ou seja, em que textos<br />

jornalísticos e veiculadores de representações culturais são traduzidos e, além disso,<br />

essa tradução tem como público aquele mesmo leitor retratado pelas notícias,<br />

estabelece-se uma situação em que se amplia o poder da escrita tradutória de construir,<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 155-161, maio-ago. 2008<br />

155


atificar ou suavizar sentidos e representações culturais que moldam as formas de se<br />

olhar um país e seu povo (CARBONELL, 1996).<br />

O presente estudo investiga o processo em que o jornal norte-americano The<br />

New York Times publica artigos a respeito da violência no Brasil. Percebe-se que, ao<br />

serem noticiados, esse país e seu povo são apresentados para o público estrangeiro por<br />

meio de representações culturais construídas pelo jornal, e que essas representações, por<br />

sua vez, influenciam na forma pela qual o Brasil e sua população são vistos pelo Outro.<br />

Este trabalho examina ainda como a tradução dessas notícias para o português<br />

do Brasil veicula tais representações aos brasileiros, povo interpretado por elas. Neste<br />

caso a tradução possibilita, por um lado, que esse povo tenha contato com a maneira<br />

pela qual o estrangeiro o vê. Por outro lado, as notícias traduzidas podem evidenciar<br />

também o olhar dos brasileiros sobre si mesmos, olhar que inevitavelmente é expresso<br />

pela tradução devido ao seu poder de produzir sentidos, conforme lembra Arrojo (1992).<br />

São diversas as representações culturais do Brasil e de seu povo perceptíveis nos<br />

textos publicados pelo New York Times. No presente trabalho, a representação estudada<br />

é a da violência como aspecto afim aos brasileiros e ao seu país. O foco deste trabalho é<br />

qual a leitura que o jornal estrangeiro realiza da questão da violência no Brasil e como a<br />

tradução das notícias, além de trabalhar com o olhar do Outro, permite que se perceba a<br />

forma como os próprios brasileiros vêem a violência em seu país.<br />

O acesso às notícias foi realizado por meio do site do The New York Times,<br />

doravante NYT (disponível em www.nytimes.com). As traduções foram fornecidas pelo<br />

site do jornal Último Segundo, doravante US<br />

(www.ultimosegundo.ig.com.br/new_york_times) e do provedor UOL (www.<br />

uol.com.br/jornais), sendo que apenas essa última fonte informa o nome do tradutor das<br />

notícias.<br />

A violência foi escolhida como representação cultural a ser estudada pelo fato de<br />

ser um aspecto freqüentemente associado ao caráter dos brasileiros. Sobre isso, o<br />

antropólogo norte-americano Joseph Page (1995, p. 11) declara que<br />

a proclamada meiguice dos brasileiros freqüentemente oculta o lado obscuro de sua<br />

natureza – uma capacidade de violência extrema que passa como uma corrente suja por<br />

sob a história do país, do período colonial até os dias atuais.¹<br />

De forma similar, Ginzburg (2003), refletindo sobre a melancolia na cultura<br />

brasileira, afirma que esta se deveria “à forte presença da violência em nossa história<br />

política e social” (p. 58). Para o autor, essa violência teria sido particularmente intensa e<br />

sistemática em períodos como a ditadura militar, mas não se restringiria a essa época,<br />

“perpassando a história do país” (p. 58). Em raciocínio semelhante, Schollhammer<br />

(2000) afirma que a violência tem um papel constitutivo na cultura brasileira.<br />

De um modo geral, o NYT veiculou, no período de outubro de 2005 a maio de<br />

2006, uma visão negativa a respeito da situação da violência no Brasil, e que se<br />

configura na representação de um país extremamente violento. Os três principais subtemas<br />

das notícias sobre a violência foram: a abertura dos arquivos da ditadura militar, a<br />

campanha pelo desarmamento promovida pelo governo federal brasileiro em 2005 e a<br />

156 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 155-161, maio-ago. 2008


onda de assassinatos provocada pelo crime organizado no estado de São Paulo no ano<br />

de 2006. Nos cinco exemplos analisados a seguir são apontados os principais elementos<br />

que levam à caracterização de um Brasil violento.<br />

O exemplo (1), que trata da abertura dos arquivos ditatoriais, é o título de uma<br />

notícia escrita por Larry Rohter, publicada em 25 de dezembro de 2006 e traduzida<br />

pelos dois sites, sendo a tradução do UOL de George Andolfato.<br />

(1) Brazil Opens Former Dictatorship’s Files, a Bit (NYT, acesso em: 25 dez.<br />

2005)<br />

Brasil abre arquivos dos antigos governos militares (US, acesso em: 25<br />

dez. 2005)<br />

Brasil abre arquivos da antiga ditadura, um pouco (UOL, acesso em: 25<br />

dez. 2005)<br />

Neste caso, o NYT informa sobre a abertura dos arquivos da ditadura mas faz<br />

uma ressalva em relação à sua abrangência (“a bit”), indicando que tal abertura era<br />

apenas parcial. Essa ressalva é omitida pela tradução do US e mantida apenas pelo UOL<br />

