O CHEIRO DO RALO
O CHEIRO DO RALO
O CHEIRO DO RALO
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O cheiro do ralo<br />
FICHA TÉCNICA<br />
Brasil, 2006, 95 min.<br />
Diretor: Heitor Dhalia.<br />
Roteiristas: Marçal Aquino e Heitor Dhalia.<br />
Produção Executiva: Matias Mariani, Marcelo Doria, Rodrigo Teixeira.<br />
Produzido por: Heitor Dhalia, Joana Mariani, Marcelo Doria, Matias Mariani, Rodrigo<br />
Teixeira em associação com Lula Franco, Patrick Siaretta, Selton Mello.<br />
Empresas Produtoras: Geração Conteúdo, Primo Filmes, RT Features em associação<br />
com Branca Filmes, Tristero Filmes, TeleImage, Sentimental Filmes e Mundo Cane<br />
Filmes.<br />
Fotografia: José Roberto Eliezer, a.b.c..<br />
Música: Apollo Nove.<br />
Elenco: Selton Mello, Paula Braun, Lourenço Mutarelli, Fabiana Gugli, Mario<br />
Shoemberger, Martha Meola, Flávio Bauraqui, Suzana Alves, entre outros.<br />
SINOPSE:<br />
Ambientado em São Paulo, O Cheiro do ralo conta a história de Lourenço (Selton<br />
Mello), dono de uma loja que compra objetos usados. Dada a natureza de seu negócio,<br />
Lourenço acaba por desenvolver um jogo perverso com seus clientes. Aos poucos, o<br />
personagem troca a frieza pelo prazer que sente aos explorar seus clientes, que sempre<br />
atravessam um momento de dificuldade financeira. A história mostra uma galeria<br />
diversificada de personagens que recorrem a Lourenço, constituindo uma crônica<br />
urbana sobre os limites da dignidade humana. Esse relacionamento é pontuado sempre<br />
por um humor que beira o cinismo. Lourenço vê o mundo como um lugar onde as<br />
pessoas, assim como os objetos usados, estão à venda, de preferência por um preço vil.<br />
No fundo, ele vislumbra esses personagens como um grande catálogo humano,<br />
identificando-os a partir de uma característica ou do objeto que lhe é oferecido –<br />
exemplos: “a noiva”, “a viciada”, “o homem do gramofone” etc. Porém, esse processo<br />
de coisificação do mundo é colocado em cheque no momento em que Lourenço se vê<br />
obrigado a se relacionar, usando uma moeda que deixou de lado há muito tempo: o<br />
afeto. E seu conturbado mundo interior entre em choque de forma definitiva como o<br />
mundo real. Perturbado pelo simbólico e fedorento cheiro do ralo que existe na loja,<br />
Lourenço é colocado em confronto com o universo e personagens que julgava controlar<br />
(sinopse extraída de www.ocheirodoralo.com.br).<br />
Entre o amor e a mercadoria<br />
O filme de Heitor Dhalia, O cheiro do ralo, é impressionante, é forte, é brilhante, é<br />
político. A trama se desenvolve como se segue. A personagem de Lourenço (Selton<br />
Melo) é um negociante de quinquilharias que lucra quanto maior for a necessidade dos<br />
outros, exatamente como fazem os bancos, os agiotas, os oportunistas. No início de sua<br />
profissão, ele “entrava” na história das pessoas, que pareciam querer vender seus
objetos juntamente com sua relação afetiva, juntamente com sua história, com o<br />
significado pessoal que aqueles objetos representavam. Lourenço, como ele próprio diz,<br />
logo se apercebeu que a lógica de seu ofício (lucrar o máximo possível) ensinou-o a não<br />
considerar o drama pessoal do vendedor e dissociar o objeto de seu valor sentimental,<br />
embora seus conflitos e seu modo de vida mostrassem que para ele essa não era uma<br />
tarefa muito fácil. Os vendedores conseguiam inverter o ônus moral do negócio: eram<br />
