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Revista da Abordagem Gestáltica - ITGT

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<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>


Instituto de Treinamento e Pesquisa em<br />

Gestalt-Terapia de Goiânia – <strong>ITGT</strong><br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

Volume XVII - N. 2<br />

2011<br />

Goiânia – Goiás<br />

www.itgt.com.br


Ficha Catalográfica<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>-gem <strong>Gestáltica</strong>/ Instituto de<br />

Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia –<br />

Vol. 17, n. 2 (2011) – Goiânia: <strong>ITGT</strong>, 2011.<br />

119p.: il.: 30 cm<br />

Inclui normas de publicação<br />

ISSN: 1809-6867<br />

1. Psicologia. 2. Gestalt-Terapia. I. Instituto de<br />

Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia.<br />

CDD 616.891 43<br />

Citação:<br />

REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA. Goiânia, v. 17, n. 1, 2011. xxxp<br />

Impresso no Brasil<br />

Printed in Brazil


Re v i s t a d a ab o R d a g e m ge s t á lt i c a<br />

Volume XVII - N. 2 – Jul/Dez, 2011<br />

Expediente<br />

Editor<br />

Adriano Furtado Holan<strong>da</strong><br />

(Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná)<br />

Editores Associados<br />

Celana Cardoso Andrade<br />

(Universi<strong>da</strong>de Federal de Goiás)<br />

Danilo Suassuna Martins Costa<br />

(Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Goiás)<br />

Marta Carmo<br />

(Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiás)<br />

Conselho Editorial<br />

Adelma Pimentel (Universi<strong>da</strong>de Federal do Pará)<br />

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro)<br />

Cláudia Lins Cardoso (Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais)<br />

Ênio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de São Paulo)<br />

Gizele Elias Parreira (Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Goiás)<br />

Joanneliese de Lucas Freitas (Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná)<br />

Jorge Ponciano Ribeiro (Universi<strong>da</strong>de de Brasília)<br />

Josemar de Campos Maciel (Universi<strong>da</strong>de Católica Dom Bosco, MS)<br />

Lílian Meyer Frazão (Universi<strong>da</strong>de de São Paulo)<br />

Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de São Paulo)<br />

Marcos Aurélio Fernandes (Universi<strong>da</strong>de Católica de Brasília)<br />

Marisete Malaguth Mendonça (Universi<strong>da</strong>de Católica de Goiás)<br />

Mônica Botelho Alvim (Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de Janeiro)<br />

Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Campinas)<br />

Patrícia Valle de Albuquerque Lima (Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro)<br />

Pedro M. S. Alves (Universi<strong>da</strong>de de Lisboa, Portugal)<br />

Sérgio Lízias (Universi<strong>da</strong>de Federal de Goiás – Campus Catalão)<br />

Tommy Akira Goto (Universi<strong>da</strong>de Federal de Uberlândia)<br />

Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Goiás)<br />

William Barbosa Gomes (Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande do Sul)<br />

Suporte Técnico<br />

Josiane Almei<strong>da</strong><br />

Marcos Janzen<br />

Norma Susana Romero Martinovich


Capa<br />

Franco Jr.<br />

Diagramação e Arte Final<br />

Franco Jr.<br />

Bibliotecário<br />

Arnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)<br />

Financiamento<br />

Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (<strong>ITGT</strong>-GO)<br />

Encaminhamento de Manuscritos<br />

A remessa de manuscritos para publicação, bem como to<strong>da</strong> a correspondência<br />

de seguimento que se fizer necessária, deve ser endereça<strong>da</strong> a:<br />

Editor<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia (<strong>ITGT</strong>)<br />

Rua 1.128, nº 165 - St. Marista - Goiânia-GO - CEP: 74.175-130<br />

Fone/Fax: (62) 3941-9798<br />

E-mail: revista@itgt.com.br<br />

Normas de Apresentação de Manuscritos<br />

To<strong>da</strong>s as informações concernentes a esta publicação, tais como normas de<br />

apresentação de manuscritos, critérios de avaliação, mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de textos, etc.,<br />

podem ser encontra<strong>da</strong>s no site http://pepsic.bvs-psi.org.br<br />

Fontes de Indexação<br />

- Clase<br />

- Latindex<br />

- Lilacs<br />

- Index Psi Periódicos (BVS-Psi Brasil)<br />

- Scopus<br />

As opiniões emiti<strong>da</strong>s nos trabalhos aqui publicados, bem como a exatidão<br />

e adequação <strong>da</strong>s referências bibliográficas são de exclusiva responsabili<strong>da</strong>de<br />

dos autores, portanto podem não expressar o pensamento dos editores.<br />

A reprodução do conteúdo desta publicação poderá ocorrer desde que<br />

cita<strong>da</strong> a fonte.


Sumário<br />

EDIToRIAl ..................................................................................................................................................IX<br />

ARTIGoS<br />

- “Como Sei que Eu Sou Eu?” Cinestesia e Espaciali<strong>da</strong>de nas Conferências Husserlianas de 1907<br />

e em Pesquisas Neurocognitivas ............................................................................................................ 123<br />

Thiago Gomes de Castro (Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande do Sul) & William Barbosa Gomes<br />

(Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande do Sul)<br />

- A Crítica <strong>da</strong> Fenomenologia de Husserl à Visão Positivista nas Ciências Humanas..........................<br />

131<br />

Carlos Diógenes Cortes Tourinho (Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense)<br />

- Fenomenologia e Experiência Religiosa em Paul Tillich ...................................................................... 137<br />

Tommy Akira Goto (Universi<strong>da</strong>de Federal de Uberlândia)<br />

- A ontologia <strong>da</strong> Carne em Merleau-Ponty e a Situação Clínica na Gestalt-Terapia:<br />

Entrelaçamentos ...................................................................................................................................... 143<br />

Monica Botelho Alvim (Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de Janeiro)<br />

- Pensando o Suicídio sob a Ótica Fenomenológica Hermenêutica: Algumas Considerações..............<br />

152<br />

Elza Dutra (Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande do Norte)<br />

- o Cui<strong>da</strong>do como Amor em Heidegger .................................................................................................... 158<br />

Marcos Aurélio Fernandes (Universi<strong>da</strong>de Católica de Brasília)<br />

- A Contribuição de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian para a Psicopatologia<br />

Fenomenológica ...................................................................................................................................... 172<br />

Virginia Moreira (Universi<strong>da</strong>de de Fortaleza)<br />

- A Clínica Psicológica Infantil em uma Perspectiva Existencial .......................................................... 185<br />

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro)<br />

- A (Pouco Conheci<strong>da</strong>) Contribuição de Brentano para as Psicoterapias Humanistas ......................... 193<br />

Georges Daniel Janja Bloc Boris (Universi<strong>da</strong>de de Fortaleza)<br />

- Dificul<strong>da</strong>des, Desafios e Possibili<strong>da</strong>des para uma Clínica Sartreana ................................................ 198<br />

Carolina Mendes Campos (Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica do Rio de Janeiro); Fernan<strong>da</strong> Alt (Universi<strong>da</strong>de<br />

Estadual do Rio de Janeiro) & André Barata (Universi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Beira Interior/Portugal)<br />

- Uma Análise Existencialista para um Caso Clínico de Transtorno obsessivo Compulsivo ............. 205<br />

Sylvia Mara Pires de Freitas (Universi<strong>da</strong>de Estadual de Maringá)<br />

vii <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): vii-viii, jul-dez, 2011<br />

S u m á r i o


S u m á r i o<br />

TEXToS ClÁSSICoS<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): vii-viii, jul-dez, 2011<br />

Sumário<br />

- Sobre o Conceito de Sensação (1913) ...................................................................................................... 217<br />

José Ortega y Gasset<br />

DISSERTAÇÕES E TESES<br />

- A Ambigui<strong>da</strong>de na Fenomenologia <strong>da</strong> Percepção de Maurice Merleau-Ponty (2007) ......................... 227<br />

Leandro Neves Cardim (Doutorado em Filosofia, Universi<strong>da</strong>de de São Paulo)<br />

- A Clínica <strong>da</strong> Urgência Psicológica: Contribuições <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa e <strong>da</strong><br />

Teoria do Caos (2003) .............................................................................................................................. 229<br />

Márcia Alves Tassinari (Doutorado em Psicologia, Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de Janeiro)<br />

NoRMAS<br />

- Normas de Publicação <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> .............................................................. 235<br />

viii


Editorial<br />

Ao final do século XIX, quando aquelas ciências que<br />

– na atuali<strong>da</strong>de – viriam a ser chama<strong>da</strong>s de “ciências humanas”<br />

<strong>da</strong>vam seus primeiros passos, e buscavam se estabelecer<br />

no terreno <strong>da</strong>s objetivi<strong>da</strong>des, Wilhelm Dilthey<br />

(1833-1911) já discutia sua “teoria <strong>da</strong> visão de mundo”, ou<br />

a Weltanschauung: “(...) em que ‘viver é apreciar’, é avaliar,<br />

é escolher, é <strong>da</strong>r sua ‘interpretação’ ao mundo natural”<br />

(Japiassu & Marcondes, 1990, p. 73). Em sua obra fun<strong>da</strong>mental,<br />

Introdução ao Estudo <strong>da</strong>s Ciências Humanas 1 (de<br />

1883), Dilthey critica a apropriação <strong>da</strong> visão positivista<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de humana, afirmando que esta reali<strong>da</strong>de é “essencialmente<br />

social e histórica” (Japiassu & Marcondes,<br />

1990, p. 73) e, assim, não seria passível de explicação –<br />

causal e racionalista –, mas de compreensão.<br />

Posteriormente, em outra obra fun<strong>da</strong>mental – principalmente<br />

para a psicologia, as Ideias sobre uma psicologia<br />

descritiva e analítica (de 1894) – Dilthey ratifica<br />

esta posição, assinalando que as ditas “ciências humanas”<br />

(à época chama<strong>da</strong>s de ciências do espírito) tem uma<br />

especifici<strong>da</strong>de:<br />

As ciências humanas partem do nexo psíquico <strong>da</strong>do<br />

na experiência interna. A diferença fun<strong>da</strong>mental do<br />

conhecimento psicológico em relação ao conhecimento<br />

<strong>da</strong> natureza consiste no fato de o nexo ser <strong>da</strong>do aqui<br />

primariamente na vi<strong>da</strong> psíquica, e é aí que reside, portanto,<br />

mesmo a primeira e fun<strong>da</strong>mental peculiari<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s ciências humanas (Dilthey, 1894/2011, p. 158).<br />

Este nexo é representado pela palavra alemã Erlebnis,<br />

liga<strong>da</strong> a “vi<strong>da</strong>”, a “viver”. Quem traduziu este vocábulo,<br />

originalmente proposto por Dilthey, foi o filósofo espanhol<br />

José ortega y Gasset (1883-1955), em 1913, com a<br />

palavra “vivência” (Mora, 1994/2004). Este neologismo<br />

castelhano passou a significar “experiência vivi<strong>da</strong> subjetivamente”<br />

ou “experiência interna”, fun<strong>da</strong>mental – pois<br />

– para as ciências humanas em geral e, particularmente,<br />

para as ciências psicológicas, como bem aponta o iminente<br />

psiquiatra Nobre de Melo (1979).<br />

Fizemos esta introdução como forma de anunciar<br />

o que trazemos neste novo número <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong><br />

Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> que, ao longo dos últimos cinco<br />

anos, assumiu uma proposta – e um desafio – de se tornar<br />

mais um veículo para a difusão, debate e solidificação<br />

do pensamento fenomenológico no Brasil. Como tal,<br />

este novo número conta com os primeiros trabalhos apresentados<br />

no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia,<br />

realizado na Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná, entre 02 e<br />

04 de junho de 2011.<br />

Um número expressivo de participantes – mais de 350<br />

1 Título original: Einleitung in die Geisteswissenschafter.<br />

pessoas – e outro ain<strong>da</strong> mais expressivo – mais de cem<br />

trabalhos 2 apresentados, entre conferências, palestras,<br />

comunicações, etc. – mostra que um novo movimento<br />

começa a tomar corpo no país.<br />

Começamos a publicar algumas destas contribuições,<br />

trazendo aos leitores doze desses trabalhos – oito deles<br />

frutos de pesquisas em Programas de Pós-Graduação –,<br />

que refletem não apenas a solidez <strong>da</strong> discussão, como<br />

também a diversi<strong>da</strong>de de temas e autores que tem sido<br />

trabalhados em psicologia fenomenológica no país:<br />

Brentano, Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre e<br />

Tillich, dentre outros, são alguns desses autores. Em<br />

contraparti<strong>da</strong>; espaciali<strong>da</strong>de, percepção, religiosi<strong>da</strong>de,<br />

arte, clínica, suicídio e psicopatologia, são alguns desses<br />

temas.<br />

E, ao final, brin<strong>da</strong>mos a todos com a tradução de um<br />

excelente texto de Ortega y Gasset – intitulado Sobre o<br />

Conceito de Sensação, de 1913 – onde o autor, além de<br />

fazer uma breve, mas significativa introdução à fenomenologia,<br />

nos indica o lugar <strong>da</strong> “vivência” a que nos referimos<br />

no início.<br />

Referências<br />

Adriano Furtado Holan<strong>da</strong><br />

- Editor -<br />

Dilthey, W. (2011). Ideias sobre uma psicologia descritiva e<br />

analítica. Rio de Janeiro: Via Verita Editora (Original publicado<br />

em 1894).<br />

Japiassu, H. & Marcondes, H. (1990). Dicionário Básico de<br />

Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.<br />

Mora, J.F. (2004). Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola<br />

(Original publicado em 1994).<br />

Nobre de Melo, A.L. (1979). Psiquiatria (Vol. I). Rio de Janeiro:<br />

Civilização Brasileira/FENAME.<br />

2 Os Anais do II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia (cujo tema<br />

foi “Vínculo, Relação, Diálogo), estão disponíveis online e podem<br />

ser consultados no link: http://www.labfeno.ufpr.br/textos/Anais_II_<br />

Congresso_Sul_%20Brasileiro_de_Fenomenologia_2011.pdf<br />

ix <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): ix, jul-dez, 2011<br />

E d i t o r i a l


Ar t i g o s ..........................


“Como Sei que Eu Sou Eu?” Cinestesia e Espaciali<strong>da</strong>de nas Conferências Husserlianas de 1907 e em Pesquisas Neurocognitivas<br />

“Como Sei que eu Sou eu?” CineSteSia e eSpaCiali<strong>da</strong>de<br />

naS ConfeRênCiaS HuSSeRlianaS de 1907 e em peSquiSaS<br />

neuRoCognitivaS 1<br />

How do I Know That I am Myself? – Kinesthesia and Spatiality in the Husserlian<br />

Conferences of 1907 and in Neurocognitive Research<br />

¿Cómo Puedo Saber que Soy Yo? – Cinestesia y Espaciali<strong>da</strong>d en las Conferencias<br />

Husserlianas de 1907 y en Investigaciones Neurocognitivas<br />

Th i a g o go m e s d e Cas T r o<br />

Wi l l i a m Ba r B o s a go m e s<br />

Resumo: Husserl definiu cinestesia como a experiência vivi<strong>da</strong> e autoconsciente do movimento e do gesto, associa<strong>da</strong> à uni<strong>da</strong>de<br />

corporal, ao desenvolvimento do esquema do ego estendido, e à percepção de espaço. O estudo contrasta dificul<strong>da</strong>des<br />

históricas e colaborações recentes entre fenomenologia e pesquisa experimental. A análise sustenta-se na revisão de<br />

estudos clássicos sobre cinestesia e percepção, e em pesquisas neurocognitivas recentes, destacando as implicações para a<br />

compreensão <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de. O conceito de cinestesia refere-se a duas questões fenomenológicas: como sei que eu sou<br />

eu, e quem sou eu. O senso de si e <strong>da</strong> ação presente passam pela integração <strong>da</strong> consciência reflexiva no desempenho motor<br />

e perceptivo, conforme confirmam experimentos fenomenológicos e neurocognitivos sobre situações de ambigui<strong>da</strong>de proprioceptiva.<br />

Tais estudos estão abrindo novas possibili<strong>da</strong>des para reabilitação de desordens proprioceptivas – como no caso<br />

de amputação, comorbi<strong>da</strong>des de auto-imagem e mesmo esquizofrenia – e para colaborações profícuas entre fenomenologia<br />

e neurociências cognitivas.<br />

Palavras-chave: Cinestesia; Autoconsciência; Intencionali<strong>da</strong>de; Fenomenologia; Neurocognição.<br />

Abstract: Husserl defined kinesthesia as the self-consciousness lived experience of movement and gesture, associated to the<br />

body unity, to the development of an extended ego schema, and to spatial perception. The study contrasts historical difficulties<br />

and recent collaborations between phenomenology and experimental research. The analysis is sustained in classical<br />

studies review on kinesthesia and perception, and in recent neurocognitive research, emphasizing implications to an understanding<br />

of intentionality. The concept of kinesthesia refers to two phenomenological issues: How do I know that I am myself,<br />

and who am I. The sense of self and actual action passes through the integration of reflective consciousness in motor<br />

action and perception, as confirmed by phenomenological and neurocognitive experiments using proprioceptive ambiguity<br />

contexts. Those studies are opening new possibilities to the rehabilitation of proprioceptive disorders – as in the case of amputees,<br />

self-image comorbidities and schizophrenia – and also to fruitful collaborations between phenomenology and cognitive<br />

neurosciences.<br />

Keywords: Kinesthesia; Selfconsciousness; Intentionality; Phenomenology; Neurocognition.<br />

Resumen: Husserl define cinestesia como la auto-conciencia de la experiencia vivi<strong>da</strong> del movimiento y el gesto, asociado a la<br />

uni<strong>da</strong>d del cuerpo, a lo desarrollo de un esquema de ego extendido, y a la percepción espacial. El estudio contrasta las dificultades<br />

históricas y recientes colaboraciones entre la fenomenología y la investigación experimental. El análisis se sustenta<br />

en la revisión de estudios clásicos en cinestesia y la percepción, y en la investigación neurocognitiva reciente, destacando las<br />

implicaciones para la comprensión de la intencionali<strong>da</strong>d. El concepto de cinestesia se refiere a dos aspectos fenomenológicos:<br />

Cómo puedo saber que soy yo, y que yo soy. El sentido de sí mismo y la acción propia pasa por la integración de la conciencia<br />

reflexiva en la acción motora, según lo confirmado por experimentos fenomenológicos y neurocognitivos utilizando contextos<br />

de ambigüe<strong>da</strong>d propioceptiva. Estos estudios están abriendo nuevas posibili<strong>da</strong>des para la rehabilitación de los trastornos<br />

propioceptivos – como en el caso de los amputados, comorbili<strong>da</strong>des de imagen de sí mismo y la esquizofrenia – y también a la<br />

colaboración fructífera entre la fenomenología y las neurociencias cognitivas.<br />

Palabras-clabe: Cinestesia; Auto-consciencia. Intencionali<strong>da</strong>d; Fenomenología; Neurocognición.<br />

1 Palestra proferi<strong>da</strong> pelo primeiro autor no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná,<br />

realizado na UFPR, em Curitiba, de 03 a 04 de junho de 2011.<br />

123 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 123-130, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

introdução<br />

O presente artigo discute a articulação entre os conceitos<br />

de cinestesia e espaciali<strong>da</strong>de no texto husserliano<br />

intitulado Dingvorlesung (Thing and Space – Lectures of<br />

1907) e a relação com estudos de psicologia experimental,<br />

de diferentes períodos históricos, que investigaram<br />

os mesmo processos. O texto está organizado em quatro<br />

partes. Primeiro, apresenta breve descrição do contexto<br />

histórico e <strong>da</strong>s características do texto de Husserl de 1907.<br />

Segundo, discute as definições de cinestesia e espaciali<strong>da</strong>de<br />

em Husserl, destacando a importância <strong>da</strong><strong>da</strong> à mediação<br />

autoconsciente. Terceiro, contrasta a definição de<br />

percepção espacial de três pesquisadores experimentais –<br />

David Katz, James J. Gibson e Alva Nöe – com a definição<br />

husserliana. Por fim, traz resultados de pesquisas recentes<br />

com correlatos neurais em tarefas experimentais na<br />

percepção de movimento e propriocepção espacial para<br />

rediscutir a versão husserliana de cinestesia.<br />

1. Cinestesia e Contexto Histórico de Husserl em<br />

1907<br />

O tema <strong>da</strong> Cinestesia em Husserl aparece com maior<br />

detalhamento em uma série de conferências proferi<strong>da</strong>s<br />

em 1907, quando Husserl lecionava na Universi<strong>da</strong>de<br />

de Göttingen na Alemanha. O texto de 1907 refere-se à<br />

transcrição de um curso oferecido naquela Universi<strong>da</strong>de,<br />

sendo que apenas parte dessas conferências foi traduzi<strong>da</strong><br />

para o português, com o título A Idéia <strong>da</strong> Fenomenologia<br />

(1907/2000). Nesse breve texto são apresenta<strong>da</strong>s cinco<br />

conferências introdutórias do curso de Husserl, mas<br />

são relativamente independentes do seguimento <strong>da</strong>s<br />

palestras descritas em Thing and Space. Na Idéia <strong>da</strong><br />

Fenomenologia Husserl enfocará a descrição do método<br />

<strong>da</strong>s reduções fenomenológicas. Já em Thing and Space o<br />

escopo <strong>da</strong>s análises tratará basicamente <strong>da</strong> construção<br />

<strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de, com ênfase na cinestesia. Vale lembrar<br />

que em 1905 Husserl já havia se detido à discussão <strong>da</strong><br />

consciência interna do tempo, e agora espaço e tempo se<br />

fundirão para uma compreensão amplia<strong>da</strong> <strong>da</strong> experiência<br />

intencional.<br />

Sabe-se que entre a audiência do curso de 1907 estava<br />

Georg Elias Müller (1850-1934), chefe <strong>da</strong> cadeira de psicologia<br />

experimental <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Göttingen (Ash,<br />

1995). Nesse momento, Müller já havia estabelecido um<br />

programa de psicologia experimental que buscava fun<strong>da</strong>mentação<br />

na fenomenologia, dedicando-se principalmente<br />

à investigação empírica <strong>da</strong> memória. O sentido fenomenológico<br />

adotado por G.E.Müller foi o <strong>da</strong> fenomenologia<br />

como psicologia descritiva, associado à transposição<br />

metodológica <strong>da</strong> fenomenologia de Husserl. Spiegelberg<br />

2 Palestra proferi<strong>da</strong> pelo primeiro autor no II Congresso Sul-Brasileiro de<br />

Fenomenologia & II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná,<br />

realizado na UFPR, em Curitiba, de 03 a 04 de junho de 2011.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 123-130, jul-dez, 2011<br />

Thiago G. Castro & William B. Gomes<br />

(1972) relata, contudo, que Husserl não aprovava o uso<br />

<strong>da</strong> fenomenologia conforme Müller e o departamento de<br />

psicologia de Göttingen. De seu lado, Müller considerava<br />

a resistência de Husserl em relação às inovações empíricas<br />

como um isolamento não produtivo e que sua forma<br />

de filosofar era um preciosismo verbal.<br />

Mesmo assim, ao contrário do laboratório de Leipzig,<br />

em Göttingen a nova teoria fenomenológica na experimentação<br />

procurava distanciar as teses elementaristas e fisicalistas<br />

sobre o funcionamento <strong>da</strong> consciência. Wundt e<br />

os psicólogos de Leipzig são inclusive criticados em Thing<br />

and Space por Husserl no tocante à questão <strong>da</strong> distinção<br />

entre percepção e apercepção. Como se sabe, o termo percepção<br />

refere-se ao processo de conhecimento de objetos<br />

e eventos por meios sensoriais. Em contraste, o termo<br />

apercepção, de Leibniz a Wundt, foi entendido como o<br />

processo no qual o conteúdo era focalizado mais claramente<br />

para a compreensão, posterior à percepção (Klein,<br />

1970). A insistência de Husserl (1907/1997), no entanto,<br />

é enfatizar a percepção como processo ativo vinculado<br />

à intencionali<strong>da</strong>de. O entendimento <strong>da</strong> época para apercepção<br />

sugeria certa passivi<strong>da</strong>de e independência entre<br />

percepção e intencionali<strong>da</strong>de. Segundo o filósofo, tal entendimento<br />

passivo <strong>da</strong> apercepção teria sido suplantado<br />

pelo conceito de apreensão de Carl Stumpf (1848-1936).<br />

De acordo com Husserl, Stumpf entende que a ideia de<br />

apercepção seria insuficiente dentro de uma compreensão<br />

intencional <strong>da</strong> percepção, sendo mais adequado falar de<br />

um modo particular do organismo no acesso a evidência<br />

como apreensão ativa <strong>da</strong>s coisas. Similar a essa proposição<br />

ativa de Stumpf é o conceito de intencionali<strong>da</strong>de<br />

operante de Husserl (Husserl, 1913/2006).<br />

Em 1907, Carl Stumpf coordenava o laboratório de psicologia<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Berlim, onde orientava as teses<br />

de doutorado de dois dos fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> Psicologia <strong>da</strong><br />

Gestalt: Kurt Koffka (1886-1941) e Wolfgang Köhler (1887-<br />

1967). No entanto, o interesse de Stumpf pela fenomenologia<br />

começava a declinar em 1907, uma vez que Husserl<br />

buscava, há algum tempo, afirmar a fenomenologia como<br />

ciência primeira e com um método filosófico próprio para<br />

tal empreita<strong>da</strong>. Assim como G.E.Müller, Stumpf não via<br />

com bons olhos o excessivo afastamento de Husserl <strong>da</strong><br />

investigação empírica, exatamente por este defender uma<br />

via puramente teórica à intencionali<strong>da</strong>de.<br />

Também entre os ouvintes <strong>da</strong>s conferências de 1907,<br />

estava o orientando de Husserl em Göttingen, Wilhelm<br />

Schapp (1884-1965), que realizou uma análise intencional<br />

filosófica <strong>da</strong> percepção de cores. Na mesma época,<br />

o psicólogo Oswald Külpe (1862-1915), aluno de Wündt,<br />

buscava desenvolver um programa de psicologia experimental<br />

na Universi<strong>da</strong>de de Würzburg, baseado em uma<br />

fenomenologia descritiva e entendi<strong>da</strong> como ciência de<br />

reali<strong>da</strong>des (Spiegelberg, 1972). Külpe foi o orientador <strong>da</strong><br />

tese de Max Wertheimer (1880-1943), outro cofun<strong>da</strong>dor<br />

<strong>da</strong> Psicologia <strong>da</strong> Gestalt, também na déca<strong>da</strong> de 1900.<br />

Acompanhando Müller e Stumpf, Külpe mantinha res-<br />

124


“Como Sei que Eu Sou Eu?” Cinestesia e Espaciali<strong>da</strong>de nas Conferências Husserlianas de 1907 e em Pesquisas Neurocognitivas<br />

trições à direção <strong>da</strong> filosofia fenomenológica delinea<strong>da</strong><br />

por Husserl, considerando-a importante, mas metodologicamente<br />

imperfeita no tratamento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Schapp<br />

e Külpe são dois exemplos de autores influenciados por<br />

Husserl nesse período, mas que seguiram por caminhos<br />

distintos no estudo <strong>da</strong> percepção, o primeiro para a análise<br />

eidética e o segundo para a análise descritiva, empírica<br />

e rigorosa.<br />

Ain<strong>da</strong> que notórias as diferenças de propósito entre<br />

Husserl e os psicólogos alemães <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1900, percebe-se<br />

entre os autores uma forte tendência de combate<br />

às teses psicofísicas vigentes nesse momento. Enquanto<br />

Husserl fazia esforços para suplantar a epistemologia <strong>da</strong>s<br />

investigações basea<strong>da</strong>s no sensorialismo, alguns psicólogos<br />

enfrentavam o desafio de criar condições experimentais<br />

e leis de interpretação diferencia<strong>da</strong>s, na direção de<br />

uma lógica descritiva fenomenológica. Nesse momento,<br />

o destaque que Husserl confere à cinestesia para a percepção<br />

mantém conexão com as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des inovadoras<br />

de pesquisa de percepção espacial que os discípulos de<br />

Müller, Külpe e Stumpf irão desenvolver nas déca<strong>da</strong>s seguintes.<br />

Vejamos como Husserl define cinestesia.<br />

2. “Como sei que eu sou eu?” – Cinestesia e espaciali<strong>da</strong>de<br />

em Husserl<br />

Em um sentido genérico, o termo Cinestesia é composto<br />

por dois radicais, “Cine” que significa movimento<br />

e “Estesia” que indica sensação ou percepção. Cinestesia,<br />

portanto, seria uma sensação ou percepção de movimento.<br />

Cinestesia é diferente de Sinestesia, que significa a<br />

relação de planos sensoriais distintos como, por exemplo,<br />

olfato e visão. O termo “sinestesia” é empregado na<br />

neurologia como uma união sensória involuntária em<br />

que a informação real de um sentido é acompanha<strong>da</strong><br />

por uma percepção em outro sentido não estimulado<br />

(Hubbard & Ramachandran, 2005). Por exemplo, o indivíduo<br />

é estimulado por uma cor azul, como o céu azul,<br />

e sente ao mesmo tempo o cheiro de um morango, que<br />

não está presente no contexto de estimulação. Há também<br />

uma tendência em se considerar cinestesia como sinônimo<br />

de propriocepção. Contudo, embora semelhantes, os<br />

dois termos guar<strong>da</strong>m diferenças sutis. A propriocepção<br />

englobaria um sentido mais conceitual e integrativo <strong>da</strong><br />

percepção, associado ao senso de equilíbrio corporal, mas<br />

não necessariamente à ênfase no senso de movimento<br />

como na cinestesia.<br />

A cinestesia está associa<strong>da</strong> a um senso espacial corporal<br />

interno e externo, sendo a dimensão externa associa<strong>da</strong><br />

ao conceito denominado peri-espaço, que seria<br />

o espaço não corporal logo em torno do corpo e que faz<br />

parte de um sistema de esquema corporal ligado à sensação<br />

de movimentos (Cardinali, Brozzoli & Farnè, 2009).<br />

O senso interno estaria associado à interação entre canais<br />

sensoriais básicos no corpo para a sensação de mo-<br />

vimento. Ambos, sensos interno e externo, indicam uma<br />

integração primária com o sistema sensorial vestibular,<br />

localizado no ouvido interno.<br />

Para Husserl (1907/1997), a cinestesia designa a experiência<br />

vivi<strong>da</strong> <strong>da</strong> postura corporal, isto é, a orientação dos<br />

órgãos motores <strong>da</strong> percepção em movimento, incluindo<br />

os atos usados para simular esses movimentos na consciência.<br />

A sensação de movimento é o fenômeno puro na<br />

constituição <strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de. A constituição dos membros<br />

como conteúdos físicos aparentes no campo visual<br />

precede a noção de uni<strong>da</strong>de do corpo (Husserl, 1931 3 , citado<br />

por Petit, 2010). As dinâmicas cinestésicas remetem<br />

aos impulsos instintuais nos bebês, nos fenômenos <strong>da</strong><br />

orientação <strong>da</strong> visão e na projeção <strong>da</strong>s mãos em direção a<br />

um objeto de interesse (Husserl, 1907/1997).<br />

O ato em movimento está alocado na teoria <strong>da</strong> constituição<br />

de Husserl. Por constituição fenomenológica entende-se<br />

o ato pelo qual um objeto surge ou configurase<br />

na consciência, cuja característica mais fun<strong>da</strong>mental<br />

na cinestesia é a autoconsciência do sujeito na ação<br />

(“eu estou fazendo”). O ato tem o significado de uma<br />

autoconsciência ativa por todo o período em que persiste<br />

sua execução (Husserl, 1907/1997). Portanto, trata-se<br />

para Husserl de uma vigília concomitante <strong>da</strong> constituição<br />

do ato e <strong>da</strong> consciência de estar desempenhando<br />

este ato. Daí deriva a in<strong>da</strong>gação que dá o título a essa<br />

exposição: Como sei que eu sou eu? Nas conferências de<br />

1907, a cinestesia está associa<strong>da</strong> à necessi<strong>da</strong>de de uma<br />

concomitância autoconsciente no desempenho <strong>da</strong> ação,<br />

especialmente em vista do método descritivo de análise<br />

<strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de, que repousa sobre o aspecto <strong>da</strong><br />

experiência consciente.<br />

Posteriormente, no texto Psicologia Fenomenológica,<br />

Husserl (1925/1977) relata que o estudo <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de<br />

e seus modos de acesso à evidência não se faz completo<br />

sem o correspondente intencional do corpo em sua<br />

função perceptiva. Segundo o autor, o corpo é, ao mesmo<br />

tempo, coisa (eidos) e função intencional (gênese). Uma<br />

análise do sistema cinestésico seria uma nova forma de<br />

análise <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de (Husserl, 1925/1977). Tanto<br />

no sentido eidético (estático), como em um sentido genético<br />

(processual), conforme indicado a seguir.<br />

Schmicking (2010) reforça a idéia de Husserl ao situar<br />

a cinestesia como um dos aportes nas análises estática e<br />

genética <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de para a constituição dos objetos<br />

ou experiências. Junto com a incorporação, a cinestesia<br />

seria a referência para entender o acesso tipificado<br />

ou padronizado a novas experiências, como um modo<br />

intencional (Análise Estática). A cinestesia seria também<br />

uma via alternativa para compreender a auto-organização<br />

perceptiva no acesso a novas experiências ao longo<br />

de um fluxo temporal de vividos (Análise Genética). Em<br />

ambos os casos, ocorrem análises de estabili<strong>da</strong>de e de<br />

variações: na fenomenologia estática, procede-se uma<br />

3 O Problema do Ato (1931) – Edmund Husserl<br />

125 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 123-130, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

análise de essências pelo traço perceptivo em um evento<br />

experiencial; na fenomenologia genética, procede-se<br />

uma análise de transições e constâncias <strong>da</strong> percepção<br />

em um fluxo temporal de vividos. Schmicking (2010)<br />

não menciona a análise generativa, que seria o modo de<br />

análise intencional sobre as conexões ecológicas dos atos.<br />

Ain<strong>da</strong> em 1907 nota-se também a ausência desta análise<br />

no texto de Husserl.<br />

Em Husserl (1907/1997), a constituição recíproca do<br />

movimento de diferentes órgãos em um campo sensorial<br />

define a noção de espaço próprio e, por conseguinte, de<br />

um mesmo corpo (uni<strong>da</strong>de egóica). Pergunta-se então: O<br />

que seria primordial na reunião desses diferentes movimentos?<br />

Aparentemente, a visão desponta como o recurso<br />

integrador do eu. Nesse texto, o sistema háptico, a<br />

participação músculo-esquelético em toques e contatos<br />

táteis é reconhecido como fun<strong>da</strong>mental na integração,<br />

possivelmente como recurso concomitante à visão. Isto<br />

porque exerceria uma função diferente <strong>da</strong> visão, sendo a<br />

visão o pólo primário de identificação do movimento e o<br />

sistema háptico como pólo de sensação de continui<strong>da</strong>de<br />

temporal do movimento. O sistema táctil, decorrente do<br />

sistema háptico, aparece como recurso na extensão <strong>da</strong><br />

uni<strong>da</strong>de do ego para os movimentos externos à sensação<br />

de movimento corporal. Nesse ponto, o tema <strong>da</strong> cinestesia<br />

integra-se ao <strong>da</strong> experiência do mundo para a constituição<br />

de um esquema de ego estendido.<br />

Os objetos intencionados que compõem a corporei<strong>da</strong>de<br />

estendi<strong>da</strong> obviamente não possuem caracteres cinestésicos.<br />

Contudo, os objetos que estão no mundo participam<br />

do sistema auto-referente do corpo, este sim cinestésico<br />

(Husserl, 1931 citado por Petit, 2010). Isto significa que<br />

a sensação de movimento e a construção <strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de<br />

corpórea não englobariam a carne do mundo, como<br />

em Merleau-Ponty, mas os objetos do mundo são fun<strong>da</strong>mentais<br />

para a dimensão auto-referente e autoconsciente<br />

do corpo em relação à percepção do mundo. Os objetos<br />

são parte do sistema cinestésico como utensílios ou pólo<br />

negativo, mas não como extensão carnal do movimento.<br />

Husserl discute em 1931 a relação do corpo com ferramentas<br />

que ampliam o sistema intencional de constituição<br />

auto-referente <strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de. O uso de ferramentas,<br />

como descrito em 1931, poderia ser uma saí<strong>da</strong> em<br />

direção à via generativa, ecológica, não enfatiza<strong>da</strong> nas<br />

conferências de 1907.<br />

Observamos a importância <strong>da</strong><strong>da</strong> por Husserl à dimensão<br />

autoconsciente na sensação de movimentos. O filósofo<br />

buscava com isso enfatizar o elemento operante <strong>da</strong><br />

intencionali<strong>da</strong>de na construção de referentes espaciais<br />

no fluxo de vividos. Esse controle consciente <strong>da</strong> experiência<br />

do espaço não só serviria a um domínio <strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de,<br />

como também uma via para a análise de padrões<br />

intencionais na percepção do meio e na propriocepção.<br />

Com isso, Husserl define uma posição contrária à tese de<br />

que a percepção seria uma reação sensorial aos estímulos<br />

recebidos do meio.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 123-130, jul-dez, 2011<br />

Thiago G. Castro & William B. Gomes<br />

3. percepção espacial e decorrências fenomenológicas<br />

As ideias trabalha<strong>da</strong>s por Husserl em 1907 convergiram,<br />

direta ou indiretamente, no desenvolvimento de<br />

teorias psicológicas sobre a percepção espacial. Três importantes<br />

representantes desta convergência temática<br />

são David Katz (1884-1953), James J. Gibson (1904-1979),<br />

e o filósofo contemporâneo Alva Noë, um professor <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Califórnia, Berkeley, interessado em<br />

percepção e consciência. A seguir, destaca-se como a teoria<br />

fenomenológica <strong>da</strong> percepção espacial se relaciona<br />

ao trabalho destes três pesquisadores, representando o<br />

desenvolvimento durante o século XX.<br />

A repercussão mais direta pode ser observa<strong>da</strong> nos estudos<br />

do psicólogo experimental alemão que foi orientado<br />

por Georg Elias Müller no período <strong>da</strong>s conferências de<br />

Husserl em Göttingen. Em 1911, David Katz escreve seu<br />

principal trabalho sobre a percepção <strong>da</strong>s cores a partir<br />

de estudos experimentais, <strong>da</strong>ndo destaque à função <strong>da</strong><br />

intencionali<strong>da</strong>de na constituição <strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de, em<br />

oposição às teses <strong>da</strong> sensação na tradição de Hermann<br />

von Helmholtz (1821-1894). O livro foi traduzido para o<br />

inglês em 1935, com reimpressões em 1970, 1999, 2000,<br />

2001, 2002 o que aponta para a importância <strong>da</strong> obra. Na<br />

apresentação de sua teoria <strong>da</strong> percepção <strong>da</strong>s cores, Katz<br />

(1911/1935) mencionou Ewald Hering (1834-1918) como<br />

principal influência, informando que as ideias de Husserl<br />

sobre esse tema não eram tão inéditas ao tempo <strong>da</strong>s conferências<br />

de Göttingen. Para Katz (1943/1945), o padrão<br />

de percepção <strong>da</strong>s cores poderia servir de exemplo para a<br />

percepção do espaço como um todo. Para tanto, seria necessário<br />

levar em conta que a percepção de uma cor não<br />

se limita à correlação estímulo-percepção, segundo as<br />

variações unidimensionais de intensi<strong>da</strong>de. Requer ain<strong>da</strong><br />

a investigação de covariantes de iluminação nos objetos<br />

que circun<strong>da</strong>m o espaço <strong>da</strong> percepção. Ou seja, a percepção<br />

de espaço é o produto <strong>da</strong> posição espacial do sujeito<br />

em relação ao contexto percebido, bem como as relações<br />

de iluminação e sombra entre os objetos que compõem o<br />

cenário <strong>da</strong> percepção total. Posteriormente, algumas <strong>da</strong>s<br />

teses de Katz foram trabalha<strong>da</strong>s por Köhler na questão<br />

dos padrões <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de perceptiva <strong>da</strong> visão (Ash,<br />