(“um pouco”). A expressão “ditadura militar” é evitada pela tradução do US, algo que,<br />

assim como a demora na abertura dos arquivos desse período, enfatizada em outros<br />

trechos da notícia, pode ser associado a uma dificuldade de lidar com a memória<br />

proveniente dessa fase da história do país. A possível dificuldade de rever períodos<br />

conturbados da história do Brasil é associada por Ribeiro (1999) a uma espécie de<br />

trauma coletivo, causado pelos diversos períodos de violência extrema na história do<br />

país que teriam ficado marcados na memória dos brasileiros. Para o autor, a<br />

impossibilidade de superar o horror acumulado em séculos de violência seria<br />

influenciada pela falta de autoconsciência e articulação interna por parte da sociedade<br />

brasileira.<br />

O exemplo (2) foi retirado de uma notícia sobre a campanha do desarmamento,<br />

escrita por Larry Rohter, publicada em 20 de outubro de 2005 e traduzida apenas pelo<br />

US. Assim como no exemplo (1), o título da notícia é o objeto de análise.<br />

(2) Gun-Happy Brazil Hotly Debates a Nationwide Ban (NYT, acesso em: 20<br />

out. 2005)<br />

Brasil discute desarmamento (US, acesso em: 20 out. 2005)<br />

Aqui nota-se que a representação do Brasil realizada pelo NYT é construída por<br />

meio de predicações atribuídas ao país (“gun-happy”) e também à forma como se dá o<br />

debate sobre o desarmamento (“hotly”). Tem-se aí uma leitura do estrangeiro que coloca<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 155-161, maio-ago. 2008<br />

157


o Brasil como um país que teria afeição pelas armas e que, talvez por isso, discute um<br />

assunto relacionado à sua possível proibição com calor e entusiasmo. A tradução do US<br />

omite todos esses elementos, de forma que o leitor brasileiro fica apenas com o núcleo<br />

da informação e não vê a forma como seu país está sendo lido pelo Outro,<br />

principalmente com relação a um suposto gosto por armas de fogo.<br />

No exemplo (3), retirado da mesma notícia, a tradução atua de forma<br />

semelhante, no que se refere à omissão de uma representação controversa.<br />

(3) Brazilians have a startling propensity to shoot one another (NYT, acesso<br />

em: 20 out. 2005)<br />

Rohter realiza uma afirmação bastante negativa a respeito dos brasileiros, uma<br />

representação na qual esse povo é visto pelos norte-americanos como tão violento que<br />

teria até a propensão de atirar em seus compatriotas. Além disso, essa violência que lhes<br />

é associada não é colocada como algo momentâneo ou passageiro, mas já seria uma<br />

espécie de tendência.<br />

Essa representação é totalmente omitida pela tradução, devido provavelmente ao<br />

seu caráter controverso. Os casos (1), (2) e (3), dentre outros em que também se notou<br />

uma tendência semelhante por parte da tradução, levam a concluir que a realização de<br />

suavizações ou omissões é, em alguns casos, influenciada pelo grau depreciativo da<br />

representação, na qual imagens fortemente negativas tendem a ser amenizadas ou<br />

omitidas, o que pode indicar que não seriam aceitas pelo público leitor brasileiro.<br />

O trecho seguinte diz respeito à onda de assassinatos em série promovidos pelo<br />

crime organizado no estado de São Paulo em 2006. A notícia “Police Are Criticized in<br />

Wave of Gang Violence in Brazil”, novamente escrita por Rohter, é de 30 de maio de<br />

2006 e foi traduzida pelo US como “Polícia de São Paulo é criticada por onda de<br />

violência” e pelo UOL (por George Andolfato) como “Polícia criticada em onda de<br />

violência de gangue no Brasil”.<br />

(4) Police Are Criticized in Wave of Gang Violence in Brazil<br />

The street combat between the police and criminal gangs that left at least<br />

186 people dead and brought this metropolis of nearly 20 million people<br />

to a halt two weeks ago has ceased, at least for now” (NYT, acesso em: 30<br />

maio 2006)<br />

Polícia de São Paulo é criticada por onda de violência<br />

Os combates de rua entre a polícia e gangues criminosas que deixaram<br />

pelo menos 186 mortos e fizeram essa metrópole de 20 milhões de<br />

pessoas parar há duas semanas terminaram, pelo menos por enquanto<br />

(US, acesso em: 30 maio 2006)<br />

Polícia criticada em onda de violência de gangue no Brasil<br />

Os confrontos de rua entre a polícia e gangues de criminosos que<br />

158 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 155-161, maio-ago. 2008


deixaram ao menos 186 mortos e levaram esta metrópole de quase 20<br />

milhões de habitantes a parar duas semanas atrás cessou, ao menos por<br />

enquanto (UOL, acesso em: 30 maio 2006)<br />

Rohter, ao fim da passagem, sugere ao seu leitor que a qualquer momento a<br />

onda de violência poderia voltar e ambas as traduções reconstroem a atmosfera de<br />

perigo iminente para o leitor brasileiro. Além disso, cabe destacar as traduções do termo<br />

