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Luciano Rodrigues Costa - Programa de Pós-Graduação em ...

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LUCIANO RODRIGUES COSTA<br />

HOMENS DE OURO:<br />

Trabalho e Conhecimento entre os Garimpeiros Clan<strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> Ouro da<br />

Região <strong>de</strong> Mariana<br />

Tese apresentada à Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />

<strong>de</strong> Viçosa, como parte das exigências do<br />

<strong>Programa</strong> <strong>de</strong> <strong>Pós</strong>-<strong>Graduação</strong> <strong>em</strong> Extensão<br />

Rural, para obtenção do título <strong>de</strong><br />

“Magister Scientiae”.<br />

VIÇOSA<br />

MINAS GERAIS - BRASIL<br />

2002


AGRADECIMENTOS<br />

Nestes dois anos várias pessoas contribuíram para este novo aprendizado<br />

que se estabeleceu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a minha chegada à Viçosa.<br />

Em primeiro lugar agra<strong>de</strong>ço aos garimpeiros <strong>de</strong> Monsenhor Horta pela<br />

acolhida s<strong>em</strong>pre calorosa e pela disponibilida<strong>de</strong> <strong>em</strong> respon<strong>de</strong>r as minhas<br />

incessantes dúvidas. S<strong>em</strong> esta relação amigável seria impossível a realização da<br />

pesquisa <strong>de</strong> campo.<br />

Ao meu orientador Prof. Fábio Faria Men<strong>de</strong>s, pela sua acolhida na UFV e<br />

pela sua orientação sensata, serena, generosa e s<strong>em</strong>pre disponível, com qu<strong>em</strong><br />

pu<strong>de</strong> estabelecer uma amiza<strong>de</strong> fraternal. Sua <strong>de</strong>dicação, compreensão,<br />

disponibilida<strong>de</strong> e respeito me fizeram acreditar que ser professor vale a pena.<br />

Ao Prof. Antônio Tomasi, conselheiro <strong>de</strong>ste trabalho, que v<strong>em</strong><br />

acompanhando minha trajetória acadêmica, e que s<strong>em</strong>pre se colocou a disposição<br />

para ajudar no que fosse possível, mostrando s<strong>em</strong>pre uma gran<strong>de</strong> confiança no<br />

meu trabalho.<br />

A Prof. Sheilla Maria Doula, também conselheira <strong>de</strong>ste trabalho, pela sua<br />

orientação sincera e s<strong>em</strong>pre muito enriquecedora para o resultado <strong>de</strong>sta pesquisa.<br />

<strong>de</strong>monstrado.<br />

Ao Professor José Ambrósio, pelo incentivo, respeito e confiança <strong>em</strong> mim<br />

Ao Prof Herbert Martins, que leu o projeto <strong>de</strong>ste trabalho e <strong>de</strong>u<br />

importantes sugestões. Amigo antigo, incentivador constante que s<strong>em</strong>pre<br />

acreditou no meu <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho. Obrigado Amigo!<br />

Aos funcionários da DER Graça, Tedinha e Rita pela convivência s<strong>em</strong>pre<br />

amistosa durante esses dois anos.<br />

Aos amigos que tive o prazer <strong>de</strong> conviver <strong>em</strong> Viçosa: Marcelo, Mariana,<br />

Nunes, Regis e Alessandra.<br />

ii


Lour<strong>de</strong>s.<br />

Aos velhos amigos: Bráulio, Fabrício (Bidu), Samuelson, Marthinha e<br />

A Eliana, minha mãe que s<strong>em</strong>pre me apoiou nas complicadas <strong>de</strong>cisões e<br />

s<strong>em</strong>pre se interessou <strong>em</strong> ajudar nas primeiras versões do texto. Seu apoio e<br />

compreensão foram fundamentais.<br />

E por último minha avó Ivone, que s<strong>em</strong>pre leu e corrigiu as primeiras<br />

versões, mas que não po<strong>de</strong> ver o resultado final. A ela <strong>de</strong>dico este trabalho.<br />

iii


iv<br />

Selvas, montanhas e rios<br />

Estão transidos <strong>de</strong> pasmo<br />

É que avançam, terra <strong>de</strong>ntro,<br />

Os homens alucinados.<br />

Levam guampas, levam cuias,<br />

levam flechas levam arcos;<br />

Atolam-se na lama negra,<br />

Escorregam por penhascos,<br />

Morr<strong>em</strong> <strong>de</strong> audácia e miséria<br />

Nesse t<strong>em</strong>erário assalto,<br />

Ambiciosos e avarentos<br />

Abomináveis e bravos,<br />

Por fortuitas riquezas<br />

Esten<strong>de</strong>ndo inquietos braços.<br />

_os olhos já s<strong>em</strong> clareza,<br />

_ os lábios secos e amargos.<br />

(que é feito <strong>de</strong> vós, ó sombras<br />

que o t<strong>em</strong>po leva <strong>de</strong> rastro?)<br />

E, atrás <strong>de</strong>les, filhos, netos ,<br />

Seguindo os antepassados ,<br />

Vêm <strong>de</strong>ixar a sua vida ,<br />

Caindo nos mesmos laços ,<br />

Perdidos na mesma se<strong>de</strong><br />

teimosos, <strong>de</strong>sesperados,<br />

por minas <strong>de</strong> prata e <strong>de</strong> ouro,<br />

curtindo <strong>de</strong>stino ingrato,<br />

<strong>em</strong>aranhado seus nomes<br />

para a glória e o <strong>de</strong>samparo,<br />

quando, dos perigos <strong>de</strong> hoje,<br />

outros nasc<strong>em</strong>, mais altos.<br />

Que a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro é s<strong>em</strong> cura,<br />

E, por ela subalugados ,<br />

Os homens matam-se e morr<strong>em</strong>,<br />

Ficam mortos, mas não fartos.<br />

( Ai, Ouro Preto, Ouro Preto,<br />

e assim fostes revelado)<br />

Cecília Meireles, <strong>em</strong> ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA


ÍNDICE<br />

Resumo................................................................................................................viii<br />

Abstract.................................................................................................................ix<br />

Introdução..............................................................................................................1<br />

Capítulo I<br />

Uma Visão Histórica Sobre os Garimpos <strong>de</strong> Ouro no Brasil.................................7<br />

1. Origens do Garimpo <strong>de</strong> Ouro no Brasil: Séculos XVIII e XIX .......................7<br />

2. O Garimpo <strong>de</strong> Ouro no Século XX.................................................................19<br />

3. As diversas Formas da Extração do Ouro.......................................................31<br />

Capítulo II<br />

O “Métier” e as Formas <strong>de</strong> Conhecimento no Trabalho......................................43<br />

1. O “Métier”.......................................................................................................44<br />

2. Trabalho, Conhecimento e a Noção <strong>de</strong> Competência......................................50<br />

3. O “Métier” <strong>de</strong> Garimpeiro...............................................................................63<br />

Capítulo III<br />

O Mundo do Trabalho Garimpeiro <strong>em</strong> Monsenhor Horta....................................67<br />

1. O Garimpo no Distrito <strong>de</strong> Monsenhor Horta..................................................69<br />

2. O Garimpo Artesanal Tradicional e as Técnicas <strong>de</strong> Extração do Ouro<br />

........................................................................................................................72<br />

3. A Ativida<strong>de</strong> Garimpeira S<strong>em</strong>i-Mecanizada <strong>em</strong> Monsenhor Horta e as<br />

Mudanças no “Métier” <strong>de</strong> Garimpeiro...........................................................78<br />

A Escolha do Terreno.................................................................................80<br />

A Abertura da Cava...................................................................................84<br />

A Apuração do Ouro.................................................................................90<br />

4. A Organização do Trabalho na Ativida<strong>de</strong> Garimpeira...................................93<br />

4.1. A Gestão no Trabalho Garimpeiro.....................................................93<br />

4.2. A Divisão do Trabalho na Ativida<strong>de</strong> Garimpeira..............................98<br />

4.3. A R<strong>em</strong>uneração na Ativida<strong>de</strong> Garimpeira.......................................103<br />

v


4.4. O Caráter Ilegal da Ativida<strong>de</strong>...........................................................106<br />

4.5. As Relações <strong>de</strong> Confiança na Ativida<strong>de</strong> Garimpeira........................111<br />

Discussão Final...................................................................................................115<br />

Referência Bibliográfica............................................................................................117<br />

Anexos...........................................................................................................................121<br />

vi


INDICE DE TABELAS<br />

1: Taxa De Rendimento Anual Das Oito Mais Rentáveis Empresas De Capital<br />

Britânico Instalados No Brasil..............................................................................18<br />

2: Formas <strong>de</strong> Organização Produtiva na Extração Mineral..................................38<br />

vii


RESUMO<br />

COSTA, <strong>Luciano</strong> <strong>Rodrigues</strong>, M.S., Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Viçosa, fevereiro <strong>de</strong><br />

2002. Homens <strong>de</strong> Ouro: Trabalho e Conhecimento entre os Garimpeiros<br />

Clan<strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> Ouro da Região <strong>de</strong> Mariana. Orientador: Fábio Faria<br />

Men<strong>de</strong>s. Conselheiros: Sheila Maria Doula e Antônio <strong>de</strong> Pádua Nunes<br />

Tomasi.<br />

Preten<strong>de</strong>u-se com este trabalho fazer um estudo sobre os garimpos<br />

clan<strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> ouro no Estado <strong>de</strong> Minas Gerais. A região escolhida foi o <strong>em</strong><br />

torno das cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> e Mariana, especialmente o distrito <strong>de</strong> Monsenhor Horta<br />

núcleo inicial do ciclo do ouro no Brasil. A ativida<strong>de</strong> garimpeira clan<strong>de</strong>stina teve<br />

sua orig<strong>em</strong> no século XVIII e, longe <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer, perdura ainda hoje, com<br />

características distintas <strong>de</strong> seu surgimento, mas s<strong>em</strong>pre à marg<strong>em</strong> da lei. Em<br />

algumas regiões do Estado, como é o caso da região estudada, se caracteriza<br />

como a principal base da economia e responsável por uma gran<strong>de</strong> absorção <strong>de</strong><br />

mão <strong>de</strong> obra. A partir da década <strong>de</strong> 1980, um conjunto <strong>de</strong> mudanças<br />

institucionais, organizacionais e técnicas transformou radicalmente as condições<br />

<strong>de</strong> organização do trabalho da ativida<strong>de</strong> garimpeira na região. Neste sentido, toda<br />

a pesquisa foi movida no intuito <strong>de</strong> penetrar e dar sentido a este novo universo do<br />

trabalho garimpeiro. Assim, o objetivo da pesquisa foi investigar quais foram as<br />

transformações ocorridas nos contextos e circunstâncias (naturais, políticas,<br />

culturais), que fizeram com que os el<strong>em</strong>entos que compõe o “métier” <strong>de</strong><br />

garimpeiro (competências, conhecimento da ativida<strong>de</strong>, constituição do “métier”,<br />

produtivida<strong>de</strong>, aprendizado da ativida<strong>de</strong>, ilegalida<strong>de</strong> as relações <strong>de</strong> confiança) se<br />

transformass<strong>em</strong>. Procurou-se combinar t<strong>em</strong>as da sociologia do trabalho, da<br />

sociologia da vida econômica e da sociologia fenomenológica <strong>de</strong> Alfred Schutz.<br />

Os conceitos <strong>de</strong> “métier” e competência foram <strong>de</strong>finidos como as claves<br />

analíticas centrais que permit<strong>em</strong> relacionar formas <strong>de</strong> conhecimento e processos<br />

<strong>de</strong> trabalho na ativida<strong>de</strong> garimpeira.<br />

viii


ABSTRACT<br />

COSTA, <strong>Luciano</strong> <strong>Rodrigues</strong>, M.S., Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Viçosa, February<br />

2002. Goldwasher: Work and knowledge in clan<strong>de</strong>stine garimpos of gold<br />

around the cities of Mariana. Adviser: Fábio Faria Men<strong>de</strong>s. Committee<br />

M<strong>em</strong>bers: Sheila Maria Doula and Antônio <strong>de</strong> Pádua Nunes Tomasi.<br />

It was inten<strong>de</strong>d with this work to make a study on the clan<strong>de</strong>stine<br />

garimpos of gold in the State of Minas Gerais. The chosen region was around the<br />

cities of and Mariana, especially the district of Monsenhor Horta initial nucleus<br />

of the cycle of the gold in Brazil. The activity clan<strong>de</strong>stine goldwasher had its<br />

origin in century XVIII e, far to disappear, still lasts today, with distinct<br />

characteristics of it’s sprouting, but always to the edge of the law. In some<br />

regions of the State, as it is the case of the studied region, if it characterizes as the<br />

main base of the responsible economy and for a great absorption of workmanship<br />

hand.<br />

From the <strong>de</strong>ca<strong>de</strong> of 1980, a set of institutional, organizacionais changes<br />

and techniques radically transformed the conditions of organization of the work<br />

of the activity goldwasher into the region. In this direction, all the research was<br />

moved in intention to penetrate and to give sensible to this new universe of the<br />

work goldwasher. Thus, the objective of the research was to investigate which<br />

had been the occured transformations in the contexts and circumstances (natural,<br />

politics, cultural), that they had ma<strong>de</strong> with that the el<strong>em</strong>ents that “métier”<br />

composes. of goldwasher (abilities, knowledge of the activity, constitution of<br />

“métier”., productivity, learning of the activity, illegality the relations reliable) if<br />

they transformed. It was looked to combine subjects of the sociology of the work,<br />

the sociology of the economic life and the fenomenológica sociology of Alfred<br />

Schutz. The concepts of “métier”. e ability analytical central offices had been<br />

<strong>de</strong>fined as claves that allow to relate forms of knowledge and processes of work<br />

in the activity goldwasher.<br />

ix


Introdução<br />

A história antiga e recente, e a própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos sertões que passaram a<br />

ser conhecidos como as Minas Gerais, é profundamente marcada pela presença<br />

continuada da extração <strong>de</strong> produtos minerais. Particularmente, a região <strong>em</strong> torno das<br />

cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ouro Preto e Mariana, núcleo inicial do ciclo do ouro, teve sua<br />

fisionomia moldada pela extração <strong>de</strong> ouro e <strong>de</strong> diamantes nas margens do Ribeirão<br />

do Carmo e córregos que o alimentam. Do século XVIII até os dias <strong>de</strong> hoje, toda a<br />

vida regional se estruturou <strong>em</strong> torno da exploração mineral. O ouro <strong>de</strong>ixou suas<br />

marcas na paisag<strong>em</strong> característica dos núcleos urbanos, das serras e dos rios<br />

submetidos a séculos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s extrativas. Também o fez nos contornos da vida<br />

econômica e, nas não menos importantes, formas <strong>de</strong> pensar, <strong>de</strong> sentir e <strong>de</strong> sonhar <strong>de</strong><br />

seus habitantes. Há, s<strong>em</strong> sombra <strong>de</strong> dúvida, um “imaginário do ouro” que preenche<br />

os poros da vida e a m<strong>em</strong>ória <strong>de</strong>sta região.<br />

Des<strong>de</strong> muito cedo, a ativida<strong>de</strong> mineradora nas Minas Gerais representou um<br />

foco <strong>de</strong> tensões e conflitos: <strong>de</strong> um lado, as pretensões <strong>de</strong> um Estado distante, mas<br />

ávido por mapear, mensurar, documentar, controlar as concessões <strong>de</strong> mercês e,<br />

especialmente, tributar pesadamente, e <strong>de</strong> outro, os interesses dos <strong>de</strong>scobridores e<br />

exploradores <strong>de</strong> jazidas, ciosos <strong>em</strong> guardar para si, ocultar e garantir a posse daquilo<br />

que consi<strong>de</strong>ravam fruto do próprio <strong>em</strong>penho e sorte. De um lado, <strong>em</strong> um jogo <strong>de</strong><br />

muitos artifícios, conflitos, alinhamentos e realinhamentos contínuos, a ativida<strong>de</strong> foi<br />

se organizando a partir da clivag<strong>em</strong> entre concessões reconhecidas legalmente e <strong>de</strong><br />

largo cabedal, do outro lado, um mundo clan<strong>de</strong>stino e s<strong>em</strong>pre movente - o dos<br />

garimpos.<br />

Longe <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer, o mundo do garimpo perdura ainda, s<strong>em</strong>pre à marg<strong>em</strong><br />

da lei. Continua presente naquela região, assim como <strong>em</strong> outras partes do Estado,<br />

1


como uma das principais bases da economia local, sendo o responsável por gran<strong>de</strong><br />

absorção <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra.<br />

Apesar da reconhecida importância da ativida<strong>de</strong> garimpeira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o período<br />

colonial, ela ainda não foi objeto <strong>de</strong> estudos <strong>em</strong> profundida<strong>de</strong>. Poucos foram os<br />

pesquisadores que se aventuraram no mundo relativamente fechado da ativida<strong>de</strong><br />

garimpeira. O garimpo da região <strong>de</strong> Mariana e Ouro Preto não é exceção a essa<br />

regra.<br />

Dentre as fontes disponíveis, estão os relatos <strong>de</strong> viajantes 1 do século XIX,<br />

que, <strong>em</strong>bora tenham <strong>de</strong>scrito minuciosamente as técnicas <strong>de</strong> extração, <strong>de</strong>ixaram<br />

poucas indicações acerca da organização social do trabalho da garimpag<strong>em</strong>. Quando<br />

abordado, o mundo social do garimpo é reduzido a um esqu<strong>em</strong>a i<strong>de</strong>alizado, <strong>em</strong> que<br />

<strong>em</strong>erge o tipo romantizado do “aventureiro” <strong>em</strong> <strong>de</strong>scrições distorcidas e muitas<br />

vezes preconceituosas. Em outra ponta, estão os relatórios técnicos <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong><br />

órgãos como o DNPM (Departamento Nacional <strong>de</strong> Produção Mineral), FEAM<br />

(Fundação Estadual do Meio Ambiente) e a COMIG (Comissão Mineira <strong>de</strong><br />

Mineração). Esses relatórios normalmente enfocam aspectos econômicos e<br />

tecnológicos, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado as análises socioculturais.<br />

Entretanto, uma série <strong>de</strong> estudos, dissertações e teses recentes, MARTINS<br />

(1997), PEREIRA (1990), SALOMÃO (1984) e CLEARY (1990), combinando<br />

cuidadosa pesquisa <strong>de</strong> campo e rigor analítico, abordaram a garimpag<strong>em</strong> <strong>em</strong> outras<br />

regiões do país, especialmente a da Amazônia.<br />

O garimpo <strong>de</strong> ouro e diamantes foi historicamente organizado segundo<br />

padrões tecnológicos e gerenciais muito rudimentares, com o predomínio <strong>de</strong><br />

relações <strong>de</strong> trabalho não-salariadas e uma reduzida divisão do trabalho. Durante a<br />

década <strong>de</strong> 1980, entretanto, um conjunto <strong>de</strong> mudanças institucionais,<br />

1 FERRAND, Paul. O ouro <strong>em</strong> Minas Gerais. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1998.<br />

COURCY, Ernest <strong>de</strong>, Viscon<strong>de</strong>. Seis s<strong>em</strong>anas nas Minas <strong>de</strong> ouro do Brasil. Belo Horizonte, Fundação João<br />

Pinheiro, 1997.<br />

RUGENDAS, Johann M. Viag<strong>em</strong> pitoresca através do Brasil. São Paulo, Círculo do Livro 1835,1984.<br />

2


organizacionais e técnicas transformaram radicalmente as condições <strong>de</strong> organização<br />

do trabalho da ativida<strong>de</strong> garimpeira.<br />

Em quase todos os setores da extração <strong>de</strong> produtos minerais, a década <strong>de</strong> 80<br />

marcou a incorporação <strong>de</strong> novos equipamentos mais eficientes, tanto nas gran<strong>de</strong>s<br />

<strong>em</strong>presas mineradoras como nos garimpos clan<strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> pequeno porte.<br />

Atualmente existe, <strong>em</strong> todo o Brasil, um número elevado <strong>de</strong> pequenos<br />

<strong>em</strong>preendimentos <strong>de</strong>ssa natureza espalhados por todo o país. Em sua gran<strong>de</strong> maioria<br />

são clan<strong>de</strong>stinos e utilizam motores e bombas hidráulicas na extração do ouro e<br />

mercúrio na sua apuração. Com estas novas técnicas, a extração tornou-se muito<br />

mais eficaz, mas ao mesmo t<strong>em</strong>po, foi introduzido no processo <strong>de</strong> trabalho, um<br />

el<strong>em</strong>ento químico <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a periculosida<strong>de</strong> para a saú<strong>de</strong> humana e fator <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>gradação ambiental: o mercúrio.<br />

Com essas mudanças, o mundo do trabalho garimpeiro transformou-se<br />

profundamente. O métier, característica fundamental <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> e<br />

estruturador das relações produtivas, adquiriu contornos diversos na ativida<strong>de</strong><br />

garimpeira.<br />

A sociologia clássica do trabalho ensina que as ações <strong>de</strong> trabalhadores no seu<br />

dia a dia são estruturadas a partir <strong>de</strong> três sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> relevância básicos: gestão,<br />

divisão do trabalho e r<strong>em</strong>uneração. Assistiu-se, a partir da década <strong>de</strong> 80, à profunda<br />

mudança nos sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> relevância do mundo do garimpo, reposicionando o<br />

trabalhador <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong>.<br />

Assim, toda a pesquisa foi movida pela intenção <strong>de</strong> penetrar e dar sentido a<br />

este novo universo do trabalho garimpeiro. Partindo da sociologia fenomenológica<br />

<strong>de</strong> Alfred Schutz, foram investigadas as formas <strong>de</strong> conhecimento e as categorias<br />

centrais que estruturam e <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> o mundo da vida cotidiana do garimpeiro, a partir<br />

<strong>de</strong> seus esqu<strong>em</strong>as <strong>de</strong> relevância e significado.<br />

Dessa forma, foi elaborado o probl<strong>em</strong>a: como se estruturam, na ativida<strong>de</strong><br />

garimpeira, os sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> relevância (r<strong>em</strong>uneração, gestão e divisão do trabalho) e<br />

3


as competências, <strong>de</strong>vido às mudanças institucionais, organizacionais e técnicas<br />

ocorridas no início dos anos 80?<br />

O objetivo <strong>de</strong>sta pesquisa foi investigar quais foram às transformações<br />

ocorridas nos contextos e circunstâncias (naturais, políticas e culturais), que fizeram<br />

com que os el<strong>em</strong>entos que compõ<strong>em</strong> o métier <strong>de</strong> garimpeiro (constituição do métier,<br />

aprendizado da ativida<strong>de</strong>, conhecimento, competências, produtivida<strong>de</strong>, ilegalida<strong>de</strong>, e<br />

relações <strong>de</strong> confiança) se transformass<strong>em</strong>. Por conseguinte, algumas perguntas<br />

foram inevitáveis: como as mudanças institucionais influenciaram na reestruturação<br />

da ativida<strong>de</strong> garimpeira? Como as relações sociais <strong>de</strong> trabalho se alteraram? Como<br />

se apresentam as competências dos trabalhadores? Como se dá a gestão, a<br />

r<strong>em</strong>uneração e a divisão do trabalho na ativida<strong>de</strong>?<br />

Para elaboração <strong>de</strong>sta pesquisa, foram realizadas entrevistas s<strong>em</strong>i-<br />

estruturadas <strong>em</strong> profundida<strong>de</strong> com os garimpeiros e donos <strong>de</strong> garimpos <strong>de</strong><br />

Monsenhor Horta, distrito <strong>de</strong> Mariana, assim como a observação participante.<br />

Muitas das informações foram obtidas através <strong>de</strong> conversas informais, <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>corrência da <strong>de</strong>sconfiança gerada pela clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> da ativida<strong>de</strong>. Também foi<br />

realizada uma pesquisa histórica, uma vez que essa abordag<strong>em</strong> requeria um<br />

<strong>de</strong>lineamento da evolução do garimpo no Brasil, principalmente no que se refere à<br />

legislação e ao tratamento dado à questão pelo Estado.<br />

A estrutura do trabalho foi <strong>de</strong>lineada <strong>em</strong> três capítulos.<br />

No capítulo 1, faz-se um levantamento histórico sobre a trajetória da<br />

ativida<strong>de</strong> garimpeira no Brasil, a constituição <strong>de</strong> suas características organizativas<br />

fundamentais e a cristalização da peculiar estrutura das suas relações sociais <strong>de</strong><br />

trabalho. Procura-se compreen<strong>de</strong>r também o contexto institucional que circunscreve<br />

a ativida<strong>de</strong>, através <strong>de</strong> uma investigação das transformações na legislação que a<br />

regula, do surgimento até os dias atuais. Nesse contexto, revelam-se a ambigüida<strong>de</strong><br />

e a incerteza produzida pelo tratamento dado à ativida<strong>de</strong> pelo Estado, ora tolerada,<br />

ora perseguida.<br />

4


Argumenta-se que a instabilida<strong>de</strong> do contexto institucional mais amplo da<br />

ativida<strong>de</strong> garimpeira traz profundas implicações para sua estrutura organizacional,<br />

caracterizando-a como uma ativida<strong>de</strong> do setor informal.<br />

Uma ênfase maior é dada às mudanças ocorridas a partir da década <strong>de</strong> 80,<br />

marcada por um novo “boom” da ativida<strong>de</strong>, simbolizado por Serra Pelada, o que<br />

acarreta modificações <strong>em</strong> sua estrutura por todo o país. Ao final do primeiro<br />

capítulo, são caracterizadas as principais diferenças entre os tipos <strong>de</strong> garimpo <strong>de</strong><br />

ouro, visando a <strong>de</strong>limitar o objeto <strong>de</strong> estudo: os garimpos s<strong>em</strong>imecanizados.<br />

No capítulo 2, procura-se explicitar o conjunto <strong>de</strong> referências teórico-<br />

conceituais que inspiram a nossa interpretação sobre o mundo do garimpo. Procura-<br />

se combinar t<strong>em</strong>as da sociologia do trabalho, da sociologia da vida econômica e da<br />

sociologia fenomenológica <strong>de</strong> Alfred Schutz 2 . Os conceitos <strong>de</strong> métier e competência<br />

são <strong>de</strong>finidos como as claves analíticas centrais que permit<strong>em</strong> relacionar formas <strong>de</strong><br />

conhecimento e processos <strong>de</strong> trabalho na ativida<strong>de</strong> garimpeira. Em seguida, busca-se<br />

enten<strong>de</strong>r esta ativida<strong>de</strong> como um métier, ressaltando suas categorias estruturantes e<br />

distintivas. Assim, é construída a figura do garimpeiro competente, levando-se <strong>em</strong><br />

conta a forma pela qual ele se <strong>de</strong>staca no grupo e é por ele reconhecido. Buscou-se<br />

construí-la a partir <strong>de</strong> suas tipificações e relevâncias, visando compreen<strong>de</strong>r a sua<br />

habilida<strong>de</strong> na “navegação” neste mundo que é o métier <strong>de</strong> garimpeiro.<br />

O capítulo 3 tenta reconstruir os contornos gerais do mundo do garimpo, a<br />

partir da pesquisa <strong>de</strong> campo conduzida <strong>em</strong> Monsenhor Horta. Através dos relatos <strong>de</strong><br />

antigos garimpeiros, procura-se <strong>de</strong>linear os contornos do garimpo antes da<br />

mecanização, contrastando-os com as formas <strong>de</strong> organização social da ativida<strong>de</strong><br />

existente atualmente.<br />

Com base nos relatos dos garimpeiros e na observação do processo <strong>de</strong><br />

trabalho, são analisadas as suas formas <strong>de</strong> organização, ou seja, a estruturação dos<br />

2 SCHUTZ. Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Textos escolhidos. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Zahar Editores,<br />

1977. SCHUTZ. Alfred. Estudios sobre teoria social. Buenos Aires, Amorrortu, 1974. SCHUTZ. Alfred. El<br />

probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong> la realidad social. Buenos Aires, Amorrortu, 1974.<br />

5


sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> relevâncias e as competências presentes na ativida<strong>de</strong> atualmente. A<br />

análise aponta o papel central das relações <strong>de</strong> confiança na composição das relações<br />

<strong>de</strong> trabalho e das re<strong>de</strong>s sociais <strong>em</strong> que está imersa a ativida<strong>de</strong> garimpeira, num<br />

padrão que reproduz el<strong>em</strong>entos típicos <strong>de</strong> informalida<strong>de</strong> <strong>em</strong> outros setores da vida<br />

econômica.<br />

Na última parte <strong>de</strong>sse capítulo, foi abordado o caráter clan<strong>de</strong>stino da<br />

ativida<strong>de</strong>, enfatizando o relacionamento dos trabalhadores com os órgãos<br />

fiscalizadores, ou seja, da ativida<strong>de</strong> com o Estado. Foram também ressaltadas as<br />

formas <strong>de</strong> organização por parte dos trabalhadores, que visam burlar a fiscalização e<br />

continuar o trabalho ilegal <strong>de</strong> extração.<br />

Por fim, na discussão final, faz-se um balanço dos principais pontos<br />

ressaltados no trabalho. Mostra-se a viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> associar os recentes estudos<br />

sobre competência profissional com a sociologia fenomenológica <strong>de</strong> Alfred Schutz.<br />

Também levanta-se o probl<strong>em</strong>a da permanência <strong>de</strong>sta ativida<strong>de</strong> na<br />

clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> e ainda submetida a uma legislação confusa, com níveis <strong>de</strong><br />

exigências para a regulamentação incompatíveis com a realida<strong>de</strong> do garimpo.<br />

6


Capítulo I<br />

Uma Visão Histórica Sobre os Garimpos <strong>de</strong> Ouro no Brasil<br />

“Muitos se espantam <strong>em</strong> saber que o ouro, <strong>em</strong> si mesmo<br />

um b<strong>em</strong> tão inútil, goze <strong>de</strong> tamanha estima <strong>em</strong> toda parte,<br />

que mesmo os homens para qu<strong>em</strong> foi feito e pelos quais o<br />

valor lhe é atribuído sejam concebidos como dotados <strong>de</strong><br />

menor valor que o próprio ouro”<br />

7<br />

Sir Thomas More (1478-1535)<br />

Utopia<br />

1. Origens do Garimpo <strong>de</strong> Ouro no Brasil: Séculos XVIII e XIX<br />

A história dos garimpos <strong>de</strong> ouro e diamantes no Brasil é marcada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

início do século XVIII, por tensões, ambigüida<strong>de</strong>s e constantes atritos com o<br />

po<strong>de</strong>r instituído. Basta l<strong>em</strong>brar o vasto número <strong>de</strong> conflitos <strong>em</strong> torno do fisco<br />

opondo representantes da Coroa e interesses mineradores durante todo o século<br />

XVIII 3 . A flui<strong>de</strong>z, o potencial <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, a incerteza dos resultados e a<br />

mobilida<strong>de</strong> geográfica da ativida<strong>de</strong> foram s<strong>em</strong>pre altamente probl<strong>em</strong>áticas para o<br />

Estado. Enquanto tal, o garimpo representava uma situação <strong>de</strong> relativa<br />

ilegibilida<strong>de</strong> frente às pretensões <strong>de</strong> controle, registro e extração <strong>de</strong> recursos pelo<br />

Estado 4 . Em muitos aspectos cruciais, o Estado conhecia (e conhece)<br />

relativamente pouco acerca da composição social, das intenções, das posses, da<br />

localização e da própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos garimpeiros. Daí o privilégio aos<br />

<strong>em</strong>preendimentos mineradores <strong>de</strong> larga escala, cuja visibilida<strong>de</strong> e permanência<br />

garantiam maior controle, e às tentativas continuadas <strong>de</strong> combater e eliminar ou,<br />

3 Vasconcelos, Diogo <strong>de</strong>. História Média <strong>de</strong> Minas Gerais. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1918. Cf.<br />

também Maxwell, Kenneth. A Devassa da Devassa: A Inconfidência Mineira, Brasil e Portugal: 1750-1808.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, Paz e Terra, 1978.<br />

4 O conceito <strong>de</strong> legibilida<strong>de</strong> estatal é sugerido por Scott, James. Seeing Like a State:How Certain Sch<strong>em</strong>es to<br />

Improve the Human Condition Have Failed. New Haven, Yale University Press, 1998.


inversamente, incorporar o garimpo à or<strong>de</strong>m legal. N<strong>em</strong> por isso o garimpo<br />

<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> florescer à marg<strong>em</strong> dos contornos da economia formal.<br />

Neste capítulo procura-se mostrar que a história do garimpo no Brasil, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o seu surgimento, foi profundamente marcada pelas flutuações e ambigüida<strong>de</strong>s do<br />

estatuto institucional a ele imposto pelo Estado. Reconstruindo a trajetória<br />

histórica <strong>de</strong>sses <strong>em</strong>preendimentos <strong>de</strong> mineração, po<strong>de</strong>m-se encontrar vários<br />

momentos <strong>em</strong> que a ativida<strong>de</strong> garimpeira seria intensamente perseguida pelos<br />

órgãos fiscais como um trabalho ilegal. Em outros, no entanto, a ativida<strong>de</strong> seria<br />

tolerada e até mesmo estimulada como geradora <strong>de</strong> riquezas e <strong>em</strong>prego. Estas<br />

instabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>finiram, já <strong>em</strong> sua constituição, a estrutura organizacional do<br />

garimpo, b<strong>em</strong> como as representações sobre o tipo social do garimpeiro.<br />

A busca por ouro e pedras preciosas no Brasil se inicia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o <strong>de</strong>scobrimento.<br />

Já nos séculos XVI e XVII, inúmeras expedições <strong>de</strong> pesquisa mineral (as Entradas)<br />

foram promovidas diretamente pela metrópole ou por seus prepostos. À marg<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>stes movimentos <strong>de</strong> penetração, coexistiu também o “aventureirismo”: indivíduos,<br />

que por sua conta e risco, enfrentavam os perigos dos sertões <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> riqueza e<br />

sustento próprio. Segundo o historiador inglês Charles BOXER (1969), o ouro foi<br />

encontrado quase simultaneamente <strong>em</strong> diversas regiões correspon<strong>de</strong>ntes à atual<br />

Minas Gerais, por diferentes grupos paulistas. Com estas <strong>de</strong>scobertas e a abertura<br />

das minas, no final do século XVII, a região, antes praticamente <strong>de</strong>serta ,vai sendo<br />

gradativamente povoada. O <strong>de</strong>senvolvimento da mineração <strong>de</strong>terminou os ritmos e<br />

os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> povoamento, fixando os trabalhadores e incentivando o comércio e a<br />

agricultura. Esta crescente urbanização foi incentivada pelo Estado, visando à<br />

consolidação <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r. Este fato po<strong>de</strong> ser percebido na carta <strong>de</strong> nomeação <strong>de</strong><br />

Antônio <strong>de</strong> Albuquerque como administrador colonial, <strong>em</strong> 9 <strong>de</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1709,<br />

<strong>em</strong> que um <strong>de</strong> seus itens era a alusão à normalização e à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fundar<br />

cida<strong>de</strong>s. Neste sentido:<br />

“Por volta <strong>de</strong> 1711, vários arraiais já tinham se consolidado para ser<strong>em</strong><br />

elevados à condição <strong>de</strong> vila: Vila do Ribeirão <strong>de</strong> Nossa Senhora do Carmo<br />

<strong>de</strong> Albuquerque (Mariana, 08 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1711) Vila Rica <strong>de</strong> Nossa Senhora<br />

do Pilar <strong>de</strong> Albuquerque (Ouro Preto, 08 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 1711) e Vila Real <strong>de</strong><br />

Nossa senhora da Conceição <strong>de</strong> Sabará (17 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1711).” 5<br />

(MARTINS, 1992: 42)<br />

8


Os objetivos básicos <strong>de</strong>sta política <strong>de</strong> urbanização eram estabelecer a or<strong>de</strong>m e<br />

permitir maior controle sobre a população flutuante dos mineradores, facilitando o<br />

controle fiscal da extração por parte da Coroa. Por volta <strong>de</strong> 1720, mais <strong>de</strong> 120 mil<br />

habitantes espalhavam-se por Minas Gerais, fazendo crescer as cida<strong>de</strong>s do ouro.<br />

Segundo MELLO E SOUSA:<br />

“Mesmo que, nos primeiros t<strong>em</strong>pos, os arraiais tenham sido s<strong>em</strong>eados ao<br />

léu, acompanhando os trabalhos da mineração, é importante ressaltar que, a<br />

partir do governo <strong>de</strong> Albuquerque, o Estado tomou as ré<strong>de</strong>as do processo.<br />

Isto não fez com que as cida<strong>de</strong>s mineiras foss<strong>em</strong> melhor or<strong>de</strong>nadas(...) e no<br />

entanto, serviram muito b<strong>em</strong> ao propósito que as criara: a consolidação do<br />

po<strong>de</strong>r metropolitano no seio do sertão das Minas” MELLO E SOUSA (1986<br />

: 104)<br />

Com o rush estabelecido na região das minas, a partir <strong>de</strong> 1697, dá-se<br />

rapidamente a substituição da mão-<strong>de</strong>-obra indígena pela africana. Entre outras<br />

razões, a troca se dava pela prática da extração já adquirida na África, pelos negros.<br />

Este fato, somado ao rápido aumento da escala <strong>de</strong> produção, fez com que o preço<br />

dos escravos subisse a níveis então nunca vistos. Minas Gerais passou a contar com<br />

o maior contingente <strong>de</strong> escravos do Brasil.<br />

Em minas razoavelmente gran<strong>de</strong>s, a exploração era feita <strong>de</strong> forma organizada,<br />

reunindo-se, sob uma única direção, numerosos trabalhadores, geralmente escravos,<br />

que utilizavam instrumentos especializados. As lavras menores, com baixa<br />

perspectiva <strong>de</strong> produção, b<strong>em</strong> como aquelas abandonadas após estar<strong>em</strong> praticamente<br />

esgotadas, eram exploradas individualmente, com recursos e instrumentos precários.<br />

No início, estes instrumentos consistiam <strong>em</strong> pratos <strong>de</strong> estanho. Coube aos negros,<br />

logo <strong>em</strong> seguida, o ensino do uso <strong>de</strong> bateia (espécie <strong>de</strong> bacia <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, redonda e<br />

achatada, <strong>de</strong> 2 a 3 palmos <strong>de</strong> diâmetro) com a qual se encontrou ouro no Tripuí <strong>em</strong><br />

1696.<br />

Em 1700, chegam a Minas Gerais quatro mineradores do Reino que,<br />

juntamente com mineradores paulistas, <strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong>, <strong>em</strong> 1707, a técnica <strong>de</strong><br />

9


“<strong>de</strong>smontar as terras com água superior aos tabuleiros altos” 6 . Em 1711, foram<br />

<strong>de</strong>senvolvidas por um clérigo, as “rodas para esvaziamento das catas, método<br />

aperfeiçoado e produzido <strong>em</strong> escala a partir <strong>de</strong> 1725” 7 .<br />

Em 1721, inicia-se o trabalho nas encostas das montanhas e a abertura <strong>de</strong><br />

poços, que se distanciavam quarenta palmos um do outro. Em 1733, já se verifica<br />

o <strong>em</strong>prego do engenho <strong>de</strong> pilões. Segundo MARTINS (1984), o uso <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong><br />

engenho estabelece um divisor <strong>de</strong> águas da exploração aurífera, não só no que<br />

concerne à forma <strong>de</strong> extração, mas, sobretudo pelo surgimento mais acelerado <strong>de</strong><br />

grupos marginais.<br />

“Ocorre que o maquinário hidráulico vai selecionar os mineradores, pois<br />

n<strong>em</strong> todos os proprietários <strong>de</strong> minas po<strong>de</strong>m ser mineiros <strong>de</strong> „roda‟. Neste<br />

sentido, para o pequeno minerador, até possuir escravos passa a ser<br />

dispendioso, capital imobilizado do qual foi mais oportuno <strong>de</strong>svencilhar-se.”<br />

(MARTINS, 1984:192)<br />

Não se t<strong>em</strong> notícia do uso <strong>de</strong> mercúrio no primeiro ciclo do ouro no Brasil,<br />

esgotado por volta <strong>de</strong> 1750.<br />

A dinâmica da ocupação da colônia, e especialmente nas Minas Gerais, cedo<br />

transborda os limites do fomentalismo metropolitano. Ao lado da rígida estrutura<br />

que opõe senhores e escravos, como na plantation do nor<strong>de</strong>ste açucareiro, <strong>em</strong>erg<strong>em</strong><br />

outras categorias, “que não eram <strong>de</strong> escravos n<strong>em</strong> po<strong>de</strong>riam ser <strong>de</strong> senhores” 8 . Estes<br />

homens mal situados na estrutura hierárquica da socieda<strong>de</strong> escravista, quase que<br />

<strong>de</strong>snecessários, constituirão gradativamente o mundo dos homens livres pobres no<br />

interior da or<strong>de</strong>m escravista, CARVALHO FRANCO, (1983). Em meio à<br />

abundância <strong>de</strong> terras e recursos, com técnicas rudimentares e uma cultura material<br />

sumária, garimpeiros, tropeiros, ven<strong>de</strong>iros, sitiantes, agregados, camaradas, ou<br />

simplesmente “vadios”, frente à vastidão dos sertões e à indiferença ou hostilida<strong>de</strong><br />

do Estado, gradativamente estruturarão configurações sociais caracterizadas por<br />

mecanismos <strong>de</strong> integração social e códigos <strong>de</strong> conduta próprios.<br />

6<br />

MARTINS, Ana Luiza. Breve história dos garimpos <strong>de</strong> ouro no Brasil. In: ROCHA, Gerôncio. Em busca<br />

do ouro. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Marco Zero, 1984.<br />

7<br />

Ibi<strong>de</strong>m.<br />

8<br />

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Cont<strong>em</strong>porâneo. 13 ed. São Paulo, Brasiliense, 1989. 359 p.<br />

10


Os garimpeiros, excluídos das concessões e mercês oficiais <strong>de</strong> datas<br />

minerárias, procurariam os locais mais isolados para tentar a sorte, longe dos olhos<br />

do fisco. Extr<strong>em</strong>amente carentes <strong>de</strong> recursos, foram quase s<strong>em</strong>pre duramente<br />

perseguidos pela administração colonial. Segundo MELLO E SOUSA (1986),<br />

durante o século XVIII, a distribuição das datas minerárias regia-se antes pela lógica<br />

da construção <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s clientelares que soldavam relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e obrigação do<br />

que por quaisquer critérios <strong>de</strong> eqüida<strong>de</strong> ou racionalida<strong>de</strong> econômica, o que<br />

preocupava as autorida<strong>de</strong>s reais. Nessa situação,<br />

“A principal resposta dos homens livres pobres ante a situação foi, ao que<br />

tudo indica, o garimpo e a faiscag<strong>em</strong>, que mal davam para a subsistência.<br />

Os „homens faiscadores‟ trabalhavam nos rios com uns poucos escravos, e<br />

muitos <strong>de</strong>ixavam esse tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> por não po<strong>de</strong>r<strong>em</strong> se manter, n<strong>em</strong> a<br />

seus negros”(MELLO E SOUSA, 1986: 70)<br />

O termo garimpeiro <strong>em</strong>ergira na região das minas <strong>em</strong> inícios do século XVIII,<br />

e <strong>de</strong>signava aqueles que, <strong>de</strong>srespeitando a legislação da coroa portuguesa,<br />

mineravam as jazidas localizadas <strong>em</strong> pontos ermos do território, escondidas nas<br />

“grimpas” das serras. Neste sentido, a própria etimologia da palavra garimpeiro já<br />

<strong>de</strong>notava ilegalida<strong>de</strong>, marginalida<strong>de</strong> e repressão da força <strong>de</strong> trabalho. 9<br />

O surgimento da figura do garimpeiro, personag<strong>em</strong> que se configura já <strong>em</strong><br />

meados do séc XVIII, está ligado essencialmente a dois fatores: o primeiro é que as<br />

jazidas <strong>de</strong> ouro e diamantes tinham características que facilitavam a mineração<br />

ilegal, ou seja, eram essencialmente aluvionares. Assim, o hom<strong>em</strong> isolado ou <strong>em</strong><br />

pequenos grupos po<strong>de</strong>ria se <strong>em</strong>penhar na busca <strong>de</strong> ouro, <strong>em</strong> Minas Gerais, usando<br />

somente a bateia, o almoclave, o corumbé e outras ferramentas nas áreas livres. O<br />

9 Segundo Aurélio Buarque <strong>de</strong> Hollanda, o vocábulo garimpo é <strong>de</strong>rivado regressivo <strong>de</strong> garimpeiro.<br />

Garimpeiro (grimpa + eiro) . Grimpa significa "o ponto mais alto: cocuruto, crista", ou seja, cume, cima etc.,<br />

<strong>de</strong> montanha ou serra. Assim garimpeiro é aquele que sobe, trepa, galga montanha, monte ou serra alta.<br />

Garimpeiro com a supressão da letra a . "Aquele que anda à cata <strong>de</strong> metais e pedras preciosas." "Tudo indica<br />

que a conotação com grimpa <strong>de</strong>ve-se ao fato da procura do ouro e das g<strong>em</strong>as ter se iniciado - pelo menos no<br />

