01.06.2013 Views

Os ziguezagues do Dr. Capanema, de Maria Sylvia Porto Alegre

Os ziguezagues do Dr. Capanema, de Maria Sylvia Porto Alegre

Os ziguezagues do Dr. Capanema, de Maria Sylvia Porto Alegre

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

tenham si<strong>do</strong> os <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros (Cf. <strong>Porto</strong><br />

<strong>Alegre</strong>, p. 189).<br />

Outros comentários alusivos a religiosida<strong>de</strong>,<br />

crenças e comportamentos <strong>do</strong> “povo cearense” estão<br />

presentes no <strong>do</strong>cumento, revelan<strong>do</strong> ser o autor<br />

signatário <strong>de</strong> uma representação que contrapõe uma<br />

espécie <strong>de</strong> Brasil mo<strong>de</strong>rno a um Brasil arcaico:<br />

(...) um povo tão crédulo está muito e<br />

muito atrasa<strong>do</strong> em instrução, e por isso<br />

não está habilita<strong>do</strong> a conhecer os seus<br />

verda<strong>de</strong>iros interesses; não é ele que<br />

sabe quais as instituições que mais lhe<br />

convêm; basta que apareça algum Padre<br />

Agostinho ou algum Anticristo, que com<br />

pouco o fanatiza (...).<br />

São múltiplas as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura <strong>do</strong>s<br />

Ziguezagues. Como texto a ser <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong><br />

vista sócio-antropológico, <strong>de</strong>stacam-se as referências<br />

ao tempo da seca (BRAGA, 2004), circunstancian<strong>do</strong><br />

as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sobrevivência das populações interioranas,<br />

a religiosida<strong>de</strong> e os costumes. Uma outra<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura po<strong>de</strong> revelar, através da<br />

i<strong>de</strong>ologia <strong>do</strong> autor, o mo<strong>do</strong> como a região cearense<br />

evoca um tipo <strong>de</strong> reconhecimento e <strong>de</strong>scrição. Lembro,<br />

nesse senti<strong>do</strong>, da leitura que faz Robert Darton<br />

(1986) sobre a narrativa <strong>de</strong> um cidadão anônimo<br />

observa<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Montpellier, em 1768, como porta <strong>de</strong><br />

entrada para enten<strong>de</strong>r a emergência <strong>de</strong> uma nova<br />

disciplina condizente com os padrões burgueses da<br />

época. O texto, na visão <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r, mais que um<br />

<strong>do</strong>cumento <strong>de</strong>talha<strong>do</strong> e prolixo, traduzia a perplexida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um observa<strong>do</strong>r face ao que ele consi<strong>de</strong>rava<br />

<strong>de</strong>sorganiza<strong>do</strong> porque não se enquadrava na lógica<br />

hierárquica da corte. A subjetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>r<br />

<strong>de</strong> Montpellier, antes <strong>de</strong> se tornar empecilho à objetivida<strong>de</strong><br />

da <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> contexto urbano, fornecia<br />

um outro material <strong>do</strong> imaginário da época.<br />

A perspectiva <strong>de</strong> Darton inspira outras possibilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> exploração <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> <strong>Capanema</strong> se<br />

pensamos a explanação <strong>de</strong> suas idéias como repre-<br />

94 Revista <strong>de</strong> CiênCias soCiais v. 37 n. 1 2006<br />

sentativa <strong>de</strong> uma visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> que se imiscuía no<br />

Brasil da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> emergente.<br />

O livro <strong>de</strong> <strong>Sylvia</strong> <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, ao expor o <strong>do</strong>cumento<br />

<strong>de</strong> Guilherme Schüch <strong>de</strong> <strong>Capanema</strong>, sobre<br />

a missão científica realizada no Ceará, percorre a trilha<br />

da “tradução” ou <strong>do</strong> “<strong>de</strong>ciframento”, promoven<strong>do</strong><br />

um encontro feliz entre história e antropologia.<br />

O <strong>do</strong>cumento apresenta<strong>do</strong> no livro evoca percepções<br />

e práticas <strong>de</strong> uma época, registros etnográficos<br />

<strong>de</strong> costumes permea<strong>do</strong>s por uma visão peculiar <strong>do</strong><br />

autor – a lógica narrativa atravessada pela ironia e<br />

jocosida<strong>de</strong>.<br />

A idéia <strong>de</strong> edição <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento já vinha sen<strong>do</strong><br />

sugerida ao Museu <strong>do</strong> Ceará, pela autora, que se<br />

dispôs a dar seguimento ao trabalho <strong>de</strong> Renato Braga<br />

sobre a história da Comissão Científica. Consi<strong>de</strong>rava,<br />

em edição anterior (PORTO ALEGRE, 2003),<br />

a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transcrição <strong>do</strong>s manuscritos, na<br />

medida em que “Trata-se <strong>de</strong> material raro e valioso<br />

para o trabalho <strong>de</strong> estudiosos das mais diversas<br />

áreas e um testemunho precioso para a história das<br />

ciências no Brasil, nos primórdios <strong>de</strong> sua expansão e<br />

consolidação” (op. cit. p, 12).<br />

O livro <strong>de</strong> <strong>Sylvia</strong> <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong> traduz, portanto,<br />

a importância das possibilida<strong>de</strong>s infinitas <strong>de</strong><br />

recuperação <strong>de</strong> um relato histórico em meandros<br />

lingüísticos que remontam as práticas culturais e<br />

políticas <strong>do</strong> Brasil oitocentista. O projeto gráfico, a<br />

capa e a diagramação <strong>do</strong> livro completam a riqueza<br />

<strong>do</strong> trabalho, dan<strong>do</strong> ao leitor a impressão <strong>de</strong> que a<br />

arte e a ciência são partes <strong>de</strong> uma mesma missão.<br />

Referências Bibliográficas<br />

DARTON, Robert (1986). O Gran<strong>de</strong> Massacre <strong>de</strong> Gatos e outros<br />

episódios da história cultural francesa. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Graal.<br />

BRAGA, Renato (2004). “Ensaio crítico-histórico da Comissão<br />

Científica <strong>de</strong> Exploração”. In Conviver, uma revista <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s<br />

avança<strong>do</strong>s <strong>do</strong> semi-ári<strong>do</strong>, vol I, n.4, out/<strong>de</strong>z <strong>de</strong> 2004.<br />

PORTO ALEGRE, <strong>Maria</strong> <strong>Sylvia</strong> (2003). Comissão das<br />

Borboletas. A Ciência <strong>do</strong> Império entre o Ceará e a Corte.<br />

Fortaleza: Museu <strong>do</strong> Ceará, col. Outras Histórias, Secretaria<br />

da Cultura <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ceará, 2003.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!