eles que estavam dispondo do que lhes era mais caro, de um valor pessoal com imenso e<br />
íntimo significado em nome de uma carência econômica, se mostrando como vítimas da<br />
necessidade, e deixando parte de suas vidas nas mãos de um frio comerciante, embora<br />
fosse este mesmo comerciante quem deveria depositar a culpa integral pela exploração<br />
dos sentimentos e necessidades alheias.<br />
Como notamos pela trama, Lourenço nunca conseguiu realizar adequadamente seu<br />
ofício, mesmo tendo sido bem sucedido nos negócios. Aparentemente, as histórias<br />
pessoais das quais queria se livrar, embora fazendo de sua vida um depósito delas, o<br />
perseguiam obsessivamente, tal como a figura inventada de seu próprio pai, o uso da<br />
percepção alheia por um objeto inanimado (o olho que via para outrem), a construção<br />
paterna por próteses, a fixação em nádegas separadas da mulher etc. Quanto mais se<br />
esforçava para manter separadas as várias instâncias desintegradas de sua vida, mais ele<br />
se dividia, mais perdia o contato com a realidade de todas elas.<br />
A questão central do drama, assim, é a de um personagem que tem seu mundo<br />
imerso em uma confusão de valores dissociados, os quais não consegue integrar. Sua<br />
vida não perfaz uma unidade, mas uma fragmentação conflituosa que joga uma parte de<br />
si mesmo contra a outra. Mais que um caso patológico, Lourenço representa uma forma<br />
de vida paradigmática em nossa cultura capitalista atual, que desintegra a personalidade<br />
dos indivíduos, unificando-as e reduzindo-as à forma predominante do comercial, do<br />
econômico, recobrindo com um manto de racionalidade desejos, sentimentos,<br />
percepções, objetivos, muitos impulsos díspares que tomados no conjunto são<br />
irracionais.<br />
A trama desenvolve-se na evidência do conflito entre a lógica econômica e as<br />
necessidades humanas (manifestadas pelas aspirações, fantasias, imaginação, desejos,<br />
ideais, histórias, vivências, experiências etc), isto é, na não redução simples e pacífica<br />
de uma dimensão à outra.<br />
Para caber na lógica econômica como lógica dominante nas relações, muito da vida<br />
humana tem que ir para debaixo do tapete, para longe do papel representado<br />
socialmente, do apresentável, do que pode ser atraente ao consumo, do representável<br />
como normal e desejável, embora dessa instância escondida emane sofrimento não<br />
contido, demências, imoralidades, crimes, vícios, vendas e compras escusas, cheiros<br />
indesejáveis vindo dos corpos e dos ralos.<br />
É isso o que liga o cheiro do ralo, a bunda da garçonete, a caixinha de música<br />
estúpida: esses fragmentos de vida não se integram em uma personalidade que morre<br />
buscando a unidade entre o que deve ser amado, o que pode ser negociado, o que deve<br />
ser vivenciado, o que não pode ser somente representado. A vida de Lourenço se passa<br />
como em um sonho impotente, cheio de imagens desgarradas, tecida em elos muito<br />
precários e com um preço, este sim, excessivamente alto. Coisas ocorrem, sensações e<br />
sentimentos se mesclam, sem que possa distingui-los e significá-los a partir de uma<br />
identidade. Pagar muito para chorar sobre nádegas e morrer aspirando o cheiro de<br />
esgoto que fez parte de sua vida negada é o que faz Lourenço, e a todos nós, sermos<br />
humanos; é o que nos faz buscar uma humanidade que não encontra espaço para existir<br />
entre tantos objetos curiosos e tantas histórias emotivamente venais.