Brasil - <strong>em</strong> lugares altos e ermos, cheios <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>rijos. Há também pon<strong>de</strong>rável fator histórico brasileiro:<br />

durante muito t<strong>em</strong>po, garimpar e garimpag<strong>em</strong> foram proibidos”.<br />

Aurélio Buarque <strong>de</strong> Hollanda menciona três <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> Garimpo. As duas primeiras relacionadas a<br />

clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> e as outras: 1) “Mina <strong>de</strong> diamante ou carbonados. 2) Lugar on<strong>de</strong> se encontra tais minas. 3)<br />

11


segundo foi a presença <strong>de</strong> uma legislação rigorosa, fiscalização intensiva, conflitos,<br />

arbitrarieda<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e injustiças na distribuição das datas minerárias, que<br />

não privilegiavam os pequenos mineradores: “A lavra clan<strong>de</strong>stina era a única<br />

sobrevivência numa região on<strong>de</strong> só era permitido minerar. Assim, on<strong>de</strong> não<br />

chegavam as re<strong>de</strong>s do po<strong>de</strong>r, surgiram os primeiros garimpeiros.” 10<br />

Durante o século XVIII havia se formado, pois, um sist<strong>em</strong>a minerário<br />

dicotômico, com profundas conseqüências para a organização subseqüente da<br />

ativida<strong>de</strong> minerária no Brasil. De um lado, figurava a mineração organizada,<br />

representada pela alta capacida<strong>de</strong> extrativa e econômica, conforme a or<strong>de</strong>m legal<br />

(compra das datas, pagamento dos impostos e taxas <strong>de</strong> escravos); <strong>de</strong> outro lado, os<br />

garimpos exercidos ilegalmente por mestiços, aventureiros, negros alforriados, ou<br />

mesmo mineradores que não tiveram como arcar com os extorsivos preços das datas<br />

minerárias. Expressivo <strong>de</strong>sta situação é o relato que nos oferece Joaquim Felício dos<br />

Santos, acerca da condição dos garimpeiros no distrito diamantino durante o século<br />

XVIII:<br />

“O garimpeiro tornava-se muitas vezes aquele que, obrigado a expatriar-se,<br />

ou a passar uma vida <strong>de</strong> misérias, porque, com a proibição da mineração se<br />

lhe tirava o único meio <strong>de</strong> subsistência ia exercer uma indústria, a<br />

mineração clan<strong>de</strong>stina, era finalmente o audaz, intrépido e ambicioso<br />

aventureiro que ia buscar fortuna numa vida cheia <strong>de</strong> riscos, perigos e<br />

<strong>em</strong>oções.” (SANTOS, 1924: 403)<br />

Também o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>bargador Viera Couto, na sua M<strong>em</strong>ória sobre a capitania <strong>de</strong><br />

Minas Gerais (1801), <strong>de</strong>finia o garimpeiro como “o nome com que se apelida neste<br />

Lugar on<strong>de</strong> exist<strong>em</strong> explorações diamantinas ou auríferas. Po<strong>de</strong>-se notar que a <strong>de</strong>finição para garimpo é uma<br />

só, tanto para o local <strong>de</strong> extração <strong>de</strong> diamantes quanto para a extração <strong>de</strong> ouro.<br />

10 MARTINS, Ana Luiza. Breve história dos garimpos <strong>de</strong> ouro no Brasil. In: Rocha, Gerôncio. Em busca do<br />

ouro. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Marco Zero, 1984. 189 p.<br />

12


país aos que mineram furtivamente as terras diamantinas, e que assim são chamados<br />

por viver<strong>em</strong> e andar<strong>em</strong> escondidos pelas grimpas das serras” 11 .<br />

Durante todo o século XVIII, os garimpeiros giravam <strong>de</strong> mina <strong>em</strong> mina,<br />

procurando locais on<strong>de</strong> os resultados foss<strong>em</strong> compensadores e a concorrência<br />

menor. Geralmente eram livres e trabalhavam por conta própria, o que não<br />

impedia que escravos se <strong>de</strong>dicass<strong>em</strong> também a essa ativida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vendo entregar<br />

uma quantida<strong>de</strong> fixa <strong>de</strong> ouro ao seu senhor, po<strong>de</strong>ndo ficar com o restante. Com a<br />

<strong>de</strong>cadência das minas, esta foi, muitas vezes, a saída possível para que os<br />

pequenos <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>dores pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> manter parte <strong>de</strong> seu antigo capital.<br />

A partir da segunda meta<strong>de</strong> do século XVIII, inicia-se a <strong>de</strong>cadência dos<br />

núcleos mineradores <strong>de</strong> Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, on<strong>de</strong> a extração se<br />

limitava a terrenos <strong>de</strong> aluvião. Segundo MARTINS (1984), várias causas po<strong>de</strong>m<br />

ser atribuídas à <strong>de</strong>cadência das minas, sendo todas elas associadas às políticas<br />

econômicas da metrópole:<br />

“Legislação confusa e repressora, administração ina<strong>de</strong>quada,<br />

esgotamento do ouro aluvionar, <strong>em</strong>prego <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong>ficientes, mão<strong>de</strong>-obra<br />

elevada, alto custo dos artigos indispensáveis às li<strong>de</strong>s<br />

minerárias e, conforme a crítica mais corrente entre os cont<strong>em</strong>porâneos,<br />

ao <strong>de</strong>clínio aurífero, à falta <strong>de</strong> espírito associativo dos proprietários das<br />

lavras” (MARTINS, 1984: 202)<br />

Este espírito associativo citado seria fundamental, no sentido <strong>de</strong> que, apesar do<br />

esgotamento do ouro aluvionar, a mineração <strong>de</strong> subsolo ainda seria possível no<br />

interior das montanhas. No entanto, tal <strong>em</strong>preendimento exigia altos capitais,<br />

homens e maquinário elevado.<br />

Com o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência das minas, a Coroa começa a ver seus rendimentos<br />

tributários gradativamente diminuídos. Aumenta a pressão, já extr<strong>em</strong>amente<br />

elevada, nos núcleos mineradores, visando recuperar recursos. Na verda<strong>de</strong>, o<br />

Estado português não admitia a queda da produção, justificando tal fato na<br />

alegação <strong>de</strong> contrabando. Assim, recru<strong>de</strong>sce consi<strong>de</strong>ravelmente a repressão ao<br />

contrabando e à extração clan<strong>de</strong>stina. Para combater estes extraviadores <strong>de</strong> ouro e<br />

garimpeiros clan<strong>de</strong>stinos, a Coroa <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>u uma luta extr<strong>em</strong>amente violenta,<br />

gerando o pânico e o hábito <strong>de</strong> <strong>de</strong>lação entre os habitantes.<br />

11 Ibi<strong>de</strong>m. 189 p.<br />

“Não podia, pois, haver ouro que chegasse para a voracida<strong>de</strong> do fisco, e<br />

a maior quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro encontrada não significava,<br />

obrigatoriamente riqueza. Quase nada escapava às malhas do sist<strong>em</strong>a<br />

colonial: fisco voraz, tributação sobre escravos, sist<strong>em</strong>a monetário<br />

13


específico e importações feitas pelo exclusivo <strong>de</strong> comércio eram os meios<br />

<strong>de</strong> que se servia a Metrópole para a retirada do ouro.” (MELLO E<br />

SOUSA, 1986: 40)<br />

Felício dos Santos também <strong>de</strong>screveu <strong>em</strong> suas “M<strong>em</strong>órias” as perseguições aos<br />

garimpeiros pelo <strong>de</strong>spotismo <strong>de</strong> um Estado fiscalista:<br />

“A caça que se dava ao garimpeiro era cruel, <strong>de</strong>sapiedada, encarniçada:<br />

eram perseguidos e se procurava exterminá-los como animais ferozes. As<br />

partidas do rei diss<strong>em</strong>inadas por todo o Distrito (Diamantino) patrulhavam<br />

os córregos, os campos, as serras, os montes, s<strong>em</strong> cessar dia e noite,<br />

ren<strong>de</strong>ndo-se, renovando-se, se encontravam o garimpeiro <strong>de</strong>sprevenido, sua<br />

captura <strong>de</strong>via ser feita a todo o transe. Quando ainda os campos<br />

diamantinos alvejavam com os ossos infelizes patrícios, test<strong>em</strong>unhando a<br />

bárbara tirania que sobre nós pesou outrora” (SANTOS, 1924: 404)<br />

Como uma tentativa <strong>de</strong> reação a esta <strong>de</strong>cadência, Portugal, <strong>em</strong> 1776, funda a<br />

Real Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Lisboa com o objetivo <strong>de</strong> estudar os probl<strong>em</strong>as sociais da<br />

nação. Foram produzidas, nesta época, várias obras no intuito <strong>de</strong> explicar os<br />

motivos da <strong>de</strong>cadência das minas, <strong>de</strong>stacando-se um discurso que atravessaria<br />

todo o século XIX: a importância da ativida<strong>de</strong> agrícola <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento da<br />

ativida<strong>de</strong> mineral.<br />

É importante ressaltar que a <strong>de</strong>cadência da mineração no Brasil coinci<strong>de</strong> com o<br />

momento <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s transformações no quadro econômico europeu. Os<br />

mercados fechados das colônias ibéricas vão <strong>de</strong> encontro ao aumento da<br />

produção gerado pela Revolução Industrial Inglesa. As críticas ao sist<strong>em</strong>a<br />

colonial se intensificam, con<strong>de</strong>nando os monopólios, os tratados <strong>de</strong> comércio e o<br />

trabalho escravo, propondo o livre-cambismo e, por conseqüência, a livre<br />

concorrência.<br />

As pressões da Inglaterra, que <strong>de</strong>pendia do metal brasileiro, sobre Portugal,<br />

somadas aos relatórios da Real Aca<strong>de</strong>mia que ressaltavam a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

associações para enfrentar os altos custos da exploração subterrânea, resultaram<br />

<strong>em</strong> uma legislação <strong>de</strong>stinada a promover o melhor rendimento das minas. No dia<br />

13 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1803, foi editado por Dom João VI um alvará que estimulava a<br />

formação <strong>de</strong> associações <strong>de</strong> mineração visando a exploração das minas. A partir<br />

<strong>de</strong>ste alvará é contratado o Engenheiro Wilhelm Ludwig Von Eschewege com a<br />

incumbência <strong>de</strong> dirigir o Real Gabinete <strong>de</strong> Mineralogia do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Eschewege estudou cientificamente as áreas mineradoras e introduziu novas<br />

técnicas na extração do ouro: “Introduziu baterias <strong>de</strong> pilões para trabalhar sob<br />

lençóis d’água, verificando o baixo rendimento do cascalho aurífero, <strong>em</strong>penhou-se<br />

14


na criação <strong>de</strong> companhias, única saída para trabalhar as jazidas subterrâneas.” 12 A<br />

partir <strong>de</strong> seus estudos no Brasil, publica “Pluto Brasiliensis”.<br />

“A criação <strong>de</strong> companhias já era uma idéia presente na política<br />

econômica do Príncipe Regente D. João, proposta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Alvará <strong>de</strong><br />

1803 e persistindo no Alvará <strong>de</strong> 1811 (recomenda a criação <strong>de</strong><br />

companhias com auxílio <strong>de</strong> máquinas); no Alvará <strong>de</strong> 17/11/1813<br />

(conferia privilégios aos proprietários <strong>de</strong> trinta escravos), na Carta<br />

Régia <strong>de</strong> 04/12/1816 (distribuía datas auríferas a qu<strong>em</strong> solicitasse, na<br />

proporção <strong>de</strong> 33 metros quadrados por trabalhador ou escravo livre) e<br />

finalmente a Carta Régia <strong>de</strong> 16/01/1817 aprovando a 1ª Companhia <strong>de</strong><br />

Mineração <strong>de</strong> Cuiabá” (MARTINS, 1984: 204)<br />

Com a Carta Régia <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1817, que estabelecia os estatutos para a<br />

socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> lavras, era dado novo direcionamento à questão mineral, iniciando<br />

um novo ciclo <strong>de</strong> exploração mineral que iria perdurar até a República Velha. A<br />

partir daí, dá-se início à prospecção do ouro privilegiando grupos capitalizados e<br />

marginalizando o pequeno proprietário <strong>de</strong> minas e, conseqüent<strong>em</strong>ente a mão-<strong>de</strong>obra<br />

mineradora.<br />

Eschewege torna-se o primeiro a fazer uso <strong>de</strong>sta nova legislação e adquire,<br />

<strong>em</strong> 1819, a Socieda<strong>de</strong> Mineralógica da Passag<strong>em</strong>, próximo a Vila Rica. Com isto,<br />

ocorre uma redirecionamento da mineração no Brasil. Passa-se <strong>de</strong> uma exploração<br />

aluvionar e predatória das jazidas a uma extração mais organizada <strong>em</strong> função <strong>de</strong><br />

uma racionalida<strong>de</strong> econômica maior; sobressaindo-se os investimentos ingleses. É<br />

importante ressaltar que toda a legislação do século XIX não irá favorecer o<br />

garimpeiro isolado.<br />

O Brasil, neste período, <strong>em</strong> função <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>pendência do capital inglês e<br />

pelos custos do processo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Portugal, recém <strong>de</strong>cretada,<br />

encontrava-se extr<strong>em</strong>amente endividado. Por conseguinte não havia recurso para<br />

amparar a formação <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas <strong>de</strong> mineração, que pela legislação da época só<br />

po<strong>de</strong>riam ser nacionais. Com o <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1824 foi permitido ao<br />

capital inglês explorar jazidas no Brasil. É importante l<strong>em</strong>brar que a Inglaterra, nesta<br />

época, adotava oficialmente o padrão ouro, e lhe convinha investir nas jazidas<br />

12 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

15


asileiras. O Brasil, e principalmente Minas Gerais, vê o estabelecimento <strong>de</strong> várias<br />

companhias, entre elas:<br />

“1830 – Imperial Mining Association.<br />

1832/1844 – Brazilian Company.<br />

1833/1851 – Nacional Brazilian Mining Association<br />

1844/1850 – The candola Gold Mining<br />

1861/1876 – Eart d‟El Rey Mining Company Limited<br />

1862/1900 – D. Pedro North d‟El Rey Gold Mining Company Limited<br />

1862/1898 – Santa Barbara Gold Mining Company Limited<br />

1863/1873 – Anglo Brazilian Gold Mining Company Limited<br />

1864 – Roça Gran<strong>de</strong> Gold Mining Company Limited<br />

1873 – Brazilian Counsols Gold Mining Company Limited<br />

1876/1887 – Pitangui Gold Mining Company Limited<br />

1880/1883 – Brazilian Gold Mining Limited<br />

1884 – Ouro Preto Gold Mines of Brazil Limited 13 ”<br />

Todas estas <strong>em</strong>presas operavam com mão-<strong>de</strong>-obra escrava. No século XIX,<br />

as maiores concentrações <strong>de</strong> escravos <strong>em</strong> Minas Gerais encontravam-se nas<br />

<strong>em</strong>presas inglesas <strong>de</strong> mineração; no entanto, a gran<strong>de</strong> maioria <strong>de</strong>las não obteve<br />

sucesso. As mais bens sucedidas foram A Imperial Braziliam Mining Association<br />

(Gongo Soco) (1825 a 1855), The Ouro Preto Gol<strong>de</strong>n Mining of Brazil (Passag<strong>em</strong><br />

13 MARTINS,1984: 206<br />

16


<strong>de</strong> Mariana) e a Saint John Del Rey Mining Company (Morro Velho), a mais<br />

lucrativa <strong>de</strong> todas essas companhias inglesas.<br />

LIBBY (1984) estabelece três motivos pelo fracasso generalizado das<br />

companhias inglesas. O primeiro <strong>de</strong>les foi a dispersão do capital, <strong>em</strong> razão do<br />

gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> Companhias, acrescida dos investimentos <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nados com<br />

operações especulativas na Bolsa <strong>de</strong> Londres. O segundo, conforme este autor, está<br />

relacionado à ina<strong>de</strong>quação das técnicas e métodos <strong>de</strong> segurança disponíveis no<br />

século XIX. O terceiro motivo está relacionado ao fato <strong>de</strong> que a maioria das jazidas<br />

trabalhadas pelas minerações estrangeiras já estavam esgotadas, ou eram pobres <strong>em</strong><br />

teor aurífero.<br />

No entanto, como mostra a tabela abaixo, os rendimentos das maiores<br />

Companhias foram extr<strong>em</strong>amente lucrativos:<br />

Tabela 1: TAXA DE RENDIMENTO ANUAL DAS OITO MAIS RENTÁVEIS EMPRESAS DE<br />

CAPITAL BRITÂNICO INSTALADOS NO BRASIL<br />

EMPRESA /PERÍODO CALCULADO TAXA DE RENDIMENTO<br />

São Paulo Railway Company (1876-1830)<br />

The London & Brazilian Bank (1873-1893)<br />

The English Bank of Rio <strong>de</strong> Janeiro (1874-1892)<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro Gas Company (1865-1886)<br />

San Paulo Gas Company ( 1882- 1912)<br />

Bahia Gas Company (1880- 1894)<br />

Santa Bárbara Gold Mining Company (1876-1886)<br />

St John d’El Rey Mining Company (1835-1886)<br />

Fonte: Rippy, J. F. (1959) – British investments in Latin América, 1822-1949.<br />

In: LIBBY,1984 : p.34<br />

17<br />

11,2%<br />

9,0%<br />

9,5%<br />

10,0%<br />

9,0%<br />

8,0%<br />

14,0%<br />

18,0%<br />

Após <strong>de</strong>cretada a Lei Áurea (1888), nota-se nos primeiros anos uma<br />

transformação no setor mineral: torna-se inviável para as companhias mineradoras,<br />

acostumadas a operar com mão-<strong>de</strong>-obra escrava, arcar, pelo menos <strong>de</strong> imediato, com


os custos <strong>de</strong> um trabalhador assalariado; e os negros, muitas vezes, excluídos do<br />

processo <strong>de</strong> trabalho nas minas, transformam-se <strong>em</strong> garimpeiros clan<strong>de</strong>stinos.<br />

A constituição <strong>de</strong> 1891 estabeleceu, <strong>em</strong> seu artigo 72, parágrafo 17, o direito<br />

fundiário para a mineração. Este fato dava aos proprietários <strong>de</strong> terras o direito às<br />

minas. Assim, os mineradores eram obrigados a adquirir terras on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> haver<br />

jazidas ou tinham que promover acordos com os proprietários. Esta necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

acordos esteve presente <strong>em</strong> dispositivos constitucionais durante toda a vida<br />

republicana brasileira.<br />

É importante ressaltar que toda a legislação que <strong>de</strong>corre a partir da Carta Régia<br />

<strong>de</strong> 1817 14 , não favorece o garimpeiro isolado, ao contrário, marginaliza-o. Aliás, nos<br />

séculos XVIII e XIX, os garimpeiros foram tratados como marginais ou<br />

<strong>de</strong>sclassificados sociais. Neste sentido <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ram:<br />

“dos humores dos Inten<strong>de</strong>ntes e Ouvidores, ora ferozmente caçados pelos<br />

capitães do mato, ora tolerados como agentes mineradores, permitindo-se<br />

até mesmo ao garimpeiro residir nas vilas. S<strong>em</strong>pre clan<strong>de</strong>stino, diferenciouse<br />

do minerador não pelo modo como extraía o b<strong>em</strong> mineral – ambos braçais<br />

e <strong>de</strong> pouca técnica - mas pela condição <strong>de</strong> ilegalida<strong>de</strong>” (SALOMÃO, 1984:<br />

44)<br />

Durante o século XX, as circunstâncias <strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong> na ativida<strong>de</strong> foram<br />

ainda mais intensas, culminando <strong>em</strong> toda a reestruturação ocorrida a partir da década<br />

<strong>de</strong> 80.<br />

2. O Garimpo <strong>de</strong> Ouro no Século XX<br />

De meados do século XIX até o fim da República Velha, o produto mineral<br />

per<strong>de</strong> importância na economia brasileira, que passa a se estruturar <strong>em</strong> torno da<br />

plantation cafeeira. Neste período, a ativida<strong>de</strong> garimpeira torna-se praticamente<br />

invisível, e não se constitui motivo <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração dos legisladores.<br />

14 “Documento que ao estabelecer os estatutos para a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> lavra dá outro direcionamento à questão<br />

mineral; encerra a fase <strong>de</strong> extração aluvionar e dá início à prospecção <strong>de</strong> ouro(...) ibi<strong>de</strong>m<br />

18


Somente <strong>em</strong> 1930, com Getúlio Vargas como chefe do Governo Provisório, e<br />

como parte <strong>de</strong> seu programa <strong>de</strong> governo, que se pretendia popular e nacionalista, foi<br />

estabelecido um direcionamento distinto à questão mineral e, por conseqüência, ao<br />

garimpeiro.<br />

O processo <strong>de</strong> transição da economia agroexportadora para a industrialização,<br />

iniciada na década <strong>de</strong> 1930, <strong>de</strong>spertava o Estado para a importância estratégica da<br />

produção mineral, o que iria resultar no Código Mineral <strong>de</strong> 1934. As décadas<br />

seguintes assistiriam, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da conjuntura política e econômica, a um<br />

movimento pendular <strong>de</strong> iniciativas estatais, ora procurando incluir, ora excluir os<br />

garimpeiros da economia formal.<br />

Pelo Decreto 23.979 <strong>de</strong> 8 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1934, foi criado o DNPM<br />

(Departamento Nacional <strong>de</strong> Produção Mineral), órgão específico <strong>de</strong> formulação da<br />

política mineral e regulação do setor. Antes estes encargos eram <strong>de</strong>legados a uma<br />

simples seção do Ministério da Agricultura.<br />

O Código Mineral <strong>de</strong> 3 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1934 regulamentava a indústria <strong>de</strong><br />

faiscação <strong>de</strong> ouro aluvionar e a garimpag<strong>em</strong> <strong>de</strong> pedras preciosas, e estabelecia, pela<br />

primeira vez, uma política mineral mais ampla, não se limitando às políticas <strong>de</strong><br />

extração e monopólio, ou à proibição dos direitos <strong>de</strong> lavra a grupos estrangeiros.<br />

Dois el<strong>em</strong>entos são fundamentais neste código: o primeiro ponto obsoleto da<br />

legislação anterior, é a separação entre o direito <strong>de</strong> exploração do solo e do subsolo,<br />

fato que tolhia os investimentos na mineração; o segundo é o reconhecimento<br />

institucional da garimpag<strong>em</strong> e a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> seu espaço <strong>de</strong> atuação. O direito<br />

adquirido pelos donos <strong>de</strong> terra, que também eram proprietários das minas e jazidas,<br />

foi resguardado pela Constituição <strong>de</strong> 1934.<br />

O Decreto <strong>de</strong> 1934, como parte do projeto corporativo do Estado Novo,<br />

traduzia uma visão bastante favorável ao garimpeiro e o entendia <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />

dimensão bastante realista, sendo o primeiro documento oficial a valorizar a sua<br />

ativida<strong>de</strong>, <strong>em</strong>bora com uma boa dose <strong>de</strong> paternalismo. No preâmbulo do <strong>de</strong>creto,<br />

Vargas afirmava:<br />

19


“é necessário congraçar os faiscadores e garimpeiros nos mol<strong>de</strong>s do<br />

sindicalismo – cooperativas para a <strong>de</strong>fesa dos seus interesses, a prática <strong>de</strong><br />

melhores métodos <strong>de</strong> trabalho e a melhoria <strong>de</strong> seus proventos.” 15<br />

A <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong> do Decreto 24.193 é aperfeiçoada pelo Decreto<br />

1.374, editado <strong>em</strong> 26 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1939, que se apresentava mais sintonizado com a<br />

realida<strong>de</strong> da ativida<strong>de</strong> garimpeira da época.<br />

No Decreto <strong>de</strong> 1934, o garimpo é reconhecido como ativida<strong>de</strong> coletiva:<br />

“O faiscador ou garimpeiro terá o direito <strong>de</strong> faiscar ou garimpar na zona<br />

indicada no seu certificado, po<strong>de</strong>ndo trabalhar conjuntamente com outros e<br />

usar instalações provisórias e aparelhos simples”.<br />

Neste mesmo <strong>de</strong>creto é <strong>de</strong>finido, com maior precisão, o processo <strong>de</strong> trabalho<br />

que caracteriza a garimpag<strong>em</strong>:<br />

“Caracterizam-se a faiscação, a garimpag<strong>em</strong> e a catação, sobretudo pela<br />

simplicida<strong>de</strong> da utilização dos <strong>de</strong>pósitos minerais, isto é, pela natureza dos<br />

processos, aparelhos e dispositivos <strong>em</strong>pregados – bateias, rokers, slices,<br />

bateias mecânicas, e também pela quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> material extraído e tratado<br />

<strong>em</strong> 24 horas”.<br />

O governo Vargas foi preciso <strong>em</strong> alocar para a garimpag<strong>em</strong> um conjunto <strong>de</strong><br />

áreas que compreendiam todas as terras <strong>de</strong>volutas e rios da nação (Art 5º/ Par. 1º):<br />

22 zonas, sendo 8 <strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ouro e 14 <strong>de</strong> pedras preciosas. Como já foi<br />

dito, <strong>em</strong> terras particulares a garimpag<strong>em</strong> seria permitida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que houvesse<br />

consentimento dos donos ou arrendatários (Art.5º/ Par 2º).<br />

Em 1957, no governo Juscelino Kubistschek, com base na Lei 3.295 <strong>de</strong> 1957,<br />

foi criada a FAG (Fundação <strong>de</strong> Assistência aos Garimpeiros) que retoma a proposta<br />

corporativa do Estado Novo, e propõe assistência ao garimpo, vinculando-o à<br />

Previdência Social. Conforme o Artigo 2º da referida lei, a FAG tinha como<br />

objetivo:<br />

15 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

20


“A prestação <strong>de</strong> serviços sociais nas regiões garimpeiras que vis<strong>em</strong> à<br />

melhoria das condições <strong>de</strong> vida das suas populações, notadamente no que<br />

diz respeito:<br />

a) à saú<strong>de</strong>, educação e assistência sanitária;<br />

b) à habitação, alimentação e ao vestuário;<br />

c) ao incentivo à ativida<strong>de</strong> extrativo-produtora e a quaisquer<br />

<strong>em</strong>preendimentos que vis<strong>em</strong> ao amparo, assistência e valorização do<br />

garimpeiro;<br />

I - a vinculação do garimpeiro ao regime <strong>de</strong> Previdência Social;<br />

II – Promover a aprendizag<strong>em</strong> e o aperfeiçoamento das técnicas do trabalho<br />

no que se relacione à faiscação e à garimpag<strong>em</strong>.<br />

III – Fomentar, nas regiões garimpeiras, a produção agropastoril,<br />

especialmente com o objetivo do auto-abastecimento, e ativida<strong>de</strong>s<br />

domésticas.<br />

IV –Estimular o cooperativismo e o espírito associativo.<br />

V – Realizar inquéritos e estudos para o conhecimento e a divulgação das<br />

necessida<strong>de</strong>s sócioeconômicas do hom<strong>em</strong> do garimpo.<br />

VI – Desbravar zonas garimpeiras inóspitas colonizando, com o concurso do<br />

INIC, as que se prest<strong>em</strong> ao objetivo.<br />

VII – Fornecer, s<strong>em</strong>estralmente e quando solicitados, ao serviço <strong>de</strong><br />

Estatística da Previdência e Trabalho, dados estatísticos relacionados à<br />

r<strong>em</strong>uneração dos garimpeiros.”<br />

As metas propostas pela FAG não foram cumpridas, sendo extintas através do<br />

Decreto 75.208 <strong>de</strong> 1975 no governo Geisel, repassando as responsabilida<strong>de</strong>s<br />

previ<strong>de</strong>nciárias para o Pró-Rural, e as cooperativas para o INCRA.<br />

A proposta <strong>de</strong>senvolvimentista do governo Juscelino imprimiu um ritmo mais<br />

acelerado na captação <strong>de</strong> bens minerais, oferecendo oportunida<strong>de</strong>s para um melhor<br />

conhecimento do solo brasileiro. O ouro, entretanto, não estava incluído nos<br />

21


programas específicos. Nesta mesma época, foi criado o primeiro curso <strong>de</strong> Geologia<br />

no Brasil. 16<br />

É interessante ressaltar que toda a legislação sobre garimpag<strong>em</strong>, até a década<br />

<strong>de</strong> 1960, caracterizava o garimpo como um trabalho extr<strong>em</strong>amente rudimentar e <strong>de</strong><br />

pequena escala, praticado às margens dos rios e chapadas. Todavia, a partir <strong>de</strong> então,<br />

altera-se rapidamente o quadro da extração aurífera no Brasil, com as <strong>de</strong>scobertas<br />

dos mananciais auríferos da região amazônica, principalmente o da Bacia do rio<br />

Tapajós. Começava a <strong>em</strong>ergir um novo padrão <strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong> com base tecnológica<br />

e relações distintas <strong>de</strong> produção.<br />

Com o regime militar iniciado <strong>em</strong> abril <strong>de</strong> 1964, o setor mineral ganhou uma<br />

nova dimensão na estratégia <strong>de</strong> acumulação <strong>de</strong>finida pelo I PND (<strong>Programa</strong><br />

Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento): “O setor mineral não só passa a ter o papel <strong>de</strong><br />

fornecer parte da base material para a conclusão do processo <strong>de</strong> substituição <strong>de</strong><br />

importações, como também, o <strong>de</strong> gerar exce<strong>de</strong>ntes para a exportação.<br />

Diferent<strong>em</strong>ente dos governos populistas anteriores, o capital estrangeiro ao lado <strong>de</strong><br />

<strong>em</strong>presas estatais do setor eram os agentes <strong>de</strong>sta estratégia.” PEREIRA (1990)<br />

No ano <strong>de</strong> 1967, o Código <strong>de</strong> Mineração é editado (Decreto nº 227 <strong>de</strong> fevereiro<br />

<strong>de</strong> 67) e é regulamentado <strong>em</strong> 24 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1968, suprimindo a priorida<strong>de</strong> antes<br />

assegurada ao proprietário do solo; tornava-se livre o requerimento <strong>de</strong> pesquisa<br />

mineral. A in<strong>de</strong>pendência da autorização do dono da terra para a exploração<br />

favorecia, s<strong>em</strong> dúvida, as gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas mineradoras.<br />

Dentro <strong>de</strong> uma perspectiva <strong>de</strong> centralização e fortalecimento dos instrumentos<br />

<strong>de</strong> atuação do governo fe<strong>de</strong>ral, esse código colocava o DNPM <strong>em</strong> uma posição <strong>de</strong><br />

amplos po<strong>de</strong>res na regulamentação da ativida<strong>de</strong> mineradora. Todos os recursos<br />

contra os atos <strong>de</strong>ste órgão eram julgados pelo diretor geral do próprio órgão; e suas<br />

<strong>de</strong>cisões, pelo ministro das Minas e Energia.<br />

A própria <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> garimpeiro presente no artigo 72, já mostra uma<br />

alteração <strong>em</strong> relação a todo o aparato jurídico presente até então:<br />

16 O curso <strong>de</strong> Engenharia <strong>de</strong> Minas havia sido criado <strong>em</strong> Ouro Preto já <strong>em</strong> 1872.<br />

22


“Caracteriza-se a garimpag<strong>em</strong>, a faiscação e a cata:<br />

I- Pela forma rudimentar <strong>de</strong> mineração;<br />

II- Pela natureza dos <strong>de</strong>pósitos trabalhados; e<br />

III- Pelo caráter individual do trabalho, s<strong>em</strong>pre por conta própria”<br />

No entanto, esta conceituação se mostrava claramente ina<strong>de</strong>quada, uma vez<br />

que, <strong>em</strong> todo o Brasil, os garimpos se estruturavam por meio <strong>de</strong> uma organização<br />

essencialmente grupal, com relações verticalizadas. O trabalho por conta própria era<br />

meramente circunstancial. Embora os garimpos foss<strong>em</strong> ainda essencialmente<br />

manuais quando da publicação da lei, <strong>em</strong> curto prazo se iniciaria a apropriação<br />

tecnológica, que viria a transformá-lo <strong>em</strong> algo bastante distinto da imag<strong>em</strong><br />

conduzida pelos dispositivos legais.<br />

O Código <strong>de</strong> 1967 <strong>de</strong>finia que a realização das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong>,<br />

faiscação e cata <strong>de</strong>pendia <strong>de</strong> permissão do governo fe<strong>de</strong>ral. Esta lei punha fim ao<br />

dispositivo, presente no artigo 62 do Decreto Lei 1.985 <strong>de</strong> 1940, que afirmava ser<strong>em</strong><br />

livres os trabalhos <strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong> <strong>em</strong> terras e águas do domínio público; o artigo<br />

75, <strong>de</strong> modo s<strong>em</strong>elhante, restringia o acesso ao subsolo, com a proibição da<br />

garimpag<strong>em</strong> <strong>em</strong> áreas <strong>de</strong> concessão para pesquisa ou lavra. O mesmo Código, <strong>em</strong><br />

seu cap. II criava imensas facilida<strong>de</strong>s para a requisição <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong> pesquisa para<br />

pessoas jurídicas:<br />

“Em 1986, conforme dados do CNPq, virtualmente todas as áreas <strong>em</strong><br />

potencial mineral estavam requeridas. Somavam 1624.555 Km², cerca <strong>de</strong><br />

19% do território brasileiro e <strong>de</strong>ste total 65% se localizavam nas regiões<br />

norte e centro oeste.” (PEREIRA, 1990: 129)<br />

Com isto, as oportunida<strong>de</strong>s abertas à ativida<strong>de</strong> garimpeira tornavam-se, do<br />

ponto <strong>de</strong> vista legal, extr<strong>em</strong>amente restritivas. As áreas reservadas à garimpag<strong>em</strong><br />

pela legislação anterior foram canceladas. Existia ainda um outro recurso no artigo<br />

113 da regulamentação do Código Mineral <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1968, que controlava<br />

ainda mais a ativida<strong>de</strong> garimpeira:<br />

23


“por motivo <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pública, ou do malbarateamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada<br />

riqueza mineral, po<strong>de</strong>rá o Ministro das Minas e Energia, por proposta do<br />

diretor geral do DNPM, <strong>de</strong>terminar o fechamento <strong>de</strong> certas áreas às<br />

ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong>, faiscação ou cata, ou excluir <strong>de</strong>stas a extração <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminado mineral”<br />

Segundo PEREIRA, os diretores do DNPM eram homens <strong>em</strong> perfeita sintonia<br />

com as gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas do setor, quando não oriundos <strong>de</strong>las:<br />

“O corpo técnico do órgão, salvo raras exceções, <strong>de</strong>senvolveu uma i<strong>de</strong>ologia<br />

<strong>de</strong> repúdio à garimpag<strong>em</strong>, patente nos documentos do Departamento e nas<br />

<strong>de</strong>clarações para a imprensa. As <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> favorecimento a <strong>em</strong>presas<br />

foram muitas, especialmente por parte <strong>de</strong> informações privilegiadas”<br />

(PERREIRA 1990: 129)<br />

De 1934 a 1967, o proprietário da terra tinha a preferência para a pesquisa e a<br />

extração do minério encontrado <strong>em</strong> sua terra, além do direito <strong>de</strong> participação nos<br />

lucros da lavra. Somente com a Constituição <strong>de</strong> 1988, os minérios foram<br />

consi<strong>de</strong>rados bens da União. Atualmente, no entanto, <strong>em</strong> quase todas as regiões <strong>de</strong><br />

garimpo no Brasil, são estabelecidos acordos entre os proprietários <strong>de</strong> terras e os<br />

garimpeiros, uma vez que estes não possu<strong>em</strong> a concessão <strong>de</strong> lavra. Os contratos<br />

informais foram a forma encontrada para burlar a legislação e continuar a<br />

garimpag<strong>em</strong>.<br />

O que se viu nos anos 80 foi uma enorme expansão do garimpo. Esse<br />

crescimento gerou um choque direto contra o aparato do Estado que não previa a<br />

dimensão que este adquiria. Essa década foi marcada por um gran<strong>de</strong> aumento do<br />

número <strong>de</strong> garimpeiros no Brasil:<br />

“Para se ter uma idéia, até 1983, <strong>de</strong> acordo com fonte do DNPM, havia<br />

300.000 garimpeiros <strong>em</strong> 30 frentes <strong>de</strong> serviços, além <strong>de</strong> 18 projetos <strong>de</strong><br />

mineração <strong>em</strong> 30 áreas. Só no Pará, concentravam-se 150.000 garimpeiros,<br />

sendo 40.000 <strong>em</strong> Serra Pelada, 45.000 no Cuamuru e 35.000 <strong>em</strong> Tapajós; no<br />

Mato Grosso, 50.000; <strong>em</strong> Goiás, 30.000, e na Bahia, 20.000.”(MARTINS,<br />

1984: 215)<br />

24


As causas e as condições que <strong>de</strong>terminaram o boom garimpeiro dos anos 80<br />

foram se gestando nas décadas anteriores. Na década <strong>de</strong> 70, aten<strong>de</strong>ndo aos interesses<br />

das gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas do setor mineral, praticamente foi fechado o acesso dos<br />

indivíduos e das pequenas <strong>em</strong>presas à exploração econômica dos bens minerais.<br />

Acompanhando o processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização conservadora da agricultura brasileira<br />

durante os anos 70 e 80, um vasto contingente <strong>de</strong> migrantes fluiu para as áreas <strong>de</strong><br />

fronteira da região amazônica <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> melhores oportunida<strong>de</strong>s. Migrantes<br />

vindos das mais diversas regiões do país se engajariam na abertura <strong>de</strong> fazendas, nas<br />

frentes <strong>de</strong> trabalho, na construção <strong>de</strong> estradas e gran<strong>de</strong>s obras, <strong>em</strong> projetos <strong>de</strong><br />

colonização oficial, no extrativismo <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e <strong>de</strong> outros recursos vegetais, assim<br />

como <strong>em</strong> novas e promissoras áreas <strong>de</strong> garimpo.<br />

A <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> jazidas minerais na região amazônica,<br />

especialmente as <strong>de</strong> ouro, combinada com o enorme e repentino afluxo <strong>de</strong> população<br />

nessas áreas, aumentava a tensão pela apropriação <strong>de</strong>sses recursos. A elevação do<br />

preço do ouro nos mercados internacionais funcionou como um catalisador do<br />

surgimento <strong>de</strong> novos garimpos <strong>em</strong> quase todas as regiões.<br />

O final da década <strong>de</strong> 70 foi marcado pela <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> Serra Pelada, na zona<br />

aurífera <strong>de</strong> Carajás, chamando a atenção do Brasil e do mundo para as dramáticas<br />

condições <strong>de</strong> trabalho e para a imensa riqueza que ali eram geradas 17 . Segundo<br />

PEREIRA (1990), <strong>em</strong> poucos dias, a fofoca 18 <strong>de</strong> Serra Pelada espalhava-se <strong>em</strong> toda a<br />

região, e dois meses <strong>de</strong>pois da <strong>de</strong>scoberta, Serra Pelada já contava com um<br />

contingente <strong>de</strong> aproximadamente 20.000 garimpeiros, apesar das dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

acesso ao local.<br />

O governo fe<strong>de</strong>ral, através do SNI (Serviço Nacional <strong>de</strong> Informação), se<br />

encarregou, nas palavras do Major Curió, <strong>de</strong> “controlar o garimpo”. O esqu<strong>em</strong>a<br />

17<br />

O ouro <strong>em</strong> Serra Pelada “fora encontrado, provavelmente, <strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1979, na fazenda <strong>de</strong> Genésio<br />

Ferreira da Silva. PEREIRA (1990: 173)<br />

18<br />

Segundo CLEARY (1990), fofoca na gíria garimpeira correspon<strong>de</strong> ao processo <strong>de</strong> nascimento ou<br />

renascimento <strong>de</strong> um garimpo. Ou seja a notícia <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>scoberta circula e atrai a chegada <strong>de</strong> garimpeiros <strong>de</strong><br />

outras regiões, comerciantes, prostitutas. Em alguns casos específico existe uma certa organização na<br />

25


específico <strong>de</strong> gestão que foi implantado <strong>em</strong> Serra Pelada marcou o início <strong>de</strong> um<br />

novo tipo <strong>de</strong> garimpo, diferente <strong>de</strong> todos os outros existentes. O SNI impôs critérios<br />

bastante peculiares <strong>de</strong> organização e funcionamento da ativida<strong>de</strong>, tais como:<br />

controle do acesso ao garimpo, monopólio da compra do ouro pela Caixa<br />

Econômica Fe<strong>de</strong>ral, abastecimento <strong>de</strong> gêneros <strong>de</strong> consumo feito pela COBAL,<br />

supervisão técnica da extração pelo DNPM, assistência médica pela fundação SESP,<br />

policiamento pela Polícia Fe<strong>de</strong>ral e Militar do Pará e comunicação telefônica e<br />

postal pela Telepará e ECT. Através <strong>de</strong> Serra Pelada, percebe-se uma reação do<br />

Estado, que para controlar toda a produção do ouro, retoma atitu<strong>de</strong>s típicas da Coroa<br />

no século XVIII.<br />

O dono do terreno per<strong>de</strong> o direito a qualquer porcentag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ouro extraída;<br />

são proibidas a entrada <strong>de</strong> mulheres, <strong>de</strong> bebidas e <strong>de</strong> armas. Os esqu<strong>em</strong>as<br />

tradicionais <strong>de</strong> organização do trabalho, divisão do produto e gestão da ativida<strong>de</strong> são<br />

substituídos pelas regras ditadas pelo SNI, personificadas pelo Major Curió:<br />

“Vigorava uma disciplina <strong>de</strong> campo <strong>de</strong> concentração; o hasteamento da<br />

ban<strong>de</strong>ira nacional ,no início e no fim dos trabalhos diários, contava com a<br />

presença <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> homens que cantavam patrioticamente o<br />

hino nacional com as mãos no peito. Num momento <strong>em</strong> que se avolumavam<br />

as pressões da socieda<strong>de</strong> civil pelo <strong>de</strong>smantelamento do SNI e do aparato do<br />

autoritarismo, parecia que o SNI conseguia montar, <strong>em</strong> meio à selva<br />

Paraense, o seu micro i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> política” (PEREIRA, 1990: 176)<br />

A partir <strong>de</strong> 1985, entretanto, inicia-se a fase <strong>de</strong> exaustão e <strong>de</strong>cadência da jazida<br />

e começam a aparecer os conflitos pela administração do garimpo. As pressões eram<br />

gran<strong>de</strong>s para o seu fechamento, principalmente por parte da <strong>de</strong>tentora dos direitos <strong>de</strong><br />

pesquisa, CVRD (Companhia Vale do Rio Doce), que pretendia explorar o ouro<br />

mais profundamente. No entanto, tal medida foi sendo adiada, dado o t<strong>em</strong>or ao<br />

potencial <strong>de</strong> reação que o fechamento <strong>de</strong> Serra Pelada po<strong>de</strong>ria causar. Sob pressão e<br />

lobby dos garimpeiros, o projeto do Curió, então <strong>de</strong>putado, que ampliava o prazo <strong>de</strong><br />

distribuição <strong>de</strong>sta informação. A “fofoca” costuma ser coor<strong>de</strong>nada pelo dono do terra ou pelo <strong>de</strong>scobridor da<br />

jazida que, a qu<strong>em</strong> os garimpeiros pagam uma taxa <strong>de</strong> 10%.<br />

26


fechamento <strong>de</strong> Serra Pelada para 1988, foi aprovado. Como reação, o governo<br />

fe<strong>de</strong>ral transferiu o encargo <strong>de</strong> gerir o garimpo ao DNPM.<br />

Em 27 <strong>de</strong> outubro 1984, sob pressões <strong>de</strong> órgãos estatais, mineradoras e<br />

associações <strong>de</strong> geólogos, o Presi<strong>de</strong>nte Figueiredo vetou o projeto. No entanto,<br />

novamente sob enorme pressão dos garimpeiros, <strong>de</strong>sta vez com atos <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a<br />

violência, como a <strong>de</strong>predação <strong>de</strong> equipamentos da CVRD, o Presi<strong>de</strong>nte Figueiredo<br />

assinou o Decreto 7.194 assegurando a continuida<strong>de</strong> do garimpo, estabelecendo uma<br />

in<strong>de</strong>nização <strong>de</strong> U$$ 60 milhões à CVRD a ser paga pelo Tesouro Nacional, e um<br />

novo prazo até 1987, para a garimpag<strong>em</strong> manual. Entretanto, os probl<strong>em</strong>as<br />

continuaram <strong>em</strong> relação ao manejo das cavas, que necessitavam <strong>de</strong> reparos<br />

impraticáveis aos garimpeiros. Os conflitos continuaram até 1988, visando a obras<br />

que facilitass<strong>em</strong> a extração manual e à posse <strong>de</strong>finitiva da jazida:<br />

