O BURRO DE NIETZSCHE ANTICRISTO Diretor: Lars Von Trier ...
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<strong>ANTICRISTO</strong><br />
<strong>Diretor</strong>: <strong>Lars</strong> <strong>Von</strong> <strong>Trier</strong><br />
O <strong>BURRO</strong> <strong>DE</strong> <strong>NIETZSCHE</strong><br />
Elenco: Willem Dafoe, Charlotte Gainsbourg.<br />
Produção: Meta Louise Foldager<br />
Roteiro: <strong>Lars</strong> von <strong>Trier</strong><br />
Fotografia: Anthony Dod Mantle<br />
Trilha Sonora: Kristian Eidnes Andersen<br />
Duração: 109 min.<br />
Ano: 2009<br />
País: Dinamarca/ Alemanha/ França/ Suécia/ Itália/ Polônia<br />
Gênero: drama<br />
Resumo: Um casal vive um drama intenso e definitivo ao experimentarem a cultura e a<br />
história humanas na pele do indivíduo, num conflito antagonizado genericamente por<br />
oposição entre sexos. Enquanto a mulher vai progressivamente perdendo as referências<br />
individuais que geralmente guiam e dão estofo ao viver particular, tal como os valores<br />
morais, a idealização da vida, a vontade de singularidade e a normalidade habitual, o<br />
homem fixa seu mundo cada vez mais na tradição, na ordem e na razão. Por um<br />
momento ambos penetram numa vivência na qual não mais reconhecerão a ordem,<br />
replicando o conflito diário entre a cultura e a natureza, perdendo a familiaridade com o<br />
mundo e, com isso, participando da vida como a mais íntima, profunda e difusa das<br />
melancolias. Como numa história sem final, uma das partes vencerá temporariamente a<br />
luta, sob os olhos da multidão indiferente que já incorporou há tempos o agudo conflito<br />
ao seu banal quotidiano, e seguirá seu cíclico caminho de mágoa, dor e desespero ao<br />
longo dos séculos.<br />
O luto da cultura<br />
1
Uma linda ária da ópera Rinaldo, composta por Handel em 1711, dá o tom da<br />
densidade e da imersão reflexiva à qual nos submeteremos logo em seguida, que não<br />
será pautada pela morte de um filho, pela inospitalidade de uma floresta, ou pela beleza<br />
aterrorizante das cenas próprias dos pesadelos. Lascia ch´io pianga começará um drama<br />
muito antigo (e não terror, como é geralmente classificado o gênero desse filme), que se<br />
desenrola desde o nascimento do homem, ou da expulsão do Éden, como se queira,<br />
sobre a relação conflituosa entre a cultura cristã e a natureza tal como é representada e<br />
vivida por aquela.<br />
O drama se desenvolve todo na relação entre um homem e uma mulher, ambos<br />
sem nome. Ele é terapeuta comportamental e ela era uma acadêmica que interrompera<br />
uma tese de doutorado sobre a violência contra as mulheres na idade média. O filho do<br />
casal cai de uma janela enquanto eles faziam sexo, o que nos fará pensar que o luto<br />
materno que se seguirá à tragédia será pela culpa promovida pelas sensações de<br />
impotência e perda. Ao contrário, como se verá mais tarde, a culpa foi por tê-lo visto<br />
morrer enquanto gozava, sem mover um músculo que não fosse pelo próprio prazer. De<br />
todo modo, a culpa da mãe não será por algum mal derivado de sua vontade; sua dor é<br />
bem mais abissal. Enquanto vê o filho cair para o alívio da vida, terrível alívio, ela<br />
estará condenada à existência pelo prazer e pelo amor, sem conseguir jamais nem o<br />
clímax existencial e nem tampouco se livrar da própria vida, tal como o burro de<br />
Nietzsche, que não consegue nem andar e nem se livrar da carga.<br />
Como o luto da mãe não se interrompe depois de longo tratamento e remédios, o<br />
marido terapeuta tentará outro método, o do enfrentamento ao medo, identificado à<br />
fobia existencial, para encarar sem fuga aquilo que a torna incapaz de reagir. Mais tarde<br />
descobriremos que seu luto é um luto intangível por drogas ou terapias, pois, tal como<br />
as bolotas que caem do carvalho sobre o telhado da casa são o choro de tudo aquilo que<br />
está morrendo, seu sofrimento não é apenas pelo filho que morreu, mas pela condição<br />
humana, pela forma como qualquer ser humano, ou apenas ser, vive num mundo<br />
indiferente à sua vontade de potência.<br />
Logo no início do filme vimos de passagem sobre a mesa as três pequenas<br />