A moralização do mundo pelo direito<br />
Podemos afirmar, com a leitura que fizemos da trama do filme, que a confusão<br />
de instâncias e significados em nossa vida quotidiana indica uma patologia coletiva,<br />
mesmo sendo entendida como uma patologia individual. Geralmente, todo desvio da<br />
normalidade é atribuído à responsabilidade do indivíduo, e apenas a ela, enquanto<br />
pensamos que a liberdade seja também um fenômeno exclusivamente individual.<br />
Assim, a delinqüência, a doença, a reação política, o pecado, a insubordinação, serão<br />
todos tratados por terapias que terão por fim a molécula, antes do organismo. Das<br />
políticas penais pelo Estado ao tratamento da alma pelas religiões; do tratamento dos<br />
sintomas das doenças pela medicina ao tratamento dos sintomas sociais pelo direito e<br />
pela política, todos visam à recondução à normalidade, ainda que essa normalidade seja<br />
ela mesma uma doença, não atingida pela terapia particular.<br />
É normal, portanto, que o senso comum interprete a realidade, ou veja como<br />
realidade, um mundo ambíguo, que não consegue ser compreendido com integridade,<br />
tendo aspectos irracionais transformados em aspectos racionais. Os nossos sentimentos<br />
morais, em especial o de justiça, convivem com aberrações tão grandes que somente<br />
uma visão de necessidade imperiosa, de um jeito de viver sem alternativa alguma, da<br />
compreensão do mundo como naturalmente cruel e que só nos resta a caridade, é que<br />
nos faz aquiescer e aceitar como normal todo um arranjo essencialmente desconfortável<br />
e violento. Aprendemos logo a recobrir uma complexidade muito rica e desconhecida da<br />
realidade com impulsos afetivos, o que significa recobrir de valores morais aspectos da<br />
vida e do mundo que não podem ser valorados a partir da perspectiva individual.<br />
Naturalmente, somente uma confusão cognitiva pode nos fazer afirmar que a natureza<br />
seja boa, ou que o universo tenha sido criado com bons propósitos, ou mesmo que tenha<br />
sido criado, ou que tais culturas sejam melhores que outras, ou que uma música seja<br />
alegre ou triste. Aprendemos, assim, e desde criança, em nosso esforço de racionalizar o<br />
mundo, a descrever uma realidade ou um fato de certa maneira, quando essa realidade<br />
ou fato acontece de outra maneira.<br />
Por exemplo, vejamos o que diz o Código de Ética e Disciplina da OAB, em seu<br />
art. 2º: “O advogado, indispensável à administração da justiça, é defensor do estado<br />
democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social,<br />
subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que<br />
exerce.” O enunciado do art. 44, I, da Lei nº 8.906 de 1994, o Estatuto da advocacia,<br />
afirma ideais semelhantes. Qualquer pessoa instruída consegue facilmente compreender<br />
o que significam os termos evocados na redação desses preceitos normativos, bem como<br />
o que pretendem: servir como um guia de ação, de metas a serem atingidas pelo<br />
advogado no exercício de sua profissão, mesmo que a nossa realidade tenha muito<br />
pouco do que ali se afirma como desejável. Essas metas e ideais, também, devem ser<br />
compreendidos como realizáveis num futuro indefinido, talvez longínquo. É essa<br />
indefinição de quando realizaremos os nossos ideais coletivos que nos dá certo alívio de<br />
consciência e torna suportável a aceitação de uma realidade bastante inóspita, mesmo<br />
para as mentes que não se sentem familiares e aptas para enfrentá-la. Como no discurso<br />
moralizante de forma geral, também ali na lei o objetivo maior é o de exortar os valores<br />
desejáveis, como promessas a serem cumpridas no futuro, enquanto no presente nós<br />
vamos lidando com as relações efetivas, concretas, reais, duras. Relações essas que<br />
qualquer criança, desde cedo, aprende que residem num lugar silencioso, sobre as quais
quase nunca se fala, e que se escondem na distância que existe entre o discurso que quer<br />