“gang” e das expressões nas quais esse nome aparece. Na quase totalidade das<br />

ocorrências esse substantivo é traduzido por “gangue”.<br />

A tradução de “gang” por “gangue”, que se mostra recorrente, pode ser<br />

considerada uma estratégia de suavização, já que leva o leitor brasileiro a realizar<br />

associações distintas e menos negativas em relação àquelas desencadeadas pelo termo<br />

“quadrilha” e pelas expressões “facção criminosa” e “crime organizado”, mais<br />

comumente utilizadas pela mídia brasileira. A esse respeito, Arrojo (1992) afirma que as<br />

convenções contextuais estabelecidas pela comunidade cultural receptora da tradução<br />

muitas vezes são parâmetros adequados na orientação de escolhas tradutórias, o que<br />

significa que o tradutor pode dar preferência a termos ou expressões já construídos e<br />

consagrados pelo uso dessa comunidade.<br />

O substantivo “gang” volta a aparecer numa expressão no trecho (5), em que há,<br />

pela única vez, uma tradução que se aproxima da maneira como a mídia brasileira se<br />

refere aos grupos criminosos do Brasil. Essa exceção refere-se à segunda ocorrência do<br />

termo, na tradução do US. A notícia foi escrita por Paulo Prada e intitulada “5 Days of<br />

Violence by Gangs in São Paulo Leaves 115 Dead Before Subsiding”. O texto foi<br />

publicado em 17 de maio de 2006, traduzido pelo US como “Violência se acalma em<br />

São Paulo” e pelo UOL como “Violência diminui em São Paulo” (tradução de George<br />

Andolfato).<br />

(5) Government officials also dismissed local news reports that the police<br />

had used the crisis to kill suspects they had previously singled out as<br />

gang members. A police crackdown during the battles led to the arrest of<br />

more than 100 suspected gang members and the killing of 71 (NYT,<br />

acesso em: 17 maio 2006)<br />

Funcionários do governo também negaram a jornalistas da mídia local<br />

que a polícia havia usado a crise para matar suspeitos que haviam,<br />

anteriormente, classificado como membros da gangue. Uma invasão<br />

policial durante os combates levou à detenção de mais de 100<br />

supostamente membros da facção criminal e à morte de 71 pessoas (US,<br />

acesso em: 17 maio 2006)<br />

As autoridades do governo também negaram os relatos da imprensa local<br />

de que a polícia usou a crise para matar suspeitos que já tinham sido<br />

identificados como membros da gangue. A reação policial durante os<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 155-161, maio-ago. 2008<br />

159


confrontos levaram à prisão de mais de 100 suspeitos e à morte de 71<br />

(UOL, acesso em: 17 maio 2006)<br />

Deve-se destacar também a escassa tradução das notícias publicadas pelo NYT<br />

sobre os ataques da quadrilha PCC (Primeiro comando da capital) no estado de São<br />

Paulo em 2006. Sobre esse período, o jornal norte-americano publicou 15 notícias,<br />

quase diariamente e, às vezes, até duas notícias no mesmo dia. Porém, apenas duas delas<br />

foram traduzidas: a que noticiava a diminuição da onda de violência e a que criticava a<br />

atuação da polícia paulista durante os ataques. Com tamanha cobertura do NYT, bem<br />

como de outros jornais estrangeiros, o público norte-americano tinha um amplo<br />

conhecimento do que ocorria no Brasil naqueles dias, inclusive com relação ao<br />

crescente número de mortos. O público brasileiro, por sua vez, também atingido por<br />

uma avalanche de notícias produzidas por jornais brasileiros sobre a escalada da<br />

violência, não tinha acesso à leitura que os estrangeiros faziam da situação. Assim, os<br />

brasileiros que consultavam as traduções do NYT e não encontravam lá artigos sobre os<br />

ataques, podiam ter a impressão de que um caso tão singular na história social recente<br />

do país não chamava a atenção da imprensa estrangeira, já que aparentemente não<br />

estava sendo noticiado por um jornal importante e reconhecido como o NYT.<br />

Considerações finais<br />

A representação da violência no Brasil construída pelo NYT permite a leitura de<br />

que a violência é um elemento inerente ao caráter brasileiro. Neste estudo, a tradução<br />

restringe relativamente a possibilidade de que o leitor brasileiro perceba como o<br />

estrangeiro vê a questão da violência no Brasil e, ao mesmo tempo, os textos traduzidos<br />