estatuetas dos três mendigos – que representam a mágoa (grief), a dor (pain) e o<br />
desespero (despair). Quando eles chegam, trazem consigo a morte, ao contrário dos três<br />
ricos reis magos, que trazem consigo a vida. Eles pautarão as etapas daquele conflito<br />
2
entre a cultura e a natureza, bem como o processo psicológico dos indivíduos quando<br />
tentam escapar de sua trama narcísica; <strong>Trier</strong> faz desse itinerário a ordem de sua<br />
narrativa.<br />
O enfrentamento do medo (de acordo com o homem) e da trama narcísica (de<br />
acordo com a mulher) se dará em uma propriedade do casal na floresta, de nome Éden,<br />
numa clara remissão ao lugar da ordem, da paz e da atemporalidade. Curar a esposa é<br />
trazê-la para a normalidade, para a resistência, para a ordem construída pelo costume,<br />
para o esquecimento do que se pode ter visto pelas frestas do hábito. É isso o que a<br />
análise quer fazer: resgatar para os trilhos mentais da cultura, para a vivência constituída<br />
sobre a tradição, sobre a familiaridade, a mente que perdeu o caminho ou que descobriu<br />
exatamente que seu mundo é apenas um mundo habitual. Razão e ordem são o familiar.<br />
De várias maneiras o diretor <strong>Trier</strong> mostrará essas frestas que surpreendem<br />
nossos hábitos mentais. Quando deforma a paisagem com lentes especiais, quando cria<br />
movimento de sombras em detalhes da mata, quando cria quadros belos fazendo um<br />
recorte da paisagem, quando movimenta personagens no interior de um cenário estático,<br />
quando justapõe o ser humano a animais num mesmo enquadramento.<br />
Dificilmente uma floresta é o melhor lugar para se reencontrar a ordem e a<br />
familiaridade. É isso o que se descobrirá depois, no filme e na vida, até que reajustemos<br />
a nossa noção de ordem. A natureza é exatamente o que nossa cultura cristã entende por<br />
caos. O nosso modo de estabelecer essas relações é como se tivéssemos construído<br />
pontes firmes sobre profundezas inescrutáveis, grades entrelaçadas sobre vãos para os<br />
quais sequer conseguimos olhar. A virtude, a normalidade, a sanidade, a justiça, a<br />
piedade, a correição, é o sucesso em permanecer sobre essa grade, tendo precipícios<br />
escuros, habitados por seres estranhos, de ambos os lados. Esse é o nosso terror do dia a<br />
dia, sobre o qual tentamos, quotidianamente, dissimular com luz, jogos, música ou<br />
ruído, gozo, ideais, estupidez voluntária e guerras, sobretudo guerras.<br />
Na obra de <strong>Trier</strong>, a ordem racionalizadora e arrogante é atribuída ao homem<br />
terapeuta, cujo exame consiste em descrever e integrar verbalmente, projetando o<br />
humano sobre seu entorno; o caos, no sentido de todas as outras ordens possíveis é<br />
atribuído à mulher, que enlouquece de outras inteligências, e que perde seu solo cultural<br />
ao descobrir caminhos não pisados, ou pisados pelo louco, pelo extirpado, pelo<br />
criminoso e pelo excomungado. Ela será queimada tal como as mulheres de seu estudo,<br />
3
pela ameaça ao compreensível, pela ameaça à pretensão de soberania do intelecto e da<br />
reserva epistêmica que quer imperar sobre todas as coisas, unilinearmente.<br />
Se Cristo é a ordem, o Anticristo é o caos. Se um é o hábito, o outro é espanto e<br />
estranhamento. Se um é o pênis que integra, mantendo o homem de fora, o outro é a<br />
vagina que conforma, integrando a mulher ao todo.<br />
Natureza e cultura<br />
Quando falamos de cultura cristã moderna, do que estamos falando exatamente?<br />
Como enfrentamos coletiva e individualmente esse conflito entre a cultura e a natureza?<br />
Qual o direito que esse conflito produz?<br />
Eis o que é ser cristão: pressupor que haja uma ordem cósmica, racional, que a<br />
consciência individual pode apreender; estabelecer para o ser humano um lugar especial<br />
nessa ordem cósmica, dando a ele o poder de tratar todos os outros seres do mundo<br />
como objetos; conferir à vida humana um sentido moral, sentido esse inserido numa<br />
história que evolui da perdição à salvação como se fosse da desordem à ordem, do<br />
desespero à entrega total; orientar a vida pelo sentido do progresso, tendo na virtude o<br />