1995). Katz reconheceu a grande influência de Husserl<br />

para suas pesquisas experimentais, em particular, a atitude<br />

fenomenológica nas seguintes palavras:<br />

Para mim, a fenomenologia como advoga<strong>da</strong> naquele<br />

tempo (i.e. durante os anos de estu<strong>da</strong>nte de Katz em<br />

Göttingen) por Edmund Husserl, parece ser a mais<br />

importante conexão entre filosofia e psicologia. Nenhum<br />

dos meus professores acadêmicos, com exceção<br />

de G. E. Müller, influenciou-me tão profun<strong>da</strong>mente no<br />

procedimento e na atitude sobre as questões psicológicas<br />

quanto Husserl com seu método fenomenológico.<br />

(Katz, 1952 citado por Spiegelberg, 1972, p. 44).<br />

126


“Como Sei que Eu Sou Eu?” Cinestesia e Espaciali<strong>da</strong>de nas Conferências Husserlianas de 1907 e em Pesquisas Neurocognitivas<br />

A constituição <strong>da</strong> percepção visual reaparece fortemente<br />

nos meados do século XX com a profícua produção<br />

do pesquisador norte-americano James J. Gibson<br />

(1904-1979). Em especial seu livro de 1979, intitulado<br />

The ecological approach to visual perception, que abor<strong>da</strong><br />

a construção <strong>da</strong> percepção e propriocepção a partir do<br />

uso ativo que o organismo faz dos recursos disponíveis<br />

em seu meio. A relação de Gibson com a fenomenologia<br />

é indireta, sendo apenas possível realizar indicações de<br />

convergência conceitual e temática entre as ideias sobre<br />

percepção de movimento e propriocepção.<br />

Para Gibson (1979), a conexão ecológica é princípio e<br />

não fim para entender a emergência <strong>da</strong> percepção. Seu<br />

conceito mais conhecido é affor<strong>da</strong>nce, que tange especificamente<br />

sobre este uso intencional dos recursos ambientais<br />

para situar a percepção visual em uma articulação<br />

ativa com o meio. Segundo Gibson (2002), a percepção<br />

visual deve ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong> e entendi<strong>da</strong> como um<br />

processo direto no ambiente, sem recorrer às teses de<br />

processamento indireto ou representação <strong>da</strong> visão total<br />

como imagem no córtex occipital. Acerca dessa defesa,<br />

Gibson afirma que o sistema visual estrito faz uma seleção<br />

de estímulos no meio antes de qualquer mediação<br />

de filtro sensorial secundário no cérebro. Isto significa<br />

afirmar que os olhos têm capaci<strong>da</strong>de suficiente de seleção<br />

de estímulos, levados por uma intenção prévia, sem<br />

que seja necessária uma captação <strong>da</strong> imagem total para<br />

posterior reorganização topográfica dos estímulos em<br />

um córtex específico.<br />

Mais recentemente encontra-se em Nöe (2004) um<br />

retorno às teses de Katz e Gibson para examinar, por<br />

meio de estudos experimentais, a relação entre intencionali<strong>da</strong>de<br />

pré-consciente e reorganização intencional,<br />

conforme a discriminação de pistas ambientais durante<br />

o desempenho <strong>da</strong> ação. Para Nöe, a ação no meio constitui<br />

a percepção, sendo que as subsequentes atualizações<br />

interferem continua<strong>da</strong>mente nas intenções <strong>da</strong> ação.<br />

Observa-se novamente, nesse exemplo, que o conceito de<br />

intencionali<strong>da</strong>de é ressignificado à luz <strong>da</strong>s ações efetivas<br />

do organismo no ambiente, até como uma intencionali<strong>da</strong>de<br />

operante. Contudo, a mediação autoconsciente<br />

não é ponto chave aqui para a constituição intencional,<br />

como desponta no texto de 1907 de Husserl. Nöe recorreu<br />

a vários estudos de Gibson para afirmar a tese de que<br />

a percepção recairia, em ultima instância, sobre a ação<br />

corporal no ambiente. Nesse sentido, não seria nem uma<br />

criação autoconsciente nem uma dependência pura de<br />

contingências ambientais. Trata-se de uma combinação<br />

entre realismo e idealismo. Aliás, a tese sobre a ação no<br />

meio não descarta o modelo funcional de seleção por<br />

consequências, mas retoma a importância enativa do<br />

organismo nas trocas com este meio e o papel <strong>da</strong> autoconsciência<br />

nessa mediação. Por enativa entende-se a<br />

ação guia<strong>da</strong> pela percepção na vivência sensório-motora<br />

contextualiza<strong>da</strong> do sujeito <strong>da</strong> ação (Varela, Thompson<br />

& Rosch, 1991).<br />

As pesquisas sobre percepção visual desenvolvi<strong>da</strong>s<br />

por Katz (1911/1935), Gibson (1979) e Noë (2004) abor<strong>da</strong>m,<br />

em certa medi<strong>da</strong>, a relação entre intencionali<strong>da</strong>de<br />

e concomitância autoconsciente na ação, considerando<br />

as interferências <strong>da</strong> mediação pré-consciente e intenção<br />

motora dos atos. Nesse sentido, qual seria a relação entre<br />

motrici<strong>da</strong>de, consciência dos atos e intencionali<strong>da</strong>de? Tal<br />

questão é pertinente diante do entendimento de que as<br />

atualizações entre o encontro <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de com<br />

as contingências ambientais provocam um momento de<br />

retoma<strong>da</strong> unitária <strong>da</strong> experiência do corpo.<br />

A discussão emergente desses novos desenvolvimentos<br />

<strong>da</strong> fenomenologia está nas questões decorrentes de<br />

como compreender e explicar as atualizações constantes<br />

e operantes <strong>da</strong> percepção espacial e <strong>da</strong> propriocepção. O<br />

ponto chave nessa discussão procede <strong>da</strong>s ciências cognitivas<br />

de abor<strong>da</strong>gem enativa (Thompson, 2007), sob o<br />

argumento de que tais atualizações do comportamento<br />

e <strong>da</strong> percepção não dependem exclusivamente de pistas<br />

ambientais, mas especialmente <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de prévia<br />

em relação ao ambiente. Para essa ciência cognitiva<br />

influencia<strong>da</strong> pela fenomenologia, existiria um modo intencional<br />

operante que caracteriza os modos de acesso<br />

perceptivo às coisas e que não exclui os elementos contingenciais<br />

reais do ambiente (Smith, 1999). Nesse sentido,<br />

reafirma-se, mais uma vez, não se tratar nem de um<br />

idealismo puro e nem de um realismo puro. Haveria,<br />

portanto, modos intencionais tipificados que acessam o<br />

meio de forma ativa ou operante, mas que se atualizam<br />

permanentemente conforme as pistas ambientais para se<br />

reorganizar. Nesse momento de reorganização, a retoma<strong>da</strong><br />

autoconsciente <strong>da</strong> experiência seria fun<strong>da</strong>mental para<br />

a preparação intencional a experiências futuras.<br />

4. “Quem sou eu?” – transições <strong>da</strong> fenomenologia<br />

para experimentação<br />

Em uma tentativa de reunir a fenomenologia constitutiva<br />

husserliana e a neurocognição, os atos pré-conscientes<br />

vêm sendo estu<strong>da</strong>dos em experimentos que incluem<br />

a descrição experiencial consciente após o desempenho<br />

de determina<strong>da</strong>s tarefas (Lutz & Thompson, 2003). Os experimentos<br />

consistem na proposição de uma tarefa experiencial<br />

e motora, passível de ser descrita, com objetivo<br />

de verificar a associação entre a descrição perceptiva e o<br />

desempenho corporal (motor). Pesquisas em neurociência<br />

(Iriki, Tanaka & Iwamura, 1996) desde meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong><br />

de 1990, têm demonstrado que o uso de ferramentas<br />

como prolongamento do corpo intencional coincide com<br />

os achados sobre a ativação de neurônios viso-táteis na<br />

utilização de instrumentos por macacos.<br />

Em relação aos achados neurocientíficos sobre a função<br />

integra<strong>da</strong> de visão e tato em um mesmo neurônio,<br />

cabe uma ressalva ao texto husserliano. Para Husserl<br />

(1907/1997), os sistemas sensórios eram correlacionados<br />

127 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 123-130, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

e complementares, uma idéia desafiadora para os sistemas<br />

teóricos atomistas de seu tempo. Contudo, Husserl<br />

não entra no mérito <strong>da</strong> questão neurológica, pois não quer<br />

recair nas propostas biológicas <strong>da</strong> consciência ou <strong>da</strong> causali<strong>da</strong>de<br />

psíquica. Ele enfatiza a necessi<strong>da</strong>de de se manter<br />

no âmbito puro descritivo <strong>da</strong> experiência de sensação<br />

de movimentos. Atualmente, o que se constata é que não<br />

apenas os sistemas cerebrais estão correlacionados, como<br />

também residem, em uma uni<strong>da</strong>de cerebral, diferentes<br />

funções concomitantes, como ativi<strong>da</strong>de motora, cognitiva<br />

e respostas sensórias efetoras.<br />

Ain<strong>da</strong> em Husserl, a doação de significado para a experiência<br />

do corpo aparece implica<strong>da</strong> a uma concepção<br />

de plastici<strong>da</strong>de dos movimentos, que requerem constantes<br />

atualizações, e ao uso de ferramentas para o acesso intencional<br />

do mundo. A formação <strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de passa em<br />

1907 pela articulação autorreferente dos atos corporais<br />

em uma experiência consciente estendi<strong>da</strong> no tempo. É<br />

impossível neste ponto não associar a posição de Husserl<br />

com o verbete de percepção espacial na Enciclopédia de<br />

Ciências Cognitivas do MIT (Colby, 1999, p. 786): “Nossa<br />

experiência unitária do espaço emerge de uma diversi<strong>da</strong>de<br />

de representações espaciais estendi<strong>da</strong>s no tempo”. A<br />

semelhança entre a fenomenologia do espaço e a recente<br />

ciência cognitiva é realmente inegável.<br />

O tema <strong>da</strong> vigília autoconsciente na sensação de movimentos<br />

do próprio corpo ganha contornos mais complexos<br />

quando se contrastam as definições de Husserl com a definição<br />

contemporânea de cinestesia. Henrik H. Ehrsson,<br />

um aclamado neurocientista cognitivo de Estocolmo, escolheu,<br />

para sua conferência proferi<strong>da</strong> no Congresso Toward<br />

a Science of Consciousness realizado em Tucson/AZ nos<br />

EUA, o título: “Two legs, two arms, one head: Who am I?”<br />

(Ehrsson, 2010). O confronto entre as duas pernas, os dois<br />

braços e uma cabeça remete exatamente ao problema <strong>da</strong><br />

presença <strong>da</strong> autoconsciência no desempenho e na percepção<br />

de atos motores. Ehrsson investiga as relações entre<br />

percepção e comportamento com base em pesquisas com<br />

ilusão corpórea. Seus estudos articulam <strong>da</strong>dos de correlato<br />

neural e descrição de experiência dos participantes em um<br />

contexto de tarefa experimental. O pesquisador defende<br />

a tese de integração dos sistemas sensoriais e, por conseguinte,<br />

integração de áreas cerebrais na constituição <strong>da</strong><br />

percepção do espaço. Os trabalhos de Ehrsson levantam,<br />

em alguma medi<strong>da</strong>, a in<strong>da</strong>gação sobre a importância <strong>da</strong><br />

mediação <strong>da</strong> consciência reflexiva no desempenho motor<br />

e perceptivo em situações de ambigui<strong>da</strong>de proprioceptiva.<br />

Isto é, qual o nível de influência <strong>da</strong> autorreflexivi<strong>da</strong>de<br />

implícita necessária para o desempenho de ações. Nessa<br />

direção, discute o tema <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de do organismo<br />

em seus experimentos. A incerteza e principalmente<br />

instabili<strong>da</strong>de sobre a experiência integra<strong>da</strong> e unitária do<br />

corpo, como revelados por seus achados experimentais,<br />

levam Ehrsson a perguntar: Quem sou eu?<br />

O pesquisador sueco representa uma linha de pesquisa<br />

que tem procurado compreender a conexão entre<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 123-130, jul-dez, 2011<br />

Thiago G. Castro & William B. Gomes<br />

traços psicológicos e as variações na sensação de movimento<br />

(cinestesia). Mais especificamente, a relação entre<br />

ação, autoconsciência e intencionali<strong>da</strong>de motora. Nessas<br />

pesquisas criam-se ambientes de ação em que se geram<br />

ambigui<strong>da</strong>des perceptivas para o acompanhamento dos<br />

processos decisórios motores e autoconscientes associados<br />

à toma<strong>da</strong> de posição diante <strong>da</strong>s ambigui<strong>da</strong>des. Tais<br />

ambigui<strong>da</strong>des baseiam-se, em grande parte, na perturbação<br />

<strong>da</strong> integração de canais sensoriais.<br />

Um exemplo de estudo é o experimento conhecido<br />

como Rubber Hand Illusion (RHI), que busca avaliar a integração<br />

intermo<strong>da</strong>l proprioceptiva na auto-atribuição de<br />

membros fantasmas (Botvinick & Cohen, 1998). Os pesquisadores<br />

criam uma situação de ilusão perceptiva em<br />

que se produz uma distorção <strong>da</strong> posição manual pela estimulação<br />

sincrônica de uma mão ver<strong>da</strong>deira e uma mão de<br />

borracha. A partir de uma variação de condições experimentais<br />

Ehrsson, Spence, e Passinham (2004) evidenciaram<br />

que a ocorrência <strong>da</strong> ilusão na tarefa RHI depende de<br />

uma estimulação sincrônica <strong>da</strong> mão ver<strong>da</strong>deira e <strong>da</strong> mão<br />

falsa. Em média, 80% dos participantes relatam a ilusão<br />

espera<strong>da</strong> pela indução <strong>da</strong> RHI, dentro de um intervalo de<br />

15 segundos de estimulação sincrônica na mão ver<strong>da</strong>deira<br />

e na mão de borracha (Ehrsson, Holmes & Passingham,<br />

2005). Embora a sincronici<strong>da</strong>de viso-tátil <strong>da</strong> estimulação<br />

seja um fator importante na produção <strong>da</strong> ilusão, não<br />

é suficiente para explicar a recalibração proprioceptiva.<br />

Tsakiris e Haggard (2005) demonstraram que o efeito <strong>da</strong><br />

ilusão diminui ou se extingue mesmo com estimulação<br />

em sincronia, quando a postura ou a laterali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mão<br />

de borracha são incongruentes com a posição <strong>da</strong> mão<br />

ver<strong>da</strong>deira. Essa evidência indica que representações e<br />

expectativas prévias sobre o corpo exercem também um<br />

importante papel na propriocepção.<br />

Sobre a integração dos canais sensoriais na percepção,<br />

Ehrsson, Holmes e Passingham (2005) demonstraram que<br />

o aumento sensível <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de nos córtices pré-motor,<br />

ventral intra-parietal bilateral e cerebelo correspondem ao<br />

aumento gradual <strong>da</strong> intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ambigui<strong>da</strong>de ou ilusão<br />

perceptiva gera<strong>da</strong> nos contextos de tarefa. Isso comprova<br />

que diferentes regiões do cérebro estão altamente integra<strong>da</strong>s<br />

na percepção e que não haveria uma prevalência de<br />

um canal sensório sobre o outro na integração perceptiva.<br />

Ou seja, já partindo <strong>da</strong>s constatações de que a percepção<br />

está integra<strong>da</strong>, tanto na cinestesia quanto na propriocepção<br />

conceitual e unitária do corpo, busca-se avaliar a reação do<br />

corpo diante <strong>da</strong> dissociação <strong>da</strong> integração perceptiva.<br />

As perguntas lança<strong>da</strong>s remetem aos comportamentos<br />

observados no laboratório. Isto é, diante de ambigui<strong>da</strong>des<br />

perceptivas prevalece o padrão intencional motor previamente<br />

aferido, independente <strong>da</strong> distorção? Ou prevalece<br />

o ajuste <strong>da</strong> ação de acordo com a mediação autoconsciente<br />

<strong>da</strong> dissociação perceptiva durante o ato? Tais achados<br />

sobre plastici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> atualização proprioceptiva podem<br />

auxiliar no tratamento ou reabilitação individualiza<strong>da</strong> de<br />

sujeitos, que por alguma razão possuam prejuízo na in-<br />

128


“Como Sei que Eu Sou Eu?” Cinestesia e Espaciali<strong>da</strong>de nas Conferências Husserlianas de 1907 e em Pesquisas Neurocognitivas<br />

tegração proprioceptiva do corpo (ex. amputados, comorbi<strong>da</strong>des<br />

de auto-imagem em transtornos alimentares, ou<br />

mesmo esquizofrenia). Essas perguntas estão sendo investiga<strong>da</strong>s<br />

no Laboratório de Fenomenologia Experimental<br />

e Cognição <strong>da</strong> UFRGS, através de dois paradigmas experimentais<br />

de ilusão perceptiva em tarefas experimentais<br />

com seres humanos.<br />

Considerações finais<br />

De modo direto ou indireto, a problemática <strong>da</strong> concomitância<br />

autoconsciente na percepção de movimentos<br />

sustenta o mesmo interesse teórico levantado por Husserl<br />

há mais de um século atrás. A pergunta continua sendo<br />

a mesma: como se constitui e se desenvolve a percepção?<br />

Embora os caminhos de investigação tenham seguido por<br />

rumos diferentes, as nuanças <strong>da</strong> percepção continuam a<br />

despertar interesse, como bem atestam os estudos recentes<br />

do pesquisador H.H. Ehrsson. As divergências entre<br />

Husserl e os psicólogos experimentais <strong>da</strong> época, representados<br />

por Müller, foram capta<strong>da</strong>s com elegância pelo<br />

psicometrista C. E. Spearman, em sua autobiografia, referindo-se<br />

à visita que fez à Universi<strong>da</strong>de de Göttingen em<br />

1906. Spearman discorreu sobre Husserl, após descrever<br />

suas impressões <strong>da</strong>s aulas de Müller:<br />

Na mesma universi<strong>da</strong>de, a de Göttingen, eu tive a<br />

vantagem adicional de assistir as palestras de Husserl,<br />

em seu modo, um grande homem como G.E. Müller.<br />

Mas rumos seguidos por eles os levaram a mundos à<br />

parte. Na ver<strong>da</strong>de, a única coisa que parecia comum<br />

aos dois era a inabili<strong>da</strong>de de um apreciar o outro! Para<br />

Müller, as análises refina<strong>da</strong>s de Husserl pareciam ser<br />

um renascimento <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de média (como, de fato, elas<br />

amplamente foram, mas não necessariamente como<br />

uma desvantagem). Para Husserl, as tentativas de Müller<br />

em li<strong>da</strong>r com os problemas psicológicos por meio<br />

de experimentação era como tentar desven<strong>da</strong>r ren<strong>da</strong>s<br />

com um tridente. Ain<strong>da</strong> assim, o procedimento de Husserl<br />

– como ele o descreveu para mim – apenas diferia<br />

<strong>da</strong>quele usado pelo melhor experimentalista, li<strong>da</strong>ndo<br />

com problemas similares, em que pesa Husserl não ter<br />

ninguém além dele mesmo como sujeito experimental<br />

(Spearman, 1930 citado por Spiegelberg, 1972, p. 35).<br />

Mesmo trabalhando com problemas similares, como<br />

atesta Spearman na citação, Husserl mantinha uma forte<br />

preocupação em definir um programa filosófico sólido o<br />

suficiente para se afastar <strong>da</strong>s proposições empíricas embasa<strong>da</strong>s<br />

em um tipo de racionalismo que ele discor<strong>da</strong>va.<br />

O projeto que Husserl seguiu foi o de uma filosofia primeira<br />

como refun<strong>da</strong>ção para as ciências naturais. Nesse<br />

sentido, seu desentendimento praticamente generalizado<br />

com a psicologia empírica <strong>da</strong> época pode ser compreendido<br />

a partir do panorama dessa refun<strong>da</strong>ção.<br />

O tipo de confronto entre apologistas e detratores <strong>da</strong><br />

ciência natural parece ser reeditado de tempos em tempos,<br />

especialmente sob o argumento <strong>da</strong> distinção entre<br />

ciências humanas e ciências naturais. Tal discussão<br />

não escapa à literatura fenomenológica. Contudo, com os<br />

avanços tecnológicos e a incorporação <strong>da</strong> descrição de experiência<br />

como heurística em protocolos experimentais,<br />

tal distinção parece perder espaço para o debate mais<br />

profícuo em torno dos acréscimos que uma teoria pode<br />

sugerir a outra. Este novo horizonte também se situa na<br />

revisão <strong>da</strong> definição clássica de naturalismo, que vem<br />

sendo ressignifica<strong>da</strong> pelas mu<strong>da</strong>nças recentes na investigação<br />

científica (Zahavi, 2009).<br />

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Thiago Gomes de Castro - Mestre em Psicologia (UFRGS) e<br />

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia <strong>da</strong> UFRGS.<br />

Pesquisador do Laboratório de Fenomenologia Experimental e<br />

Cognição - LaFEC. Endereço Institucional: IP/UFRGS, Rua Ramiro<br />

Barcelos, 2600 - Sala 123. CEP 90035.003. Porto Alegre/RS. E-mail:<br />

thiago.cast@gmail.com<br />

William Barbosa Gomes - PhD em Psicologia pela Southern Illinois<br />

University e com estágios de pós-doutoramento na Southern Illinois<br />

University e na Universi<strong>da</strong>de de Michigan, fun<strong>da</strong>dor e professor do<br />

Programa de Pós-Graduação em Psicologia <strong>da</strong> UFRGS. Coordenador<br />

do Laboratório de Fenomenologia Experimental e Cognição - LaFEC.<br />

Endereço Institucional: IP/UFRGS, Rua Ramiro Barcelos, 2600 - Sala<br />

123. CEP 90035.003. Porto Alegre/RS. E-mail: gomesw@ufrgs.br<br />

Recebido em 16.06.2011<br />

Aceito em 23.09.11<br />

130


A Crítica <strong>da</strong> Fenomenologia de Husserl à Visão Positivista nas Ciências Humanas<br />

a CRítiCa <strong>da</strong> fenomenologia de HuSSeRl à<br />

viSão poSitiviSta naS CiênCiaS HumanaS<br />

The Critique of Husserl’s Phenomenology the Positivist View in Humanities<br />

La Crítica de la Fenomenología de Husserl la Visión Positivista en Humani<strong>da</strong>des<br />

Ca r l o s di ó g e n e s Co r T e s To u r i n h o<br />

Resumo: O artigo concentra-se em torno <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> atitude fenomenológica, bem como <strong>da</strong> metodologia adota<strong>da</strong> pela<br />

fenomenologia de Edmund Husserl no começo do século XX. Tal atitude consiste em uma atitude reflexiva e analítica, a partir<br />

<strong>da</strong> qual se busca fun<strong>da</strong>mentalmente eluci<strong>da</strong>r, determinar e distinguir o sentido íntimo <strong>da</strong>s coisas. Já o método fenomenológico<br />

é, por sua vez, um método de evidenciação dos fenômenos, cuja estratégia consiste no exercício <strong>da</strong> suspensão de juízo em relação<br />

à posição de existência <strong>da</strong>s coisas, viabilizando a recuperação destas em sua pura significação. Contrastando a atitude fenomenológica<br />

com o que Husserl chamou de “atitude natural” (atitude na qual se encontra mergulha<strong>da</strong> a consciência <strong>da</strong>s ciências<br />

positivas), o artigo abor<strong>da</strong>rá, em segui<strong>da</strong>, a crítica <strong>da</strong> fenomenologia à perspectiva positivista nas Ciências Humanas.<br />

Palavras-chave: Fenomenologia; Ciências humanas; Edmund Husserl; Positivismo.<br />

Abstract: The present paper focuses around the specificity of the phenomenological attitude and the methodological strategy<br />

adopted by the phenomenology of Edmund Husserl in the Twentieth Century. Such attitude is reflective and analitical, from<br />

which one seeks to fun<strong>da</strong>mentally eluci<strong>da</strong>te, identify and distinguish the sense of things. Impelled by the slogan of the “return<br />

to the things itself”, the phenomenology of Husserl adopts, through a methodological point of view, the call “phenomenological<br />

reduction”, that is, the suspension of the judgement in relation to the natural world, to recover it, in the consciousness, in an<br />

indubitable way, in his pure meaning. Contrasting the attitude phenomenological with what Husserl called “natural attitude”,<br />

the paper addressed then the critique of phenomenology to perspective positivist in humanities.<br />

Keywords: Phenomenology; Humanities; Edmund Husserl; Positivism.<br />

Resumen: El presente artículo tiene como objetivo abor<strong>da</strong>r la especifici<strong>da</strong>d de la actitud fenomenológica, así como de la metodología<br />

adopta<strong>da</strong> por la fenomenología de Edmund Husserl a principios del siglo XX. Esta actitud consiste en una actitud reflexiva<br />

y analítica, de la cual se busca aclarar, identificar y distinguir el significado íntimo de las cosas. El método fenomenológico es<br />

un método de aclaración de los fenómenos, cuya estrategia consiste en el ejercicio de la suspensión del juicio en relación la posición<br />

de la existencia de las cosas, lo que permite la recuperación de estos en su significación pura. Por último, se abor<strong>da</strong>rá la<br />

crítica de la fenomenología la concepción positivista de las humani<strong>da</strong>des.<br />

Palabras-clave: Fenomenología; Humani<strong>da</strong>des; Edmund Husserl; Positivismo.<br />

introdução<br />

O presente artigo concentra-se em torno <strong>da</strong> tarefa de<br />

aclarar a especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> atitude fenomenológica (enquanto<br />

modo de consideração do mundo), bem como <strong>da</strong><br />

metodologia adota<strong>da</strong> pela fenomenologia de Edmund<br />

Husserl para o alcance de um grau máximo de evidenciação<br />

dos fenômenos. Tal atitude consiste, conforme<br />

será destacado – em uma atitude reflexiva e analítica, a<br />

partir <strong>da</strong> qual se busca, nos termos <strong>da</strong>s “Cinco Lições”<br />

de Husserl – em fun<strong>da</strong>mentalmente eluci<strong>da</strong>r, determinar<br />

e distinguir o sentido íntimo <strong>da</strong>s coisas (a coisa em sua<br />

“doação originária”, revela<strong>da</strong> “em pessoa”). Já o método<br />

fenomenológico será, por sua vez, um método de evidenciação<br />

dos fenômenos, cuja estratégia consiste, grosso<br />

modo, no exercício <strong>da</strong> suspensão de juízo em relação à<br />

posição de existência <strong>da</strong>s coisas, viabilizando a recuperação<br />

destas em sua pura significação.<br />

Contrastando a atitude fenomenológica com o que<br />

Husserl chamou de “atitude natural” (modo de orientação<br />

no qual se encontra mergulha<strong>da</strong> a consciência <strong>da</strong>s ciências<br />

positivas), o artigo abor<strong>da</strong>rá, em segui<strong>da</strong>, a crítica <strong>da</strong> fenomenologia<br />

à perspectiva positivista nas Ciências Humanas.<br />

Enquanto o programa positivista deixa-nos, para o estudo<br />

do homem, confinados, do ponto de vista metodológico, a<br />

uma lógica indutiva, segundo a qual conhecer consiste em<br />

descrever, pela observação positiva dos fatos, a regulari<strong>da</strong>de<br />

desses fatos, a abor<strong>da</strong>gem fenomenológica nas ciências<br />

humanas convi<strong>da</strong>-nos para uma clarificação do que há de<br />

mais fun<strong>da</strong>mental na coisa sobre a qual retornamos, deslocando-nos<br />

a atenção dos fatos contingentes para o seu sentido<br />

originário indissociável de uma intencionali<strong>da</strong>de. Tal<br />

abor<strong>da</strong>gem consoli<strong>da</strong>, com isso, uma espécie de “conversão<br />

filosófica” que nos faz passar de uma visão ingênua do<br />

mundo para um modo de consideração <strong>da</strong>s coisas, no qual<br />

o mundo se revela em sua totali<strong>da</strong>de como “fenômeno”.<br />

131 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 131-136, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

1. atitude fenomenológica e o método de evidenciação<br />

na fenomenologia<br />

Movido por seu projeto filosófico, Husserl anuncia-nos<br />

explicitamente – em A Idéia <strong>da</strong> Fenomenologia (Die Idee<br />

der Phänomenologie), núcleo <strong>da</strong>s “Cinco Lições” proferi<strong>da</strong>s<br />

em abril-maio de 1907 – que, com a fenomenologia,<br />

deparamo-nos com a proposta de uma “nova atitude” e<br />

de um “novo método”. Deparamo-nos primeiramente com<br />

uma ciência, com uma conexão de disciplinas científicas.<br />

Mas, para Husserl, acima de tudo, por “fenomenologia”<br />

designamos “...um método e uma atitude de pensamento:<br />

a atitude de pensamento especificamente filosófica<br />

e o método especificamente filosófico” (Husserl,<br />

1907/1997, p. 45).<br />

A atitude fenomenológica consiste em uma atitude<br />

reflexiva e analítica, a partir <strong>da</strong> qual se busca fun<strong>da</strong>mentalmente<br />

eluci<strong>da</strong>r, determinar e distinguir o sentido<br />

íntimo <strong>da</strong>s coisas, a coisa em sua “doação originária”,<br />

tal como se mostra à consciência. Trata-se de descrevê-la<br />

enquanto objeto de pensamento. Analisar o seu sentido<br />

atualizado no ato de pensar, explicitando intuitivamente<br />

as significações que se encontram ali virtualmente<br />

implica<strong>da</strong>s em cogitos inatuais, bem como os seus diferentes<br />

modos de aparecimento na própria consciência<br />

intencional. Explorar a riqueza deste universo de significações<br />

que a coisa – enquanto um cogitatum – nos revela<br />

no ato intencional é o que é próprio <strong>da</strong> atitude fenomenológica<br />

enquanto um “discernimento reflexivo” levado<br />

a cabo com rigor.<br />

A especifici<strong>da</strong>de de tal atitude faz <strong>da</strong> fenomenologia a<br />

“ciência clarificadora” por excelência. Já o método fenomenológico<br />

será, por sua vez, um método de evidenciação<br />

plena dos fenômenos. Também será, para Husserl, o<br />

método especificamente filosófico, cuja estratégia maior<br />

consiste, para o alcance de um grau máximo de evidência,<br />

no exercício <strong>da</strong> suspensão de juízo em relação à posição<br />

de existência <strong>da</strong>s coisas. Tal exercício viabiliza,<br />

assim, a chama<strong>da</strong> “redução fenomenológica” e, com ela,<br />

a recuperação <strong>da</strong>s coisas em sua pura significação, tal<br />

como se revelam (ou se mostram), enquanto objetos de<br />

pensamento, na consciência intencional.<br />

O ponto de parti<strong>da</strong> de Husserl é o que ele próprio definiu,<br />

no § 27 de Idéias I, como sendo a “Tese do Mundo”<br />

(ou mais precisamente, a “Tese <strong>da</strong> Orientação Natural”),<br />

isto é, a tese segundo a qual o que chamamos de “mundo”<br />

encontra-se aí, diante de nós, tudo isto que, <strong>da</strong> maneira<br />

a mais imediata e direta, nos é revelado através <strong>da</strong><br />

experiência sensível: as coisas situa<strong>da</strong>s em uma dimensão<br />

espaço-temporal, ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s quais com as suas<br />

proprie<strong>da</strong>des, relações, etc. Trata-se do mundo que nos<br />

cerca, constituído de entes mun<strong>da</strong>nos, frente aos quais<br />

podemos tomar atitudes varia<strong>da</strong>s, quer nos ocupemos<br />

com eles quer não. Vivenciamos, portanto, a todo instante,<br />

a chama<strong>da</strong> “Tese do Mundo”. Mas, se além <strong>da</strong> vivência<br />

dessa tese, fazemos uso <strong>da</strong> mesma, passamos, en-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 131-136, jul-dez, 2011<br />

Carlos D. C. Tourinho<br />

tão, a exercer o que Husserl chamou de “atitude natural”<br />

(natürliche Einstellung).<br />

Na atitude natural, atribuo a mim um corpo em meio<br />

a outros corpos e me insiro no mundo através <strong>da</strong> experiência<br />

sensível. Admito, em tal atitude, sem que haja, ao<br />

menos, um exame crítico, a existência do mundo (concebido<br />

como “reali<strong>da</strong>de factual”), bem como a possibili<strong>da</strong>de<br />

de conhecê-lo e, com isso, adoto, de certo modo,<br />

um “realismo ingênuo”. Daí Husserl afirmar, em seu importante<br />

artigo de 1911, intitulado A filosofia como ciência<br />

rigorosa, que: “To<strong>da</strong> ciência <strong>da</strong> natureza se comporta<br />

de maneira ingênua...a natureza toma<strong>da</strong> como objeto de<br />

suas investigações encontra-se para ela simplesmente aí”<br />

(Husserl, 1911/1989, p. 25).<br />

Neste sentido, a tarefa crítica <strong>da</strong> Teoria do<br />

Conhecimento de promover uma investigação acerca do<br />

que torna possível a relação de correspondência entre as<br />

vivências cognoscitivas e as coisas a serem conheci<strong>da</strong>s<br />

encontra-se desapercebi<strong>da</strong> na atitude natural. Dá-se às<br />

costas para o chamado “enigma do conhecimento transcendente”,<br />

para o que, classicamente, passou-se a chamar<br />

pelo nome de “problema <strong>da</strong> correspondência”. Afinal, o<br />

que torna possível tal conhecimento do mundo? Em que<br />

ele se fun<strong>da</strong>? Quais são os seus limites? “Como pode o conhecimento<br />

estar certo <strong>da</strong> sua consonância com as coisas<br />

que existem em si, de as ‘atingir’?” (Husserl, 1907/1997, p.<br />

103). Dá-se, portanto, na atitude natural, a possibili<strong>da</strong>de<br />

do conhecimento do mundo (entendido como “reali<strong>da</strong>de<br />

factual”) como algo certo e inquestionável. Nos termos<br />

de Husserl: “Óbvia é, para o pensamento natural, a possibili<strong>da</strong>de<br />

do conhecimento...não há nenhum ensejo para<br />

lançar a questão <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de do conhecimento em<br />

geral” (Husserl, 1907/1997, p. 41). Para Husserl, tanto a<br />

consciência do senso comum quanto a consciência <strong>da</strong>s<br />

ciências ditas “positivas” encontram-se, ain<strong>da</strong> que de modos<br />

distintos, mergulha<strong>da</strong>s na atitude natural, cujo exercício<br />

expressa a relação entre uma consciência espontânea<br />

(empírica ou psicológica) e o mundo natural, revelado<br />

empiricamente para essa consciência em sua factici<strong>da</strong>de.<br />

Absorvi<strong>da</strong> por esse realismo ingênuo, tal consciência natural<br />

– tanto do senso comum quanto <strong>da</strong>s ciências positivas<br />

– não se aperceberá do enigma do conhecimento<br />

transcendente em torno do qual gira a tarefa crítica <strong>da</strong><br />

investigação promovi<strong>da</strong> pela Teoria do Conhecimento:<br />

afinal, “como pode o conhecimento ir além de si mesmo,<br />

como pode ele atingir um ser que não se encontra no âmbito<br />

<strong>da</strong> consciência?” (Husserl, 1907/1997, p. 105).<br />

Para Husserl, se torna obscuro como pode o conhecimento<br />

atingir o que é transcendente, aquilo que não é,<br />

em seus termos, <strong>da</strong>do em pessoa, mas “trans-intentado”.<br />

Porém, nas “Cinco Lições”, Husserl alerta-nos para o fato<br />

de que se o conhecimento encerra um problema, não significa<br />

dizer, com isso, que ele seja em si próprio problemático.<br />

Em outros termos, admitir que haja no conhecimento<br />

um enigma, não nos obriga a afirmar que todo o<br />

conhecimento é enigmático. Husserl deixa-nos claro en-<br />

132


A Crítica <strong>da</strong> Fenomenologia de Husserl à Visão Positivista nas Ciências Humanas<br />

tão que, na esfera do conhecimento objetivo, aquilo que é<br />

enigmático, que nos deixa perplexos sobre a possibili<strong>da</strong>de<br />

de conhecer é propriamente a sua “transcendência”. Tal<br />

constatação coloca-nos, conforme veremos mais adiante,<br />

frente a relação entre mundo interior e mundo exterior,<br />

entre o “imanente” e o “transcendente”.<br />

Fiel ao seu projeto filosófico de constituição <strong>da</strong> filosofia<br />

como uma “Ciência de Rigor”, Husserl sabe que as tais<br />

evidências apodíticas – necessárias para a fun<strong>da</strong>mentação<br />

<strong>da</strong> própria filosofia – não poderiam ser extraí<strong>da</strong>s do<br />

plano empírico-natural, pois, por mais perfeita que seja<br />

uma percepção empírica, ela será sempre a percepção de<br />

um ponto de vista e, enquanto tal, somente poderá revelar<br />

“aspectos” ou “perspectivas” – admiravelmente convergentes,<br />

mas continuamente diversas e incompletas – <strong>da</strong><br />

coisa percebi<strong>da</strong> (perceptum) que, por sua vez, não será revela<strong>da</strong><br />

em sua plenitude, mas apenas parcialmente, “por<br />

um de seus lados”. Ain<strong>da</strong> assim, a crença acerca do que<br />

percebemos empiricamente vai muito além <strong>da</strong>quilo que<br />

a percepção empírica efetivamente nos revela. Neste sentido,<br />

pode-se dizer que a coisa vista empiricamente será<br />

sempre um “misto de visto e não visto”. Portanto, to<strong>da</strong><br />

evidência extraí<strong>da</strong> do plano empírico-natural, no qual a<br />

consciência empírica se relaciona com as coisas mun<strong>da</strong>nas,<br />

será sempre uma evidência perspectivista (ou existencial),<br />

ou seja, uma evidência parcial.<br />

Dos fatos não podemos extrair “evidências absolutas”.<br />

A coisa e o mundo em geral não são apodíticos, pois não<br />

excluem a possibili<strong>da</strong>de de que duvidemos deles e, portanto,<br />

não excluem a possibili<strong>da</strong>de de sua não existência.<br />

Eis um segundo motivo do porque não podermos, na visão<br />

de Husserl, extrair evidências plenas de nossa percepção<br />

empírica do mundo, pois, a julgar pelo o que a experiência<br />

sensível nos revela do mundo, nós jamais poderíamos<br />

eliminar, por completo, a possibili<strong>da</strong>de de duvi<strong>da</strong>r <strong>da</strong> posição<br />

de existência <strong>da</strong>s coisas que se nos apresentam e,<br />

neste sentido, estaríamos sempre prestes a corrigir as nossas<br />

percepções do que havia sido estabelecido com base<br />

na experiência sensível. “É sempre possível que o curso<br />

ulterior <strong>da</strong> experiência nos obrigue a abandonar o que já<br />

se tinha estabelecido sob a autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> experiência”<br />