questionam a representação que os próprios brasileiros realizam de si mesmos como um<br />

povo violento.<br />

Assim, pode-se afirmar que a construção que o NYT realiza da violência como<br />

um aspecto bastante afim aos brasileiros é uma leitura até possibilitada pela tradução,<br />

embora de maneira bem menos enfática que aquela autorizada pelo texto em inglês, o<br />

que se deve às suavizações e cortes realizados no texto em português. É possível dizer<br />

que, neste caso, a rejeição da imagem de um Brasil e de brasileiros violentos, por parte<br />

das notícias traduzidas, deve-se à omissão ou suavização da maioria das imagens<br />

consideradas demasiadamente fortes.<br />

Além disso, o fato de grande parte das notícias a respeito dos ataques do PCC<br />

em São Paulo publicadas pelo NYT não ter sido traduzida, assim como a realização das<br />

suavizações e dos cortes demonstrados na análise dos exemplos, pode indicar uma<br />

estratégia tradutória que ameniza a construção da imagem, constantemente retomada<br />

pelo estrangeiro, da violência no Brasil. Esse apagamento da representação da violência<br />

nas traduções pode desfavorecer a iniciativa dos leitores brasileiros de refletirem,<br />

discutirem e se posicionarem sobre o tema, auxiliando sua aceitação e conseqüente<br />

banalização.<br />

160 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 155-161, maio-ago. 2008


Nota<br />

“[…] the celebrated sweetness of Brazilians often obscures the dark side of their<br />

natures – a capacity for extreme violence that runs like a murky undercurrent<br />

throughout the history of the land, from the colonial period up to the present day”.<br />

Referências bibliográficas<br />

ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. 2.ed. São Paulo: Ática,<br />

1992.<br />

CARBONELL, Ovídio. The Exotic Space of Cultural Translation. In: ÁLVAREZ,<br />

Román; VIDAL, M. Carmen-África (Ed.). Translation, Power, Subversion.<br />

Philadelphia: Multilingual Matters LTD, 2006, p. 79-98.<br />

GINZBURG, Jaime. Literatura brasileira: autoritarismo, violência, melancolia. Revista<br />

de Letras, São Paulo, 43 (1), p. 27-70, 2003.<br />

MARIANI, Bethania Sampaio Corrêa. O PCB e a Imprensa: os comunistas no<br />

imaginário dos jornais (1922-1989). Campinas: Pontes, 1998.<br />

PAGE, Joseph A. The Brazilians. Massachusetts: Addison-Wesley, 1995.<br />

RIBEIRO, Renato Janine. A dor da injustiça. In: COSTA, Jurandir Freire. Razões<br />

públicas, emoções privadas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.<br />

SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura<br />

brasileira. In: PEREIRA, Carlos Alberto et al. Linguagem da violência. Rio de<br />

Janeiro: Rocco, 2000.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 155-161, maio-ago. 2008<br />

161


Relações discurso-história em “Curtamão”,<br />

de Guimarães Rosa, e sua versão alemã<br />

Gilca Machado Seidinger<br />

Universidade Estadual Paulista (UNESP – CAr)<br />

gilcaseidinger@hotmail.com<br />

Abstract. A version can be either the literal translation of a text or a<br />

translation, and also “any interpretation of a given issue”. The polysemy of<br />

such a word is the starting point of our work, which focuses on the João<br />

Guimarães Rosa’s short story entitled “Curtamão”, extracted from the book<br />

Tutaméia, and its German version signed by Curt Meyer-Clason in<br />

collaboration with Horst Nitschack. We suppose that the close relationship<br />

between narration, focus and story, typical of a piece like this (essentially<br />

poetic even though it is a narrative), has suffered changes which we try to map<br />

with the aid of Gerárd Genette’s narratology.<br />

Keywords. Guimarães Rosa; Tutaméia; translation; narratology.<br />

Resumo. Uma versão pode ser a tradução literal de um texto, ou<br />

simplesmente tradução, mas também “cada uma das interpretações do mesmo<br />

ponto”. A polissemia desse vocábulo é o ponto de arranque do presente<br />

trabalho, que se volta para a narrativa de João Guimarães Rosa em tradução<br />

– “Curtamão”, de Tutaméia, e sua versão alemã, assinada por Curt Meyer-<br />

Clason, com a colaboração de Horst Nitschack. A hipótese que motiva a<br />

análise é a de que a estreita relação da expressão com o conteúdo –<br />

característica de uma obra como essa, essencialmente poética, posto que<br />

narrativa – sofreu alterações, que tentamos mapear, com o apoio da<br />

narratologia genettiana.<br />

Palavras-chave. Guimarães Rosa; Tutaméia; tradução; narratologia.<br />

O presente trabalho volta-se para a narrativa de João Guimarães Rosa em<br />

tradução: “Curtamão”, de Tutaméia, e sua versão alemã, realizada por Curt Meyer-<br />