que favorece o acréscimo ao passado; identificar o indivíduo à sua consciência,<br />
concebendo a vida social por apenas arranjos contingentes. O homem se faz contra a<br />
natureza.<br />
Essa perspectiva moral e cognitiva imputa uma responsabilidade ideal sobre a<br />
própria vida a qual é dificilmente atingida, e cuja normalidade é frequentemente<br />
reajustada. Um motivo de confusão e sofrimento para o indivíduo contemporâneo é<br />
jamais saber o quão ele é responsável pelos seus atos e suas consequências, e em que<br />
medida e como os fatores heteronômicos conduzem a sua vida. A dinâmica da<br />
realização pessoal e da culpa constitui o drama mais comum e frequente das pessoas,<br />
quando elas estão entre as chamadas “civilizadas”.<br />
Na alma de qualquer pessoa encontraremos esses traços profundos,<br />
independentes das opiniões e diferenças individuais. A vida prática tanto pessoal quanto<br />
institucional conduz a todos heteronomamente, permitindo que as livres opiniões se<br />
manifestem em distinções superficiais.<br />
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Enquanto isso, não há político, empresário, pastor ou professor que não construa<br />
a sua identidade como um melhorador da humanidade, como alguém que guiará os<br />
perdidos usando para isso o medo inoculado, no sentido da redenção e do alívio. A vida<br />
miserável é de inteira culpa do indivíduo, que não se esforçou o suficiente para sair<br />
dessa terrível condição inicial.<br />
Por isso a caridade, a ajuda aos desvalidos (a rigor, todos nós, vencedores ou<br />
perdedores), a não reflexão sobre as reais condições da vida humana, tornam-se virtudes<br />
por situarem-se num mundo em si mesmo mal, terrível, fóbico, contra o qual a salvação<br />
é apenas uma possibilidade longínqua, que funciona mais como um motivador para a<br />
manutenção da vida que um ideal verdadeiramente realizável.<br />
Assim, a vida do cristão é uma promessa sempre renovada, uma negação da<br />
vida, um ideal projetado no tempo cujo gozo, tal como nas personalidades obsessivas, é<br />
nunca concretizar, é retornar sempre ao princípio. É dessa maneira que o Deus abstrato<br />
e distante torna-se presente e mais concreto do que qualquer coisa realmente concreta.<br />
Num mundo assim, não é a liberdade que conduz à salvação; ter a liberdade já é<br />
o bem próprio e o ideal que justifica a condição básica de loucura e perdição. A<br />
consciência social do indivíduo é identificada à alma sobrenatural, que migra pelos<br />
tempos e corpos levando consigo suas memórias e paisagens. Essa consciência se<br />
antecipa epistemicamente à realidade, ao mundo, e a liberdade não é mais do que a<br />
manutenção intelectual desse lugar cognitivo.<br />
O discurso psicanalítico que suspeita que a consciência seja uma pequena parte<br />
de uma vida psíquica bem maior e mais complexa, não pode ser compreendido pelo<br />
discurso religioso e nem tampouco pelo discurso jurídico contemporâneo. Em ambas<br />
teorizações a psique humana é reduzida à consciência que o indivíduo tem de si mesmo,<br />
salvo por algumas aquisições forçadas pelos discursos da esquerda política e pelos<br />
movimentos sociais, que lentamente foram fazendo admitir que a dinâmica social<br />
influencia na formação psíquica da pessoa, e nem tudo nas relações entre os humanos<br />
pode ser reduzido à moral. No direito, a dificuldade atual está em expressar uma nova<br />
forma de sujeito de direito para além do modelo consciência-alma-proteção ao que o<br />
indivíduo pensa que é. Na religião, geralmente o que não está no campo da consciência<br />
individual está necessariamente no campo do divino, do transcendente, e não ainda no<br />
campo do aumento da complexidade de nossos modelos cognitivos, da interação<br />
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psíquica com a cultura, das condições práticas de vida e das dinâmicas das interações<br />
sociais.<br />
O direito e a religião, portanto, padecem do mesmo mal, que é fazer um ideal<br />
abstrato caber numa vida realmente mais complexa, de buscar como normalidade uma<br />
redução mutilante da dinâmica social e cultural. Tal qual na pensão de Procusto, onde se<br />
mutilava os hóspedes para que coubessem em suas camas.<br />