(Husserl, 1913/1950, p. 150). Portanto, para Husserl, com<br />

base no ente mun<strong>da</strong>no, seria impossível elaborar uma filosofia<br />

que se pudesse apresentar como ciência rigorosa.<br />

Com vistas a viabilizar tal projeto filosófico, surgia,<br />

então, para Husserl, o desafio de encontrar uma estratégia<br />

metodológica que renunciasse, sem negar a existência do<br />

mundo tal como um cético, ao modo de consideração do<br />

senso comum e <strong>da</strong>s ciências positivas acerca do mundo,<br />

modo esse ingênuo e espontâneo por meio do qual as coisas<br />

somente se revelariam, conforme vimos, parcialmente.<br />

Em outros termos, o desafio de Husserl consistiria em<br />

encontrar um método cujo exercício tornasse viável uma<br />

operação capaz de garantir o aparecimento <strong>da</strong>s coisas em<br />

sua “inteireza”, em sua doação originária, revelando-se na<br />

consciência em uma evidenciação plena ou “apodítica”.<br />

Afinal, conforme ficará ca<strong>da</strong> vez mais claro, tudo aquilo<br />

que não tiver o caráter de apresentação imediata, só realizável<br />

na consciência, não pode ser “apodítico”.<br />

Husserl opta, então, como estratégia metodológica<br />

para o alcance <strong>da</strong>s evidências apodíticas, pelo exercício<br />

<strong>da</strong> epoché, isto é, pelo exercício <strong>da</strong> “suspensão de juízo”<br />

em relação à posição de existência <strong>da</strong>s coisas. Husserl recupera,<br />

já nas “Cinco Lições” e, posteriormente, em Idéias<br />

I, o conceito de epoché do ceticismo antigo, porém, para<br />

pensá-lo não como um modus vivendi (como um princípio<br />

ético a ser praticado como “hábito virtuoso”) – conforme<br />

propunha o ceticismo pirrônico no período Helênico –<br />

mas sim, como um recurso metodológico. Com o exercício<br />

<strong>da</strong> epoché, abstemo-nos de tecer considerações acerca <strong>da</strong><br />

existência ou não existência <strong>da</strong>s coisas mun<strong>da</strong>nas. Nos<br />

termos de Husserl, promovo a “colocação <strong>da</strong> atitude natural<br />

entre parênteses”, a factici<strong>da</strong>de do mundo fica “fora<br />

de circuito” (Husserl, 1913/1950, p. 96). Ao suspender o<br />

juízo em relação à factici<strong>da</strong>de do mundo, eu não deixo<br />

de vivenciar a “tese do mundo”, no entanto, como diz o<br />

§ 31 de Idéias I, não faço mais uso dessa tese, procuro<br />

mantê-la fora de circuito: “...a tese é um vivido, mas dele<br />

não fazemos ‘nenhum uso’...” (Husserl, 1913/1950, p. 99).<br />

Tal renúncia implica, de certo modo, em uma espécie de<br />

“conversão filosófica”, por meio <strong>da</strong> qual adotamos um<br />

novo modo de consideração do mundo.<br />

A serviço desta tal reflexivi<strong>da</strong>de radical própria <strong>da</strong><br />

atitude fenomenológica, a epoché fenomenológica – enquanto<br />

um “instrumento de depuração do fenômeno”<br />

– proporcionará, em seu exercício generalizado, o deslocamento<br />

<strong>da</strong> atenção, inicialmente volta<strong>da</strong> para os fatos<br />

contingentes do mundo natural, para o domínio de<br />

uma subjetivi<strong>da</strong>de transcendental, “...domínio absolutamente<br />

autônomo do ser puramente subjetivo...” (Husserl,<br />

1924/1970, p. 321), dentro <strong>da</strong> qual e a partir <strong>da</strong> qual os<br />

“fenômenos” – enquanto ideali<strong>da</strong>des puras – se revelarão<br />

como “evidências absolutas” para uma consciência<br />

transcendental, dota<strong>da</strong> <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de ver ver<strong>da</strong>deiramente<br />

estes fenômenos tal como se apresentam em sua<br />

plena evidência. Trata-se, como o próprio Husserl insiste<br />

em ressaltar, em diferentes momentos de sua obra, de um<br />

“puro ver” (reinen Schauen) <strong>da</strong>s coisas. Ain<strong>da</strong> nos termos<br />

do § 35 de Idéias I, trata-se “...não exatamente e meramente<br />

do olhar físico, mas do ‘olhar do espírito’...” (Husserl,<br />

1913/1950, p. 113). Nas “Cinco Lições”, Husserl nos diz:<br />

“A fenomenologia procede eluci<strong>da</strong>ndo visualmente, determinando<br />

e distinguindo o sentido...Mas tudo no puro ver”<br />

(Husserl, 1907/1997, p. 87). Em suma, a fenomenologia<br />

prescindirá de tecer considerações acerca <strong>da</strong> posição de<br />

existência <strong>da</strong>s coisas mun<strong>da</strong>nas para direcionar, então,<br />

a atenção para os “fenômenos”, tal como se revelam (ou<br />

como se mostram), em sua pureza irrefutável, na autoreflexão<br />

<strong>da</strong> consciência transcendental. Nos termos de<br />

Husserl, atingimos assim o “ego cogito” ver<strong>da</strong>deiramente<br />

radical, somente inteligível na sua explicitação plena<br />

“ego-cogito-cogitatum”.<br />

133 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 131-136, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Portanto, de um lado, deparamo-nos com um modo de<br />

consideração <strong>da</strong>s coisas a partir do qual o mundo se revela<br />

para a nossa consciência espontânea como o domínio<br />

empírico-natural dos fatos, do que se encontra submetido<br />

a uma dimensão espaço-temporal. Trata-se do modo<br />

de consideração do mundo próprio <strong>da</strong>s ciências positivas<br />

em geral. Paralelamente, como um recurso metodológico<br />

para o alcance <strong>da</strong>s evidências apodíticas, o exercício generalizado<br />

<strong>da</strong> epoché e, conseqüentemente, <strong>da</strong> redução<br />

fenomenológica, promoverá o salto para o modo de consideração<br />

transcendental (ou fenomenológico) <strong>da</strong>s coisas,<br />

fazendo agora com que o mundo se revele, na e para a<br />

consciência pura (ou transcendental), como um “horizonte<br />

de sentidos”. Se esta consciência pura não pode ser<br />

toma<strong>da</strong> em termos de <strong>da</strong>dos empíricos, cabe-nos apenas<br />

concebê-la a partir de sua relação intencional com o seu<br />

objeto que, em sua versão reduzi<strong>da</strong>, enquanto um objeto<br />

de pensamento, na<strong>da</strong> mais é do que um conteúdo intencional<br />

<strong>da</strong> consciência.<br />

Trata-se, com tal redução, de fazer o mundo reaparecer<br />

na consciência como um horizonte de ideali<strong>da</strong>des<br />

meramente significativas, que se revelam como um <strong>da</strong>do<br />

absoluto e imediato para uma tal consciência pura que o<br />

apreende e o constitui intuitivamente. A mesma consciência<br />

que intuitivamente apreende o objeto em sua versão<br />

reduzi<strong>da</strong>, isto é, como “fenômeno puro”, é também<br />

responsável pela constituição desse mesmo objeto, agora<br />

atualizado no pensamento como uma uni<strong>da</strong>de de sentido.<br />

O objeto, precisamente porque inconcebível sem ser<br />

pensado, enquanto um cogitatum, exige uma doação de<br />

sentido que só pode vir através dos atos intencionais <strong>da</strong><br />

consciência, isto é, as uni<strong>da</strong>des de sentido pressupõem<br />

uma consciência doadora de sentido. Sendo assim, dizer<br />

que to<strong>da</strong> consciência é consciência de alguma coisa é dizer<br />

que não há cogito sem cogitatum.<br />

Portanto, deparamo-nos com duas atitudes – a “atitude<br />

natural” e a “atitude fenomenológica” – que, por<br />

sua vez, colocam-nos frente a frente com o que Husserl<br />

considerou, no § 76 de Idéias I, a mais radical de to<strong>da</strong>s<br />

as diferenciações ontológicas: o ser como ser “transcendente”<br />

e o ser como consciência, ou ser transcendental<br />

(Husserl, 1913/1950, p. 243). Tais atitudes consistem em<br />

duas orientações ou dois modos distintos de consideração<br />

<strong>da</strong>s coisas. Na primeira dessas orientações, o mundo<br />

exterior que transcende a consciência, mundo para<br />

o qual nos encontramos naturalmente orientados, nos é<br />

revelado em sua factici<strong>da</strong>de (em termos tomistas, diríamos<br />

sob o modo de existência de “coisa natural”/ esse<br />

naturale). Eis a idéia do ser como “ser transcendente”,<br />

fora <strong>da</strong> consciência. Já na orientação fenomenológica, o<br />

mundo se revela, na autêntica imanência <strong>da</strong> consciência<br />

transcendental, em sua pura significação, o que é o<br />

mesmo que dizer que o mundo se revela, em sua totali<strong>da</strong>de,<br />

como “fenômeno” (como um <strong>da</strong>do imanente), inexistindo<br />

sob o modo de “coisa pensa<strong>da</strong>” (cogitatum) na<br />

consciência. As referi<strong>da</strong>s atitudes impõe-nos, portanto,<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 131-136, jul-dez, 2011<br />

Carlos D. C. Tourinho<br />

respectivamente, duas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des radicais de ser: o<br />

ser como “transcendente” e o ser como consciência (ou<br />

ser transcendental). A fenomenologia transcendental<br />

será, então, uma fenomenologia <strong>da</strong> consciência constituinte<br />

(pode-se dizer que, em Husserl, “ser evidente é<br />

ser constituído”). Exercer a epoché é reduzir à consciência<br />

transcendental. Tal redução do objeto à consciência<br />

transcendental, na medi<strong>da</strong> em que não desfaz a relação<br />

entre sujeito e objeto, revela uma dimensão nova dessa<br />

relação, impedindo que a ver<strong>da</strong>deira e autêntica objetivi<strong>da</strong>de<br />

desapareça.<br />

2. a Crítica <strong>da</strong> fenomenologia às Ciências positivas<br />

Quando pensamos a crítica <strong>da</strong> fenomenologia às ciências<br />

positivas, pensamos, então, em dois modos distintos<br />

de consideração do mundo. Tal crítica se faz notar, particularmente,<br />

quando pensamos a relação <strong>da</strong> fenomenologia<br />

com as ciências humanas. Para Husserl, não podemos<br />

inferir, como pretendem as correntes positivistas,<br />

uma lei geral a partir <strong>da</strong> observação de casos particulares<br />

e <strong>da</strong> constatação de sua regulari<strong>da</strong>de (afinal, dos fatos<br />

não podemos extrair “evidências absolutas”, a coisa<br />

e o mundo em geral não são apodíticos). Com a fenomenologia,<br />

deparamo-nos, de antemão, com uma eidética,<br />

isto é, com uma “doutrina de essências”. Nos termos de<br />

Husserl: “...a fenomenologia pode, enquanto ciência, não<br />

ser senão uma investigação de essências...” (Husserl,<br />

1911/1989, p. 53). Para Husserl, não há ciência que não<br />

comece por estabelecer um quadro de essências obti<strong>da</strong>s<br />

pela técnica de variação imaginária dos objetos. Antes de<br />

se fazer física, faz-se necessário refletir sobre o que seja<br />

o “fato físico” em sua essência. O próprio Husserl salienta,<br />

em sua Crise <strong>da</strong>s Ciências Européias, que Galileu já<br />

havia estabelecido uma eidética <strong>da</strong> coisa física, de modo<br />

que não poderia obter a lei <strong>da</strong> que<strong>da</strong> dos corpos induzindo<br />

o universal a partir do diverso <strong>da</strong> experiência, mas<br />

somente pela “intuição de essência” do corpo físico. O<br />

mesmo valeria para as demais ciências. Da definição do<br />

eidos apreendido pela intuição originária, se poderá tirar<br />

as conclusões metodológicas que orientarão a pesquisa<br />

empírica. A ca<strong>da</strong> ciência empírica corresponde uma ciência<br />

eidética concernente ao eidos regional dos objetos<br />

adotados para investigação (na física, uma eidética <strong>da</strong><br />

“coisa física”; na psicologia, uma eidética do “fato psicológico”,<br />

e assim por diante).<br />

A “essência” deve ser entendi<strong>da</strong> em Husserl não como<br />

a essência de uma “forma pura” que subsiste por si mesma<br />

(tal como em um realismo platônico), independentemente<br />

do modo como se mostra à consciência intencional,<br />

mas sim como aquilo que é retido no ato intencional<br />

desta consciência por meio <strong>da</strong> redução fenomenológica.<br />

Pode-se entender esta essência como aquilo que é retido<br />

no pensamento pela técnica de variação imaginária dos<br />

objetos: atenho-me, ao exercer a redução fenomenológi-<br />

134


A Crítica <strong>da</strong> Fenomenologia de Husserl à Visão Positivista nas Ciências Humanas<br />

ca, ao núcleo invariante <strong>da</strong> coisa, isto é, ao que persiste<br />

na coisa pensa<strong>da</strong> mesmo diante de to<strong>da</strong>s as variações as<br />

quais a submeto arbitrariamente em minha imaginação 1 .<br />

A variação arbitrária de um objeto qualquer na imaginação<br />

permite-nos notar que tal arbitrarie<strong>da</strong>de não pode ser<br />

completa, uma vez que há condições necessárias sem as<br />

quais as “variações” deixam de ser variações <strong>da</strong>quilo que<br />

se intenciona no pensamento. Ca<strong>da</strong> uma dessas possibili<strong>da</strong>des<br />

ou desses “exemplares” que se perfilam – “...de uma<br />

maneira inteiramente livre, ao sabor <strong>da</strong> nossa fantasia...”<br />

(Husserl, 1931, p. 59) – na imaginação somente poderá<br />

variar enquanto variação <strong>da</strong>quilo que se intenciona em<br />

um cogito atual, na medi<strong>da</strong> em que necessariamente tais<br />

variações compartilham algo de “invariante”, coincidindo<br />

em relação ao caráter necessário do que é intencionado<br />

no próprio pensamento. Nos termos de Husserl, no § 98<br />

de Lógica Formal e Lógica Transcendental, tratam-se de<br />

“divergências que se prestam à coincidência” (Husserl,<br />

1929/1965, p. 332). Trata-se, portanto, de uma “condição<br />

necessária” sem a qual não poderíamos exercer as referi<strong>da</strong>s<br />

variações, sem a qual sequer poderíamos considerar<br />

no pensamento um determinado objeto intencionado<br />

como tal. Tal “núcleo invariante” do cogitatum – o caráter<br />

necessário do objeto idealmente considerado – define precisamente<br />

a “essência” (o que Husserl chama, no § 98 <strong>da</strong><br />

referi<strong>da</strong> obra, de “forma ôntica essencial” ou “forma apriórica”<br />

(Husserl, 1929/1965, p. 332) <strong>da</strong>quilo que se mostra<br />

na e para a consciência intencional, revelando-se, portanto,<br />

em sua dimensão originária na própria intuição vivi<strong>da</strong>.<br />

Eis o que Husserl denominou de “intuição de essências”<br />

(Wesenschau). No § 34 de Meditações Cartesianas,<br />

Husserl descreve-nos novamente a dinâmica do exercício<br />

<strong>da</strong> variação imaginária dos objetos na consciência,<br />

afirmando-nos que tal exercício permite-nos deslocar a<br />

atenção <strong>da</strong>s variações as quais submeto arbitrariamente<br />

o objeto intencionado para a sua “generali<strong>da</strong>de essencial”<br />

e absoluta, generali<strong>da</strong>de essencialmente necessária para<br />

qualquer caso particular desse mesmo objeto (Husserl,<br />

1931, § 34, pp. 59/60).<br />

Tal modo de conhecimento se torna uma peça decisiva<br />

em uma abor<strong>da</strong>gem fenomenológica <strong>da</strong>s ciências do<br />

homem. Adotando, por exemplo, tal abor<strong>da</strong>gem na sociologia,<br />

se quisermos estu<strong>da</strong>r a existência de uma instituição<br />

em um determinado grupo social, sua gênese<br />

histórica e o seu papel atual na socie<strong>da</strong>de, faz-se necessário<br />

definir, primeiramente, pela variação imaginária,<br />

o que seja esta instituição. Se tomarmos a sociologia de<br />

Durkheim como exemplo, constataremos que a mesma<br />

assimila a vi<strong>da</strong> religiosa à experiência do sagrado, afirmando-nos<br />

que o sagrado tem a sua origem no totemismo,<br />

cuja origem resulta, por sua vez, de uma sublimação<br />

1 Husserl menciona-nos a técnica de variação imaginária dos<br />

objetos na consciência em alguns momentos de sua obra. Sobre<br />

a referi<strong>da</strong> técnica, o leitor poderá consultar (Logique Formelle et<br />

Logique Transcen<strong>da</strong>ntale, § 98, p. 332; Méditations Cartésiennes,<br />

§ 34, pp. 59/60).<br />

do social. No entanto, é exatamente neste ponto que uma<br />

visa<strong>da</strong> fenomenológica <strong>da</strong> sociologia poderia promover<br />

os seguintes questionamentos: a experiência do sagrado<br />

constitui a essência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> religiosa? Não seria possível<br />

conceber (por variações imaginárias) uma religião que<br />

não se apoiasse sobre esta prática do sagrado? Enfim, o<br />

que significa o “sagrado” propriamente dito? Ao invés de<br />

inferir leis gerais a partir <strong>da</strong> observação de casos particulares<br />

e <strong>da</strong> descrição <strong>da</strong> regulari<strong>da</strong>de desses casos, conforme<br />

propõe, do ponto de vista metodológico, o programa<br />

positivista, a atitude fenomenológica concentra-se – em<br />

um processo inverso aquele adotado pelas ciências positivas<br />

– na descrição (ou análise) de essências. Nos termos<br />

de Husserl, trata-se, com a atitude fenomenológica,<br />

de um processo dinâmico, de uma atitude reflexiva e<br />

analítica, cujo intuito central passa a ser o de promover<br />

a eluci<strong>da</strong>ção do sentido originário que a coisa expressa,<br />

em sua versão reduzi<strong>da</strong>, independentemente <strong>da</strong> sua posição<br />

de existência.<br />

Engana-se aquele que pensa que, com a estratégia<br />

metodológica adota<strong>da</strong> pela fenomenologia, Husserl estaria<br />

negando a existência do mundo. Antes sim, estaria<br />

renunciando a um modo ingênuo de consideração<br />

do mesmo, para viabilizar, com o exercício <strong>da</strong> redução<br />

fenomenológica, o acesso a um modo transcendental<br />

de consideração do mundo. Em sua versão reduzi<strong>da</strong>, o<br />

mundo se abriria, então, enquanto campo fenomenal,<br />

na e para a consciência intencional como um “horizonte<br />

de sentidos”. Sem negar a existência do mundo<br />

factual, renunciamos, pela epoché, à ingenui<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

atitude natural, para reter, então, a “alma do mundo”,<br />

o mundo na sua pura significação. A redução fenomenológica<br />

faz reaparecer, na própria cama<strong>da</strong> intencional<br />

do vivido, a ver<strong>da</strong>deira objetivi<strong>da</strong>de pela qual o objeto<br />

intencionado é, enquanto conteúdo intencional do<br />

pensamento, constituído e apreendido intuitivamente.<br />

Daí o próprio Husserl dizer que se por “positivismo”<br />

entendemos o esforço de fun<strong>da</strong>r as ciências sobre o<br />

que é suscetível de ser conhecido de modo originário,<br />

nós é quem somos os ver<strong>da</strong>deiros positivistas! (Husserl,<br />

1913/1950, p. 29). Se as ciências positivas não deixam<br />

de conceber a relação entre subjetivo e objetivo em<br />

termos <strong>da</strong> dicotomia “interiori<strong>da</strong>de” / “exteriori<strong>da</strong>de”,<br />

considerando o objetivo como algo que nos remete sempre<br />

para uma reali<strong>da</strong>de exterior e independente, para<br />

o que transcende a própria “vivência do mundo”, a redução<br />

fenomenológica permite-nos, ao nos lançar para<br />

o modo transcendental de consideração do mundo, recuperar<br />

a autêntica objetivi<strong>da</strong>de na própria subjetivi<strong>da</strong>de<br />

transcendental – domínio último e apoditicamente<br />

certo sobre o qual deve ser, segundo Husserl, fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

to<strong>da</strong> e qualquer filosofia radical – unindo, com isso, o<br />

objetivo e o subjetivo. Trata-se, nos termos de Husserl,<br />

de “...uma exteriori<strong>da</strong>de objetiva na pura interiori<strong>da</strong>de”<br />

(Husserl, 1929/1992, p. 11), trata-se de uma “autêntica<br />

objetivi<strong>da</strong>de imanente”.<br />

135 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 131-136, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Considerações finais<br />

A adoção do programa positivista nas ciências humanas<br />

implica, ao fazer uso <strong>da</strong> Tese do Mundo, ao mergulhar<br />

a consciência na atitude natural, na aceitação de um realismo<br />

ingênuo, desconsiderando, neste sentido, os problemas<br />

filosóficos suscitados pela Teoria do Conhecimento.<br />

Este mesmo programa insiste, nos estudos sobre o homem<br />

(seja em Sociologia, seja em Psicologia), em extrair<br />

leis universais a partir <strong>da</strong> observação sistematiza<strong>da</strong> do<br />

comportamento humano, desenvolvendo um estudo periférico<br />

do homem em relação ao meio no qual se insere.<br />

Particularmente, em Psicologia, a aceitação do programa<br />

positivista começa a se consoli<strong>da</strong>r no último quarto do<br />

século XIX por meio de uma aliança <strong>da</strong> ciência psicológica<br />

com o método experimental <strong>da</strong>s ciências naturais.<br />

Tal aliança fez, no mesmo período, com que os sistemas<br />

em psicologia confundissem, muitas <strong>da</strong>s vezes, na aceitação<br />

de um paralelismo psicofísico, as leis do pensamento<br />

com as leis causais <strong>da</strong> natureza, confundindo o “sujeito<br />

do conhecimento” com o “sujeito psicológico”, conforme<br />

o próprio Husserl denunciou em sua crítica ao psicologismo<br />

nos Prolegômenos <strong>da</strong>s Investigações Lógicas. Tal<br />

programa positivista deixa-nos, para o estudo do homem,<br />

confinados, do ponto de vista metodológico, a uma lógica<br />

indutiva, segundo a qual conhecer consiste em descrever,<br />

pela observação positiva dos fatos, a regulari<strong>da</strong>de<br />

desses fatos, buscando, a partir de casos particulares,<br />

inferir uma “lei geral”. Para Husserl, tal lei inferi<strong>da</strong> na<strong>da</strong><br />

mais é do que uma “regra empírica”, cuja vali<strong>da</strong>de é meramente<br />

circunstancial e, portanto, uma regra que carece<br />

de exatidão absoluta. Ao se lançar sobre os fatos por<br />

meio de uma observação sistematiza<strong>da</strong>, no exercício <strong>da</strong><br />

indução, o positivista desconhece o quadro de essências<br />

acerca dos fatos que investiga.<br />

Já a abor<strong>da</strong>gem fenomenológica nas ciências humanas<br />

convi<strong>da</strong>-nos a exercer justamente uma reflexivi<strong>da</strong>de<br />

leva<strong>da</strong> a cabo com rigor e discernimento acerca deste<br />

quadro de essências estabelecido por variações imaginárias,<br />

a vivência <strong>da</strong> intuição do que há de originário<br />

(ou de invariante) naquilo que se toma como objeto de<br />

investigação. Convi<strong>da</strong>-nos a uma atitude reflexiva e analítica<br />

acerca do sentido íntimo <strong>da</strong>quilo que se investiga<br />

– tanto aquele que se atualiza no pensamento quanto as<br />

significações que se encontram ali virtualmente presentes,<br />

bem como os seus diferentes modos de aparecimento<br />

na própria cama<strong>da</strong> intencional do vivido. Convi<strong>da</strong>-nos,<br />

portanto, para uma clarificação do que há de mais fun<strong>da</strong>mental<br />

na coisa sobre a qual retornamos, deslocando-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 131-136, jul-dez, 2011<br />

Carlos D. C. Tourinho<br />

nos a atenção dos fatos contingentes para o seu sentido<br />

originário indissociável de uma intencionali<strong>da</strong>de, consoli<strong>da</strong>ndo,<br />

com isso, uma espécie de “conversão filosófica”<br />

que nos faz passar de uma visão ingênua do mundo<br />

para o “puro ver” <strong>da</strong>s coisas, no qual o mundo se revela<br />

em sua totali<strong>da</strong>de como “fenômeno”. Eis o convite genuíno<br />

<strong>da</strong> fenomenologia às ciências humanas.<br />

Referências<br />

Husserl, E. (1931). Méditations Cartésiennes. Paris: Librairie<br />

Armand Colin.<br />

Husserl, E. (1950). Idées directrices pour une phénoménologie et<br />

une philosophie phénoménologique pures (Tome Premier).<br />

Paris: Gallimard (Original de 1913).<br />

Husserl, E. (1965). Logique Formelle et Logique Transcen<strong>da</strong>ntale.<br />

Paris: PUF (Original de 1929).<br />

Husserl, E. (1970). Philosophie première 1923-1924, 1: Histoire<br />

critique des idées. Appendice. Paris: PUF (Original de<br />

1924).<br />

Husserl, E. (1989). La philosophie comme science rigoureuse.<br />

Paris: PUF (Original de 1911).<br />

Husserl, E. (1992). Conferências de Paris. Lisboa: Edições 70<br />

(Original de 1929).<br />

Husserl, E. (1997). L´idée de la phénoménologie. Cinq leçons.<br />

Paris: PUF (Original de 1907).<br />

Carlos Diógenes Côrtes Tourinho - Formado em Psicologia pela<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense e em Filosofia pela Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal do Rio de Janeiro. Mestre e Doutor em Filosofia pela Pontifícia<br />

Universi<strong>da</strong>de Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professor de Filosofia<br />

<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Educação e do Programa de Pós-graduação em Filosofia<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense (UFF). Membro do Núcleo de<br />

Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NUFIPE/ UFF)<br />

e dos GTs de Filosofia Francesa Contemporânea e de Fenomenologia <strong>da</strong><br />

ANPOF. Organizador <strong>da</strong> Coleção Encontros com a Filosofia (EDUFF/<br />

Booklink) e <strong>da</strong> Série Ensaios sobre o Pensamento Contemporâneo<br />

(Editora Proclama). Recentemente, organizou o primeiro livro do GT<br />

de Fenomenologia <strong>da</strong> ANPOF: Fenomenologia: influxos e dissidências<br />

(Booklink, 2011). Endereço Institucional: Universi<strong>da</strong>de Federal<br />

Fluminense, Facul<strong>da</strong>de de Educação/ Departamento de Fun<strong>da</strong>mentos<br />

Pe<strong>da</strong>gógicos (SFP). Campus do Gragoatá (São Domingos). CEP 24020-<br />

200. Rio de Janeiro/RJ. E-mail: cdctourinho@yahoo.com.br<br />

Recebido em 12.07.11<br />

Aceito em 10.12.11<br />

136


Fenomenologia e Experiência Religiosa em Paul Tillich<br />

fenomenologia e expeRiênCia ReligioSa em paul tilliCH<br />

Paul Tillich´s Phenomenology and Religious Experience<br />

Fenomenología y Experiencia Religiosa en Paul Tillich<br />

To m m y ak i r a go T o<br />

Resumo: O objetivo deste artigo é explicitar a presença <strong>da</strong> fenomenologia filosófica no pensamento filosófico e teológico de Paul<br />

Tillich, tanto na questão metodológica quanto na investigação do fenômeno religioso. Apesar de Paul Tillich ter tido uma metodologia<br />

própria em sua teologia - tal como o método de correlação e do círculo teológico – também se encontra vários comentários<br />

sobre a fenomenologia em suas principais obras e a sua aplicabili<strong>da</strong>de na investigação <strong>da</strong> experiência religiosa. A fenomenologia<br />

que se afirma estar presente no pensamento de Tillich não é nem uma fenomenologia “pura” – de acordo com o conceito<br />

de Edmund Husserl, nem uma fenomenologia hermenêutica concebi<strong>da</strong> por Martin Heidegger, apesar de ter sido influenciado<br />

por ambos os autores –, mas uma fenomenologia crítica, como sugeri<strong>da</strong> pelo teólogo, que seria a união de ambos os elementos: o<br />

intuitivo-descritivo (fenomenologia clássica) e o crítico-existencial. Neste sentido, tem-se como ponto de parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> análise os<br />

comentários feitos por Tillich sobre a fenomenologia, entendendo o que o teólogo quis dizer sobre esta metodologia e destacando<br />

a relevância dessas observações para a construção de sua teologia e filosofia.<br />

Palavras-chave: Fenomenologia; Experiência religiosa; Paul Tillich.<br />

Abstract: The aim of this text is to point out the presence of the philosophical phenomenology in Paul Tillich’s philosophical<br />

and theological thought, either concerning the methodological issue or the religious phenomenon investigation. In spite of Paul<br />

Tillich having had a methodology of his own in his theology – such as the correlation method and the theological circle – we<br />

can also find in his main works comments about phenomenology and its applicability in the investigation of the religious experience.<br />

The phenomenology that we assert to be present in Tillich’s thought is neither a “pure” phenomenology – according to<br />

Edmund Husserl’s concept nor a hermeneutic phenomenology inspired by Martin Heidegger, in spite of having been influenced<br />

by both authors –, but a critical phenomenology, as suggested by the theologian, that would be the union of both elements: the<br />

intuitive-descriptive (phenomenology classical) and the critical-existencial. In this sense, we shall start from the comments<br />

made by Tillich on phenomenology, understanding what he meant about this methodology and emphasizing the relevance of<br />

those comments for the construction of his theology and philosophy.<br />

Keywords: Phenomenology; Religious experience; Paul Tillich.<br />

Resumen: Este texto tiene como objetivo mostrar la presencia de la fenomenología filosófica en el pensamiento filosófico y teológico<br />

de Paul Tillich, sea en la cuestión metodológica, sea en la investigación del fenómeno religioso. A pesar de Paul Tillich<br />

haber tenido una metodología propia en su teología – como el método de la correlación y el círculo teológico – también puede<br />

encontrar, en sus obras principales, comentarios sobre la fenomenología y su aplicabili<strong>da</strong>d en la investigación de la experiencia<br />

religiosa. La fenomenología que afirma estar presente en el pensamiento de Tillich, no es una fenomenología “pura” en el sentido<br />

de Edmund Husserl y tampoco una fenomenología hermenéutica inspira<strong>da</strong> en Martin Heidegger – aunque fue influencia<strong>da</strong><br />

por ambos autores – sino una fenomenología crítica, como lo ha sugerido el propio teólogo, que sería la unión del elementos: el<br />

intuitivo-descriptivo (fenomenología clásica) con el existencial-crítico. En este sentido, tienes como punto de parti<strong>da</strong> los comentarios<br />

hechos por Tillich sobre la fenomenología entendiendo lo que quiso decir sobre esa metodología y destacando la relevancia<br />

de estos comentarios para la construcción de su teología y filosofía.<br />

Palabras-clave: Fenomenología; Experiencia religiosa; Paul Tillich.<br />

introdução<br />

O objetivo deste artigo é explicitar a influência <strong>da</strong><br />

Fenomenologia de Edmund Husserl (1849-1938) e Martin<br />

Heidegger (1889-1976) no empreendimento filosófico e<br />

teológico de Paul Tillich (1886-1965). De início destacarse-á<br />

como Tillich compreendeu a Fenomenologia e a relacionou<br />

à teologia e filosofia <strong>da</strong> religião para, em segui<strong>da</strong>,<br />

indicar como o filósofo apropriou-se do método fenomenológico<br />

em seus conceitos. É importante destacar, logo<br />

de início, que não há em Tillich uma descrição explícita<br />

do método fenomenológico em suas análises teológicas e<br />

filosóficas. Por isso é preciso, a partir dos breves comentários<br />

do próprio autor, entender o que quis dizer sobre a<br />

Fenomenologia e sua apropriação.<br />

O que se pode destacar é a evidente presença <strong>da</strong><br />

Fenomenologia no pensamento filosófico e teológico de<br />

Tillich. Essa fenomenologia deve ser compreendi<strong>da</strong> de<br />

modo particular, não podendo ser generaliza<strong>da</strong> como<br />

o principal método teológico ou filosófico do teólogo.<br />

137 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 137-142, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Entretanto, a analítica fenomenológica está presente nas<br />

pesquisas do autor e percorre de modo ora implícito, ora<br />

explícito em suas obras.<br />

A partir de leituras atentas e estudos, chegou-se à<br />

conclusão de que a Fenomenologia, que se apresenta de<br />

modo particular, está presente em Tillich nos seguintes<br />

aspectos: a) a Fenomenologia é legitima<strong>da</strong> como um método<br />

filosófico para filosofia <strong>da</strong> religião e teologia (citado,<br />

por exemplo, no texto “Filosofia <strong>da</strong> Religião”); b) a<br />

Fenomenologia é postula<strong>da</strong> como um recurso metodológico<br />

para analisar os conceitos básicos <strong>da</strong> teologia, principalmente<br />

experiência religiosa; e c) a Fenomenologia<br />

como ontologia, ou seja, a ontologia tillichiana como<br />

fenomenológica.<br />

Apesar de Paul Tillich ter desenvolvido uma metodologia<br />

própria – como o método <strong>da</strong> correlação – pode-se<br />

reconhecer outra metodologia aplica<strong>da</strong> na sua analítica.<br />

Essa outra metodologia é a Fenomenologia. Encontra-se<br />

em suas obras principais citações e definições que se referem<br />

à fenomenologia, por exemplo, Tillich (1951/2001)<br />

em seu texto sobre Razão e Revelação sugeriu uma fenomenologia<br />

crítica para a teologia em vista <strong>da</strong> análise de<br />

seus conceitos básicos.<br />

Reforçando essa análise crítica, o conceituado historiador<br />

<strong>da</strong> Fenomenologia Herbert Spiegelberg (1965) comentou<br />

em sua obra monumental O Movimento Fenomenológico,<br />

a relação de Paul Tillich com a Fenomenologia, relação<br />

essa marca<strong>da</strong> por duas fases. O autor diz:<br />

Na teologia americana, a fenomenologia recebeu<br />

importante apoio do recente recurso de Paul Tillich<br />

ao método fenomenológico. Todo este caminho ain<strong>da</strong><br />

é notável, pois durante a sua carreira alemã, Tillich<br />

rejeitou o método fenomenológico e junto com isso o<br />

pragmatismo a favor de uma aproximação “críticadialética”.<br />

A principal objeção dele na ocasião era<br />

o caráter não-histórico e antiexistencial <strong>da</strong> fenomenologia.<br />

Há indicações que, em grande parte, com o<br />

advento <strong>da</strong> versão de Heidegger <strong>da</strong> fenomenologia,<br />

Tillich mudou a sua atitude. De fato, ele parece agora<br />

considerar a fenomenologia como método primário de<br />

filosofia existencial. O mais importante agora é que<br />

ele afirma, na sua Teologia Sistemática, a necessi<strong>da</strong>de<br />

do método fenomenológico na concepção de Husserl<br />

<strong>da</strong>s Idéias, como essencial para a teologia. (Spiegelberg,<br />

1965, p. 639)<br />

Esses aspectos que se destacam entre Paul Tillich e a<br />

fenomenologia husserliana mostram definitivamente a interdependência<br />

entre a filosofia e a teologia no pensamento<br />

do autor analisado. Essa interdependência se confirma<br />

no primeiro aspecto citado, na qual Tillich legitima a fenomenologia<br />

de Husserl, principalmente a redução eidética<br />

como método filosófico para a filosofia <strong>da</strong> religião.<br />

Em relação ao primeiro aspecto tem-se, por exemplo,<br />

o trabalho Filosofia <strong>da</strong> Religião (1969/1973), na qual<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 137-142, jul-dez, 2011<br />

Tommy A. Goto<br />

Tillich expõe quatro métodos possíveis <strong>da</strong> filosofia <strong>da</strong><br />

religião se fun<strong>da</strong>mentar: crítico-dialético, fenomenológico,<br />

pragmático e o “metalógico”. Neste texto o teólogo<br />

reconheceu a importância do método fenomenológico e<br />

a destacou como um método para a filosofia <strong>da</strong> religião<br />

se aproximar de seu objeto de forma mais vital, assim<br />

legitimando-a como um recurso metodológico para a filosofia<br />

<strong>da</strong> religião. No texto, analisa Tillich que:<br />

Segundo o método fenomenológico, a filosofia <strong>da</strong><br />

religião, portanto, será capaz de intuir eideticamente<br />

a essência e as quali<strong>da</strong>des peculiares <strong>da</strong> religião<br />

em qualquer manifestação religiosa. Tal intuição<br />

será independente <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de empírica do objeto e<br />

possuirá, contudo, um apriori de rico conteúdo não<br />

meramente formal. (Tillich, 1969/1973, p. 29)<br />

Ao mesmo tempo, também explicitou o fato <strong>da</strong> fenomenologia<br />

não abranger o movimento individual-histórico,<br />

pela fenomenologia pura iniciar sua investigação a<br />

partir <strong>da</strong>s experiências vivências em visando às essências<br />

ou do universal. Na acepção de Tillich (1951/2001),<br />

o fenomenólogo responderá sobre um evento revelatório<br />

típico a partir de seu sentido universal. Assim, para o teólogo<br />

a fenomenologia pura embora seja competente na<br />

área <strong>da</strong>s significações lógicas, é relativamente competente<br />

no âmbito <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des espirituais.<br />