Clason, em colaboração com Horst Nitschack. 1 O objetivo é verificar, com base na<br />

narratologia genettiana, em que medida relações entre narração, focalização e história<br />

identificáveis no discurso narrativo original se alteram com a tradução. Cremos que os<br />

pares discurso-história, nos dois idiomas, dificilmente podem estabelecer relações de<br />

mesma ordem. A estreita relação da expressão com o conteúdo, característica dessa obra<br />

– essencialmente poética, posto que narrativa –, pode ter se alterado.<br />

As alterações na relação discurso-história desencadeadas pela tradução podem, a<br />

nosso ver, ser de duas ordens distintas: aquelas inevitáveis, fruto das incontornáveis<br />

diferenças lingüístico-culturais entre dois contextos enunciativos distintos; outras,<br />

vinculadas mais ao partido adotado na tradução, a partir das escolhas lexicais e<br />

sintáticas envolvidas nesse processo, as quais conformam, pela via do discurso<br />

narrativo, as demais instâncias da narrativa, escolhas essas que, pelo menos em<br />

hipótese, poderiam ter se dado de outra forma.<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 163-168, maio-ago. 2008<br />

163


Vale registrar ainda outra consideração de ordem mais geral e teórica, antes de<br />

passarmos à análise. Trata-se do fato de que a tradução cria um novo nível enunciativo,<br />

que engloba o da narrativa do texto-fonte, como se pode verificar no quadro abaixo,<br />

extraído do artigo “Narratology meets translations studies, or, The voice of the<br />

translator in children’s literature”, de Emer O’Sullivan (2003):<br />

Não discutiremos, neste momento, esse modelo em profundidade; lembremos,<br />

entretanto, que o conceito de autor implicado, empregado por ele, é visto como<br />

problemático por estudiosos da teoria da narrativa, entre eles Gerárd Genette. Não<br />

obstante, considerar, em termos teóricos, a existência desse novo nível no esquema da<br />

comunicação narrativa, no caso do discurso literário em tradução, pode auxiliar a ver<br />

com outros olhos o que nos habituamos a considerar simplesmente erros de tradução.<br />

Levar em conta a presença do tradutor significa conferir-lhe visibilidade, dar-lhe voz,<br />

autorizando-o, por assim dizer, em seu ato enunciativo, permitindo-nos também<br />

equacionar melhor as alterações na relação discurso-história promovidas pela<br />

“enunciação tradutória”. 2<br />

Partimos do pressuposto de que, grosso modo, não tenha havido supressões ou<br />

omissões e de que a tradução tenha sido “fiel” ao discurso narrativo de origem,<br />

transpondo “integralmente” o conteúdo narrativo por ele veiculado. Assim, por<br />

exemplo, o fazer do protagonista como construtor e o resultado desse fazer – a casa<br />

construída – são correlatos nos dois textos, uma vez que em ambos uma casa se ergue, a<br />

mais moderna – Das modernste – comportando traços semanticamente equivalentes,<br />

feita de pedra e cal, “tijolaria areias cimento”, ou Stein und Kalk, Backsteine, Sand,<br />

Zement.<br />

Na transposição da narrativa ao idioma-alvo, em princípio, mantém-se o ponto<br />

de vista, pois a perspectiva permanece inalterada, a focalização é a mesma. Mantém-se<br />

também, de modo geral, a quantidade da informação narrativa, uma vez que a<br />

proximidade do narrador em relação aos fatos narrados, que a determina, é idêntica nos<br />

dois casos: aquele que constrói a casa é o mesmo que conta a história da casa, em<br />

164 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 163-168, maio-ago. 2008


“Curtamão” e em “Stellmaß”, e a quantidade de informação de que esse narrador dispõe<br />

sobre os fatos que narra é, nos dois casos, em teoria, exatamente a mesma. Poderíamos<br />

supor, então, que essa dimensão, a da informação narrativa, não seria afetada com a<br />

tradução. Resta saber, entretanto, se a informação que chega ao leitor é exatamente a<br />

mesma nos dois casos, e aqui já somos obrigados a pensar a questão com mais vagar.<br />

Relata esse narrador, ao contar a história da casa: “A obra abria” (ROSA, 1976,<br />

p. 36). Conforme indica a precisa análise de Leonel (2003, passim), “obra” aqui<br />

significa mais que a casa, apenas: é também a obra de arte, é também a literatura, é a<br />

própria narrativa que se erige. Para nós, hoje é impossível, por exemplo, a partir desse<br />

enunciado, não pensar no título da conhecida obra de Umberto Eco – cuja primeira<br />

edição, aliás, data de 1962, cinco anos antes da primeira edição de Tutaméia –, e tudo<br />

que ele implica. Para o leitor da narrativa em alemão, essa associação já não seria tão<br />

direta, senão impossível, pois o enunciado: “Das Werk gedieh” (ROSA, 1994, p. 52),<br />

embora permita pensar em “obra” e seus múltiplos sentidos, ao empregar o verbo<br />

gedeihen – prosperar; medrar, crescer; atingir grande porte; dar bons resultados<br />