Um dos sintomas mais evidentes da luta cultural pela normalidade (independente<br />
de qual ela seja), para a qual o direito e a religião são seus elementos institucionais mais<br />
importantes, é a perene confusão cognitiva partilhada pelos indivíduos, que se apresenta<br />
como um fóssil psíquico do big-bang cultural, o Éden de nossa vida social. Repetindo,<br />
muito de nossa dor, hoje, está em não sabermos o quão somos responsáveis por nossos<br />
atos e suas consequências, e o quanto os fatores heteronômicos conduzem nossa vida. É<br />
normal culparmo-nos por coisas indevidas e responsabilizarmo-nos por consequências<br />
de nossas ações, como se nossa base cognitivo-moral fosse bem definida e muito de<br />
nossa vida não fosse obra do acaso. É assim que a dinâmica entre o triunfo individual<br />
sobre a indiferença do todo e da culpa pela impotência da vontade constitui o drama<br />
mais comum e frequente das pessoas, enquanto elas esforçam-se arduamente a pertencer<br />
e serem previsíveis.<br />
Nessa busca ansiosa e incerta pela normalidade, há a pressa em corrigir o que<br />
não se ajusta ao ideal. Por isso que todo o atual discurso dos direitos humanos, embora<br />
tendo nascido da concepção religiosa de dignidade humana, terá que se confrontar com<br />
ela um dia, necessariamente. Viver num mundo sem inimigos e sem diabos, aspiração<br />
última dos direitos humanos, é atacar a condição suprema que mantém<br />
competentemente o discurso salvacionista institucionalizado, seja ele político, religioso<br />
ou jurídico.<br />
Indivíduo e cultura<br />
No debate teórico sobre a igualdade perde-se a realidade. Entre pontos de vista<br />
opostos e inteligentes, a vida se desenrola quase indiferente, num dinamismo distante<br />
das consciências e esforços individuais.<br />
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É que o que perfaz a trama psíquica do indivíduo não suspeita, muitas vezes, que<br />
o movimento da cultura vai contra o seu interesse de sobrevivência e, mais ainda, de ser<br />
singular, distinguindo-se dos outros.<br />
Enquanto a modernidade jurídica e política quer fazer com que todos,<br />
independente da capacidade individual de produzir para os ideais comuns da<br />
contingência atual, sejam protegidos como se o projeto humano já não mais dependesse<br />
do esforço máximo de cada um, na prática a vida pública acontece em outro sentido,<br />
muito mais severo do que nos representa o nazismo e a propaganda que o faz parecer<br />
distante.<br />
Como afirma Zygmunt Bauman em toda a sua obra, a estrutura institucional da<br />
modernidade não foi construída para abrigar a todos. Embora os ideais nos abram uma<br />
promessa de realização que o tempo poderá cumprir, a seleção, hierarquização e<br />
segregação de pessoas se desenrolam naturalmente, tudo isso dissentindo dos campos de<br />
extermínio da Segunda Grande Guerra apenas por parecer que tal condição conta com a<br />
liberdade e aprovação das pessoas. No nosso mundo político, jurídico e religioso atuais<br />
não cabem a todos, que pela própria liberdade se tornarão proscritos, imigrantes,<br />
criminosos ou demoníacos.<br />
Em sentido contrário, vemos os mais simples e ingênuos indivíduos<br />
insuspeitarem do projeto que a cultura guarda para eles, assim como a zebra não<br />
suspeita que o aparelho digestivo da leoa já fora projetado para transformá-la em fezes.<br />
Uns lutarão insuspeitadamente contra os outros, primeiro pela sobrevivência, na<br />
competição econômica e sexual, e depois pela singularidade, para distinguirem-se do<br />
imenso todo que não lhes concede nome, rosto, história ou afeto. Pelo amor busca-se a<br />
história; pela guerra a singularidade; pela cultura a sobrevivência.<br />
A questão é saber se o projeto político da modernidade foi capaz de constituir-<br />
se, ou mesmo se o quis, num projeto antinatural no sentido de considerar-se para toda a<br />
humanidade, embora fosse antinatural na sua concepção do humano. Pelo que vimos,<br />
jamais.<br />
O que se pode perceber com muita evidência é que a nossa busca por<br />
normalidade é estreita demais para abrigar toda a complexidade humana, e a natureza é<br />