Para Tillich a vi<strong>da</strong> espiritual, experiencia<strong>da</strong>, cria<br />

mais que significações exemplares e universais; ela<br />

cria “corporificações únicas de algo universal”. Para a<br />

apreensão dessas “corporificações únicas”, Tillich sugeriu,<br />

então, uma fenomenologia crítica: “Trata-se de<br />

uma fenomenologia crítica, que une um elemento intuitivo-descritivo<br />

com o elemento existencial-crítico”<br />

(Tillich, 1951/2001, p. 121), preservando a abor<strong>da</strong>gem<br />

fenomenológica.<br />

A fenomenologia crítica é um método que mantem o<br />

elemento intuitivo-descritivo <strong>da</strong> fenomenologia pura com<br />

a técnica de descrever o sentido <strong>da</strong>quilo que se manifesta,<br />

porém acrescenta-se à análise o elemento existencial-crítico,<br />

ou seja, o caráter concreto, histórico e único <strong>da</strong>quilo<br />

que se manifesta. Com isso conclui Tillich:<br />

A primeira forma, porem, leva ao método de abstração,<br />

que priva os exemplos de sua concretude e reduz<br />

seu significado a uma generali<strong>da</strong>de vazia (p.ex., uma<br />

revelação que não é nem ju<strong>da</strong>ica nem cristã, nem<br />

profética nem mística). É precisamente isso que a<br />

fenomenologia deseja superar. A segun<strong>da</strong> forma está<br />

basea<strong>da</strong> na convicção de que uma revelação especial<br />

(p.ex., a aceitação de Jesus como o Cristo por Pedro) é a<br />

revelação final e, em conseqüência, é universalmente<br />

váli<strong>da</strong>. (...) A fenomenologia crítica é o método mais<br />

adequado para fornecer uma descrição normativa<br />

dos significados espirituais (e também Espirituais).<br />

(Tillich, 1951/2001, p. 120-121)<br />

138


Fenomenologia e Experiência Religiosa em Paul Tillich<br />

O segundo aspecto está relacionado com a aceitação<br />

e vali<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Fenomenologia como recurso metodológico<br />

na teologia. O interesse <strong>da</strong> teologia em utilizar a<br />

Fenomenologia deu-se em Tillich, fun<strong>da</strong>mentalmente<br />

como recurso metodológico para rever e avaliar conceitos<br />

postulados <strong>da</strong> sua própria analítica. Não tem só a intenção<br />

de buscar a essência do religioso no sentido universal e<br />

histórico – como no caso <strong>da</strong> história <strong>da</strong>s religiões - mas<br />

de fun<strong>da</strong>mentar rigorosamente aquilo que já foi <strong>da</strong>do pela<br />

revelação a partir <strong>da</strong> experiência. Explica Tillich, no capítulo<br />

sobre “A reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> revelação” que a:<br />

finali<strong>da</strong>de do método fenomenológico é descrever<br />

‘significados’, deixando de lado, por um tempo, a<br />

questão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de [existência fática] á qual se<br />

referem. (...) A teologia deve aplicar a abr<strong>da</strong>gem fenomenológica<br />

a todos os conceitos básicos, forçando<br />

assim seus críticos a ver sobretudo o que significam<br />

os conceitos criticados e obrigando a si próprio a fazer<br />

descrições cui<strong>da</strong>dosas de seus conceitos e a usá-los<br />

com consistência lógica, evitando assim o perigo de<br />

tentar preencher as lacunas lógicas com material<br />

devocional (Tillich, 1951/2001, p. 120).<br />

É importante salientar que existe uma diferença entre<br />

a fenomenologia religiosa e a teologia, porque para a<br />

teologia há uma impossibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> universalização <strong>da</strong><br />

experiência religiosa <strong>da</strong><strong>da</strong> pela revelação. Isso significa<br />

que ca<strong>da</strong> revelação tem um caráter concreto e pessoal que<br />

o universal e o abstrato não abrangem. Esta crítica visa<br />

esclarecer que a teologia tillichiana, mesmo aplicando a<br />

fenomenologia, não pode ser confundi<strong>da</strong> e nem se assemelhar<br />

com a fenomenologia <strong>da</strong> religião.<br />

Pode-se dizer, então, que Paul Tillich foi um precursor<br />

no esclarecimento destas diferenças, mesmo que de<br />

maneira implícita, já que formulou esta crítica em seus<br />

próprios estudos. Assim, é devido salientar que existe<br />

uma diferença em se utilizar metodologicamente a fenomenologia<br />

na teologia e de concebê-la como fenomenologia<br />

<strong>da</strong> religião. O caminho <strong>da</strong> fenomenologia filosófica,<br />

de sua contribuição como fenomenologia <strong>da</strong> religião<br />

e de ser um recurso metodológico <strong>da</strong>s ciências <strong>da</strong> religião,<br />

faz-se necessário para compreendermos a influência<br />

<strong>da</strong> fenomenologia em Paul Tillich. Por fim, o último<br />

aspecto a ser destacado é a aproximação e a semelhança<br />

<strong>da</strong> Fenomenologia com a teologia de Tillich no âmbito <strong>da</strong><br />

ontologia. Sem dúvi<strong>da</strong>, é na ontologia tillichiana que a<br />

fenomenologia se fez presente como método e atitude.<br />

A partir destes esclarecimentos iniciais sobre a compreensão<br />

de Tillich <strong>da</strong> Fenomenologia, pode-se indicar<br />

os possíveis encontros metodológicos do teólogo com o<br />

método. A Fenomenologia tem primeiramente o caráter<br />

de ser uma epistemologia, ou seja, de analisar a experiência<br />

religiosa a partir dela mesmo. Sabe-se que muitos<br />

conceituam a experiência religiosa com conceitos e idéias<br />

pautados em ideologias ou conceitos filosóficos. A pro-<br />

posta fenomenológica está um buscar um “começo bom”,<br />

ou seja, encontrar a gênese <strong>da</strong> experiência religiosa por<br />

ela mesma. Explica Tillich:<br />

O teste de uma descrição fenomenológica consiste<br />

em sua capaci<strong>da</strong>de de oferecer um quadro que seja<br />

convincente, de torná-lo visível a qualquer pessoa que<br />

esteja disposta a olhar na mesma direção, de iluminar<br />

com ele outras idéias e de tornar compreensível<br />

a reali<strong>da</strong>de que estas idéias pretendem refletir. A<br />

fenomenologia é uma forma de considerar os fenômenos<br />

tal como ‘se apresentam’, sem interferência<br />

de pré-conceitos e explicações negativas ou positivas<br />

(Tillich, 1951/2001, p. 120).<br />

Dito isso, é possível resumir rapi<strong>da</strong>mente o método<br />

fenomenológico de E. Husserl nos seguintes aspectos: um<br />

método analítico-descritivo (busca o significado a partir<br />

do próprio fenômeno, sem conduzir a teorias metafísicas);<br />

uma ciência eidética (busca a essência do fenômeno);<br />

conduz à certeza (evidência racional), sendo assim<br />

uma disciplina a priori; e fun<strong>da</strong>mentalmente é um método<br />

derivado de uma atitude, pois se presume ser sem<br />

pressupostos (“Voltar às coisas mesmas”). Dessa breve<br />

caracterização, destaca-se o que Husserl comentou em<br />

sua Introdução <strong>da</strong> obra Idéias para uma Fenomenologia<br />

Pura e para uma filosofia fenomenológica (1913): a fenomenologia<br />

possibilita “aprender a se mover livremente<br />

nela, sem nenhuma recaí<strong>da</strong> nas velhas maneiras de<br />

orientar-se, aprender a ver, diferenciar, descrever o que<br />

está diante dos olhos, exige, ademais, estudos próprios e<br />

laboriosos”. (Husserl, 1913/2006, p. 27).<br />

Em Husserl, a Fenomenologia caminhou também na<br />

ontologia, porque tinha o objetivo de encontrar o fun<strong>da</strong>mento<br />

<strong>da</strong>s ciências e, para isso foi necessário ampliar<br />

o método para que se levasse à análise ao originário do<br />

ser. Ao se caminhar rumo à origem do ser, penetra-se<br />

necessariamente no âmbito do ser. O fun<strong>da</strong>mento dos<br />

conceitos está naquilo que não varia, ou seja, no invariável,<br />

o que permanece. Segundo a concepção de Husserl<br />

(1913/2006), o invariável é a essência do ser, aquilo que<br />

permanece e, por isso o invariável passa a ser entendido<br />

como essência ontológica. Dessa forma:<br />

não é no âmbito <strong>da</strong>s ciências de fatos ou experimentais,<br />

mas exclusivamente no âmbito <strong>da</strong>s ciências<br />

eidéticas, que Husserl fala de ‘ontologias’ e ‘ontologia’.<br />

O caráter hierárquico que aqui se manifesta leva-nos<br />

a dois grandes grupos, o primeiro <strong>da</strong>s quais determina<br />

as ‘ontologias regionais’; o segundo, a ‘ontologia<br />

formal’. (Fragata, 1965, p. 23)<br />

Assim, evidencia-se a questão do ser originariamente<br />

como uma questão fenomenológica, porque “a fenomenologia<br />

é concebi<strong>da</strong> como uma ontologia a partir <strong>da</strong>s condições<br />

a priori dos objetos e em seu conteúdo categorial.<br />

139 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 137-142, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

A ontologia husserliana se preocupa em revelar as estruturas<br />

internas do mundo e seus domínios como indicadores<br />

do ser” (Josgrilberg, 2001, p. 164).<br />

Para a teologia tillichiana, esses aspectos metodológicos<br />

<strong>da</strong> Fenomenologia de Husserl foram tratados com<br />

atenção, pois Tillich encontrou neles a garantia de poder<br />

rever e vali<strong>da</strong>r os conceitos já concebidos pela filosofia e<br />

teologia. Para Tillich (2001) a Fenomenologia propicia a<br />

compreensão do sentido originário dos fenômenos, indo<br />

diretamente a eles pela intuição originária, saindo <strong>da</strong>s<br />

abstrações metafísicas dos conceitos chegando à evidência.<br />

Rever os conceitos teológicos pela Fenomenologia<br />

é dá-los o caráter de certeza. Nesse sentido, o caminho<br />

que Tillich elege para a análise <strong>da</strong> experiência religiosa<br />

será o caminho do sentido originário do ser, ou seja, para<br />

além dos processos lógicos e <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> consciência.<br />

Percebe-se aqui uma análise se desenvolveu como ontologia,<br />

ou seja, a partir de uma “razão ontológica”.<br />

Além <strong>da</strong> Fenomenologia se constituir como um método<br />

ou uma ciência de rigor, também se constituiu como<br />

ontologia, principalmente à partir <strong>da</strong> contribuição de<br />

Martin Heidegger. Com Heidegger, a Fenomenologia e a<br />

Ontologia (Fenomenologia Hermenêutica) se tornaram<br />

um único meto do de investigação e o objetivo de to<strong>da</strong> a<br />

filosofia. Porque a ontologia para resgatar o sentido primeiro<br />

do ser só é possível, então, como fenomenologia.<br />

Isso é fortemente evidenciado na § 7 <strong>da</strong> obra Ser e Tempo<br />

(Heidegger, 1927/1993) na qual comenta:<br />

Ontologia e fenomenologia não são duas disciplinas<br />

diferentes <strong>da</strong> filosofia ao lado de outras. Ambas<br />

caracterizam a própria filosofia em seu objeto e em<br />

seu modo de tratar. A filosofia é uma ontologia fenomenológica<br />

e universal que parte <strong>da</strong> hermenêutica<br />

do <strong>da</strong>sein, a qual, enquanto analítica <strong>da</strong> existência,<br />

amarra o fio de todo questionamento filosófico no lugar<br />

de onde ele brota e para onde retorna. (Heidegger,<br />

1927/1993, p. 69)<br />

Com a publicação de Ser e Tempo, a filosofia colocouse<br />

paradigmática devido à desconstrução <strong>da</strong> onto-teometafísica<br />

e <strong>da</strong> primazia <strong>da</strong>s ciências empíricas. Para<br />

Heidegger, a ontologia deve se constituir como uma ontologia<br />

fun<strong>da</strong>mental, ou seja, deve-se voltar às coisas mesmas<br />

e ir diretamente a questão do ser sem passar pelas<br />

especulações anteriores. Para isso o resgate <strong>da</strong> questão<br />

do ser deve ser colocado, fun<strong>da</strong>mentalmente, pela pergunta<br />

do sentido do ser. Comenta Heidegger que: “Devese<br />

efetuar essa destruição seguindo o fio condutor <strong>da</strong><br />

questão do ser até se chegar às experiências originárias<br />

em que foram obti<strong>da</strong>s as primeiras determinações do<br />

ser que, desde então, tornaram-se decisivas” (Heidegger,<br />

1927/1993, p. 50).<br />

A teologia européia não poderia deixar de ser influencia<strong>da</strong><br />

diretamente por esta mu<strong>da</strong>nça ontológica<br />

com o advento do método fenomenológico-hermenêutico<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 137-142, jul-dez, 2011<br />

Tommy A. Goto<br />

de Heidegger, tais como a teologia de Rudolf Bultmann<br />

ou de Hans Jonas. Algumas teologias contemporâneas e<br />

posteriores à Fenomenologia de Husserl e Heidegger, sofreram<br />

também revisões epistemológicas e ontológicas,<br />

seja no aspecto <strong>da</strong> aceitação ou negação, tais como as teologias<br />

de Gianni Vattimo, Jean Luc-Marion, Jean- Louis<br />

Chrétien e Jean-Yves Lacoste.<br />

É notório destacar que também por este motivo, a fenomenologia<br />

influenciou, além <strong>da</strong>s teologias às ciências<br />

<strong>da</strong> religião. Essa influência fenomenológica às ciências<br />

religiosas se mostrou basicamente de duas maneiras,<br />

como estabelecem Filoramo & Prandi (1999): uma, estruturando-se<br />

como uma disciplina particular, denomina<strong>da</strong><br />

Fenomenologia <strong>da</strong> Religião; e outra, como recurso metodológico<br />

para outras disciplinas, filosofia, psicologia, antropologia,<br />

história ou como no caso: a teologia.<br />

Mas, ain<strong>da</strong> é importante comentar que existe uma diferença<br />

em se utilizar à fenomenologia na teologia e ser<br />

uma fenomenologia teológica. A teologia fenomenológica<br />

se diferencia <strong>da</strong> teologia – mesmo quando essa se utiliza<br />

<strong>da</strong> fenomenologia como método – porque põe “entre<br />

parênteses” a questão <strong>da</strong> prova ou não <strong>da</strong> existência de<br />

Deus. A teologia fenomenológica, como define Maldonado<br />

(2003), busca o descobrimento de todo o sentido <strong>da</strong> transcendência<br />

que se origina na vivência, ou seja, no campo<br />

<strong>da</strong>s vivências.<br />

Voltando a teologia tillichiana, diga-se que se define<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente pelo método de correlação e não pela<br />

fenomenologia. Entretanto, a fenomenologia auxiliou a<br />

correlação no sentido vali<strong>da</strong>r os conceitos polares que são<br />

correlacionados. A fenomenologia precedeu a correlação<br />

na análise ontológica, ou seja, ela está presente na análise<br />

existencial. Os conceitos correlacionados são fun<strong>da</strong>mentalmente<br />

ontológicos e para a descrição rigorosa desta<br />

ontologia Tillich fez buscou uma fun<strong>da</strong>mentação fenomenológica.<br />

Tem-se em algumas obras a Fenomenologia<br />

na fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> análise ontológica e do método de<br />

correlação, definindo estruturalmente a teologia. Somente<br />

pela fenomenologia não se tem uma teologia tillichiana,<br />

mas é a partir <strong>da</strong> correlação que a teologia se fez presente,<br />

principalmente na correlação do ser e Deus.<br />

A Fenomenologia <strong>da</strong><strong>da</strong> antecipa<strong>da</strong>mente à correlação<br />

se mostrou de forma ontológica. Para atingir o fun<strong>da</strong>mento<br />

do ser, a compreensão fenomenológica se apresentou<br />

como melhor método, por buscar diretamente o fenômeno<br />

naquilo que se manifesta, sem rodeios metafísicos<br />

ou especulativos. Essa ontologia presente na correlação<br />

surgiu como fenomenológica. Goto (2004) destaca, então,<br />

três características <strong>da</strong> ontologia tillichiana como fenomenológica:<br />

a) a primazia do retorno ao originário (sentido<br />

originário do ser-essências); b) a estruturação de categorias<br />

ontológicas (categorias existenciárias e não metafísicas);<br />

e c) o fato de a análise ontológica só ser possível<br />

como descritiva (pela experiência).<br />

Essas são as semelhanças que mais caracterizam a<br />

ontologia tillichiana como uma ontologia fenomenológi-<br />

140


Fenomenologia e Experiência Religiosa em Paul Tillich<br />

ca. Contudo, ain<strong>da</strong> como defende Goto (2004), a análise<br />

ontológica tillichiana busca as significações originárias<br />

na correlação, estruturando-se em quatro níveis: 1) a estrutura<br />

ontológica básica; 2) os elementos que constituem<br />

a estrutura básica; c) as características do ser (condições<br />

<strong>da</strong> existência) e, por fim: 4) as categorias do ser<br />

e conhecer.<br />

Diante dessas apropriações é importante salientar<br />

que a fenomenologia husserliana não descartou a pólo<br />

existencial, apenas evitou a palavra “existência”, como<br />

enfatiza Fragata (1965), para que não houvesse uma confusão<br />

entre a existência fática e a própria atitude natural.<br />

Ain<strong>da</strong>, para Husserl a existência e a essência estão correlaciona<strong>da</strong>s,<br />

sem que uma deixe de apreender a outra.<br />

Pode-se postular a tese que Heidegger entendeu e seguiu<br />

esse caminho e, por isso, elegeu a fenomenologia como<br />

método de sua ontologia.<br />

Para explicitar o pensamento filosófico e teológico de<br />

Paul Tillich como fenomenológico, elegeu-se três obras<br />

que evidenciam a presença desta metodologia nos pontos<br />

que foram definidos como características fenomenológicas.<br />

São elas: Teologia Sistemática (1951/2001), A Coragem<br />

de ser (1952/1973) e Amor, Poder e Justiça (1954/1970), e<br />

em ca<strong>da</strong> uma delas aponta-se resumi<strong>da</strong>mente características<br />

fenomenológicas.<br />

Na Teologia Sistemática (1951/2001), como citado anteriormente,<br />

a Fenomenologia foi abor<strong>da</strong><strong>da</strong> como um método<br />

complementar ao método <strong>da</strong> correlação na construção<br />

de uma teologia sistemática. Esta característica não aparece<br />

explicitamente, porque como colocado anteriormente,<br />

Tillich tem como método teológico principal o “método<br />

<strong>da</strong> correlação”, sendo sua sistemática construí<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentalmente<br />

<strong>da</strong> correlação entre a questão existencial e<br />

a resposta teológica. “A teologia sistemática usa o método<br />

de correlação. [...] O método de correlação explica os<br />

conteúdos <strong>da</strong> fé cristã através de perguntas existenciais<br />

e de respostas teológicas, em interdependência mútua”<br />

(Tillich, 1951/2001, p. 58).<br />

Entretanto, além <strong>da</strong> questão metodológica acima analisa<strong>da</strong>,<br />

a fenomenologia está presente também na análise<br />

ontológica, implícita na correlação. É na análise existencial<br />

que a fenomenologia aparece, para garantir o rigor<br />

dos conceitos que formam os pólos <strong>da</strong> correlação. O pólo<br />

fenomenológico é o pólo existencial (perguntas), justamente<br />

por ser <strong>da</strong>do pela experiência <strong>da</strong> compreensão do<br />

ser. “A análise <strong>da</strong> existência, inclusive o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong>s perguntas implícitas na existência, é tarefa filosófica<br />

[...]”. (Tillich, 1951/2001 p. 60).<br />

No entanto, perguntas e respostas estão correlaciona<strong>da</strong>s,<br />

logo não se pode separá-las fenomenologicamente<br />

e, para isso Tillich propõe uma outra versão<br />

fenomenológica, isto é, uma fenomenologia crítica. A<br />

fenomenologia crítica é permiti<strong>da</strong>, desde a fenomenologia<br />

enquanto método se tornou uma possibili<strong>da</strong>de de<br />

pensamento. Tillich postulou a fenomenologia crítica,<br />

como uma fenomenologia que tem o elemento existen-<br />

cial-crítico, ou seja, a descrição do caráter concreto único<br />

<strong>da</strong> experiência. Assim, temos na Teologia Sistemática<br />

a presença antecedente <strong>da</strong> fenomenologia, como fenomenologia<br />

crítica.<br />

A Coragem de ser (1952/1973) é a obra na qual Tillich<br />

se mostra mais fenomenológico. Isso porque a fenomenologia<br />

está no âmbito de sua ontologia, que difere <strong>da</strong><br />

fenomenologia crítica <strong>da</strong> sistemática. Nesta obra, evidencia-se<br />

a análise <strong>da</strong> angústia por ver nela o modo de<br />

análise fenomenológico. Tillich analisou a angústia<br />

assemelhando-se com os critérios <strong>da</strong> ontologia fenomenológica<br />

de Heidegger, que viu nesta ontologia fun<strong>da</strong>mental<br />

a única possibili<strong>da</strong>de de encontrar o sentido<br />

originário do ser. Foi na ontologia <strong>da</strong> angústia que<br />

Tillich mostrou sua análise ontológica como análise<br />

fenomenológica.<br />

Nessa obra é analisado a influencia <strong>da</strong> fenomenologia-hermenêutica<br />

de M. Heidegger na qual se percebe<br />

que Tillich a reproduziu metodologicamente como um<br />

recurso analítico. Ao mesmo tempo, cabe advertir que a<br />

análise ontológica <strong>da</strong> angústia que Tillich descreveu se<br />

afasta <strong>da</strong> ontologia heideggeriana de Ser e Tempo. Isso<br />

acontece porque Tillich propõe a superação <strong>da</strong> angústia<br />

pela coragem de ser do ponto de vista teológico ficar restrito<br />

à factici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> existência e no niilismo heideggeriano<br />

do ser-para-a-morte. Nesse sentido, para Tillich, “a<br />

coragem de ser é uma expressão de fé, o que a ‘fé’ significa<br />

deve ser entendido através <strong>da</strong> coragem de ser”. (Tillich,<br />

1952/1973, p. 134).<br />

Tem-se aqui uma fenomenologia do ser, exposto por<br />

sua coragem de ser. Essa análise fenomenológica buscou<br />

o retorno ao originário <strong>da</strong> coragem a partir <strong>da</strong> descrição<br />

dos elementos constitutivos de ser, destacando assim<br />

seus pólos correlacionais dos modos de ser: os tipos de<br />

angústia e a coragem de ser. Por isso, pode-se também<br />

falar em uma fenomenologia <strong>da</strong> angústia; uma fenomenologia<br />

que talvez tenha faltado na ontologia fenomenológica<br />

de Martin Heidegger.<br />

A obra Amor, Poder e Justiça – Análise ontológica e<br />

implicações éticas (1954/1970) representa outro exemplo<br />

<strong>da</strong> fenomenologia-hermenêutica na análise ontológica<br />

do teólogo. Nessa obra tem-se a ontologia do amor como<br />

uma fenomenologia do amor, pois nela o teólogo buscou<br />

a primazia do sentido do amor, evitando as cila<strong>da</strong>s, os<br />

problemas e os maltratos que a palavra “amor” esteve sujeita.<br />

Com isso Tillich descreveu fenomenologicamente<br />

o amor a partir de sua natureza (origem) ontológica, porque<br />

só assim poderia resgatar o seu sentido originário<br />

(ser amor) ao descrever as diferentes formas de amar, a<br />

partir <strong>da</strong> experiência.<br />

Isso é percebido logo no Prefácio <strong>da</strong> obra na qual<br />

Tillich afirma: “A ontologia precede to<strong>da</strong> outra tentativa<br />

de aproximação cognitiva a reali<strong>da</strong>de. (...) Ninguém pode<br />

fugir <strong>da</strong> ontologia se quiser conhecer. Já que conhecer<br />

significa reconhecer alguma coisa como ser”. (Tillich,<br />

1954/1970, p. 32-33). Na análise fenomenológica do amor,<br />

141 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 137-142, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

percebe-se como Tillich conheceu o ser humano, ou seja,<br />

a partir <strong>da</strong> descrição e compreensão do ser e, não de conceitos<br />

e teorias.<br />

O amor é um conceito ontológico, deve ser analisado<br />

pela fenomenologia-hermenêutica, ou seja, deve-se começar<br />

pela pergunta: o que significa o amor (ser)? Nisso,<br />

destaca Tillich, evitam-se muitas cila<strong>da</strong>s em ética social,<br />

teoria política e educação pela incompreensão do caráter<br />

ontológico do amor. Em suas análises descritivas, Tillich<br />

conclui que o “amor é unir o que está separado. A reunião<br />

pressupõe separação <strong>da</strong>quilo que estava essencialmente<br />

junto. (...) Portanto, o amor não pode ser descrito como<br />

a união do estranho, mas como a reunião do separado”.<br />

(Tillich, 1954/1970, p. 36). Como analisa Goto (2004),<br />

para o teólogo to<strong>da</strong> a vivência amorosa, seja emotiva ou<br />

ética, está fun<strong>da</strong><strong>da</strong> originalmente em uma vivência do<br />

ser doadora de sentido.<br />

É importante advertir que nessa obra Tillich ain<strong>da</strong><br />

promove a fenomenologia do poder e <strong>da</strong> justiça, pois<br />

esses estariam ligados ao fenômeno do amor. Os mesmos<br />

problemas e confusões na análise do amor estão<br />

em relação com o poder e com a justiça, por isso todos<br />

eles devem ser levados a uma análise ontológica do tipo<br />

fenomenológica.<br />

Considerações finais<br />

A partir desta análise pode-se dizer que o filósofo<br />

e teólogo Paul Tillich promoveu em algumas obras,<br />

a Fenomenologia como recurso metodológico em suas<br />

análises teológicas e filosóficas. Ain<strong>da</strong>, podemos afirmar<br />

como foi evidenciado nessa crítica que Tillich conheceu<br />

o método fenomenológico e reconheceu a importância<br />

dele como um método descritivo <strong>da</strong>s essências por mantém,<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente, o rigor <strong>da</strong>quilo que pretende<br />

investigar.<br />

No entanto, ain<strong>da</strong> é preciso analisar a relação do histórico<br />

<strong>da</strong> fenomenologia com as leituras de Tillich, isto<br />

é, reconhecer e mapear com maior precisão quais foram<br />

os textos que Tillich fez <strong>da</strong> Fenomenologia de Husserl,<br />

Heidegger ou outro filósofo fenomenólogo para entender<br />

alguns aspectos de sua crítica.<br />

Paul Tillich foi um dos pioneiros ao incluir o método<br />

fenomenológico na teologia, não de forma sistemática,<br />

porém dialogando criticamente com ela. Disso concluise<br />

que Tillich não foi fenomenólogo <strong>da</strong> religião e nem<br />

um teólogo fenomenológico, segundo a análise, mas recorreu<br />

a Fenomenologia como recurso metodológico nas<br />

situações que só ela poderia ser eficaz, como é o caso <strong>da</strong><br />

razão e do ser.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 137-142, jul-dez, 2011<br />

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Tommy A. Goto<br />

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Tillich, P. (2001). Teologia Sistemática. São Paulo/São Leopoldo:<br />

Paulinas/Sino<strong>da</strong>l (Original publicado em 1951).<br />

Tommy Akira Goto - Doutor em Psicologia pela PUC-Campinas, Mestre<br />

em Ciências <strong>da</strong> Religião pela Universi<strong>da</strong>de Metodista de São Paulo,<br />

Professor Adjunto I <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Uberlândia. Endereço<br />

Institucional: Universi<strong>da</strong>de Federal de Uberlândia, Facul<strong>da</strong>de de<br />

Artes, Filosofia e Ciências Sociais, Facul<strong>da</strong>de de Psicologia. Av. Pará,<br />

1720, Bairro Umuarama. CEP 38400-902, Uberlândia (MG). E-mail:<br />

tommy@ipsi.ufu.br<br />

Recebido em 28.08.11<br />

Aceito em 30.11.11<br />

142


A Ontologia <strong>da</strong> Carne em Merleau-Ponty e a Situação Clínica na Gestalt-Terapia: Entrelaçamentos<br />

a ontologia <strong>da</strong> CaRne em meRleau-ponty e a Situação<br />

ClíniCa na geStalt-teRapia: entRelaçamentoS<br />

The Ontology of the Flesh in Merleau-Ponty and Clinical Situation in the Perspective of Gestalt-Therapy<br />

La Ontología de la Carne en Merleau-Ponty y la Situación Psicoterápica desde la Perspectiva de la<br />

Terapia Gestalt<br />

mô n i C a Bo T e l h o alv i m<br />

Resumo: Neste trabalho discutimos a clínica <strong>da</strong> Gestalt-Terapia como campo de experiência, buscando ampliar sua compreensão<br />

por meio do diálogo com Merleau-Ponty. Nosso ponto central é a experiência no mundo com o outro e o lugar dessa experiência<br />

no processo de significação <strong>da</strong> existência. Sublinhando na Gestalt-Terapia: a) as noções de campo organismo-ambiente<br />

e fronteira de contato como concepções descritivas <strong>da</strong> experiência no mundo, um processo de desdobramento temporal que<br />

envolve diferença e criação de sentidos; b) a proposta metodológica de que a psicoterapia deve buscar concentrar-se na situação,<br />

na estrutura <strong>da</strong> experiência aqui e agora; c) a consideração <strong>da</strong> psicoterapia como uma situação que envolve eu e outro em<br />

diálogo. Considerando que Merleau-Ponty comunga com a Gestalt-Terapia raízes e influências e que faz um retorno ao mundo<br />

e à experiência na busca do sentido, buscamos fazer aproximações com seus últimos escritos, quando propõe uma ontologia<br />

<strong>da</strong> carne e pensa a experiência como fissão, diferença e reversibili<strong>da</strong>de, introduzindo com a noção de intercorporei<strong>da</strong>de a<br />

possibili<strong>da</strong>de de “sentir com”, ou seja, encontrar o outro não no espaço objetivo, <strong>da</strong> reflexão, mas no campo do irrefletido e <strong>da</strong><br />

experiência em estado bruto.<br />

Palavras-chave: Gestalt-terapia; Merleau-Ponty; Intercorporei<strong>da</strong>de; Ser bruto; Carne.<br />

Abstract: In this work we discuss Gestalt therapy clinical practice as a field of experience, seeking to broaden its understanding<br />

through dialogue with Merleau-Ponty. Our focal point is experience with the other in the world and the place of experience<br />

in the process of signification of existence. Underlining in Gestalt-Therapy: a) the notions of environment-organism field<br />

and contact boun<strong>da</strong>ry as descriptive conception of the human experience, an unfolding temporal process that involves difference<br />

and meaning-making; b) Its methodological proposal that psychotherapy should seek to focus on the situation, ie,<br />

the structure of experience here and now; c) The consideration of psychotherapy as a situation involving self and other in dialogue.<br />

Considering that Merleau-Ponty shares with Gestalt Therapy roots and influences and both propose a return to the<br />

world and experience in the search for meaning, we seek to make comparisons with his late thought, when he proposes an ontology<br />

of the flesh and thinks experience as fission, difference and reversibility, to introduce by the notion of intercorporeality,<br />

the possibility of “feeling with”, ie, find the other not in the objective space of reflection, but in the realm of thoughtless.<br />

Keywords: Gestalt-Therapy; Merleau-Ponty; Intercorporealty; Brute being; Flesh.<br />

Resumen: Hablamos de la atención clínica de la terapia Gestalt como un campo de experiéncia, tratando de ampliar su comprensión<br />

mediante el diálogo con Merleau-Ponty. Nuestro punto central es la experiencia con otros en el mundo y el lugar de la<br />

experiencia en el proceso de significación de la existencia. Destacando en la terapia gestalt: a) las nociones de campo organismo-entorno<br />

y el frontera-contacto como concepción descriptiva de La experiencia en el mundo, un proceso de desarrollo temporale<br />

que implica la diferencia y la producion de significado; b) la metodología propuesta que la psicoterapia debe tratar de centrarse<br />

en la situación, la estructura de la experiencia aquí y ahora; c) la consideración de la psicoterapia como una situación de<br />

diálogo entre yo y el otro. Teniendo en cuenta que Merleau-Ponty comparte con las raíces de la Terapia Gestalt e influencias y<br />

ofrece regreso al mundo y la experiencia en la búsque<strong>da</strong> de sentido, tratamos de hacer comparaciones con sus últimos escritos,<br />

cuando el filósofo propone una ontología de la carne y piensa en la experiencia como fisión, diferencia y reversibili<strong>da</strong>d. Ali introduce<br />

la posibili<strong>da</strong>d de “sentir con” a través de la noción de intercorporei<strong>da</strong>d , es decir, encontrar el otro en el espacio oscuro<br />

de la irreflexión.<br />

Palabras-clave: Terapia Gestalt; Merleau-Ponty; Intercorporei<strong>da</strong>d; Ser Bruto; Carne.<br />

“Doravante somos plenamente<br />

visíveis para nós mesmos,<br />

graças a outros olhos”<br />

(Maurice Merleau-Ponty, 1990, p. 139)<br />

introdução<br />

A Gestalt-terapia introduziu, no âmbito <strong>da</strong> psicologia,<br />

um pensamento que ressignificava as relações pessoa-mundo,<br />

transitando de um paradigma intrapsíquico<br />

para outro organísmico, definindo a psicologia como<br />

143 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 143-151, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

o estudo <strong>da</strong> operação <strong>da</strong> fronteira de contato no campo<br />

organismo-ambiente. A fronteira não é lugar, mas campo<br />

de presença, vivido temporalmente, corporalmente,<br />

quando nos deparamos com o novo, diferente ou estranho,<br />

que buscamos significar a partir <strong>da</strong> criação. A psicoterapia<br />

busca concentrar-se na situação, na estrutura<br />

<strong>da</strong> experiência aqui e agora, uma gestalt forma<strong>da</strong> a partir<br />

do campo organismo-ambiente e que engloba eu e outro,<br />

eu e mundo. Estrutura que não tem o centro no sujeito,<br />

tampouco no ambiente ou no outro, indicando uma concepção<br />

que considera o ser-no-mundo e que não pretende<br />

atribuir, senão à experiência e à espontanei<strong>da</strong>de corporal<br />

situa<strong>da</strong>, a fonte <strong>da</strong> produção de sentidos. Tal processo, denominado<br />

contato, envolve, assim a recriação de formas,<br />

um processo interminável de ressignificação <strong>da</strong> história<br />

a partir <strong>da</strong> experiência que é temporali<strong>da</strong>de.<br />

Partindo de minha filiação à Gestalt-Terapia e concebendo<br />

a situação clínica como um campo de presença,<br />

busco, em minhas reflexões, ampliar o significado do<br />

trabalho psicoterápico com a experiência, pesquisando<br />

e discutindo suas origens fenomenológicas e dialogando<br />

com Merleau-Ponty. Em seus últimos escritos, Merleau-<br />

Ponty enfatiza a noção de carne e pensa “a experiência<br />

já não como acoplamento, mas, ao inverso, como fissão<br />

(...) sobre o fundo de uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> carne” (Dupond, 2010,<br />

p. 15). A carne “é uma noção última que não é união ou<br />

composição de duas substâncias, mas pensável de per si<br />

e mostra uma relação do visível consigo mesmo que me<br />

atravessa e me transforma em vidente” (Merleau-Ponty,<br />

1964/2000, p. 137). Conclui que esse movimento pode<br />

animar igualmente outros corpos, aludindo a uma possibili<strong>da</strong>de<br />

de reversibili<strong>da</strong>de entre um eu e o outro semelhante,<br />

uma sinergia entre diferentes organismos, uma<br />

intercorporei<strong>da</strong>de, instalando um outro em minha paisagem.<br />

O outro se insere na junção do mundo e de nós<br />

mesmos, ele é um eu generalizado. É assim que minha<br />

relação corporal com o mundo pode ser generaliza<strong>da</strong> –<br />

e podemos falar de uma intercorporei<strong>da</strong>de. O ser bruto<br />

envolve uma totali<strong>da</strong>de que abarca a diferença, uni<strong>da</strong>de<br />

na diferença, quiasma vidente-visível, sensível- sentiente,<br />

eu-outro.<br />

Neste trabalho proponho refletir acerca <strong>da</strong> experiência<br />

clínica em Gestalt-Terapia partindo <strong>da</strong> discussão de<br />

algumas concepções centrais feitas por Merleau-Ponty<br />

no âmbito de sua ontologia do Ser Bruto, demarcando<br />

alguns aspectos gerais que permitem uma aproximação<br />

do filosofar e <strong>da</strong> psicoterapia e, por fim, a partir de<br />

um fragmento de experiência clínica, entretecer os dois<br />

campos de discussão <strong>da</strong> experiência humana no mundo<br />

com o outro.<br />

1. merleau-ponty: elementos de sua ontologia<br />

Desde a primeira obra, a Estrutura do Comportamento,<br />

Merleau-Ponty (1942/2006) buscara uma solução para o<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 143-151, jul-dez, 2011<br />

Mônica B. Alvim<br />

problema do conhecimento e <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de que oferecesse<br />

uma alternativa ao intelectualismo e ao empirismo. A<br />

noção de estrutura oferece um modo de conceber as relações<br />

com o mundo como forma ou configuração: um<br />

homem situado, matéria, vi<strong>da</strong> e espírito entrelaçados<br />

com o mundo físico, sócio-cultural e histórico. É sua primeira<br />

versão para uma concepção que considera a ver<strong>da</strong>de<br />

fruto de uma operação de entrelaçamento espíritocorpo-mundo.<br />

Tomando a percepção como âmbito do originário, na<br />

Fenomenologia <strong>da</strong> Percepção (1945/1994) o filósofo enfatiza<br />

o corpo como campo de presença, autor de uma síntese<br />

prática que dota a consciência de um sentido de “eu<br />

posso”. Propõe assim um conhecimento tácito <strong>da</strong>do por<br />

uma praktognosia, que não subordina o conhecimento<br />

a uma função simbólica ou objetivante, para opor-se à<br />

reflexão idealista que transforma o mundo em correlato<br />

<strong>da</strong> consciência. De acordo com Moutinho (2005, p. 11),<br />

Merleau-Ponty tem como problema <strong>da</strong>r legitimi<strong>da</strong>de ao<br />

fenomenal face ao pensamento objetivo, mostrar que a<br />

experiência irrefleti<strong>da</strong> é o transcendental. Para isso: a)<br />

recorre às descrições psicológicas que implicam sempre<br />

em contradições no sistema eu-outrem-mundo (psíquico/<br />

fisiológico, solipsismo/comunicação, em si/para si); e, b)<br />

ao contrário de buscar resolver tais contradições, Merleau-<br />

Ponty busca despertar a experiência do corpo, do mundo<br />

e de outrem as tornando irremediáveis e colocando-as no<br />

centro <strong>da</strong> filosofia para mostrar que as contradições não<br />

são <strong>da</strong> ordem <strong>da</strong>s aparências, mas são – elas próprias –<br />

o coração <strong>da</strong> experiência e o ver<strong>da</strong>deiro transcendental.<br />

De fato, tal como compreendemos, a redução de Merleau-<br />

Ponty é para o domínio <strong>da</strong> experiência, uma existência<br />

captura<strong>da</strong> pelas teses. Para refletir sobre o irrefletido <strong>da</strong><br />

experiência, ele toma a trilha de Kurt Goldstein, busca o<br />

eu impuro, onde a tese falha, a patologia. Vai pelo avesso,<br />

reflexão radical, afirmando uma postura anti-teórica, tal<br />

como afirmou M.J.Muller-Granzotto (comunicação pessoal,<br />

novembro de 2005). Na doença, cria-se algo inusitado,<br />

que não se submete a teses universais. Fala <strong>da</strong> doença<br />

onde se aprende algo, cria-se algo. É aí que se radicaliza<br />

a postura anti-teórica.<br />

De acordo com a compreensão de Moutinho (2005),<br />

a reflexão de segundo grau que Merleau-Ponty propõe –<br />

e que converte o campo fenomenal em campo transcendental<br />

– é desenvolvi<strong>da</strong> a partir de suas reflexões sobre<br />

o tempo feitas na terceira parte <strong>da</strong> Fenomenologia <strong>da</strong><br />

Percepção (1945/1994), onde o filósofo anuncia o que será<br />

desenvolvido e aparecerá de modo definitivo mais à frente,<br />

quando então tomará o projeto ontológico: a recusa à<br />

concepção de uma identi<strong>da</strong>de através <strong>da</strong> constituição. O<br />

filósofo, nas notas que <strong>da</strong>rão origem ao livro póstumo O<br />

visível e o invisível (1964/2000), recusa um tipo de reflexão<br />

que “recua sobre as pega<strong>da</strong>s de uma constituição”<br />

(Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 41). Abandonando a intencionali<strong>da</strong>de<br />

de ato, ele explora a noção de síntese passiva,<br />

na qual concebe o tempo não como sucessão, mas como<br />

144


A Ontologia <strong>da</strong> Carne em Merleau-Ponty e a Situação Clínica na Gestalt-Terapia: Entrelaçamentos<br />

passagem e movimento, uma transição que se dá em bloco,<br />

modificação contínua e não continui<strong>da</strong>de sucessiva,<br />

uma síntese de transição que não tem autor. O tempo já<br />

é anunciado aqui como movimento centrífugo, dissolução,<br />

deiscência, tempo como diferença, ou seja, afirma<br />

Moutinho (2005, p. 41):<br />

Ca<strong>da</strong> instante se afirma por diferença com outros, ele<br />

não é apenas uma totali<strong>da</strong>de, mas é uma totali<strong>da</strong>de<br />

que cava a diferença em seu interior e assim ele se<br />

abre para uma relação a si (...) condição para qual<br />

Merleau-Ponty poderá dizer que o tempo não é para<br />

alguém, mas que ele é alguém.<br />

É nessa direção que em seus últimos escritos Merleau-<br />

Ponty recusa explicitamente o cogito e mu<strong>da</strong> o foco do<br />

corpo para a noção de carne, inaugurando uma nova ontologia<br />

– a ontologia do ser bruto – que passarei a discutir<br />

brevemente a partir de uma articulação que envolve as<br />

noções de diferenciação ou deiscência, carne, ser bruto,<br />

intercorporei<strong>da</strong>de e fé perceptiva.<br />

1.1 A Experiência como Diferenciação que faz surgir<br />

um Visível<br />

Merleau-Ponty pensa a experiência já não como acoplamento,<br />

mas, ao inverso, como fissão que faz nascer<br />

um visível do fundo de um tecido invisível que é “possibili<strong>da</strong>de,<br />

latência e carne <strong>da</strong>s coisas” (Merleau-Ponty,<br />

1964/2000, p. 130). O visível surge de uma diferenciação,<br />

é uma espécie de “cristalização momentânea <strong>da</strong> visibili<strong>da</strong>de”,<br />