“Embora tenham conseguido a posse <strong>de</strong>finitiva da jazida, a situação dos<br />

garimpeiros r<strong>em</strong>anescentes <strong>em</strong> Serra Pelada piorou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então. As obras <strong>de</strong><br />

rebaixamento não foram realizadas, o pouco ouro extraído resulta da<br />

repassag<strong>em</strong> <strong>de</strong> restos <strong>de</strong> minério já lavados, os escândalos <strong>de</strong> corrupção na<br />

COOGAR (cooperativas dos garimpeiros) não pareciam ter fim.”<br />

(PEREIRA, 1990: 184)<br />

Na época da corrida do ouro <strong>de</strong> Serra Pelada, surg<strong>em</strong> também as primeiras<br />

preocupações com a contaminação por mercúrio, <strong>de</strong>vido ao aparecimento <strong>de</strong> seus<br />

sintomas <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> garimpeiros.<br />

É importante ressaltar que, além <strong>de</strong> Serra Pelada, outros garimpos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

porte também foram significativos na década <strong>de</strong> 80 na região amazônica. Entre<br />

eles, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar o <strong>de</strong> Camaru e o <strong>de</strong> Tucumã. Este rush ocorria também<br />

<strong>em</strong> outras regiões do Pará e <strong>em</strong> outros estados e territórios, como era o caso da<br />

região <strong>de</strong> Gurupi e Viseu, nos Estados do Maranhão e do Pará, <strong>de</strong>scritos<br />

minuciosamente por CLEARY (1990), e <strong>em</strong> várias partes do Amapá, <strong>de</strong> Goiás e<br />

<strong>de</strong> Minas Gerais.<br />

Em 1983, Serra Pelada contava com aproximadamente 80.000<br />

trabalhadores, número próximo ao das minas da região <strong>de</strong> Ouro Preto quando <strong>em</strong><br />

plena ativida<strong>de</strong>. Estima-se que, até 1985, mais <strong>de</strong> 37 toneladas <strong>de</strong> ouro tenham<br />

sido extraídas <strong>em</strong> Serra Pelada.<br />

Durante o governo Figueiredo, o cenário político havia se transformado<br />

profundamente. Na área econômica, instalava-se uma crescente crise inflacionária<br />

27


e cambial. Assim, todo o processo <strong>de</strong> re<strong>de</strong>mocratização ocorria <strong>em</strong> um cenário <strong>de</strong><br />

crise econômica latente. O governo passou a encarar o potencial explosivo dos<br />

garimpos, principalmente os da Amazônia, caso a caso, conforme as<br />

circunstâncias e condicionantes, não <strong>de</strong>monstrando nenhuma estratégia <strong>de</strong> longo<br />

prazo. Neste período, o garimpo, apesar <strong>de</strong> seu potencial <strong>de</strong>sestabilizador,<br />

funcionou como uma alternativa para a população <strong>de</strong> baixa renda:<br />

“Como não podia proce<strong>de</strong>r à re<strong>de</strong>finição institucional <strong>de</strong> forma global,<br />

possibilida<strong>de</strong> postergada a uma futura Ass<strong>em</strong>bléia Constituinte, passou-se a<br />

contornar os conflitos pela adoção <strong>de</strong> medidas <strong>em</strong>ergenciais <strong>em</strong> cada um dos<br />

diversos casos. Ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong>sta estratégia, ou falta <strong>de</strong> estratégia, foi a<br />

intervenção militar <strong>em</strong> Serra Pelada e Camuru” (PEREIRA, 1990: 244)<br />

No início da década <strong>de</strong> 80, o Ministério das Minas e Energia chegou a apostar<br />

no garimpo como solução para o aumento da extração do ouro. Esta aposta, além <strong>de</strong><br />

reduzir a tensão social no nor<strong>de</strong>ste e no norte do País, tinha como vantag<strong>em</strong><br />

adicional possibilitar que foss<strong>em</strong> poupados investimentos <strong>em</strong> infra-estrutura e<br />

incentivos fiscais por parte do governo. Esta proposta foi discutida no I Encontro do<br />

Ouro, realizado <strong>em</strong> Brasília, <strong>em</strong> junho <strong>de</strong> 1983, cujo objetivo era traçar as bases da<br />

política minerária após o reconhecimento da importância da ativida<strong>de</strong> garimpeira, a<br />

partir do impacto gerado por Serra Pelada.<br />

O documento produzido neste encontro reconhecia a agilida<strong>de</strong> e a eficiência<br />

dos garimpeiros na <strong>de</strong>scoberta e exploração do ouro, <strong>em</strong>bora ressaltasse que a<br />

ativida<strong>de</strong> garimpeira não <strong>de</strong>veria ser consi<strong>de</strong>rada como o regime i<strong>de</strong>al <strong>de</strong><br />

aproveitamento mineral. No próprio texto lia-se:<br />

“A exploração por garimpag<strong>em</strong> possibilita, <strong>em</strong> maior escala, a diminuição<br />

<strong>de</strong> probl<strong>em</strong>as sociais <strong>de</strong>correntes do <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego, com a utilização <strong>de</strong> um<br />

contingente maior <strong>de</strong> trabalhadores. Com a força propulsora da<br />

garimpag<strong>em</strong>, áreas ainda não <strong>de</strong>sbravadas <strong>de</strong> nosso território po<strong>de</strong>m<br />

conhecer, a curto prazo, o <strong>de</strong>senvolvimento através <strong>de</strong> uma política<br />

compl<strong>em</strong>entar <strong>de</strong> assentamento” 19<br />

Um ponto interessante a ser observado nessa conjuntura é a ascensão da<br />

ativida<strong>de</strong> garimpeira ao status <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> mineradora. Isto ocorria <strong>em</strong> um<br />

28


momento particularmente favorável, no qual conjugava-se a excitação causada pela<br />

propaganda <strong>de</strong> Serra Pelada às dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> investimento, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> das<br />

condições econômicas do país, e à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperada <strong>de</strong> divisas. A partir daí,<br />

o Ministério das Minas e Energia <strong>de</strong>senhou uma política para o ouro, cuja pr<strong>em</strong>issa<br />

básica era o aumento da produção a curto prazo. O garimpo passava a ser tolerado<br />

sob a justificativa da mitigação dos probl<strong>em</strong>as sociais <strong>de</strong>correntes do <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego.<br />

Com o estímulo oferecido pela ação governamental, foram introduzidas<br />

mudanças nas relações básicas <strong>de</strong> produção, <strong>de</strong>terminando novas formas <strong>de</strong> relações<br />

<strong>de</strong> trabalho. Segundo SALOMÃO (1984), <strong>em</strong> três anos, praticamente se extingue,<br />

no país o garimpo manual, base anterior do sist<strong>em</strong>a produtivo:<br />

“A força braçal é substituída por sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> <strong>de</strong>smonte hidráulico e bombas<br />

<strong>de</strong> sucção por tratores, moinhos, caminhões e todo um universo <strong>de</strong><br />

apropriações tecnológicas, tornando o hom<strong>em</strong> um agente compl<strong>em</strong>entar na<br />

produção, a qual é, na verda<strong>de</strong>, realizada pela máquina. (SALOMÃO. 1984:<br />

65)<br />

As <strong>de</strong>liberações do Encontro do Ouro favorec<strong>em</strong> o surgimento <strong>de</strong> um novo tipo<br />

<strong>de</strong> garimpeiro, o chamado garimpeiro <strong>em</strong>presário, que se caracteriza pela posse <strong>de</strong><br />

um <strong>em</strong>preendimento mecanizado, normalmente com dois motores <strong>de</strong> sucção, e pelo<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> contratar garimpeiros para as novas funções exigidas.<br />

Com o fracasso dos objetivos do governo <strong>de</strong> aumentar significativamente a<br />

produção do ouro via garimpo, não se restaurou, como <strong>de</strong>sejavam os <strong>em</strong>presários<br />

mineradores, o cumprimento da lei. Assim, a repressão ostensiva ao garimpo<br />

nunca mais se restabeleceu.<br />

Assim, durante o resto da década <strong>de</strong> 80, o garimpo passa a ser visto<br />

novamente pelo Estado como um probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong> múltiplas dimensões. Encarado<br />

como um aci<strong>de</strong>nte social e foco potencial <strong>de</strong> agitação, o garimpo <strong>de</strong>veria, na<br />

melhor das hipóteses, ser transformado <strong>em</strong> um outro tipo <strong>de</strong> estrutura social,<br />

como uma cooperativa ou mesmo uma pequena <strong>em</strong>presa <strong>de</strong> mineração. Outra<br />

hipótese era a sua eliminação <strong>de</strong>finitiva.<br />

A Constituição <strong>de</strong> 1988 <strong>de</strong>u um <strong>de</strong>staque importante à questão mineral,<br />

conce<strong>de</strong>ndo o monopólio <strong>de</strong> extração às <strong>em</strong>presas <strong>de</strong> capital nacional e<br />

19 Ministério das Minas e Energia. Ouro – bases para uma nova política. Brasília, 1983. p. 25-6 Cit por<br />

PEREIRA (1990)<br />

29


econhecendo, <strong>de</strong> fato, o espaço que o garimpo ocupava. As áreas dos garimpos,<br />

quando da publicação da Constituição, foram reconhecidas como áreas reservadas<br />

à garimpag<strong>em</strong>. A Constituição estabelecia ainda, através do artigo XXV, a<br />

possibilida<strong>de</strong> da União criar novas reservas garimpeiras. O parágrafo 4º do Artigo<br />

174 favorecia e assegurava ao garimpeiro a “priorida<strong>de</strong> na autorização ou<br />

concessão para a pesquisa e lavra dos recursos e jazidas <strong>de</strong> minerais<br />

garimpáveis”.<br />

Atualmente, a ativida<strong>de</strong> garimpeira <strong>de</strong> ouro no Brasil, principalmente a <strong>de</strong><br />

extração aluvionar, continua como um importante segmento da mineração, tanto do<br />

ponto <strong>de</strong> vista da produção aurífera 20 como o da absorção <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra. Nos<br />

últimos quinze anos, ocorreram transformações profundas na organização da<br />

ativida<strong>de</strong>. Os garimpos artesanais <strong>de</strong> subsistência praticamente <strong>de</strong>sapareceram,<br />

<strong>em</strong>ergindo um tipo estruturado <strong>em</strong> bases quase <strong>em</strong>presariais. Estes novos garimpos<br />

são mecanizados, caracterizando novas relações <strong>de</strong> trabalho <strong>em</strong> sua divisão,<br />

organização e gestão. Como será <strong>de</strong>monstrado no terceiro capítulo, através da<br />

pesquisa <strong>de</strong> campo, a ativida<strong>de</strong> exige atualmente do trabalhador maior<br />

especialização, uma vez que se tornou mais complexa. É imprescindível, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, o conhecimento <strong>de</strong> mecânica, <strong>de</strong> utilização do mercúrio e <strong>de</strong> drenag<strong>em</strong> das<br />

cavas.<br />

3. As Diversas Formas <strong>de</strong> Extração do Ouro.<br />

As colocações anteriores tornam claro que não se po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a<br />

estrutura do mundo do garimpo s<strong>em</strong> o referencial das configurações institucionais<br />

que o englobam. O papel do Estado, e <strong>em</strong> particular, a natureza e a abrangência <strong>de</strong><br />

sua capacida<strong>de</strong> regulatória <strong>de</strong>finirão o campo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s e limites <strong>em</strong> que se<br />

<strong>de</strong>senrolará a ativida<strong>de</strong> garimpeira. Tanto as formas <strong>de</strong> organização do trabalho,<br />

quanto a natureza das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> transações econômicas <strong>em</strong> que se situa o garimpo<br />

20 Segundo estimativa do DNPM (Departamento Nacional da Produção Mineral), os garimpeiros foram<br />

responsáveis por 44% do ouro extraído no Brasil <strong>em</strong> 1993 (estima-se que o garimpo <strong>de</strong>va respon<strong>de</strong>r<br />

atualmente por mais <strong>de</strong> 1/5 da produção mineral brasileira, excluído o petróleo).<br />

30


serão profundamente marcadas pelas formas <strong>de</strong> confiança interpessoal e<br />

previsibilida<strong>de</strong> criadas pelo contexto geral <strong>em</strong> que se insere a ativida<strong>de</strong>.<br />

Vale a pena salientar como a literatura recente sobre economias informais é<br />

capaz <strong>de</strong> lançar luz sobre as formas <strong>de</strong> estruturação do garimpo. Alejandro PORTES<br />

(1994) enten<strong>de</strong> por informalida<strong>de</strong> “uma ação econômica <strong>de</strong>senvolvida à marg<strong>em</strong> do<br />

po<strong>de</strong>r legalmente instituído, sendo neste sentido excluída da proteção das leis, ou<br />

seja, uma ativida<strong>de</strong> produtiva <strong>de</strong> bens e serviços que se <strong>de</strong>senvolve paralelamente à<br />

economia formal”.<br />

É importante distinguir conceitualmente ativida<strong>de</strong>s econômicas informais e<br />

ilegais. A incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> marcar analiticamente a distinção conduz,<br />

freqüent<strong>em</strong>ente, a interpretações equivocadas do fenômeno da informalida<strong>de</strong>.<br />

Segundo PORTES (1994), “o <strong>em</strong>preendimento ilegal envolve a produção e a<br />

comercialização <strong>de</strong> bens que são <strong>de</strong>finidos, <strong>em</strong> um <strong>de</strong>terminado lugar e t<strong>em</strong>po, como<br />

ilícitos”. No <strong>em</strong>preendimento informal, ao contrário, os acordos são realizados na<br />

sua maioria como bens lícitos, <strong>em</strong>bora sob modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ação econômica não<br />

sujeitas (ou resistentes) à regulação estatal. Assim, po<strong>de</strong>-se afirmar que a diferença<br />

básica entre economia formal e informal não está no caráter final do produto, mas<br />

sim, na maneira como ele é produzido e trocado.<br />

Segundo PORTES (1994), as relações entre a regulação estatal e a<br />

informalida<strong>de</strong> estariam submetidas a uma série <strong>de</strong> paradoxos. Um <strong>de</strong>les t<strong>em</strong>, como<br />

ponto <strong>de</strong> partida, a crítica a certas interpretações 21 que vê<strong>em</strong> na economia informal a<br />

concretização espontânea <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro mercado puro, s<strong>em</strong> as intervenções<br />

distorsivas da regulação estatal. O paradoxo, segundo Portes, é que quanto mais a<br />

economia informal se aproxima do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> “verda<strong>de</strong>iro mercado”, mais<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte ela se torna <strong>de</strong> fortes laços sociais, que permitam a continuida<strong>de</strong> das<br />

transações <strong>em</strong> um contexto on<strong>de</strong> estão ausentes garantias formais. O vácuo da<br />

regulação estatal <strong>de</strong>ve ser preenchido por mecanismos <strong>de</strong> mobilização <strong>de</strong> recursos e<br />

21 DE SOTO (1989)<br />

31


estabilização das transações baseadas <strong>em</strong> networks sociais específicas. Nas palavras<br />

<strong>de</strong> PORTES:<br />

“Trust in informal exchange is generated both by shared i<strong>de</strong>ntities and<br />

feelings and by the expectation that fraudulent actions will be penalized by<br />

the exclusion of the violator from key social networks” (1994: 432)<br />

Outro paradoxo diz respeito ao tratamento dado pelo Estado à economia<br />

informal, ou seja, esforços para impedir ou limitar a expansão das regras e controles<br />

<strong>de</strong>ssa economia po<strong>de</strong>m exacerbar várias <strong>de</strong>ssas condições e, muitas vezes, dar<br />

orig<strong>em</strong> a essas ativida<strong>de</strong>s. Neste sentido, o que po<strong>de</strong> acontecer é que a regulação<br />

estatal, apesar <strong>de</strong> não criar a economia informal ipso facto, gera oportunida<strong>de</strong>s para<br />

o seu <strong>de</strong>senvolvimento. Isto po<strong>de</strong> ser percebido no fato <strong>de</strong> muitas comunida<strong>de</strong>s se<br />

organizar<strong>em</strong>, resistindo ao controle do Estado e, simultaneamente, tendo vantagens e<br />

oportunida<strong>de</strong>s por ele criadas. Segundo PORTES:<br />

“The informal economy can be viewed as a constructed response on the part<br />

of civil society to unwanted state interference. The universal character of the<br />

phenomenon reflects the consi<strong>de</strong>rable capacity of resistance in most societies<br />

to the exercise of state power” (1994: 444)<br />

As implicações <strong>de</strong>sta análise para o entendimento da ativida<strong>de</strong> garimpeira são<br />

extr<strong>em</strong>amente importantes. O garimpo esteve, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu surgimento, imerso na<br />

economia informal, <strong>em</strong> que estão ausentes as garantias formais do direito <strong>de</strong><br />

proprieda<strong>de</strong>; s<strong>em</strong>pre à marg<strong>em</strong> da or<strong>de</strong>m legalmente constituída. Esta marginalida<strong>de</strong><br />

foi fundamental na constituição do ambiente <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong>finindo as bases <strong>de</strong> toda<br />

a sua estrutura a partir <strong>de</strong> uma lógica organizacional totalmente diversa das<br />

organizações burocráticas convencionais. Toda a sua organização é estruturada<br />

provisoriamente, seja <strong>em</strong> função da imprevisibilida<strong>de</strong> gerada pela fiscalização, seja<br />

pelas características naturais e próprias da ativida<strong>de</strong>. De um lado, a profunda<br />

instabilida<strong>de</strong> e incerteza, que s<strong>em</strong>pre envolveram a ativida<strong>de</strong>, fizeram com que<br />

foss<strong>em</strong> reduzidos, drasticamente, os horizontes t<strong>em</strong>porais dos garimpeiros, inibindo<br />

32


investimentos com base <strong>em</strong> capital fixo <strong>de</strong> longo prazo. De outro lado, a<br />

improbabilida<strong>de</strong> da regulação estatal <strong>de</strong>termina que as transações econômicas se<br />

<strong>de</strong>senrol<strong>em</strong> <strong>em</strong> um contexto <strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> garantias <strong>de</strong> enforc<strong>em</strong>ent, tornando os<br />

atos contratuais excessivamente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> um elevado grau <strong>de</strong> confiança<br />

interpessoal. Ambas as circunstâncias concorr<strong>em</strong> para tornar as relações da<br />

garimpag<strong>em</strong> marcadas por elevada tensão e <strong>de</strong>sconfiança. Esse ambiente <strong>de</strong><br />

contingência exacerbada é, s<strong>em</strong> dúvida, um el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a importância na<br />

moldag<strong>em</strong> da organização do trabalho.<br />

Esses fatores fizeram com que o garimpo se estruturasse <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> uma<br />

cultura muito peculiar, solidificando uma organização dinâmica e específica <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento. Esta cultura garimpeira é percebida no que se convencionou<br />

chamar <strong>de</strong> “lei do garimpo,” 22 i<strong>de</strong>ntificada como o principal sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> organização<br />

da ativida<strong>de</strong>. É <strong>em</strong> torno <strong>de</strong>sse código tácito que se estruturam as relações sociais<br />

no mundo do garimpo, baseadas <strong>em</strong> um conjunto <strong>de</strong> normas éticas pactuadas.<br />

A lei do garimpo estrutura as relações <strong>de</strong> trabalho, as formas <strong>de</strong> gestão, os<br />

direitos e <strong>de</strong>veres dos trabalhadores, os mecanismos <strong>de</strong> recrutamento, a divisão do<br />

produto extraído, os direitos <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada área e as relações<br />

com os compradores <strong>de</strong> ouro; ou seja, a lei do garimpo regula as condições morais<br />

das relações <strong>de</strong> confiança <strong>de</strong> uma forma geral, num contexto <strong>em</strong> que prevalec<strong>em</strong><br />

contratos informais e <strong>em</strong> que os prejuízos trazidos pelo comportamento<br />

oportunístico são, potencialmente, muito gran<strong>de</strong>s.<br />

Se por um lado a ativida<strong>de</strong> garimpeira se <strong>de</strong>senrola <strong>em</strong> um ambiente <strong>de</strong><br />

confiança reduzida e elevado potencial <strong>de</strong> conflito, por outro, a própria natureza da<br />

ativida<strong>de</strong> supõe elevado grau <strong>de</strong> cooperação, tanto no processo <strong>de</strong> trabalho, quanto<br />

na cumplicida<strong>de</strong> tácita frente a outras categorias sociais <strong>de</strong>finidas como “estranhos”.<br />

22 Segundo Mariane SCHMINK 1985 citado por PEREIRA (1990) a “lei do garimpo” po<strong>de</strong> ser entendida<br />

como: “A well <strong>de</strong>veloped set of norms and beliefs (...)A complex syst<strong>em</strong> of labor relations and its<br />

accompanying i<strong>de</strong>ology enphasing both in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nce and solidarity”<br />

33


Segundo MELLO E SOUSA (1986), os garimpeiros foram os primeiros homens<br />

livres e pobres da colônia a <strong>de</strong>senvolver um certo esprit <strong>de</strong> corps:<br />

“O grupo <strong>de</strong> garimpeiros foi um dos mais solidários <strong>de</strong> que se teve notícia<br />

no período colonial. Gerados pelo processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sclassificação que o<br />

fiscalismo <strong>de</strong>svairado – “o gênio migalheiro do <strong>de</strong>spotismo” – tornou<br />

particularmente intenso na <strong>de</strong>marcação diamantina(...). Não se confundiam<br />

com o bandido, apresentando um código próprio <strong>de</strong> conduta pautado na<br />

lealda<strong>de</strong>; limitavam-se a trabalhar <strong>em</strong> terras vedadas, e este era o seu único<br />

crime, pois respeitavam a vida, os direitos, as proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seus<br />

concidadãos” (MELLO E SOUSA, 1986: 203 )<br />

Essa solidarieda<strong>de</strong> grupal é uma característica fundamental nos garimpos<br />

brasileiros. A conduta baseada na lealda<strong>de</strong> se apresenta, entre outros aspectos, na<br />

distribuição do produto da extração, e também é percebida na sua organização <strong>em</strong><br />

função da clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>. Vítimas da coerção estatal un<strong>em</strong>-se para antecipar a<br />

fiscalização e se organizam <strong>em</strong> função <strong>de</strong>la. Dessa forma, a lei do garimpo foi qu<strong>em</strong><br />

garantiu o funcionamento <strong>de</strong>sse <strong>em</strong>preendimento caracterizado pelo excessivo risco<br />

<strong>de</strong> toda a informalida<strong>de</strong> <strong>em</strong> que s<strong>em</strong>pre se encontrou.<br />

Em torno <strong>de</strong>ssa cultura garimpeira, cristalizou-se uma representação mítica do<br />

garimpeiro estribada nas idéias <strong>de</strong> sorte, aventura e jogo, e corporificada <strong>em</strong> torno<br />

<strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> lendas, mitos e histórias <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s bamburros seguidos <strong>de</strong> falência.<br />

Esta representação, presente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o surgimento da figura do garimpeiro, foi se<br />

fortalecendo gradualmente no imaginário popular e, por quê não dizer, alimentada<br />

pelos próprios garimpeiros. Assim, o garimpeiro era aquele aventureiro, audaz,<br />

ambicioso, jogador intrépido, que buscava fortuna numa vida cheia <strong>de</strong> riscos,<br />

perigos e <strong>em</strong>oções. A literatura produzida, principalmente nas regiões garimpeiras,<br />

só veio fortalecer esse imaginário. Nas palavras <strong>de</strong> Bernardo Guimarães <strong>em</strong> 1872:<br />

“O garimpeiro é como um jogador; sua esperança está s<strong>em</strong>pre no seio da<br />

grupiara, como a do jogador nas cartas do baralho, nos dados ou no<br />

tabuleiro ver<strong>de</strong> do bilhar; isto é, sua felicida<strong>de</strong> dorme na urna do acaso <strong>de</strong><br />

34


on<strong>de</strong> as mais das vezes nunca sai. Por mais que sejam os revezes com que a<br />

fortuna os maltrate, por mais que repila e os calque os pés, esses cegos e<br />

pertinazes amantes estão s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong> rojo a mendigar favores aos pés daquela<br />

cruel e caprichosa amásia” 23 (p. 91)<br />

Ou ainda:<br />

“É o garimpo que seduz e cega o hom<strong>em</strong> mais do que a mesa <strong>de</strong> jogo ou a<br />

meretriz artificiosa. Ven<strong>de</strong>rei meu cavalo, meus arreios, minha faca <strong>de</strong><br />

prata, e darei tudo ainda a <strong>de</strong>vorar a esse maldito garimpo” 24 (p. 49)<br />

Para Joaquim Felício dos Santos, os valores centrais da vida do garimpeiro<br />

eram o gosto pela vida livre e aventureira. Na sua obra “Cenas da vida do<br />

garimpeiro João <strong>Costa</strong>”, ele diz:<br />

“Será para outros um triste viver andar s<strong>em</strong>pre proscrito, foragido,<br />

perseguido, exposto à morte a cada momento, não tendo um abrigo certo,<br />

dormindo ao relento ou disputando os covis às feras, hoje na abundância,<br />

amanhã sofrendo frio, a fome, a se<strong>de</strong>... mas para mim não: encontro prazer<br />

nessa vida. Aqui ao menos respiro o ar da liberda<strong>de</strong>” (SANTOS, 1976: 99)<br />

Po<strong>de</strong>m ainda ser citados autores como Mata Machado e Helena Morley, que<br />

<strong>em</strong> suas obras fortalec<strong>em</strong> a imag<strong>em</strong> do garimpeiro aventureiro, ambicioso,<br />

hospitaleiro, leal com os companheiros, imprevi<strong>de</strong>nte no trato com o dinheiro, crente<br />

<strong>em</strong> superstições etc. MATA MACHADO (1964) relaciona uma série <strong>de</strong> mitos e<br />

crenças que, <strong>em</strong> sua opinião, são el<strong>em</strong>entos que serv<strong>em</strong> <strong>de</strong> estímulo à permanência<br />

do trabalhador neste ambiente <strong>de</strong> elevado risco. Frases como: “os primeiros<br />

bamburros só vêm <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um longo azar”, “o que t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser meu está <strong>de</strong>baixo<br />

da terra”, ou “serviço <strong>de</strong> muita ganga entra vestido e sai <strong>de</strong> tanga” são<br />

comprovações <strong>de</strong>sse fato.<br />

Essa distinção está presente até hoje nas áreas <strong>de</strong> garimpo <strong>em</strong> todo o Estado <strong>de</strong><br />

Minas Gerais. Muitas vezes, os <strong>de</strong>feitos atribuídos ao garimpeiro, como o <strong>de</strong> gastar<br />

todo o ouro achado <strong>em</strong> futilida<strong>de</strong>s é, na verda<strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>rado uma qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro<br />

23 GUIMARÃES, Bernardo. O garimpeiro. São Paulo, Ática, (1872) 1993.<br />

35


<strong>de</strong> seu grupo social. No capítulo seguinte, serão tratadas essas especificida<strong>de</strong>s<br />

quando da abordag<strong>em</strong> do métier <strong>de</strong> garimpeiro.<br />

A análise da trajetória histórica do garimpo permite perceber que as formas <strong>de</strong><br />

organização do trabalho <strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong> apresentam diferenças marcantes <strong>em</strong><br />

relação a outras formas <strong>de</strong> organização do trabalho <strong>de</strong> mineração. Constata-se o fato<br />

<strong>de</strong> que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVIII, a extração mineral é caracterizada por duas formas<br />

distintas <strong>de</strong> organização do trabalho: os <strong>em</strong>preendimentos <strong>de</strong> pequena escala do<br />

garimpo e as lavras <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> escala. A análise apontou também que, durante a<br />

década <strong>de</strong> 80, o garimpo transforma-se <strong>de</strong> tal monta que dá orig<strong>em</strong> a uma forma <strong>de</strong><br />

organização do trabalho com novos contornos: o garimpo s<strong>em</strong>imecanizado.<br />

Por conseguinte, torna-se importante distinguir as características estruturais <strong>de</strong><br />

cada um <strong>de</strong>stes formatos produtivos. A partir <strong>de</strong> construções <strong>de</strong> tipos i<strong>de</strong>ais, como<br />

recurso heurístico, <strong>de</strong>cidiu-se marcar mais claramente as s<strong>em</strong>elhanças e os<br />

contrastes entre os vários mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> organização produtiva da extração mineral.<br />

Como acontece s<strong>em</strong>pre com os tipos i<strong>de</strong>ais, tais constructos são apenas<br />

aproximações imperfeitas da imensa complexida<strong>de</strong> e heterogeneida<strong>de</strong> das situações<br />

reais da extração minerária, que permit<strong>em</strong> organizar gradientes e conjuntos<br />

significativos <strong>de</strong> características estruturais.<br />

Delineavam-se assim, pois, três grupos <strong>de</strong> formas predominantes <strong>de</strong><br />

organização produtiva da extração mineral experimentadas historicamente no<br />

contexto brasileiro: o garimpo artesanal, o garimpo s<strong>em</strong>imecanizado e as gran<strong>de</strong>s<br />

<strong>em</strong>presas mineradoras, cada qual apresentando processos <strong>de</strong> trabalho, formas <strong>de</strong><br />

conhecimento e estruturas <strong>de</strong> cooperação e autorida<strong>de</strong> particulares. As principais<br />

diferenças são t<strong>em</strong>atizadas no Quadro 1, adaptando as classificações propostas por<br />

Tilly & Tilly (1998):<br />

24 Ibi<strong>de</strong>m p. 80<br />

36


Quadro 1. Formas <strong>de</strong> Organização Produtiva na Extração Mineral<br />

Garimpo<br />

Artesanal<br />

Escala Individual/Familiar<br />

Divisão do<br />

Trabalho<br />

Controle do<br />

Processo <strong>de</strong><br />

Trabalho<br />

Base Técnica<br />

Formas <strong>de</strong><br />

Conhecimento<br />

Previsibilida<strong>de</strong><br />

dos Resultados<br />

Estruturas <strong>de</strong><br />

Incentivos<br />

Relações <strong>de</strong><br />

Trabalho<br />

Unida<strong>de</strong> do Processo <strong>de</strong><br />

Trabalho/ Estruturada<br />

pelo métier<br />

Trabalhador<br />

Técnicas Rústicas<br />

Tradicionais<br />

Experiência Pru<strong>de</strong>ncial<br />

e Critérios <strong>de</strong><br />

Julgamento<br />

37<br />

Garimpo<br />

S<strong>em</strong>iMecanizado<br />

Pequenos Grupos/<br />

Familiar<br />

Divisão do Trabalho<br />

estruturada pelo métier<br />

Negociações entre<br />

Trabalhador/Gerência<br />

Técnicas artesanais e<br />

<strong>de</strong>smonte mecânico/<br />

sondag<strong>em</strong> precária<br />

Experiência Pru<strong>de</strong>ncial<br />

e Rotinas<br />

Empresa Mineradora<br />

Gran<strong>de</strong>s Números<br />

Divisão Taylorista do<br />

Trabalho<br />

Gerência e<br />

organização<br />

hierárquica<br />

Mecanização/<br />

Sondag<strong>em</strong><br />

Rotinização e<br />

Prescrição Prévia<br />

Reduzida Reduzida Elevada<br />

Re<strong>de</strong>s sociais informais<br />

Horizontais<br />

Networks Família e Trabalho<br />

Contexto<br />

Institucional<br />

Compensação material<br />

Re<strong>de</strong>s sociais informais<br />

Verticalizadas, mas<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />

cooperação.<br />

Família, Trabalho e<br />

Localida<strong>de</strong>.<br />

Compensação<br />

Material<br />

Verticais<br />

Trabalho e<br />

Hierarquias<br />

Informalida<strong>de</strong> Informalida<strong>de</strong> Formalida<strong>de</strong><br />

O garimpo artesanal ou manual constitui uma ativida<strong>de</strong> econômica<br />

tipicamente orientada à subsistência, mantendo-se ainda na marginalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma<br />

residual <strong>em</strong> algumas regiões. Caracteriza-se pela ausência completa <strong>de</strong> máquinas e<br />

<strong>de</strong> sondag<strong>em</strong>. Utiliza algumas ferramentas como a bateia e, atualmente, faz uso do<br />

mercúrio para a apuração do ouro. É uma ativida<strong>de</strong> que requer baixíssimo capital.


Obviamente, não <strong>de</strong>tém a concessão da área <strong>de</strong> exploração 25 e continua na<br />

clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>, atuando nos rios e nas suas margens. Mantém quase intactas as<br />

mesmas técnicas utilizadas nos séculos passados. É um <strong>em</strong>preendimento individual,<br />

itinerante e realizado por grupos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, muitas vezes familiares.<br />

Este não é o grupo mais perseguido pelos órgãos fiscalizadores, pois o seu<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradação ambiental não é gran<strong>de</strong>. Muitas vezes, trabalha<br />

clan<strong>de</strong>stinamente nos esgotos das gran<strong>de</strong>s mineradoras, on<strong>de</strong> explora os resquícios<br />

<strong>de</strong> uma extração mais racional. Normalmente os donos dos garimpos<br />

s<strong>em</strong>imecanizados permit<strong>em</strong> que estes grupos se aloqu<strong>em</strong> ao lado <strong>de</strong> suas cavas.<br />

O garimpo s<strong>em</strong>imecanizado também possui um caráter itinerante,<br />

principalmente nos garimpos com sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> balsas, <strong>em</strong> que a extração é feita <strong>de</strong>ntro<br />

do leito do rio, tornando <strong>de</strong>snecessários os acordos com os donos dos terrenos. São<br />

formados por grupos que variam entre 5 e 10 trabalhadores, sendo os donos<br />

normalmente familiares, que contratam outros trabalhadores. Os garimpeiros, via <strong>de</strong><br />

regra, lavram terras <strong>de</strong> terceiros. Em função disto, são estabelecidos acordos entre os<br />

garimpeiros e os proprietários ou entre os garimpeiros e os financiadores do<br />

<strong>em</strong>preendimento, o que ocasionalmente, gera conflitos. Estão ausentes as técnicas <strong>de</strong><br />

sondag<strong>em</strong>, portanto é baixo o índice <strong>de</strong> previsibilida<strong>de</strong>.<br />

Este tipo <strong>de</strong> garimpo <strong>em</strong>ergiu a partir dos anos 80 <strong>em</strong> razão do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento das técnicas e processos <strong>de</strong> trabalho dos garimpos artesanais. O<br />

principal el<strong>em</strong>ento que o diferencia do garimpo manual é o uso <strong>de</strong> motores na<br />

extração, equipamentos que não foram <strong>de</strong>senvolvidos pelos próprios trabalhadores,<br />

pois são motores adaptados à ativida<strong>de</strong> garimpeira <strong>em</strong> momentos circunstanciais<br />

favoráveis, po<strong>de</strong>ndo ser encontrados <strong>em</strong> outros tipos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> extrativa, como a<br />

<strong>de</strong> diamantes e a <strong>de</strong> areia. O uso <strong>de</strong> tais motores modificou radicalmente a extração<br />

aurífera, tornando a ativida<strong>de</strong> muito mais dinâmica e eficaz.<br />

25 Esta concessão é fornecida pelo DNPM, e se trata <strong>de</strong> um processo lento e oneroso, o que <strong>de</strong>smotiva o<br />

garimpeiro a buscá-lo, e <strong>de</strong>sta forma, dar o primeiro passo a sua legalização.<br />

38


A produtivida<strong>de</strong> é mais elevada se comparada aos garimpos artesanais, pois,<br />

com os motores, maiores profundida<strong>de</strong>s são atingidas. No entanto, <strong>em</strong> termos gerais,<br />

a extração é pequena, uma vez que as áreas <strong>de</strong> maior ocorrência já foram bastante<br />

exploradas pelas gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas possuidoras das concessões <strong>de</strong> extração. A<br />

utilização <strong>de</strong> motores também passou a envolver maior número <strong>de</strong> trabalhadores e a<br />

exigir um nível <strong>de</strong> especialização mais elevado. Com isto, surge uma divisão maior<br />

do trabalho que, pelas próprias características da ativida<strong>de</strong>, não é muito rígida.<br />

As relações <strong>de</strong> trabalho são estabelecidas <strong>em</strong> um sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> confiança mútua e<br />

a r<strong>em</strong>uneração é por porcentag<strong>em</strong> do total <strong>de</strong> minério extraído. São relações<br />

verticalizadas mas s<strong>em</strong> rigi<strong>de</strong>z, ou seja, com mecanismos <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação <strong>em</strong> que os<br />

donos dos motores <strong>de</strong>terminam as tarefas a ser<strong>em</strong> executadas, e os trabalhadores as<br />

executam <strong>em</strong> conjunto com os garimpeiros mais experientes.<br />

Os garimpos s<strong>em</strong>i-mecanizados possu<strong>em</strong> um investimento <strong>de</strong> capital fixo<br />

consi<strong>de</strong>rável para os padrões locais, aplicados essencialmente <strong>em</strong> motores, e <strong>em</strong><br />

alguns casos, <strong>em</strong> tratores.<br />

Estes garimpos são alvo <strong>de</strong> uma fiscalização intensiva dos órgãos ambientais,<br />

<strong>em</strong> razão do elevado po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição do meio ambiente pela ação dos motores,<br />

pela utilização do mercúrio e pela maior visibilida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>gradação provocada.<br />

Os locais <strong>de</strong> extração, tal como os dos garimpos artesanais, são <strong>de</strong>terminados<br />

por saberes adquiridos no trabalho. Muitas vezes, as orientações são fornecidas por<br />

garimpeiros mais velhos, <strong>de</strong>tentores reconhecidos <strong>de</strong>stas competências.<br />

Um terceiro tipo <strong>de</strong> extração <strong>de</strong> ouro é o realizado pelas <strong>em</strong>presas<br />

mineradoras. Estas <strong>em</strong>presas são altamente mecanizadas, com sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> dragas<br />

flutuantes que retiram elevadas quantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cascalho para a apuração e atuam<br />

com um sofisticado sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> apuração química do ouro, <strong>em</strong> alguns casos s<strong>em</strong> a<br />

utilização <strong>de</strong> mercúrio. Através da prospecção geológica, avaliam a jazida <strong>em</strong> seu<br />

prognóstico e diagnóstico, o que lhes possibilita extrair gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro.<br />

Além disso, a prospecção restringe as incertezas do terreno, permite o planejamento<br />

e a projeção dos resultados econômicos da lavra e reduz os riscos do<br />

39


<strong>em</strong>preendimento; conseqüent<strong>em</strong>ente, aumenta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um êxito<br />

compensador. Submetidas a uma racionalida<strong>de</strong> capitalista, estas <strong>em</strong>presas tentam <strong>de</strong><br />

todas as formas, minimizar e tornar controláveis os imprevistos característicos da<br />

extração.<br />

Estas <strong>em</strong>presas se diferenciam radicalmente dos garimpos anteriormente<br />

<strong>de</strong>scritos, pois adquir<strong>em</strong> a concessão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s extensões <strong>de</strong> terras on<strong>de</strong> exist<strong>em</strong><br />

jazidas conhecidas ou supostas.<br />

As relações <strong>de</strong> trabalho se ass<strong>em</strong>elham às <strong>de</strong> quaisquer <strong>em</strong>preendimentos<br />

capitalistas: os trabalhadores são assalariados, submetidos à gerência, etc. Este<br />

grupo possui um elevado potencial <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradação ambiental, que é fiscalizada pelos<br />

órgãos ambientais dos Estados.<br />

Este trabalho preten<strong>de</strong>u investigar o mundo do trabalho dos garimpos<br />

s<strong>em</strong>imecanizados, que comporta a caracterização <strong>de</strong> um híbrido intermediário entre<br />

o garimpo artesanal e as <strong>em</strong>presas mineradoras.<br />

Neste tipo <strong>de</strong> garimpo estão presentes vários el<strong>em</strong>entos do garimpo artesanal,<br />

como por ex<strong>em</strong>plo, a baixa previsibilida<strong>de</strong> da extração, as relações <strong>de</strong> trabalho<br />

marcadas por um elevado grau <strong>de</strong> porosida<strong>de</strong> e a divisão percentual do produto<br />

extraído entre os participantes. Também se ass<strong>em</strong>elha aos garimpos tradicionais <strong>em</strong><br />

relação à reduzida extração e ao caráter <strong>de</strong> ilegalida<strong>de</strong> a que ambos estão<br />

submetidos. No entanto, também se aproxima das <strong>em</strong>presas mineradoras pela<br />

orientação <strong>em</strong>presarial, pela presença da mecanização com uma especialização e<br />

uma divisão do trabalho não muito rígida.<br />

Um dos fatores importantes da extração garimpeira atual, tanto artesanal<br />

quanto mecanizada, é o fato <strong>de</strong>sta se basear quase s<strong>em</strong>pre nos resquícios <strong>de</strong> ouro não<br />

extraído pelas gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas <strong>de</strong> mineração. Esta ativida<strong>de</strong> t<strong>em</strong> a característica<br />

peculiar <strong>de</strong> conseguir viabilizar o aproveitamento <strong>de</strong> ocorrências do ouro, na maioria<br />

dos casos <strong>de</strong>sinteressantes para as <strong>em</strong>presas <strong>de</strong> mineração. As próprias<br />

características geológicas <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>pósitos, muitas vezes, não justificam maiores<br />

investimentos nas fases <strong>de</strong> pesquisa mineral e <strong>de</strong> lavra.<br />

40


A exploração aurífera <strong>em</strong> várias regiões é fortalecida pelo <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego, que <strong>em</strong><br />

geral é alto nas regiões exploradas. Garimpar torna-se praticamente a única forma <strong>de</strong><br />

trabalho r<strong>em</strong>unerado possível.<br />

Este estudo investiga, pois, a ativida<strong>de</strong> garimpeira na região <strong>de</strong> Mariana,<br />

tomando-a como um ex<strong>em</strong>plo representativo da organização social e das principais<br />

transformações sofridas pela ativida<strong>de</strong> nas últimas décadas, s<strong>em</strong> esquecer as<br />

especificida<strong>de</strong>s regionais. O garimpo será consi<strong>de</strong>rado como um métier <strong>em</strong><br />

transformação que estrutura a vida <strong>de</strong> homens e mulheres da região. Torna-se<br />

necessário, pois, uma discussão conceitual das noções teóricas fundamentais, a partir<br />

<strong>de</strong> um diálogo com a sociologia do trabalho, começando pela noção <strong>de</strong> métier.<br />

41


Capítulo II<br />

O Métier e as Formas <strong>de</strong> Conhecimento no Trabalho<br />

No que se segue, procura-se conduzir a discussão no sentido <strong>de</strong> explicitar o<br />

referencial teórico-conceitual que <strong>em</strong>basa nossas interpretações sobre o universo da<br />

ativida<strong>de</strong> garimpeira. Busca-se também articular el<strong>em</strong>entos convergentes das<br />

tradições analíticas corporificadas na sociologia do trabalho, na sociologia da vida<br />

econômica e na fenomenologia da vida cotidiana <strong>de</strong> Alfred Schutz. Os conceitos<br />

centrais <strong>de</strong> métier e <strong>de</strong> competência permit<strong>em</strong> cristalizar o entendimento da lógica<br />

do trabalho do garimpo.<br />

Na primeira parte, é explicitado o conceito <strong>de</strong> métier, enten<strong>de</strong>ndo-o como um<br />

modo particular <strong>de</strong> organização e <strong>de</strong> divisão do trabalho. Em seguida, o foco é sobre<br />

a noção <strong>de</strong> competência, com <strong>de</strong>staque para o t<strong>em</strong>a das relações entre o processo <strong>de</strong><br />

trabalho e as formas <strong>de</strong> conhecimento. Embora o uso recente da noção <strong>de</strong><br />

competência a vincule ao probl<strong>em</strong>a da pane <strong>em</strong> ambientes industriais avançados,<br />

procura-se ressaltar a fertilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua aplicação <strong>em</strong> ambientes <strong>de</strong> trabalho, nos<br />

quais o métier é o estruturador das respectivas relações. De um modo diverso da<br />

forma como a tradição francesa t<strong>em</strong> lidado com o conceito <strong>de</strong> competência, foi<br />

realizado um turn fenomenológico, recorrendo às interpretações <strong>de</strong> Alfred Schutz<br />

sobre a construção social do conhecimento.<br />

42


Na terceira e última parte, é <strong>de</strong>senvolvida uma narrativa sobre o métier <strong>de</strong><br />

garimpeiro, ressaltando as razões pelas quais essa ativida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser entendida como<br />

um métier. Percebe-se que o mundo do garimpo é constituído por uma série <strong>de</strong><br />

estruturas <strong>de</strong> relevância e por competências específicas. Assim, procura-se<br />

<strong>de</strong>monstrar como o estoque <strong>de</strong> conhecimentos po<strong>de</strong> enfeixar e dar sentido a todo o<br />

universo <strong>de</strong> práticas, saberes e sociabilida<strong>de</strong>s da vida do garimpo.<br />

1. O Métier<br />

O métier se apresenta como um el<strong>em</strong>ento estruturante das organizações<br />

produtivas, ou ainda, como um conjunto <strong>de</strong> conhecimentos e <strong>de</strong> “savoir-faire”<br />

ligados às ativida<strong>de</strong>s do trabalho, que evolu<strong>em</strong> ou se modificam com o t<strong>em</strong>po<br />