representada igualmente com estreiteza a fim de conter o que não cabe nessa<br />
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normalidade. É assim que o natural se torna caótico, ameaçador, maligno, louco,<br />
feminino, hobbesianamente anárquico.<br />
O que é ser mulher ou a inteligência coletiva<br />
Um medo especial nasce da estranheza ao mundo que se situa fora do habitat<br />
geométrico, asséptico e previsível. Como uma clareira na floresta, o que está ao alcance<br />
da vista e sob a luz define o nosso nicho, o lugar familiar no qual nos instalamos. Nesse<br />
sentido, esse medo nasce da impossibilidade de recobrir inteiramente a natureza com<br />
nossa humanidade, com o manto dos ideais, das projeções, da negação pura e simples.<br />
O bebê veado não nascido, ainda preso ao útero materno, a raposa com as<br />
vísceras de fora, o bebê pássaro que cai do ninho, para o regozijo das formigas e do<br />
outro predador, é o horror banal da existência que indistingue o ser humano e ameaça a<br />
cultura que acha que o pode evitar. A mágoa, a dor e o desespero do indivíduo é o júbilo<br />
dos predadores, humanos ou não humanos.<br />
Em meio à luta entre a cultura que define o homem contra a natureza e a própria<br />
natureza, temos um conflito replicado na relação entre o homem e a mulher. Na<br />
narração de <strong>Trier</strong>, notamos que as cenas, os acontecimentos, os sentidos se dão ao<br />
homem, ele, o expectador e base cognitiva do cosmos, que coincide com o ponto de<br />
vista do público no cinema.<br />
Na mitologia bíblica, a simples existência do homem e da mulher, a distinção<br />
entre um e outro é o que lança à humanidade para fora do Éden, para o mundo do<br />
tempo, da mágoa, da dor e do desespero. A cisão entre sexos é que trouxe a agonia<br />
perene e incontornável.<br />
É uma visão interessante. Entretanto, vivemos um inferno maior que aquele que<br />
atribui apenas ao preconceito a pobreza e parcialidade das relações, ou seja, à visão<br />
corrigível do sexo que não compreendeu ainda a verdade das relações? A tese da mulher<br />
de <strong>Trier</strong>: a tortura das mulheres no passado aconteceu por conta de sua loucura, de sua<br />
ameaça à normalidade, ao mundo humano, essencialmente masculino.<br />
Mas o que é ser essencialmente homem em nossa cultura? Ser homem é<br />
preservar uma reserva cognitiva, não exposta, não conduzida pelo mundo, não<br />
inteiramente integrada ao todo. A integração ao todo é obra apenas de Deus, que é o<br />
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cosmos, a não separação e o não tempo. Ser homem é esse esforço sôfrego de ser algo<br />
anterior ao mundo. É de se pensar como essa reserva intelectual, historicamente, foi<br />
parar no ânus, contra o prazer apassivado que se realiza sem reservas, integrado de<br />
corpo e alma ao outro corpo. O ânus é o símbolo, não mais que símbolo, da reserva<br />
frente ao mundo; que a dignidade moral assuma essa altivez da resistência à natureza, é<br />
compreensível, tanto quanto a luta contra o sexismo atenta contra os valores mais<br />
profundos de nossa cultura, de nossa forma de ser no mundo há milênios.<br />
Se há um mundo novo que desponta em nosso futuro, seguramente, não será ele<br />
um mundo feminino, mas outra coisa jamais vista antes. Um mundo que transcenderá o<br />
indivíduo, a sua lógica e dinâmica, e se pautará por uma inteligência coletiva, que se<br />
guiará pela experiência no tempo, e não mais pelas psiques individuais atuais, somente.<br />
Estaremos presenciando a agonia do cristianismo? É possível que os deuses<br />
queiram que sim.<br />
Direito e cultura<br />
Diante da relação cultura e natureza, o direito pode ser visto entre duas fortes<br />
concepções, para além dos debates sobre seus métodos, suas funções sociais, sua<br />
legitimidade pela forma de poder. Ele pode ser definido como simples protetor e<br />
mantenedor do senso comum. Nada mais que isso. Assumindo esse pressuposto, duas<br />
grandes alternativas se postulam diante daquela relação:<br />
A primeira define o seu papel como regulador dos grandes ideais do progresso,<br />
da salvação e da normalidade estrita, dirigida aos fortes e resistentes, que é o direito que<br />