se tornar realidade e a realidade mesma, numa contradição flagrante, mas com<br />
freqüência dissimulada ou reduzida.<br />
Nossa interpretação da mensagem moralista vai se tornando mais complexa<br />
quando nos perguntamos se os nossos ideais não estão ali exatamente para não se<br />
tornarem reais; ou se o próprio tempo que nos permite a aceitação de uma realidade<br />
inóspita, mas à qual aprendemos a nos adaptar, é um artifício moral com o propósito<br />
preciso de dividir um mundo fácil de ser compreendido, por ser reduzido, e um mundo<br />
difícil de ser assimilado, por ser complexo; ou ainda talvez nos faça pensar num mundo<br />
obscuro, que mantemos no bastidor de nossa vida psíquica, bem como de nossa vida<br />
pública, não explícito, não consciente, não falado, mas que motiva verdadeiramente os<br />
nossos propósitos e que usa como roupagem verbalizada um discurso coerente,<br />
confortável, bem intencionado, de boa fé, embora simplista. Ao considerarmos essas<br />
questões, notamos que o mesmo art. 2º do Código de Ética e Disciplina da OAB pode<br />
assumir uma feição banal, ao ser mais uma exortação vazia às boas intenções<br />
individuais, assim como pode fomentar uma propaganda para a luta política, visando<br />
aos mártires da democracia, da virtude e da justiça, impacientes por viver num mundo<br />
imaginadamente melhor, e que vejam no apoio legal a motivação moral suficiente para<br />
botar abaixo todo o edifício institucional sofisticado erigido para proteger injustiças não<br />
naturais ou racionalmente inaceitáveis.<br />
A patologia, assim, não se dará por se assumir uma ou outra posição<br />
interpretativa, mas pelo jogo de consciência e inconsciência dos motivos da moralidade.<br />
Quanto do direito, aliás, não terá como fonte a idealização confusa de nossas relações e<br />
de nosso ser, deixando de lado a vida que não conseguiu emergir para a realidade mais,<br />
digamos, real? As obras que discutiremos nessa coluna nos ajudarão a problematizar o<br />
direito a partir dessa e de outras questões importantes, para tentarmos compreender as<br />
intensas mudanças que ocorrem em nosso mundo contemporâneo.<br />
Questões especulativas sobre o filme<br />
1) De que forma, em nossa cultura, os objetos se mesclam aos sentimentos e às<br />
nossas formas de vida? Como as pessoas também se transformam em coisas,<br />
numa cultura que tem como principal foco de nossa atenção pública a troca<br />
comercial de objetos? Como o termo “valor” estabelece no mesmo campo<br />
significativo objetos e vivências? Não é sintomático que a noção de “valor”<br />
tenha sido tomada da economia política para o uso na ética?<br />
2) O comportamento aparentemente patológico de Lourenço parece ser comum à<br />
nossa cultura: a desintegração da personalidade do indivíduo, mesclando<br />
experiências dissociadas num mesmo plano, e com isso reduzindo a vida a<br />
instâncias que não permitem redução. Por exemplo, a supremacia do econômico<br />
sobre o afetivo, sobre a moral, sobre a autonomia individual, provoca confusões<br />
cognitivas, e não simplesmente morais. Como podemos perceber essa confusão<br />
em casos não extremados, como o da personagem?<br />
3) Reduzir a vida ao econômico significa também colocar não somente objetos no<br />
lugar privilegiado de nossa atenção e desejos, mas também comportamentos,
formas de ser, formas corporais etc. Todo o resto deve sair de nosso palco da<br />
vida, palco esse elaborado e construído por quem lucra com essa atenção. Ali o<br />
cheiro do ralo não deve existir, e como existe, incomoda. Como tentamos<br />
esconder o bastidor de nossa vida? Qual o custo dessa tentativa?<br />
4) Na trama não existem inocentes. A vítima tenta vender algo muito caro em<br />
termos afetivos alegando necessidade, o comprador se aproveita da fragilidade<br />
do momento para ganhar. Ambos, entretanto, estão ligados não pela necessidade<br />
ou pobreza econômica, mas pela vida reduzida e confusa. A doença dos<br />
indivíduos não seria uma doença da cultura?