(TOMASI, 1996).<br />

O termo métier <strong>em</strong>ergiu no século X para caracterizar a especialização da<br />

metalurgia que se <strong>de</strong>senvolvia na Ida<strong>de</strong> Média, a partir do artesanato e da divisão do<br />

trabalho entre cida<strong>de</strong> e campo. Já então, a noção <strong>de</strong> métier era acompanhada <strong>de</strong> um<br />

certo reconhecimento e prestígio social, no interior do quadro da prática profissional<br />

artesanal.<br />

No entanto, a etimologia da palavra <strong>de</strong>nota, também, uma conotação<br />

pejorativa, associada à servidão e à escravidão. O campo s<strong>em</strong>ântico <strong>de</strong> métier<br />

<strong>em</strong>erge pela <strong>de</strong>formação das antigas palavras menestier, mistier, service, office, que<br />

são contrações do latim ministerium, que está na raiz <strong>de</strong> mistério que, por sua vez,<br />

v<strong>em</strong> <strong>de</strong> minus, o menos, o inferior. ROBERT (1966) A ambigüida<strong>de</strong> se resolve,<br />

quando l<strong>em</strong>bramos que, no imaginário medieval das três or<strong>de</strong>ns, o trabalho, por<br />

mais virtuosismo que revelasse, não atingia a dignida<strong>de</strong> das ativida<strong>de</strong>s daqueles que<br />

rezavam e combatiam.<br />

A noção mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> métier formou-se nos meios industriais, no início do<br />

século XX, e, sobretudo, a partir da 2ª Guerra Mundial, época <strong>em</strong> que se torna<br />

43


sinônimo <strong>de</strong> qualificação e formação profissional. A noção <strong>de</strong> métier r<strong>em</strong>ete,<br />

atualmente, ao conjunto <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s técnicas, intelectuais e manuais associadas à<br />

experiência prática. Segundo DADOY (1989), o métier mo<strong>de</strong>rno é estruturado <strong>em</strong><br />

torno da formação inicial que vai substituir a noção <strong>de</strong> métier artesanal:<br />

“O métier consiste no reconhecimento social e na possessão <strong>de</strong> um saber, <strong>de</strong><br />

uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> construída a partir da experiência. Atualmente ele faz<br />

referência a um lugar <strong>de</strong>ntro da divisão do trabalho, a um setor da ativida<strong>de</strong><br />

econômica e às formas e às condições do <strong>em</strong>prego” DADOY (1989)<br />

A porta <strong>de</strong> acesso ao métier é s<strong>em</strong>pre o aprendizado e a experiência prática<br />

<strong>em</strong> uma ativida<strong>de</strong> complexa e mutável, que exige elevado grau <strong>de</strong> discrição e<br />

discernimento por parte do trabalhador. Assim, o métier po<strong>de</strong> ser entendido como<br />

uma forma específica <strong>de</strong> estruturar a divisão do trabalho e os seus mercados,<br />

estabelecendo uma forma particular <strong>de</strong> redução da contingência, ou seja, uma<br />

redução dos riscos <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> seleção dos trabalhadores. Em muitos<br />

ambientes industriais da era mo<strong>de</strong>rna, a presença <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> métier (ou craft)<br />

no processo <strong>de</strong> trabalho esteve historicamente associada à presença <strong>de</strong> modalida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> subcontratação e organização <strong>de</strong> equipes <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> natureza<br />

fundamentalmente diversa das hierarquias e formas <strong>de</strong> recrutamento do trabalho <strong>de</strong><br />

outras ocupações 26 .<br />

O métier confere ao trabalhador uma certa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e prestígio, e é<br />

responsável também pela estruturação <strong>de</strong> uma forma específica <strong>de</strong> divisão do<br />

trabalho. De modo típico, <strong>em</strong>bora não exclusivo, ativida<strong>de</strong>s estruturadas pelo métier<br />

ten<strong>de</strong>m a se enraizar profundamente <strong>em</strong> certos contextos sociais específicos, <strong>em</strong> que<br />

pertencimentos e i<strong>de</strong>ntificações <strong>de</strong> família, trabalho, localida<strong>de</strong> ou etnicida<strong>de</strong> jogam<br />

um papel <strong>de</strong>cisivo na moldag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um certo esprit <strong>de</strong> corps. Por outro lado, o<br />

elevado grau <strong>de</strong> julgamento pru<strong>de</strong>ncial e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cooperação, que<br />

caracterizam a maior parte dos processos <strong>de</strong> trabalho típicos do métier, supõ<strong>em</strong><br />

26 STINCHCOMBE, Arthur. (1990) e TILLY & TILLY.(1998)<br />

44


maior autonomia no controle do processo <strong>de</strong> trabalho, com relações mais<br />

horizontalizadas e sujeitas à permanente negociação.<br />

O termo métier foi s<strong>em</strong>pre associado ao trabalho artesanal, no qual o atelier é<br />

a referência fundamental. Neste atelier artesanal, as diferentes operações <strong>de</strong><br />

elaboração <strong>de</strong> um produto são divididas entre os m<strong>em</strong>bros, segundo suas<br />

características intrínsecas, sua complexida<strong>de</strong> e o conhecimento prático do operador,<br />

sendo <strong>de</strong>senvolvidas <strong>de</strong> acordo com os ritmos e habilida<strong>de</strong>s adquiridas pelo<br />

indivíduo.<br />

Quando se fala <strong>de</strong> métier, é importante contrastá-lo com o seu oposto, os<br />

mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> trabalho do mundo fabril, s<strong>em</strong>pre envolvido pela dinâmica taylorista.<br />

ZARIFIAN (2001) estabelece diferenças importantes, opondo o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> operação<br />

associado ao mundo fabril taylorizado ao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> métier 27 <strong>em</strong> vários níveis, tais<br />

como: a aquisição do métier, a aprendizag<strong>em</strong> do métier, e o mo<strong>de</strong>lo do métier.<br />

Segundo esse autor, a aquisição do métier não está relacionada<br />

prioritariamente às operações no trabalho, mas fundamentalmente às regras <strong>de</strong> ação,<br />

<strong>em</strong> que a base <strong>de</strong> julgamento é o produto final. Essas regras se ass<strong>em</strong>elhariam às da<br />

arte, pois não é a simples repetição mecânica e pre<strong>de</strong>terminada das regras que conta,<br />

mas a incorporação dos efeitos que se possam relacionar a elas. No contexto do<br />

métier, as regras não são auto-aplicáveis, mas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma complexa avaliação<br />

das contingências da situação:<br />

“A utilização da palavra „arte‟ indica o fato <strong>de</strong> que, entre a aplicação da<br />

regra e seus efeitos, interpõe-se alguma coisa que é totalmente impossível<br />

<strong>de</strong>finir (certa habilida<strong>de</strong> particular). Porque a regra aponta apenas as<br />

diretrizes da ação, e não o seu conteúdo preciso. A ação não racionalizada<br />

no sentido taylorista do termo.” ZARIFIAN (2001: 157)<br />

A aprendizag<strong>em</strong> do métier não t<strong>em</strong> como finalida<strong>de</strong> exclusiva ensinar a<br />

reproduzir <strong>de</strong>terminadas rotinas e produtos. Essa reprodução é somente uma<br />

estratégia <strong>de</strong> aprendizag<strong>em</strong>, mas não a verda<strong>de</strong>ira finalida<strong>de</strong>. Esta se faz pela<br />

27 Na edição brasileira, apesar da ressalva no pé <strong>de</strong> página, esta expressão é traduzida, ao meu ver,<br />

erroneamente, como “mo<strong>de</strong>lo da ocupação”. Preferiu-se usar a expressão mo<strong>de</strong>lo do “métier.”<br />

45


particularização do processo e do produto, o que implica uma criativida<strong>de</strong> do autor.<br />

No caso dos garimpos <strong>de</strong> ouro, abrindo um parêntese nesta discussão, o que se nota<br />

é uma particularização do processo <strong>de</strong> trabalho, mas não do produto, uma vez que<br />

este é tipicamente divisível e homogêneo, o que, como se verá , não <strong>de</strong>scaracteriza o<br />

garimpo enquanto métier.<br />

A repetição das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho é algo secundário no métier, que<br />

requer, ao contrário, uma compreensão das razões <strong>de</strong>ssas regras, ou seja, um<br />

trabalhador <strong>de</strong> métier sabe o por quê proce<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sta maneira e não <strong>de</strong> outra para<br />

alcançar um resultado. Neste sentido, a relação entre mestre e aprendiz é diferente<br />

daquela que impõe o instrutor taylorista. O mestre é rigoroso no resultado, pois este<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do entendimento prático do indivíduo no que concerne ao código <strong>de</strong><br />

referência do trabalho:<br />

“A aprendizag<strong>em</strong> do métier é a aprendizag<strong>em</strong> da diferenciação: alguém<br />

domina inteiramente seu „métier‟ quando reconhece sua maneira particular<br />

<strong>de</strong> trabalhar, quando se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir nela uma contribuição original. (...)<br />

Se a aprendizag<strong>em</strong> é, <strong>em</strong> geral longa, é porque é preciso, ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

ter tomado conhecimento das“boas”regras existentes, é preciso tê-las<br />

assimilado totalmente, ter dominado a “habilida<strong>de</strong> específica” necessária (e<br />

certo “modo <strong>de</strong> pensar”) que não é objetivada, mas a qual é preciso ter<br />

conseguido agregar originalida<strong>de</strong>.” ZARIFIAN (2001: 158)<br />

O mo<strong>de</strong>lo do métier é, por ele, associado <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>cisiva ao meio social<br />

da comunida<strong>de</strong> profissional, que é on<strong>de</strong> se estrutura e valida a aquisição do saber-<br />

fazer. Assim, o métier:<br />

“T<strong>em</strong> igualmente por objeto regras <strong>de</strong> comportamento, que se refer<strong>em</strong>, <strong>em</strong><br />

especial, ao respeito aos antigos, a valores éticos explícitos (<strong>de</strong> honestida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong> lealda<strong>de</strong>, por ex<strong>em</strong>plo), à <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> uma disposição para vencer<br />

as diversas provas a que a progressão do métier implica.” ZARIFIAN<br />

(2001:158)<br />

Segundo Zarifian, o métier está aberto à inovação, mas resiste às rupturas que<br />

questionam o prestígio das regras estabelecidas. O métier s<strong>em</strong>pre recorre à tradição,<br />

inserindo, na sua estrutura, o significado do t<strong>em</strong>po histórico. Mas, no entanto, resiste<br />

à abertura <strong>de</strong>ssa tradição a fatores estranhos, que po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>sestabilizá-lo.<br />

46


Em seu livro Information and Organizations (1990), Arthur Stinchcombe<br />

oferece uma análise particularmente arguta das relações entre rotina e discrição nos<br />

processos <strong>de</strong> trabalho e ajuda a marcar a especificida<strong>de</strong> do métier. Stinchcombe<br />

enten<strong>de</strong> o trabalhador como um processador <strong>de</strong> informações <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu ambiente<br />

<strong>de</strong> trabalho, combinando <strong>de</strong>cisões e tarefas. Desta forma, ele analisa os processos <strong>de</strong><br />

trabalho a partir da analogia com a programação <strong>de</strong> computadores, que <strong>de</strong>fine dois<br />

sist<strong>em</strong>as possíveis <strong>de</strong> rotinas, chamados por ele <strong>de</strong> batch computer routines e<br />

interative computer routines.<br />

No primeiro tipo, batch computer routines, todas as contingências possíveis<br />

foram pré-arranjadas <strong>em</strong> uma só formada pelo programador, e tudo o que o<br />

trabalhador faz é seguir um conjunto <strong>de</strong> instruções claras e precisas que conduz<strong>em</strong> a<br />

um resultado final pré-<strong>de</strong>terminado. Ação e <strong>de</strong>cisão humanas, por conseqüência, são<br />

uma simples atualização da programação corporificada na máquina, e todo <strong>de</strong>svio<br />

conduz à pane.<br />

Já no segundo tipo, interative computer routines, as rotinas possíveis são<br />

arranjadas na forma <strong>de</strong> um diagrama-árvore: cada passo e cada <strong>de</strong>cisão tomada pelo<br />

usuário abr<strong>em</strong> um conjunto <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s que é path <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt, mas que<br />

pressupõe s<strong>em</strong>pre novas <strong>de</strong>cisões passo a passo. Para Stinchcombe, as rotinas <strong>de</strong><br />

trabalho po<strong>de</strong>m ser pensadas a partir <strong>de</strong> uma distinção s<strong>em</strong>elhante. Como nas<br />

“rotinas <strong>de</strong> fornada”, os processos <strong>de</strong> trabalho po<strong>de</strong>m ser especificados a priori. O<br />

ex<strong>em</strong>plo clássico seria a linha <strong>de</strong> montag<strong>em</strong> fordista, na qual as <strong>de</strong>scrições e a<br />

divisão do trabalho são <strong>de</strong>senhadas pela gerência, s<strong>em</strong> interativida<strong>de</strong> entre o<br />

trabalhador e o seu trabalho.<br />

O processo produtivo se realiza <strong>em</strong> um ambiente artificial e fechado, e todo<br />

seu <strong>de</strong>senvolvimento é moldado através <strong>de</strong> uma estrutura burocrática verticalizada.<br />

Esta dinâmica é direcionada a agilizar o processo <strong>de</strong> trabalho, tendo como referência<br />

fundamental a maximização dos lucros. Neste sentido, t<strong>em</strong>-se uma radical separação<br />

entre o trabalho, ou seja, uma lista <strong>de</strong> operações que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser executadas no posto<br />

47


<strong>de</strong> trabalho, e o trabalhador, com um conjunto <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong>s que o tornam apto a<br />

ocupar este posto.<br />

De outro lado, rotinas interativas caracterizam processos e ambientes <strong>de</strong><br />

trabalho não rotinizados ou rotinizáveis, <strong>em</strong> que ambientes mutáveis, contingências<br />

<strong>de</strong>rivadas <strong>de</strong> fontes múltiplas e objetivos complexos impõ<strong>em</strong> novas <strong>de</strong>cisões passo a<br />

passo. Nesse sentido, <strong>em</strong>bora o processo <strong>de</strong> trabalho continue sendo composto <strong>de</strong><br />

uma série <strong>de</strong> rotinas aplicáveis, é s<strong>em</strong>pre necessário <strong>de</strong>cidir qual rotina aplicar às<br />

circunstâncias <strong>em</strong> questão. O julgamento pru<strong>de</strong>ncial alimentado pela experiência<br />

torna-se <strong>de</strong>cisivo. Uma interação entre conhecimento e trabalho <strong>de</strong>ssa natureza ten<strong>de</strong><br />

a <strong>em</strong>ergir precisamente nas ativida<strong>de</strong>s <strong>em</strong> que o métier é o estruturador das relações<br />

<strong>de</strong> trabalho, sendo também envolvido pela noção <strong>de</strong> “évén<strong>em</strong>ent” 28 , ou seja, pelo<br />

inci<strong>de</strong>nte, pelo imprevisto, pelo não programado. A flexibilida<strong>de</strong> da divisão do<br />

trabalho e uma distribuição social do conhecimento diverso são <strong>de</strong>corrências diretas<br />

<strong>de</strong> tais condições.<br />

A aprendizag<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> estruturada <strong>em</strong> torno do métier é<br />

constituída <strong>de</strong>ntro do ambiente <strong>de</strong> trabalho <strong>em</strong> anos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>, e se caracteriza<br />

pela experiência na resolução <strong>de</strong> imprevistos da ativida<strong>de</strong>. Quase s<strong>em</strong>pre, o saber<br />

exigido está ligado a um conhecimento tácito e a saberes <strong>em</strong>píricos, como ressaltou<br />

Zarifian, e é reconhecido <strong>de</strong>ntro do grupo como um valor e um orgulho para qu<strong>em</strong><br />

os <strong>de</strong>tém. São esses saberes práticos, ligados às “manhas do ofício” e irreprodutíveis<br />

pela educação formal, transmitidos pelos mais experientes e consolidados pela<br />

experiência, que constitu<strong>em</strong> a base do métier. Saberes esses que também<br />

proporcionam po<strong>de</strong>r para qu<strong>em</strong> os <strong>de</strong>tém, e são <strong>de</strong> fundamental importância na<br />

compreensão da dinâmica <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> e das classificações hierárquicas <strong>de</strong>ntro<br />

e fora do ambiente <strong>de</strong> trabalho.<br />

48


2. Trabalho, Conhecimento e a Noção <strong>de</strong> Competência.<br />

A um métier <strong>de</strong>terminado está associado um certo conjunto <strong>de</strong> competências<br />

específicas. Acredita-se que o conceito <strong>de</strong> competência po<strong>de</strong> servir como uma<br />

ferramenta analítica importante na compreensão dos processos <strong>de</strong> trabalho<br />

estruturados pelo métier. O conceito <strong>de</strong> competência, assim como o <strong>de</strong> qualificação,<br />

foi gestado no contexto <strong>de</strong> intensos <strong>de</strong>bates que pretendiam lançar luz sobre a forma<br />

e o conteúdo do trabalho do mundo fabril do capitalismo avançado. Paradoxalmente,<br />

no entanto, o uso do conceito <strong>de</strong> competência parece mais rentável analiticamente,<br />

precisamente on<strong>de</strong> ele t<strong>em</strong> sido menos l<strong>em</strong>brado: nos contextos <strong>em</strong> que o processo<br />

<strong>de</strong> trabalho é organizado sob a forma <strong>de</strong> métier.<br />

Todavia, não há como discutir o conceito sociológico <strong>de</strong> competência s<strong>em</strong><br />

traçar sua linhag<strong>em</strong>, diferenças e relações com o conceito <strong>de</strong> qualificação.<br />

O conceito <strong>de</strong> qualificação s<strong>em</strong>pre mereceu uma posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque <strong>de</strong>ntro<br />

dos estudos <strong>de</strong> sociologia do trabalho. No entanto, sua <strong>de</strong>finição é controversa,<br />

sendo <strong>de</strong>ssa forma, um conceito <strong>em</strong> aberto e <strong>em</strong> evolução permanente, porque t<strong>em</strong><br />

na noção <strong>de</strong> trabalho, esta também <strong>em</strong> aberto, uma referência fundamental. Vale<br />

l<strong>em</strong>brar que esse conceito, como tantos outros na sociologia do trabalho, foi<br />

construído tendo como referência central o trabalho industrial mo<strong>de</strong>rno, no qual os<br />

processos <strong>de</strong> qualificação profissional são b<strong>em</strong> <strong>de</strong>finidos.<br />

A noção <strong>de</strong> qualificação t<strong>em</strong> sido t<strong>em</strong>atizada a partir <strong>de</strong> duas clássicas<br />

perspectivas divergentes: a primeira <strong>de</strong>las, <strong>de</strong> viés substantivista, foi <strong>de</strong>senvolvida<br />

por Georges Friedmann, um dos pioneiros da sociologia do trabalho. Friedmann via,<br />

<strong>de</strong>ntro do trabalho artesanal, a forma perfeita do trabalho qualificado. Assim, a<br />

28 ZARIFIAN, Philippe. Objetivo Competência: Por Uma Nova Lógica. São Paulo, Editora Atlas, 2001.<br />

49


divisão do trabalho constituía a <strong>de</strong>gradação <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> anterior, a do artesanato.<br />

Esta <strong>de</strong>gradação, na sua perspectiva, referia-se às contradições fundamentais da<br />

socieda<strong>de</strong> e da organização industrial. Friedmann <strong>de</strong>finia a qualificação pelo saber e<br />

pelo saber-fazer adquiridos no trabalho e na sua aprendizag<strong>em</strong> sist<strong>em</strong>ática. Essa<br />

qualificação seria construída a partir do posto <strong>de</strong> trabalho, mas se encontrava no<br />

trabalhador. Assim, a intervenção no posto <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>finirá a qualificação.<br />

A segunda perspectiva foi <strong>de</strong>senvolvida por Pierre Naville, outro pioneiro da<br />

sociologia do trabalho. Em sua perspectiva relativista, a qualificação é o resultado <strong>de</strong><br />

um processo <strong>de</strong> formação autônomo, ou seja, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da formação espontânea<br />

no trabalho. Em seu livro pioneiro sobre o assunto, Essai sur la qualification du<br />

travail (1956) 29 o autor se recusa a reduzir a qualificação às virtu<strong>de</strong>s intrínsecas do<br />

indivíduo, às suas habilida<strong>de</strong>s e ao seu “savoir-faire”. Dentro <strong>de</strong> suas análises, a<br />

qualificação iria além muros, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos presentes no ambiente social<br />

do trabalhador e seria relativa. Suas formas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>riam também do estado <strong>de</strong><br />

forças produtivas e das estruturas sócio-econômicas nas quais os trabalhadores<br />

estivess<strong>em</strong> inseridos, tais como o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> escolarização, o salário, as operações <strong>de</strong><br />

classificação e a hierarquia do trabalho.<br />

Mais recent<strong>em</strong>ente, Pierre Rolle, Pierre Tripier e Mateo Alaluf prolongaram e<br />

reafirmaram os argumentos <strong>de</strong> Naville. O mesmo conceito, entretanto, continua não<br />

mensurável, po<strong>de</strong>ndo ser relacionado a vários fatores, tais como a escolarização, a<br />

complexida<strong>de</strong> das tarefas, a formação, o salário, a classificação, as ativida<strong>de</strong>s<br />

intelectuais e manuais, a divisão do trabalho, o comportamento, o posto <strong>de</strong> trabalho<br />

etc. Dentro <strong>de</strong>ssa perspectiva, a qualificação não é <strong>de</strong>terminada pela tecnologia, mas<br />

construída socialmente, e só será compreendida a partir <strong>de</strong>la mesma, ou seja, não é<br />

automaticamente <strong>de</strong>terminada pelo conteúdo do trabalho. Assim, é importante<br />

avaliar as ativida<strong>de</strong>s fora do trabalho para <strong>de</strong>finí-la.<br />

A noção <strong>de</strong> competência é relativamente recente <strong>de</strong>ntro dos estudos<br />

sociológicos sobre o trabalho, mas a sua difusão t<strong>em</strong> uma clara relação com as<br />

50


ecentes transformações do trabalho fabril, principalmente no que diz respeito à<br />

gestão da mão-<strong>de</strong>-obra. Esta noção t<strong>em</strong> ocupado espaço significativo <strong>de</strong>ntro dos<br />

estudos da sociologia do trabalho, especialmente na escola francesa. A noção <strong>de</strong><br />

competência chega aos meios acadêmicos através <strong>de</strong> <strong>em</strong>presários e industriais, ou<br />

seja, <strong>em</strong>pregadores preocupados com as transformações no mundo do trabalho. Que<br />

transformações estariam ocorrendo que exigiriam uma nova noção? A <strong>em</strong>ergência da<br />

noção <strong>de</strong> competência assinala o fim da noção <strong>de</strong> qualificação?<br />

Para ISAMBER-JAMATI (1994), o termo competência t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong> nos<br />

meios jurídicos, on<strong>de</strong> ficou inicialmente restrito. Mais tar<strong>de</strong>, foi incorporado por<br />

outras profissões, mas seu uso ficou limitado a uma elite intelectual, visto que uma<br />

certa competência é exigida para julgar a competência <strong>de</strong> alguém. Ainda segundo<br />

essa autora, o mesmo termo aparece nas literaturas sociológica e educacional <strong>de</strong><br />

forma polissêmica nos anos 70, e na década <strong>de</strong> 80, adquire o seu sentido atual.<br />

Assim, segundo ISAMBER-JAMATI:<br />

“Aquele que é (que é reconhecido como...) competente, <strong>em</strong> relação ao que<br />

não o é, ou que o é menos, é aquele que domina suficient<strong>em</strong>ente a área na<br />

qual intervém para i<strong>de</strong>ntificar todos os aspectos <strong>de</strong> uma situação nessa<br />

área e para revelar eventualmente as disfunções <strong>de</strong>ssa situação. Mas,<br />

para ser “competente”, <strong>de</strong>ve também, munido <strong>de</strong>sse conhecimento, po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong>cidir a maneira <strong>de</strong> intervir a fim <strong>de</strong> obter tal resultado com eficácia e<br />

economia <strong>de</strong> meios.” ISAMBER-JAMATI (1994: 104)<br />

A competência não po<strong>de</strong> ser encontrada <strong>em</strong> todos os indivíduos, pois não é<br />

uma característica do indivíduo. Ela também não se confun<strong>de</strong> com o talento dos<br />

artistas, precisamente porque o hom<strong>em</strong> competente utiliza técnicas pré-existentes, e<br />

a competência diz respeito ao uso <strong>de</strong> técnicas que, <strong>em</strong>bora não sejam criadas por ele,<br />

po<strong>de</strong>m ser adaptadas às novas situações. A competência aparece, assim, inseparável<br />

da ação e só po<strong>de</strong> ser apreciada ou medida numa situação dada:<br />

“As competências diz<strong>em</strong> respeito ao uso <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong>finidas que, <strong>em</strong>bora<br />

não tenham sido criadas pelo indivíduo, são por ele usadas e po<strong>de</strong>m ser<br />

29 NAVILLE, Pierre. Essai sur la qualification du travail. Paris, Librairie Riviere et cia, 1956.<br />

51


adaptadas às novas situações. A noção <strong>de</strong> competência está associada à<br />

execução <strong>de</strong> tarefas complexas, organizadas e que exig<strong>em</strong> uma ativida<strong>de</strong><br />

intelectual importante. Tarefas são realizadas por especialistas. O<br />

incompetente não possui o saber e o saber-fazer, ou possui<br />

incompletamente” (TOMASI. 2000)<br />

Tanto na construção da noção <strong>de</strong> qualificação como na <strong>de</strong> competência, o<br />

saber se mostra como um dos el<strong>em</strong>entos fundamentais para a construção <strong>de</strong>stas<br />

noções. Mas como <strong>de</strong>finir saber?<br />

Para Marcelle STROOBANTS (1994), a cognição é um el<strong>em</strong>ento<br />

fundamental para se enten<strong>de</strong>r a noção <strong>de</strong> competência, no sentido <strong>de</strong> melhor <strong>de</strong>finir<br />

as questões ligadas aos saberes das ativida<strong>de</strong>s profissionais, que po<strong>de</strong>m ser<br />

encontradas fora da sociologia do trabalho, como por ex<strong>em</strong>plo, nos aspectos<br />

cognitivos da tarefa. Nessa perspectiva, a competência seria gerada pela capacida<strong>de</strong><br />

cognitiva do indivíduo <strong>de</strong> mobilizar conhecimentos, visando fazer face a um dado<br />

probl<strong>em</strong>a, ou seja, a competência é <strong>de</strong>finida como conhecimento e qualida<strong>de</strong>s<br />

contextualizadas. Dando ênfase aos aspectos cognitivos do trabalho, e tentando<br />

ampliar a discussão para fora da sociologia do trabalho, STROOBANTS inicia seu<br />

artigo sobre competência com a seguinte explicação:<br />

“Os aspectos cognitivos do trabalho não constitu<strong>em</strong> tradicionalmente<br />

objetos <strong>de</strong> estudo específico <strong>em</strong> sociologia do trabalho. É indiretamente que<br />

a capacida<strong>de</strong> dos trabalhadores intervém na análise, por meio <strong>de</strong> seu<br />

reconhecimento no mercado <strong>de</strong> trabalho. Da mesma maneira, os saberes<br />

associados às ativida<strong>de</strong>s profissionais foram geralmente abordados a partir<br />

<strong>de</strong> sua valorização. A organização do trabalho pô<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ssa forma, ser<br />

encarada como uma maneira <strong>de</strong> codificar os conhecimentos, separando o<br />

saber - a concepção dos métodos – e o fazer – a execução das instruções”.<br />

STROOBANTS (1994: 135)<br />

Viviane Isanbert-Jamati também reconhece a existência <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos na<br />

fronteira da sociologia, mas não dá garantias <strong>de</strong> que eles possam esclarecer as<br />

<strong>de</strong>finições <strong>de</strong> competência.<br />

STROOBANTS (1994) afirma que as competências são relativas, porque<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da maneira como são vistas e reconhecidas socialmente, mas também são<br />

52


eais, po<strong>de</strong>ndo ser caracterizadas por um tipo <strong>de</strong> saber (o saber-fazer e seus recortes<br />

específicos, ou seja: saber + um verbo que <strong>de</strong>note ação). Estes saberes se <strong>de</strong>fin<strong>em</strong><br />

<strong>em</strong> oposição aos saberes aprendidos na escola; são adquiridos diretamente no<br />

trabalho. Assim, é na dimensão individual do ato humano, na execução das tarefas,<br />

ou seja, é no indivíduo e não no posto <strong>de</strong> trabalho, que se po<strong>de</strong>m encontrar as noções<br />

<strong>de</strong> competência. “A questão parece ser não do conteúdo das competências, mas da<br />

mobilização <strong>de</strong>ssas, que seria feita através dos saberes, saber-fazer e saber-ser”<br />

TOMASI (2000).<br />

Uma outra perspectiva é apresentada por ZARIFIAN (2001), que associa o<br />

conceito <strong>de</strong> competência às recentes mudanças ocorridas no processo <strong>de</strong> produção<br />

com o fim do fordismo-taylorismo. Este fato teria levado a um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />

disfunções e imprevistos, acarretando gran<strong>de</strong>s mutações do trabalho. Estas<br />

mudanças são interpretadas, por ele, através dos conceitos <strong>de</strong> évén<strong>em</strong>ent. 30<br />

Évén<strong>em</strong>ent é <strong>de</strong>finido como o que ocorre <strong>de</strong> maneira parcialmente imprevista<br />

e inesperada, como por ex<strong>em</strong>plo, a pane, que <strong>de</strong>sestrutura o <strong>de</strong>senrolar normal do<br />

sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> produção e supera a capacida<strong>de</strong> da máquina <strong>de</strong> assegurar a sua auto-<br />

regulag<strong>em</strong>. Desta forma, o conceito <strong>de</strong> évén<strong>em</strong>ent t<strong>em</strong> profundo impacto na<br />

<strong>de</strong>finição do conceito <strong>de</strong> competência:<br />

“O évén<strong>em</strong>ent significa que a competência profissional não po<strong>de</strong> mais ser<br />

enclausurada <strong>em</strong> <strong>de</strong>finições prévias <strong>de</strong> tarefas a executar <strong>em</strong> um posto <strong>de</strong><br />

trabalho. Sobretudo ela não po<strong>de</strong> ser mais incluída no trabalho prescrito. A<br />

competência profissional consiste <strong>em</strong> fazer frente ao évén<strong>em</strong>ent <strong>de</strong> maneira<br />

pertinente e com conhecimento <strong>de</strong> causa. E essa competência é proprieda<strong>de</strong><br />

particular do indivíduo, e não do posto <strong>de</strong> trabalho. Seria, aliás, absurdo<br />

falar <strong>de</strong> um posto <strong>de</strong> trabalho competente” ZARIFIAN 2001: 41)<br />

Segundo este autor, com o esgotamento do mo<strong>de</strong>lo taylorista t<strong>em</strong>-se uma<br />

mudança no paradigma da produção, passando-se <strong>de</strong>sta para o “évén<strong>em</strong>ent”. Com<br />

isso, para Zarifian, o conceito <strong>de</strong> trabalho retorna ao trabalhador, ou seja, trabalho<br />

30 Na edição brasileira, esta expressão é traduzida como “eventos”. Preferiu-se manter este conceito no<br />

original s<strong>em</strong> tradução.<br />

53


seria a ação competente do indivíduo diante <strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong> évén<strong>em</strong>ent. Assim,<br />

por outra via, retornaríamos a situações próximas da ativida<strong>de</strong> camponesa<br />

tradicional, s<strong>em</strong>pre sensível aos acasos do clima, ao comportamento das plantas e<br />

dos animais, e s<strong>em</strong>pre guiada pelo saber tácito do trabalhador.<br />

M. DADOY (1989) também partilha da opinião <strong>de</strong> que a noção <strong>de</strong><br />

competência, tanto quanto a <strong>de</strong> qualificação, <strong>em</strong>erge <strong>em</strong> momentos <strong>de</strong> profundas<br />

transformações no aparelho <strong>de</strong> produção e nas políticas <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra.<br />

TOMASI (2000) nota que a construção do conceito <strong>de</strong> competência,<br />

elaborado tanto por DADOY como por ZARIFIAN, está imbuído <strong>de</strong> um outro tipo<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminismo: o do posto <strong>de</strong> trabalho; ou seja, essa construção está baseada nos<br />

processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sestabilização do sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> produção proce<strong>de</strong>ntes do gran<strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> disfunções e imprevistos, <strong>de</strong>correntes do fim do taylorismo-fordismo.<br />

No entanto, enten<strong>de</strong>-se que o posto <strong>de</strong> trabalho e todos os imprevistos que<br />

nele possam ocorrer não <strong>de</strong>terminam a competência; são somente referenciais nos<br />

quais ela se revela.<br />

“Ora, é preciso que uma referência seja construída na relação do<br />

trabalhador no trabalho. Nunca se é competente no abstrato. S<strong>em</strong>pre se é<br />

competente <strong>em</strong> „relação a .“ ZARIFIAN (2001: 28)<br />

Segundo ZARIFIAN (2001), na tentativa <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong>sse conceito:<br />

“Não há exercício da competência s<strong>em</strong> um lastro <strong>de</strong> conhecimentos que<br />

po<strong>de</strong>rá ser mobilizado <strong>em</strong> situação <strong>de</strong> trabalho. A analogia entre esses<br />

conhecimentos e a situação <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do grau das situações <strong>de</strong><br />

“évén<strong>em</strong>ent” e da singularida<strong>de</strong> da situação que a pessoa t<strong>em</strong> que enfrentar.<br />

Quanto maiores as dimensões <strong>de</strong> “évén<strong>em</strong>ent” e a singularida<strong>de</strong> da situação,<br />

mais os esqu<strong>em</strong>as <strong>de</strong> conhecimento e <strong>de</strong> ação que o indivíduo já tiver<br />

incorporado <strong>de</strong>verão ser mobilizados <strong>de</strong> maneira reflexiva, ou seja,<br />

questionando-se sua valida<strong>de</strong> e o fato <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> insuficientes diante da<br />

situação” ZARIFIAN (2001: 73)<br />

A competência é, s<strong>em</strong> sombra <strong>de</strong> dúvida, do trabalhador. Na verda<strong>de</strong>, ela é<br />

construída socialmente <strong>em</strong> vários âmbitos da vida cotidiana, não sendo somente uma<br />

competência técnica do posto <strong>de</strong> trabalho, mas nele revelada, ou seja, o trabalhador é<br />

54


competente <strong>em</strong> relação ao seu posto <strong>de</strong> trabalho, mas não é somente nele que a<br />

competência é constituída. Assim, po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r a competência como uma<br />

excelência na navegação <strong>em</strong> meio às contingências que apresenta atualmente o<br />

mundo fabril, e que também – e aí resi<strong>de</strong> nosso interesse – é uma característica dos<br />

contextos <strong>de</strong> trabalho <strong>em</strong> que o métier é o estruturador das relações <strong>de</strong> trabalho.<br />

O conceito <strong>de</strong> competência foi gestado na sociologia do trabalho tendo como<br />

referência a imagética do trabalho industrial cont<strong>em</strong>porâneo, suas mutações e<br />

probl<strong>em</strong>as. No entanto, procura-se <strong>de</strong>monstrar que as tentativas <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>sse<br />

conceito apontam muito mais para a imag<strong>em</strong> do artesão e para os profissionais <strong>de</strong><br />

métier que para o assalariado <strong>de</strong> chão <strong>de</strong> fábrica como referência <strong>de</strong> trabalhador. Se<br />

o conjunto <strong>de</strong> conhecimentos tácitos adquiridos experiencialmente e a excelência na<br />

solução do imprevisto distingu<strong>em</strong> o conceito <strong>de</strong> competência, esta po<strong>de</strong> estar<br />

presente nos mais diversos ambientes <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong>ntro e fora do mundo fabril.<br />

Assim o conceito <strong>de</strong> competência r<strong>em</strong>ete a questões sociológicas e filosóficas mais<br />

universais, e aos probl<strong>em</strong>as do conhecimento e da razão prática.<br />

Voltando à pergunta anterior: o que é o saber? Como se constitui e se<br />

transmite o conhecimento? Dentro <strong>de</strong>ssa perspectiva po<strong>de</strong>-se indagar: como<br />

enten<strong>de</strong>r a construção <strong>de</strong>ste saber no mundo da vida cotidiana?<br />

A sociologia fenomenológica <strong>de</strong> Alfred Schutz apresenta uma das<br />

formulações mais originais e instigantes da teoria social mo<strong>de</strong>rna das relações entre<br />

as configurações dos diversos “mundos da vida” possíveis e o probl<strong>em</strong>a do<br />

conhecimento.<br />

O método fenomenológico <strong>de</strong> Schutz põe “entre parênteses” os pressupostos<br />

tácitos e não notados da atitu<strong>de</strong> natural ,que constitu<strong>em</strong> as regras vistas, mas não<br />

notadas, <strong>de</strong> toda interação social ,e os examina <strong>em</strong> profundida<strong>de</strong>. Para SCHUTZ<br />

(1971), a atribuição <strong>de</strong> significado e a interpretação do sentido <strong>de</strong> nossas ações e <strong>de</strong><br />

outros, estão presentes nas ativida<strong>de</strong>s mais corriqueiras da vida ordinária. O “mundo<br />

da vida cotidiana” é o mundo intersubjetivo vivenciado pelos indivíduos na atitu<strong>de</strong><br />

natural. Assim, as experiências subjetivas, socialmente constituídas, são a base <strong>de</strong><br />

55


toda sociologia fenomenológica, sendo i<strong>de</strong>ntificadas com o processo <strong>de</strong><br />

externalização e objetivação dos indivíduos, através do qual o mundo social é<br />

produzido na forma <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, comunida<strong>de</strong> ou organização. Neste sentido, o foco<br />

<strong>de</strong> investigação recai sobre o que é mundano, corriqueiro e aceito s<strong>em</strong> exame, <strong>em</strong><br />

oposição ao que é raro, irregular, controverso e intrigante.<br />

O mundo da vida cotidiana é <strong>de</strong>finido por SCHUTZ (1979) como “o mundo<br />

intersubjetivo que já existia muito antes do nosso nascimento vivenciado e<br />

interpretado pelos nossos pre<strong>de</strong>cessores, e que agora se dá a nossa interpretação” 31 .<br />

Somente uma parte muito pequena do nosso conhecimento do mundo t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong> na<br />

nossa própria experiência; <strong>em</strong> sua maior parte é <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> social e nos é transmitido<br />

pelos nossos pais, amigos, mestres, etc. Todo conhecimento se produz <strong>em</strong><br />

circunstâncias particulares, um “aqui”, uma situação biográfica específica que<br />

representa o nosso horizonte <strong>de</strong> familiarida<strong>de</strong>. Nossa interpretação do mundo da<br />

vida cotidiana baseia-se <strong>em</strong> um estoque <strong>de</strong> experiências anteriores a nós, das nossas<br />

próprias experiências e das que nos são transmitidas. Esse conjunto <strong>de</strong> experiências<br />

constitui o estoque <strong>de</strong> “conhecimento à mão” que funciona como nossos códigos <strong>de</strong><br />

referência. Os “conhecimentos à mão” representam uma série <strong>de</strong> tipificações que<br />

nos orientam e pelos quais po<strong>de</strong>mos agir.<br />

Schutz focalizou este mundo da vida <strong>de</strong> várias formas: a primeira é a “atitu<strong>de</strong><br />

natural”, essencialmente pragmática, que permite ao sujeito operar no mundo ao<br />

imunizá-lo contra a dúvida cética. O mundo intersubjetivo da atitu<strong>de</strong> natural é<br />

aquele <strong>em</strong> que nossas estruturas <strong>de</strong> relevância são moldadas por interesses<br />

<strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente práticos, s<strong>em</strong> colocar <strong>em</strong> questão as bases <strong>de</strong> nosso conhecimento do<br />

mundo.<br />

Mundos da vida intersubjetivos particulares constitu<strong>em</strong> sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong><br />

coor<strong>de</strong>nadas. Todo momento da vida <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> é uma situação biográfica<br />

<strong>de</strong>terminada, ou seja, seu ambiente físico e sócio-cultural, <strong>de</strong>ntro do qual ele t<strong>em</strong> a<br />

31 SCHUTZ. Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Textos escolhidos. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Zahar Editores,<br />

1977.<br />

56


sua posição, não só física, como também moral e i<strong>de</strong>ológica. A situação biográfica é<br />

a sedimentação <strong>de</strong> todas as experiências anteriores <strong>de</strong> um sujeito, dispostas a partir<br />

<strong>de</strong> tipificações e esqu<strong>em</strong>atas que organizam e dão sentido a estas experiências.<br />

O mundo social é, pois, interpretado através da experiência <strong>de</strong> seus m<strong>em</strong>bros<br />

como tendo significado e sendo inteligível <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> categorias sociais e<br />

construções teóricas. Assim, todo hom<strong>em</strong> na vida diária, t<strong>em</strong> a qualquer momento,<br />

um estoque <strong>de</strong> “conhecimento à mão” que serve como um código <strong>de</strong> interpretações<br />

<strong>de</strong> suas experiências passadas, presentes e futuras. Este estoque <strong>de</strong> conhecimento foi<br />

constituído por ativida<strong>de</strong>s anteriores a experiências <strong>de</strong> nossa consciência. A partir<br />

<strong>de</strong>ste estoque <strong>de</strong> conhecimento acumulado <strong>em</strong> sua existência, os indivíduos<br />

consegu<strong>em</strong> antecipar acontecimentos futuros. Estas antecipações são <strong>de</strong>terminantes<br />

para seus planos, projetos e motivos <strong>de</strong> ação. É por isso que o hom<strong>em</strong> na vida<br />

cotidiana se interessa pelo que prevê, pois são estas previsões que o orientarão, com<br />

um certo pragmatismo, <strong>em</strong> sua vida cotidiana.<br />

Todavia, esse estoque <strong>de</strong> “conhecimento à mão” não é homogêneo. Há<br />

somente um núcleo do conhecimento que é claro, distinto e consistente e que é<br />

cercado por zonas <strong>de</strong> vagueza, obscurida<strong>de</strong> e ambigüida<strong>de</strong>. Para Schutz, é um<br />

probl<strong>em</strong>a <strong>em</strong> particular, com o qual nos ocupamos, que vai subdividir o nosso<br />

estoque <strong>de</strong> “conhecimento à mão” <strong>em</strong> diferentes zonas <strong>de</strong> relevância para a sua<br />

solução, estabelecendo os limites das várias zonas do nosso conhecimento, ou seja,<br />

zonas <strong>de</strong> niti<strong>de</strong>z e <strong>de</strong> vagueza, <strong>de</strong> clareza e <strong>de</strong> obscurida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> precisão e <strong>de</strong><br />

ambigüida<strong>de</strong>. Na verda<strong>de</strong>, o conhecimento do hom<strong>em</strong> que age <strong>de</strong>ntro do mundo<br />

cotidiano é incoerente, apenas parcialmente claro, não estando livre <strong>de</strong> contradições.<br />

Assim, <strong>de</strong>ve-se salientar que o estoque <strong>de</strong> conhecimento existe <strong>em</strong> um fluxo<br />

contínuo:<br />

57


“Está claro que qualquer experiência posterior o enriquece e o alarga.<br />

Através da referência ao estoque <strong>de</strong> conhecimento à mão, num <strong>de</strong>terminado<br />

Agora, a experiência atual <strong>em</strong> curso aparece como “familiar”, se está<br />

relacionada por meio <strong>de</strong> uma “síntese <strong>de</strong> reconhecimento” a alguma<br />

experiência anterior, nos modos <strong>de</strong> “igualda<strong>de</strong>”, “s<strong>em</strong>elhança”,<br />

“similarida<strong>de</strong>”, “analogia”, etc. A experiência <strong>em</strong> curso po<strong>de</strong>, por ex<strong>em</strong>plo,<br />

ser i<strong>de</strong>ntificada com uma experiência anterior “igual mais modificada”, ou<br />

ainda, como uma experiência <strong>de</strong> um tipo s<strong>em</strong>elhante ao <strong>de</strong> alguma já<br />

vivenciada, e assim por diante.” SCHUTZ (1979 : 75)<br />

Este acervo <strong>de</strong> “conhecimento à mão” não consiste exclusivamente nas<br />

experiências vividas diretamente pelo indivíduo. Ele t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong> social, ou seja,<br />

consiste também nas experiências vividas diretamente pelos m<strong>em</strong>bros do grupo a<br />

que este indivíduo pertence. Neste sentido, o “conhecimento à mão” dos integrantes<br />

<strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado grupo é congruente, o que é válido não somente <strong>em</strong> relação ao<br />

mundo natural, mas também aos conhecimentos do mundo social e cultural <strong>de</strong>ste<br />

grupo. Esta interpretação baseia-se no pressuposto <strong>de</strong> que os m<strong>em</strong>bros <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>terminado grupo encontram, <strong>em</strong> seu acervo <strong>de</strong> “conhecimento à mão”, el<strong>em</strong>entos<br />

tipicamente similares, e estes <strong>de</strong>terminam os motivos <strong>de</strong> sua ação.<br />