temos hoje na prática, mesmo que o sistema normativo esteja situado no interior de um<br />
sistema político democrático e liberal, pretensamente igualitário. Ao projeto de<br />
emancipação humana une-se o longo trajeto histórico, do Éden à salvação final, tendo<br />
no intervalo o caminho dos três mendigos. Em última instância, o direito atual é um<br />
direito canônico, por perfazer-se inteiramente nos ideais, e não só no processo, cristãos.<br />
Some-se a isso os indivíduos serem considerados livres, autônomos e únicos<br />
responsáveis por seu destino, sendo separados e hierarquizados individualmente por seu<br />
desempenho moral (hoje mais econômico que moral, na verdade). Eis o que constitui a<br />
trama de milhões de pessoas que nascem e morrem em todos os segundos desde o<br />
início, seja lá quando tenha ocorrido. O tempo, afinal, nunca foi muito importante para a<br />
9
nossa história, mas sim a eterna dinâmica circular entre a aspiração pelos ideais e a<br />
frustração pelo presente.<br />
A segunda alternativa é mais complexa, e embora já seja uma realidade<br />
assustadora, surge por entre os escombros dos fósseis que constituem a nossa vida<br />
prática e a nossa mais íntima visão de mundo.<br />
Não há movimento e nem progresso, e cada conjuntura é tudo o que é possível.<br />
Não há o poder da vontade, não há liberdade, senão para confirmar o que pode e deve<br />
ser. Há a luta perene entre a cultura e o que a cerca, embora não uma luta por distinção<br />
completa, como se pudesse haver um mundo exclusivamente humano. Essa luta, por ser<br />
diferente para a cultura e para o indivíduo, terá instrumentos diferentes. O medo dos<br />
grandes planejamentos, horror de nosso passado recente, não tem percebido o que já<br />
acontece nos laboratórios médicos e na indústria de entretenimento, que se não for a<br />
instauração de uma nova e brilhante inteligência orgânica, far-nos-á ter saudade dos<br />
campos de concentração anteriores. Diríamos de uma luta simbiótica, que muda o<br />
próprio ser humano, tomado em toda a sua possível diversidade, para além da<br />
contabilidade diária, e considerando o não humano não mais como a ameaça à ordem,<br />
não mais como a reserva do mal, mas uma natureza sem sexo e sem virtude.<br />
O direito não se estabelecerá sobre as consciências individuais, tal como elas se<br />
pensam, mas também não regerá sob uma política que seja a hegemonia de uma mente<br />
individual sobre outras. O subconsciente e o inconsciente psicanalítico entrarão para a<br />
história pública e para as normas, tornando-se uma normalidade tanto mais ampla<br />
quanto nossas verdades contingentes e dilatadas permitam.<br />
O mundo de hoje aspira a reduzir o mundo à vontade individual, e para o mundo<br />
talvez decadente esse seja o maior bem, embora seja uma grande ingenuidade,<br />
correspondendo ao alto preço pago pelas psiques individuais, quando se consumam<br />
eternamente em sua trama narcísica, em sua ingenuidade miserável, em suas pequenas<br />
metas de elevação particular.<br />
Esse é o mundo trágico, descrito por Nietzsche e filmado por <strong>Trier</strong>, que provoca<br />
tanto medo e tantos fantasmas quanto a experiência de quem vive e dorme dentro de um<br />
pesadelo e se crê livre dele quando apenas desperta.<br />
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Questões especulativas sobre o filme:<br />
1) Por que o luto da mulher é duradouro e não melhora com os tratamentos?<br />
2) Por que o som das bolotas de carvalho caindo no telhado é o som de tudo o que<br />
está morrendo?<br />
3) Por que para a mulher, o homem é arrogante?<br />
4) Por que para o homem, a mulher é doente?<br />
5) Quem é o Anticristo?<br />
6) Como o indivíduo vive o conflito entre a cultura e a natureza?<br />
7) A relação da cultura com seus indivíduos é antinatural?<br />
Texto e questões preparadas para acompanhamento da exibição do filme Anticristo, de<br />
<strong>Lars</strong> <strong>Von</strong> <strong>Trier</strong>, no curso de extensão “Direito e Cinema – ano III: Direito e Medo”,<br />
coordenado pelo prof. Dr. João da Cruz Gonçalves Neto, da faculdade de direito da<br />
UFG.<br />
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