(LANGENSCHEIDT, 1982, p. 833) – evoca outras associações, conduz a interpretação<br />

distinta. É de se crer que desta estaria excluída aquela sugerida a nós pelo enunciado em<br />

português, provocada pela co-ocorrência de “obra” e do sema abrir.<br />

Por outro lado, essa escolha da tradução abre-se para o campo semântico da<br />

biologia, da botânica, campo que ocuparia, para o leitor da narrativa original, um plano,<br />

no mínimo, secundário; além disso, a opção da tradução por esse vocábulo parece trazer<br />

em si um valor mais eufórico que o do enunciado em português, valor que se pode notar<br />

na idéia de crescimento e de “bons resultados”. Ressalte-se que não estamos querendo<br />

dizer que Guimarães Rosa tenha tido necessariamente algum contato com o livro de<br />

Eco, que o enunciado seja uma referência direta à obra do semioticista italiano, ainda<br />

que isso tivesse sido cronologicamente possível, mas, sim, queremos ressaltar que, com<br />

a tradução, a informação narrativa veiculada sofre transformações que alteram os efeitos<br />

de sentido possíveis, conferindo caráter um pouco distinto aos dois textos e<br />

estabelecendo, conforme nossa hipótese inicial, novas relações entre o conteúdo<br />

narrativo e o enunciado que o configura.<br />

O tradutor é, em última instância, um leitor e, como todo leitor, está sujeito à<br />

deriva do sentido. Ademais, ao verter a obra em questão, este tem que se haver com a<br />

polissemia, com a abertura do sintagma, com a “dificuldade de atribuição de sentido a<br />

uma palavra ou a um conjunto de palavras graças a uma estratégia de distaxia – isto é,<br />

afastamento dos termos, desvio de sua ordem e organização convencional” (SPERBER,<br />

1982, p. 7), que, segundo a autora, é característica do discurso narrativo em Tutaméia.<br />

Tomemos um pequeno exemplo: o protagonista-narrador de “Curtamão”, a certa<br />

altura, refere-se a suas ambições como construtor-arquiteto; com isso, descreve também<br />

o edifício verbal que erige ao relatar a história da casa, o qual, com efeito, nada tem de<br />

ordinário: “Só me valendo o extraordinário” (ROSA, 1976, p. 37). Esse enunciado, a<br />

rigor, contraria as normas da língua, ao trazer como única forma verbal o gerúndio; a<br />

ele, corresponde, em alemão, uma oração com verbo conjugado, na terceira pessoa do<br />

imperfeito: “Für mich zählte nur das Außergewöhnliche” (ROSA, 1994, p. 53; grifo<br />

nosso). 3<br />

De acordo com Genette ([1984], p. 164-5), a quantidade de informação<br />

relaciona-se também a determinações de ordem temporal, tanto quanto ao grau de<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 163-168, maio-ago. 2008<br />

165


presença da instância narrativa, remetendo-nos assim, respectivamente, às duas outras<br />

grandes categorias em que se divide a teoria genettiana, além do modo, a saber: a do<br />

tempo e a da voz. Quanto a esta última, levanta-se uma questão ligada às funções que o<br />

narrador pode exercer, segundo os aspectos da narrativa que sejam privilegiados: função<br />

narrativa (destaque para a história em si), de regência (ênfase na organização interna do<br />

texto narrativo), de comunicação (destaque para a situação narrativa e seus<br />

protagonistas), testemunhal ou de atestação (privilégio da relação afetiva, moral e/ou<br />

intelectual do narrador com a história) e função ideológica (presença de intervenções<br />

didáticas, comentários explicativos e justificativos) (GENETTE, [1984], p. 254-5).<br />

Parece ser possível afirmar que a função narrativa ganharia destaque maior no<br />

texto-alvo do que tem no texto-fonte. De acordo com Leonel: “Tão importante quanto a<br />

diegese, formando com ela uma unidade, é o relato da história da casa, a enunciação”<br />

(LEONEL, 2003, p. 115). Essa dimensão discursiva, que no texto em português tem<br />

posição de destaque, sofre, natural e automaticamente, o maior impacto ao passar pelo<br />

processo tradutório; daí decorre que o outro pólo, o da história, se destaque mais em<br />

relação ao do discurso, uma vez vertido o texto a outro idioma.<br />

A função de regência, por exemplo, embora não seja assim classificada por<br />

Leonel, tem sua presença constatada pela autora ao comentar a prolepse, “prerrogativa<br />

do sujeito narrador” (LEONEL, 2003, p. 116), que antecipa o desenlace do conto, ao<br />

referir-se à casa construída já no segundo parágrafo do texto, e é preservada pelo<br />

processo tradutório: “das Haus mit seinem Ruf und der Vorstellung von ihm” (ROSA,<br />