Para Schutz, é esta congruência e similarida<strong>de</strong> que nos permite, sobretudo no<br />

que concerne ao mundo social, antecipar fatos com uma certa segurida<strong>de</strong>, o que<br />

orienta a forma pela qual <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os agir. A experiência nova que o indivíduo<br />

encontra <strong>em</strong> sua vida cotidiana po<strong>de</strong> ser concebida como algo igual ao já<br />

experimentado, não só por ele, mas pelo grupo ao qual pertence. Neste sentido, o<br />

acervo <strong>de</strong> “conhecimento à mão” serve como esqu<strong>em</strong>a para interpretar a experiência<br />

<strong>em</strong>ergente orientando a sua ação. Percebe-se que Schutz parte do pressuposto <strong>de</strong> que<br />

o conhecimento da realida<strong>de</strong> até então a<strong>de</strong>quado na orientação <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada<br />

ação será confirmado no futuro. Desta forma, <strong>de</strong>terminada ação po<strong>de</strong> provocar<br />

situações e resultados s<strong>em</strong>elhantes aos obtidos por uma ação similar anterior.<br />

58


Segundo Schutz, cada experiência é única, e n<strong>em</strong> mesmo a que se repete é a<br />

mesma, pois é vivenciada como tal <strong>em</strong> contextos e circunstâncias diferentes.<br />

“Experimentamos o mundo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, não como uma intrincada e<br />

ruidosa confusão <strong>de</strong> dados sensoriais, n<strong>em</strong> como um conjunto <strong>de</strong> objetos<br />

particulares isolados, s<strong>em</strong> relação entre si, n<strong>em</strong> como fatos isolados que se<br />

po<strong>de</strong>m separar <strong>de</strong> seu contexto, mas <strong>em</strong> sua estruturação segundo tipos e<br />

relações típicas entre tipos” SCHUTZ (1974 p.262)<br />

As nossas experiências presentes não se refer<strong>em</strong>, por meio <strong>de</strong> retenção e<br />

l<strong>em</strong>branças, somente às anteriores. Toda experiência se refere também ao futuro, ou<br />

seja, a forma como se antecipa também está relacionada com as nossas experiências<br />

presentes. Assim, no pensar <strong>de</strong> sentido comum, essas antecipações e expectativas<br />

segu<strong>em</strong> basicamente as estruturas típicas que até então, sendo válidas para nossas<br />

experiências anteriores, vão sendo incorporadas <strong>em</strong> nosso acervo <strong>de</strong> “conhecimento<br />

à mão”.<br />

Para Schutz, não só o alcance, mas também a estruturação <strong>de</strong>sse<br />

“conhecimento à mão” está <strong>em</strong> mudança constante. Por ex<strong>em</strong>plo, quando ocorre<br />

uma nova experiência, e freqüent<strong>em</strong>ente isso acontece, há uma mudança <strong>em</strong> nosso<br />

sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> relevância, o qual <strong>de</strong>termina a estruturação do acervo do “conhecimento<br />

à mão” e o divi<strong>de</strong> <strong>em</strong> zonas <strong>de</strong> diferentes graus <strong>de</strong> clarida<strong>de</strong> e niti<strong>de</strong>z. Segundo<br />

Schutz: “O sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> relevância <strong>de</strong>termina, a<strong>de</strong>mais o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> tipos no qual se<br />

organiza nosso acervo <strong>de</strong> “conhecimento à mão” 32 , ou ainda:<br />

“Empregando os termos <strong>em</strong> seu significado mais estrito, po<strong>de</strong>mos dizer <strong>de</strong><br />

uma forma paradoxal que o pensar <strong>de</strong> senso comum da vida cotidiana no<br />

que acontece não po<strong>de</strong> ter sido previsto exatamente como acontece, e o que<br />

se prevê que aconteça nunca acontecerá como previsto. Isto não contradiz o<br />

fato <strong>de</strong> que a vida diária para muitos fins úteis, po<strong>de</strong>mos antecipar e, com<br />

efeito, antecipamos corretamente o que está por vir. Uma análise mais<br />

minuciosa nos mostra que, <strong>em</strong> tais casos, nos interessa somente a tipicida<strong>de</strong><br />

dos fatos futuros. Po<strong>de</strong>-se dizer que um fato era previsto se o que realmente<br />

suce<strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>, <strong>em</strong> sua tipicida<strong>de</strong> ao conhecimento à mão <strong>em</strong> nosso<br />

acervo <strong>de</strong> conhecimento no momento <strong>em</strong> que antecipamos o fato.” SCHUTZ<br />

(1974 p..263)<br />

32 SCHUTZ, Alfred. Tirésias, o nuestro conocimento <strong>de</strong> sucesos futuros. In: Estúdios Sobre Teoria Social.<br />

Buenos Aires, Amorrortu, 1974.<br />

59


Ainda segundo SCHUTZ (1971), todo o conhecimento do mundo, seja na<br />

vida ordinária, seja na ciência, supõe constructos: generalizações, formalizações,<br />

i<strong>de</strong>alizações. Desta forma, as modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conhecimento <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>riam <strong>de</strong><br />

tipificações que são produzidas a partir da combinação específica do conhecimento e<br />

da ignorância s<strong>em</strong>pre presentes nas interações sociais da vida mundana 33 .<br />

A perspectiva fenomenológica <strong>de</strong> Schutz permite enten<strong>de</strong>r a excelência <strong>de</strong><br />

alguns indivíduos na navegação <strong>em</strong> ambientes circunstanciais. Seja nas fábricas<br />

mo<strong>de</strong>rnas, nas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> métier ou <strong>em</strong> qualquer outra ativida<strong>de</strong> <strong>em</strong> que as<br />

relações <strong>de</strong> trabalho se dão <strong>em</strong> ambientes <strong>de</strong> elevada contingência, a competência<br />

profissional po<strong>de</strong> ser revelada. O conceito <strong>de</strong> competência ganha maior<br />

inteligibilida<strong>de</strong>, se vinculado à perspectiva fenomenológica, ou seja, a partir da<br />

construção social do conhecimento.<br />

O mundo do garimpo estrutura formas muito particulares <strong>de</strong> produção,<br />

distribuição e transmissão do conhecimento, que são partilhados tacitamente<br />

(<strong>em</strong>bora assimetricamente) no contexto <strong>de</strong> um certo horizonte <strong>de</strong> familiarida<strong>de</strong>. Os<br />

garimpeiros partilham certas experiências comuns que aproximam suas situações<br />

biográficas específicas, e que representam um “conhecimento à mão” disponível <strong>em</strong><br />

grau variável. Este cabedal <strong>de</strong> conhecimento diferenciado cristaliza-se num conjunto<br />

<strong>de</strong> tipificações e esqu<strong>em</strong>atas, um modo particular <strong>de</strong> ver, sentir e interpretar a vida,<br />

que dá sentido a suas experiências concretas, inclusive suas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho. É<br />

neste sentido que se po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r as categorias associadas ao garimpo, que muitas<br />

vezes são fortalecidas pelos próprios garimpeiros, tal como o caráter totalmente<br />

aleatório da <strong>de</strong>scoberta, ou seja, a sorte e trabalhar no escuro como el<strong>em</strong>entos<br />

prepon<strong>de</strong>rantes para o sucesso extrativo. No entanto, esta aparente aleatorieda<strong>de</strong> está<br />

associada a um certo “conhecimento à mão” não disponível igualmente entre os<br />

33 SIMMEL, Georg. Knowledge, Truth and Falsity in Human Relations. In: Wolff, Kurt. (ed.). The Sociology<br />

of Georg Simmel. New York, Free Press, 1950.<br />

60


participantes do processo extrativo; ou seja, a sorte, <strong>em</strong> certa medida, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

conhecimentos acumulados pela experiência.<br />

“O estoque social do conhecimento fornece os esqu<strong>em</strong>as tipificadores<br />

exigidos para as principais rotinas da vida cotidiana, e <strong>de</strong> todas as espécies<br />

<strong>de</strong> acontecimentos e experiências tanto sociais quanto naturais. (...) O<br />

conhecimento na vida cotidiana está socialmente distribuído, isto é, possuído<br />

diferent<strong>em</strong>ente por diversos indivíduos e tipos <strong>de</strong> indivíduos. Não partilho<br />

meu conhecimento igualmente com todos os meus s<strong>em</strong>elhantes e po<strong>de</strong> haver<br />

algum conhecimento que não compartilho com ninguém.” BERGER &<br />

LUCKMANN (1966 : 64, 67)<br />

A sociologia fenomenológica sugere que o pesquisador, <strong>em</strong> sua postura<br />

teórica, ponha “entre parênteses” os pressupostos, entendimentos tácitos e<br />

suposições implícitas que constitu<strong>em</strong> a “atitu<strong>de</strong> natural” do mundo da vida<br />

cotidiana, para que se possa examinar <strong>de</strong>talhadamente as condições <strong>em</strong> que se<br />

<strong>de</strong>senrola a ação. Assim, <strong>de</strong>ve tornar explícita a consciência daquilo que está latente<br />

na vida cotidiana:<br />

“O que se procura, então, é o reconhecimento franco <strong>de</strong> uma infra-estrutura<br />

formada <strong>de</strong> suposições <strong>de</strong> senso comum, no trabalho do sociólogo, e que não<br />

difer<strong>em</strong> das formuladas pelos m<strong>em</strong>bros da socieda<strong>de</strong>, no mundo cotidiano, e<br />

que <strong>de</strong>ve ser levantada e estudada” SMART (1976: 105)<br />

Portanto, do ponto <strong>de</strong> vista fenomenológico, a base <strong>de</strong> qualquer pesquisa é na<br />

verda<strong>de</strong> uma interpretação da vida cotidiana, na qual está a fonte <strong>de</strong> significados<br />

sociais; sendo essa interpretação também central e implícita à pesquisa. Assim, para<br />

Schutz, o pesquisador <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>slocar a pesquisa até o nível das ativida<strong>de</strong>s do<br />

indivíduo, ou seja, <strong>de</strong>ve fazer uma tentativa <strong>de</strong> fundamentar suas interpretações nos<br />

atos subjetivos dos indivíduos que constró<strong>em</strong> a situação.<br />

61


3. O Métier <strong>de</strong> Garimpeiro<br />

Como argumentamos na primeira parte <strong>de</strong>ste capítulo, o métier é entendido<br />

como uma forma específica <strong>de</strong> organização e divisão do trabalho. Nele está contido<br />

um conjunto <strong>de</strong> conhecimentos e <strong>de</strong> savoir-faire inerentes às ativida<strong>de</strong>s do trabalho,<br />

conhecimentos tácitos e saberes <strong>em</strong>píricos ligados essencialmente às “manhas do<br />

ofício”. Estes conhecimentos, constituídos não só na educação formal, são<br />

responsáveis pela formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do trabalhador, evoluindo ou se<br />

modificando através do t<strong>em</strong>po.<br />

A ativida<strong>de</strong> garimpeira é <strong>de</strong>senvolvida <strong>em</strong> um ambiente natural aberto e<br />

mutável no t<strong>em</strong>po e no espaço. Cada cava, cada barranco, cada curva do rio<br />

apresenta situações distintas e <strong>em</strong> permanente transformação; tais circunstâncias<br />

ecológicas particulares impõ<strong>em</strong> contínua adaptação, ajustamento e improvisação dos<br />

procedimentos rotineiros e das técnicas <strong>de</strong> extração. Toda <strong>de</strong>cisão no processo <strong>de</strong><br />

trabalho <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma cuidadosa avaliação das circunstâncias <strong>em</strong> questão.<br />

A<strong>de</strong>mais, os resultados da ativida<strong>de</strong> são marcados por uma imprevisibilida<strong>de</strong><br />

irredutível, apenas imperfeitamente contornada por uma razão prática que interpreta<br />

pistas proporcionadas por um ambiente complexo. A ativida<strong>de</strong> faz-se acompanhar,<br />

pois, <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> conhecimentos tácitos, saberes <strong>em</strong>píricos incorporados à<br />

experiência e associados às circunstâncias típicas <strong>de</strong>ste ambiente, que são<br />

corporificadas e representadas na sorte.<br />

Neste contexto, revela-se a forte dimensão subjetiva presente na constituição<br />

<strong>de</strong>sse métier, tanto pelo caráter <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente oculto do ouro como pelas incertezas<br />

do sucesso extrativo. O caráter probabilístico e a elevada conseqüencialida<strong>de</strong> do<br />

<strong>em</strong>preendimento aproximam-no, <strong>em</strong> certa medida, do estado <strong>de</strong> espírito e da postura<br />

62


típica do jogador. 34 A ativida<strong>de</strong> garimpeira, envolvida pelo inci<strong>de</strong>nte, pelo<br />

imprevisto, pelo não programado, resulta <strong>em</strong> rotinas interativas, que, aliás, não estão<br />

presentes somente nela própria, mas também nos ambientes <strong>de</strong> trabalho <strong>em</strong> que o<br />

métier é o estruturador das relações sociais. É neste ambiente que a pane se torna<br />

muito mais freqüente. A noção <strong>de</strong> évén<strong>em</strong>ent, que nos r<strong>em</strong>ete aos imprevistos<br />

ocasionais do mundo fabril, é muito freqüente no garimpo e nos revela, com maior<br />

clareza, a competência <strong>de</strong> trabalhadores.<br />

À contingência do ambiente natural <strong>em</strong> que se <strong>de</strong>senrola o garimpo, soma-se<br />

um contexto institucional <strong>de</strong> incertezas, <strong>de</strong> legislação confusa e <strong>de</strong> imprevisibilida<strong>de</strong><br />

da fiscalização, que favorec<strong>em</strong> a constituição <strong>de</strong> um ambiente extr<strong>em</strong>amente<br />

conflituoso. Como pô<strong>de</strong> ser percebido no primeiro capítulo, o garimpo foi, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

seu surgimento, ora extr<strong>em</strong>amente perseguido, ora incentivado como uma<br />

importante forma <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> recursos, cristalizando este ambiente <strong>de</strong> incertezas<br />

que caracterizam a ativida<strong>de</strong>.<br />

Tudo isso faz com que a ativida<strong>de</strong> garimpeira seja organizada<br />

provisoriamente, s<strong>em</strong> gran<strong>de</strong>s investimentos <strong>em</strong> capital fixo, ass<strong>em</strong>elhando-se por<br />

ex<strong>em</strong>plo, à pesca artesanal, à coleta vegetal, ou mesmo a ativida<strong>de</strong>s camponesas,<br />

que são s<strong>em</strong>pre sensíveis às incertezas do ambiente <strong>de</strong> trabalho. Neste sentido, opõe-<br />

se radicalmente ao ambiente fechado e artificial <strong>de</strong> uma fábrica, on<strong>de</strong> todas as<br />

tarefas <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser gerenciadas visando a uma racionalização maior das ativida<strong>de</strong>s do<br />

trabalhador e à maximização dos lucros.<br />

É possível que tudo isso tenha favorecido o surgimento <strong>de</strong> um esprit <strong>de</strong> corps,<br />

perceptível nos atos <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do grupo. No entanto, é a<br />

confiança interpessoal o el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> maior importância na estruturação das relações<br />

sociais <strong>de</strong> trabalho. Esta importância crucial <strong>de</strong>riva-se fundamentalmente das<br />

incertezas criadas pela condição <strong>de</strong> clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> do garimpo, consi<strong>de</strong>rado uma<br />

ativida<strong>de</strong> ilegal, carente das garantias da regulamentação estatal e cujo produto é<br />

34 GOFFMAN, E. Interaction Ritual: Essays in Face-to-Face Behavior. In: Interaction Ritual:Essay on face-<br />

to-face Chicago, Aldine, 1967.<br />

63


extr<strong>em</strong>amente valioso. A confiança interpessoal baseada <strong>em</strong> laços prévios é a base<br />

do processo <strong>de</strong> seleção <strong>de</strong> trabalhadores e estrutura também a própria formação dos<br />

grupos, muitas vezes formados por familiares na tentativa <strong>de</strong> diminuir as<br />

contingências e conseqüent<strong>em</strong>ente as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conflitos neste ambiente <strong>de</strong><br />

elevado risco. O fato <strong>de</strong> ser o garimpo uma ativida<strong>de</strong> ilegal produz um forte<br />

sentimento <strong>de</strong> insegurança <strong>de</strong>corrente da repressão, e elimina a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

organização rígida, um dos fatores <strong>de</strong>terminantes para uma divisão flexível do<br />

trabalho. Este fato requer das pessoas envolvidas uma organização do trabalho muito<br />

peculiar, inclusive uma cumplicida<strong>de</strong> com a comunida<strong>de</strong> na qual estão inseridos.<br />

Os envolvidos sent<strong>em</strong>-se participantes da mesma aposta num ambiente<br />

marcado por expectativas e incertezas. Este sentimento compartilhado ameniza as<br />

relações hierárquicas entre os trabalhadores, revelando relações <strong>de</strong> parcerias, <strong>de</strong><br />

solidarieda<strong>de</strong> nos trabalhos e <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> fraternal <strong>de</strong>ntro do grupo. Isso dá ao<br />

garimpeiro a agradável sensação <strong>de</strong> que é um trabalhador autônomo e lhe propicia<br />

um certo orgulho por não estar sob o jugo <strong>de</strong> um patrão. Todo esse conjunto <strong>de</strong><br />

normas pactuadas nas relações <strong>de</strong> hierarquia é chamado por alguns autores, como<br />

CLEARY (1990), <strong>de</strong> lei do garimpo, consi<strong>de</strong>rada a responsável pelas estruturações<br />

das relações sociais neste ambiente instável.<br />

O conhecimento e os saberes presentes na ativida<strong>de</strong> estão fort<strong>em</strong>ente ligados<br />

à sua tradição; são aprendidos <strong>em</strong> anos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> e num ambiente <strong>de</strong> trabalho<br />

extr<strong>em</strong>amente mutável, exigindo do trabalhador discrição e discernimento. A<br />

criativida<strong>de</strong> é, s<strong>em</strong> dúvida, fator prepon<strong>de</strong>rante e <strong>de</strong> suma importância, <strong>de</strong>vido às<br />

várias e inesperadas situações que, freqüent<strong>em</strong>ente, surg<strong>em</strong> no dia-a-dia do seu<br />

trabalho. As rotinas repetitivas do trabalho são algo secundário, e o que realmente<br />

sobressai é a verda<strong>de</strong>ira compreensão <strong>de</strong> suas ações <strong>em</strong> função do objetivo: a<br />

<strong>de</strong>scoberta do ouro. Todo o cabedal <strong>de</strong> conhecimentos do garimpeiro passa também<br />

pelo domínio <strong>de</strong> histórias antigas do garimpo sobre as imperícias e o sucesso <strong>de</strong><br />

outros garimpeiros, e a posse das áreas que as frentes <strong>de</strong> extração do passado<br />

ignoraram. Estes saberes, passados <strong>de</strong> pai para filho e aprendidos no cotidiano do<br />

64


trabalho, são chamados jogo do rio, e é através <strong>de</strong> seu domínio que os garimpeiros<br />

têm suporte para lançamento <strong>de</strong> seus palpites e escolha do local on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve abrir<br />

uma cava.<br />

Dentro do ambiente <strong>de</strong> contingências que caracterizam o garimpo, exist<strong>em</strong> os<br />

trabalhadores reconhecidos como virtuosi. Na região <strong>de</strong> Diamantina, este<br />

trabalhador é conhecido como o garimpeiro sabido 35 , isto é, aquele que parece ser<br />

“iluminado” para o garimpo. Este fato, muitas vezes, constitui razão <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> e<br />

posição <strong>de</strong> ascendência sobre os <strong>de</strong>mais m<strong>em</strong>bros do grupo. Esta dimensão subjetiva<br />

também está presente na expectativa da <strong>de</strong>scoberta, fortalecendo o imaginário do<br />

garimpeiro e <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> preten<strong>de</strong> sê-lo. Nele, constituindo os el<strong>em</strong>entos norteadores,<br />

estão presentes o sonho <strong>de</strong> enriquecer abruptamente, o <strong>de</strong>scrédito nos mecanismos<br />

<strong>de</strong> sondag<strong>em</strong> do terreno e a crença na intuição, nas lendas e mitos.<br />

O rico histórico da ativida<strong>de</strong> garimpeira é um el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>o orgulho<br />

para os trabalhadores que o <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> qualquer influência externa. O garimpeiro<br />

é extr<strong>em</strong>amente avesso a rupturas nesta estrutura solidificada pela tradição. Sua<br />

aversão é expressa na resistência a el<strong>em</strong>entos estranhos ao seu ambiente <strong>de</strong> trabalho,<br />

como por ex<strong>em</strong>plo, os órgãos públicos. A presença <strong>de</strong>stes órgãos ou mesmo a <strong>de</strong><br />

ambientalistas que po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>nunciá-los é vista com <strong>de</strong>sconfiança e está associada ao<br />

po<strong>de</strong>r coercitivo da Polícia Florestal. Por conseguinte, tentam continuamente<br />

escapar do raio <strong>de</strong> ação da esfera governamental. Hoje, para os garimpeiros, o<br />

Estado ainda é o mesmo dos t<strong>em</strong>pos coloniais, quando seguia-se, ao menor sinal <strong>de</strong><br />

sua presença, o ato <strong>de</strong> se escon<strong>de</strong>r nas grimpas, para evitar qualquer ato <strong>de</strong> repressão<br />

que os pu<strong>de</strong>sse atingir.<br />

Com isto, po<strong>de</strong>-se perceber que o el<strong>em</strong>ento prepon<strong>de</strong>rante e <strong>de</strong>finidor do<br />

métier <strong>de</strong> garimpeiro é estar inserido <strong>em</strong> um ambiente <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a contingência, seja<br />

pelas próprias características do processo extrativo, pelo caráter oculto do produto<br />

ou pela sua ilegalida<strong>de</strong>. Assim, este ambiente mutável e <strong>de</strong> incertezas é uma<br />

35 Ver. MARTINS (1997: 78)<br />

65


característica fundamental para o entendimento da estrutura do métier <strong>de</strong><br />

garimpeiro.<br />

Capítulo III<br />

O Mundo do Trabalho Garimpeiro <strong>em</strong> Monsenhor Horta<br />

“Cê trabalhar no ouro, rapaz, é uma <strong>em</strong>oção muito<br />

gran<strong>de</strong>, cê tá doido, coisa boa. Quando você acha o<br />

ouro então, aí nossa senhora, é coisa boa <strong>de</strong>mais, é<br />

uma <strong>em</strong>oção danada, não troco essa <strong>em</strong>oção do<br />

garimpo por nenhum outro trabalho.”<br />

Gustavo Ventura. (Primeiro garimpeiro a trabalhar<br />

com motores <strong>em</strong> Monsenhor Horta.)<br />

Neste capítulo são explorados os resultados da pesquisa <strong>de</strong> campo realizada<br />

entre os garimpeiros do Distrito <strong>de</strong> Monsenhor Horta, e <strong>de</strong>senhados os contornos<br />

gerais da realida<strong>de</strong> cotidiana do mundo do garimpo. Através dos relatos <strong>de</strong><br />

garimpeiros mais velhos que vivenciaram vários momentos distintos da ativida<strong>de</strong>,<br />

tentou-se reconstruir e contrastar a dinâmica do garimpo tradicional com a realida<strong>de</strong><br />

atual dos garimpos s<strong>em</strong>imecanizados, buscando evi<strong>de</strong>nciar continuida<strong>de</strong>s e rupturas<br />

entre os antigos sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> organização do trabalho do garimpo e os atuais.<br />

A estratégia <strong>de</strong> investigação foi a do estudo <strong>de</strong> caso. Com ela preten<strong>de</strong>u-se<br />

chegar a uma compreensão abrangente do grupo <strong>em</strong> estudo, visando a enten<strong>de</strong>r os<br />

tipos <strong>de</strong> interação local e o seu relacionamento com o mundo.<br />

66


Para a realização <strong>de</strong>ste estudo <strong>de</strong> caso fez-se necessária a aplicação <strong>de</strong><br />

algumas técnicas específicas <strong>de</strong> coleta e análise <strong>de</strong> dados. As técnicas aplicadas<br />

foram a observação participante e a realização <strong>de</strong> 16 entrevistas s<strong>em</strong>iestruturadas <strong>em</strong><br />

profundida<strong>de</strong>, somando mais <strong>de</strong> 20 horas <strong>de</strong> gravação, imprescindíveis ao<br />

entendimento dos melindres da ativida<strong>de</strong> garimpeira. As entrevistas permitiram a<br />

apreensão dos aspectos essenciais relativos à pesquisa, que foi direcionada para a<br />

obtenção <strong>de</strong> informações sobre as novas formas <strong>de</strong> r<strong>em</strong>uneração, gestão, divisão do<br />

trabalho e competências na ativida<strong>de</strong> garimpeira e suas transformações ao longo do<br />

t<strong>em</strong>po.<br />

A parte mais difícil do processo foi a conquista da confiança dos garimpeiros<br />

para a realização das entrevistas. Neste sentido, optou-se pelo acompanhamento dos<br />

trabalhos <strong>de</strong> três grupos num total <strong>de</strong> 25 garimpeiros, no período <strong>de</strong> julho a agosto<br />

<strong>de</strong> 2001, visando um entendimento direto do processo <strong>de</strong> extração. Assim, foram<br />

realizadas entrevistas <strong>em</strong> profundida<strong>de</strong> com antigos garimpeiros, 5 no total, que<br />

tendo trabalhado no início da década <strong>de</strong> 80, presenciaram as mudanças ocorridas.<br />

Os donos dos garimpos foram essenciais para a obtenção das informações sobre os<br />

saberes específicos da ativida<strong>de</strong>, assim como os garimpeiros mais experientes,<br />

reconhecidamente <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong>ssas competências.<br />

Por tudo isso, a presença continuada na região escolhida foi <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a<br />

importância para a observação <strong>de</strong> todos os aspectos da vida cotidiana da<br />

comunida<strong>de</strong>, o que possibilitou o entendimento das principais relações e da<br />

produção dos conhecimentos da ativida<strong>de</strong> garimpeira ali existentes.<br />

Na primeira seção são <strong>de</strong>scritas a trajetória e as particularida<strong>de</strong>s da ativida<strong>de</strong><br />

garimpeira no Distrito <strong>de</strong> Monsenhor Horta. Na segunda, através dos <strong>de</strong>poimentos e<br />

da m<strong>em</strong>ória dos antigos garimpeiros, procurou-se reconstituir os processos <strong>de</strong><br />

trabalho e as formas <strong>de</strong> gestão vinculadas às antigas técnicas <strong>de</strong> extração, b<strong>em</strong> como<br />

investigar o período <strong>de</strong> transição para a extração com motores. Em seguida, também<br />

são <strong>de</strong>scritas as formas atuais <strong>de</strong> extração, marcando o contraste entre estas e as<br />

formas <strong>de</strong> organização do trabalho anteriores à mecanização. Procurou-se então<br />

67


essaltar as principais diferenças nos sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> relevância apontados pela<br />

sociologia do trabalho: r<strong>em</strong>uneração, gestão e divisão do trabalho.<br />

Combinando os relatos dos garimpeiros obtidos nos períodos <strong>de</strong> permanência<br />

com a observação <strong>de</strong> todo o processo <strong>de</strong> trabalho no garimpo, procurou-se analisar<br />

todo o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> organização do trabalho. Buscou-se assim, compreen<strong>de</strong>r a<br />

estruturação dos sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> relevância e as competências dos atuais trabalhadores<br />

do garimpo. Esta pesquisa ressalta também o papel central das relações <strong>de</strong> confiança<br />

na estruturação das relações <strong>de</strong> trabalho <strong>em</strong> um contexto <strong>de</strong> informalida<strong>de</strong>.<br />

1. O Garimpo no Distrito <strong>de</strong> Monsenhor Horta<br />

Para a realização <strong>de</strong>sta pesquisa, foi <strong>de</strong>finida como unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise os<br />

garimpos do Distrito <strong>de</strong> Monsenhor Horta, município <strong>de</strong> Mariana, Minas Gerais.<br />

Três razões justificam esta <strong>de</strong>cisão. A primeira é que este distrito é uma região<br />

ligada tradicionalmente à extração aurífera sob a forma <strong>de</strong> garimpo, praticado<br />

continuadamente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVIII. Sendo esta a principal ativida<strong>de</strong> econômica<br />

local po<strong>de</strong>ria permitir a observação dos dil<strong>em</strong>as típicos das formas <strong>de</strong> extração<br />

artesanal do ouro. Consubstanciou a <strong>de</strong>cisão a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudar a ativida<strong>de</strong><br />

garimpeira <strong>de</strong> uma localida<strong>de</strong> pequena, on<strong>de</strong> a maior parte dos garimpeiros não<br />

eram forasteiros, e <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a ativida<strong>de</strong> e a importância crucial das relações locais<br />

<strong>de</strong> confiança interpessoal na estabilização das rotinas da ativida<strong>de</strong>. A segunda é que<br />

a maior parte dos estudos sobre a ativida<strong>de</strong> garimpeira no Brasil t<strong>em</strong> se concentrado<br />

na região amazônica, on<strong>de</strong> o ambiente natural, as formas <strong>de</strong> exploração, a escala dos<br />

<strong>em</strong>preendimentos e a composição social dos garimpos são marcadamente distintos.<br />

Por fim, as relações <strong>de</strong> confiança com os garimpeiros da região, fundamentais para a<br />

realização da pesquisa <strong>de</strong> campo, já existiam. Estas relações foram se estabelecendo<br />

<strong>em</strong> função <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> contatos anteriores <strong>de</strong>correntes da nossa participação <strong>em</strong><br />

68


um projeto <strong>de</strong> pesquisa anterior iniciado <strong>em</strong> 1996. Des<strong>de</strong> então, este grupo <strong>de</strong><br />

trabalhadores esteve s<strong>em</strong>pre presente <strong>em</strong> nossos estudos acadêmicos, dando base a<br />

uma monografia do bacharelado.<br />

Foi esta convivência que permitiu um acesso <strong>em</strong> condições <strong>de</strong> abertura e<br />

confiança, que seriam muito difíceis <strong>de</strong> construir <strong>em</strong> outros contextos.<br />

O Distrito <strong>de</strong> Monsenhor Horta está localizado a 20 km da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mariana e a<br />

140 km <strong>de</strong> Belo Horizonte. Seu relevo é montanhoso e com resquícios do que foi<br />

mata no passado. Algumas construções <strong>de</strong>nunciam a fase áurea da extração do ouro<br />

nos séculos anteriores.<br />

Como <strong>em</strong> quase todas as pequenas cida<strong>de</strong>s do Brasil, é difícil traçar um histórico<br />

da localida<strong>de</strong>. No entanto sabe-se, por inúmeros trabalhos, que a exploração do ouro<br />

no Brasil teve início <strong>em</strong> 1693, quando Antônio <strong>Rodrigues</strong> Arazão, um paulista <strong>de</strong><br />

Taubaté, o <strong>de</strong>scobriu na região <strong>de</strong> Caeté. Em 1699, também foi encontrado <strong>em</strong> Vila<br />

Rica, hoje Ouro Preto, e a partir daí, as pesquisas se esten<strong>de</strong>m por toda a área do<br />

estado <strong>de</strong> Minas Gerais.<br />

Com um gran<strong>de</strong> potencial <strong>de</strong> reservas auríferas, a ocupação da região <strong>de</strong> Mariana<br />

se consolidaria ainda na primeira fase do ciclo do ouro. A chegada <strong>de</strong> inúmeros<br />

exploradores ocasionou a formação <strong>de</strong> um centro populoso, consi<strong>de</strong>rável o<br />

suficiente para que se lançass<strong>em</strong> os fundamentos <strong>de</strong> uma vila. Em 1711, recebeu o<br />

nome <strong>de</strong> Vila do Carmo, e pela Carta Régia <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1745, foi elevada à<br />

cida<strong>de</strong> com o nome <strong>de</strong> Mariana, <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> à rainha D. Mariana da Áustria,<br />

esposa <strong>de</strong> D. João V, quando da criação <strong>de</strong> um bispado <strong>em</strong> Minas. Com seu rápido<br />

crescimento, tornou-se a primeira capital da Capitania <strong>de</strong> Minas Gerais.<br />

O nome <strong>de</strong> fundação do vilarejo <strong>de</strong> Monsenhor Horta foi São Caetano, <strong>em</strong><br />

homenag<strong>em</strong> a um rico proprietário <strong>de</strong> terras, chamado Caetano, principal fundador<br />

do povoado, que surgiu no séc. XVII, no auge do <strong>de</strong>scobrimento das minas. Em<br />

1703, a população era tão gran<strong>de</strong> e a garimpag<strong>em</strong> tão frutífera, que foi elevada,<br />

junto com Ouro Preto, à Paróquia, título dado pela Igreja Católica e <strong>de</strong> importante<br />

significado para a hierarquia das cida<strong>de</strong>s da época. Em 1797 foi concluída a matriz<br />

69


local, que até hoje impressiona pelas suas dimensões e riqueza interior. Foi elevado<br />

a Distrito <strong>de</strong> Mariana, <strong>em</strong> 1705.<br />

Com a <strong>de</strong>cadência da mineração, no final do séc XVIII, diversificaram-se as<br />

ativida<strong>de</strong>s e as ocupações na região:<br />

"Não se tratando mais <strong>de</strong> mineração, era a ocupação dos homens<br />

trabalhar pelo oficio <strong>de</strong> ferreiro, <strong>de</strong> alfaiate, muitos eram tropeiros,<br />

outros faiscadores, outros faziam plantações, etc. As mulheres fiavam<br />

algodão e lã, outras teciam o pano, outras costuravam à mão camisas e<br />

ceroulas, etc. Com a lã teciam cortes que tingiam e faziam roupas para<br />

homens e também cobertores. Toda menina daquele t<strong>em</strong>po sabia fiar e as<br />

que não sabiam escaroçavam o algodão, tendo para isto escaroçador, e<br />

outras abriam a lã que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> passá-la na corda ou escovas <strong>de</strong> arame<br />

...” 36<br />

Nas primeiras décadas <strong>de</strong>ste século, para homenagear um antigo vigário, a qu<strong>em</strong><br />

são atribuídos vários milagres, e que é até hoje bastante cultuado naquela região,<br />

passou-se a <strong>de</strong>signar o então Distrito <strong>de</strong> São Caetano, <strong>de</strong> Monsenhor Horta.<br />

O distrito possui uma população <strong>de</strong> 1850 habitantes (IBGE 2000) que vive, tanto<br />

financeira como culturalmente, <strong>em</strong> torno da garimpag<strong>em</strong> do ouro ou dos<br />

resquícios que sobraram após tantos anos <strong>de</strong> exploração das margens do Ribeirão<br />

do Carmo. O comércio é precário e o atendimento à saú<strong>de</strong> é quase inexistente;<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> quase que por completo da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mariana.<br />

A partir das observações foi possível constatar a existência, apesar da gradual<br />

diminuição, <strong>de</strong> uma média <strong>de</strong> 300 pessoas envolvidas diretamente na ativida<strong>de</strong><br />

garimpeira <strong>em</strong> todo o município <strong>de</strong> Mariana: garimpeiros, compradores <strong>de</strong> ouro e<br />

proprietários das áreas on<strong>de</strong> são feitas as extrações. Esta média é extr<strong>em</strong>amente<br />

variável, <strong>de</strong>vido à rotativida<strong>de</strong> do processo <strong>de</strong> extração e à vinda <strong>de</strong> forasteiros, <strong>em</strong><br />

épocas <strong>de</strong> estiag<strong>em</strong>. Nestas ocasiões, po<strong>de</strong> ser encontrada na região uma quantida<strong>de</strong><br />

muito gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> novos garimpos, mas estes têm curta permanência. A exploração,<br />

entretanto, nunca se encerra, sustentada pelos garimpeiros moradores do distrito, que<br />

estão permanent<strong>em</strong>ente envolvidos com a ativida<strong>de</strong>, mesmo quando <strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong><br />

simultaneamente outras ocupações.<br />

36 Fonte primária. Manuscrito encontrado na casa paroquial da igreja matriz <strong>de</strong> Monsenhor Horta e que traz<br />

inúmeras <strong>de</strong>scrições sobre a região.<br />

70


Durante a pesquisa, constatou-se a presença <strong>de</strong> pelo menos 15 pontos <strong>de</strong> garimpo<br />

<strong>em</strong> todo o município; são eles a principal fonte <strong>de</strong> renda e, conseqüent<strong>em</strong>ente, <strong>de</strong><br />

subsistência para os trabalhadores envolvidos. A maioria dos garimpos<br />

pesquisados estão hoje localizados, numa faixa <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 10 Km, ao longo das<br />

margens do Ribeirão do Carmo, que passa atrás das residências do distrito.<br />

2. O Garimpo Artesanal Tradicional e as Técnicas <strong>de</strong> Extração do Ouro.<br />

A extração <strong>de</strong> ouro <strong>em</strong> Monsenhor Horta se manteve <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras<br />

<strong>de</strong>scobertas. Gerações têm sobrevivido ali, direta ou indiretamente, da extração<br />

aluvionar do ouro, cada vez mais escasso. Do início da extração do ouro, no final do<br />

século XVII, até o século XVIII, quando surge a figura do garimpeiro, a extração<br />

aurífera se mantém, mas muda toda a sua estrutura <strong>de</strong> funcionamento. Na verda<strong>de</strong>,<br />

até a introdução dos motores, as técnicas <strong>de</strong> extração na região mostravam uma<br />

notável continuida<strong>de</strong> <strong>em</strong> relação aos séculos anteriores. Os relatos acerca dos<br />

processos <strong>de</strong> extração obtidos junto aos garimpeiros da região, que trabalham na<br />

ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> meados do século XX, reproduz<strong>em</strong> com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> as mesmas<br />

técnicas <strong>de</strong>scritas pelos naturalistas e viajantes que visitaram Minas Gerais no início<br />

do século XIX.<br />

Antes dos motores, eram praticados quatro tipos <strong>de</strong> garimpo na região 37 : a<br />

bateia, a canoa, o canal e a bica. A canoa, o canal e a bica eram os mais utilizados,<br />

e a escolha <strong>de</strong> cada tipo <strong>de</strong> técnica estava associada à diversida<strong>de</strong> das circunstâncias<br />

<strong>em</strong> que ocorria a ativida<strong>de</strong>, tais como o tipo do terreno, o número <strong>de</strong> pessoas<br />

envolvidas, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> material que se queria lavrar, etc.<br />

O uso da bateia foi predominante nos séculos XVIII e XIX, quando a<br />

extração garimpeira era feita <strong>de</strong> uma forma completamente artesanal. Sua utilização<br />

37 Estes tipos <strong>de</strong> garimpo foram <strong>de</strong>scritos <strong>de</strong> uma forma extr<strong>em</strong>amente <strong>de</strong>talhada e rica por Paul Ferrand. O<br />

ouro <strong>em</strong> Minas Gerais. 1894. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1998.<br />

71


era eficiente <strong>de</strong>vido à abundância <strong>de</strong> ouro <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> pepitas ou mesmo <strong>em</strong> pó.<br />

Segundo o relato dos garimpeiros mais antigos <strong>de</strong> Monsenhor Horta, o uso da bateia<br />

persistiu residualmente ainda no século XX, mas aos poucos foi <strong>de</strong>saparecendo, na<br />

medida <strong>em</strong> que o ouro se tornava mais escasso.<br />

Mais que qualquer outro instrumento, a bateia simboliza a base artesanal das<br />

primeiras técnicas utilizadas na ativida<strong>de</strong> garimpeira aluvionar. A extração acontecia<br />

normalmente nas margens dos rios on<strong>de</strong> o ouro po<strong>de</strong>ria ser encontrado <strong>em</strong> forma <strong>de</strong><br />

pepitas, isto é, <strong>em</strong> pedra, ou mesmo <strong>em</strong> pó. Na forma <strong>de</strong> pepitas, a extração do ouro<br />

era muito fácil, e somente o uso da bateia prescindia <strong>de</strong> qualquer outro aparato<br />

técnico ou <strong>de</strong> uma radical r<strong>em</strong>o<strong>de</strong>lação do terreno. A extração se dava da seguinte<br />

forma: o garimpeiro enchia a bateia <strong>de</strong> cascalho retirado das margens dos rios, ou<br />

mesmo do fundo <strong>de</strong>stes, e conservando-a na superfície, imprimia-lhe contínuos e<br />

apropriados movimentos giratórios, inclinando-a <strong>de</strong> vez <strong>em</strong> quando para receber<br />

uma dose <strong>de</strong> água enquanto ia mexendo, com a outra mão, o conteúdo. De t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />

t<strong>em</strong>po, espalhava o conteúdo pela borda da bateia, observando-o cuidadosamente,<br />

<strong>de</strong>pois o atirava fora, caso não surgisse o tão <strong>de</strong>sejado metal.<br />

Apesar da maior quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos passados, a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> uma<br />

pepita era um evento raro. O ouro era captado principalmente <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> pó, o que<br />

exigia vários processos posteriores para sua total apuração. Nesta forma, o ouro<br />

aparece na bateia juntamente com outros minérios, como, por ex<strong>em</strong>plo, o minério <strong>de</strong><br />

ferro. Para separá-lo dos <strong>de</strong>mais materiais utilizavam-se ímãs que retiravam as<br />

partículas <strong>de</strong> minério <strong>de</strong> ferro, <strong>de</strong>ixando somente o ouro. Segundo os garimpeiros da<br />

região, este método não era muito eficaz, o que ocasionava gran<strong>de</strong>s perdas.<br />

Utilizava-se também a folha do maracujazeiro da seguinte forma: apurada a mistura<br />

<strong>de</strong> ouro e impurezas, após muito t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> bateamento, <strong>de</strong>ixava-se esta mistura secar<br />

ao sol. Seca, batia-se a folha <strong>em</strong> cima da mistura; por ser áspera, a folha retinha as<br />

impurezas mais leves, e <strong>de</strong>sta forma o ouro era apurado. O ouro era vendido na sua<br />

forma <strong>em</strong> pó.<br />

72


É importante ressaltar que a bateia, mutatis mutantis, continua sendo utilizada<br />

nos atuais garimpos s<strong>em</strong>imecanizados. No entanto, seu uso é restrito ao momento <strong>de</strong><br />

“tirar a prova” do terreno (<strong>de</strong>cidir se o local é rentável o suficiente para iniciar a<br />

extração) e à fase final <strong>de</strong> apuração. Atualmente, na região <strong>de</strong> Monsenhor Horta e<br />

mesmo <strong>em</strong> outras regiões do Brasil, <strong>de</strong>vido à escassez do ouro, o garimpo feito<br />

exclusivamente com bateia já não existe mais, ou é muito raro.<br />

No uso da canoa, do canal e da bica, o início do processo é idêntico, assim<br />

como nos atuais garimpos s<strong>em</strong>imecanizados. A pesquisa inicial consiste no<br />

bateamento do material nos lugares <strong>em</strong> que a experiência do garimpeiro indica<br />

maior probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> haver ouro. Os locais escolhidos são normalmente aqueles<br />

on<strong>de</strong> a água é mais parada, nas curvas <strong>de</strong> rios, etc. A <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> trabalhar <strong>em</strong> um<br />

<strong>de</strong>terminado local <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá da quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “pintas” <strong>de</strong> ouro encontradas <strong>em</strong> cada<br />

bateada.<br />

O garimpo <strong>de</strong> canoa era feito nas margens dos rios, e normalmente o lugar<br />

escolhido levava <strong>em</strong> conta a existência <strong>de</strong> uma pequena ilha ou mesmo a marg<strong>em</strong> do<br />

rio <strong>em</strong> lugares on<strong>de</strong> existisse um pequeno aclive. A canoa consistia <strong>em</strong> um fosso não<br />

muito profundo, on<strong>de</strong> se realizaria a lavag<strong>em</strong> do cascalho. Abria-se um fosso<br />

retangular - normalmente <strong>de</strong> 1,00 a 1,50m <strong>de</strong> comprimento, por 0,50 a 0,70m <strong>de</strong><br />

largura e 0,10 a 0,60m <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>. As dimensões da canoa estavam associadas<br />

à quantida<strong>de</strong> e à natureza do material que seria apurado. O fundo <strong>de</strong>ste fosso era<br />

ligeiramente inclinado, ou seja, um canal inclinado por on<strong>de</strong> o material <strong>de</strong>sceria. Um<br />

pequeno canal era então aberto para <strong>de</strong>sviar a água do rio, que passava a cair<br />

diretamente no fosso. Ali eram colocados tapetes, o lado externo do couro <strong>de</strong> boi, ou<br />

pedaços <strong>de</strong> tecido <strong>de</strong> lã grossa para melhor reter os fragmentos pesados. Assim, o<br />

cascalho era conduzido <strong>em</strong> carrinhos <strong>de</strong> mão das margens ou mesmo dos leitos dos<br />

rios e jogado nesse pequeno fosso. Depois <strong>de</strong> aproximadamente 20 a 30 carrinhos,<br />

liberava-se a água para que ela lavasse o material. A água do rio dissolvia esse<br />

material que corria para a bica (plano inclinado), on<strong>de</strong> o material mais pesado, no<br />

caso o ouro, ficava retido nos pedaços <strong>de</strong> carpetes, tecidos ou lã ali fixados. Quando<br />