é “menos cor ou coisa que diferença entre as coisas<br />

e as cores” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 129), ou seja,<br />

um visível nasce <strong>da</strong> diferença entre as coisas ou entre as<br />

cores, reuni<strong>da</strong>s em uma constelação aqui-agora. Podemos<br />

aqui nos remeter a Paul Cézanne e os impressionistas que<br />

instauraram na pintura uma nova ordem que partia justamente<br />

de uma proposta que não diferenciava o desenho<br />

<strong>da</strong> cor, a forma do conteúdo e postulava certa “passivi<strong>da</strong>de”<br />

para que o desenho nascesse espontaneamente<br />

do contraste <strong>da</strong>s cores. Para ele, delinear os contornos do<br />

desenho era uma “falha que se deve combater a todo custo<br />

(...) ao ser consulta<strong>da</strong> a natureza nos dá os meios para<br />

atingir esses fins” (Cézanne, citado por Chipp, 1999, p.<br />

19). Dizia com isso que se o pintor estivesse atento “à riqueza<br />

de colorações que animam a natureza” (Merleau-<br />

Ponty, 1948/1980, p. 118), a forma brotaria espontaneamente<br />

<strong>da</strong> expressão. “Pintando, desenha-se; mais a cor se<br />

harmoniza, mais o desenho se precisa” (Cézanne, citado<br />

por Merleau-Ponty, 1948/1980, p. 118).<br />

A pintura é referência importante para Merleau-<br />

Ponty, que coloca a Visibili<strong>da</strong>de como um universal,<br />

uma possibili<strong>da</strong>de. É a partir de um movimento de entrecruzamento<br />

momentâneo que um quiasma é produzido<br />

como uma emergência possível, uma diferenciação<br />

que surge como um visível. Um instante efêmero em<br />

que há uma cristalização de algo que emerge de uma<br />

trama, feita por um tecido invisível, a carne, minha e<br />

também do mundo. O invisível seria a “armação do visível<br />

que dá ao visível sua presença significante, sua essência<br />

ativa” (Dupond, 2010, p. 50). Merleau-Ponty estabelece<br />

entre vidente e visível uma relação originária e<br />

íntima que se fun<strong>da</strong> numa espessura que se comunica<br />

por horizontes. O visível não é uma coisa idêntica a si<br />

mesmo que se oferece nua a uma visão total do vidente,<br />

mas é sim “uma espécie de estreito entre horizontes<br />

exteriores e interiores sempre abertos” (Merleau-Ponty,<br />

1964/2000, p. 129), toca e faz ressoar à distância outras<br />

regiões, criando por diferenciação uma modulação efêmera<br />

deste mundo. O vermelho que vejo em algo liga um<br />

tecido visível e invisível. É uma “pontuação” no campo<br />

<strong>da</strong>s coisas vermelhas e também no <strong>da</strong>s roupas vermelhas;<br />

<strong>da</strong> bandeira <strong>da</strong> revolução russa e dos vestidos <strong>da</strong>s<br />

mulheres ou dos mantos dos bispos. E não será o mesmo<br />

vermelho se aparecer numa constelação ou noutra<br />

(Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 129).<br />

1.2 A Carne como Elemento<br />

Merleau-Ponty propõe uma nova compreensão, que<br />

coloca o originário na carne. Meio formador do sujeito e<br />

do objeto, a carne é equivalente ao que os gregos denominavam<br />

elemento (água, terra, fogo). A carne, para ele:<br />

(...) não é matéria, não é espírito, não é substância. (...)<br />

espécie de princípio encarnado que importa um estilo de<br />

ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua.<br />

Neste sentido, a carne é um ‘elemento’ do Ser (Merleau-<br />

Ponty, 1964/2000, p. 136).<br />

Os elementos são representativos do todo, estão no individual<br />

e no universal como um emblema, um estilo de<br />

ser. A carne é elemento comum do sujeito e do mundo,<br />

corpo e mundo se constituem reciprocamente numa experiência<br />

teci<strong>da</strong> no fundo carnal. Ela é o ponto de parti<strong>da</strong>,<br />

origem, antes do que na<strong>da</strong> é pensável. Como elemento<br />

originário, possibili<strong>da</strong>de e tecido invisível, a carne<br />

sustenta o visível que irradia um modo de ser, aparece<br />

como cristalização momentânea a partir <strong>da</strong> experiência<br />

no mundo que reúne sujeito e mundo, corpo e coisas,<br />

num horizonte comum. Ela liga aquilo que é visível –<br />

coisa do mundo e aquele que vê – corpo, sendo estofo de<br />

que ambos são feitos, indicando uma relação de parentesco<br />

que dá àquele que vê uma familiari<strong>da</strong>de, por assim<br />

dizer, prévia com o visível.<br />

Aqui está em jogo uma nova visão <strong>da</strong>s relações sujeito-mundo<br />

que busca escapar <strong>da</strong>s alternativas ser idêntico/fundido<br />

ou ser diferente/exterior, partes extra-partes.<br />

“Em vez de rivalizar com a espessura do mundo, a<br />

de meu corpo é, ao contrário, o único meio que possuo<br />

para chegar ao âmago <strong>da</strong>s coisas”, afirma Merleau-Ponty<br />

(1964/2000, p. 132).<br />

145 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 143-151, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

As coisas não são achata<strong>da</strong>s, elas também são seres<br />

em profundi<strong>da</strong>de (como a roupa vermelha que constela<strong>da</strong><br />

nos remete ao horizonte <strong>da</strong> revolução) que só são<br />

acessíveis a um sujeito que com elas coexista e não as<br />

queira sobrevoar 1 . Coexisto com elas habitando-as com<br />

meu corpo, meu olhar, meu tato. Como elas, tenho um<br />

avesso, espessura, distância dentro-fora. Comunico-me<br />

com elas por um entrecruzamento que só pode se <strong>da</strong>r<br />

por sermos feitos <strong>da</strong> mesma carne, por essa familiari<strong>da</strong>de<br />

prévia. É isso que permite encontrar uma correspondência<br />

entre seu fora (o vermelho constelado <strong>da</strong>quele<br />

modo) e meu dentro (um horizonte que se conecta com<br />

o horizonte <strong>da</strong>quela constelação que se me apresenta).<br />

Entre meu dentro (aquele que sente a partir do que é sensível<br />

na coisa) e meu fora (aquele que pode ser sentido<br />

enquanto sente). Com a noção de carne, o filósofo propõe<br />

uma correlação, entrelaçamento corpo e mundo que<br />

“comunica às coisas sobre as quais se fecha essa identi<strong>da</strong>de<br />

sem superposição, essa diferença sem contradição”<br />

(Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 132).<br />

Merleau-Ponty acentua o corpo como aquele que tem<br />

uma dupla pertença ao âmbito do sujeito e do objeto. Está<br />

na ordem do sujeito e <strong>da</strong>s coisas. Busca fazer uma ontologia<br />

<strong>da</strong> carne reabilitando o sensível. O que é visto e o<br />

que vê estão unidos por essa familiari<strong>da</strong>de primordial,<br />

carnal, seu encontro se dá como um quiasma, um entrecruzamento<br />

sensível-sentiente.<br />

Com a noção de deiscência – termo originário <strong>da</strong> botânica,<br />

que indica a abertura de um órgão quando atinge<br />

a maturação – Merleau-Ponty nos remete a uma nova<br />

compreensão. As contradições estão agora no cerne de<br />

suas propostas, não como simples contradições, mas<br />

como movimento de diferenciação, como deiscência <strong>da</strong><br />

carne, que é o originário. Se utilizarmos a metáfora <strong>da</strong><br />

botânica, um fruto, quando maduro, amolece e se abre,<br />

oferecendo-se ao mundo como alimento para outros seres,<br />

que se transformam e se abrem, oferecendo-se como<br />

alimento para outro ser, para a terra, num ciclo de vi<strong>da</strong><br />

interminável que mantém viva a vi<strong>da</strong>, renovando-se e<br />

transformando-se.<br />

Assim, o que brota e emerge como ser e visível não<br />

é fruto de uma reflexão, mas de uma experiência de fissão<br />

e diferenciação que faz surgir um visível (e um vidente),<br />

sustentados por um invisível, horizonte carnal,<br />

experiência espácio-temporal. De acordo com Dupond<br />

(2010, p. 15), “já não se trata de pensar o ‘um’ sobre o<br />

fundo de ‘dois’ (Si/o mundo), mas o ‘dois’ sobre o fundo<br />

de ‘um’”.<br />

Merleau-Ponty propõe um ser bruto como um ser de<br />

indivisão, totali<strong>da</strong>de prévia, experiência em estado bruto,<br />

não lapi<strong>da</strong>do por um movimento reflexivo. Afirmando<br />

uma ontologia do ser bruto, propõe que universali<strong>da</strong>de<br />

e particulari<strong>da</strong>de estão imbrica<strong>da</strong>s numa relação íntima<br />

1 Coexistir é abrir-se ao horizonte comum, e, ao contrário, sobrevoar<br />

seria vê-las acaba<strong>da</strong>s, sem horizontes, fecha<strong>da</strong>s em si e de mim<br />

separa<strong>da</strong>s. À minha subjetivi<strong>da</strong>de, submeti<strong>da</strong>s.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 143-151, jul-dez, 2011<br />

Mônica B. Alvim<br />

no âmbito <strong>da</strong> experiência temporal e mun<strong>da</strong>na. De acordo<br />

com Chauí (2002, p. 153-154):<br />

O ser bruto não é uma positivi<strong>da</strong>de substancial idêntica<br />

a si mesma e sim pura diferença interna de que<br />

o sensível, a linguagem e o inteligível são dimensões<br />

simultâneas e entrecruza<strong>da</strong>s (...) não é também um<br />

negativo, mas aquilo que, por dentro, permite a positivi<strong>da</strong>de<br />

de um visível, de um dizível, de um pensável,<br />

como a nervura secreta que sustenta e conserva<br />

uni<strong>da</strong>s as partes de uma folha (...) é o invisível que<br />

faz ver porque sustenta por dentro o visível (...) o Ser<br />

Bruto é a distância interna entre um visível e outro<br />

que é o seu invisível.<br />

Quando Merleau-Ponty deixa o foco no corpo próprio<br />

– o ponto de vista de um corpo-sujeito – para colocar<br />

o foco no corpo como carne, reafirma uma espécie de<br />

passivi<strong>da</strong>de do eu ao ser bruto, esta totali<strong>da</strong>de complexa<br />

composta por: eu, outro, percepção, cultura, historici<strong>da</strong>de,<br />

temporali<strong>da</strong>de. Instaura um campo primordial, um<br />

a priori que correlaciona sujeito-objeto, uma indiferenciação<br />

original de onde brota o sentido – uma dimensão<br />

carnal. O ser bruto é uma dimensão primordial, anterior<br />

a to<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de reflexiva:<br />

(...) anterior a to<strong>da</strong> diferenciação em termos de subjetivi<strong>da</strong>de.<br />

(...) Trata-se de se recolocar na zona do há<br />

preliminar, de nosso contato originário com o ser,<br />

onde o saber não operou ain<strong>da</strong> a cisão entre o “subjetivo”<br />

e o “objetivo” e no qual se institui uma primeira<br />

estratificação de sentido (Bonomi, 2004, p. 40).<br />

Essa indiferenciação como subjetivi<strong>da</strong>de pode ser<br />

compreendi<strong>da</strong> como dimensão impessoal, geográfica,<br />

biológica, sócio-histórica, uma complexi<strong>da</strong>de irrefleti<strong>da</strong>,<br />

porém presente, que pode ser senti<strong>da</strong> de modo tácito<br />

e pertencente ao âmbito de uma intercorporei<strong>da</strong>de. Esse<br />

ponto indica a passagem <strong>da</strong> intersubjetivi<strong>da</strong>de para a intercorporei<strong>da</strong>de<br />

realiza<strong>da</strong> por Merleau-Ponty. Vinculando<br />

a experiência <strong>da</strong> visibili<strong>da</strong>de ao corpo e postulando uma<br />

ontologia do sensível, Merleau-Ponty passa a pensar o sentido<br />

primordial a partir <strong>da</strong> experiência em estado bruto,<br />

uma dimensão carnal que não é sustenta<strong>da</strong> pela reflexão.<br />

A possibili<strong>da</strong>de de reversibili<strong>da</strong>de entre visível e vidente<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo corpo não é fruto de uma consciência e indica,<br />

antes, certa passivi<strong>da</strong>de, indiferenciação como subjetivi<strong>da</strong>de,<br />

generali<strong>da</strong>de que pode ser partilha<strong>da</strong> como<br />

intercorporei<strong>da</strong>de.<br />

1.3 A Intercorporei<strong>da</strong>de<br />

Merleau-Ponty opõe-se ao subjetivismo psíquico, classificando<br />

seus conceitos de míticos. Combate a introspecção,<br />

não acredita em uma visão do interior, mas em<br />

146


A Ontologia <strong>da</strong> Carne em Merleau-Ponty e a Situação Clínica na Gestalt-Terapia: Entrelaçamentos<br />

“uma vi<strong>da</strong> ao pé de si, uma abertura a si, mas que não<br />

desemboca em outro mundo diferente do mundo comum<br />

– e que não é necessariamente fechamento aos outros”<br />

(Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 29).<br />

A experiência intercorporal é, assim, para Merleau-<br />

Ponty, uma experiência irrefleti<strong>da</strong>, que nos dá o outro não<br />

como um espetáculo ao qual aprecio de fora. O filósofo<br />

afirma através <strong>da</strong> ontologia <strong>da</strong> carne a impossibili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> constituição subjetiva e a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> instituição,<br />

quando conclama a necessi<strong>da</strong>de de que:<br />

Se pare de definir primordialmente o sentir pela<br />

pertença a mesma consciência, compreendendo-o, ao<br />

contrário, como retorno sobre si no visível, aderência<br />

carnal do sentiente ao sentido e do sentido ao sentiente.<br />

Porquanto recobrimento e fissão, identi<strong>da</strong>de<br />

e diferença, essa aderência faz brotar um raio de luz<br />

natural que ilumina to<strong>da</strong> a carne, não apenas a minha<br />

(Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 138).<br />

Aqui ele afirma a dimensionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> experiência<br />

intercorporal, possibilita<strong>da</strong> e ao mesmo tempo instituinte<br />

de um modo de ser, torna<strong>da</strong> carne quando, singulari<strong>da</strong>de,<br />

particulari<strong>da</strong>de espácio-temporal, minha expressão é toma<strong>da</strong><br />

pelo outro como sua, dimensão universal.<br />

A experiência intercorporal nos dá o outro como outro<br />

eu, outro feito de minha substância, que me mostra,<br />

através do seu olhar para o mundo que pensava ser<br />

“meu”, que vemos o mesmo mundo; que me mostra, através<br />

dos seus olhos marejados de lágrimas que se dirigem<br />

a uma cena do mundo, a “minha” dor. A presença do outro<br />

acrescenta ao paradoxo interno de minha percepção<br />

“este enigma <strong>da</strong> propagação no outro <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> mais<br />

secreta” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 22).<br />

Não se coloca aqui o problema do alter ego porquanto<br />

não sou eu que vejo, nem é ele que vê, ambos somos<br />

habitados por uma visibili<strong>da</strong>de anônima, visão geral,<br />

em virtude dessa proprie<strong>da</strong>de primordial que<br />

pertence à carne de, estando aqui e agora, irradiar<br />

por to<strong>da</strong> a parte e para sempre, de, sendo indivíduo,<br />

também ser dimensão e universal (Merleau-Ponty,<br />

1964/2000, p. 138).<br />

A criação é, para ele, o movimento selvagem, não domesticado,<br />

livre de uma natureza a priori que permite,<br />

pela singulari<strong>da</strong>de, a manifestação de uma universali<strong>da</strong>de.<br />

Trata-se de uma ontologia que descreve como a experiência<br />

cria. Experiência que se faz no entrelaçamento<br />

eu-outro-mundo, em situação, inexoravelmente imbricados<br />

e incorporados.<br />

Uma vez traçados esses referenciais, buscarei agora<br />

uma aproximação com a Gestalt-Terapia e sua dimensão<br />

de abor<strong>da</strong>gem que busca descrever a experiência e os modos<br />

de ser-no-mundo.<br />

2. Situação Clínica e filosofia<br />

A ver<strong>da</strong>deira filosofia é reaprender a ver o mundo,<br />

e nesse sentido uma história narra<strong>da</strong> pode<br />

significar o mundo<br />

com tanta “profundi<strong>da</strong>de” quanto um tratado de<br />

filosofia<br />

Maurice Merleau-Ponty (1994, p. 19)<br />

Ao me propor esse diálogo entre Gestalt-Terapia e<br />

Merleau-Ponty, busco manter em meu horizonte os limites<br />

de tal aproximação. Limites que não se colocam, entretanto,<br />

sem ambigüi<strong>da</strong>des, que considero – na mesma<br />

ótica do filósofo – boas ambigüi<strong>da</strong>des, aquelas que partem<br />

de um campo comum de experiências impessoais.<br />

Essas experiências, aponta<strong>da</strong>s a seguir, não são <strong>da</strong> Gestalt-<br />

Terapia ou de Merleau-Ponty, mas de um campo comum<br />

de influências, certo espírito de época, demarcado por um<br />

horizonte de tempo-espaço, filósofos, teóricos, história,<br />

socie<strong>da</strong>de, política, um fundo, uma mesma carne.<br />

Encontramo-nos nas propostas <strong>da</strong> Psicologia <strong>da</strong><br />

Gestalt, e nas críticas a ela; no pensamento de campo,<br />

organísmico; nas tentativas de ultrapassar um intelectualismo<br />

ou um empirismo de um lado, um reducionismo<br />

psíquico ou comportamental de outro; encontramo-nos<br />

também na remissão constante à arte e à estética, na busca<br />

<strong>da</strong> expressão como criação, na oposição ao assujeitamento<br />

e na ênfase à liber<strong>da</strong>de como poder instituinte de uma<br />

corporei<strong>da</strong>de compreendi<strong>da</strong> não como sujeito, mas como<br />

espontanei<strong>da</strong>de motora, nem ativa nem passiva, modo médio,<br />

nem consciência, tampouco inconsciência.<br />

To<strong>da</strong> psicoterapia tem uma proposta de intervenção,<br />

um método, construído com base em sua concepção <strong>da</strong><br />

pessoa, <strong>da</strong>s relações pessoa-mundo, do funcionamento<br />

humano em seu entrelaçamento com natureza e cultura<br />

e nas tensões presentes nessas relações.<br />

Tomando uma dimensão não objetivista <strong>da</strong> psicologia,<br />

tal como discute Merleau-Ponty na obra Ciências do<br />

Homem e Fenomenologia (1951/1973), que coloca o sujeito<br />

ou a consciência como objeto, fruto de determinações<br />

externas ou sociais, é possível afirmar que há, no cerne<br />

do trabalho psicoterápico na perspectiva <strong>da</strong> Gestalt-<br />

Terapia, motivações que nos aproximam de uma atitude<br />

filosófica.<br />

Falamos aqui de uma ativi<strong>da</strong>de que é trabalho de criação<br />

<strong>da</strong>do a partir de uma situação de crise, sempre uma<br />

crise de sentido, trabalho de produção de sentido para a<br />

existência no mundo com o outro, e mais que isso, um<br />

trabalho que, na perspectiva <strong>da</strong> Gestalt-Terapia, visa resgatar<br />

a capaci<strong>da</strong>de de criar a partir <strong>da</strong> situação no mundo<br />

com o outro, concebendo a corporei<strong>da</strong>de como espontanei<strong>da</strong>de<br />

criadora, instituinte.<br />

É nesse sentido que entendemos que uma psicoterapia<br />

de base fenomenológica, como a Gestalt-Terapia, está<br />

encarna<strong>da</strong> ela mesma no âmbito de uma ativi<strong>da</strong>de crítica<br />

que acompanha o nascimento de um filosofar, tal como<br />

147 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 143-151, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

proposto por Souza (2008). Para ele o nascimento <strong>da</strong> filosofia<br />

se dá a partir do núcleo de uma crise, quando há<br />

um movimento de crítica, que define como “a mobilização<br />

e efetivação <strong>da</strong>s forças criadoras e transformadoras<br />

que habitam o núcleo <strong>da</strong> crise (...) seu momento radicalmente<br />

construtivo” (p. 70).<br />

Entendemos que ao transitar no campo <strong>da</strong> produção<br />

de sentidos, podemos considerar a Gestalt-Terapia uma<br />

proposta que, no âmbito de uma singulari<strong>da</strong>de, li<strong>da</strong> com<br />

um tipo de ativi<strong>da</strong>de que transcende o campo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

toma<strong>da</strong> como objetivi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>s predições e determinações<br />

causais, rumo ao campo do transcendental – aqui<br />

entendido do ponto de vista merleau-pontyano como o<br />

mun<strong>da</strong>no, o ser bruto, a dimensão originária e que “está<br />

aquém do ser e do na<strong>da</strong>, já que como ser poroso, ele é a<br />

originária indivisão deles” (Dupond, 2010, p. 68/69).<br />

Li<strong>da</strong>mos na psicoterapia com questões existenciais<br />

que, muitas vezes travesti<strong>da</strong>s de uma objetivi<strong>da</strong>de, conta<strong>da</strong>s<br />

por meio de um discurso objetivante, naturalizante,<br />

convi<strong>da</strong>m para as análises explicativas e para as determinações<br />

causais. Indicam, de modo mais ou menos<br />

explícito, o desejo por parte do cliente de um trabalho<br />

apenas analítico que explique as causas do sofrimento,<br />

tampone a angústia e gere alívio.<br />

Quando esse caminho é tomado pelo terapeuta, se<br />

não está “suficientemente atento” ao que a experiência<br />

objetiva relata<strong>da</strong> descreve, tal como recomen<strong>da</strong> Merleau-<br />

Ponty (1951/1973, p. 50), nos afasta do âmbito <strong>da</strong> produção<br />

de sentidos e nos protege – terapeutas, pessoas concretas<br />

e envolvi<strong>da</strong>s naquela situação – <strong>da</strong> experiência do<br />

risco, conforme discutimos em trabalho anterior sobre a<br />

psicoterapia e a experiência estética (Alvim, 2007a). Essa<br />

experiência do risco é aquela típica do filósofo, aquele<br />

que não acredita poder sobrevoar seu objeto, que não tem<br />

por adquiri<strong>da</strong> a correlação do saber e do ser, aquele que<br />

quando “questiona é, ele próprio, posto em causa pela<br />

questão” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 37).<br />

Ao contrário disso, o sentido ético <strong>da</strong> psicoterapia no<br />

meu entender está em provocar um desajustamento criador<br />

(Alvim, 2007b). Um desvio para o vazio, para o que<br />

ain<strong>da</strong> não é. E para isso é necessário sustentar a experiência<br />

do não-sentido e a angústia aí envolvi<strong>da</strong>. Entendemos<br />

que está em jogo no sofrimento, a relação entre o ser e o<br />

na<strong>da</strong>. Longe de serem considerados aqui pólos de uma<br />

relação dicotômica, o que é está sustentado de modo tênue<br />

por um tecido invisível, algo que ain<strong>da</strong> não é, mas<br />

que nos sustenta, conectado por horizontes temporais<br />

com uma possibili<strong>da</strong>de futura de ser ain<strong>da</strong> não visível,<br />

im-pré-visível.<br />

A terapia deve ter como meta proporcionar um tipo<br />

de reflexão que nos conecte com essa dimensão originária<br />

presente na experiência pré-reflexiva, que nos ponha<br />

em contato com a experiência reversível do ser e do na<strong>da</strong>,<br />

do sentido e do não-sentido, <strong>da</strong> visibili<strong>da</strong>de sustenta<strong>da</strong><br />

por uma invisibili<strong>da</strong>de presente de modo não-explícito,<br />

visando uma presença tal que propicie criação, institui-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 143-151, jul-dez, 2011<br />

Mônica B. Alvim<br />

ção de sentidos, movimento, reconfiguração. A terapia<br />

visa uma presença como corpo situado no mundo com o<br />

outro. E é somente pela experiência com o outro que poderemos<br />

alcançar esse tipo de reflexão.<br />

A Gestalt-Terapia propõe como método concentrar-se<br />

na estrutura concreta <strong>da</strong> situação, método que a partir<br />

do diálogo com o outro, remete ao âmbito do originário,<br />

do fazer-se sentido. A relação aqui-agora com o outro é<br />

privilegia<strong>da</strong>. É o outro eu que me dá a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

diferença, do descentramento. Falamos <strong>da</strong> terapia como<br />

ampliação de horizontes. E eles já estão aqui como um aí<br />

prévio, invisíveis, latentes, sustentando o visível. É partindo<br />

desse fundo, que gostaria agora de compartilhar<br />

cenas fictícias de uma experiência clínica.<br />

3. o encontro com Lara<br />

Lara chega ao consultório. Rosto sofrido, olhos cansados,<br />

maquiagem forte. An<strong>da</strong>r pouco equilibrado, corpo<br />

endurecido pela roupa aperta<strong>da</strong>, sapato muito alto,<br />

talvez demais. Olho para ela e me abro, busco um fio<br />

que nos conecte, que ligue a chave do encontro. Diz que<br />

está ali porque não tem mais para onde ir. Fez terapia<br />

por vários anos, sabe tudo sobre si. E conta o enredo<br />

do filme que rodou em muitas versões ao longo de sua<br />

vi<strong>da</strong>. Repete que seu problema é a repetição de uma<br />

estória de rejeição. Chora, desespera<strong>da</strong>. Rebela-se por<br />

novamente ter que fazer terapia.<br />

– Tudo o que fiz, não valeu de na<strong>da</strong>? Interroga. E repete<br />

a sinopse <strong>da</strong> última versão.<br />

Sinto-me estranha. Como se devesse algo a ela pelas<br />

terapias que “não funcionaram”. Mas espero e sigo<br />

escutando-a. Fala <strong>da</strong> mãe, do ex-marido, <strong>da</strong> traição<br />

de ambos, <strong>da</strong> injustiça, de suas quali<strong>da</strong>des, soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de,<br />

queixa-se dos sofrimentos, conta detalhes <strong>da</strong>s<br />

situações que sofreu. Ao final de nosso primeiro encontro<br />

proponho abandonar um pouco o enredo dessa<br />

história para concentrarmo-nos nos diferentes roteiros<br />

e versões. Em pequenos detalhes de algumas cenas.<br />

Em imagens secundárias, pequenas percepções. Com<br />

essa proposta faço a Lara o primeiro convite para um<br />

olhar mais demorado, com presença, que a desvie de<br />

uma estória já constituí<strong>da</strong> e automatiza<strong>da</strong>.<br />

Lara me olha ligeiramente surpresa. Algo incrédula.<br />

Parece duvi<strong>da</strong>r de seu próprio caminho, automatizado<br />

em uma fala que não para, mas isso dura poucos<br />

segundos. Logo volta ao movimento anterior, volta a<br />

queixar-se e a dizer do seu desespero. Como um motor,<br />

ela gira. E assim nos despedimos naquele primeiro<br />

encontro. Sem conexão.<br />

Outras sessões se sucedem. Semelhantes. Começo a<br />

sentir um incômodo. Ela gira o motor e sofre muito.<br />

Sofre pelo que se passou, mas sofre ain<strong>da</strong> mais de solidão.<br />

Sofre porque sabe demais. Sabe que tudo aquilo<br />

lhe faz mal, mas não consegue deixar de desejar tudo<br />

148


A Ontologia <strong>da</strong> Carne em Merleau-Ponty e a Situação Clínica na Gestalt-Terapia: Entrelaçamentos<br />

aquilo. Porque todos que a amam lhe dizem como ela<br />

é boba, como tem tudo para “virar a página”, “fazer a<br />

fila an<strong>da</strong>r”. Falam de como tem uma vi<strong>da</strong> boa e como<br />

é incapaz de superar relações tão maléficas e <strong>da</strong>ninhas.<br />

Sofre pelos acontecimentos. Mas sofre também<br />

porque “sente” demais, é “frágil e sensível demais”,<br />

afirma. E porque se sente incapaz de mu<strong>da</strong>r, se sente<br />

“incompetente, burra”.<br />

Ao fim <strong>da</strong>s sessões sinto-me estranha, sem perceber<br />

sinais de uma conexão que se anuncie. Ao mesmo tempo,<br />

noto que ela está engaja<strong>da</strong>. Vem a to<strong>da</strong>s as sessões,<br />

pontualmente. O motor gira sem cessar.<br />

Aqui e ali busco encontrá-la. Seu olhar me atravessa.<br />

Convites para olhar outras cenas não são aceitos. Tampouco<br />

para se demorar sobre elas. As perspectivas são<br />

sempre as mesmas. Como em um filme hollywoodiano,<br />

as cenas que Lara mostra se sucedem rapi<strong>da</strong>mente,<br />

sem qualquer espaço para a criação, para o sonho, o<br />

devaneio. Tudo está pronto e acabado. Acabado.<br />

Um dia ela fala mais uma vez <strong>da</strong>s pessoas que a criticam<br />

por sofrer. Naquele dia, diferente de outros, ela diz<br />

isso olhando para mim. Sinto novamente a sensação de<br />

dever algo a ela. E compartilho isso. Lara desacelera,<br />

reduz a marcha e para pela primeira vez. Olha-me<br />

mais uma vez nos olhos, quase demora<strong>da</strong>mente, e<br />

depois de alguns segundos, murmura:<br />

– É. Mas você não faz parte dessa estória.<br />

Já ia <strong>da</strong>ndo a parti<strong>da</strong> novamente no motor, quando<br />

a interrompo:<br />

– Faço parte, sim. Estou aqui-agora com você tentando<br />

mu<strong>da</strong>r essa estória. E tenho a sensação de que você não<br />

quer reescrevê-la. Mas se eu pudesse fazer algo nesse<br />

roteiro, permitiria que você sofresse bastante.<br />

Digo isso emociona<strong>da</strong> e me sentindo muito conecta<strong>da</strong><br />

com Lara, que, diante do meu gesto e de minha emoção<br />

que transbor<strong>da</strong>, me olha estupefata:<br />

– O que?!?<br />

– Deixaria você sofrer bastante, Lara. Acho seu sofrimento<br />

tão legítimo!<br />

– Mas e tudo o que as outras pessoas me dizem? Que<br />

sou boba, que tenho uma vi<strong>da</strong> ótima, que não tenho<br />

motivos para sofrer?<br />

Olho profun<strong>da</strong>mente nos olhos de Lara. Vejo ali uma<br />

grande solidão, um grande sofrimento que não pode<br />

ser sentido, tornar-se sentido, porque não há outro<br />

para comungá-lo.<br />

E digo:<br />

– Olhando nos seus olhos, posso sentir seu sofrimento<br />

aqui no meu peito.<br />

Lara desliga o motor e desce do carro. Estaciona,<br />

toma o elevador e entra em meu consultório pela<br />

primeira vez. Finalmente podemos ter nosso primeiro<br />

encontro.<br />

A Gestalt-Terapia é uma terapia do contato. A neurose<br />

é concebi<strong>da</strong> de modo amplo como fixação na forma, per<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des expressivas, expressão aqui entendi<strong>da</strong><br />

de modo merleaupontyano como criação. Laura Perls<br />

desejou que a Gestalt-terapia se chamasse Gestaltungterapia,<br />

ou seja, terapia <strong>da</strong> formação de formas. O que se<br />

visa, nessa perspectiva é um trabalho psicoterápico que<br />

permita o restabelecimento do fluxo de awareness, definido<br />

como “conhecimento imediato e implícito do campo”<br />

(Robine, 2006). A noção de awareness envolve um tipo de<br />

sentir que é abertura, passivi<strong>da</strong>de, entrega ao campo e ao<br />

outro como representantes de uma dimensão intercorporal<br />

que é generali<strong>da</strong>de e que me põe, me afirma, me inclui,<br />

com meus paradoxos, na categoria do ser carnal.<br />

Ao discutir as relações com o mundo, Merleau-Ponty<br />

nos fala de uma “presença perceptiva no mundo” como<br />

“a experiência de habitar o mundo por meio de nosso<br />

corpo” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 37). Afirma a anteriori<strong>da</strong>de<br />

dessa experiência em relação à reflexão, “nossa<br />

experiência que está aquém <strong>da</strong> afirmação e <strong>da</strong> negação,<br />

aquém do juízo – opiniões críticas, operações ulteriores<br />

-, é mais velha que qualquer opinião” (Merleau-Ponty,<br />

1964/2000, p. 37).<br />

Critica assim a filosofia reflexionante, aquela que<br />

busca compreender o nosso vínculo natal com o mundo<br />

desfazendo-o para refazê-lo. Aquela que acredita encontrar<br />

a clareza pela análise, nos elementos mais simples,<br />

nas condições mais fun<strong>da</strong>mentais, em premissas de onde<br />

ele resulta como consequência, uma reflexão que “recua<br />

sobre as pega<strong>da</strong>s de uma constituição” (Merleau-Ponty,<br />

1964/2000, p. 41).<br />

Lara era expert em analisar reflexivamente. Conhecia<br />

com clareza todos os elementos, condições fun<strong>da</strong>mentais,<br />

premissas, causas e conseqüências. Através dos anos de<br />

terapia, havia recuado to<strong>da</strong>s as pega<strong>da</strong>s <strong>da</strong> constituição<br />

de seu sentimento de rejeição, que conotava como “infantil”.<br />

Orienta<strong>da</strong> pelas premissas <strong>da</strong> Gestalt-Terapia, eu<br />

buscava uma conexão, um fio que nos ligasse. No fundo<br />

de minha experiência, estavam as lições de Merleau-<br />

Ponty (1964/2000):<br />

O segredo do mundo que procuramos é preciso, necessariamente,<br />

que esteja contido em meu contato com<br />

ele. De tudo o que vivo, enquanto o vivo, tenho diante<br />

de mim o sentido, sem o que não viveria e não posso<br />

procurar nenhuma luz concernente ao mundo a não<br />

ser interrogando, explicando minha frequentação do<br />

mundo, compreendendo-a de dentro (p. 41).<br />

Estou aderido ao mundo através de meu corpo, que<br />

me dá a ver<strong>da</strong>de a partir <strong>da</strong> minha experiência de habitá-lo.<br />

É nesse a priori <strong>da</strong> minha relação de aderência<br />

ao mundo e à situação que está a base e a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de. É no sentido que se produz no encontro com o<br />

mundo, ou seja, no campo e na situação, que está o fun<strong>da</strong>mento<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. As tentativas de explicação através<br />

do pensamento reflexivo me fazem perder o mundo<br />

e o sentido.<br />

149 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 143-151, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Mas como transpor a barreira <strong>da</strong> explicação e <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s teses? Lara buscava explicações, e nelas buscava<br />

o sentido que não encontrava. Os “anos de terapia” a encheram<br />

de significados e de ver<strong>da</strong>des que havia tomado<br />

como si. Teses e enunciados que falhavam. E era justamente<br />

nesta falha que estava a brecha para o corpo, para<br />

um movimento de habitação e de parti<strong>da</strong> para o trabalho<br />

de signific-ação existencial.<br />

Recorro novamente a Merleau-Ponty e me apoio na<br />

fé perceptiva. Aquilo que existe antes de qualquer juízo,<br />

toma<strong>da</strong> de posição, uma fé animal, corporal. A fé perceptiva<br />

me dá uma certeza inelutável e ao mesmo tempo<br />

inexplicável e obscura. É “uma adesão que se sabe além<br />

<strong>da</strong>s provas, não necessária, teci<strong>da</strong> de increduli<strong>da</strong>de, a<br />

ca<strong>da</strong> instante ameaça<strong>da</strong> pela não-fé” (Merleau-Ponty,<br />

1964/2000, p. 21).<br />

Ameaça<strong>da</strong> de um lado pela fragili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> percepção,<br />

esta que nos dá um domínio <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de, porém<br />

circun<strong>da</strong>do por uma visão lateral, por uma selva composta<br />

por uma “vegetação de fantasmas”, a percepção é<br />

dota<strong>da</strong> de movimento e instabili<strong>da</strong>de. Tais ameaças se<br />

apresentam a todo instante, quando examino o mundo<br />

com meu pensamento e recuo, saindo dessa habitação<br />

e me entrincheirando em algum fantasma-arbusto, seja<br />

ele imaginação, tese ou enunciado. “O mundo é o que<br />

percebo, mas sua proximi<strong>da</strong>de absoluta, desde que examina<strong>da</strong><br />

e expressa, transforma-se também, inexplicavelmente,<br />

em distância irremediável” (Merleau-Ponty,<br />

1964/2000, p. 20).<br />

Lara estava perdi<strong>da</strong> em uma floresta de fantasmas.<br />

Só e distante de todos, do mundo, sobretudo <strong>da</strong> sua experiência.<br />

Para ajudá-la a encontrar o caminho, eu precisava<br />

de um fio. Mas diferente de Ariadne, eu não tinha<br />

um fio pronto para oferecer a Lara. Precisávamos tecêlo<br />

juntas. Ela estava sozinha e perdi<strong>da</strong>. As explicações<br />

dela e dos outros os distanciavam irremediavelmente.<br />

Busca o remédio na terapia e ao mesmo tempo não sabe<br />

se aproximar.<br />

O sentido e o significado <strong>da</strong> experiência são criados<br />

nessa relação (eu e outro) que me envolve e ao terapeuta.<br />

As lições <strong>da</strong> Gestalt-Terapia nos ensinam como método<br />

concentrar-se na situação, “trabalhar a uni<strong>da</strong>de e a desuni<strong>da</strong>de<br />

dessa estrutura <strong>da</strong> experiência aqui e agora”<br />

(Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997, p. 46). Buscar<br />

a integração necessi<strong>da</strong>de-figura-fundo a partir do campo,<br />

uma gestalt vigorosa, uma experiência integradora a<br />

partir <strong>da</strong> awareness, criando sentidos/significados para<br />

a experiência aqui-agora.<br />

Lara não me vê. Não me escuta. Não sabe se aproximar.<br />

Está só em seu labirinto. Para resgatar sua fé<br />

perceptiva precisa ampliar sua presença. Encontrar-se<br />

aqui-agora comigo nesta situação. Mas sente-se tão só.<br />

Inferioriza<strong>da</strong> diante do outro que sabe o que é melhor<br />

para ela e a critica por não agir de acordo com as teses.<br />

Assim, gira como um motor, potência rotativa de uma força<br />

centrípeta que a mantém no centro, de pé, um si-mes-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 143-151, jul-dez, 2011<br />

Mônica B. Alvim<br />

mo. Ensimesma<strong>da</strong>, não deixa espaço para outrem, para<br />

ultrapassar a personagem, a personali<strong>da</strong>de. Precisamos<br />

criar uma força contrária, uma força centrífuga que a<br />

lance para fora de si.<br />

Ao discutir o tema <strong>da</strong> relação com o outro, Merleau-<br />

Ponty pergunta-se o que aconteceria se, além de minha<br />

visão sobre mim e sobre o mundo, me fossem <strong>da</strong><strong>da</strong>s também<br />

as visões de outrem sobre si, o mundo e sobre mim.<br />

Refere-se à visão como “sentido”, como experiência corporal.<br />

Assim, encontramos o outro não no espaço objetivo,<br />

<strong>da</strong> reflexão, mas no meio obscuro no qual a percepção<br />

irrefleti<strong>da</strong> se move à vontade. Encontramos o outro assim<br />

como encontramos nosso corpo, no campo, na expressão.<br />

E é esse o espaço <strong>da</strong> psicoterapia.<br />

Como me encontrar com Lara? Como conectar-me<br />

com ela, me perguntava através do incômodo que sentia.<br />

Outra lição merleau-pontyana: o diálogo genuíno é intercorporei<strong>da</strong>de.<br />

O meu vínculo com a situação e com aquele<br />

mundo que o cliente sente como seu mundo, aponta algo<br />

<strong>da</strong>quele (seu) campo, demonstra, reflete o seu vínculo e<br />

sua aderência a ele – que como que por um passe de mágica,<br />

ele passa a notar.<br />

O filósofo nos ensina que é quando “surge o insólito<br />

na partição do diálogo (...) quando uma resposta do<br />

outro (aqui, o terapeuta) responde bem demais ao que<br />

eu pensava sem tê-lo dito inteiramente” (Merleau-Ponty,<br />

1964/2000, p. 22), ou quando um gesto sinaliza algo<br />

que sinto, “irrompe a evidência de que também acolá,<br />

minuto por minuto, a vi<strong>da</strong> é vivi<strong>da</strong>” (Merleau-Ponty,<br />

