O BURRO DE NIETZSCHE ANTICRISTO Diretor: Lars Von Trier ...

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pela ameaça ao compreensível, pela ameaça à pretensão de soberania do intelecto e da reserva epistêmica que quer imperar sobre todas as coisas, unilinearmente. Se Cristo é a ordem, o Anticristo é o caos. Se um é o hábito, o outro é espanto e estranhamento. Se um é o pênis que integra, mantendo o homem de fora, o outro é a vagina que conforma, integrando a mulher ao todo. Natureza e cultura Quando falamos de cultura cristã moderna, do que estamos falando exatamente? Como enfrentamos coletiva e individualmente esse conflito entre a cultura e a natureza? Qual o direito que esse conflito produz? Eis o que é ser cristão: pressupor que haja uma ordem cósmica, racional, que a consciência individual pode apreender; estabelecer para o ser humano um lugar especial nessa ordem cósmica, dando a ele o poder de tratar todos os outros seres do mundo como objetos; conferir à vida humana um sentido moral, sentido esse inserido numa história que evolui da perdição à salvação como se fosse da desordem à ordem, do desespero à entrega total; orientar a vida pelo sentido do progresso, tendo na virtude o que favorece o acréscimo ao passado; identificar o indivíduo à sua consciência, concebendo a vida social por apenas arranjos contingentes. O homem se faz contra a natureza. Essa perspectiva moral e cognitiva imputa uma responsabilidade ideal sobre a própria vida a qual é dificilmente atingida, e cuja normalidade é frequentemente reajustada. Um motivo de confusão e sofrimento para o indivíduo contemporâneo é jamais saber o quão ele é responsável pelos seus atos e suas consequências, e em que medida e como os fatores heteronômicos conduzem a sua vida. A dinâmica da realização pessoal e da culpa constitui o drama mais comum e frequente das pessoas, quando elas estão entre as chamadas “civilizadas”. Na alma de qualquer pessoa encontraremos esses traços profundos, independentes das opiniões e diferenças individuais. A vida prática tanto pessoal quanto institucional conduz a todos heteronomamente, permitindo que as livres opiniões se manifestem em distinções superficiais. 4
Enquanto isso, não há político, empresário, pastor ou professor que não construa a sua identidade como um melhorador da humanidade, como alguém que guiará os perdidos usando para isso o medo inoculado, no sentido da redenção e do alívio. A vida miserável é de inteira culpa do indivíduo, que não se esforçou o suficiente para sair dessa terrível condição inicial. Por isso a caridade, a ajuda aos desvalidos (a rigor, todos nós, vencedores ou perdedores), a não reflexão sobre as reais condições da vida humana, tornam-se virtudes por situarem-se num mundo em si mesmo mal, terrível, fóbico, contra o qual a salvação é apenas uma possibilidade longínqua, que funciona mais como um motivador para a manutenção da vida que um ideal verdadeiramente realizável. Assim, a vida do cristão é uma promessa sempre renovada, uma negação da vida, um ideal projetado no tempo cujo gozo, tal como nas personalidades obsessivas, é nunca concretizar, é retornar sempre ao princípio. É dessa maneira que o Deus abstrato e distante torna-se presente e mais concreto do que qualquer coisa realmente concreta. Num mundo assim, não é a liberdade que conduz à salvação; ter a liberdade já é o bem próprio e o ideal que justifica a condição básica de loucura e perdição. A consciência social do indivíduo é identificada à alma sobrenatural, que migra pelos tempos e corpos levando consigo suas memórias e paisagens. Essa consciência se antecipa epistemicamente à realidade, ao mundo, e a liberdade não é mais do que a manutenção intelectual desse lugar cognitivo. O discurso psicanalítico que suspeita que a consciência seja uma pequena parte de uma vida psíquica bem maior e mais complexa, não pode ser compreendido pelo discurso religioso e nem tampouco pelo discurso jurídico contemporâneo. Em ambas teorizações a psique humana é reduzida à consciência que o indivíduo tem de si mesmo, salvo por algumas aquisições forçadas pelos discursos da esquerda política e pelos movimentos sociais, que lentamente foram fazendo admitir que a dinâmica social influencia na formação psíquica da pessoa, e nem tudo nas relações entre os humanos pode ser reduzido à moral. No direito, a dificuldade atual está em expressar uma nova forma de sujeito de direito para além do modelo consciência-alma-proteção ao que o indivíduo pensa que é. Na religião, geralmente o que não está no campo da consciência individual está necessariamente no campo do divino, do transcendente, e não ainda no campo do aumento da complexidade de nossos modelos cognitivos, da interação 5
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