73


se tinha um ouro muito fino, costumava-se colocar várias canoas dispostas <strong>em</strong><br />

cascata umas sobre as outras, visando a maior eficácia na retenção do metal. Em<br />

locais on<strong>de</strong> a lavag<strong>em</strong> do material era constante, costumava-se construir canoas <strong>de</strong><br />

pedra.<br />

Ao final do dia <strong>de</strong> trabalho, passava-se à apuração do ouro. Começava-se com<br />

a lavag<strong>em</strong> <strong>em</strong> um pequeno tambor, ou mesmo <strong>em</strong> um pequeno fosso construído no<br />

chão. Os tapetes ou a lã eram batidos várias vezes, com o objetivo <strong>de</strong> liberar o fino<br />

ouro que nele se a<strong>de</strong>ria. O procedimento seguinte era o mais antigo utilizado na<br />

extração, ou seja, o uso da bateia como forma <strong>de</strong> selecionar ainda mais o material<br />

rico <strong>em</strong> ouro. A apuração final com a bateia era idêntica à relatada anteriormente. O<br />

final da apuração se dava com a secag<strong>em</strong> do material selecionado e com a utilização<br />

<strong>de</strong> um imã para retirar as partículas <strong>de</strong> minério <strong>de</strong> ferro ou esmeril, partes mais<br />

pesadas, obtendo-se, <strong>de</strong>sta forma, o ouro <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> pó ou <strong>de</strong> pequenas pintas.<br />

Utilizava-se também para a apuração final as folhas <strong>de</strong> maracujazeiro, como já<br />

relatado.<br />

Em Monsenhor Horta, somente no final da década <strong>de</strong> 70 inicia-se a utilização<br />

do mercúrio nas apurações mais difíceis <strong>de</strong> ouro. Segundo relato <strong>de</strong> um antigo<br />

garimpeiro, a aprendizag<strong>em</strong> do uso do mercúrio veio através <strong>de</strong> garimpeiros<br />

forasteiros que trouxeram este conhecimento <strong>de</strong> outras regiões. O mercúrio substitui<br />

com vantag<strong>em</strong> o imã e as folhas do maracujazeiro. Em sua forma líquida, o mercúrio<br />

forma uma amálgama com as partículas <strong>de</strong> ouro, mas não com os outros metais e<br />

impurezas. Após a amalgamação e a separação <strong>de</strong> outros materiais, ouro e mercúrio<br />

são novamente separados submetendo a mistura a altas t<strong>em</strong>peraturas: o mercúrio se<br />

evapora e a apuração do ouro se faz <strong>de</strong> uma forma muito mais eficiente. Costumava-<br />

se também colocar folhas ver<strong>de</strong>s <strong>de</strong> figueira <strong>em</strong> cima do amálgama quando era<br />

levado ao fogo, com o intuito <strong>de</strong> que o mercúrio <strong>em</strong> evaporação se con<strong>de</strong>nsasse ao<br />

contato com a folha. Esta era substituída <strong>de</strong> t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos por uma nova, e<br />

assim o mercúrio era recolhido <strong>em</strong> um recipiente para reaproveitamento. Este<br />

processo era extr<strong>em</strong>amente rudimentar e causava gran<strong>de</strong>s perdas <strong>de</strong> mercúrio. No<br />

74


entanto, o mais comum era, s<strong>em</strong> dúvida, a simples queima a céu aberto, ou seja, s<strong>em</strong><br />

nenhuma preocupação com o reaproveitamento <strong>de</strong>ste metal.<br />

O uso do canal consistia <strong>em</strong> <strong>de</strong>sviar uma parte do leito do rio com uma<br />

barrag<strong>em</strong> <strong>de</strong> terra e pedras no leito <strong>de</strong>scoberto, para que somente uma certa<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água entrasse no canal para lavag<strong>em</strong> do material. Com o avião -<br />

espécie <strong>de</strong> enxada gran<strong>de</strong> - os garimpeiros castelavam (puxavam) todo o cascalho<br />

<strong>de</strong>ste leito <strong>de</strong>scoberto jogando-o no canal, on<strong>de</strong> se colocavam panos e lãs na fenda<br />

aberta, s<strong>em</strong>pre com o cuidado <strong>de</strong> retirar as pedras maiores. A lógica do processo se<br />

ass<strong>em</strong>elha à da canoa. A diferença é que o canal é feito <strong>de</strong>ntro do rio e não se<br />

carrega o material; este é puxado pelos garimpeiros para o canal aberto, para on<strong>de</strong><br />

um filete da água do rio é <strong>de</strong>sviado para operar a lavag<strong>em</strong>. Quando se percebia que<br />

uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> material já havia sido lavada e uma boa quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ouro já havia sido retida, estancava-se a água e, com uma enxada, raspava-se todo o<br />

cascalho mais fino que sobrava no fundo do canal. Este era r<strong>em</strong>ovido para um outro<br />

recipiente, juntamente com os panos, lãs etc., para o processamento da apuração.<br />

Os métodos <strong>de</strong> apuração eram os mesmos <strong>de</strong>scritos na canoa, ou seja,<br />

apurava-se na bateia, utilizavam-se imãs para a apuração final, e mais recent<strong>em</strong>ente,<br />

já se fazia o uso do mercúrio para amalgamação.<br />

A bica é o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> extração manual que mais se aproxima da lógica do<br />

processo <strong>de</strong> produção dos garimpos s<strong>em</strong>i-mecanizados atuais, e segundo alguns<br />

garimpeiros, esse era o sist<strong>em</strong>a manual mais prático. Na bica, montava-se uma<br />

peneira grossa feita <strong>de</strong> latão, colocada a uma certa altura e seguida <strong>de</strong> uma bica, ou<br />

seja, um plano inclinado. Na bica são também instalados carpetes, lãs ou panos, com<br />

o objetivo <strong>de</strong> reter as partículas <strong>de</strong> ouro mais pesadas. O cascalho rico é colocado<br />

nesta peneira e, <strong>em</strong> seguida, joga-se água para que se dissolva e caia na bica, on<strong>de</strong> o<br />

ouro será retido. Normalmente colocava-se a banca <strong>em</strong> uma parte mais baixa,<br />

visando a aproveitar a água do rio e evitar o esforço <strong>de</strong> carregá-la. Assim, o próprio<br />

rio fazia a lavag<strong>em</strong> do material, tendo o garimpeiro, nesta fase, somente <strong>de</strong> colocar o<br />

cascalho rico na peneira.<br />

75


O processo <strong>de</strong> apuração era idêntico aos <strong>de</strong>scritos nos sist<strong>em</strong>as anteriores.<br />

Ainda hoje é possível encontrar garimpeiros usando esse sist<strong>em</strong>a na região <strong>de</strong><br />

Monsenhor Horta. Os garimpeiros, s<strong>em</strong> recursos suficientes para adquirir os motores<br />

<strong>de</strong> garimpo, encontram nesta técnica rudimentar a fonte <strong>de</strong> sua sobrevivência.<br />

Contudo, diferent<strong>em</strong>ente do passado, praticamente todos os micro-<strong>em</strong>preendimentos<br />

<strong>de</strong> extração do ouro utilizam o mercúrio para a apuração.<br />

No garimpo <strong>de</strong> bateia e outras ferramentas, a extração era feita normalmente<br />

por garimpeiros isolados ou por pequenos grupos familiares, pois os investimentos<br />

<strong>em</strong> equipamentos eram reduzidos. Muito freqüent<strong>em</strong>ente, tais garimpeiros<br />

trabalhavam apurando os resquícios <strong>de</strong> um <strong>em</strong>preendimento maior já encerrado.<br />

Muitas vezes foram chamados <strong>de</strong> faiscadores, uma vez que visavam às faíscas <strong>de</strong><br />

ouro. Acontecia também <strong>de</strong> fazer<strong>em</strong> acordos com os donos <strong>de</strong> garimpo ou <strong>de</strong><br />

mineradoras. Estes acordos, muitas vezes, consistiam, por parte do garimpeiro, na<br />

permissão <strong>de</strong> exploração do material já lavrado; <strong>em</strong> troca, os faiscadores cediam<br />

algum t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> trabalho no garimpo. Este é o tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> essencialmente <strong>de</strong><br />

subsistência.<br />

Nos sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> canoa, canal e bica a escala do <strong>em</strong>preendimento e a<br />

organização do trabalho eram diferentes. Normalmente havia um número elevado <strong>de</strong><br />

trabalhadores envolvidos na ativida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> média, 20 a 25 garimpeiros. Estes<br />

<strong>em</strong>preendimentos pertenciam a um dono ou a uma socieda<strong>de</strong>, que contratava outros<br />

trabalhadores para as funções que a ativida<strong>de</strong> exigia. No entanto, estas contratações<br />

ocorriam <strong>de</strong> modo diverso <strong>de</strong> outros sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> r<strong>em</strong>uneração praticados na<br />

ativida<strong>de</strong> garimpeira. Nos <strong>em</strong>preendimentos maiores, havia a contratação <strong>de</strong><br />

trabalhadores que recebiam um salário fixo; nos <strong>de</strong> pequeno porte, não sendo<br />

necessária a contratação <strong>de</strong> outros trabalhadores, o produto final era dividido entre<br />

os proprietários. A prática <strong>de</strong> reunir grupos <strong>de</strong> 6 ou 7 pessoas para montar um canal,<br />

canoa ou bica, on<strong>de</strong> o produto era dividido <strong>em</strong> partes iguais, era o sist<strong>em</strong>a mais<br />

comum. A divisão do trabalho era muito reduzida, uma vez que a maioria dos<br />

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trabalhadores estavam, quase todo o t<strong>em</strong>po, envolvidos na r<strong>em</strong>oção do cascalho para<br />

a lavag<strong>em</strong>.<br />

3. A Ativida<strong>de</strong> Garimpeira S<strong>em</strong>imecanizada <strong>em</strong> Monsenhor Horta e as<br />

Transformações no Métier <strong>de</strong> Garimpeiro<br />

Atualmente, os garimpos <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong> Monsenhor Horta se estruturam <strong>de</strong> uma<br />

forma bastante diversa da que eram no passado. As mudanças são nítidas: esta<br />

ativida<strong>de</strong> <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente artesanal, <strong>de</strong> subsistência, marcada pelos imprevistos,<br />

tendo na bateia o principal símbolo e no garimpeiro o principal personag<strong>em</strong>, hoje se<br />

estrutura <strong>de</strong> uma forma completamente diferente <strong>de</strong>sta visão tradicional; ficou mais<br />

complexa, e o uso dos motores passou a exigir novas habilida<strong>de</strong>s para a sua<br />

operação.<br />

Diferent<strong>em</strong>ente do que aconteceu nos setores produtivos clássicos, o aumento<br />

da complexida<strong>de</strong> trazida pela introdução dos motores no garimpo não foi<br />

acompanhado pela introdução <strong>de</strong> uma divisão do trabalho rígida no interior do<br />

processo <strong>de</strong> trabalho. No garimpo s<strong>em</strong>imecanizado, a maior parte dos trabalhadores<br />

exerc<strong>em</strong> <strong>de</strong>ntro da cava <strong>de</strong> extração quase todas as funções que a ativida<strong>de</strong> requer. A<br />

introdução dos motores ampliou o escopo <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s e saberes necessários à<br />

ativida<strong>de</strong> garimpeira, s<strong>em</strong>, entretanto, produzir especializações estanques. Tais<br />

mudanças introduziram significativas transformações nas relações <strong>de</strong> produção e nas<br />

sociabilida<strong>de</strong>s da ativida<strong>de</strong> garimpeira durante a década <strong>de</strong> 80.<br />

A introdução dos motores <strong>de</strong> garimpo na extração <strong>de</strong> ouro no Brasil se inicia<br />

nas décadas <strong>de</strong> 60 e 70 do século XX, com gran<strong>de</strong> impacto na eficiência da extração.<br />

A mudança no perfil dos <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>dores, a escala dos <strong>em</strong>preendimentos e a nova<br />

combinação <strong>de</strong> conhecimentos necessários favoreceram a adoção <strong>de</strong> novas formas<br />

<strong>de</strong> organização e divisão do trabalho.<br />

77


Até o início da década <strong>de</strong> 80, o garimpo apresentava uma base técnica<br />

rudimentar. Os motores eram muito raros, e existiam, quando muito, algumas<br />

bombas para a sucção da água. Os equipamentos se resumiam à bateia, enxadas e<br />

pás. O mercúrio, atualmente <strong>de</strong> uso indiscriminado e responsável por terríveis danos<br />

ao ambiente e à saú<strong>de</strong>, era então muito pouco utilizado. A separação <strong>de</strong> impurezas<br />

do ouro era feita, também, <strong>de</strong> uma forma extr<strong>em</strong>amente primitiva, e estava longe dos<br />

níveis atuais <strong>de</strong> exigência gerados pelas novas características operacionais da<br />

ativida<strong>de</strong>, como por ex<strong>em</strong>plo, os dos compradores <strong>de</strong> ouro, que passaram a exigí-lo<br />

já queimado e s<strong>em</strong> resquícios <strong>de</strong> mercúrio.<br />

Na região <strong>de</strong> Monsenhor Horta, a ativida<strong>de</strong> garimpeira se <strong>de</strong>senrola hoje<br />

fundamentalmente no contexto do aproveitamento <strong>de</strong> ocorrências <strong>de</strong> ouro<br />

economicamente <strong>de</strong>sinteressantes para as gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas <strong>de</strong> mineração. Isto<br />

ocorre <strong>de</strong>vido às próprias características geológicas <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>pósitos e à intensa<br />

exploração feita <strong>em</strong> muitos anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradação. Não se justificam, portanto, maiores<br />

investimentos nas fases <strong>de</strong> pesquisa mineral e <strong>de</strong> lavra.<br />

O que se percebe atualmente é uma transformação do garimpeiro <strong>de</strong><br />

subsistência <strong>em</strong> grupos <strong>de</strong> extração com equipamentos mais sofisticados, li<strong>de</strong>rados<br />

pelo que po<strong>de</strong>mos chamar <strong>de</strong> garimpeiros <strong>em</strong>presários, que se caracterizam por<br />

possuir um <strong>em</strong>preendimento mecanizado, normalmente com dois motores <strong>de</strong> sucção,<br />

e pelo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> contratar <strong>de</strong>mais garimpeiros para as novas funções exigidas.<br />

Normalmente, não exist<strong>em</strong> contratos formais, sendo os acordos <strong>de</strong> trabalho<br />

baseados <strong>em</strong> um sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> confiança mútua, <strong>em</strong> que o garimpeiro recebe uma<br />

<strong>de</strong>terminada porcentag<strong>em</strong> do total do ouro extraído s<strong>em</strong>analmente. Apesar do caráter<br />

clan<strong>de</strong>stino da ativida<strong>de</strong>, os donos dos motores ag<strong>em</strong> como pequenos <strong>em</strong>presários,<br />

<strong>de</strong>tendo, vez por outra, mais <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> extração. Na maior parte das vezes, são<br />

os próprios donos que selecionam os trabalhadores e negociam os contratos<br />

informais <strong>de</strong> trabalho, além <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nar e gerenciar todas as ativida<strong>de</strong>s.<br />

A extração feita nos garimpos s<strong>em</strong>imecanizados se dá <strong>de</strong> uma forma contínua.<br />

No entanto, para facilitar o entendimento, o processo extrativo será dividido <strong>em</strong> três<br />

78


momentos. Em todas essas fases, o saber-fazer do trabalhador garimpeiro é <strong>de</strong><br />

extr<strong>em</strong>a importância para o <strong>de</strong>senvolvimento da ativida<strong>de</strong>; <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência disto,<br />

alguns se <strong>de</strong>stacam como os <strong>de</strong>tentores mais notáveis <strong>de</strong> tais saberes. Po<strong>de</strong>riam ser<br />

chamados <strong>de</strong> garimpeiros competentes, ou, como na região <strong>de</strong> Diamantina, <strong>de</strong><br />

“garimpeiros sabidos”. Reconhecidos pelo grupo como os que têm mais “sorte”, por<br />

obter<strong>em</strong> gran<strong>de</strong> sucesso na extração, são seguidos pelos <strong>de</strong>mais na esperança <strong>de</strong><br />

também ser<strong>em</strong> b<strong>em</strong> sucedidos na escolha <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado local.<br />

O saber adquirido pelo garimpeiro se dá no trabalho e <strong>em</strong> anos <strong>de</strong> experiência<br />

na extração. É reconhecido como um valor e um orgulho para qu<strong>em</strong> o <strong>de</strong>tém, e é a<br />

característica fundamental <strong>de</strong> seu métier. No garimpo clan<strong>de</strong>stino, tendo os <strong>de</strong><br />

Mariana como referência, todo o saber exigido está ligado a um conhecimento tácito<br />

e a saberes <strong>em</strong>píricos. Estes saberes práticos, ligados às “manhas do ofício” e que<br />

não se encontram na educação formal, constitu<strong>em</strong> a base do métier.<br />

Dessa forma, ao <strong>de</strong>screver os diversos momentos da extração, procurou-se<br />

ressaltar o conjunto <strong>de</strong> conhecimentos corporificados <strong>em</strong> cada um <strong>de</strong>les. O primeiro<br />

momento é o da escolha do terreno a ser garimpado. O segundo revela a dinâmica<br />

da extração propriamente dita: inicia-se com a abertura das cavas e segue até<br />

chegar ao material mais rico – piçarra – no qual é maior a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />

encontrar o metal. O terceiro e último momento é o da apuração do ouro, seguido da<br />

partilha e da venda.<br />

A Escolha do Terreno<br />

A primeira fase do processo começa com a escolha do terreno a ser aberta a<br />

cava. Esta escolha, diferent<strong>em</strong>ente das <strong>em</strong>presas <strong>de</strong> mineração, não segue nenhuma<br />

pesquisa mineralógica ou sondag<strong>em</strong> anterior.<br />

Nesta fase percebe-se claramente o saber-fazer característico da ativida<strong>de</strong>. A<br />

escolha do terreno é fundamental para o sucesso ou fracasso do <strong>em</strong>preendimento,<br />

79


<strong>de</strong>finindo o futuro do grupo. Muitos garimpeiros se orientam pela opinião dos mais<br />

velhos. Estes, muitas vezes, como é o caso <strong>de</strong> Monsenhor Horta, orientam para os<br />

locais pouco explorados pelas <strong>em</strong>presas ou mesmo por outras frentes <strong>de</strong><br />

garimpag<strong>em</strong>. Assim, somente os que vivenciaram a extração, <strong>em</strong> anos anteriores,<br />

têm esta informação. A escolha po<strong>de</strong> também estar associada a um conhecimento<br />

tácito formado no trabalho e também ligado ao impon<strong>de</strong>rável.<br />

A escolha é feita consi<strong>de</strong>rando-se vários fatores, que não difer<strong>em</strong> muito da<br />

forma <strong>de</strong>scrita nos garimpos manuais: como por ex<strong>em</strong>plo, a localização do terreno<br />

<strong>em</strong> função do curso fluvial, os possíveis acordos com o dono <strong>de</strong>sse terreno, os locais<br />

<strong>de</strong> difícil acesso, visando a dificultar a ação da polícia, e ainda um conhecimento<br />

intuitivo presente <strong>em</strong> quase todo trabalhador garimpeiro.<br />

Dá para perceber que o conhecimento sobre os locais on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser<br />

encontrado ouro é um conhecimento técnico sobre as características naturais do<br />

terreno. Assim, os garimpeiros prefer<strong>em</strong> abrir suas cavas nos locais menos<br />

explorados, evitando garimpar on<strong>de</strong> as dragas das mineradoras passaram, ou mesmo<br />

on<strong>de</strong> exist<strong>em</strong> muitos resquícios do trabalho <strong>de</strong> antigos garimpeiros. No entanto,<br />

procuram indícios <strong>de</strong> extração feita pelos escravos, pois acreditam que eles, com<br />

suas técnicas manuais, não retiraram totalmente o ouro. Como diz o garimpeiro Edu:<br />

“Eu só queria que voltasse só um escravo para dizer aon<strong>de</strong> ficou um<br />

resto daquele ouro que eles tiravam, só um só”<br />

Segundo o garimpeiro Jésus, no garimpo:<br />

“Geralmente a gente olha o lugar que a água é mais parada, porque<br />

dificilmente os antigos mexeram, é uma curva <strong>de</strong> rio, é um lugar <strong>em</strong> que<br />

a água não t<strong>em</strong> caída, porque quando se trabalhava com canoa<br />

precisava <strong>de</strong> uma caidinha”<br />

A referência às dragas <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas mineradoras está s<strong>em</strong>pre presente na fala<br />

dos garimpeiros. A última passag<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma draga <strong>de</strong>sse tipo por Monsenhor Horta<br />

foi no início da década <strong>de</strong> 1980 a qual, segundo eles, conseguiu retirar uma<br />

80


quantida<strong>de</strong> muito gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro. Por conseguinte, procuram os lugares on<strong>de</strong> as<br />

dragas não tenham passado, buscando informações dos mais velhos, ou mesmo <strong>de</strong><br />

antigos funcionários que trabalhavam na época nessas <strong>em</strong>presas <strong>de</strong> mineração.<br />

Muitos garimpeiros procuram <strong>de</strong>terminado material no solo <strong>em</strong> que a draga não<br />

conseguia penetrar, como é o caso da canga, uma espécie <strong>de</strong> rocha muito dura.<br />

Segundo informações dos garimpeiros, a draga abandonava o terreno rico <strong>em</strong> canga<br />

para não danificar seus equipamentos, sendo estes locais os alvos atuais dos<br />

garimpeiros. Outros terrenos visados são os <strong>de</strong> barro, pois, segundo o conhecimento<br />

local, a draga atolava e não conseguia extrair o material. Dessa forma, os locais mais<br />

evitados na região são aqueles já explorados pela draga, sendo a ela imputada a atual<br />

ausência do ouro.<br />

Um outro procedimento, utilizado com o intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectar o metal e<br />

minimizar os riscos do <strong>em</strong>preendimento, é “tirar a prova” <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se preten<strong>de</strong> abrir<br />

a cava: abre-se um pequeno fosso no terreno e retira-se um pouco <strong>de</strong> material;<br />

<strong>de</strong>pois, com a bateia, apura-se. Se a amostra contiver partículas <strong>de</strong> ouro, po<strong>de</strong>-se<br />

abrir a cava, pois há a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que ainda exista uma boa quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro<br />

no subsolo. Segundo o garimpeiro Assis:<br />

“Geralmente tira uma prova mais ou menos para ver né, se por cima <strong>de</strong>r<br />

fraquim, por baixo ainda t<strong>em</strong>. Mas engana muito... a gente vai mais é no<br />

escuro mesmo, teve lugar que eu fiz 6 furos não achei nada (...) porque<br />

não dá para saber on<strong>de</strong> tá o ouro, t<strong>em</strong> que tentar, pelo material a gente<br />

segue pelo lado que está indo na verda<strong>de</strong> a gente cisma com aquele lugar<br />

e diz: “vou furar ali porque ali <strong>de</strong>ve ter” às vezes dá sorte, eu já cismei<br />

com um lugar e o resultado não foi bom não”<br />

A intuição associada à sorte é s<strong>em</strong>pre citada quando se pergunta dos locais<br />

on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> encontrar ouro. Quase todos reconhec<strong>em</strong> que o conhecimento técnico<br />

dos locais para se abrir uma cava são muito falhos, e que alguns trabalhadores têm<br />

mais sorte do que outros na escolha do terreno, como <strong>de</strong>screve o garimpeiro Assis:<br />

“Para achar o ouro é sorte mesmo, não t<strong>em</strong> outra coisa não, porque a<br />

gente tá procurando uma coisa que não guardou.”<br />

81


Ou para o garimpeiro Gustavo:<br />

“o ouro também é muita sorte né. Costuma você bater o furo aí, acertar<br />

na veia e costuma você trabalhar dois três meses aí e não achar nada.<br />

D<strong>em</strong>anda muita sorte. O cara acertar uma área que t<strong>em</strong> ouro aí”<br />

É também uma intuição <strong>em</strong> relação ao conhecimento técnico, conforme a explicação<br />

do garimpeiro Jésus:<br />

“Sonho a gente não t<strong>em</strong> não mais intuição a gente t<strong>em</strong>, a gente olha o<br />

curso do rio on<strong>de</strong> o rio tá passando se t<strong>em</strong> alguma possibilida<strong>de</strong> dos<br />

antigos já ter<strong>em</strong> mexido, é mais ou menos por aí, se a água tiver b<strong>em</strong><br />

mansa. Mas a gente vai muito no escuro mesmo, porque as vezes hoje ela<br />

tá passando mansa e 100 anos atrás ela num tava né, na hora que a<br />

gente apura que a gente vai ver.”<br />

O que se po<strong>de</strong> perceber é que a sorte é uma das categorias pelas quais os<br />

garimpeiros interpretam e explicam a realida<strong>de</strong> cotidiana <strong>de</strong> seu trabalho. No<br />

entanto, quando analisa-se essa categoria, nota-se que ela não está disponível a todos<br />

os que se aventuram a se tornar garimpeiros. Na verda<strong>de</strong>, a sorte é um dos el<strong>em</strong>entos<br />

que compõ<strong>em</strong> o métier <strong>de</strong> garimpeiro e, neste sentido, está totalmente atrelada ao<br />

“conhecimento à mão” e às habilida<strong>de</strong>s dos indivíduos adquiridas nas experiências<br />

cotidianas <strong>de</strong> seu trabalho. O meio natural fornece algumas pistas para se achar o<br />

ouro, no entanto, achá-las não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> dons individuais, ou <strong>de</strong> qualquer<br />

conhecimento inato, mas está disponível somente para os que faz<strong>em</strong> parte <strong>de</strong>ste<br />

métier. O que se quer <strong>de</strong>ixar b<strong>em</strong> claro é que a categoria sorte, no mundo do<br />

garimpo, não é tão aleatória como os próprios garimpeiros afirmam, ela <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um cabedal <strong>de</strong> conhecimentos e habilida<strong>de</strong>s disponível somente aos envolvidos<br />

diretamente na ativida<strong>de</strong>.<br />

Outro fator relevante na escolha da área para abrir uma cava são os acordos<br />

com os donos dos terrenos, uma vez que muitos proprietários não permit<strong>em</strong> a<br />

extração <strong>em</strong> suas proprieda<strong>de</strong>s, e quando o faz<strong>em</strong>, exig<strong>em</strong> uma porcentag<strong>em</strong> muito<br />

alta que inibe a iniciativa do grupo <strong>de</strong> garimpeiros. Normalmente, os donos dos<br />

terrenos exig<strong>em</strong> <strong>de</strong> 10 a 20% do ouro extraído s<strong>em</strong>analmente para autorizar a<br />

82


extração <strong>em</strong> seus terrenos, o que, muitas vezes, gera gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança e atritos<br />

entre esses e os garimpeiros, como será exposto mais adiante. Essas negociações são<br />

inteiramente verbais, não existindo qualquer tipo <strong>de</strong> contrato registrado. Para o dono<br />

do terreno, torna-se uma ativida<strong>de</strong> extr<strong>em</strong>amente lucrativa, <strong>de</strong>vido ao fato <strong>de</strong> “nada<br />

per<strong>de</strong>r e só lucrar.”<br />

A extração começa com a limpeza do terreno e a r<strong>em</strong>oção da cobertura<br />

vegetal, não terminando aí, a primeira fase da garimpag<strong>em</strong>. A terra é r<strong>em</strong>ovida, até<br />

que se encontre um <strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong> argila e <strong>de</strong> cascalho que possam indicar a<br />

possibilida<strong>de</strong> da ocorrência <strong>de</strong> ouro. É importante ressaltar que as informações<br />

passadas para os garimpeiros por estes indícios, <strong>em</strong>bora preciosos, não são<br />

infalíveis. Trata-se <strong>de</strong> uma prospecção extr<strong>em</strong>amente rudimentar, feita com a<br />

própria bateia ou com uma vara <strong>de</strong> sondag<strong>em</strong>, como será <strong>de</strong>scrito na segunda fase.<br />

No entanto, estas técnicas <strong>de</strong> sondag<strong>em</strong>, segundo os próprios garimpeiros, não<br />

quebram a característica <strong>de</strong> aleatorieda<strong>de</strong> da extração nos garimpos rudimentares,<br />

apesar <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> informações adquiridas através <strong>de</strong> muita experiência e <strong>de</strong> muitos<br />

anos <strong>de</strong> ofício, não estando, portanto, ao alcance <strong>de</strong> estreantes, neófitos,<br />

inexperientes e inábeis.<br />

A Abertura da Cava<br />

A segunda fase da extração consiste na abertura da cava e na extração<br />

propriamente dita. A abertura <strong>de</strong> uma cava é feita utilizando, no mínimo, um motor<br />

<strong>de</strong> automóvel, mas quase s<strong>em</strong>pre é feita com dois. Esses motores são normalmente<br />

comprados <strong>em</strong> ferros-velhos e adaptados para utilizar gás <strong>de</strong> cozinha ou mesmo óleo<br />

diesel como combustível. Um <strong>de</strong>sses motores é o responsável pela sucção da água<br />

do rio. Através <strong>de</strong> sua pressão, direcionada por um garimpeiro (jateiro, ou bico-<br />

jateiro), faz-se o <strong>de</strong>smonte hidráulico da cobertura vegetal e abre-se o solo com a<br />

ajuda <strong>de</strong> outros garimpeiros que auxiliam com cava<strong>de</strong>iras e enxadas. O outro motor,<br />

normalmente mais possante, é utilizado para sugar, no início, a cobertura <strong>de</strong> terra.<br />

83


Com o aumento da profundida<strong>de</strong> da cava, o cascalho e a areia mais fina aparec<strong>em</strong> e<br />

a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar o ouro vai se tornando cada vez maior. O equipamento<br />

<strong>de</strong> sucção é operado por um garimpeiro, conhecido como maraqueiro, <strong>de</strong>vido à boca<br />

<strong>de</strong> sucção do cascalho ser <strong>de</strong>nominada maraca.<br />

A terra misturada à água é succionada por este motor-bomba e drenada para<br />

uma caixa <strong>de</strong> metal, on<strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> ralo retém os materiais mais pesados. O<br />

resto do material é jorrado para um equipamento rudimentar <strong>de</strong>nominado mesa<br />

coletora ou bica, que serve para fazer a primeira separação do cascalho, areia e água<br />

do ouro fino.<br />

A mesa coletora, normalmente utilizada, é formada <strong>de</strong> uma caixa <strong>de</strong> metal<br />

on<strong>de</strong> é feita a filtrag<strong>em</strong> do material mais grosso. À altura <strong>de</strong> sua borda, segue uma<br />

rampa, também <strong>em</strong> formato <strong>de</strong> caixa, medindo cerca <strong>de</strong> 70 cm <strong>de</strong> largura por 2<br />

metros <strong>de</strong> comprimento, <strong>em</strong> <strong>de</strong>clive <strong>de</strong> aproximadamente 45º, cercada nas<br />

extr<strong>em</strong>ida<strong>de</strong>s por pedaços <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira cuja função é a <strong>de</strong> auxiliar na retenção do<br />

ouro. Toda a mistura mais leve segue, levada pela pressão da água, para a mesa <strong>em</strong><br />

plano inclinado. Esta mesa é forrada por carpetes que têm a função principal <strong>de</strong> reter<br />

o ouro <strong>em</strong> pó. Em alguns garimpos visitados, o mercúrio já é colocado nesta mesa<br />

para facilitar a extração; entretanto, este não é o procedimento mais comum entre os<br />

garimpos da região. A mesa é o local on<strong>de</strong> o ouro fica retido. Nas partes mais altas<br />

perto da caixa o ouro se concentra, ficando mais raro nas partes mais baixas da<br />

calha.<br />

As condições <strong>de</strong> trabalho, nesta etapa, exig<strong>em</strong> o maior esforço físico <strong>de</strong> todo<br />

o processo <strong>de</strong> extração. Os garimpeiros são obrigados a ficar operando os<br />

equipamentos <strong>de</strong>ntro d’água, submetidos à contaminação por microorganismos que<br />

estão presentes nos rios, normalmente poluídos.<br />

O saber-fazer presente nesta fase é caracterizado pela habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

manipulação dos equipamentos e dos motores, e no direcionamento dado ao jato e à<br />

maraca para os lugares mais ricos do subsolo. Para isto, <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser b<strong>em</strong> conhecidos<br />

os tipos <strong>de</strong> solos mais prováveis <strong>de</strong> associação do ouro para melhor direcionar a<br />

84


sucção do material. Também nesta fase po<strong>de</strong> ser utilizada uma sondag<strong>em</strong> rústica<br />

com uma vara, para melhor orientar a busca do ouro. Este tipo <strong>de</strong> associação é <strong>de</strong><br />

extr<strong>em</strong>a importância para o trabalhador. Faz parte <strong>de</strong> seu métier acreditar nestes<br />

“avisos”, fortalecendo a crença da <strong>de</strong>scoberta e do saber que possui <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong>.<br />

Este tipo <strong>de</strong> conhecimento está associado diretamente às habilida<strong>de</strong>s adquiridas no<br />

trabalho e é compartilhado pela gran<strong>de</strong> maioria dos garimpeiros da região. N<strong>em</strong><br />

s<strong>em</strong>pre estas técnicas, segundo os próprios garimpeiros, são totalmente eficientes,<br />

mas esta ineficiência parcial não é suficiente para <strong>de</strong>sacreditá-la. É possível<br />

perceber aqui, baseado nas interpretações <strong>de</strong> Alfred Schutz, o projetar, ou seja, a<br />

tentativa <strong>de</strong> antecipar os fatos futuros. No entanto, é inevitável para o garimpeiro,<br />

que o sentido do ato projetado muitas vezes difira do sentido do ato realizado. No<br />

entanto, este projetar do garimpeiro está baseado no “conhecimento à mão” formado<br />

na sua vida cotidiana, sobretudo no trabalho.<br />

Na explicação do garimpeiro Jésus:<br />

“Geralmente quando a gente começa a furar naquele lugar que não foi<br />

mexido, a gente acha uma camada <strong>de</strong> barro, é um barro folhento, preto,<br />

folhento tipo um compensado escuro, escuro b<strong>em</strong> escuro mesmo, o barro<br />

tipo um ma<strong>de</strong>irite mesmo podre o barro. Geralmente quando a gente<br />

acha aquele barro, ali por baixo t<strong>em</strong> ouro, o lugar que a gente tá furando<br />

que não encontra aquele barro dificilmente t<strong>em</strong>, porque já trabalharam<br />

lá. Dentro da cava dá para saber mais ou menos, a gente fura um metro<br />

se chegou no barro, se não chegou no barro a gente bate um vergalhão e<br />

se ele <strong>de</strong>scer macio é por porque t<strong>em</strong> barro, se <strong>de</strong>scer esbarrando <strong>em</strong><br />

pedra é por que não t<strong>em</strong> barro, ai gente continua teimando, que as vezes<br />

t<strong>em</strong> outro tipo <strong>de</strong> material mas é mais fácil para gente quando a gente<br />

acha o barro, a gente já <strong>de</strong>sce animado, que lugar que dá esse barro não<br />

foi trabalhado ainda. Barro folhento, é uma camada <strong>de</strong> folhas podre<br />

m<strong>em</strong>o que v<strong>em</strong> acumulando <strong>em</strong> cima da piçarra”.<br />

Ainda sobre esta sondag<strong>em</strong> precária, o garimpeiro Juscelino <strong>de</strong>screve:<br />

“a gente faz um mucado <strong>de</strong> sondag<strong>em</strong>. Pega um ferro aí, um pedaço <strong>de</strong><br />

ferrag<strong>em</strong>, xuxa ali, aí conforme fô o material qui tivé socando no fundo,<br />

né cê sabe mais ô meno se é uma pedra, se é um material mesmo <strong>de</strong> ouro,<br />

um materialzinho, né qui é provável qui dê ouro. Aí t<strong>em</strong> tudo isso né. Qui<br />

a gente coisa... Qui a gente não t<strong>em</strong> material <strong>de</strong> sondag<strong>em</strong> mesmo, a<br />

gente não t<strong>em</strong>, mas as vezes engana b<strong>em</strong>. É, engana um pouquinho”<br />

85


Como dá para perceber a imprevisibilida<strong>de</strong> no garimpo é uma constante.<br />

Uma vez que não se faz uma sondag<strong>em</strong> mais precisa, não se t<strong>em</strong> a exata localização<br />

e n<strong>em</strong> a dimensão do <strong>de</strong>pósito aurífero. O garimpeiro Assis explica ainda melhor o<br />

procedimento técnico <strong>de</strong>ntro da cava:<br />

“você vai lavando quando chega num material, aí você vê a cara do<br />

material, aí você fala assim: “vou tirar a prova <strong>de</strong>ste material bom,” aí<br />

você prova, ali tá ruim, ali tá ruim, ali na frente tá melhor, aí vamos<br />

virar pró lado <strong>de</strong> cá, ou pró lado <strong>de</strong> lá. O t<strong>em</strong>po todo você vai provando<br />

um pouquinho para ver como é que tá, quando tá no começo t<strong>em</strong> que<br />

provar todo lado. S<strong>em</strong>ana passada a gente tava do lado <strong>de</strong> lá. Tava ruim,<br />

esta s<strong>em</strong>ana vi<strong>em</strong>os pro lado <strong>de</strong> cá, melhorou um pouco.”<br />

Nesta fase, o que orienta o garimpeiro é o tipo <strong>de</strong> material encontrado <strong>de</strong>ntro<br />

da cava e o resultado das provas que são regularmente feitas pelos donos dos<br />

garimpos. Essas provas, como já relatado, são feitas com o material retirado <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntro da cava e da caixa coletora. São esses indícios que <strong>de</strong>terminam a<br />

permanência ou o abandono <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada área <strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong>. No entanto esses<br />

métodos ainda são muito falhos, e como diz<strong>em</strong> os garimpeiros: “trabalham no<br />

escuro”. O que se po<strong>de</strong> perceber é que os <strong>de</strong>mais garimpeiros não faz<strong>em</strong> essas<br />

provas, ficando tal tarefa ao encargo do dono. Não que sejam proibidos ou que não<br />

estejam curiosos para saber a probabilida<strong>de</strong> do terreno que está sendo explorado,<br />

mas por uma contenção da ansieda<strong>de</strong>, o que é característico na ativida<strong>de</strong>; como eles<br />

mesmos diz<strong>em</strong>: “eu não sou fominha.” Na verda<strong>de</strong>, o que existe praticamente <strong>em</strong><br />

todos eles é uma expectativa, que é muito forte mas s<strong>em</strong>pre velada.<br />

O ouro é apurado normalmente no sábado; assim, durante a s<strong>em</strong>ana não se<br />

t<strong>em</strong> a noção exata da quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro que está sendo extraído. A expectativa<br />

para saber como está a extração é percebida no fim do dia <strong>de</strong> trabalho, ou mesmo<br />

nos momentos <strong>em</strong> que o motor pára <strong>de</strong> jogar o material para a caixa. Neste<br />

momento os garimpeiros sob<strong>em</strong> até a caixa e começam a procurar as pintas <strong>de</strong> ouro<br />

retidas na caixa e no carpete e faz<strong>em</strong> algumas previsões.<br />

86


Nota-se que, através do conhecimento sobre os locais <strong>em</strong> que já garimparam,<br />

acumulado <strong>em</strong> anos <strong>de</strong> extração, alguns garimpeiros faz<strong>em</strong> uma espécie <strong>de</strong> mapa<br />

geológico imaginário do terreno, que os orienta no processo extrativo. Mais uma<br />

vez percebe-se que a aparente aleatorieda<strong>de</strong> do processo extrativo do ouro é na<br />

verda<strong>de</strong> sustentada por um cabedal <strong>de</strong> conhecimentos muito b<strong>em</strong> estruturado entre<br />

os participantes <strong>de</strong>ste complexo métier. A escolha do local para se abrir uma cava<br />

não é totalmente aleatória, ou seja, nunca se trabalha totalmente no escuro. O que se<br />

percebe é a existência <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> fatores que po<strong>de</strong>m eliminar a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> se investir <strong>em</strong> um <strong>de</strong>terminado local, como por ex<strong>em</strong>plo, a exploração anterior<br />

por outras frentes <strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong>, conhecimento não acessível a todos. A<br />

perspectiva <strong>de</strong> achar o ouro está vinculada a <strong>de</strong>scobertas anteriores. Assim, ao<br />

analisar atentamente a categoria sorte, po<strong>de</strong>-se perceber que ela está quase que<br />

totalmente vinculada a conhecimentos prévios <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos que a<br />

<strong>de</strong>terminam.<br />

Nesta fase as habilida<strong>de</strong>s e os conhecimentos dos garimpeiros se revelam a<br />

todo momento, seja pelas características <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> barro rico <strong>em</strong> ouro, seja<br />

pelas características <strong>de</strong> um barranco prestes a <strong>de</strong>smoronar. Quando o<br />

<strong>de</strong>smoronamento é iminente, começa a <strong>de</strong>scer com uma certa regularida<strong>de</strong>, muita<br />

areia. Assim, os garimpeiros ficam extr<strong>em</strong>amente atentos <strong>de</strong>ntro da cava e um <strong>de</strong>les<br />

é <strong>de</strong>slocado para o alto da mesma para vigiá-la e avisar aos <strong>de</strong>mais a hora <strong>em</strong> que<br />

houver o <strong>de</strong>slize, evitando aci<strong>de</strong>ntes que po<strong>de</strong>m ser graves.<br />

Este processo <strong>de</strong> abertura da cava é um momento <strong>de</strong> enorme ansieda<strong>de</strong> para<br />

os garimpeiros, uma vez que estão investindo <strong>em</strong> um <strong>em</strong>preendimento <strong>de</strong> alto risco.<br />

Esta ansieda<strong>de</strong> é b<strong>em</strong> <strong>de</strong>monstrada pela fala do garimpeiro Edu quando perguntado<br />

sobre o lado bom e o lado ruim do garimpo:<br />

87


“O pior <strong>de</strong> tudo é quando você está abrindo uma cava, você t<strong>em</strong> que<br />

furar para você saber, e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> 10 a 12 metros a gente torce para<br />

chegar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> 1 mês. Costuma você gastar 3 meses para chegar no<br />

fundo. E <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sses 3 meses você teria que estar tirando algo para<br />

repor. Pagar óleo, pagar trabalhador, não <strong>de</strong>ixar faltar nada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

casa... é igual eu tinha mencionado uma cooperativa, porque assim você<br />

teria a cooperativa para estar te ajudando, colocando alguma coisa<br />

<strong>de</strong>ntro da sua casa, então é isso que é ruim no garimpo. E o bom é<br />

quando você está achando ouro porque os funcionários ficam todos<br />

alegres, porque você vê no s<strong>em</strong>blante <strong>de</strong>les, no rosto <strong>de</strong>le, isso aí é o<br />

bom. Agora quando se fala <strong>em</strong> mudança <strong>de</strong> lugar, muitos te enrolam<br />

aqueles que estão ali, muitos já te enrolam já começam a sair.”<br />

A utilização dos motores <strong>de</strong> garimpo tornou muito mais eficaz a extração do<br />

ouro, porém aumentou os gastos com combustíveis, lubrificantes etc. Novas<br />

habilida<strong>de</strong>s foram exigidas dos trabalhadores. Agora, é necessário saber mexer nos<br />

motores; caso estragu<strong>em</strong>, o conserto <strong>de</strong>ve ser feito <strong>de</strong> forma rápida para não parar o<br />

processo extrativo. Nesse contexto, a operação do maquinário é mais um<br />

conhecimento <strong>de</strong>mandado nesta fase da ativida<strong>de</strong>: a aceleração do motor, o t<strong>em</strong>po<br />

certo para o acelerar e o parar, evitando que pedras gran<strong>de</strong>s sejam sugadas e<br />

danifiqu<strong>em</strong> o equipamento etc.<br />

Edu, um dos mais competentes garimpeiros <strong>em</strong> ativida<strong>de</strong> <strong>em</strong> Monsenhor<br />

Horta, <strong>de</strong>screve seu conhecimento do equipamento <strong>de</strong>ntro da cava, mostrando<br />

inclusive a sua li<strong>de</strong>rança <strong>em</strong> relação aos <strong>de</strong>mais:<br />