1994, p. 49) correspondendo a “a casa, esta, em fama e idéia” (ROSA, 1976, p. 34).<br />

Tanto a função de comunicação, ligada à situação narrativa, ao fazer do narrador,<br />

quanto a testemunhal ou de atestação, que privilegia a relação do narrador com a<br />

história, são também relevantes nessa narrativa. Como estamos aqui no domínio da voz,<br />

no caso da tradução importa reconhecer que a voz que narra é a mesma, pois se trata da<br />

mesma figura, do protagonista-narrador, mas também não é, se atentarmos para o fato<br />

de que essa voz é retransmitida pelo tradutor. E o narrador, em “Stellmaß”, fala alemão.<br />

A situação narrativa, encenada no conto por meio da instalação do narrador e do<br />

narratário, em princípio também se mantém a mesma, já que tais figuras estão presentes<br />

também no texto-alvo, embora haja diferenças que modificam a imagem do protagonista<br />

que pode ser construída pelo leitor dos diferentes textos. Isso se pode notar no seguinte<br />

exemplo: “Oficial pedreiro, forro, eu era, nem ordinário nem superior” (ROSA, 1976, p.<br />

34), em que tomamos o adjetivo “forro” por “livre”, “autônomo”. O enunciado narrativo<br />

da tradução traz, por sua vez, “Ich war als Maurer angestellt, Verschaler, weder<br />

gewöhnlich noch hochrangig” (ROSA, 1994, p. 49), a partir do qual se constrói a<br />

imagem de um empregado contratado, com base no significado de “angestellt”, e no<br />

qual há, além disso, a presença do substantivo “Verschaler”; ora, “verschalen” é<br />

“cofrar”, “forrar”, relacionando-se ao substantivo “forro”. Com isso, o protagonistanarrador<br />

ganha traços que não tinha na narrativa-fonte, entre eles uma especialização –<br />

o que, supõe-se, teria efeitos, entre outros, em sua relação com a obra que constrói e<br />

com a história que narra.<br />

A chamada função testemunhal diz respeito à relação afetiva e intelectual do<br />

narrador com a história (GENETTE, [1984], p. 254) e tem destacada importância na<br />

narrativa em questão, conforme a análise de Leonel já citada. Na medida em que se crê<br />

que a tradução nada poderia ou deveria alterar quanto aos fatos, nem quanto às paixões<br />

166 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 163-168, maio-ago. 2008


do sujeito protagonista, a casa que ele constrói continua (ou supõe-se que deveria<br />

continuar) tendo para o protagonista em “Stellmaß” a mesma importância que tem para<br />

aquele de “Curtamão”. Afirma Leonel (2003, p. 120): “Nessa narrativa metaficcional, a<br />

arte e a vida, identificadas, devem pautar-se pelo ‘desconforme a reles usos’, pelo<br />

propor e aceitar desafios, pela busca do incomum”.<br />

Ao enunciado “desconforme a reles usos” corresponde, em alemão, “entgegen<br />

gewöhnlichem Brauch” (ROSA, 1994, p. 51). Dessa expressão, destaquemos, neste<br />

momento, apenas “reles”, que segundo o dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda<br />

Ferreira (1986, p. 1479), remete a “muito ordinário, baixo, desprezível”, ou ainda “sem<br />

valor, insignificante, pífio”, enquanto o correspondente “gewöhnlich”, embora também<br />

dicionarizado como “ordinário” ou “vulgar”, traz em primeiro plano a idéia de algo<br />

corrente, habitual, banal, remetendo predominantemente à noção de “costumeiro”<br />

(LANGENSCHEIDT, 1982, p. 850). Assim, a partir da diferença entre o valor de<br />

“reles” e o de “gewöhnlich”, aquilo que se ergue de acordo com moldes habituais tem<br />

um traço mais fortemente disfórico no texto em português do que aquele que tem em<br />

alemão, e isso vale tanto para a casa quanto para a obra de arte, ou ainda para o discurso<br />

narrativo, tendo em vista a dimensão metalingüística a que a narrativa nos conduz.<br />

Vejamos, finalmente, a chamada função ideológica, que Genette ([1984], p. 255)<br />

relaciona à presença de intervenções didáticas, comentários explicativos e justificativos.<br />