1964/2000, p. 22).<br />

Isso é uma demonstração de aderência ao mundo, uma<br />

revelação de que aquilo que sinto e não explico é vi<strong>da</strong><br />

passível de ser vivi<strong>da</strong>, é digno de uma subjetivi<strong>da</strong>de, de<br />

um mundo próprio.<br />

Em algum lugar atrás desses olhos [que me olham],<br />

atrás desses gestos, ou melhor, diante deles, ou ain<strong>da</strong><br />

em torno deles, vindo de não sei que fundo falso do<br />

espaço, outro mundo privado transparece através do<br />

tecido do meu, e por um momento é nele que vivo<br />

[nesse outro mundo privado], sou apenas aquele que<br />

responde à interpelação que me foi feita (Merleau-<br />

Ponty, 1964/2000, p. 22) [observações minhas entre<br />

colchetes].<br />

Saio do meu centro, visível, me descentro, porque me<br />

vejo no outro – e isso não é projeção – sou arrastado com<br />

ele para o âmbito de outrem. Afirma: “a experiência que<br />

faço de minha conquista do mundo é que me torna capaz<br />

de reconhecer uma outra experiência e de perceber<br />

um outro eu mesmo, bastando que, no interior de meu<br />

mundo, se esboce um gesto (expressivo) semelhante ao<br />

meu” (Merleau-Ponty, 1969/2002, p. 171).<br />

A intervenção realmente terapêutica acrescenta esse<br />

enigma <strong>da</strong> propagação no outro <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> mais secreta.<br />

Merleau-Ponty afirma:<br />

150


A Ontologia <strong>da</strong> Carne em Merleau-Ponty e a Situação Clínica na Gestalt-Terapia: Entrelaçamentos<br />

Então é mesmo ver<strong>da</strong>de que os ‘mundos privados’<br />

se comunicam entre si, que ca<strong>da</strong> um deles se dá a<br />

seu titular como variante de um mundo comum. A<br />

comunicação transforma-nos em testemunhas de um<br />

mundo único, como a sinergia de nossos olhos os detém<br />

numa única coisa. Dá-nos, por uma operação de<br />

reversibili<strong>da</strong>de, a experiência intercorporal (Merleau-<br />

Ponty, 1964/2000, p. 23).<br />

A intercorporei<strong>da</strong>de aponta para uma possibili<strong>da</strong>de<br />

de comunicação que prescinde <strong>da</strong> reflexão, que nos lança<br />

além <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> “consciência de”, ao âmbito<br />

de uma corporei<strong>da</strong>de, aderência carnal que faz visível,<br />

que faz brotar um raio de luz que ilumina to<strong>da</strong> a carne,<br />

por to<strong>da</strong> parte. Lara chega ao consultório quando nos conectamos<br />

ambas com a tristeza. Aí ela conquista o mundo<br />

e pode legitimar o que sente. Primeiro passo e indício<br />

de um sentido que se anuncia a partir <strong>da</strong> deiscência <strong>da</strong><br />

carne, de uma generali<strong>da</strong>de de ser que se singulariza e a<br />

permite ver-se triste. É no âmbito <strong>da</strong> experiência intercorporal,<br />

compreendo, que fecun<strong>da</strong> o terapêutico como<br />

criação e ação de produção de sentidos. “A mordi<strong>da</strong> do<br />

mundo tal como a sinto em meu corpo fere tudo o que<br />

está exposto como eu” (Merleau-Ponty, 1969/2002, p. 171).<br />

O outro se insere, conclui o autor, na junção do mundo<br />

e de nós mesmos, ele é um eu generalizado. É assim que<br />

minha relação corporal com o mundo pode ser generaliza<strong>da</strong><br />

– e podemos falar de uma intercorporei<strong>da</strong>de como<br />

a possibili<strong>da</strong>de de um sentir com. Ponto de parti<strong>da</strong> para<br />

nosso caminho. Vamos, Lara. Sigamos.<br />

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Monica Botelho Alvim -- Doutora em Psicologia, Professora Adjunta na<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de Janeiro (Departamento de Psicologia<br />

Clínica). Endereço Institucional: Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de<br />

Janeiro. Av. Pasteur, 250 (Campus <strong>da</strong> Praia Vermelha, Urca). CEP<br />

22290-240. Rio de Janeiro (RJ). E-mail: mbalvim@gmail.com<br />

Recebido em 14.07.11<br />

Primeira Decisão Editorial em 20.10.11<br />

Aceito em 22.11.11<br />

151 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 143-151, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

penSando o SuiCídio SoB a ÓtiCa fenomenolÓgiCa<br />

HeRmenêutiCa: algumaS ConSideRaçõeS<br />

Thinking About Suicide under the Phenomenolocial Hermeneutics: Some Considerations<br />

Pensal el Suicidio en la Hermenéutica Fenomenológica: Algunas Consideraciones<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 152-157, jul-dez, 2011<br />

Elza Dutra<br />

elz a du T r a<br />

Resumo: Este trabalho tem como objetivo desenvolver algumas reflexões sobre o suicídio a partir <strong>da</strong> perspectiva fenomenológicahermenêutica<br />

heideggeriana. As noções heideggerianas de ser-aí, ser-no-mundo, angústia e ser-para-morte nortearão as reflexões<br />

aqui inicia<strong>da</strong>s. Para isso utilizamos as narrativas de seis adolescentes que tentaram suicídio, apresenta<strong>da</strong>s em nossa pesquisa<br />

de doutorado. Pretende-se, a partir <strong>da</strong> experiência desses jovens, alcançar uma compreensão mais profun<strong>da</strong> do suicídio, uma<br />

vez que as considerações terão como horizonte a concretude <strong>da</strong> experiência vivi<strong>da</strong>. Entendendo o ser-aí, o Dasein, como um ser<br />

de abertura e, portanto, de possibili<strong>da</strong>des, a morte se apresenta como a última possibili<strong>da</strong>de existencial. Na reali<strong>da</strong>de, a morte<br />

representa a possibili<strong>da</strong>de mais concreta com a qual o homem pode contar, como propõe Martin Heidegger. A morte afirma a<br />

finitude <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> existência. Sobretudo, representa a única certeza para o ser humano. Nesse sentido, interrogamos se o suicídio<br />

poderia ser pensado como a falta de sentido de si mesmo e um modo impessoal de se li<strong>da</strong>r com a angústia, eliminando-a.<br />

Significaria o desespero por não suportar a finitude <strong>da</strong> existência? Os questionamentos representam um esforço no sentido de<br />

pensar o suicídio a partir de um olhar que contemple a dimensão existencial que caracteriza o Dasein em sua busca de sentido<br />

como ser-no-mundo. Esperamos, assim, contribuir para a construção de um olhar desprovido de rótulos e categorizações, como<br />

histórica e cientificamente o suicídio tem sido abor<strong>da</strong>do.<br />

Palavras-chave: Suicídio; Fenomenologia hermenêutica; Ser-para-morte; Heidegger.<br />

Abstract: This work aims to develop some thoughts about suicide from the perspective of phenomenological-hermeneutics. The<br />

Heideggerian notions of being there, being in the world, anguish and death-to-be will guide the discussions started here. For<br />

that use the stories of six teenagers who attempted suicide, presented in our doctoral research. We intend, from the experience<br />

of these young people, achieve a deeper understanding of suicide, since the horizon considerations will have the concreteness<br />

of lived experience. Understanding the being-there, Dasein, as being an opening and, therefore, opportunities, death is presented<br />

as the ultimate existential possibility. In fact, death represents the most concrete possibility with which the man can count,<br />

as proposed by Heidegger. Death claims the finitude of life and existence. Above all, the only certainty is that you have in life.<br />

In this sense, we question whether the suicide could be thought of as a lack of sense of self and an impersonal way of dealing<br />

with anxiety, eliminating it. Despair would not support the finitude of existence? The questions represent an effort to think of<br />

suicide from a look that encompasses the existential dimension that characterizes Dasein in its search for meaning as being in<br />

the world. We hope thus to contribute to building a look devoid of labels and categorizations, as historically and scientifically<br />

suicide has been discussed.<br />

Keywords: Suicide; Hermeneutic phenomenology; Being-for-death; Heidegger.<br />

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo desarrollar algunas reflexiones sobre el suicidio desde la perspectiva de la hermenéutica<br />

fenomenológica-. Las nociones de Heidegger de estar ahí, estar en el mundo, la angustia y la muerte-a-ser guiará las discusiones<br />

inicia<strong>da</strong>s aquí. Para obtener que el uso de la historia de seis adolescentes que intentaron suici<strong>da</strong>rse, se presentan en<br />

nuestra investigación doctoral. Se pretende, a partir de la experiencia de estos jóvenes, lograr una comprensión más profun<strong>da</strong><br />

de suicidio, ya que las consideraciones tendrá en el horizonte la concreción de la experiencia vivi<strong>da</strong>. La comprensión del ser-ahí,<br />

Dasein, como una apertura y, por tanto, las oportuni<strong>da</strong>des, la muerte se presenta como la posibili<strong>da</strong>d existencial final. De hecho,<br />

la muerte representa la posibili<strong>da</strong>d más concreta con la que el hombre puede contar, según lo propuesto por Heidegger. La<br />

muerte reclama la finitud de la vi<strong>da</strong> y la existencia. Por encima de todo, es la única certeza que el ser humano tiene en la vi<strong>da</strong>.<br />

En este sentido, nos preguntamos si el suicidio podría ser considerado como una falta de sentido del yo y de una manera impersonal<br />

de tratar con la ansie<strong>da</strong>d, eliminando la misma. La desesperación no apoyaría la finitud de la existencia? Las preguntas<br />

representan un esfuerzo para pensar en el suicidio de una mira<strong>da</strong> que abarca la dimensión existencial que caracteriza el Dasein<br />

en su búsque<strong>da</strong> de un sentido como ser en el mundo. Esperamos contribuir así a la construcción de una mira<strong>da</strong> desprovista de<br />

etiquetas y categorías, como histórica y científicamente, el suicidio se ha discutido.<br />

Palabras-clave: Suicidio; Fenomenología hermenéutica; Ser-para-la muerte; Heidegger.<br />

152


Pensando o Suicídio sob a Ótica Fenomenológica Hermenêutica: Algumas Considerações<br />

introdução<br />

O objetivo deste artigo é refletir acerca do suicídio<br />

sob a ótica fenomenológico- existencial, a partir de pesquisa<br />

realiza<strong>da</strong> com adolescentes que tentaram suicídio<br />

(Dutra, 2000). Embora se saiba que as tentativas de suicídio<br />

(TS) diferem do suicídio (S) em relação a algumas<br />

características, tais como: população – os homens cometem<br />

mais suicídio e as mulheres, mais tentativas; faixa<br />

etária e meio causador – quando relacionados ao gênero<br />

e contexto cultural, são diferentes no S e na TS, consideramos<br />

que refletir sobre o suicídio a partir de depoimentos<br />

de quem tentou se matar nos aproxima desse<br />

fenômeno (Dutra, 2002; 2010). Não nos propomos a <strong>da</strong>r<br />

respostas sobre o suicídio, uma vez que o único consenso<br />

existente entre os suicidologistas é o de que esse ato<br />

é multideterminado, acontecendo quando um conjunto<br />

de fatores ambientais une-se a determinados modos de<br />

ser. Não é possível, portanto, traçar um perfil do suici<strong>da</strong>,<br />

como sugerem alguns mitos construídos em torno<br />

desse fenômeno.<br />

O motivo ou motivos que levam alguém ao suicídio<br />

formam-se ao longo <strong>da</strong> sua história e se revelam nos sentidos<br />

e modos de ser que constituem a sua existência. Por<br />

isso esse fenômeno não escolhe i<strong>da</strong>de, classe social, gênero<br />

ou nacionali<strong>da</strong>de. Em nosso entendimento, o suicídio<br />

significa, antes de tudo, sofrimento e desespero; ou,<br />

como disse Camus (1952), consiste mais numa questão<br />

filosófica, uma vez que interroga sobre o sentido <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Assim, o nosso intuito é iniciar uma reflexão que, nesse<br />

momento, se anuncia como um esboço de idéias e questionamentos<br />

de natureza fenomenológica e existencial<br />

sobre o tema tratado.<br />

Tendo como horizonte a reflexão pretendi<strong>da</strong>, adotamos<br />

como ponto de parti<strong>da</strong> para este trabalho as entrevistas<br />

realiza<strong>da</strong>s com seis jovens que tentaram suicídio<br />

(cinco mulheres e um homem), com i<strong>da</strong>des entre 15 e<br />

20 anos, participantes de um estudo de doutoramento<br />

(Dutra, 2000) 1 . Sendo assim, as reflexões empreendi<strong>da</strong>s,<br />

aqui, sobre o suicídio, em alguns momentos envolvem as<br />

TS, uma vez que o desejo de interromper a vi<strong>da</strong>, presente<br />

em ambas as situações, nos permite pensar o suicídio<br />

numa dimensão existencial e vivencia<strong>da</strong> através <strong>da</strong> narrativa<br />

de quem esteve próximo <strong>da</strong> experiência do suicídio.<br />

As idéias aqui esboça<strong>da</strong>s terão como referência teórica e<br />

filosófica a fenomenologia existencial segundo o pensamento<br />

do filósofo alemão Martin Heidegger.<br />

Não causa estranheza se constatar a busca incessante<br />

do ser humano pela explicação do seu viver, e do morrer<br />

também. De onde viemos e para onde vamos, é a interrogação<br />

que atravessa a existência. Por isso, a finitude é uma<br />

<strong>da</strong>s questões mais significativas e presentes nas corren-<br />

1 A referi<strong>da</strong> pesquisa foi desenvolvi<strong>da</strong> no Programa de Doutorado em<br />

Psicologia Clínica <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo (USP). A pesquisa<br />

teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa e cumpriu todos os<br />

requisitos exigidos para a sua realização.<br />

tes existencialistas. Talvez seja esta a razão <strong>da</strong> busca dos<br />

motivos e a explicação para o desejo de não mais viver,<br />

observado de maneira tão clara nas narrativas dos adolescentes<br />

sobre as suas experiências ao tentar o suicídio.<br />

Percebe-se, em to<strong>da</strong>s elas, uma fala que aponta os motivos<br />

de ca<strong>da</strong> um, as situações e pessoas envolvi<strong>da</strong>s na experiência.<br />

A experiência narra<strong>da</strong> é sempre relaciona<strong>da</strong> a momentos<br />

de vi<strong>da</strong> e fatos que conduziram o jovem àquele ato<br />

de desespero. Há sempre um motivo ou motivos que são<br />

apontados como geradores <strong>da</strong> crise e que sinalizam para<br />

o suicídio como uma saí<strong>da</strong> para o sofrimento.<br />

As experiências de vi<strong>da</strong> desses jovens revelam que a<br />

maioria deles encontra-se mergulha<strong>da</strong> em famílias desestrutura<strong>da</strong>s<br />

emocionalmente, com histórias de agressões<br />

físicas e abusos sexuais, geralmente ocorri<strong>da</strong>s no seio<br />

<strong>da</strong> própria família. As narrativas revelam experiências<br />

de vi<strong>da</strong> comumente marca<strong>da</strong>s pela rejeição, abandono e<br />

incompreensão. Os motivos causadores <strong>da</strong> tentativa de<br />

suicídio sempre são identificados pelos participantes <strong>da</strong><br />

pesquisa. Há um sentido, na forma de uma razão aparente<br />

e consciente que explica o ato que ca<strong>da</strong> um cometeu<br />

contra si mesmo, demonstrando uma compreensibili<strong>da</strong>de<br />

dos motivos de ca<strong>da</strong> um, o que pode ser entendido como<br />

a presença <strong>da</strong> compreensão, uma <strong>da</strong>s estruturas existenciárias<br />

<strong>da</strong> Analítica Existencial, proposta por Heidegger<br />

(1927/1999). As falas de Leila e Marta (todos os participantes<br />

do estudo que aqui serão citados receberam nomes<br />

fictícios) ilustram essa compreensão:<br />

Leila:...eu acho que a tentativa de suicídio é mais o<br />

“rejeitamento”... Eu acho que pra pessoa tentar se<br />

suici<strong>da</strong>r sempre tem que ter um motivo. A pessoa não<br />

vai tentar querer tirar a vi<strong>da</strong> sem ter um motivo... tem<br />

aquele motivo... do problema....<br />

Senti vontade de morrer por causa de um homem sem<br />

futuro.... Um rapaz sem futuro... que não presta.... Eu<br />

pensei em morrer por causa dele....<br />

Marta: Esses pensamentos passam pela minha cabeça,.quando<br />

eu penso em resolver todos os problemas...<br />

Aí eu digo: “Eu vou fazer isso... vou resolver tudo...”<br />

mas eu acho que não....Queria resolver os problemas...<br />

Não quero brigar com meu irmão... Eu tinha que<br />

segurar a barra antigamente. Me <strong>da</strong>va raiva... Aí eu<br />

não aguentava...<br />

Nessas falas, os motivos alegados sempre se localizam<br />

na figura de um outro, representado pela família, namorado,<br />

marido e situações desfavoráveis de vi<strong>da</strong>, enfim,<br />

pelo outros entes do mundo, trazendo à tona o caráter de<br />

mun<strong>da</strong>ni<strong>da</strong>de do Dasein. Podemos perceber a presença<br />

<strong>da</strong> cotidiani<strong>da</strong>de na qual esses jovens estão mergulhados,<br />

na ruína e decadência, pela absorção de um outro<br />

que não é o seu ser, revelando-se como um modo-de-ser<br />

na impessoali<strong>da</strong>de cotidiana. Nesse contexto, percebe-se<br />

o momento em que a crise se instala. Nesse sentido lembramos<br />

Procópio (1999), ao dizer que a crise que surge<br />

153 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 152-157, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

na convivência com um desses outros concretos serve<br />

para deixar à mostra e revelar uma angústia que já está<br />

aí, porque é originária do ser, como nos faz ver Heidegger<br />

(1927/1999). Angústia que ao ser desvela<strong>da</strong>, e diante <strong>da</strong><br />

dor que provoca, faz surgir a necessi<strong>da</strong>de de nomeá-la,<br />

de fazê-la compreensível, a fim de aliviar o desespero<br />

de não se saber. E o que acontece a seguir, é o que geralmente<br />

se observa acontecer em um momento como<br />

esse. Não raro se aponta um motivo, um acontecimento<br />

ou se atribui ao outro a razão do ato, além de este outro<br />

ser considerado o elemento causador e responsável pelo<br />

acontecimento. Na ver<strong>da</strong>de, é a angústia que não é encara<strong>da</strong>,<br />

e <strong>da</strong> qual o Dasein não se apropria, como parte <strong>da</strong><br />

sua existência. É a revelação do ser e também do não ser.<br />

Porque é nessa dimensão de velamento e desvelamento<br />

que se dá a pre-sença, ou seja, a existência. Pois como<br />

diz Novaes de Sá (2010):<br />

O Dasein foge de si, esquecendo-se do seu “ser próprio”,<br />

relacionando-se com ele como algo que já tem<br />

uma configuração preestabeleci<strong>da</strong>. A ausência de<br />

surpresas e a evidência caracterizam a ocupação e a<br />

preocupação cotidianas. O modo de falar e escrever<br />

descomprometido (falatório e escritório), a forma despersonaliza<strong>da</strong><br />

e insaciável de li<strong>da</strong>r com o novo para<br />

preservar o conhecido, evitando as transformações<br />

(curiosi<strong>da</strong>de), constituem o modo de ser cotidiano<br />

do Dasein (p. 185).<br />

No entanto, é justamente no momento <strong>da</strong> crise que a<br />

angústia pode ser facilitadora de uma mu<strong>da</strong>nça nos sentidos<br />

<strong>da</strong> existência. Como disse Heidegger (1927/1999),<br />

nessa situação duas possibili<strong>da</strong>des se colocam diante do<br />

ser: continuar na ruína, ou seja, absorvido pela cotidiani<strong>da</strong>de<br />

e permanecer na impessoali<strong>da</strong>de ou se apropriar<br />

do si mesmo, ao buscar uma existência mais autêntica. A<br />

respeito <strong>da</strong> angústia, Novaes de Sá (2010, p. 188) diz:<br />

Referimo-nos, anteriormente, à angústia como a disposição<br />

que leva à possibili<strong>da</strong>de de singularização,<br />

por colocar o Dasein em contato com o seu ser mais<br />

próprio, que é a existência como abertura de sentido.<br />

Sendo o ser-para-a-morte a possibili<strong>da</strong>de mais própria,<br />

irremissível e insuperável do homem como projeto,<br />

pode-se dizer que to<strong>da</strong> angústia aponta, em última instância,<br />

para o caráter temporal e finito <strong>da</strong> existência.<br />

Como se pode ver nos atos de suicídio, a escolha tem<br />

sido a morte, ou seja, a eliminação <strong>da</strong> angústia na vivência<br />

<strong>da</strong> última possibili<strong>da</strong>de do Dasein, a morte. Quando<br />

não se abre à angústia, parte-se para localizar no mundo<br />

concreto, no outro, e não em si mesmo, uma explicação<br />

para a dor. O mundo é responsável pela angústia vivi<strong>da</strong>.<br />

É preciso conhecer, classificar e catalogar o sofrimento.<br />

Este, decorrente <strong>da</strong> angústia, necessita ser nomeado e compreendido.<br />

É difícil para o homem olhar de frente a sua<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 152-157, jul-dez, 2011<br />

Elza Dutra<br />

finitude, porque ao fazê-lo, além de enfrentar a certeza <strong>da</strong><br />

morte, toma consciência de que ninguém jamais poderá<br />

viver por ele, desvelando-se, assim, o seu poder-ser; portanto,<br />

é preciso se apropriar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong>s suas escolhas.<br />

A possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> morte revela a vi<strong>da</strong> que se vive. E enfrentar<br />

a reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que se tem muitas vezes é tão<br />

frustrante, que em muitas pessoas prevalece a intolerância<br />

à dor, conduzindo-os, freqüentemente, a escolher a morte e<br />

assim, escapar do sofrimento. O sofrimento de empunhar<br />

o seu si mesmo, de apropriar-se <strong>da</strong> sua existência assumindo<br />

to<strong>da</strong>s as implicações que dela decorrem.<br />

A morte, enquanto uma possibili<strong>da</strong>de, é presente no<br />

ser-aí, constituindo-se, portanto, numa abertura que vai<br />

ao encontro do Dasein. Entretanto, no mundo contemporâneo<br />

em que vivemos, numa socie<strong>da</strong>de líqui<strong>da</strong>, como<br />

pensa Bauman (2007), o que se percebe é uma busca incessante<br />

e a qualquer preço, <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de. E para isso<br />

elimina-se qualquer sofrimento; todo mal-estar será banido,<br />

“tratado” e curado, criando-se, inclusive, uma cultura<br />

de medicalização, como a que vivemos atualmente,<br />

e que tem sido objeto de estudos, como os de Dantas<br />

(2009). Nesse contexto, a condição de sofrente que somos<br />

não tem lugar nesse mundo, como não há espaço para se<br />

ser triste, frágil, ou simplesmente ser diferente do modo<br />

de ser proposto pela socie<strong>da</strong>de capitalista e de consumo<br />

que prevalece no mundo globalizado. Assim, o mundo<br />

torna-se ca<strong>da</strong> vez mais inóspito para o ser humano, que<br />

se desenraíza e perde, lentamente, a sua mora<strong>da</strong>, o seu<br />

ethos (Figueiredo, 1996; Safra, 2004; Dutra 2004).<br />

Nesse contexto de mundo, a ansie<strong>da</strong>de ocupa o vácuo<br />

deixado pelo não-ser. A existência, quando vivi<strong>da</strong> na impessoali<strong>da</strong>de,<br />

leva o Dasein, ca<strong>da</strong> vez mais, a afastar-se<br />

dos sentidos que lhes são próprios, e desse modo, perder<br />

a sua singulari<strong>da</strong>de. Tal modo de viver pode gerar ansie<strong>da</strong>de<br />

e muitas vezes, depressão; esses modos de ser na<strong>da</strong><br />

mais representam do que um não-ser, ou seja, a per<strong>da</strong> de<br />

sentido. Quando essas disposições afetivas levam o sofrente<br />

aos seus limites mais extremos e o desespero torna-se<br />

insuportável, então a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> morte passa<br />

a representar o sentido para eliminar tal sofrimento.<br />

Para os jovens do estudo referenciado neste artigo, a<br />

tarefa de ser autêntico, de se apropriar de si mesmo torna-se<br />

mais difícil ain<strong>da</strong> ou mesmo impossibilita<strong>da</strong> de<br />

ocorrer, quando se considera as diversas circunstâncias<br />

que envolvem as suas existências. Além de jovens em<br />

plena adolescência, momento esse marcado pelos conflitos<br />

próprios <strong>da</strong> fase em que se encontram, eles ain<strong>da</strong><br />

têm que li<strong>da</strong>r, e como se vê, de forma dolorosa, com as<br />

vicissitudes <strong>da</strong> sua existência concreta, seja no âmbito<br />

familiar, seja no contexto social mais amplo. As famílias<br />

do estudo referenciado, em sua maioria, eram famílias<br />

desestrutura<strong>da</strong>s; os pais não favoreciam vínculos afetivos<br />

positivos com os seus filhos, quando os assumiam;<br />

quando não, atiravam-nos ao mundo para que eles enfrentassem<br />

as suas mu<strong>da</strong>nças e adversi<strong>da</strong>des por conta própria.<br />

Ou seja, os pais, como se percebe nos depoimentos,<br />

154


Pensando o Suicídio sob a Ótica Fenomenológica Hermenêutica: Algumas Considerações<br />

não possuíam recursos, em todos os sentidos que a palavra<br />

evoca, para li<strong>da</strong>r com a problemática dos seus filhos<br />

e exercer um cui<strong>da</strong>do de um modo pré-ocupado, como<br />

pensa (Heidegger, 1927/1999). As palavras de Leila são<br />

um exemplo <strong>da</strong> condição de abandono e desamparo em<br />

que essas meninas muitas vezes se encontram. A morte,<br />

então, surge como uma maneira de se defender do outro,<br />

revelando um desespero e uma busca de proteção. Nessas<br />

condições, a morte parece ser uma saí<strong>da</strong>:<br />

Leila: Depois....por conta de um namorado...infernizaram<br />

a minha vi<strong>da</strong>.... começaram a me agredir...a<br />

dizer coisas comigo...minhas tias me chamando de<br />

rapariga... me chamando de um monte de coisa... aí<br />

eu não tinha como... não sabia como me defender. A<br />

única maneira que eu achei de me defender foi ou me<br />

matar... ou então dizer que não me lembrava de na<strong>da</strong>.<br />

Aí eu tentei me suici<strong>da</strong>r....<br />

Não são raras a utilização de drogas, tanto as lícitas,<br />

como as bebi<strong>da</strong>s alcoólicas, quanto as ilícitas, além do<br />

envolvimento de alguns jovens com traficantes. As experiências<br />

de algumas adolescentes também falam de depressão,<br />

internamentos em hospitais psiquiátricos, como<br />

mostram os depoimentos de Elizabete e Leila.<br />

Elizabete: Sinceramente... eu não estou entendendo o<br />

que se passa comigo. Estou num estágio de vi<strong>da</strong> em<br />

que me vejo para<strong>da</strong>... eu estacionei Eu nem ando...<br />

nem volto... nem para um lado e nem para o outro....<br />

Eu parei.... E tenho tido crises depressivas.... Às vezes<br />

eu páro em casa e fico pensando em quantas vezes eu<br />

quis me matar. Por que será...?<br />

Leila: E depois disseram que eu estava doi<strong>da</strong> e então<br />

me internaram na Casa de Saúde. Depois de muito<br />

tempo... quando aconteceram esses problemas com o<br />

meu namorado... eu fui pra lá. Antes disso eu saí de<br />

casa.... Cheguei quase a tomar um litro de cachaça....<br />

Não tomei porque não deixaram... Isso foi há quatro<br />

anos atrás ou mais ou menos cinco anos atrás.... Eu<br />

tinha em torno de doze anos.... Depois disso... me internaram<br />

no hospital psiquiátrico.<br />

A necessi<strong>da</strong>de de ser aceito, amado, surge em to<strong>da</strong>s<br />

as falas dos jovens, seja de forma explícita, consciente,<br />

ou não. Na ver<strong>da</strong>de, é a falta de amor e a busca do outro<br />

que perpassam todos os depoimentos. O viver de forma<br />

inautêntica, sem sentido, tem em suas bases a condição<br />

co-originária do ser-com, uma vez que o ser é co-originário<br />

ao mundo, ou seja, é sendo-no-mundo. Por isso<br />

será impossível para o Dasein passar de um modo de ser<br />

impróprio para uma existência com proprie<strong>da</strong>de plena,<br />

uma vez que essa condição de existir de maneira co-originária<br />

ao mundo e com os outros entes e Daseins, não<br />

permite que tal aconteça.<br />

A experiência revela<strong>da</strong> nas narrativas expressa as<br />

pessoas que eles são no momento, vivenciando sentimentos<br />

de não serem aceitos e reconhecidos como pessoas<br />

de valor, ou seja, sem reconhecimento existencial. Nas<br />

narrativas de alguns desses jovens, percebe- se a necessi<strong>da</strong>de<br />

de serem aceitos e amados tal como se percebem;<br />

e o sofrimento por não estarem inteiros na sua relação<br />

com os pais, ou seja, com o outro. Assim, viver nessas<br />

condições será sempre um vivenciar de angústias e sofrimentos<br />

constantes, em razão <strong>da</strong> consciência de não<br />

existir, nem para si e nem para o outro. O sentimento de<br />

não ser-com-os-outros do seu mundo gera situações que<br />

conduzem à sensação de fracasso, desesperança e solidão,<br />

criando uma possibili<strong>da</strong>de para o fim do sofrimento, de<br />

maneira mortal, como se viu nas experiências desses jovens,<br />

através do suicídio.<br />

A solidão é muito presente nas narrativas apresenta<strong>da</strong>s.<br />

Muitas <strong>da</strong>s adolescentes dizem <strong>da</strong> sua falta de amigas,<br />

de não ter com quem trocar as suas experiências de<br />

inquietudes e tristezas. As relações interpessoais são caracteriza<strong>da</strong>s,<br />

em sua maioria, pelos conflitos e disputas de<br />

homens, territórios e poder. Há uma carência de vínculos<br />

afetivos que possam servir de continente às angústias<br />

por que elas passam, seja no contexto familiar ou social.<br />

Pode ser em razão dessa falta que alguns deles recorrem<br />

às drogas, à vi<strong>da</strong> sexual promíscua e mesmo aos conflitos<br />

com os seus pares na rua e escolas. Os comportamentos<br />

hostis, assim como as respostas agressivas, muitas vezes<br />

em direção aos familiares, podem ser interpretados como<br />

expressão do sofrimento por não ser amado.<br />

As experiências narra<strong>da</strong>s nos fazem ver que viver na<br />

improprie<strong>da</strong>de nos afasta do sentido que podemos <strong>da</strong>r à<br />

própria vi<strong>da</strong> e de uma existência com mais proprie<strong>da</strong>de.<br />

Elizabete revela que não consegue contatar com a experiência<br />

do seu ser. Confunde a experiência autêntica de<br />

ser com uma imagem que idealiza de si mesma, uma vez<br />

que é esta a espera<strong>da</strong> pelos outros e a quem ela satisfaz,<br />

para, assim, sentir-se ama<strong>da</strong>. Em outras palavras, podemos<br />

dizer que Elizabete, como outras jovens aqui apresenta<strong>da</strong>s,<br />

deixou-se absorver pela cotidiani<strong>da</strong>de, passando<br />

a viver na improprie<strong>da</strong>de e na impessoali<strong>da</strong>de, como<br />

nos faz pensar Heidegger (1927/1981).<br />

Essa condição, portanto, vai gerar uma alienação de<br />

si; um não-sei-quem-sou, que, além de permear de forma<br />

contundente e previsível o processo de adolescer, agravase<br />

pelo sofrimento gerado pelas circunstâncias desfavoráveis<br />

com que ca<strong>da</strong> um deles se depara em sua vi<strong>da</strong> e<br />

pela própria condição de existir.<br />

Pensando o suicídio, quem sabe este pode ser compreendido<br />

como uma maneira de li<strong>da</strong>r com a angústia, eliminando-a.<br />

Seria a incapaci<strong>da</strong>de de enxergar uma existência<br />

na qual o outro se institua de um jeito novo, distinto <strong>da</strong>quele<br />

que o absorveu. Ou seja, a descrença de que a vi<strong>da</strong><br />

possa ser vivi<strong>da</strong> de outra maneira, com um sentido próprio,<br />

o que significaria uma recusa em continuar sendo<br />

como antes. O suicídio ain<strong>da</strong> poderia ser pensado como<br />

155 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 152-157, jul-dez, 2011<br />

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uma forma desespera<strong>da</strong> de se apropriar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, do seu<br />

ser, ain<strong>da</strong> que seja eliminando-o, o que não deixa de ser<br />

um modo de assumir o seu destino, como um ser-para-amorte.<br />

É possível pensar o suicídio em razão, entre tantos<br />

outros motivos, do desespero de não poder enfrentar<br />

a finitude <strong>da</strong> existência, o ser-para-a-morte. Assim, esse<br />

ato pode significar a onipotência de se tomar nas mãos<br />

o destino do ser-para-morte. Isso pode ser percebido nas<br />

experiências dos jovens deste estudo, que colocam a tentativa<br />

de morte como um desejo de sair do sofrimento, sem<br />

que se pense na possibili<strong>da</strong>de de retomar a vi<strong>da</strong> com um<br />

modo de ser diferente. Ao pensar dessa maneira, o desejo<br />

de morte então se sobrepõe, pela descrença em novas possibili<strong>da</strong>des<br />

existenciais. Pois a resposta continua sendo o<br />

outro, o que significa um não apropriar-se <strong>da</strong> existência,<br />

como se percebe nas palavras de Márcia:<br />

Eu sou muito nova... eu tenho quinze anos agora... eu<br />

ain<strong>da</strong> vou aproveitar muito.... Que um dia vai chegar<br />

uma pessoa que me faça feliz... Eu estou esperando<br />

isso.... E também não estou fazendo na<strong>da</strong> para ser<br />

feliz...<br />

Mesmo após a tentativa de morte, ou seja, a crise,<br />

Márcia ain<strong>da</strong> não conseguiu perceber outra possibili<strong>da</strong>de<br />

para a sua existência. Continua sem apropriar-se<br />

do seu ser, à espera de alguém que faça isso por ela. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, compreendo que esta é uma tarefa muito árdua<br />

para essa menina de quinze anos, que desde os treze foi<br />

expulsa de casa pelo pai, que a rejeita até hoje. Foi obriga<strong>da</strong><br />

a entrar na adolescência como uma adulta capaz<br />

de autonomia, em todos os sentidos, mas sem condições<br />

reais para fazê-lo, em razão <strong>da</strong> natural imaturi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

i<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> sua condição de ser-no-mundo.<br />

Outra direção do olhar nos levaria a entender o suicídio<br />

como uma paralisação diante <strong>da</strong> abertura do ser-aí<br />

às possibili<strong>da</strong>des e, diante <strong>da</strong> finitude, a morte, que não<br />

se sabe quando virá e, assim, tenta-se antecipá-la. Desse<br />

modo, alivia-se a angústia de saber-se um ser que, em<br />

sendo um ser-para-a-morte, deve acolher, em seu projeto,<br />

essa possibili<strong>da</strong>de. Viver um projeto que inclua o serpara-a-morte<br />

não significa antecipá-la, eliminá-la ou viver<br />

no sofrimento, morrendo a ca<strong>da</strong> momento. É, antes<br />

de tudo, encará-la como uma <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des do ser-aí,<br />

como abertura ao mundo. É viver a angústia como uma<br />

<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des do ser, entre elas, a morte. Ain<strong>da</strong> sobre<br />

a morte e seguindo as idéias de Heidegger, Novaes de<br />

Sá (2010, p. 189) afirma:<br />

O Dasein se esquece de que existe, projetando-se e<br />

compreendendo-se antecipa<strong>da</strong>mente em suas possibili<strong>da</strong>des,<br />

e se perde nos ruídos ambíguos do falatório.<br />

Nesse contexto, a morte é encara<strong>da</strong> como um fenômeno<br />

do qual é preciso desviar-se, pois a existência<br />

deseja fugir <strong>da</strong> angústia perante a possibili<strong>da</strong>de do<br />

não-ser. É somente experienciando essa angústia<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 152-157, jul-dez, 2011<br />

Elza Dutra<br />

diante do na<strong>da</strong> que o Dasein pode escolher-se a si<br />

mesmo e encontrar o que tem de mais próprio e singular<br />

para além <strong>da</strong>s estruturas do “mundo público”<br />

e impessoal.<br />

Assim, sair <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> pode ser entendido como uma<br />

recusa a enfrentar a responsabili<strong>da</strong>de por ela. Seria<br />

antecipar o final do ser, que é a morte. Como diz Boss<br />

(xxxx/1981, p. 40), “(...) o futuro do ser humano, ele só o alcança<br />

completamente no momento <strong>da</strong> morte”. Ao mesmo<br />

tempo, seguindo o pensamento de Boss, a culpa, tal como<br />

a angústia, por ser inerente ao homem, dela jamais este se<br />

livrará. De na<strong>da</strong> adiantam as explicações concretas, no nível<br />

biológico, psicológico ou psicodinâmico sobre a culpa<br />

e a angústia, já que esta se constitui pela falta, que sempre<br />

acompanhará o homem. Vista sob o ângulo também<br />

<strong>da</strong> culpa, do ficar-a-dever, no dizer de Boss, o suicídio<br />

se configuraria no ficar-devendo, ou no débito, segundo<br />

Heidegger, no abrir mão do poder-ser; no desvencilharse<br />

<strong>da</strong> existência escolhi<strong>da</strong> e responsável e mergulhar no<br />

vácuo do não-ser. Seria uma entrega a esse sentimento<br />

indissociável do ser humano, que é a culpa.<br />

A visão de Dasein, de ser-aí, ser-para-a-morte e cotidiani<strong>da</strong>de,<br />

entre outras idéias heideggerianas, nos faz<br />

encontrar neste filósofo um pensamento extremamente<br />

contemporâneo, criando um horizonte que favorece uma<br />

compreensão mais ampla <strong>da</strong>s questões <strong>da</strong> existência, entre<br />

elas, o suicídio. Assim, o que fica mais evidente e que<br />

ressalta aos nossos olhos nessa visa<strong>da</strong> fenomenológica<br />

sobre o suicídio, é a dimensão existencial que se revela<br />

em ca<strong>da</strong> experiência narra<strong>da</strong>. Independente <strong>da</strong>s condições<br />

que circunscrevem o suicídio e por meio <strong>da</strong>s quais<br />

esse fenômeno é abor<strong>da</strong>do, tais como as condições materiais,<br />

sociais, psicológicas e psiquiátricas, entre outras,<br />

o que vem em primeiro plano e que se impõe aos nossos<br />

olhos diante de to<strong>da</strong>s as categorizações do ser humano,<br />

é a existência. É a capaci<strong>da</strong>de do homem para existir de<br />

uma forma singular, numa condição existencial criadora<br />

de sentidos, fazendo com que pessoas em condições de<br />

vi<strong>da</strong> semelhantes não percorram o caminho previamente<br />

determinado e esperado por uma socie<strong>da</strong>de tecnicista e<br />

que ignora o outro enquanto sujeito singular.<br />

O que sugere que antes de qualquer categorização, rótulo<br />

ou algo semelhante que tente aprisionar o homem,<br />

está o ser, que surge na clareira do ser-aí, na abertura do<br />

homem ao mundo. Pois é através de um movimento de velamento<br />

e desvelamento que a existência se constrói, num<br />

eterno e infindável processo de vir-a-ser, impedindo que<br />

o Dasein seja considerado um ser simplesmente <strong>da</strong>do ou<br />

cristalizado no seu desocultamento, condição intrínseca<br />

<strong>da</strong> existência. É também essa condição que nos legitima<br />

como responsáveis pelo nosso destino e, ao mesmo tempo,<br />

nos lança na incerteza desse mesmo destino, quando<br />

nos coloca como seres de possibili<strong>da</strong>des e assim, existindo<br />

num processo permanente de escolhas, em busca <strong>da</strong><br />

completude que nunca virá. Portanto, diferentemente <strong>da</strong><br />

156


Pensando o Suicídio sob a Ótica Fenomenológica Hermenêutica: Algumas Considerações<br />

tradição objetivista e técnica que prevalece nas ciências<br />

e no mundo ocidental, pensar o suicídio numa perspectiva<br />

fenomenológica hermenêutica heideggeriana desvela<br />

a possibili<strong>da</strong>de de se considerar este fenômeno como<br />

expressão <strong>da</strong> angústia e do desamparo humano diante<br />

de um mundo que será sempre inóspito para o Dasein na<br />

sua condição existencial de ser-no-mundo. E esta, certamente,<br />

se constitui num outra possibili<strong>da</strong>de de pensar o<br />

suicídio; não a única ou a mais ver<strong>da</strong>deira, apenas outra<br />

possibili<strong>da</strong>de, mais condizente com a condição de singulari<strong>da</strong>de<br />

e de solicitude que caracterizam o ser humano.<br />

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Elza Dutra - Psicóloga e psicoterapeuta. Doutora em Psicologia Clínica<br />

pela Universi<strong>da</strong>de de São Paulo (USP), e Docente do Programa de<br />