88


“Porque quando agarrou lá hoje, eu fui pegando a maraca porque o<br />

Geraldo falou comigo "pega o jato ali" e ele foi falando assim "ô Vicente<br />

segura a maraca" ... e eu virei as costas para pegar o jato, que eu achei<br />

que o Assis estava lavando no lugar errado. Aí eu senti a diferença no<br />

motor, eu pelo menos que estou no garimpo há muito t<strong>em</strong>po, você<br />

conhece a rotação do motor quando muda. Aí eu senti quando a rotação<br />

do motor mudou, aumentou mais a aceleração, aí eu fui e falei assim<br />

"olha o som da maraca". Porque o meu sogro não tinha assim o jeito<br />

certo <strong>de</strong> acelerar o motor, aí eu fui e falei com ele "olha o meu sogro na<br />

maraca" ali ele foi e falou assim "<strong>de</strong>ixa eu puxar um pouco", aí eu fui e<br />

não <strong>de</strong>ixei não. Aí com um pouco ele parou, quando ele parou, eu vi que<br />

tinha uma pedra agarrada que eu vi que ela não subia, não passava<br />

naquele cano chupão e a curva ele não estava passando, ela virava a<br />

pedra, a pedra virava e <strong>de</strong>ixava agarrar o material. Aí daquela hora <strong>em</strong><br />

diante nós paramos e tiv<strong>em</strong>os que <strong>de</strong>smontar a maraca para retirar a<br />

pedra. E para você ver, foi tudo <strong>em</strong> quanto eu parei para pegar o jato,<br />

afun<strong>de</strong>i a maraca e <strong>de</strong>ixei ele e o Vicente na maraca. Porque é igual eu<br />

estou te falando, é eu que tenho que estar <strong>em</strong> cima, que tenho que saber<br />

tudo. É eu, o Geraldo e o Assis, porque eles estão apren<strong>de</strong>ndo né só t<strong>em</strong><br />

duas s<strong>em</strong>anas.”<br />

A Apuração do Ouro<br />

A última fase é a da <strong>de</strong>puração do ouro, ou seja, o processo <strong>de</strong> concentração,<br />

<strong>de</strong> amalgamação do ouro com o mercúrio e <strong>de</strong> queima do material amalgamado. É<br />

importante ressaltar que o <strong>em</strong>prego do mercúrio é relativamente recente nos<br />

garimpos <strong>de</strong> Monsenhor Horta/Mariana. A sua introdução na região se <strong>de</strong>u<br />

aproximadamente na década <strong>de</strong> 70, um pouco antes da introdução dos motores <strong>de</strong><br />

garimpo.<br />

Esta fase t<strong>em</strong> início com a lavag<strong>em</strong> da caixa coletora. Este procedimento é<br />

feito com o motor ligado, bombeando água para a caixa, enquanto um garimpeiro<br />

puxa com uma enxada toda o material nela contido. Este material, que é o mais rico,<br />

<strong>de</strong>sce pela bica e o ouro é retido pelo carpete no fundo. Depois <strong>de</strong> limpa a caixa, faz-<br />

se a r<strong>em</strong>oção do carpete da mesa coletora. Este procedimento é feito normalmente<br />

uma vez por s<strong>em</strong>ana, quase s<strong>em</strong>pre no sábado, quando o produto do trabalho é<br />

89


epartido entre as pessoas envolvidas na ativida<strong>de</strong>. No entanto, caso o dono do<br />

garimpo precise <strong>de</strong> dinheiro, eles “queimam” durante a s<strong>em</strong>ana. Normalmente<br />

escolh<strong>em</strong> um carpete mais concentrado. Depois <strong>de</strong> r<strong>em</strong>ovido, o carpete é levado<br />

para uma pequena caixa, on<strong>de</strong> é lavado e batido várias vezes com o objetivo <strong>de</strong><br />

liberar o ouro fino nele a<strong>de</strong>rido. O procedimento seguinte é o uso da bateia para<br />

selecionar ainda mais o material que receberá o mercúrio. A forma <strong>de</strong> utilização da<br />

bateia é a mesma <strong>em</strong>pregada nos garimpos manuais, como já relatado. No entanto<br />

não há a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que seja extr<strong>em</strong>amente rigorosa para a liberação do<br />

exce<strong>de</strong>nte, uma vez que, retirado o material mais pesado, introduz-se o mercúrio,<br />

produto que reage com o ouro e forma um amálgama. Para a ativida<strong>de</strong>, é uma<br />

<strong>de</strong>scoberta ímpar, uma vez que poupa muitas outras etapas da apuração.<br />

Introduzido o mercúrio na caixa on<strong>de</strong> se encontra o material selecionado pela<br />

bateia, é necessário imprimir movimentos giratórios para se garantir a certeza da<br />

amalgamação. O amálgama, massa gelatinosa e porosa, é retirado e colocado <strong>em</strong> um<br />

pano, que é torcido com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> liberar o excesso <strong>de</strong> mercúrio e transformar<br />

o amálgama <strong>em</strong> um material mais rígido.<br />

O processo que se segue, é a etapa mais perigosa <strong>de</strong> toda a extração: a queima<br />

do amálgama formado por ouro e mercúrio, através do uso <strong>de</strong> um maçarico pelo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> 15 a 20 minutos. Muitas vezes, a queima é feita <strong>em</strong> uma pequena fogueira<br />

acesa nas proximida<strong>de</strong>s da cava. O aumento da t<strong>em</strong>peratura faz evaporar o mercúrio<br />

e fica o ouro. Esta evaporação é extr<strong>em</strong>amente danosa à saú<strong>de</strong> humana e ao meio<br />

ambiente. A operação normalmente é feita pelo próprio dono do garimpo ou por um<br />

garimpeiro por ele <strong>de</strong>signado, uma vez que necessita do controle <strong>de</strong> toda a produção.<br />

Isto significa, a priori, que os donos <strong>de</strong> garimpos têm maior possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

contaminação que os garimpeiros que estão <strong>de</strong>ntro da cava extraindo o cascalho.<br />

Uma das habilida<strong>de</strong>s exigidas nesta fase é a seleção do material que será<br />

amalgamado e a manipulação do mercúrio. Esta seleção, como foi <strong>de</strong>scrito, é feita<br />

com a bateia e requer a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua manipulação. Quanto ao <strong>em</strong>prego do<br />

mercúrio, é essencial o uso da quantida<strong>de</strong> certa para evitar <strong>de</strong>sperdício. Além disso,<br />

90


sua aplicação só <strong>de</strong>ve ser feita no final da apuração, sob pena <strong>de</strong> sua pouca eficácia<br />

e, conseqüent<strong>em</strong>ente, a perda <strong>de</strong> ouro. Nesta fase, outro el<strong>em</strong>ento que compõe uma<br />

série <strong>de</strong> saberes construídos no trabalho do garimpo é o ponto i<strong>de</strong>al da queima do<br />

ouro. Nesta etapa, o mercúrio utilizado é totalmente separado, e requer um “golpe <strong>de</strong><br />

vista” e habilida<strong>de</strong>s muito específicas para saber a hora certa <strong>de</strong> tirar o amálgama do<br />

fogo e fazer assim, uma queima ótima.<br />

Em alguns garimpos utiliza-se a retorta, um equipamento bastante simples,<br />

mas extr<strong>em</strong>amente útil para evitar a contaminação pelos vapores <strong>de</strong> mercúrio.<br />

Consiste num vaso <strong>de</strong> gargalo estreito e curvo <strong>em</strong>pregado para a <strong>de</strong>stilação. No<br />

garimpo, ela é utilizada nesta fase da extração. Sua principal função é permitir a<br />

queima do amálgama ouro/mercúrio <strong>em</strong> circuito fechado, eliminando <strong>de</strong>sta forma,<br />

qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que os vapores <strong>de</strong> mercúrio contamin<strong>em</strong> o meio ambiente,<br />

o hom<strong>em</strong> e toda a ca<strong>de</strong>ia alimentar.<br />

Sua utilização é feita da seguinte forma: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lavado o carpete on<strong>de</strong> o ouro<br />

se encontrava <strong>de</strong>positado, utiliza-se o mercúrio para a amalgamação, como foi<br />

relatado. Pronto o amálgama, ao invés <strong>de</strong> queimá-lo no maçarico, como<br />

normalmente é feito na maioria dos garimpos, ele é enrolado <strong>em</strong> um pedaço <strong>de</strong> papel<br />

e colocado <strong>de</strong>ntro da retorta, para evitar que o ouro fique retido no fundo. Fecha-se<br />

o equipamento e este é levado ao fogo. Depois <strong>de</strong> 10 a 15 minutos, o mercúrio<br />

começa a ser eliminado por <strong>de</strong>stilação na sua forma líquida. Passados 30 a 40<br />

minutos, o mercúrio já foi quase todo recuperado. Esta técnica gasta <strong>de</strong> 20 a 30<br />

minutos a mais que a queima feita com maçarico. Após um <strong>de</strong>terminado t<strong>em</strong>po <strong>de</strong><br />

esfriamento, abre-se a retorta e retira-se o ouro. Segundo o garimpeiro Edu, após ser<br />

utilizado por sete vezes, o mercúrio per<strong>de</strong> o seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> amalgamação; para fazê-lo<br />

retornar o seu potencial, álcool e limão lhe são adicionados.<br />

A utilização da retorta não t<strong>em</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fazer aumentar a produção; contudo,<br />

constitui uma nova forma <strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong>, menos <strong>de</strong>gradadora <strong>em</strong> termos<br />

ambientais, pois elimina completamente o risco <strong>de</strong> contaminação por mercúrio.<br />

91


A ativida<strong>de</strong> garimpeira gera riscos s<strong>em</strong>pre crescentes aos trabalhadores.<br />

Aliás, todas as três fases <strong>de</strong>scritas da ativida<strong>de</strong> contêm el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> periculosida<strong>de</strong><br />

com os quais os garimpeiros são obrigados a conviver, diariamente. Estes riscos<br />

estão <strong>de</strong>scritos <strong>de</strong> forma minuciosa num quadro elaborado pelos médicos e<br />

pesquisadores CÂMARA & COREY no livro: “O caso dos garimpos <strong>de</strong> ouro no<br />

Brasil.” (Vi<strong>de</strong> Anexo).<br />

4. A Organização do Trabalho na Ativida<strong>de</strong> Garimpeira<br />

A Sociologia do Trabalho, clássica, ensina que as ações <strong>de</strong> trabalhadores no<br />

seu dia a dia acontec<strong>em</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> relevância, tais como: gestão, divisão<br />

do trabalho e r<strong>em</strong>uneração. O conceito chave <strong>de</strong>sta disciplina é o da relação social<br />

do trabalho, que é a maneira pela qual o relacionamento entre o trabalhador e o seu<br />

trabalho é gerenciado (Dwyer 1993). Nela, as <strong>de</strong>finições dos sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> relevância<br />

têm a indústria como ponto <strong>de</strong> partida, no entanto, estes sist<strong>em</strong>as já estavam<br />

presentes nos trabalhos artesanais. A gestão do trabalho no garimpo será a primeira a<br />

ser abordada.<br />

4.1. A Gestão no Trabalho Garimpeiro<br />

No trabalho artesanal, o controle da ativida<strong>de</strong> era submetido aos produtores,<br />

aos quais estavam ligados o conhecimento tradicional e as perícias dos ofícios. Tão<br />

logo os artesãos se reún<strong>em</strong>, surge o probl<strong>em</strong>a da gerência <strong>em</strong> forma rudimentar<br />

(BRAVERMAN, 1974). Assim, até mesmo um grupo <strong>de</strong> artesãos atuando<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente, exigia uma coor<strong>de</strong>nação. As fábricas surgiram requerendo a<br />

mistura, muitas vezes complexa, <strong>de</strong> diferentes tipos <strong>de</strong> trabalho. Eram <strong>de</strong>mandadas<br />

funções <strong>de</strong> concepção e <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação, e esta assumia a forma <strong>de</strong> gerência. O<br />

capitalista, <strong>em</strong> função da proprieda<strong>de</strong> do capital, assumiu essas funções, visando a<br />

92


impor aos trabalhadores as suas vonta<strong>de</strong>s. Criadas as novas relações sociais <strong>de</strong><br />

produção, os capitalistas se viram diante <strong>de</strong> probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> administração e buscaram<br />

uma teoria e prática da gerência, que teve <strong>em</strong> Taylor seu principal expoente, no final<br />

do século XIX. O conceito fundamental para se enten<strong>de</strong>r a gestão do trabalho é o <strong>de</strong><br />

controle. Ele está presente nos sist<strong>em</strong>as gerenciais e é el<strong>em</strong>ento essencial para a<br />

compreensão das novas relações sociais, surgidas com a aglomeração <strong>de</strong><br />

trabalhadores na realização <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada tarefa.<br />

O que i<strong>de</strong>ntifica o dono <strong>de</strong> garimpo é a proprieda<strong>de</strong> dos motores.<br />

Normalmente, ele não só trabalha ativamente nas cavas <strong>de</strong> extração, como também<br />

participa, com outros trabalhadores, das <strong>de</strong>mais funções da ativida<strong>de</strong>; cabe a ele<br />

entretanto, a coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> todo o trabalho. Esta diferenciação se expressa tanto<br />

nas pequenas <strong>de</strong>cisões cotidianas, quanto na escolha dos locais <strong>de</strong> extração e nas<br />

divisões do produto. É importante ressaltar que os garimpeiros quase nunca têm<br />

salários fixos, e a renda <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> diretamente da quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro extraído.<br />

A relação do dono do motor com os <strong>de</strong>mais garimpeiros é normalmente<br />

amistosa, caracterizada mais como uma parceria do que uma relação formal entre<br />

trabalhador e <strong>em</strong>pregado. Este fato é notado na própria justificação da escolha do<br />

garimpo como profissão, ou seja, uma certa sensação <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> que esta ativida<strong>de</strong><br />

provoca: a <strong>de</strong> trabalhar s<strong>em</strong> possuir um patrão. Nenhum garimpeiro se consi<strong>de</strong>ra<br />

<strong>em</strong>pregado <strong>de</strong> outro. Neste sentido, percebe-se que, diferent<strong>em</strong>ente das análises<br />

clássicas da gestão do trabalho, o controle não é um el<strong>em</strong>ento fundamental no<br />

garimpo, seja <strong>em</strong> relação ao dono seja <strong>em</strong> relação à gerência.<br />

na ativida<strong>de</strong>:<br />

O garimpeiro Gustavo, dono <strong>de</strong> garimpo, explica como é a gestão do trabalho<br />

93


“No garimpo, se você exigir muito, você acaba prejudicando a turma,<br />

sabe. Você t<strong>em</strong> que <strong>de</strong>ixar. Você não po<strong>de</strong> ser muito enérgico no garimpo<br />

não, se não você per<strong>de</strong> os companheiros. T<strong>em</strong> que trabalhar <strong>em</strong> parceria,<br />

não adianta você querer tirar muito <strong>de</strong> um, o cara pega serviço 7 horas,<br />

aí quer ir até 7 da noite, até oito. Isso aí é explorar o trabalhador. T<strong>em</strong><br />

que <strong>de</strong>ixar o camarada trabalhar <strong>de</strong> acordo com o corpo <strong>de</strong>le né. Igual<br />

no meu caso, no meu caso lá, quando eu trabalhava com a turma lá nós<br />

pegava 5 horas, meio dia a gente tava liberado, não trabalhava sábado”<br />

Ou como diz o jov<strong>em</strong> garimpeiro Noé, também dono <strong>de</strong><br />

garimpo:<br />

“A gente só fala com eles assim "oh gente vocês vão fazer isso, isso e<br />

isso e vamos pegar junto para ver se dá resultado" para não precisar <strong>de</strong><br />

ninguém ficar pegando no pé <strong>de</strong> ninguém”<br />

E o garimpeiro Totonho, falando sobre o dono do garimpo on<strong>de</strong> trabalha:<br />

“Ele é dono mas ele não gosta que chame ele <strong>de</strong> dono que ele fica bravo.<br />

Não é só porque ele é dono ele manda sozinho, s<strong>em</strong>pre ele pe<strong>de</strong> opinião<br />

da gente no que vai fazer.”<br />

Estes relatos são muito significativos sobre a forma como se dá a gestão do<br />

trabalho no garimpo. Pelas próprias características <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>, não<br />

existe um controle e n<strong>em</strong> uma rígida <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> tarefas. O que ocorre é que os<br />

donos dos motores, normalmente os garimpeiros mais experientes, orientam os<br />

outros na direção <strong>em</strong> que se <strong>de</strong>ve investir mais. Desta forma, o dono divi<strong>de</strong> a<br />

responsabilida<strong>de</strong> das principais <strong>de</strong>cisões com todo o grupo, o que normalmente<br />

acontece, uma vez que todos têm interesse no sucesso da extração.<br />

Na montag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um garimpo é o dono do motor que normalmente convida<br />

três ou quatro trabalhadores para montar um grupo. Esta escolha t<strong>em</strong> como critérios<br />

a experiência, a honestida<strong>de</strong> e uma certa disposição, motivação e crença na<br />

<strong>de</strong>scoberta do ouro, <strong>de</strong>monstrada pelo trabalhador. O último critério é essencial, pois<br />

tal atitu<strong>de</strong> estimula os <strong>de</strong>mais a acreditar<strong>em</strong> e a se <strong>em</strong>penhar<strong>em</strong> na ativida<strong>de</strong>.<br />

A motivação dos trabalhadores é um dos el<strong>em</strong>entos essenciais para a coesão<br />

do grupo. Nos momentos <strong>em</strong> que se encontra pouco ouro, e o capital vai acabando,<br />

muitos garimpeiros <strong>de</strong>sanimam e isso <strong>de</strong>smotiva os outros. Este fato po<strong>de</strong> ser um<br />

94


dos fatores <strong>de</strong> exclusão do trabalhador do grupo. Normalmente, para que continu<strong>em</strong><br />

unidos, o el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong>sestabilizador <strong>de</strong>ve sair. Como relata o garimpeiro Juscelino:<br />

“Ah se vê que o camarada tá com má vonta<strong>de</strong> s<strong>em</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar<br />

e ainda tá <strong>de</strong>sanimando ainda os companheiro aquilo ali então o<br />

camarada num tá afim mesmo <strong>de</strong> trabalhar, então a gente acha que<br />

quando a pessoa tá assim ela não precisa n<strong>em</strong> <strong>de</strong> ir no garimpo.”<br />

Nos momentos <strong>de</strong> pouca extração, alguns estímulos são dados aos<br />

trabalhadores para que estes não busqu<strong>em</strong> outros garimpos que estejam extraindo<br />

mais. Estes estímulos vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> uma porcentag<strong>em</strong> maior para os trabalhadores até a<br />

permissão para que eles utiliz<strong>em</strong> todo o equipamento <strong>em</strong> um dia da s<strong>em</strong>ana para a<br />

extração, sendo o gasto efetuado <strong>de</strong> total responsabilida<strong>de</strong> dos mesmos, como<br />

também, todo o lucro obtido.<br />

O fundamental nesta relação é o pacto <strong>de</strong> confiança mútua que se estabelece<br />

entre eles. Qualquer fator que quebre a confiança é motivo para a exclusão <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>terminado el<strong>em</strong>ento do grupo, ou, muitas vezes, <strong>de</strong> dissolução do próprio grupo.<br />

Os trabalhadores entram no grupo somente com a sua força <strong>de</strong> trabalho, não tendo<br />

nenhum compromisso com os gastos que o garimpo <strong>de</strong>manda. Normalmente, 20%<br />

do total <strong>de</strong> ouro extraído s<strong>em</strong>analmente fica com os garimpeiros, que participam do<br />

grupo somente com o seu trabalho; 80% fica para o dono dos motores, que assume<br />

toda a responsabilida<strong>de</strong> da ativida<strong>de</strong>, ou seja, os gastos com combustíveis,<br />

lubrificantes, peças etc. É importante ressaltar que o número <strong>de</strong> m<strong>em</strong>bros <strong>em</strong> cada<br />

garimpo é variável.<br />

Muitas vezes, os garimpeiros prefer<strong>em</strong> que o dono não fique presente o<br />

t<strong>em</strong>po todo <strong>de</strong>ntro da cava. Este fato <strong>de</strong>monstra uma certa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

autonomia do grupo, que tendo também suas próprias intuições e conhecimentos,<br />

está ávido para pô-los <strong>em</strong> prática; e muitas vezes eles não são compatíveis com os<br />

dos donos do <strong>em</strong>preendimento. Na verda<strong>de</strong>, no garimpo, cada trabalhador possui o<br />

seu conhecimento e todos têm o direito <strong>de</strong> dizê-lo e <strong>de</strong> colocá-lo <strong>em</strong> prática, ou pelo<br />

menos, os mais reconhecidamente experientes. Assim, a <strong>de</strong>terminação ou opinião do<br />

95


dono do garimpo não é necessariamente seguida todo o t<strong>em</strong>po. No entanto, alguns<br />

donos <strong>de</strong> garimpo faz<strong>em</strong> questão <strong>de</strong> ficar presentes o t<strong>em</strong>po todo e <strong>em</strong> todo o<br />

processo extrativo, como <strong>de</strong>monstra o garimpeiro Edu:<br />

“Quando eu estou lá <strong>de</strong>ntro do buraco parece que eles trabalham<br />

melhor, porque t<strong>em</strong> hora que um para, põe a mão nas ca<strong>de</strong>iras e ficam<br />

assim olhando e quando eu estou lá <strong>em</strong>baixo, aí eles ficam doido, um tira<br />

pedra, o outro corta o barro e o outro segura o jato. Comigo lá <strong>de</strong>ntro<br />

funciona melhor. Mas eu converso com eles normal, brinco muito com<br />

eles, só que eu trabalho mais sério porque se eu brincar com eles lá<br />

<strong>de</strong>ntro aí eles começam a brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>mais né, aí eu olho pra ele mais<br />

sério.”<br />

No trabalho garimpeiro, a experiência, o conhecimento e o saber-fazer são os<br />

principais fatores <strong>de</strong> distinção hierárquica. Dentro da cava, os mais experientes<br />

normalmente são os mais ouvidos. No entanto, como se verá mais adiante, a<br />

hierarquia no trabalho não influencia e n<strong>em</strong> é influenciada pela divisão das tarefas<br />

<strong>de</strong>ntro da cava. Os donos dos motores normalmente escolh<strong>em</strong> o mais experiente ou<br />

o que t<strong>em</strong> mais t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> trabalho no grupo para ser o “braço direito”, ou seja, uma<br />

espécie <strong>de</strong> gerente da ativida<strong>de</strong> na ausência do dono do garimpo. A escolha <strong>de</strong> um<br />

“braço direito” está ligada, com certeza, ao intenso sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança<br />

característico <strong>de</strong>ste trabalho.<br />

O papel <strong>de</strong>ste gerente não difere muito da função do dono dos motores. Ele é<br />

responsável, nos momentos <strong>em</strong> que o dono não está presente no garimpo, por<br />

coor<strong>de</strong>nar, orientar e fiscalizar as ativida<strong>de</strong>s do trabalho. Em alguns garimpos, a sua<br />

porcentag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ouro não é diferente da dos <strong>de</strong>mais trabalhadores, mas<br />

normalmente ele recebe um pouco mais.<br />

96


4.2. A Divisão do Trabalho na Ativida<strong>de</strong> Garimpeira<br />

Segundo MARGLIN (1980), a divisão social do trabalho caracterizada na<br />

especialização <strong>de</strong> tarefas não é produto das socieda<strong>de</strong>s industrializadas, mas sim<br />

uma característica <strong>de</strong> todas as socieda<strong>de</strong>s complexas. Naquelas on<strong>de</strong> prevalecia o<br />

sist<strong>em</strong>a corporativo, já existia uma divisão controlada por especialistas. No entanto,<br />

ela sucumbiu à divisão do trabalho do tipo capitalista, aparent<strong>em</strong>ente pensada, não<br />

só como uma forma <strong>de</strong> aumentar a eficiência do trabalho, mas principalmente, para<br />

garantir ao <strong>em</strong>presário maior controle e coor<strong>de</strong>nação do processo <strong>de</strong> produção.<br />

Assim, a divisão do trabalho, imposta pelo planejamento e controle, funciona como<br />

um instrumento <strong>de</strong> hierarquização social.<br />

Com o parcelamento do trabalho foi criada uma especialização; com isto<br />

obteve-se uma produção quantitativamente maior e qualitativamente melhor.<br />

Entretanto, o efeito <strong>de</strong>sta divisão foi a <strong>de</strong>struição dos métiers pela perda do saber<br />

dos trabalhadores através da excessiva especialização, o que não acontecia nos<br />

sist<strong>em</strong>as corporativos. Desta forma, o trabalhador tornou-se inapto a acompanhar o<br />

processo completo da produção.<br />

No entanto, ainda exist<strong>em</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>em</strong> que a divisão não aconteceu <strong>de</strong><br />

forma rígida, e que são similares às formas <strong>de</strong> trabalhos cooperativos. Po<strong>de</strong> ser<br />

citado, além dos garimpos s<strong>em</strong>imecanizados, o caso da construção civil tradicional.<br />

Nestas duas ativida<strong>de</strong>s, apesar <strong>de</strong> haver uma divisão <strong>de</strong> tarefas, ela não é muito<br />

rígida, e ainda permite que os trabalhadores acompanh<strong>em</strong> o processo completo da<br />

ativida<strong>de</strong>.<br />

A divisão do trabalho talvez tenha sido o el<strong>em</strong>ento que mais sofreu alterações<br />

na ativida<strong>de</strong> garimpeira s<strong>em</strong>imecanizada. Uma nova varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> funções passou a<br />

ser exigida e com ela, novos conhecimentos e habilida<strong>de</strong>s.<br />

97


As funções foram completamente alteradas: surgiram grupos fixos <strong>de</strong><br />

garimpeiros, normalmente trabalhando com os donos dos motores e recebendo uma<br />

porcentag<strong>em</strong> do total <strong>de</strong> ouro extraído <strong>em</strong> um <strong>de</strong>terminado t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> extração. Com<br />

a introdução dos motores, quase <strong>de</strong>sapareceu aquele garimpeiro isolado que, sozinho<br />

ou com alguns m<strong>em</strong>bros <strong>de</strong> sua família, ia para as margens dos rios tentar a sorte na<br />

garimpag<strong>em</strong> manual. Estes, <strong>em</strong> sua maioria, foram absorvidos pelos novos grupos<br />

<strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong>, utilizando o saber adquirido no processo anterior.<br />

A introdução dos motores <strong>de</strong> garimpo no processo <strong>de</strong> extração fez com que a<br />

ativida<strong>de</strong> se tornasse mais complexa. Apesar <strong>de</strong> exigir um menor número <strong>de</strong> pessoas<br />

trabalhando, estas, agora, precisam possuir um conhecimento <strong>de</strong> mecânica, pois,<br />

caso os motores estragu<strong>em</strong>, os consertos po<strong>de</strong>m ser mais rápidos, s<strong>em</strong> prejuízo para<br />

a extração. Ou seja, com a entrada dos motores <strong>de</strong> garimpo, foi exigido do<br />

trabalhador habilida<strong>de</strong> para operar os equipamentos.<br />

Os que resistiram a se adaptar às novas técnicas, acabaram abandonando a<br />

ativida<strong>de</strong> ou insistindo <strong>em</strong> trabalhar solitariamente. Mas um fato é certo: o ouro <strong>de</strong><br />

superfície, principal alvo dos mineradores manuais, foi quase esgotado <strong>de</strong>vido aos<br />

vários anos <strong>de</strong> extração feita pelos motores ou mesmo pelas gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas <strong>de</strong><br />

mineração.<br />

No entanto, estas mudanças não melhoraram as condições <strong>de</strong> trabalho no<br />

garimpo. O t<strong>em</strong>po diário <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>, a que estão submetidos os garimpeiros <strong>de</strong><br />

Monsenhor Horta, não difere muito da média geral dos brasileiros; a gran<strong>de</strong> maioria<br />

trabalha mais <strong>de</strong> 9 horas por dia no garimpo. Quase todos têm um dia <strong>de</strong> folga<br />

durante a s<strong>em</strong>ana e poucos <strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong> outra ativida<strong>de</strong> além do garimpo. As<br />

péssimas condições <strong>de</strong> trabalho se revelam mesmo no ambiente da ativida<strong>de</strong>.<br />

A totalida<strong>de</strong> dos garimpeiros <strong>de</strong> Monsenhor Horta não utiliza equipamentos<br />

<strong>de</strong> segurança, tais como botas, luvas, etc. Tendo <strong>em</strong> vista a periculosida<strong>de</strong> do<br />

trabalho, isto se torna um grave probl<strong>em</strong>a. A esta periculosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve-se somar,<br />

além das contaminações pelo mercúrio, pois a gran<strong>de</strong> maioria não utiliza a retorta,<br />

os altos índices <strong>de</strong> contaminação por microorganismos do Ribeirão do Carmo que<br />

98


ecebe diretamente todo o esgoto da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mariana e <strong>de</strong> Monsenhor Horta. O<br />

ribeirão contribui para o surgimento <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> doenças, tais como: a<br />

esquistossomose, a gastroenterite e outros tipos <strong>de</strong> doenças <strong>de</strong> veiculação hídrica.<br />

Um gran<strong>de</strong> risco também presente são os <strong>de</strong>slizamentos dos barrancos que po<strong>de</strong>m<br />

soterrar os trabalhadores que estão <strong>de</strong>ntro da cava realizando a extração. Este tipo <strong>de</strong><br />

aci<strong>de</strong>nte, apesar <strong>de</strong> não ser muito comum, já aconteceu algumas vezes. A<br />

justificativa para a não utilização dos equipamentos <strong>de</strong> segurança é a <strong>de</strong> que eles<br />

atrapalham a mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da cava. Outros não acham importante ou mesmo<br />

necessário.<br />

Atualmente, os garimpos s<strong>em</strong>imecanizados <strong>de</strong> Monsenhor Horta possu<strong>em</strong> uma<br />

diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> funções muito maior do que no processo anterior. As principais<br />

funções exercidas nos garimpos são:<br />

1) Maraqueiro: opera a maraca, ou seja, o sugador do cascalho. Sua função é<br />

conduzir a maraca para que aspire a maior quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cascalho possível e<br />

evitar que pedras muito gran<strong>de</strong>s sejam sugadas e a danifiqu<strong>em</strong>.<br />

2) Galfiador: t<strong>em</strong> a função <strong>de</strong> retirar, com um garfo, as pedras maiores dos locais<br />

on<strong>de</strong> a maraca está agindo.<br />

3) Jateador: opera um jato d’água extr<strong>em</strong>amente possante que fura o solo,<br />

permitindo a extração <strong>em</strong> maiores profundida<strong>de</strong>s.<br />

4) Lavador: executa a lavag<strong>em</strong> do carpete on<strong>de</strong> se encontra o ouro <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> pó.<br />

Normalmente é ele qu<strong>em</strong> introduz o mercúrio para a elaboração do amálgama.<br />

5) Operador: opera os motores <strong>de</strong> extração e controla a sua aceleração. Esta função<br />

requer gran<strong>de</strong> atenção, uma vez que a potência do motor <strong>de</strong>ve ser diminuída caso<br />

uma pedra gran<strong>de</strong> seja sugada pela maraca.<br />

6) Atirador <strong>de</strong> pedras: retira da cava as pedras que estão no solo.<br />

7) Puxador: auxilia, com uma enxada, o jateador no processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>smonte dos<br />

barrancos.<br />

8) Queimador: responsável pela queima do amálgama e pela apuração do ouro.<br />

99


No processo mecanizado, que normalmente é formado por grupos <strong>de</strong> 5 a 10<br />

pessoas, cada garimpeiro, <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminado momento, é responsável por uma função.<br />

Dentro do garimpo mecanizado não existe a especialização <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado<br />

trabalhador para o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penho <strong>de</strong> uma única função. Todos os trabalhadores que<br />

estão <strong>de</strong>ntro da cava se revezam nas tarefas. Tal fato po<strong>de</strong> ser percebido nas falas<br />

dos irmãos garimpeiros Totó e Noé, sócios <strong>em</strong> um garimpo:<br />

“Assim preferência certa não t<strong>em</strong>, pra mim tanto faz. Por ex<strong>em</strong>plo se t<strong>em</strong><br />

uma turma com 5 trabalhador e tiver dando saída, qualquer coisa eu<br />

faço, aí só revezando <strong>de</strong> vez <strong>em</strong> quando pra um <strong>de</strong>scansar o outro, uma<br />

coisa assim.”<br />

Ou:<br />

“não tenho preferência, qualquer coisa eu faço, mas o que eles falam que<br />

t<strong>em</strong> muita gente que gosta, só que eu não gosto porque molha mais é o<br />

jato. Mas eu não tenho preferências não, qualquer um é isso mesmo.”<br />

Alguns experientes donos <strong>de</strong> garimpo <strong>de</strong>monstram a preferência por exercer as<br />

tarefas que exig<strong>em</strong> maior habilida<strong>de</strong> durante o processo, como a manipulação da<br />

maraca e do jato. O experiente garimpeiro Edu explica a sua preferência:<br />

“Eu gosto <strong>de</strong> ficar na maraca porque eu acho que na maraca eu controlo<br />

melhor o acelerador. O Geraldo mesmo gosta que eu trabalho no jato<br />

porque quando ele está na maraca e o Assis está no jato, o Assis molha<br />

ele. E se eu estou no jato e o Geraldo na maraca eu não gosto <strong>de</strong> molhar<br />

ninguém, então diz que t<strong>em</strong> que ter um padrão para tudo né? Então essa<br />

é a forma <strong>de</strong> segura o jato, se não souber bate no barro duro ou <strong>em</strong> uma<br />

pedra, espirra água para traz e molha o companheiro todo. E eu nisso aí,<br />

eu seguro o jato, levo a mão na água para não molhar os companheiros<br />

e vou cortando o barro s<strong>em</strong> que pegue neles porque eles acham ruim. No<br />

entanto quando respinga água no outro, o outro fala "foi mal aí" mas<br />

você vê que o outro fica contrariado”<br />

No entanto, alguns donos, ou representantes <strong>de</strong>stes, po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>terminar as funções<br />

que cada um <strong>de</strong>ve exercer, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do tipo <strong>de</strong> material que está sendo extraído.<br />

Isto se dá especificamente <strong>em</strong> relação à operação da maraca que, segundo eles, exige<br />

uma habilida<strong>de</strong> maior e é um fator <strong>de</strong>terminante para o sucesso da extração.<br />

100


O garimpeiro Edu, dono <strong>de</strong> um garimpo, <strong>de</strong>monstra a sua habilida<strong>de</strong> falando<br />

como <strong>de</strong>termina qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>ve realizar tal função <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminado momento:<br />

“Eu escolho dois que trabalha melhor na maraca, porque o ouro ele<br />

sendo fino, o motor t<strong>em</strong> que trabalhar numa rotação só porque se ele<br />

ficar repicando o acelerador do motor, ele sendo fino, ele não pára no<br />

carpete, ele <strong>de</strong>sce muito. Então eu escolho ou eu, ou o Assis ou o Geraldo<br />

para trabalhar na maraca, porque aqueles dois que eu arrumei, o<br />

Vicente nesse ouro assim mais fino, eu não gosto que eles trabalham na<br />

maraca, porque eles trabalham repicando o acelerador, aí o ouro vai<br />

<strong>em</strong>bora.”<br />

A divisão das tarefas no garimpo exige uma inter<strong>de</strong>pendência entre os<br />

trabalhadores para que haja uma certa sincronia nas operações. Esta se dá<br />

principalmente entre o jateador e o maraqueiro. O jateador <strong>de</strong>ve mandar a<br />

quantida<strong>de</strong> certa <strong>de</strong> material, evitando o acúmulo na boca da maraca; assim, a<br />

comunicação entre eles é fundamental. Em alguns grupos nota-se que maraqueiro e<br />

jateador estão s<strong>em</strong>pre juntos; inclusive este par po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>terminado pelo próprio<br />

dono do garimpo, visando a uma agilida<strong>de</strong> maior nos trabalhos.<br />

Como já foi dito, existe uma gran<strong>de</strong> rotativida<strong>de</strong> nas tarefas do garimpo; no<br />

entanto, um fato é certo: o garimpeiro mais inexperiente ou o iniciante no garimpo<br />

raramente opera a maraca, pois esta função exige uma habilida<strong>de</strong> maior no controle<br />

do acelerador, e que, somente po<strong>de</strong> ser adquirida com um t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> experiência. O<br />

jato é outra função que raramente é atribuída aos mais inexperientes, uma vez que,<br />

além <strong>de</strong> não dominar<strong>em</strong> exatamente os lugares para on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve direcioná-lo,<br />

molham os outros trabalhadores, fato que não é b<strong>em</strong> visto pelo grupo e passível <strong>de</strong><br />

advertência. Normalmente, os mais inexperientes, na maioria das vezes, realizam a<br />

função <strong>de</strong> atirar pedra, a que menos exige um conhecimento específico.<br />

A ativida<strong>de</strong> garimpeira realizada mecanicamente também possui características<br />

externas que influ<strong>em</strong> na divisão do trabalho, como por ex<strong>em</strong>plo, o caráter ilegal da<br />

ativida<strong>de</strong>. Este fato exige uma organização muito específica dos trabalhadores. O<br />

medo da aparição dos órgãos fiscalizadores, principalmente da Polícia Militar, faz<br />

com que se tenha uma característica <strong>de</strong> trabalho muito eficiente. É necessário<br />

101


trabalhar o máximo possível, pois caso haja autuação da Polícia, os equipamentos<br />

são apreendidos, impossibilitando, por algum t<strong>em</strong>po, o trabalho <strong>de</strong> extração.<br />

Como é possível perceber, ocorreu um gran<strong>de</strong> aprofundamento na divisão do<br />

trabalho quando se compara a extração feita antes e <strong>de</strong>pois da utilização dos motores<br />

<strong>de</strong> garimpo. No entanto, a s<strong>em</strong>imecanização na ativida<strong>de</strong> garimpeira, tanto <strong>em</strong><br />

Monsenhor Horta como na região amazônica, 38 <strong>em</strong>bora pu<strong>de</strong>sse substituir a força <strong>de</strong><br />

trabalho <strong>em</strong> larga escala, não provocou o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego dos garimpeiros, antes<br />

alocados nos garimpos manuais. O que se pô<strong>de</strong> perceber na região é a gradual<br />

diminuição do número <strong>de</strong> garimpeiros <strong>em</strong> ativida<strong>de</strong>; no entanto, este fato está ligado<br />

ao crescente esgotamento do ouro após tantos anos <strong>de</strong> extração ininterrupta.<br />

4.3. A R<strong>em</strong>uneração na Ativida<strong>de</strong> Garimpeira.<br />

Na sociologia do trabalho, o salário é a referência fundamental para o estudo<br />

da r<strong>em</strong>uneração, sendo o trabalho entendido como uma relação <strong>de</strong> troca, ou seja, o<br />

uso da força <strong>de</strong> trabalho t<strong>em</strong> como contrapartida uma retribuição. Segundo<br />

NAVILLE (1962), as escalas <strong>de</strong> avaliação do valor do trabalho, cujos critérios são o<br />

interesse, a satisfação, o prestígio ou o status, <strong>de</strong>rivam dos cálculos do grau <strong>de</strong><br />

utilida<strong>de</strong> dos bens. Desta forma, o salário é entendido como uma forma <strong>de</strong><br />

retribuição ao trabalho que pesa sobre toda a existência dos indivíduos que <strong>de</strong>le<br />

viv<strong>em</strong>, e sua incidência atinge um domínio que ultrapassa o do trabalho. O salário é<br />

uma r<strong>em</strong>uneração direta do trabalho prestado; sendo assim, não varia com o preço<br />

do produto obtido, mas é estabelecido segundo características internas <strong>de</strong>sta<br />

prestação <strong>de</strong> serviço, como a qualificação.<br />

No garimpo t<strong>em</strong>os uma realida<strong>de</strong> diferente. O salário não é a forma <strong>de</strong><br />

r<strong>em</strong>uneração, mas sim o resultado da divisão, por cotas, do produto extraído. É na<br />

divisão do produto final do trabalho que se torna mais nítida a hierarquia da<br />

102


ativida<strong>de</strong>. Os donos dos motores têm uma porcentag<strong>em</strong> muito maior, cabendo-lhes a<br />

média <strong>de</strong> 50 a 60% do total <strong>de</strong> ouro extraído. Estas quantias, no entanto, são<br />

extr<strong>em</strong>amente variáveis, não exigindo um padrão rígido para a divisão do produto.<br />

Normalmente os grupos <strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong> têm <strong>em</strong> média <strong>de</strong> quatro a seis<br />

garimpeiros. O dono do garimpo, ou seja, o dono do motor, é o responsável por toda<br />

a ativida<strong>de</strong>. Os outros garimpeiros entram somente com a força <strong>de</strong> trabalho. Assim, é<br />

do dono toda a responsabilida<strong>de</strong> pelo custo da ativida<strong>de</strong>, tais como a manutenção do<br />

equipamento e o combustível utilizado; normalmente 75% do total <strong>de</strong> ouro extraído<br />

na s<strong>em</strong>ana é seu. Os outros 25% são divididos entre os trabalhadores, 5% para cada<br />

um. No entanto, estas cifras são extr<strong>em</strong>amente variáveis, não existindo rigor na<br />

divisão entre os garimpos da região. Um fator que po<strong>de</strong> exercer influência na divisão<br />

do ouro encontrado é a porcentag<strong>em</strong> paga ao dono do terreno on<strong>de</strong> está situado o<br />

garimpo, ou ainda uma cota maior ao encarregado ou “gerente” do grupo.<br />

A divisão do produto, no entanto, não segue um padrão muito rigoroso, como<br />

<strong>de</strong>monstra o relato do garimpeiro Edu:<br />

“S<strong>em</strong>ana passada nós fiz<strong>em</strong>os 23 a 25 gramas, para eles na lógica a<br />

porcentag<strong>em</strong> normal seria 5%, então daria 1 grama e 3 décimos e eu<br />

tirei para eles <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> R$24,00 para cada um. Eu tirei R$24,00 na<br />

quarta porque quinta-feira eu não trabalhei, aí eu tirei R$24,00 para<br />

cada um <strong>de</strong>les e quando foi no sábado que eu calculei <strong>de</strong>u 3 gramas e 8<br />

décimos e eu tirei para eles mais R$10,00. Quer dizer, eu <strong>de</strong>i muito mais<br />

do que a porcentag<strong>em</strong> do que <strong>de</strong>via dar. Aí as vezes se o ouro <strong>de</strong>r 50<br />

gramas eu costumo tirar para eles quase 5 gramas para cada um, quer<br />

dizer, aí eu estou dando quase a meia.”<br />

Mas a característica fundamental da ativida<strong>de</strong> é o seu caráter <strong>de</strong> incerteza<br />

quanto ao resultado da extração. Durante o trabalho, nunca se sabe exatamente a<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro que está sendo extraída. A incerteza po<strong>de</strong> ser um fator <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sânimo, para aqueles grupos que, envolvidos no trabalho, <strong>de</strong>moram a encontrar<br />

ou até mesmo não acham o tão pretendido metal. No entanto, estas incertezas não<br />

são, pelo menos para a maioria, suficientes para <strong>de</strong>sestruturar um grupo <strong>de</strong><br />

38 Ver Cleary (1990)<br />

103


trabalhadores que ainda prefere esse tipo <strong>de</strong> recompensa ao salário fixo. Sobre estas<br />

incertezas e as vantagens do garimpo, Edu explica:<br />

“Eu acho assim que quando costuma chegar um dia que eu tirar num dia<br />

100 gramas, costuma você ganhar o que você per<strong>de</strong>u <strong>em</strong> 3 a 4 meses ali.<br />

Agora costuma você <strong>em</strong> uma s<strong>em</strong>ana ganhar, tirar um lucro do que<br />

faltou <strong>em</strong> 1 ano. Aí só com uma s<strong>em</strong>ana você recupera um ano perdido,<br />

aí até para eles (os trabalhadores) é muito melhor do que se eles<br />

estivess<strong>em</strong> fichado. Para eles que no garimpo eu acho mais vantajoso<br />

porque assim costuma chegar aí <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> 1 mês, se <strong>de</strong>ixar, se tivé bom<br />

costuma com 1 s<strong>em</strong>ana eles fazer<strong>em</strong> aí 200, 300 reais”<br />

No entanto, n<strong>em</strong> todos os garimpeiros têm essa visão otimista sobre os lucros<br />

do trabalho no garimpo. O garimpeiro Juscelino revela porque acredita ser melhor<br />

receber um salário fixo:<br />

“porque o salário po<strong>de</strong> ser pouco mais você t<strong>em</strong> a certeza que todo mês<br />

ele vai vim, né. Agora o ouro, cê tá alí, ce num sabe quando você tá nele,<br />

e amanhã ele po<strong>de</strong> acabar, é uma coisa incerta e a gente tá alí, porque, é<br />

porque não t<strong>em</strong> outra ativida<strong>de</strong> mesmo”<br />

Contrariando a tendência ao assalariamento apontado por CLEARY (1990), nos<br />

garimpos pesquisados não foi encontrado nenhum tipo <strong>de</strong> trabalho assalariado.<br />

Segundo PEREIRA (1990), tal interpretação feita por Cleary se <strong>de</strong>veu ao fato <strong>de</strong> sua<br />

observação ter se limitado a uma região <strong>de</strong> garimpo fraco, <strong>de</strong> ocupação agrícola<br />

antiga e com particular interação entre o garimpo e a lavoura. Os assalariados que<br />

Cleary observou eram, <strong>de</strong> fato, camponeses s<strong>em</strong> tradição e com incursões<br />

esporádicas no garimpo como forma <strong>de</strong> compl<strong>em</strong>entação <strong>de</strong> renda; para estes, o<br />

sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> porcentag<strong>em</strong> não é interessante.<br />