De forma geral, podemos supor, mais uma vez acreditando que a tradução não omitiu<br />

enunciados, que todos os comentários dessa ordem tenham sido, de uma forma ou de<br />

outra, transpostos ao alemão, como parece realmente ter sido o caso aqui.<br />

Entretanto, neste caso, afirmar que com isso a dimensão ideológica da narrativa<br />

foi preservada não parece ser assim tão simples. Talvez devamos entender a função<br />

ideológica, que Genette relaciona à presença de intervenções didáticas e comentários<br />

explicativos (GENETTE, [1984], p. 255), no trato com a obra em questão, de forma<br />

ampliada, ou seja, não necessariamente vinculada à presença de “enxertos” explicativos,<br />

de comentários marginais, mas sim, antes, como capturável ao rés do discurso, em sua<br />

base, no léxico e na sintaxe que o conformam. 4<br />

A distaxia parece estar na base dessa função, assim como aqui a entendemos. Na<br />

narrativa em português, isso se faz mais visível, ou audível; porém, no discurso<br />

narrativo em alemão, não nos parece ocorrer o mesmo, e o o que se disse acima acerca<br />

do enunciado “Só me valendo o extraordinário” (ROSA, 1976, p. 37) pode ser tomado<br />

como paradigmático. Muitos outros exemplos poderiam ser localizados ao longo dessa<br />

narrativa, como nas outras trinta e nove que compõem a obra, ou nos quatro prefácios<br />

que a integram, estes também vazados em um discurso que aciona procedimentos muito<br />

semelhantes aos que as narrativas em si também empregam.<br />

É possível considerarmos que há uma perda dessa função ideológica “ampliada”,<br />

e isso altera em sua base aquilo que entendemos ser uma característica fundamental da<br />

obra; as conseqüências dessa alteração, localizadas numa dimensão em que noções<br />

como “erro de tradução” são de pouca utilidade, não devem ser desprezadas. Tentar<br />

verificar, porém, se trata aqui de uma ou de outra, dentre as duas ordens de alterações<br />

que acreditamos ocorrer na tradução, é matéria para uma próxima discussão.<br />

Notas<br />

ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 163-168, maio-ago. 2008<br />

167


1<br />

No contexto em que este trabalho se desenvolve, torna-se fundamental reconhecer a<br />

voz do(s) tradutor(es) e seu papel no esquema da comunicação narrativa; assim,<br />

lembramos aqui, desde já, essa presença fundamental, naturalmente mencionada nas<br />

Referências Bibliográficas, mas frisamos que, ao longo do trabalho, a indicação<br />

“ROSA, 1994” supõe também a enunciação da tradução.<br />

2<br />

Essa expressão, apesar de não ser encontradiça na bibliografia sobre tradução, não nos<br />

parece de todo impossível ou inadequada, e tem aqui o valor de uma sugestão.<br />

3<br />

Guimarães Rosa, em carta a Harriet de Onís, tradutora de parte de sua obra para o<br />

inglês, comenta a versão de “Minha gente” e, referindo-se também a “Sarapalha”, avisa:<br />

“Importante: nunca mudar os tempos dos verbos. (Retocar, neste particular, o ‘THE<br />

STRAW SPINNERS)” (carta de 04.nov.1964, disponível no Instituto de Estudos<br />

Brasileiros/USP, Arquivo João Guimarães Rosa, Série Correspondência com<br />

Tradutores, pasta CT2C). Se havia até mesmo certa liberalidade quanto a outros<br />

aspectos da tradução, este, na opinião do autor, merecia grande cuidado.<br />

4<br />

Cf. “A ‘vastidão da amplidão’, ou Estória e História em Guimarães Rosa”<br />

(SEIDINGER, 2007), em que se enfoca a presença estrutural do elemento histórico em<br />

Tutaméia, consubstanciado no e pelo discurso.<br />

Referências bibliográficas<br />

GENETTE, G. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega, [1984].<br />

LANGENSCHEIDTS Taschenwörterbuch. Berlim/Munique/Viena/Zurique:<br />

Langenscheidt, 1982.<br />

LEONEL, M. C. M. De alvenel a arquiteto: o espaço em “Curtamão” de Guimarães<br />

Rosa. Rev. ANPOLL, n. 14, p. 105-123, jan./jun. 2003.<br />

O’SULLIVAN, E. “Narratology meets translations studies, or, The voice of the<br />

translator in children’s literature”. (2003). Disponível em:<br />

http://www.erudit.org/revue/meta/2003/v48/n1/006967ar.pdf. Acesso em:<br />

10.jul.2007.<br />

ROSA, J. G. Tutaméia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.<br />

_____. Tutaméia. Trad. Curt Meyer-Clason, colab. Horst Nitschak. Colônia:<br />

Kiepenheuer & Witsch, 1994.<br />

SEIDINGER, G. M. A “vastidão da amplidão”, ou Estória e História em Guimarães<br />

Rosa. Estudos Lingüísticos, Araraquara, <strong>GEL</strong>, v. XXXVI, n. 3, set./dez.2007.<br />

Disponível em: http://gel.org.br/4publica-<strong>estudos</strong>-2007/<strong>revista</strong>20064_3.htm.<br />

Acesso em: 28.set.2007.<br />

SPERBER, S. F. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática, 1982.<br />

168 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS, São Paulo, 37 (2): 163-168, maio-ago. 2008

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!