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Boletim - Sociedade de Reumatologia do Rio de Janeiro

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4<br />

<strong>Boletim</strong> da SRRJ • Nº 122/2006<br />

HISTÓRIA ARTIGO DA DE REUMATOLOGIA<br />

REVISÃO<br />

A Convivência <strong>de</strong> Miguel Torga<br />

com sua Doença (Parte 4)<br />

Dedica<strong>do</strong> ao Professor Dr. Mário Viana <strong>de</strong> Queiroz<br />

M<br />

iguel Torga continuou registran<strong>do</strong> em<br />

seu Diário XVI 1 , suas angústias e seu<br />

pessimismo, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> sofrimento provoca<strong>do</strong><br />

por sua <strong>do</strong>ença:<br />

“Não ter futuro. Nem sequer o <strong>do</strong> dia <strong>do</strong> amanhã<br />

Viver indiferente à vida, <strong>de</strong> mão no pulso à espera <strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>bre da última pancada <strong>do</strong> coração” (Coimbra, 22 <strong>de</strong><br />

julho <strong>de</strong> 1991).<br />

Em 19 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1991, em Coimbra, volta a falar <strong>de</strong><br />

transfusão: “Mais sangue alheio <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim. Por este<br />

andar, qualquer dia não sou eu que me vejo no espelho”.<br />

Novamente interna<strong>do</strong>, no dia vinte e cinco <strong>de</strong> novembro<br />

<strong>de</strong> 1991:<br />

“Interna<strong>do</strong>.<br />

- Que os <strong>de</strong>uses o não <strong>de</strong>samparem, roga-me alguém.<br />

Mas, infelizmente, <strong>de</strong>sampararam”.<br />

E, no dia seguinte, ainda no Hospital <strong>de</strong> Coimbra: “E<br />

aqui estou na vala comum <strong>de</strong> uma enfermaria a ver agonizar<br />

outros infelizes à minha volta. Passei a vida a tratar<br />

<strong>do</strong>entes, e fi-lo com todas as veras da alma. Não fiquei a<br />

<strong>de</strong>ver humanida<strong>de</strong> a nenhum. Mas faltava-me a prova suprema<br />

<strong>de</strong> sofrer sem esperança numa coma ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong>les”.<br />

No outro dia: “Estou no meio <strong>de</strong>les, e, como eles, mina<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> mesmo mal incurável. Com a diferença apenas<br />

<strong>de</strong> que a ignorância lhes permite alimentar um absur<strong>do</strong><br />

fio <strong>de</strong> esperança, que eu, por sabe<strong>do</strong>ria profissional, não<br />

posso compartilhar”.<br />

Ainda no hospital, a insistência e o impulso em registrar<br />

(vinte e oito <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1991): “Não há dúvida.<br />

Perdi. Ou ganhei, quem sabe lá? Talvez a perda tu<strong>do</strong> é<br />

que se ganhe tu<strong>do</strong>. De qualquer maneira acabo venci<strong>do</strong>.<br />

Nada <strong>do</strong> que fiz valeu a pena, me serve agora <strong>de</strong> lenitivo<br />

nestes tormentosos dias finais, que vou sofren<strong>do</strong> em silêncio,<br />

crucifica<strong>do</strong> na cama, a fazer esforços sobre-humanos<br />

para minorar aos olhos das visitas, e aos meus, o espetáculo<br />

constrange<strong>do</strong>r da minha miséria. A respirar oxigênio<br />

por um tubo e sem forças para erguer uma palha, nem<br />

mesmo assim a encanização da escrita me <strong>de</strong>ixa em paz.<br />

Hilton Seda*<br />

Às duas por três, sinto a tentação <strong>de</strong> registrar miudamente<br />

estas horas <strong>de</strong> agonia. Mas tenho <strong>de</strong> me ren<strong>de</strong>r à evidência.<br />

A caneta cai-me da mão aos primeiros rabiscos. E<br />

ainda bem. Nasci para cantar a glória da vida e não para<br />

cronista da humilhação da morte”.<br />

Em <strong>do</strong>is <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1992, Miguel Torga foi transferi<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> hospital em Coimbra: “Transferi<strong>do</strong> <strong>do</strong> hospital,<br />

agora para uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s intensivos. Vejo o<br />

coração pulsar num ecrã, engulo carradas <strong>de</strong> comprimi<strong>do</strong>s,<br />

e <strong>de</strong>ixo correr as horas melancolicamente, resigna<strong>do</strong><br />

a este fim inglório que sempre temi, enquanto alimentava<br />

a secreta esperança <strong>de</strong> que fosse da plenitu<strong>de</strong>, areja<strong>do</strong> e<br />

altivo no cimo <strong>de</strong> uma serra, esgota<strong>do</strong> através das perdizes.<br />

Mas estava guarda<strong>do</strong> para isto. Para esta expiação <strong>de</strong><br />

me ver, sentir e pensar em negativo, sem a perspectiva <strong>de</strong><br />

qualquer grata surpresa <strong>do</strong> dia <strong>de</strong> amanhã, e a memorar<br />

frustrações”.<br />

A referência <strong>de</strong> Torga às perdizes diz respeito a uma<br />

das suas preferidas distrações: caçar.<br />

Depois <strong>de</strong> prolongada estada em hospitais, finalmente<br />

volta para casa no dia treze <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1992: “Finalmente<br />

em casa, meio moribun<strong>do</strong>, meio ressuscita<strong>do</strong>, a tentar<br />

integrar-me no ambiente familiar”. Mas sua permanência<br />

com a família foi curta, pois no dia onze <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1992:<br />

“Outra vez hospitaliza<strong>do</strong>. Po<strong>de</strong>-se enganar a vida. A morte<br />

é que não. Há muito consciente disso, teimo, contu<strong>do</strong>,<br />

em trocar as voltas à minha, numa espécie <strong>de</strong> birra <strong>de</strong><br />

menino <strong>de</strong>satina<strong>do</strong>. Sei que acabará por levar a melhor.<br />

Mas vou ganhan<strong>do</strong> tempo”.<br />

A gran<strong>de</strong> frustração <strong>de</strong> Miguel Torga em relação ao<br />

seu consultório: “Visita fúnebre <strong>de</strong> <strong>do</strong>is administra<strong>do</strong>res<br />

<strong>do</strong> banco e meu senhorio <strong>do</strong> consultório. Querem-me na<br />

rua, para fazer obras no prédio e aumentar o rendimento.<br />

Pareciam fantasmas agoirentos a anunciar-me ainda em<br />

vida o meu enterro e o <strong>do</strong> meu passa<strong>do</strong>...” (vinte <strong>de</strong> maio<br />

<strong>de</strong> 1992).<br />

Num outro poema <strong>de</strong> sete <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1992 fala da<br />

vida e da morte:<br />

* Professor Titular <strong>de</strong> <strong>Reumatologia</strong> da PUC-<strong>Rio</strong>. Da Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> <strong>Reumatologia</strong>. Presi<strong>de</strong>nte da <strong>Socieda<strong>de</strong></strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Reumatologia</strong> (1968-1970)

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