Pós-Graduação em Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande<br />

do Norte (UFRN). Endereço Institucional: Universi<strong>da</strong>de Federal do<br />

Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes,<br />

Departamento de Psicologia. Campus Universitário, Lagoa Nova, s/n.<br />

CEP 59075-970. Natal/RN. E-mail: elzadutra.rn@gmail.com<br />

Recebido em 06.07.11<br />

Aceito em 15.11.11<br />

157 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 152-157, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

o Cui<strong>da</strong>do Como amoR em HeideggeR<br />

Care like Love in Heidegger’s Thought<br />

Cui<strong>da</strong>do como Amor en Heidegger<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

Marcos A. Fernandes<br />

ma r C o s au r é l i o Fe r n a n d e s<br />

Resumo: O presente artigo procura compreender uma indicação <strong>da</strong><strong>da</strong> por Heidegger a Me<strong>da</strong>rd Boss, segundo a qual “Sorge”<br />

(cura, cui<strong>da</strong>do) não pode ser diferencia<strong>da</strong> em contraposição ao amor, como fizera Binswanger, por ser o nome para a constituição<br />

extático-temporal do traço fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> presença (Dasein), ou seja, <strong>da</strong> compreensão do ser. O artigo analisa ca<strong>da</strong> momento<br />

desta indicação e busca compreender em que sentido cui<strong>da</strong>do é, ontologicamente, o mesmo que amor.<br />

Palavras-chave: Cui<strong>da</strong>do. Amor. Temporali<strong>da</strong>de. Presença. Ser.<br />

Abstract: This article seeks to understand a statement given by Heidegger to Me<strong>da</strong>rd Boss, according to which “Sorge” (cure,<br />

care) can not be differentiated as opposed to love, as had Binswanger, because it is the name for the constitution ecstatic and<br />

temporal of the fun<strong>da</strong>mental trace of presence (Dasein), or, the understanding of being. The article analyzes every moment of<br />

this statement and seeks to understand the sense in which care is ontologically the same as love.<br />

Keywords: Care. Love. Temporality. Presence. Being.<br />

Resumen: Este artículo trata de comprender una declaración <strong>da</strong><strong>da</strong> por Heidegger a Me<strong>da</strong>rd Boss, según el cual “Sorge” (cura, la<br />

atención) no se pueden diferenciar en lugar de amor, como lo había hecho Binswanger, por ser el nombre para la constitución<br />

extática-temporal del trazo fun<strong>da</strong>mental de la presencia (Dasein), es decir, la comprensión del ser. El artículo analiza en ca<strong>da</strong><br />

momento de esta declaración y trata de comprender el sentido en que la atención es ontológicamente lo mismo que el amor<br />

Palabras-clave: Cui<strong>da</strong>do. Amor. Temporali<strong>da</strong>d. Presencia. Ser.<br />

uma Crítica e uma Resposta<br />

Nos Seminários de Zollikon, certa vez, em diálogo<br />

com Me<strong>da</strong>rd Boss, Heidegger recor<strong>da</strong> uma crítica feita<br />

a ele por Ludwig Binswanger, de que teria se esquecido<br />

de falar de amor. Ele teria falado do cui<strong>da</strong>do (Sorge)<br />

em seu caráter sombrio, teria falado <strong>da</strong> angústia e do<br />

tédio como humores ou disposições fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong><br />

existência humana e teria se esquecido do amor. A esta<br />

crítica, Heidegger (1994a, p. 237) responde <strong>da</strong> seguinte<br />

maneira:<br />

Contudo Sorge (cura, cui<strong>da</strong>do), se entendido de maneira<br />

correta, isto é, de modo fun<strong>da</strong>mental-ontológico,<br />

nunca pode ser diferenciado em contraposição ao<br />

amor, mas é o nome para a constituição extáticotemporal<br />

do traço fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> presença (Dasein),<br />

a saber, <strong>da</strong> compreensão do ser. 1<br />

O que o presente texto propõe é compreender esta<br />

indicação de Heidegger a respeito <strong>da</strong> Sorge (cura, cui<strong>da</strong>do).<br />

Como compreender aquilo que Heidegger chama<br />

1 Aber Sorge ist recht, d.h. fun<strong>da</strong>mentalontologisch verstanden, niemals<br />

unterscheidbar gegen die ’Liebe’, sondern ist der Name für die<br />

ekstatisch-zeitliche Verfassung des Grundzuges des Daseins, nämlich<br />

als Seinsverständnis. Tradução do autor.<br />

de “Sorge” (cura, cui<strong>da</strong>do)? Em que medi<strong>da</strong> é o mesmo a<br />

“cura” e o “amor”, ou seja, em que sentido há uma coincidência<br />

no ser entre ambos? É fácil, para a nossa representação<br />

cotidiana, entender onticamente o amor como<br />

cui<strong>da</strong>do, mas, como entender ontologicamente o “cui<strong>da</strong>do”,<br />

a “cura”, como amor?<br />

1. o Horizonte do entendimento fun<strong>da</strong>mentalontológico<br />

Entretanto, o que significa esta passagem do ôntico<br />

para o ontológico? Denominamos de “ôntico” o que concerne<br />

ao ente, ou seja, ao que é, ao sendo. Denominamos<br />

de “ontológico” o que concerne ao ser. Esta distinção pressupõe,<br />

pois, uma diferença, não entre ente e ente, mas<br />

entre ente e ser. Como, porém, esta diferença entre ente e<br />

ser é uma diferença de ser e não uma diferença entre entes<br />

ou entre aspectos dos entes, não sendo, portanto, uma<br />

diferença ôntica, então a denominamos “diferença ontológica”.<br />

Nesta colocação, porém, está pressuposto que, se<br />

vigora uma diferença, vige também uma referência entre<br />

ente e ser. Pois, como poderia haver uma diferença sem<br />

referência mútua? Ente e ser se diferenciam à medi<strong>da</strong><br />

que se referenciam um ao outro. Contudo, também esta<br />

referência não é ôntica, isto é, uma referência entre ente<br />

158


O Cui<strong>da</strong>do como Amor em Heidegger<br />

e ente ou entre aspectos do ente, mas uma referência de<br />

ser entre ente e ser, portanto, uma referência ontológica.<br />

A questão é: como fica essa colocação para quem só tem<br />

olhos para o ôntico? Resposta: não fica, supondo-se que<br />

haja alguém assim. Mas, há alguém assim? A resposta,<br />

neste caso, parece ambígua: por um lado, todos somos de<br />

alguma maneira cegos para o ontológico; por outro, todos,<br />

por natureza, temos a capaci<strong>da</strong>de de vê-lo. Com efeito,<br />

nós já sempre o vimos, mas não nos atinamos para essa<br />

visão. Nós já partimos sempre de uma apreensão do ente<br />

enquanto ente, e isto quer dizer, do ente no seu ser. Dito<br />

de outro modo: nós nos movemos já sempre numa compreensão<br />

do ser, embora esta compreensão seja, de início e<br />

na maior parte <strong>da</strong>s vezes, não temática, não explícita, não<br />

teórica, mas antes “operativa”, que se dá com e no nosso<br />

próprio ser, com e no nosso próprio existir, em-sendo, em<br />

existindo (Heidegger, 1988, p. 29). Em todo o li<strong>da</strong>r com<br />

o ente nós já sempre o apreendemos como ente simplesmente<br />

e, ademais, como ente deste ou <strong>da</strong>quele ser: o instrumento<br />

na sua instrumentali<strong>da</strong>de, o vivente no vigor<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o homem no modo de ser de sua humani<strong>da</strong>de,<br />

etc. Em-sendo, nós mesmos já sempre nos abrimos para<br />

o ser, a priori, nós já sempre mantemos uma relação de<br />

ser com o que somos e com o que não somos, com o que<br />

podemos ser e com o que devemos ser, com o que vamos<br />

nos tornando, enfim, com nossas possibili<strong>da</strong>des e impossibili<strong>da</strong>des<br />

de ser. Esta abertura se dá numa compreensão,<br />

que é anterior a to<strong>da</strong> tematização, que é ela mesma<br />

e nela mesma um poder-ser. É a partir desta compreensão,<br />

ain<strong>da</strong> que vaga e mediana, ain<strong>da</strong> que atemática, que<br />

nós podemos dizer “é”, “sou”, “és”, “somos”, conjugando<br />

o verbo “ser” nos seus tempos e nos seus modos, abrindo<br />

as nossas possibili<strong>da</strong>des de nos pronunciarmos e de<br />

nos comunicarmos, de falarmos <strong>da</strong>s nossas coisas e <strong>da</strong>s<br />

nossas causas, etc.<br />

Na indicação acima de Heidegger, somos remetidos ao<br />

“ontológico”: somos advertidos para o fato de que “Sorge”<br />

(cura, cui<strong>da</strong>do) é entendi<strong>da</strong> corretamente se for assumi<strong>da</strong><br />

de modo fun<strong>da</strong>mental-ontológico, como um traço fun<strong>da</strong>mental<br />

que caracteriza o humano enquanto presença, a<br />

saber, a compreensão do ser. O ôntico do ente que somos<br />

nós mesmos é de tal feitio que é em si mesmo ontológico<br />

(Heidegger, 1988, p. 38). O humano enquanto presença<br />

(Dasein) se cumpre como e a partir de uma relação com<br />

o ser, relação que se cumpre como “compreensão”. Ao<br />

dizermos “traço fun<strong>da</strong>mental que caracteriza o humano<br />

enquanto presença” o fazemos correndo o risco de uma<br />

incompreensão, devido à ambigui<strong>da</strong>de latente nesse dizer.<br />

Não se trata do humano enquanto substância (um “certo<br />

quê”), nem do humano enquanto sujeito, modo predominante<br />

de o humano se <strong>da</strong>r na época moderna. O humano,<br />

aqui, não é sujeito, nem o ser, aqui, não é nenhum objeto.<br />

A compreensão do ser por parte do humano também não<br />

é nenhum conhecimento objetivo. E, por não ser objetivo,<br />

não é nem mesmo subjetivo. Pois só há objeto onde há<br />

sujeito e só há sujeito onde há objeto. Sujeito-objeto são<br />

dois polos de uma mesma relação funcional. Só vigoram<br />

a partir <strong>da</strong> vigência <strong>da</strong> funcionali<strong>da</strong>de. Ora, a presença é<br />

um modo de ser epocal do humano que se subtrai a esta<br />

vigência <strong>da</strong> funcionali<strong>da</strong>de. O que? Mas, o que experimentamos<br />

a todo o momento não é que justamente esta<br />

vigência se dá em sua hegemonia incontestável hoje por<br />

to<strong>da</strong> a parte e a todo o momento? Na vigência <strong>da</strong> funcionali<strong>da</strong>de<br />

tudo já não se tornou sistema? Talvez sim. E na<br />

vigência do sistema, tudo não já se tornou insumo e recurso<br />

e não é a partir <strong>da</strong>í que se organiza a “socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

produção”, inclusive sua última concreção, a “socie<strong>da</strong>de<br />

do conhecimento”? Então, o que é a presença? Neste contexto,<br />

talvez uma possibili<strong>da</strong>de de ser do humano que não<br />

há, um na<strong>da</strong>. Somos e não somos presença. Ou melhor:<br />

em não sendo presença, podemos ser presença. Mas este<br />

poder-ser pressupõe a necessi<strong>da</strong>de de nos subtrairmos <strong>da</strong><br />

hegemonia <strong>da</strong> funcionali<strong>da</strong>de, isto é, <strong>da</strong> objetivi<strong>da</strong>de e<br />

<strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de, do sistema e <strong>da</strong> vivência. Este subtrair,<br />

no entanto, não é nenhuma fuga ôntica, mas é, antes de<br />

tudo, um adentrar mais profun<strong>da</strong>mente, só que esta “introdução”<br />

é de cunho ontológico. Supõe a intenção de<br />

pensarmos o sentido de ser que vigora na hegemonia <strong>da</strong><br />

funcionali<strong>da</strong>de, de seguirmos o que aí se retrai, o que se<br />

encobre e se vela, o que se resguar<strong>da</strong> e se protege, como<br />

um “na<strong>da</strong>” (Heidegger, 1999, p. 57-63).<br />

Portanto, falar do humano enquanto presença e do<br />

traço fun<strong>da</strong>mental do cui<strong>da</strong>do, não é descrever o humano<br />

enquanto algo já constituído, enquanto um determinado<br />

quê aí ocorrente, com determina<strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des<br />

características, objetivamente <strong>da</strong><strong>da</strong>s. Nem é mesmo falar<br />

do humano enquanto sujeito que se autoconstitui em<br />

seus relacionamentos com os objetos e o mundo objetivo,<br />

com o outro enquanto objeto ou mesmo com o outro enquanto<br />

outro sujeito no mundo <strong>da</strong>s relações intersubjetivas;<br />

nem consigo enquanto objeto, nem mesmo consigo<br />

enquanto sujeito, pondo-nos na perspectiva de um mundo<br />

intrasubjetivo. É que todo objetivo e todo o subjetivo,<br />

mesmo o inter e o intrasubjetivo, tanto a perspectiva <strong>da</strong><br />

racionali<strong>da</strong>de e suas operações, quanto <strong>da</strong> animali<strong>da</strong>de<br />

e de suas vivências, já se encontram no lance <strong>da</strong> compreensão<br />

de ser dominante e hegemônica hoje, que é o<br />

<strong>da</strong> funcionali<strong>da</strong>de.<br />

Falar do humano enquanto presença, porém, é outro<br />

lance. Isto é, significa abrir outro horizonte de compreensão,<br />

por conseguinte, de poder-ser. É um aceno ao futuro,<br />

portanto (Heidegger, 1994b, p. 294). Contudo, não se trata<br />

de entender o futuro como prolongamento do passado e<br />

do presente, mas como porvir, um porvir a partir donde<br />

emerge a possibili<strong>da</strong>de de uma passagem, que reponha<br />

o humano numa relação originária com o ser. Contudo,<br />

mais uma vez, não se trata de passar de algo real a outro<br />

algo real, mas <strong>da</strong> passagem de um poder-ser a outro<br />

poder-ser, de uma passagem que é, na ver<strong>da</strong>de, um salto,<br />

um salto de liber<strong>da</strong>de que, abismando-se no na<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong><br />

outro modo de ser para o humano, um modo de ser<br />

que se chama presença por possibilitar ao humano ser o<br />

159 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

aí do ser, ou seja, que se rege na proximi<strong>da</strong>de do ser, do<br />

ser não como funcionali<strong>da</strong>de, mas do ser como eventoapropriador<br />

(Ereignis).<br />

Se essa for a questão, então o humano que hoje vigora<br />

não é tanto presença, mas ausência (Heidegger, 1994b,<br />

323). O que hoje celebramos como ser não é tanto ser,<br />

mas na<strong>da</strong>; o que hoje consideramos um na<strong>da</strong>, não é tanto<br />

um na<strong>da</strong>, mas ser numa plenitude ain<strong>da</strong> não pressenti<strong>da</strong>.<br />

Esta passagem é, portanto, uma guina<strong>da</strong> (Kehre) no<br />

ser e no humano. E a crise de nosso tempo pode guar<strong>da</strong>r<br />

em si a prenhez de uma decisão, que versa sobre esta<br />

passagem, ou seja, se ela acontece ou não, quer dizer, se<br />

aquela guina<strong>da</strong> se consuma ou não. Ou então, a decisão<br />

que versa sobre o fato de se esta decisão mesma acontece<br />

ou se ela simplesmente não acontece e o homem e o<br />

ser sigam vigorando como vigoram (ou como não vigoram)<br />

na hegemonia <strong>da</strong> funcionali<strong>da</strong>de. Em todo o caso,<br />

pensar em face a essa decisão que é um poder-ser, significa,<br />

sempre renunciar a to<strong>da</strong> futurologia e cálculo sobre<br />

o futuro e a aguar<strong>da</strong>r, na vigilância, o inesperado de<br />

uma outra parusia do ser e, por conseguinte, de uma outra<br />

essencialização do humano. A questão é: se <strong>da</strong> crise<br />

que abala os fun<strong>da</strong>mentos mesmos de uma história que<br />

vigora há cerca de dois milênios e meio, pode irromper<br />

uma outra regência do ser e uma outra vigência do humano.<br />

Neste contexto, se o pensamento também encontra<br />

um caminho de passagem para outro início em diálogo<br />

com as fontes do primeiro início, de onde vivem as<br />

possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> metafísica, cuja última ressonância é<br />

o domínio absoluto <strong>da</strong> tecnociência e o controle do real<br />

pelo virtual.<br />

À luz desta situação epocal, há que se ler de modo diverso<br />

o sentido de uma ontologia-fun<strong>da</strong>mental. Para começar,<br />

ontologia não é, aqui, uma disciplina que estu<strong>da</strong> o<br />

ente, mas sim um pensar que busca, pergunta, questiona,<br />

investiga o sentido do ser. Enquanto tal, ela fun<strong>da</strong>menta<br />

e supera, ao mesmo tempo, to<strong>da</strong> ontologia (Heidegger,<br />

1994b, p. 305). O que está em jogo aqui é, na ver<strong>da</strong>de,<br />

uma transformação no próprio perguntar do pensamento:<br />

a passagem do questionamento que pergunta pelo ser do<br />

ente (o que é o ente enquanto ente, isto é, o que é o ente<br />

no tocante ao ser?), que visa o ser como enti<strong>da</strong>de, para o<br />

questionamento que pergunta pela ver<strong>da</strong>de do ser mesmo,<br />

de seu desencobrimento e encobrimento, ou melhor, de<br />

seu abrir-se e clarear-se e de seu resguar<strong>da</strong>r-se e ocultarse.<br />

Isto significa: estar atento à ver<strong>da</strong>de do ser, ao modo<br />

como o ser, <strong>da</strong>ndo-se, se retrai; presenteando-se, se subtrai;<br />

destinando-se, se resguar<strong>da</strong>. Pensar é, neste sentido,<br />

deixar-se atrair pela força de tração do retraimento do<br />

mistério do ser nas destinações de nosso tempo. É estar<br />

atento ao na<strong>da</strong> na vigência do ser, ou seja, à ausência na<br />

presença e à presença na ausência, seguindo, nos cursos,<br />

percursos e discursos <strong>da</strong> linguagem, a dinâmica do tempo.<br />

Pensar é, pois, fun<strong>da</strong>r, no humano, o “medium” para<br />

o <strong>da</strong>r-se <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de do ser. É, por conseguinte, cofun<strong>da</strong>r<br />

o humano como presença: ser o aí-do-ser. Neste sentido, a<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

Marcos A. Fernandes<br />

ontologia fun<strong>da</strong>mental é uma arranca<strong>da</strong> para a passagem,<br />

um embalar-se para o salto, um primeiro movimento em<br />

favor <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de do ser no humano como<br />

presença. Isso comporta uma transformação do humano<br />

de senhor do ente em pastor do ser:<br />

O homem foi ‘lançado’ pelo próprio Ser na Ver<strong>da</strong>de<br />

do Ser, a fim de que, ec-sistindo nesse lançamento,<br />

guarde a Ver<strong>da</strong>de do Ser; a fim de que, na luz do Ser,<br />

o ente apareça como o ente que é. Se e como o ente<br />

aparece, se e como Deus e os deuses, a História e a<br />

natureza ingressam, se apresentam e se ausentam<br />

<strong>da</strong> clareira do Ser, isso não é o homem quem decide.<br />

O advento do ente repousa no destino do Ser. Para o<br />

homem, a questão é, se ele encontra o que é ‘destinado’<br />

à sua Essência, correspondente ao destino do Ser. Pois<br />

é de acordo com esse destino, que, como ec-sistente,<br />

ele tem de guar<strong>da</strong>r a Ver<strong>da</strong>de do Ser. O homem é o<br />

pastor do Ser. É somente nessa direção que pensa Ser e<br />

Tempo, ao fazer, ‘na Cura’, a experiência <strong>da</strong> existência<br />

ec-stática (Heidegger, 1967, p. 50s).<br />

Partindo, pois, destas indicações de Heidegger sobre<br />

a “Sorge” (cura, cui<strong>da</strong>do) em seu sentido ontológico, tentemos<br />

aprofun<strong>da</strong>r a sua compreensão e ver o que ela tem<br />

a ver com o amor.<br />

2. presença e ausência<br />

A primeira indicação diz: “Sorge” (cura, cui<strong>da</strong>do) é o<br />

nome para a constituição extático-temporal do traço fun<strong>da</strong>mental<br />

<strong>da</strong> presença (Dasein), a saber, <strong>da</strong> compreensão<br />

do ser. Como entender esta indicação?<br />

Em primeiro lugar, o que quer dizer presença (Dasein)?<br />

Em sentido usual na língua alemã Dasein significa estar<br />

aí. Heidegger usa a palavra francesa “présence” (presença),<br />

aludindo ao significado usual de Dasein. Aqui convém<br />

apresentar a citação na língua alemã, segui<strong>da</strong> <strong>da</strong> sua<br />

tradução em língua portuguesa, para que apreen<strong>da</strong>mos<br />

este uso <strong>da</strong> palavra.<br />

No significado costumeiro, porém, quer dizer, por exemplo:<br />

a cadeira “está aí”; o tio “está aí”, ele chegou e está<br />

presente; <strong>da</strong>í: presença (Heidegger, 1994b, p. 300). 2<br />

No significado usual, pois, o verbo <strong>da</strong>sein quer dizer<br />

“estar aí”: presença. Em grego seria parousia. O nome parousia<br />

significa presença, aparecimento, vin<strong>da</strong>. A tradução<br />

para o latim é: adventus. Parousia remete ao verbo<br />

pareimi, estar presente, ter vindo. O que está aí é pensado,<br />

pois, como o que adveio ou sobreveio. Presença é<br />

a vigência do que advém e sobrevém. Perdendo-se de<br />

2 In der gewöhnlichen Bedeutung jedoch meint es z.B.: der Stuhl<br />

“ist <strong>da</strong>”; der Onkel “ist <strong>da</strong>”, ist angekommen und anwesend; <strong>da</strong>her<br />

présence. Grifos de Heidegger.<br />

160


O Cui<strong>da</strong>do como Amor em Heidegger<br />

vista esta dinâmica temporal, porém, a presença passa<br />

a ser entendi<strong>da</strong> como simples “ousia”: a presença ou o<br />

que está presente, ou seja, o que está aí. Caso se enten<strong>da</strong><br />

a presença do presente como o repousar em si mesmo,<br />

como autossubsistência ou autoconsistência, visando o<br />

ser em si de alguma coisa, então ousia se traduz em latim<br />

para substantia (substância). Entretanto, na história<br />

<strong>da</strong> metafísica, a compreensão do ser vai se esvaziando<br />

ca<strong>da</strong> vez mais: de vigência do que advém a simples presença<br />

e <strong>da</strong> simples presença a substância e <strong>da</strong> substância<br />

ao mero ocorrer aí de algo, de uma res (coisa), de certo<br />

“quê” (aliquid). Na moderni<strong>da</strong>de, o “quê” passa a ser<br />

interpretado como o que é apresentado e representado<br />

por e para um sujeito, ou seja, por um ente que é fun<strong>da</strong>mento<br />

ou suporte (subjectum) de to<strong>da</strong> apresentação e<br />

representação <strong>da</strong><strong>da</strong> no conhecimento, o qual passa a ser<br />

compreendido em sua função objetivante, e cuja constituição<br />

se dá como autopresença ou como presença de si<br />

a si mesmo (a “mens”, o “ego cogito”, a “res cogitans”). A<br />

presença por excelência passa a ser esta substância que é<br />

autopresente e que se apresenta e representa todo o ente<br />

no projeto de domínio calculador de todo o ente, pela<br />

ciência e pela técnica. A partir <strong>da</strong>í todo o ente, objetivo<br />

(simplesmente presente) ou subjetivo (autopresente), se<br />

equaciona no horizonte <strong>da</strong> funcionali<strong>da</strong>de do “poder”,<br />

ou melhor, <strong>da</strong> inessência do poder, que agencia o domínio,<br />

que tudo domina, explora e controla. O ser do ente,<br />

ou seja, a presença do presente passa a ser compreendido<br />

no horizonte <strong>da</strong> funcionali<strong>da</strong>de, isto é, como recurso,<br />

insumo, elemento de um processamento infinito de<br />

produção. Em tudo isso, porém, a presença é pensa<strong>da</strong> a<br />

partir <strong>da</strong> compreensão do ser como simples ocorrência,<br />

isto é, na perspectiva <strong>da</strong> instrumentali<strong>da</strong>de ou <strong>da</strong> disponibili<strong>da</strong>de<br />

para a produção. Tudo se nivela na impessoali<strong>da</strong>de<br />

funcional. O homem mesmo se torna um “que”,<br />

um elemento, recurso, mesmo que fun<strong>da</strong>mental, dentro<br />

<strong>da</strong> vigência desta funcionali<strong>da</strong>de técnico-científica, a<br />

serviço <strong>da</strong> produção.<br />

Contudo, a partir <strong>da</strong> ontologia fun<strong>da</strong>mental, “presença”<br />

(Dasein) nomeia justamente a apreensão e compreensão<br />

de um poder-ser do homem, do humano e de<br />

sua humani<strong>da</strong>de, que se subtrai ao horizonte <strong>da</strong> simples<br />

ocorrência, quer como substanciali<strong>da</strong>de, quer como subjetivi<strong>da</strong>de<br />

e objetivi<strong>da</strong>de, quer ain<strong>da</strong> como recurso <strong>da</strong><br />

funcionali<strong>da</strong>de produtiva. Presença nomeia, então, não<br />

simplesmente um “quê”, mas um “quem”. Ela responde<br />

não à pergunta: “o que somos nós?”. Ela corresponde ao<br />

questionamento “quem somos nós?” (Heidegger, 1994b,<br />

p. 48-54). Presença não é algo, mas alguém. Seria, porém,<br />

um equívoco logo empurrar a presença para dentro do horizonte<br />

<strong>da</strong> “pessoa” (Heidegger, 1988, p. 84-85). Com efeito,<br />

a pessoa veio sendo interpreta<strong>da</strong>, ao longo <strong>da</strong> história,<br />

ou como substância ou como sujeito e hoje se encontra<br />

absorvi<strong>da</strong> na impessoali<strong>da</strong>de funcional <strong>da</strong> técnica e <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de de produção, inclusive em seus aspectos “vivenciais”.<br />

A presença como “ser-quem” e não como “ser-<br />

que”, portanto, haure o seu vigor do porvir, como fun<strong>da</strong>mento<br />

para o homem porvindouro. Ela é um apelo de<br />

ser que nos alcança, ou seja, que alcança a nós, humanos<br />

deste tempo, na passagem. Alcançar uma compreensão<br />

do cui<strong>da</strong>do requer, portanto, a capaci<strong>da</strong>de de nos mantermos<br />

no sentido de ser (horizonte de compreensibili<strong>da</strong>de)<br />

que nos advém do “ser-quem”, subtraindo-nos, assim, do<br />

sentido de ser dominante do “ser-que”.<br />

A partir desta perspectiva, o que nós temos comumente<br />

como presença (Dasein, ousia), a saber, a mera<br />

presença, a ocorrência no horizonte do “ser-que”, tanto<br />

como substanciali<strong>da</strong>de quanto como objetivi<strong>da</strong>de-subjetivi<strong>da</strong>de,<br />

ou ain<strong>da</strong> quanto como recurso <strong>da</strong> funcionali<strong>da</strong>de,<br />

passa a ser chamado de ausência (Wegsein, apousia).<br />

Arrebatado, isto é, endoidecido e apaixonado pela<br />

mobilização total do produzir e do dominar, encantado<br />

pelos dispositivos e pelas disponibilizações <strong>da</strong> operacionali<strong>da</strong>de<br />

funcional <strong>da</strong> técnica, em to<strong>da</strong> a parte e a todo o<br />

momento ocupado e preocupado com o ente, ao homem<br />

permanece velado, oculto, desconhecido, o mistério do<br />

ser. Ele, epocalmente, “não está nem aí” para o mistério<br />

de ser. Este fechamento e encobrimento que vigora<br />

como esquecimento, melhor, como esquecimento do esquecimento,<br />

só pode ter o ser como na<strong>da</strong>, só pode ter o<br />

pensar que medita o sentido do ser como delírio. Esta<br />

situação não é supera<strong>da</strong> ali onde se condena a racionali<strong>da</strong>de<br />

com sua unilaterali<strong>da</strong>de e se procura refúgio nas<br />

“vivências” (Heidegger, 1994b, p. 131). Por isso, o pósmoderno<br />

é ain<strong>da</strong>, neste sentido, um prolongamento do<br />

moderno, <strong>da</strong> ausência que se consuma na moderni<strong>da</strong>de,<br />

portanto, não é propriamente uma passagem, mas uma<br />

aparência de passagem. Uma passagem só se cumpre na<br />

presença e como presença.<br />

Presença é um modo de ser, no qual o aí é, tomando-se<br />

o verbo ser, por assim dizer, como ativo-transitivo<br />

(Heidegger, 1994b, p. 296). Ser o aí é, por assim dizer,<br />

fun<strong>da</strong>r o aí, deixar e fazer viger o aí, a saber, o aí<br />

para o ser e do ser. Presença é “estar aí” para o mistério<br />

do ser. É ser o aí, ou seja, a abertura que deixa ser o ser<br />

em sua proximi<strong>da</strong>de. Cui<strong>da</strong>do é o ser (o viger) do aí. O<br />

homem, fun<strong>da</strong>do na presença, deixa de ser o senhor do<br />

ente, para se tornar o cui<strong>da</strong>dor do ser. Somente cui<strong>da</strong>ndo<br />

do ser é que o homem deixa ser o ente como ente. Do<br />

contrário, no esquecimento do ser, o ente só vigora em<br />

sua inessência, em sua niili<strong>da</strong>de (niilismo). Contudo, se<br />

a presença vigora como um “ser-quem” e não como um<br />

“ser-que”, então, também o “ser” e o “cui<strong>da</strong>r” só poderão<br />

ser apreendidos e compreendidos em seu sentido a partir<br />

do “ser-quem”.<br />

Entretanto, poder-se-ia perguntar: qual a necessi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> transformação do humano, aqui evoca<strong>da</strong>, de senhor<br />

do ente em cui<strong>da</strong>dor do ser? Resposta: o homem precisa<br />

se transformar para poder-ser si-mesmo. É no horizonte<br />

do poder-ser-si-mesmo que se inscreve a necessi<strong>da</strong>de de<br />

o humano e sua humani<strong>da</strong>de se fun<strong>da</strong>r no fundo e no<br />

abismo (sem-fundo) <strong>da</strong> presença.<br />

161 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

3. os momentos estruturais do Cui<strong>da</strong>do: existenciali<strong>da</strong>de,<br />

factici<strong>da</strong>de e decadência<br />

Voltamos, agora, à indicação <strong>da</strong><strong>da</strong> por Heidegger a<br />

respeito de como compreender o cui<strong>da</strong>do. “Sorge” (cura,<br />

cui<strong>da</strong>do) é o nome para a constituição extático-temporal<br />

do traço fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> presença (Dasein), a saber, <strong>da</strong><br />

compreensão do ser.<br />

O cui<strong>da</strong>do é indicado como “traço fun<strong>da</strong>mental” <strong>da</strong><br />

presença. Não se há de entender o cui<strong>da</strong>do, porém, como<br />

uma característica ou uma proprie<strong>da</strong>de ôntica de um<br />

ente que ocorre aí (“presença” como ocorrência). O traço<br />

resulta de um traçar. O traçar, contudo, se cumpre num<br />

imaginar. O humano como presença é uma imaginação<br />

(Heidegger, 1994b, p. 312). Contudo, essa imaginação não<br />

é nem empírica nem transcendental. É, antes, existencialontológica.<br />

Este imaginar tem o sentido de trazer à luz<br />

o que vigora como poder-ser. Significa intuir no porvir<br />

outra possibili<strong>da</strong>de de configuração do humano e de o<br />

humano ser o que ele é, ou seja, configurador do mundo.<br />

Trata-se, portanto, de criar, a partir do poder-ser, outra<br />

forma de essencializar-se do humano, na qual a humani<strong>da</strong>de<br />

do homem não se encontre fecha<strong>da</strong>, mas aberta<br />

para o mistério de ser. Imaginação tem o sentido, aqui,<br />

de projeção <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> presença em seu poder-ser<br />

fun<strong>da</strong>mental, como clareira do ser.<br />

Na ontologia fun<strong>da</strong>mental, o cui<strong>da</strong>do aparece como<br />

uma totali<strong>da</strong>de estrutural (Heidegger, 1988, p. 255).<br />

Estrutural é aquela totali<strong>da</strong>de em que o todo se encontra<br />

todo em ca<strong>da</strong> um de seus momentos. Isso quer dizer: totali<strong>da</strong>de<br />

não é, aqui, soma de partes, pois a presença não<br />

é nenhuma ocorrência (coisa ou “substância”); também<br />

não é sistema, pois a presença não é um ente que ocorre<br />

a modo do ser funcional (mecânico ou orgânico, causaleficiente<br />

ou causal-teleológico). Estrutural é uma totali<strong>da</strong>de<br />

existencial, isto é, uma totali<strong>da</strong>de que tem o modo<br />

de ser <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de. Isto quer dizer que as estruturas do<br />

cui<strong>da</strong>do são estruturações <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de. Somente a partir<br />

do sentido de ser (horizonte de compreensibili<strong>da</strong>de)<br />

do ser-quem e <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de (ser-livre) é que pode acontecer<br />

a compreensão do poder-ser <strong>da</strong> presença e, por conseguinte,<br />

do cui<strong>da</strong>do.<br />

A estrutura do cui<strong>da</strong>do reúne três momentos: existenciali<strong>da</strong>de,<br />

factici<strong>da</strong>de e de-cadência (Heidegger, 1988,<br />

p. 255).<br />

Existenciali<strong>da</strong>de é o caráter de ser <strong>da</strong> existência. A<br />

palavra existência, aqui, não tem o sentido habitual de<br />

ocorrência efetiva de alguma coisa, nem mesmo o sentido<br />

tradicional filosófico. Em sentido tradicional a palavra<br />

existência significa o “que” do ser: que o ente é<br />

(que-ser) e que ele é como ele é (como-ser). Esta se conjuga<br />

com a essência ou quidi<strong>da</strong>de: “o que” o ente é (o queser).<br />

Enquanto a essência é entendi<strong>da</strong> como possibili<strong>da</strong>de<br />

(potência), a existência nomeia a realização efetiva<br />

<strong>da</strong>quela possibili<strong>da</strong>de, o ser real do ente (ato, reali<strong>da</strong>de<br />

como efetivi<strong>da</strong>de). Existência, porém, no contexto <strong>da</strong><br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

Marcos A. Fernandes<br />

ontologia fun<strong>da</strong>mental significa a essência (no sentido<br />

verbal de viger, de conceder ou propiciar vigência) <strong>da</strong><br />

presença (Dasein), do ser-quem. Se a existência é a essência<br />

(o que deixa e faz viger) <strong>da</strong> presença; a cura ou<br />

cui<strong>da</strong>do (Sorge) é a essência <strong>da</strong> existência; e a temporali<strong>da</strong>de<br />

é o sentido de ser <strong>da</strong> cura (Sorge); então a existência<br />

é (vige como) temporali<strong>da</strong>de. A existência é, portanto,<br />

essencialmente extática. “Ex-sistere” significa “estar<br />

fora de si”, “pôr-se de pé no fora”, isto é, ser exposto ao<br />

ente como ente, ou seja, estar fora na abertura do ser.<br />

Existir é, neste sentido, estar inserido na ver<strong>da</strong>de do ser;<br />

é insistir nela; é nela estar arraigado.<br />

A partir deste caráter extático é que se determina o<br />

que é o ente em questão (a presença): ele não é um que,<br />

mas um quem. Enquanto tal, ele não é uma coisa que<br />

ocorre aí, simplesmente <strong>da</strong><strong>da</strong>; nem uma coisa de uso,<br />

um instrumento, cuja serventia se dê para isso ou para<br />

aquilo, mas ele é por mor de si mesmo (worumwillen)<br />

(Heidegger, 1988, p. 256). Esta expressão “por mor de” significa<br />

na linguagem habitual “por causa de”. Em sua origem,<br />

porém, tem o sentido de “por amor de”. A presença,<br />

enquanto existência, é não por amor de outra coisa (não<br />

é “um meio para um fim” – usando-se o modo de dizer<br />

de Kant), mas é por amor de si mesma (é “um fim em si<br />

mesma”). Isso porque, na presença enquanto existência,<br />

ou seja, enquanto um ente <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, o que está em<br />

causa ou em jogo é, ca<strong>da</strong> vez e sempre, em to<strong>da</strong> decisão,<br />

o seu ser, o seu poder-ser si-mesmo. Existir é, neste sentido,<br />

ser livre para o poder-ser mais próprio. Enquanto<br />

tal, ou seja, enquanto ser-para-o-poder-ser-mais-próprio,<br />

existir significa já sempre estar indo adiante de si mesmo,<br />

antecipar-se, preceder-se a si mesmo (sich vorweg sein).<br />

Existir é, pois, ultrapassar-se, transcender-se. Só que este<br />

transcender-se não é ultrapassar-se na direção do que<br />

não se é, mas sim, ultrapassar-se na direção do próprio<br />

ser, ou melhor, na direção do poder-ser mais próprio, ou<br />

seja, <strong>da</strong>quele poder-ser em que a presença pode ser mais<br />

propriamente o que, melhor, quem ela é. Existir é, pois,<br />

estar sob a lei <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, que diz: “torna-te o que tu és”.<br />

Isto significa: torna-te quem tu és, melhor ain<strong>da</strong>, tornate<br />

quem tu podes ser.<br />

O si-mesmo, aqui, não é a coincidência do eu consigo<br />

próprio, a coincidência entre o representador e o representado,<br />

a autoconsciência ou autopresença <strong>da</strong> mente. O<br />

si-mesmo é a regência do próprio. É o acontecer pelo qual<br />

a presença vem a si e para junto de si (Heidegger, 1994b,<br />

p. 319). Somente à medi<strong>da</strong> que a presença vem a si e junto<br />

de si é que ela pode propriamente assumir o ser para<br />

os outros. É a partir do si-mesmo que o eu, tu, nós encontram<br />

seu modo apropriado de ser. O vir para si e o ser<br />

junto de si <strong>da</strong> presença, porém, não se dá como reflexão<br />

<strong>da</strong> consciência, como autoconsciência do eu. A “retrorrelação”<br />

expressa no “vir-a-si” e no “ser-junto-de-si” não<br />

pode ser compreendi<strong>da</strong> a partir do horizonte <strong>da</strong> consciência<br />

e de sua reflexão, mas é um acontecer <strong>da</strong> presença<br />

a partir <strong>da</strong> regência do próprio. O si-mesmo não é algo<br />

162


O Cui<strong>da</strong>do como Amor em Heidegger<br />

já <strong>da</strong>do, a modo de ocorrência. O si-mesmo é o dom de<br />

uma apropriação e a apropriação de um dom. Apropriarse,<br />

aqui, porém, não é apossar-se do que já está aí, como<br />

algo simplesmente <strong>da</strong>do ou como um recurso ou coisa de<br />

uso. Apropriar-se significa tornar-se apto no poder-ser<br />

mais próprio. Querer possuir, dominar, assegurar-se é um<br />

modo impróprio de se apropriar do vigor do próprio (<strong>da</strong><br />

“proprie<strong>da</strong>de” <strong>da</strong> existência). Este querer só demonstra<br />

a inaptidão para o próprio. Mas, o que torna a presença<br />

apta à regência do próprio, à proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> existência?<br />