A totalida<strong>de</strong> dos garimpeiros <strong>de</strong> Monsenhor Horta trabalha exclusivamente no<br />

garimpo. Nas épocas <strong>em</strong> que há excesso <strong>de</strong> chuva ou pelo contrário, um longo<br />

período <strong>de</strong> escassez, o grupo se <strong>de</strong>sfaz e os garimpeiros buscam outras fontes <strong>de</strong><br />

renda. As ativida<strong>de</strong>s mais procuradas são os trabalhos agrícolas, área <strong>em</strong> que ainda é<br />

possível encontrar <strong>em</strong>prego na região. No entanto, ficam esperando uma nova<br />

oportunida<strong>de</strong> para retornar<strong>em</strong> ao garimpo.<br />

104


O aumento no valor do capital necessário à lavra s<strong>em</strong>imecanizada reduziu a<br />

parcela dos ganhos auferidos pelos trabalhadores. No entanto, não foram encontrados<br />

nas observações feitas e n<strong>em</strong> na literatura indícios <strong>de</strong> que os ganhos individuais<br />

absolutos tenham se reduzido, uma vez que a produtivida<strong>de</strong> média aumentou.<br />

Com certeza a mobilida<strong>de</strong> social foi reduzida <strong>em</strong> função da <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> maior<br />

capital, para a posse <strong>de</strong> um garimpo s<strong>em</strong>imecanizado, no entanto, ela não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />

existir. Neste sentido, segundo estudos <strong>de</strong> PEREIRA (1990), na região amazônica<br />

não é muito diferente <strong>de</strong> Monsenhor Horta:<br />

“A chance <strong>de</strong> um garimpeiro porcentista alçar à condição <strong>de</strong> dono <strong>de</strong><br />

garimpo é ainda muito maior que, por ex<strong>em</strong>plo, a <strong>de</strong> um diarista na<br />

agricultura se tornar médio ou a <strong>de</strong> um operador <strong>de</strong> moto serra alcançar<br />

a posição <strong>de</strong> dono <strong>de</strong> uma serraria ou, ainda a <strong>de</strong> um operador <strong>de</strong><br />

“sonda banka” montar a sua própria <strong>em</strong>presa <strong>de</strong> mineração” PEREIRA<br />

(1990 : 210)<br />

4.4. O Caráter Ilegal da Ativida<strong>de</strong><br />

Uma característica marcante da organização da ativida<strong>de</strong> garimpeira <strong>em</strong><br />

Monsenhor Horta é a ilegalida<strong>de</strong> que ainda gera um medo constante <strong>de</strong> repressão e<br />

requer das pessoas envolvidas, uma organização muito peculiar. O garimpo, como<br />

visto no primeiro capítulo <strong>de</strong>ste trabalho, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu surgimento t<strong>em</strong> como<br />

característica ser uma ativida<strong>de</strong> ilegal, o que po<strong>de</strong> ser percebido na própria orig<strong>em</strong><br />

da palavra garimpeiro. A legalização <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> esbarra s<strong>em</strong>pre na<br />

burocracia do Estado. Quase s<strong>em</strong>pre os terrenos, on<strong>de</strong> são realizadas as extrações,<br />

são áreas já requeridas junto ao DNPM por gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas. Estas, por não se<br />

interessar<strong>em</strong> pelas áreas <strong>de</strong> pequenas jazidas, abr<strong>em</strong> espaço aos pequenos<br />

<strong>em</strong>preendimentos. Assim, o dono do terreno também comete o <strong>de</strong>lito <strong>de</strong> arrendar,<br />

para a garimpag<strong>em</strong>, o subsolo que pertence à União e que <strong>de</strong>ve ter licença do DNPM<br />

(Departamento Nacional <strong>de</strong> Produção Mineral) para exploração; o que ele não faz.<br />

105


Muitas vezes os proprietários <strong>de</strong> garimpo escolh<strong>em</strong> um <strong>de</strong>terminado terreno para<br />

abrir uma cava, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do valor cobrado pelo proprietário da terra para a sua<br />

utilização. Desta forma, ambos, garimpeiros e proprietários, estão na ilegalida<strong>de</strong>;<br />

entretanto, somente o garimpeiro é vítima do po<strong>de</strong>r repressivo da Polícia Florestal.<br />

Quando <strong>em</strong> Monsenhor Horta se fazia uma garimpag<strong>em</strong> manual, usando<br />

somente ferramentas e sendo o uso do mercúrio muito raro, era incomum a presença<br />

<strong>de</strong> órgãos fiscalizadores. As transformações técnicas ocorridas na década <strong>de</strong> 80<br />

aumentaram o potencial lucrativo da extração, todavia a <strong>de</strong>gradação ambiental se<br />

tornou visivelmente mais forte, o que intensificou a coerção exercida.<br />

A questão ambiental é s<strong>em</strong> dúvida fundamental para se enten<strong>de</strong>r atualmente<br />

a ilegalida<strong>de</strong> e a intensificação da fiscalização da ativida<strong>de</strong> garimpeira, tal como<br />

ocorre <strong>em</strong> Monsenhor Horta. Com o surgimento <strong>de</strong> uma consciência ecológica no<br />

país, o garimpo <strong>de</strong> ouro passou a ser um dos principais vilões do meio ambiente, um<br />

mal que, no mínimo, <strong>de</strong>ve ser controlado. No início da década <strong>de</strong> 80, quando os<br />

garimpos s<strong>em</strong>imecanizados começavam a se espalhar, o Brasil foi alvo das atenções<br />

internacionais <strong>de</strong>vido ao <strong>de</strong>smatamento da Amazônia e, também, às imagens<br />

chocantes das condições <strong>de</strong> trabalho dos garimpeiros <strong>de</strong> Serra Pelada. A mídia<br />

brasileira e mesmo a internacional, apoiada pelos ecologistas, ainda que s<strong>em</strong> a<br />

intenção <strong>de</strong> fazê-lo, apontou os culpados pelas <strong>de</strong>gradações ambientais. Os<br />

garimpeiros estavam entre eles e foram responsabilizados pela gran<strong>de</strong> contaminação<br />

mercurial e pela <strong>de</strong>struição das socieda<strong>de</strong>s indígenas.<br />

“Nas manchetes dos jornais e nas reportagens da televisão, entre 1987 e<br />

1992, o garimpo e os garimpeiros surgiram como símbolo privilegiado<br />

do Brasil arcaico que se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar para trás, <strong>em</strong> razão das<br />

características da or<strong>de</strong>m mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>ste fim <strong>de</strong> século, que se preten<strong>de</strong><br />

ecocapitalista. A ativida<strong>de</strong> garimpeira passou a ser consi<strong>de</strong>rada na<br />

contra mão da história. Para a opinião pública, o que ela t<strong>em</strong> a oferecer<br />

não é consi<strong>de</strong>rado suficient<strong>em</strong>ente valioso <strong>em</strong> vista do que ela <strong>de</strong>strói.”<br />

MARTINS (1997: 98)<br />

Esta visão do garimpeiro <strong>de</strong>gradador, formada a partir dos garimpeiros da<br />

Amazônia e também dos garimpos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte como os <strong>de</strong> Serra Pelada e<br />

106


Poconé, foi difundida para o mundo todo e, logicamente, para todas as áreas <strong>de</strong><br />

garimpo no Brasil. As ações <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia realizadas pelas organizações civis<br />

passaram a ser constantes. Em Minas Gerais, <strong>de</strong>stacam-se as ações promovidas pela<br />

AMDA (Associação Mineira <strong>de</strong> Defesa do Meio Ambiente) e pela FEAM<br />

(Fundação Estadual do Meio Ambiente). Desta forma, quase todas as regiões<br />

tradicionais <strong>de</strong> garimpag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ouro e <strong>de</strong> diamantes foram vítimas <strong>de</strong> constantes<br />

<strong>de</strong>núncias aos órgãos públicos. Antes <strong>de</strong> existir<strong>em</strong> órgãos específicos <strong>de</strong><br />

fiscalização, como é o caso da FEAM, essas regiões sofriam apenas as violentas<br />

ações da Polícia Florestal.<br />

Neste contexto, foi realizado <strong>em</strong> Belo Horizonte <strong>em</strong> 1985, coor<strong>de</strong>nada pelo<br />

então Secretário <strong>de</strong> Ciência e Tecnologia e Meio Ambiente, Otávio Elísio Alves <strong>de</strong><br />

Brito, um ciclo <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates entre ambientalistas e agentes mineradores sobre os<br />

probl<strong>em</strong>as da ativida<strong>de</strong> mineradora <strong>em</strong> Minas Gerais. A conclusão, nas palavras <strong>de</strong><br />

Lobato, foi a “<strong>de</strong> que o garimpo artesanal ou manual não seria fator <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradação<br />

ambiental, ao contrário do garimpo s<strong>em</strong>imecanizado e da ação das gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas<br />

<strong>de</strong> mineração. (Essa tese foi <strong>de</strong>fendida pelos representantes dos garimpos da região<br />

<strong>de</strong> Teófilo Otoni.)” MARTINS (1997)<br />

Atualmente, o garimpo é fiscalizado pela Polícia Florestal, que atua<br />

ocasionalmente apreen<strong>de</strong>ndo motores e, muitas vezes, pren<strong>de</strong>ndo os reinci<strong>de</strong>ntes.<br />

Em Monsenhor Horta, este ambiente <strong>de</strong> tensão exige uma organização complexa e<br />

um alto grau <strong>de</strong> cooperação entre os garimpeiros, objetivando burlar as leis e manter<br />

a clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>. Consolidou-se entre os garimpeiros e a comunida<strong>de</strong> uma<br />

cumplicida<strong>de</strong> que faz com que todos os garimpos sejam informados da presença<br />

<strong>de</strong>sse órgão na região. Em t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> maior concentração <strong>de</strong> garimpeiros, um <strong>de</strong>les<br />

atua como vigia; com motocicleta, percorre a estrada <strong>de</strong> acesso ao distrito,<br />

recebendo por esta função a mesma porcentag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ouro atribuída aos <strong>de</strong>mais.<br />

Outros meios também utilizados com o mesmo intuito são a queima <strong>de</strong> fogos <strong>de</strong><br />

artifício, e o uso <strong>de</strong> telefones celulares. Esta solidarieda<strong>de</strong> é estimulada, na região,<br />

pelo caráter mais fixo da ativida<strong>de</strong>, que favorece o estabelecimento <strong>de</strong> vínculos<br />

107


estáveis e duradouros, necessários à cristalização <strong>de</strong>stes mo<strong>de</strong>los tradicionais <strong>de</strong><br />

ativida<strong>de</strong>. No entanto, esta cumplicida<strong>de</strong> é um fato recente na região; segundo<br />

alguns garimpeiros, na época <strong>em</strong> que o garimpo era exclusivamente manual, tal fato<br />

não ocorria, como <strong>de</strong>monstra o experiente garimpeiro Gustavo:<br />

“Garimpeiro nunca foi unido. Agora é que tá unido, garimpeiro não<br />

tinha união não, um vez eu fui multado aí o cara viu primeiro que eu e<br />

veio para ver a polícia me pegar, não tinha união né. Garimpeiro não<br />

tinha união. Pegava ele lá, o cara vinha para ver a polícia pegar o outro<br />

companheiro. Eu mesmo fui pego ai <strong>de</strong>sprevenido, o cara escon<strong>de</strong>u para<br />

ver a polícia me pegar, atualmente nós somos mais unidos. Às vezes a<br />

gente fica sabendo quando eles v<strong>em</strong>, porque s<strong>em</strong>pre t<strong>em</strong> um camarada,<br />

t<strong>em</strong> uns policiais camaradas. O cara não quer ver você preso. T<strong>em</strong> muito<br />

polícia que é camarada”<br />

Como <strong>em</strong> toda ativida<strong>de</strong> do setor informal, a sonegação fiscal é uma regra no<br />

garimpo. Assim, a ativida<strong>de</strong> garimpeira é reprimida tanto por ser <strong>de</strong>gradadora do<br />

meio ambiente, como por fazer parte do setor informal, não participando da<br />

arrecadação tributária do Estado.<br />

O que se percebe é que todos os garimpeiros reclamam da atuação da polícia<br />

na região. Estas reclamações se refer<strong>em</strong> principalmente ao tipo <strong>de</strong> abordag<strong>em</strong><br />

realizada, particularmente após o início da mecanização, como explica mais uma<br />

vez o Sr. Gustavo:<br />

“Hoje melhorou, porque no começo aí, a polícia vinha para <strong>de</strong>struir,<br />

dando tiro né, passando o t<strong>em</strong>po eles viram que o garimpeiro não era o<br />

bicho que eles pintavam né. Eles achavam que o garimpeiro tava<br />

armado, que ia enfrentar a polícia com arma, eles vinham para quebrar<br />

mesmo. Não tinha chance <strong>de</strong> ficar nada não, hoje não, hoje eles estão<br />

mais calmo com a gente. Agora, antes dos motores eles não amolavam<br />

não.”<br />

O que muitas vezes acontece é a não compreensão, por parte dos<br />

garimpeiros, dos reais motivos pelos quais o garimpo é ilegal. Definitivamente, a<br />

questão ambiental não se constitui um verda<strong>de</strong>iro probl<strong>em</strong>a para eles, assim como<br />

os riscos causados pela utilização do mercúrio, como <strong>de</strong>monstra o garimpeiro Totó:<br />

108


“às vezes eles falam assim por ex<strong>em</strong>plo, que eles v<strong>em</strong> alegando tal certa<br />

<strong>de</strong>gradação <strong>de</strong> ambiente e às vezes a gente acaba reconhecendo que na<br />

hora está tendo, t<strong>em</strong> sim <strong>de</strong>gradação do meio ambiente com certeza mas<br />

às vezes na hora acaba tendo mas então tudo é uma questão <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po<br />

por ex<strong>em</strong>plo se você está trabalhando hoje num certo local por ex<strong>em</strong>plo<br />

a marg<strong>em</strong> <strong>de</strong> um rio aí quando chega o mês da chuva eu posso fazer<br />

aquele buraco ali, quando chegar o mês da chuva aquilo ali tampa<br />

tudo.”<br />

Argumento como este do senhor Gustavo é típico <strong>de</strong> um garimpeiro revoltado por<br />

ver o seu trabalho ser perseguido pela polícia, s<strong>em</strong> enten<strong>de</strong>r a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal<br />

ação:<br />

“Eles <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> pegar um assaltante que tá roubando aí, um assassino<br />

para po<strong>de</strong>r pegar o garimpeiro, né? Que tá aí ganhando o pão <strong>de</strong> cada<br />

dia aí, acontece isso.”<br />

A ação da polícia gera um sentimento <strong>de</strong> revolta, compartilhado por todos,<br />

principalmente nos momentos <strong>em</strong> que chega e apreen<strong>de</strong> os motores. Muitas vezes<br />

alguns grupos, durante a escolha do local da extração, já levam <strong>em</strong> conta o caráter<br />

ilegal, optando pelas áreas <strong>de</strong> mais difícil acesso.<br />

Na região <strong>de</strong> Monsenhor Horta, alguns grupos escolh<strong>em</strong> trabalhar <strong>em</strong><br />

terrenos <strong>de</strong> companhias que exploram carvão mineral. Esta escolha é justificada<br />

pela inexistência da porcentag<strong>em</strong> obrigatória para o dono do terreno, além <strong>de</strong> maior<br />

segurança, pois segundo eles, essas companhias também realizam uma ativida<strong>de</strong><br />

clan<strong>de</strong>stina e não teriam o interesse <strong>em</strong> <strong>de</strong>nunciá-los. No entanto, a perseguição<br />

passa a ser não somente da Polícia, mas também dos próprios vigias <strong>de</strong>stas<br />

<strong>em</strong>presas. Conforme alguns garimpeiros, esses vigias são <strong>de</strong>latores e exerc<strong>em</strong> uma<br />

enorme pressão para que eles saiam dos terrenos; muitos <strong>de</strong>nunciam os garimpeiros<br />

à Policia, s<strong>em</strong> maiores danos às <strong>em</strong>presas.<br />

109


4.5. As Relações <strong>de</strong> Confiança na Ativida<strong>de</strong> Garimpeira<br />

No garimpo a confiança t<strong>em</strong> uma importância fundamental. Ela é, s<strong>em</strong><br />

dúvida, um dos fatores estruturantes das relações sociais no trabalho. Muitas vezes,<br />

sua necessida<strong>de</strong> faz com que a ativida<strong>de</strong> se organize <strong>em</strong> grupos familiares, como<br />

tentativa <strong>de</strong> diminuir o sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança tão presente nessa ativida<strong>de</strong>. As<br />

próprias características da ativida<strong>de</strong> faz<strong>em</strong> com que as relações <strong>de</strong> confiança<br />

adquiram esta importância tão fundamental: ilegalida<strong>de</strong>, ausência das garantias da<br />

regulamentação estatal e produto do trabalho extr<strong>em</strong>amente valioso. A ausência <strong>de</strong><br />

garantias formais <strong>de</strong> direito faz com que toda a ativida<strong>de</strong> se estruture no sentido <strong>de</strong><br />

estabelecer re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> confiança <strong>de</strong> natureza <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente personalizadas. Nesta<br />

re<strong>de</strong>, estão todos os envolvidos direta e indiretamente na extração: o fazen<strong>de</strong>iro, que<br />

ilegalmente permite a extração <strong>em</strong> suas terras e recebe uma porcentag<strong>em</strong> do ouro<br />

extraído, o comprador <strong>de</strong> ouro que leva o mercúrio para os garimpeiros, e a<br />

comunida<strong>de</strong>, que informa aos garimpeiros a chegada da polícia na cida<strong>de</strong>.<br />

Os grupos <strong>de</strong> garimpo <strong>em</strong> Monsenhor Horta normalmente são formados <strong>de</strong> 3<br />

a 4 irmãos ou parentes próximos, que contratam informalmente outros trabalhadores.<br />

Segundo o garimpeiro Totó, o garimpo:<br />

“Se trata <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> praticamente familiar, porque você vê que<br />

entre irmão é uma coisa que como se diz que garimpo dá muito<br />

<strong>de</strong>sentendimento porque às vezes uma pessoa trabalha mais que a outra,<br />

outra já fica mais na mordomia e é um tipo <strong>de</strong> coisa que não funciona<br />

assim. Então por ex<strong>em</strong>plo com meu irmão já está tudo combinado, ah não<br />

então vamos trabalhar juntos porque já que é uma ativida<strong>de</strong> <strong>em</strong> grupo<br />

vamos fazer todo mundo junto, é uma certa confiança a mais né? Porque<br />

se é da família se é meu irmão eu não acho que ele vai querer me dar um<br />

tombo <strong>de</strong> todo tamanho”<br />

Em alguns casos, as condutas cotidianas são referências na escolha dos<br />

trabalhadores. Em uma nítida tentativa <strong>de</strong> diminuir as contingências naturais <strong>de</strong> uma<br />

110


seleção <strong>de</strong> trabalhadores, são escolhidos aqueles que, nas palavras dos donos <strong>de</strong><br />

garimpo, não possu<strong>em</strong> vícios, ou são, reconhecidamente, <strong>de</strong> confiança. O garimpeiro<br />

Totó, dono <strong>de</strong> um garimpo, explica o que leva <strong>em</strong> conta no processo <strong>de</strong> seleção no<br />

seu garimpo, on<strong>de</strong> a confiança é um dos el<strong>em</strong>entos fundamentais.<br />

“Às vezes você já conhece a pessoa e sabe se ela é <strong>de</strong> confiança ou não. E<br />

agora muitas vezes acontece <strong>de</strong> você já ter visto ou ter visto falar que<br />

fulano fez isso e isso, ah não, fulano pegou isso e isso <strong>de</strong> mim, ah não,<br />

essa pessoa esteve aqui roubou tanto <strong>de</strong> ouro meu, ah não, essa pessoa<br />

esteve aqui mas teve um <strong>de</strong>slize <strong>de</strong> ouro assim e assim. Então é um tipo <strong>de</strong><br />

coisa chata, então todo serviço t<strong>em</strong> que ter uma confiança. Então por<br />

ex<strong>em</strong>plo você pega uma pessoa lá e ele é <strong>de</strong> confiança, ele é bom <strong>de</strong><br />

serviço? Ah não, então eu faço questão que ele não trabalhe comigo né?<br />

É uma coisa assim como se diz né mesmo que a pessoa... não adianta a<br />

pessoa ser boa <strong>de</strong> serviço e ter um certo <strong>de</strong>feito porque acho que esse<br />

negócio não funciona <strong>de</strong> que qu<strong>em</strong> rouba mais faz, não t<strong>em</strong> jeito. Então a<br />

pessoa t<strong>em</strong> que fazer e ser honesta.”<br />

No entanto, tais precauções não evitam os conflitos. Estes se dão entre grupos<br />

<strong>em</strong> função das priorida<strong>de</strong>s do terreno <strong>de</strong> extração. As disputas são comuns entre os<br />

garimpeiros e os compradores <strong>de</strong> ouro, que s<strong>em</strong>pre pagam um preço muito abaixo<br />

do mercado, e <strong>em</strong> alguns casos, entre os primeiros e os financiadores do<br />

<strong>em</strong>preendimento. Normalmente, o dono do terreno vai aos garimpos nos dias <strong>de</strong><br />

apuração para receber sua parcela na partilha. Ainda segundo Totó:<br />

“T<strong>em</strong> uns donos que ficam mais <strong>de</strong>sconfiados. Então, toda vez que o cara<br />

vai arrumar um ouro chega o final <strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana o cara vai e já está lá <strong>de</strong><br />

cima esperando pra ver quanto que vai dar, como é que é... Agora quando<br />

o cara não é <strong>de</strong>sconfiado, ele já confia mais, ele n<strong>em</strong> esquenta a cabeça<br />

então a pessoa chega lá e fala a porcentag<strong>em</strong> foi X então o seu é tanto e<br />

pronto. Então o cara fica naquela o meu é meu e o <strong>de</strong>le é <strong>de</strong>le. Agora t<strong>em</strong><br />

outros mais <strong>de</strong>sconfiados que coloca até gente <strong>de</strong>ntro do garimpo pra<br />

acompanhar a ativida<strong>de</strong> toda. Então eu estou com o garimpo lá por<br />

ex<strong>em</strong>plo aí você é um parente ou um amigo <strong>de</strong>le e está parado então ah<br />

não eu vou trabalhar com o fulano lá pra mim saber como está indo,<br />

então fica lá.”<br />

A quebra do sentimento <strong>de</strong> confiança <strong>em</strong> relação a qualquer um dos m<strong>em</strong>bros<br />

<strong>de</strong> um grupo é o principal fator <strong>de</strong> exclusão, ou até mesmo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sestruturação do<br />

grupo. Segundo o garimpeiro Totonho:<br />

111


“O que po<strong>de</strong> vir acabar com o grupo é o dono, por ex<strong>em</strong>plo, abaixar a<br />

porcentag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ouro. Você chegar trabalhando para o cara com 5, 6 % e<br />

quando chega no fundo que t<strong>em</strong> ouro o cara abaixa para 3 %. Eu<br />

sinceramente, po<strong>de</strong> tá tirando 1 kg <strong>de</strong> ouro que eu não fico, é uma coisa<br />

muito ruim uma <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> muito gran<strong>de</strong> com o trabalhador. O cara<br />

trabalha e acha que vai ganhar dinheiro bom mas na hora não ganha o<br />

<strong>de</strong>le. Isso é uma coisa que eu não concordo mesmo.”<br />

Este sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança se manifesta diariamente no ambiente <strong>de</strong><br />

trabalho. Ele ocorre não somente <strong>em</strong> relação aos parceiros <strong>de</strong> trabalho, mas a todos<br />

os <strong>de</strong>sconhecidos que se aproxim<strong>em</strong> do garimpo, ou mesmo aos que fiqu<strong>em</strong><br />

observando <strong>de</strong> longe. Assim, qualquer carro estranho que pare e fique observando o<br />

trabalho é motivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança, e rapidamente todos quer<strong>em</strong> saber <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> é , e<br />

do que se trata. Nestes casos, o principal t<strong>em</strong>or é, com certeza, da polícia, ou <strong>de</strong><br />

algum <strong>de</strong>lator que possa vir a <strong>de</strong>nunciá-los. Os ambientalistas, pelo mesmo motivo,<br />

também são muito t<strong>em</strong>idos.<br />

Toda essa suspeita exige uma organização muito peculiar do trabalho, no<br />

sentido <strong>de</strong> evitar os roubos, outrora muito freqüentes, mas que atualmente têm<br />

diminuído, <strong>de</strong>vido às medidas para impedí-los. Estas medidas po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

recolhimento diário <strong>de</strong> todos os carpetes que contêm ouro, nunca <strong>de</strong>ixando nada <strong>de</strong><br />

valor no garimpo, como não olhar muito para a caixa e a mesa <strong>de</strong>pois dos trabalhos,<br />

evitando atrair o interesse <strong>de</strong> outros. Por tudo isso, a ativida<strong>de</strong> garimpeira, <strong>em</strong><br />

Monsenhor Horta, se <strong>de</strong>senvolve <strong>em</strong> um ambiente muito discreto. Nunca se vê os<br />

garimpeiros contando vantagens <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s achados; na verda<strong>de</strong>, quase nunca diz<strong>em</strong><br />

o quanto estão retirando <strong>de</strong> ouro. Quando se toca neste assunto, s<strong>em</strong>pre diz<strong>em</strong> uma<br />

quantida<strong>de</strong> muito menor do que realmente estão extraindo. Alguns diz<strong>em</strong> que qu<strong>em</strong><br />

fala que está extraindo muito acaba atraindo mau olhado, e é aí que não se<br />

consegue tirar nada mesmo.<br />

Luís, o dono <strong>de</strong> um garimpo, <strong>de</strong>screve como são os roubos na região:<br />

112


“Para te falar a verda<strong>de</strong> eles já me roubaram 8 carpetes. Depois <strong>de</strong> um<br />

t<strong>em</strong>po junto <strong>de</strong>les, os mesmo cara que trabalhavam comigo eles me<br />

roubaram, <strong>de</strong>pois mais 2 me roubaram neste mesmo lugar. Já chegaram a<br />

me roubar no terreiro aqui <strong>de</strong> casa 100 gramas <strong>de</strong> ouro e é tudo murado,<br />

eles tiveram que pular o muro. Agora ultimamente está difícil porque se<br />

você falar que está tirando muito ouro já fica gente <strong>de</strong> olho ainda mais<br />

nessa crise aí, se você for falar que está com 500 gramas <strong>de</strong> ouro <strong>em</strong> casa<br />

eles v<strong>em</strong> e te roubam.”<br />

Estas relações <strong>de</strong> confiança ultrapassam o ambiente <strong>de</strong> trabalho e po<strong>de</strong>m ser<br />

notadas <strong>em</strong> outros setores da vida do garimpeiro. Um ex<strong>em</strong>plo disto é quando o<br />

garimpeiro, nos momentos <strong>de</strong> baixa extração, se vê obrigado a comprar o<br />

combustível fiado. Normalmente, os comerciantes não gostam <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r a alguns<br />

garimpeiros, por <strong>de</strong>sconfiar<strong>em</strong> que não pagarão as dívidas, caso não encontr<strong>em</strong><br />

ouro. Como a expectativa da <strong>de</strong>scoberta é constante, as dívidas com combustíveis<br />

po<strong>de</strong>m ficar cada dia maiores, gerando insegurança para os comerciantes locais. Este<br />

receio é ainda maior <strong>em</strong> relação aos garimpeiros forasteiros, pois estes, caso não<br />

obtenham resultados satisfatórios, po<strong>de</strong>m simplesmente ir <strong>em</strong>bora, <strong>de</strong>ixando as<br />

dívidas. Esses forasteiros, com certeza, contribu<strong>em</strong> para fortalecer a visão pejorativa<br />

dos comerciantes locais <strong>em</strong> relação aos garimpeiros.<br />

113


Discussão final<br />

Neste trabalho buscou-se <strong>de</strong>monstrar as mudanças ocorridas no mundo do<br />

trabalho garimpeiro, principalmente a partir da década <strong>de</strong> 80, partindo <strong>de</strong> um estudo<br />

<strong>de</strong> caso concentrado no Distrito <strong>de</strong> Monsenhor Horta/Mariana/MG. Verificou-se que<br />

as mudanças institucionais, organizacionais e técnicas tiveram um papel<br />

fundamental na reestruturação da ativida<strong>de</strong> garimpeira, fazendo com que ela se<br />

organize, hoje, <strong>de</strong> uma maneira totalmente diferente. Também se tentou <strong>de</strong>monstrar<br />

que toda a instabilida<strong>de</strong> institucional a que o garimpo <strong>de</strong> ouro s<strong>em</strong>pre esteve<br />

submetido na história do Brasil foi o el<strong>em</strong>ento chave para a reestruturação <strong>de</strong> sua<br />

organização. As mudanças incidiram sobre as novas formas <strong>de</strong> organização, a<br />

divisão do trabalho, e o conhecimento da ativida<strong>de</strong>, ou seja, modificaram<br />

substancialmente toda a estrutura do métier <strong>de</strong> garimpeiro.<br />

Retroce<strong>de</strong>ndo aos objetivos iniciais <strong>de</strong>ste trabalho, po<strong>de</strong>-se afirmar que as<br />

mudanças no métier <strong>de</strong> garimpeiro estão diretamente relacionadas com todo o<br />

contexto institucional que é extr<strong>em</strong>amente contingente, tanto quanto o ambiente <strong>de</strong><br />

trabalho do garimpo. Esse contexto, ora proibindo, ora favorecendo o garimpo<br />

artesanal, s<strong>em</strong>pre gerou e continua gerando um gradiente <strong>de</strong> incertezas quanto ao<br />

futuro <strong>de</strong>sta tradicional ativida<strong>de</strong>. Por conseguinte, o garimpo se mantém na<br />

clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> e ainda submetido a uma legislação confusa e com níveis <strong>de</strong><br />

exigências para a regulamentação incompatíveis com a sua realida<strong>de</strong>. A legalização<br />

<strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> esbarra s<strong>em</strong>pre na burocracia do Estado, uma vez que os<br />

terrenos, on<strong>de</strong> são realizadas as extrações, são áreas já requeridas junto ao DNPM<br />

por gran<strong>de</strong>s <strong>em</strong>presas. Estas, por não se interessar<strong>em</strong> pelas áreas <strong>de</strong> pequenas<br />

jazidas, abr<strong>em</strong> espaço a estes pequenos <strong>em</strong>preendimentos.<br />

114


Utilizando o conceito <strong>de</strong> competência, gestado <strong>de</strong>ntro da sociologia do<br />

trabalho e tradicionalmente associado ao trabalho industrial, tentou-se mostrar que<br />

este conceito é também eficiente para enten<strong>de</strong>r o trabalhador artesão e os<br />

profissionais <strong>de</strong> métier. À propósito, acredita-se que a construção do conceito <strong>de</strong><br />

competência t<strong>em</strong> como referência muito mais o trabalhador <strong>de</strong> métier que o<br />

trabalhador <strong>de</strong> “chão <strong>de</strong> fábrica”. Dentro <strong>de</strong>sta perspectiva, o conhecimento se<br />

tornou, neste trabalho, uma categoria fundamental para a compreensão do mundo do<br />

garimpo. Recorreu-se também à sociologia fenomenológica <strong>de</strong> Alfred Schutz para<br />

<strong>em</strong>basar a compreensão sobre a construção do saber do garimpeiro no mundo <strong>de</strong> sua<br />

vida cotidiana.<br />

Nesta perspectiva, pô<strong>de</strong>-se perceber que os princípios associados à ativida<strong>de</strong><br />

garimpeira, tais como “sorte”, “trabalhar no escuro”, ou mesmo o caráter totalmente<br />

aleatório do garimpo - expressões comumente associadas à garimpag<strong>em</strong> e<br />

confirmadas pelos próprios garimpeiros - na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> um cabedal <strong>de</strong><br />

conhecimentos e habilida<strong>de</strong>s disponível somente aos diretamente envolvidos na<br />

ativida<strong>de</strong>. Ou seja, tentou-se <strong>de</strong>monstrar que o conhecimento das “manhas do<br />

ofício”, a sorte, as habilida<strong>de</strong>s e o saber-fazer que compõ<strong>em</strong> o métier <strong>de</strong> garimpeiro<br />

são uma construção social, e esta não está disponível, <strong>de</strong> forma paritária, a todos os<br />

envolvidos na ativida<strong>de</strong> ou àqueles que preten<strong>de</strong>m se integrar a ela.<br />

É neste sentido que se po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o garimpeiro competente como aquele<br />

trabalhador virtuoso, que se <strong>de</strong>staca no grupo como o mais hábil, ou seja, aquele que<br />

melhor navega neste ambiente <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a contingência: o garimpo <strong>de</strong> ouro. Assim,<br />

aponta-se para a eficácia <strong>de</strong> associar o conceito <strong>de</strong> competência, b<strong>em</strong> como o das<br />

habilida<strong>de</strong>s construídas no trabalho, com a construção social do conhecimento,<br />

enfatizado pela fenomenologia <strong>de</strong> Alfred Schutz.<br />

115


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119


ANEXOS<br />

120


ROTEIRO PARA ENTREVISTA NOS GARIMPOS DE MONSENHOR HORTA<br />

Questões <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação.<br />

1. Qual o seu nome?<br />

2. Sua ida<strong>de</strong>?<br />

3. Escolarida<strong>de</strong>?<br />

4. On<strong>de</strong> nasceu?<br />

5. On<strong>de</strong> mora?<br />

6. T<strong>em</strong>po <strong>de</strong> garimpo?<br />

7. Ativida<strong>de</strong>s anteriores antes <strong>de</strong> trabalhar no garimpo?<br />

8. O senhor já trabalhou <strong>em</strong> garimpos <strong>em</strong> outras regiões? Se sim, quais as<br />

diferenças mais notáveis que o senhor observa?<br />

9. Possui outra ativida<strong>de</strong> além do garimpo? Qual?<br />

10. O que levou o senhor a trabalhar no garimpo? V<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong><br />

garimpeiros?<br />

11. O senhor gosta <strong>de</strong> trabalhar no garimpo? Gostaria <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>?<br />

Porque?<br />

12. Quantas horas trabalha por dia?<br />

Sobre as técnicas e a divisão do trabalho.<br />

13. Descreva a ativida<strong>de</strong> como é feita atualmente? Quais as funções que exist<strong>em</strong> no<br />

garimpo?<br />

14. Quais o senhor exerce?<br />

15. Na opinião do senhor qual fase da ativida<strong>de</strong> exige mais habilida<strong>de</strong>s?<br />

16. Como é o relacionamento dos garimpeiros <strong>de</strong>ntro da cava? O senhor prefere<br />

trabalhar <strong>em</strong> parceria direta com alguém? (pergunta para os jateadores e os<br />

maraqueiros)<br />

17. Qual das fases da ativida<strong>de</strong> o senhor mais gosta <strong>de</strong> realizar? Porque?<br />

Sobre a gestão.<br />

121


18. Você se consi<strong>de</strong>ra <strong>em</strong>pregado <strong>de</strong> alguém? Descreva a sua relação com o dono do<br />

garimpo.<br />

19. Como o senhor veio trabalhar neste garimpo, como foi selecionado? (caso seja o<br />

dono: como o senhor seleciona os garimpeiros para trabalhar para o senhor?)<br />

20. Quais são as principais qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um garimpeiro? O que o senhor i<strong>de</strong>ntifica<br />

<strong>em</strong> um garimpeiro para o consi<strong>de</strong>ra-lo um bom trabalhador?<br />

21. Porque os garimpos normalmente são formados por grupos familiares?<br />

22. O senhor segue rigorosamente as <strong>de</strong>terminações estabelecida pelo dono do<br />

garimpo?<br />

23. O senhor prefere que ele esteja presente o t<strong>em</strong>po todo na cava?<br />

24. O senhor acha que o dono do garimpo possui um maior conhecimento da<br />

ativida<strong>de</strong> que o senhor?<br />

25. Como é a sua relação com o dono do garimpo? O que o senhor consi<strong>de</strong>ra que<br />

seja um bom patrão? O que ele não <strong>de</strong>ve fazer que seria inaceitável para o<br />

senhor?<br />

R<strong>em</strong>uneração<br />

26. Explique como é feita a divisão do produto?<br />

27. Qual a porcentag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ouro cabe ao senhor na extração?<br />

28. Quanto o senhor apura <strong>em</strong> média s<strong>em</strong>analmente no garimpo?<br />

29. O senhor acha razoável esta divisão?<br />

30. Qual a porcentag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ouro cabe ao dono do garimpo? E ao dono do terreno?<br />

31. O senhor acha que esta divisão é melhor que receber um salário fixo?<br />

Relações <strong>de</strong> trabalho<br />

32. Como é o relacionamento dos garimpeiros com os donos do terreno?<br />

33. Como é o relacionamento entre os garimpeiros, <strong>de</strong>ntro e fora do garimpo?<br />

34. O senhor gostaria <strong>de</strong> possuir um garimpo? (motores)<br />

122


35. Qual o fato que faria com que um garimpeiro fosse excluído do grupo? (o que ele<br />

po<strong>de</strong> e o que ele não po<strong>de</strong> fazer. Liberda<strong>de</strong>?)<br />

36. Exist<strong>em</strong> roubos no garimpo? O que é feito para evita-los?<br />

37. O senhor t<strong>em</strong> filhos? Eles trabalham no garimpo? Estudam?<br />

38. O senhor gostaria que seu filho seguisse a sua profissão?<br />

39. O que para o senhor é bom e o que é ruim no garimpo?<br />

40. Na opinião do senhor, o que faz as pessoas trabalhar<strong>em</strong> no garimpo? (trabalho<br />

por conta própria, liberda<strong>de</strong>, jogo (quando parar), vilão)<br />

41. O que os garimpeiros faz<strong>em</strong> quando não estão garimpando? Lazer?<br />

42. Quando o garimpo para, seja pela chuva ou mesmo pela falta <strong>de</strong> ouro, como os<br />

garimpeiros faz<strong>em</strong> para obter dinheiro?<br />

43. Como é o relacionamentos dos garimpeiros <strong>de</strong> Monsenhor Horta com os<br />

garimpeiros que vê<strong>em</strong> <strong>de</strong> outras regiões?<br />

Conhecimentos da ativida<strong>de</strong>. (imaginário)<br />

44. O senhor conhece muitos garimpeiros daqui que foram para outras regiões? O<br />

senhor já foi garimpar <strong>em</strong> outras regiões?<br />

45. O senhor sabe, mais ou menos, quando o garimpo <strong>em</strong> Monsenhor Horta passou a<br />

utilizar os motores? E porque o senhor acha que a ativida<strong>de</strong> passou a ser feita<br />

com eles?<br />

46. O senhor trabalhou antes dos motores? Se a resposta for sim: <strong>de</strong>screva como era<br />

a ativida<strong>de</strong> antes da chegada dos motores.<br />

47. O garimpo, <strong>de</strong>pois da introdução dos motores, melhorou ou piorou para o<br />

senhor? Porque? (o que melhorou e o que piorou?)<br />

48. O que o senhor acha que mudou na ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois dos motores?<br />

49. Como é o processo <strong>de</strong> venda do ouro? A quanto o senhor ven<strong>de</strong> o grama? A<br />

qu<strong>em</strong>?<br />

50. O senhor acredita que t<strong>em</strong> alguns garimpeiros t<strong>em</strong> mais conhecimento da<br />

ativida<strong>de</strong> do que outros?<br />

123


51. O senhor acha que t<strong>em</strong> alguns que possui mais sorte na extração? Porque?<br />

52. Como o senhor i<strong>de</strong>ntifica o lugar que t<strong>em</strong> mais possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar ouro?<br />

Com são estes lugares?<br />

53. O senhor possui crenças, já teve sonho dos locais on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>sse encontrar ouro?<br />

Qual foi o resultado?<br />

54. O que para o senhor é mais importante para se encontrar ouro? (caráter subjetivo<br />

dos possíveis lugares)<br />

55. Qual a importância do ouro na sua vida? Por que a busca <strong>de</strong>ste metal? somente<br />

pelo que ele vale?<br />

56. Existe alguém que orienta o senhor na abertura <strong>de</strong> uma cava? Como esta pessoa<br />

sabe dos lugares mais prováveis da ocorrência?<br />

57. Durante a abertura da cava, quando o senhor i<strong>de</strong>ntifica está no lugar on<strong>de</strong> existe<br />

maior probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar o ouro. Existe algum material que o senhor<br />

associa ao ouro?<br />

58. O senhor acredita que <strong>de</strong> repente po<strong>de</strong> achar uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro e<br />

mudar a sua vida?<br />

59. O que faria se encontrasse um bom veio?<br />

60. Como o senhor apren<strong>de</strong>u a garimpar? Qu<strong>em</strong> ensinou para o senhor os truques da<br />

ativida<strong>de</strong>?<br />

Fiscalização<br />

61. Como é o relacionamento dos garimpeiros com os órgãos fiscalizadores? (Polícia<br />

Florestal)<br />

62. Como os garimpeiros faz<strong>em</strong> para evitar a ação dos órgãos fiscalizadores? Existe,<br />

ou já existiu alguma organização visando evitar a ação dos policiais?<br />

63. Caso os motores sejam apreendidos como é o processo <strong>de</strong> liberação?<br />

64. Existe algum acordo informal com os policiais?<br />

65. Os políticos (prefeito, vereadores etc) ajudam na proteção da ativida<strong>de</strong>? Como é<br />

o relacionamento dos garimpeiros com os políticos?<br />

124


Quadro 2:<br />

Principais riscos e efeitos a saú<strong>de</strong> específica segundo as etapas do processo <strong>de</strong> trabalho<br />

e outros agentes e efeitos para a saú<strong>de</strong> relacionada com o processo <strong>de</strong> trabalho. 39<br />

Etapas do processo<br />

<strong>de</strong> trabalho<br />

1ºfase: Escolha do<br />

terreno<br />

preparo da infra<br />

estrutura dos locais <strong>de</strong><br />

garimpo e <strong>de</strong> moradia.<br />

2ºfase:<strong>de</strong>smonte<br />

hidráulico <strong>de</strong><br />

barrancos.<br />

3ºfase: concentração<br />

<strong>de</strong> ouro e processo <strong>de</strong><br />

amalgamação, e<br />

queima do material<br />

amalgamado.<br />

Principais tipos <strong>de</strong><br />

agentes etiológicos <strong>de</strong><br />

risco<br />

Tocos e gravetos;<br />

Pás, picaretas e<br />

foices;<br />

Ruídos <strong>de</strong> motoserras.<br />

Ruídos <strong>de</strong> bomba<br />

hidráulica;<br />

Esforço físico<br />

excessivo;<br />

Óleos e graxas;<br />

Solventes;<br />

Desmoronamento.<br />

Ruídos <strong>de</strong> bomba<br />

hidráulica;<br />

Queda;<br />

Exposição ao<br />

mercúrio;<br />

Corte por pás <strong>de</strong><br />

moinhos;<br />

Pó <strong>de</strong> rochas;<br />

Exposição ao fogo;<br />

Exposição a gases<br />

e vapores;<br />

Exposição<br />

excessiva aos<br />

vapores <strong>de</strong><br />

mercúrio.<br />

125<br />

Efeitos específicos<br />

para a saú<strong>de</strong><br />

Lesões<br />

traumáticas;<br />

Sur<strong>de</strong>z;<br />

Lesão por vibração<br />

excessiva;<br />

Tétano;<br />

Sur<strong>de</strong>z;<br />

Lombardias e<br />

artrose da coluna<br />

vertebral;<br />

Lesões<br />

traumáticas;<br />

Lesões por<br />

vibrações<br />

excessiva;<br />

Dermatoses<br />

ocupacionais;<br />

Câncer <strong>de</strong> pele.<br />

Sur<strong>de</strong>z<br />

Lesões traumáticas<br />

Intoxicação por<br />

mercúrio;<br />

Lesão ocular por<br />

corpos estranhos;<br />

Dermatoses<br />

ocupacionais.<br />

Queimaduras;<br />

Intoxicação por<br />

gases;<br />

Intoxicação<br />

mercurial.<br />

Outros agentes e<br />

efeitos gerais para a<br />

saú<strong>de</strong> relacionados<br />

com o processo <strong>de</strong><br />

trabalho.<br />

Agentes biológicos.<br />

Malária;<br />

Tuberculose;<br />

Leishmaniose;<br />

Doenças<br />

sexualmente<br />

transmissíveis;<br />

Hanseníase;<br />

Verminose;<br />

Enfermida<strong>de</strong>s<br />

digestivas.<br />

Agentes ergonômicos.<br />

Lombardias;<br />

Lesões ostearticulares.<br />

Agentes físicos.<br />

Lesões por<br />

<strong>de</strong>sconforto térmico;<br />

Lesões por<br />

exposição excessiva<br />

ao sol.<br />

Agentes psicossociais.<br />

Violência física e<br />

mental;<br />

Alcoolismo;<br />

Dependência <strong>de</strong><br />

drogas.<br />

39 Adaptado <strong>de</strong>: CÂMARA, Voney <strong>de</strong> M. e COREY, Germám. O caso dos garimpos <strong>de</strong> ouro no Brasil,<br />

Metepec, Estado do México, México, 1992. (P. 132)


FOTOS<br />

126

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