Resposta: a abnegação, a renúncia. A abnegação não é a<br />

mera negação de si. Mas a negação do modo impróprio<br />

de querer apropriar-se de si: ou seja, do querer possuirse<br />

sem conquistar-se, sem conquistar a aptidão para ser,<br />

a capaci<strong>da</strong>de de poder-ser. A negação <strong>da</strong> abnegação não<br />

é mera negativi<strong>da</strong>de.<br />

A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável<br />

<strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de (Heidegger, 1977, p. 48).<br />

Portanto, a renúncia não é per<strong>da</strong>. No não <strong>da</strong> renúncia<br />

vigora o poder-ser do sim à ver<strong>da</strong>de do ser. A renúncia<br />

anuncia o que se vela e se oculta (Heidegger, 2003,<br />

p. 129). Ela assinala o retraimento do mistério do ser, o<br />

outro do ente. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a<br />

força inesgotável <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de de si sob a regência do<br />

próprio. Por isso, a aptidão do poder-ser se consuma como<br />

dedicação, na pertença ao ser. Ela é crescimento e maturação<br />

de si a partir do ser.<br />

A aptidão do poder-ser acontece como doação à ver<strong>da</strong>de<br />

do ser. E isso significa: é recepção à regência do ser.<br />

Esta, porém, a regência do ser, consiste em provocar ca<strong>da</strong><br />

ente para o seu próprio. Ele concede a vigência do próprio<br />

a ca<strong>da</strong> e a todo o ente (Heidegger, 1967, p. 28). Dito de outro<br />

modo: é o ser que deixa e faz ser o ente no seu próprio, é<br />

ele que leva ca<strong>da</strong> ente à sua proprie<strong>da</strong>de. Por isso a aptidão<br />

do poder-ser, pelo qual a presença se torna si mesma, consiste<br />

em receber do ser o vigor de ser o próprio de si e em<br />

comunicar adiante este vigor. Somente no pertencimento<br />

ao ser é que a presença alcança constância e consistência<br />

de ser-si-mesma e somente sendo propriamente si mesma<br />

é que ela pode dizer propriamente eu, tu, nós. Existência<br />

não é, pois, outra coisa do que a insistência, a consistência<br />

e a constância <strong>da</strong> presença na ver<strong>da</strong>de do ser.<br />

Factici<strong>da</strong>de é o caráter de ser do fato de a presença<br />

já existir, mais precisamente, de já ser-no-mundo<br />

(Heidegger, 1989, p. 71-73). Neste sentido, a factici<strong>da</strong>de é<br />

ontologicamente diferente <strong>da</strong> factuali<strong>da</strong>de do ente simplesmente<br />

<strong>da</strong>do ao modo <strong>da</strong> ocorrência ou do ente à mão<br />

que se dá ao modo <strong>da</strong> instrumentali<strong>da</strong>de. Embora sejam<br />

reais, estes não existem, no sentido do uso aqui <strong>da</strong>do à<br />

palavra “existência”, como um existencial.. Estes não têm<br />

o modo de ser-no-mundo, mas apenas vêm ao encontro<br />

<strong>da</strong> presença como entes intramun<strong>da</strong>nos. Enquanto já-serem<br />

(o mundo) a factici<strong>da</strong>de é o a priori <strong>da</strong> existência, a<br />

sua auto<strong>da</strong>ti<strong>da</strong>de, o já ser si-mesmo, do si-mesmo, para simesmo<br />

(autorrelação). Entretanto, o si-mesmo é si-mesmo<br />

para si-mesmo, concretamente, em sendo, em existindo,<br />

e isto quer dizer: entregue à própria responsabili<strong>da</strong>de de<br />

assumir este fato de já ser. A presença existe em concreto,<br />

tendo que ser si-mesma, submeti<strong>da</strong> à necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

liber<strong>da</strong>de. Em concreto quer dizer: como ca<strong>da</strong>-vez-minha<br />

em sua singulari<strong>da</strong>de e na respectivi<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> vez, ou<br />

seja, inseri<strong>da</strong> na finitude de ca<strong>da</strong> situação. A factici<strong>da</strong>de é<br />

o fato de que, sendo, a presença já está lança<strong>da</strong> no aí e já<br />

se abriu como disposição, compreensão e linguagem; é o<br />

fato de que, sendo, ela já se precedeu a si mesma, ou seja,<br />

já está a caminho de si-mesma e já se lançou para o ser<br />

como um poder-ser; o fato de que, sendo, ela já se achou<br />

a si-mesma em alguma disposição ou humor, já abriu o<br />

mundo como uma estrutura remissiva de significâncias<br />

e já articulou e recolheu a sua compreensibili<strong>da</strong>de na<br />

linguagem. A factici<strong>da</strong>de é o fato de a presença não poder<br />

retroceder ao fato de já-ser-em-o-mundo, ao fato de<br />

já ser e de ter que, sempre de novo, ser. A presença, com<br />

efeito, não pode nunca estar diante de sua existência. Ela<br />

só pode ser a partir <strong>da</strong> existência, como existência e em<br />

vista <strong>da</strong> existência. Por isso, a presença não pode nunca<br />

absolutamente dominar a existência. A factici<strong>da</strong>de é o<br />

fato ambivalente de a presença não ser fun<strong>da</strong>mento de si<br />

e, ao mesmo tempo, ter que ser fun<strong>da</strong>mento de si mesma.<br />

O fato de não ser fun<strong>da</strong>mento de si mesma, ou seja, de já<br />

estar lança<strong>da</strong> no aí, na abertura <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de do ser, mostra<br />

sua niili<strong>da</strong>de. O fato de ser fun<strong>da</strong>mento de si mesma,<br />

ou seja, o fato de ter que ser si-mesma, assumindo o seu<br />

próprio poder-ser, a ca<strong>da</strong> vez, mostra sua liber<strong>da</strong>de. O<br />

fato de existir, com efeito, a presença assume sempre de<br />

novo e a ca<strong>da</strong> vez, na solidão de sua singulari<strong>da</strong>de e na<br />

finitude de sua mortali<strong>da</strong>de, na comunhão do ser-comos-outros,<br />

como cui<strong>da</strong>do (Sorge), exercendo-o concretamente<br />

na ocupação (Besorgen) com as coisas intramun<strong>da</strong>nas<br />

e na preocupação (Fürsorge) com os outros. E este<br />

exercício se dá concretamente nos lances pelos quais ela<br />

assume o seu poder-ser, que é, também e de modo igualmente<br />

originário, um poder-ser-no-mundo e um poderser-com-o-outro.<br />

A presença é seu fun<strong>da</strong>mento em existindo,<br />

ou seja, em podendo ser, ou seja, em assumindo<br />

ou não o poder ser si-mesmo, a regência <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de.<br />

Por isso, a presença pode cumprir-se entrando nesta regência<br />

ou desviando-se dela, abrindo-se ou fechando-se<br />

para a ver<strong>da</strong>de do ser.<br />

A decadência constitui a inessência <strong>da</strong> existência.<br />

Entretanto, enquanto inessência, ela pertence à essência<br />

como uma sua possibili<strong>da</strong>de, na ver<strong>da</strong>de, como aquela<br />

possibili<strong>da</strong>de que de início e na maior parte <strong>da</strong>s vezes já<br />

se realizou, na factici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> existência. Ela é o avesso<br />

<strong>da</strong> existência. Só que este avesso é justamente o modo<br />

mais comum dela, a existência, se <strong>da</strong>r (Heidegger, 1989,<br />

p. 144-147). Por ela, o homem diz “eu sou”, mas em ver<strong>da</strong>de<br />

não é, isto é, não vigora na proprie<strong>da</strong>de do ser-simesmo.<br />

Por ela, ca<strong>da</strong> um é, antes de tudo, “os outros”:<br />

o “a gente” que, na ver<strong>da</strong>de, é “todo o mundo”, que, em<br />

última instância, é “ninguém”. Por ela, a existência é<br />

arrebata<strong>da</strong> pelo mundo <strong>da</strong>s coisas de que se ocupa, se<br />

163 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

move em relacionamentos impessoais e se dissipa no falatório,<br />

na curiosi<strong>da</strong>de e na ambigui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de.<br />

Decadência é desarraigamento, um desarraigamento<br />

fun<strong>da</strong>do no fato de já ser-junto ao ente. Mas é, acima de<br />

tudo, uma cadência: uma mobili<strong>da</strong>de e movimentação do<br />

existir, cuja característica é a precipitação para o na<strong>da</strong><br />

negativo, ou seja, o na<strong>da</strong> aniquilante. Não que com ela o<br />

homem fosse destruído. Mais do que a destruição do homem,<br />

ela é a aniquilação do fundo ontológico do poder-ser<br />

pelo qual o homem pode construir o seu modo de ser, isto<br />

é, se constituir como humano em sua humani<strong>da</strong>de. Nela,<br />

o homem pode permanecer, mas permanece inumano. A<br />

existência continua, mas em simulacros. Radicalmente<br />

acomo<strong>da</strong><strong>da</strong> em sua movimentação, promove a agitação<br />

frenética do fazer, do agir, do empreender, escolhendo<br />

o imediatamente útil como critério último de valor de<br />

tudo e de todos. A sua niili<strong>da</strong>de, portanto, não é a niili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> não ocorrência, mas é uma niili<strong>da</strong>de que se dissimula<br />

na efetivi<strong>da</strong>de, na proximi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, na exaltação<br />

do “concreto”. Na decadência, a existência foge de<br />

si mesma, se aliena, se fecha, se aprisiona, gira de modo<br />

vazio em torno de si mesma, como em um vórtice. Pela<br />

decadência a existência desliza em defasagens: do ser ao<br />

ente; do si-mesmo ao mundo; do mundo ao intramun<strong>da</strong>no;<br />

do que está à mão no uso como coisa ao simplesmente<br />

<strong>da</strong>do; do simplesmente <strong>da</strong>do como objeto ao recurso. Uma<br />

mobili<strong>da</strong>de de precipitação, portanto, que vai <strong>da</strong> vigência<br />

à mera ocorrência, do recolhimento no uno à dispersão<br />

na multiplici<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> plenitude e prenhez ao vazio<br />

e esterili<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> originarie<strong>da</strong>de criativa e criativi<strong>da</strong>de<br />

originária à estereotipia, <strong>da</strong> abertura ao fechamento, do<br />

desencobrimento ao encobrimento dissimulador, <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

ao falseamento.<br />

4. Cui<strong>da</strong>do como Constituição extático-temporal <strong>da</strong><br />

presença<br />

Mais uma vez, retomemos a indicação inicial que<br />

nos guia nesta reflexão: “Sorge” (cura, cui<strong>da</strong>do) é o nome<br />

para a constituição extático-temporal do traço fun<strong>da</strong>mental<br />

<strong>da</strong> presença (Dasein), a saber, <strong>da</strong> compreensão do ser.<br />

Acabamos de ver como esta constituição se articula em<br />

três momentos estruturais: a existenciali<strong>da</strong>de, a factici<strong>da</strong>de<br />

e a decadência. Agora tentemos entender como esta<br />

constituição se denomina “extático-temporal”.<br />

A totali<strong>da</strong>de estrutural <strong>da</strong> cura ou do cui<strong>da</strong>do (Sorge),<br />

que se articula em seus momentos (existenciali<strong>da</strong>de, factici<strong>da</strong>de<br />

e decadência) não é uma moldura rígi<strong>da</strong> na qual a<br />

presença se realiza, nem é um arcabouço estático a partir<br />

do qual o homem constrói sua humani<strong>da</strong>de (Heidegger,<br />

1988, p. 255-256). A totali<strong>da</strong>de estrutural <strong>da</strong> cura ou do<br />

cui<strong>da</strong>do (Sorge) é, essencialmente, temporali<strong>da</strong>de. Tratase,<br />

aqui, não <strong>da</strong> intratemporali<strong>da</strong>de do ente intramun<strong>da</strong>no<br />

que ocorre “no tempo”. Também não se trata de uma<br />

temporali<strong>da</strong>de psíquica, vivencia<strong>da</strong> de modo imanente<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

Marcos A. Fernandes<br />

por um sujeito em sua consciência. A presença não ocorre<br />

“no tempo” como se fosse algo intramun<strong>da</strong>no. O fato<br />

de ela se interpretar a si mesma como tal é apenas uma<br />

sua possibili<strong>da</strong>de, no esquecimento de si mesma junto<br />

às coisas com que ela li<strong>da</strong>. A presença também não é<br />

pura e simplesmente a consciência na qual e para a qual<br />

o tempo ocorre. Tanto o tempo objetivo (físico), quanto<br />

o tempo subjetivo (psíquico) são modos defasados de se<br />

entender a temporali<strong>da</strong>de existencial. A presença só tem<br />

tempo e vivencia tempo por já ser tempo. A temporali<strong>da</strong>de<br />

não é algo que ela tem, mas algo que ela é. Por exemplo,<br />

ela apenas conta o tempo no calendário por que precisa<br />

contar com o tempo em sua ocupação. Mas ela só conta<br />

com o tempo em sua ocupação porque o seu tempo está<br />

contado, isto é, porque ela é mortal. Temporali<strong>da</strong>de implica,<br />

radicalmente, finitude.<br />

A temporali<strong>da</strong>de, porém, não é, no sentido do ocorrer<br />

ou do estar à mão. Ela somente é no sentido do vigorar em<br />

temporalizações: futuro, presente e passado. As temporalizações<br />

não se sucedem uma à outra. O futuro não vem<br />

depois do passado e o passado não vem antes do presente.<br />

A ca<strong>da</strong> instante, a presença é o seu porvir, o seu ter-sido<br />

e o seu presente. A uni<strong>da</strong>de dessas temporalizações é a<br />

temporali<strong>da</strong>de. A temporali<strong>da</strong>de perfaz radicalmente o<br />

ser <strong>da</strong> presença, tornando-a extática, isto é, fora de si. As<br />

temporalizações são “êxtases”, isto é, mobilizações que<br />

empurram a presença, constituindo-a como “fora de si”,<br />

como existente (Heidegger, 1989, p. 123). Estes “empurrões”<br />

abrem a presença em seu aí e a torna a aberta do ser,<br />

o espaço de liber<strong>da</strong>de, onde emerge a clari<strong>da</strong>de do ser. A<br />

temporali<strong>da</strong>de extática libera e ilumina, pois, o aí do ser,<br />

a presença em sua existência. Por ser temporalmente extática<br />

é que a presença é cura, cui<strong>da</strong>do (Sorge). A temporali<strong>da</strong>de<br />

é o fun<strong>da</strong>mento existencial <strong>da</strong> cura.<br />

O modo mais imediato de cui<strong>da</strong>do se dá como ocupação<br />

(Besorgen). As ocupações com os entes intramun<strong>da</strong>nos,<br />

de fato, preenchem os dias do homem. A ca<strong>da</strong> dia<br />

toca o seu cui<strong>da</strong>do. O cotidiano é, neste sentido, o tempo<br />

<strong>da</strong>s ocupações, <strong>da</strong> li<strong>da</strong>. É no ordinário do cotidiano<br />

que a presença tem a experiência do extraordinário que<br />

é existir. É na familiari<strong>da</strong>de do ser-no-mundo a partir<br />

<strong>da</strong>s ocupações cotidianas que se cumpre a sua estranha<br />

forma de ser: a estranheza de existir. Desta estranheza<br />

normalmente ela já fugiu e, movi<strong>da</strong> pela angústia latente<br />

desta estranheza, que traz entranha<strong>da</strong> o saber de sua<br />

factici<strong>da</strong>de e de sua mortali<strong>da</strong>de, ela já se lançou em mil<br />

cui<strong>da</strong>dos e já se dispersou em fazeres e afazeres desarraigados;<br />

já se entregou também à ditadura do impessoal<br />

e abriu mão do poder-ser si-mesma, delegando “aos<br />

outros”o que ela deve ser, dispersando-se no falatório, na<br />

curiosi<strong>da</strong>de e na ambigui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> (in-) compreensão habitual<br />

e corriqueira. Esta fuga se torna precipitação e, em<br />

seu desarraigamento, tende a se acelerar ca<strong>da</strong> vez mais,<br />

entregando-se ca<strong>da</strong> vez mais à veloci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s próprias<br />

ativi<strong>da</strong>des e empreendimentos, bem como <strong>da</strong>s próprias<br />

diversões e entretenimentos.<br />

164


O Cui<strong>da</strong>do como Amor em Heidegger<br />

Existindo, a presença é junto do ente de que se ocupa,<br />

junto do “mundo” <strong>da</strong>s coisas, isto é, no mundo <strong>da</strong>s ocupações,<br />

que é o mundo circun<strong>da</strong>nte. Existir é empenharse<br />

no mundo. É ter a ver com as coisas e se interessar por<br />

elas. Este ter a ver, porém, se dá numa visão que é uma circunvisão:<br />

uma visão que administra as possibili<strong>da</strong>des de<br />

ocupação com as coisas ao redor. Isto significa apreender<br />

e reter as referências que as coisas guar<strong>da</strong>m umas com as<br />

outras enquanto coisas que se dão num nexo instrumental<br />

e numa conjuntura do uso, que, por sua vez, estão em<br />

vista <strong>da</strong> presença mesma e de sua existência. Este apreender<br />

e reter de possibili<strong>da</strong>des de uso constitui o empenho<br />

contínuo <strong>da</strong> presença de atualizar o que está à mão. Por<br />

isso, o tempo <strong>da</strong> ocupação é, fun<strong>da</strong>mentalmente, o tempo<br />

atual, o presente (Heidegger, 1989, p. 151-157).<br />

Com a abertura do aí pela temporali<strong>da</strong>de abre-se também<br />

o mundo <strong>da</strong> ocupação. Este mundo é o horizonte de<br />

todos os horizontes dos afazeres do cotidiano. O mundo<br />

não é simplesmente <strong>da</strong>do como ocorrência, nem é à<br />

mão como instrumental. O mundo é o horizonte que se<br />

abre a partir do “fora de si” <strong>da</strong> presença. É esta abertura<br />

horizontal-extática do mundo que possibilita a descoberta<br />

<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de uso <strong>da</strong>s coisas. Entretanto, a<br />

presença atualiza estas possibili<strong>da</strong>des tendo em vista a<br />

sua própria existência, ou seja, cui<strong>da</strong>ndo de seu poderser,<br />

que é também, de modo igualmente originário, um<br />

poder-ser com os outros. É junto <strong>da</strong>s ocupações, de fato,<br />

que, de início e na maior parte <strong>da</strong>s vezes, nós nos encontramos<br />

com os outros. É a partir delas que se articula a<br />

convivência cotidiana. Na impessoali<strong>da</strong>de desta convivência,<br />

ca<strong>da</strong> um é aquilo que ele faz no mundo aberto <strong>da</strong><br />

publici<strong>da</strong>de, do “todo o mundo”. Entretanto, o ocupar-se<br />

com as coisas, que é momento constitutivo e imprescindível<br />

<strong>da</strong> existência enquanto cura, pode levar em conta<br />

o poder-ser mais próprio e ser assumido em vista deste<br />

poder-ser ou pode se perder na dispersão <strong>da</strong>s muitas ativi<strong>da</strong>des,<br />

alimentando a fuga de si mesmo. O sentido positivo<br />

do fazer é a dedicação (Rombach, 1977, p. 44; 52).<br />

Pela dedicação o homem penetra nas possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s<br />

coisas e as deixa e faz ser, ou seja, as faz emergir no seu<br />

próprio. No emergir <strong>da</strong>s coisas como obra de sua dedicação,<br />

o homem também emerge como presença em sua<br />

existência. Esta penetração <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des e este deixar-ser<br />

que faz emergir as coisas em sua proprie<strong>da</strong>de é a<br />

forma de compreensão originária <strong>da</strong>s coisas. Esta compreensão,<br />

porém, é em-sendo, ou seja, é operativa. Ela acontece<br />

no pôr-em-outra a coisa em sua possibili<strong>da</strong>de mais<br />

própria. Esta compreensão é arte. Ela é um saber, que é<br />

poder, mas um poder, que é deixar-ser, que fazer emergir<br />

a coisa na sua proprie<strong>da</strong>de, como coisa. Trata-se de uma<br />

doação positiva, por ser originária e criativa, às coisas.<br />

É uma forma positiva de êxtase pois nela o homem se esquece<br />

de si e se doa ao mundo, sem contudo, perder-se<br />

a si mesmo, ou seja, sem perder o seu próprio poder-ser<br />

si-mesmo. É fazendo, deste modo, coisas, que o homem<br />

se perfaz a si mesmo. É expondo-se ao mundo neste cui-<br />

<strong>da</strong>do positivo, que é doação, entrega, esquecimento de si,<br />

criação diligente e afetiva, que o homem originariamente<br />

se edifica a si mesmo. Tal modo de ser pode ser visto,<br />

por exemplo, no brincar <strong>da</strong> criança. O brincar é o modo<br />

primordial pelo qual o humano aprende a serie<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

dedicação criativa e criadora ao mundo <strong>da</strong>s coisas.<br />

A defasagem, porém, desta dedicação é o fazer como<br />

entrega desarraiga<strong>da</strong> e dispersa ao mundo <strong>da</strong>s coisas, do<br />

uso e abuso, <strong>da</strong> instrumentali<strong>da</strong>de e instrumentalização.<br />

Na decadência, a atualização se torna inconsistente. Ela<br />

é o apelo do imediato, a cobiça do sempre novo, o abandono<br />

do poder-ser si-mesmo em favor <strong>da</strong> realização <strong>da</strong>s<br />

coisas como efetivação que se supera sempre de novo a<br />

si mesma num horizonte infinito. Em sua agitação, este<br />

fazer não guar<strong>da</strong> o modo de ser <strong>da</strong> finitude, ou seja, <strong>da</strong><br />

autoresponsabilização <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de. Ela dispara em um<br />

agenciamento sem fim, esquecendo-se <strong>da</strong> mortali<strong>da</strong>de e<br />

<strong>da</strong> niili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> própria factici<strong>da</strong>de. Este disparo, que é<br />

também um disparate, atropela as coisas e não as deixa<br />

ser no seu próprio. A coisa deixa de ser coisa, para ser<br />

apenas objeto de domínio e exploração, recurso para uma<br />

infinita demonstração de um poder que não é propriamente<br />

poder, pois se esvaziou <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de, cujo sentido<br />

consiste em deixar e fazer crescer o vigor de ser de<br />

to<strong>da</strong>s as coisas. Deste modo, a presença fica sem amparo,<br />

sem apoio, sem abrigo e guari<strong>da</strong> em seu ser-no-mundo.<br />

O seu habitar torna, assim, o mundo imundo (inóspito).<br />

A existência se fecha à sua pertença ao céu e à terra, à<br />

ver<strong>da</strong>de do ser.<br />

O homem tende a se deixar tomar pelo mundo, como<br />

o contexto ou a tessitura de relações, referências e remissões<br />

em que ele se empenha. Tomado pelo mundo, ele se<br />

deixa absorver pelo habitual e familiar. A familiari<strong>da</strong>de<br />

do mundo acaba reprimindo e desviando a atenção <strong>da</strong><br />

estranheza <strong>da</strong> factici<strong>da</strong>de de existir, que pertence essencialmente<br />

à presença. Esta familiari<strong>da</strong>de é perturba<strong>da</strong>,<br />

porém, de maneira imprópria, pelo temor (Heidegger,<br />

1988, p. 195-197). O temor ameaça a presença a partir de<br />

um determinado ente em concreto. Essa ameaça atinge e<br />

perturba a presença, que se interpreta a si mesma a partir<br />

do “mundo”, isto é, a partir dos entes intramun<strong>da</strong>nos e até<br />

mesmo como um ente intramun<strong>da</strong>no. O temor perturba e<br />

confunde o atualizar <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de uso, em que<br />

a presença cotidianamente se move. Entretanto, o temor<br />

não abala a familiari<strong>da</strong>de do mundo e o ser-tomado-pelo<br />

mundo por parte <strong>da</strong> presença. O humor que torna possível<br />

a retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> presença deste arrebatamento na familiari<strong>da</strong>de<br />

do mundo é a angústia. A angústia é um despertar<br />

do esquecimento do si-mesmo nos empenhos cotidianos<br />

que se insere na familiari<strong>da</strong>de do mundo. É um despertar,<br />

porém, por ser um estranhamento.<br />

A angústia traz de volta a presença de sua fuga no<br />

mundo e a põe em face ao seu já-ser-em, ao seu já-serlançado,<br />

ou seja, de sua factici<strong>da</strong>de, desvelando a estranheza<br />

<strong>da</strong> familiari<strong>da</strong>de cotidiana do ser-no-mundo. Pela<br />

angústia, o mundo enquanto estrutura remissiva de sig-<br />

165 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

nificâncias se torna insignificante. A angústia revela o<br />

na<strong>da</strong> do mundo (Heidegger, 1999, p. 60). É com o na<strong>da</strong> do<br />

mundo, isto é, com sua estranheza, que a angústia se angustia.<br />

Com isso, também, a presença é remeti<strong>da</strong> de volta<br />

à factici<strong>da</strong>de de seu existir, ou seja, à niili<strong>da</strong>de de seu<br />

fun<strong>da</strong>mento. Mas, esta niili<strong>da</strong>de que a angústia desvela<br />

não é a niili<strong>da</strong>de de um na<strong>da</strong> negativo ou simplesmente<br />

privativo. Trata-se, antes, de uma niili<strong>da</strong>de positiva e<br />

criativa, pois ela também revela que a presença em seu<br />

poder-ser e que ela está entregue à responsabili<strong>da</strong>de por<br />

<strong>da</strong>r sentido a esse poder-ser. Ela mobiliza a presença para<br />

assumir a sua responsabili<strong>da</strong>de de ser, para repetir, isto<br />

é, ir buscar de novo e de modo novo, o seu poder-ser simesma.<br />

A angústia retira a presença de seu esquecimento<br />

no mundo <strong>da</strong> efetivi<strong>da</strong>de e a traz para a disposição de assumir<br />

o seu ser-possibili<strong>da</strong>de. Por isso, a angústia é uma<br />

provocação à presença, no sentido de aju<strong>da</strong>-la a escutar a<br />

voz silenciosa do clamor que conclama a presença a ser<br />

si-mesma. Neste sentido, ela repõe a presença em sua finitude<br />

e a faz assumir-se em sua mortali<strong>da</strong>de. Ela instiga<br />

a presença para o salto <strong>da</strong> decisão que assume, no instante,<br />

o apelo para o poder-ser mais próprio, para a regência<br />

<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de. Ela deixa e faz a presença pressentir<br />

no na<strong>da</strong> <strong>da</strong> niili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> factici<strong>da</strong>de do existir, o toque<br />

do estranho, ou seja, do outro do ente, o toque do ser. A<br />

vigência do na<strong>da</strong>, porém, não é, neste caso, a destruição<br />

<strong>da</strong> factuali<strong>da</strong>de, nem a aniquilação do poder-ser, mas é,<br />

ao contrário, o deixar-ser si-mesmo. Por isso, o na<strong>da</strong> que<br />

desvela a estranheza de ser, é um na<strong>da</strong> positivo e criativo,<br />

pois dispõe a presença para ser-si-mesma e a desperta<br />

para o não-ente, para o ser em sua diferença.<br />

O temor e a angústia mostram que a presença já está<br />

sempre disposta desta ou <strong>da</strong>quela maneira na abertura<br />

de sua existência. Mostram certa afinação ou desafinação<br />

com o mundo ou com o poder-ser-si-mesmo. A angústia<br />

pode ser interpreta<strong>da</strong>, a partir <strong>da</strong> afinação com o mundo,<br />

como uma desafinação. Mas, olhando-se mais de perto, a<br />

angústia não é meramente uma desafinação com o mundo,<br />

mas é uma dissonância pela qual a presença pode se<br />

afinar mais propriamente com o na<strong>da</strong> de sua factici<strong>da</strong>de,<br />

que é o seu ter-sido originário. A angústia é, em sua dissonância,<br />

a oportuni<strong>da</strong>de de uma afinação mais própria<br />

com o abismo, isto é, com o na<strong>da</strong> do fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> factici<strong>da</strong>de,<br />

ou seja, com o abismo do ser. Entretanto, uma<br />

vez que se dá o acorde ou o acordo com essa niili<strong>da</strong>de do<br />

abismo, a existência se afina com o seu poder-ser mais<br />

próprio, com o ser si-mesmo. A presença é, pois, reposta<br />

em sua essência de futuro.<br />

A disposição diz o modo como a presença se acha e<br />

como ela vai. Ela se dá sempre como certa afinação com<br />

a factici<strong>da</strong>de do existir, ou seja, com o seu ter-sido lançado<br />

na existência, na abertura desvela<strong>da</strong> do ser. Ela entoa<br />

a compreensão enquanto ser para o poder-ser. Pela compreensão<br />

de si entoa<strong>da</strong> desta ou <strong>da</strong>quela maneira com o<br />

poder-ser, a presença sabe “como vai”. Apenas, este saber<br />

não é explícito ou temático, mas é um saber em-sendo,<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

Marcos A. Fernandes<br />

um saber que é sabor <strong>da</strong> experiência. A experiência diz<br />

o modo como a presença é atingi<strong>da</strong> de imediato em sua<br />

disposição e como ela deslancha em seu poder-ser. A<br />

experiência é o toque ou a percussão <strong>da</strong> factici<strong>da</strong>de, que<br />

ressoa e repercute na existência. Em to<strong>da</strong> a experiência<br />

o humor se põe numa certa afinação com a factici<strong>da</strong>de<br />

do existir. Por já ser sempre numa certa afinação é que o<br />

humor pode mostrar harmonia ou desarmonia, com esta<br />

factici<strong>da</strong>de, ou seja, se a presença vai bem ou vai mal, ou<br />

seja, se ela se acha em afinação com o poder-ser si-mesma<br />

ou em desafinação com ele. O humor, pois, diz o modo<br />

como a presença está disposta na existência, como ela se<br />

acha em sua factici<strong>da</strong>de e como ela vai em seu poder-ser,<br />

se ela deslancha ou se ela se obstrui os caminhos para o<br />

poder-ser si-mesma. Decisivo é se ela se afina com a factici<strong>da</strong>de<br />

(o ter-sido originário) e com o poder-ser (o porvir<br />

originário) (Heidegger, 1989, p. 137-144). O ser para o<br />

poder-ser, porém, se chama compreensão. Portanto, to<strong>da</strong><br />

disposição já entoa e determina alguma compreensão<br />

(Heidegger, 1989, p. 132-127).<br />

Compreensão não significa, aqui, conhecimento objetivo<br />

ou objetivante e nem mesmo conhecimento subjetivo<br />

ou reflexivo. Caso convenha falar de conhecimento,<br />

então há que se dizer que a compreensão é um conhecimento<br />

em-sendo, em existindo, um co-nascimento ou<br />

uma co-nascença com as possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> existência.<br />

Compreender é, aqui, saber de si, saber como se vai, a<br />

quantas an<strong>da</strong> o si-mesmo. Trata-se de um conhecimento<br />

que é anterior a todo o reconhecimento. Trata-se de um<br />

saber que é sabor de experiência feita. Compreender é,<br />

aqui, existir. Isto significa: ser lançando-se para um poder-ser.<br />

O que está em jogo, portanto, no compreender<br />

não é o alcance de uma informação, nem de uma reflexão,<br />

mas o apropriar-se de um poder-ser. A compreensão<br />

é uma relação de ser com o próprio ser, que se dá no<br />

existir mesmo <strong>da</strong> presença. Ela é um lance que abre o<br />

poder-ser, que possibilita o poder-ser-si-mesma <strong>da</strong> presença,<br />

que deixa e faz deslanchar a existência na regência<br />

<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de. Enquanto abertura, a compreensão<br />

propriamente dita, isto é, a compreensão para o poderser<br />

mais próprio, destranca a existência e a libera para<br />

ser a aberta onde a ver<strong>da</strong>de do ser se ilumina. Assim, a<br />

presença vem a si mesma, singularizando-se. O que está<br />

em jogo, portanto, na compreensão é o porvir <strong>da</strong> presença,<br />

a essência de futuro, em que repousa originariamente<br />

a humani<strong>da</strong>de do homem.<br />

Contudo, de início e normalmente, a presença se move<br />

na incompreensão do poder-ser si-mesma. Absorvi<strong>da</strong> nas<br />

ocupações e toma<strong>da</strong> pela familiari<strong>da</strong>de do mundo, ela se<br />

empenha sempre de novo em função <strong>da</strong> atualização <strong>da</strong>s<br />

possibili<strong>da</strong>des de uso e desfrute. Ela se compreende, assim,<br />

a partir <strong>da</strong>quilo de que ela se ocupa, a partir de seus<br />

empreendimentos e negócios. Aparentemente ela está em<br />

função do futuro, mas este futuro é apenas o prolongamento<br />

<strong>da</strong> atualização. O cui<strong>da</strong>do apreensivo e aflitivo<br />

pelo futuro se baseia no afã do autoasseguramento <strong>da</strong>s<br />

166


O Cui<strong>da</strong>do como Amor em Heidegger<br />

possibili<strong>da</strong>des de atualização <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de uso<br />

e desfrute. Ele se empenha todo em atender e providenciar<br />

as condições destas possibili<strong>da</strong>des. Os cálculos sobre<br />

as chances de realizar tal atendimento e providência caracteriza<br />

a expectativa deste modo de se relacionar com<br />

a existência. Contudo, este modo de ser ansioso não se<br />

relaciona com o futuro como futuro, quer dizer, o futuro<br />

que aí está em questão não é o porvir <strong>da</strong> presença, ou<br />

seja, o vir a si-mesma <strong>da</strong> presença, mas o prolongamento<br />

<strong>da</strong> atualização. Portanto, na compreensão <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des<br />

de ocupação em que a presença se esquece de<br />

seu poder-ser mais próprio, vigora, na ver<strong>da</strong>de, uma incompreensão,<br />

um trancamento para a regência <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de<br />

do si-mesmo. O cálculo <strong>da</strong>s expectativas conta<br />

com to<strong>da</strong>s as chances, só não conta com a morte. É que<br />

a morte apresenta-se como a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>de<br />

(Heidegger, 1989, p. 46), ou seja, como aquela<br />

possibili<strong>da</strong>de latente, que é radical, pois é insuperável e<br />

irremissível, a possibili<strong>da</strong>de que anula to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong>des.<br />

A morte revela assim a niili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> existência,<br />

mostra o fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> factici<strong>da</strong>de como abismo e recolhe<br />

a presença na sua finitude.<br />

A compreensão <strong>da</strong> mortali<strong>da</strong>de, portanto, ou seja, o<br />

ser para aquele poder-ser que nadifica todo o poder-ser, é<br />

um abismar-se no qual a presença se desvia do adiantarse<br />

e antecipar-se que prolonga a atualização no arrebatamento<br />

do mundo e no esquecimento do si-mesmo; mas é<br />

também, ao mesmo tempo, um abismar-se que reenvia a<br />

presença para assumir aquele adiantar-se e antecipar-se<br />

no qual a presença se destranca para o poder-ser si-mesma.<br />

A compreensão <strong>da</strong> mortali<strong>da</strong>de, portanto, enquanto<br />

possibili<strong>da</strong>de impossível se revela, paradoxalmente, como<br />

impossibili<strong>da</strong>de possível, ou seja, como impossibili<strong>da</strong>de<br />

possibilitadora do poder-ser si-mesmo. Com efeito, com a<br />

compreensão <strong>da</strong> mortali<strong>da</strong>de, a finitude urge <strong>da</strong> presença<br />

o bem-viver, contudo, não mais um bem-viver que é interpretado<br />

a partir <strong>da</strong>s ocupações como uso e desfrute, mas<br />

um bem-viver que é interpretado a partir <strong>da</strong> obediência<br />

(ausculta) à voz silenciosa que conclama a presença para<br />

o poder-ser mais próprio. Assim, o abismar-se <strong>da</strong> compreensão<br />

<strong>da</strong> mortali<strong>da</strong>de se torna salto gracioso e gratuito<br />

<strong>da</strong> decisão, entendi<strong>da</strong> não como escolha disso ou <strong>da</strong>quilo,<br />

mas como escolha do poder-ser si-mesmo. A compreensão<br />

<strong>da</strong> mortali<strong>da</strong>de, portanto, é o aguilhão que deixa<br />

e faz a presença abrir-se para o seu poder-ser si-mesma.<br />

Isto quer dizer: ela é a provocação para a singularização<br />

<strong>da</strong> presença e, nessa singularização, para assumir a pertença<br />

ao mistério do ser, cujo véu se dá como mortali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> existência. O singular que a morte traz consigo é<br />

o fato de ela ser o convite para se deixar apropriar pela<br />

ver<strong>da</strong>de do ser, tanto em sua dimensão de desvelamento<br />

(apolínea), quanto em sua dimensão de velamento (hermética).<br />

A morte revela o mistério <strong>da</strong> existência, ou seja,<br />

ela mostra que o desvelado se enraíza no velamento, que<br />

o aberto está radicado no ocluso. Ela é o supremo estranhamento<br />

<strong>da</strong> familiari<strong>da</strong>de do ser-no-mundo. Ela é o baú<br />

do na<strong>da</strong>, do não-ente, e, enquanto tal, a testemunha do ser<br />

em seu caráter abissal. Paradoxalmente, porém, a compreensão<br />

do caráter abissal do ser não retira <strong>da</strong> presença<br />

o seu poder-ser si-mesma, antes, é ela que lhe possibilita<br />

esta possibili<strong>da</strong>de. Ela liberta, no sentido de destrancar<br />

a presença para o seu poder-ser si-mesma, ou seja, para<br />

a regência <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, que é o acontecer <strong>da</strong> pertença<br />

à ver<strong>da</strong>de (desvelamento-velamento) do ser. Ela singulariza<br />

na solidão. Mas esta solidão é condição para to<strong>da</strong> e<br />

qualquer comunhão ver<strong>da</strong>deira.<br />

Graças à solidão e à singularização que se abre com<br />

a compreensão <strong>da</strong> mortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> existência, a presença<br />

pode se tornar, de fato e propriamente histórica. Histórica<br />

se torna a presença não quando entra em cena no palco<br />

<strong>da</strong> “história mundial”, a partir de seus feitos. Histórica<br />

se torna a presença quando seu existir se torna constante<br />

numa temporali<strong>da</strong>de originária. Originária é a temporali<strong>da</strong>de<br />

quando ela acontece a partir do porvir; quando<br />

o futuro deixa de ser o prolongamento <strong>da</strong> atualização e<br />

passa a ser a antecipação <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de do poder-ser; quando<br />

o passado deixa de ser esquecimento e passa a ser retoma<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> factici<strong>da</strong>de; quando o presente deixa de ser<br />

o atual e o atuante e passa a ser o instante. Só se torna<br />

histórica a presença que se recolhe no vigor do instante<br />

(Heidegger, 1989, p. 135).<br />

Por instante entende-se aqui, porém, não o instantâneo,<br />

o fugaz momento, o agora do tic-tac do relógio.<br />

Instante é, aqui, a coincidência, o encontro, a identi<strong>da</strong>de<br />

de futuro (como porvir, poder-ser, lance de abertura)<br />

e passado (como factici<strong>da</strong>de, ter-sido, ser-lançado). Este<br />

encontro, porém, se dá como decisão <strong>da</strong> presença, ou<br />

seja, como destrancamento <strong>da</strong> existência. Trata-se, porém,<br />

não <strong>da</strong> decisão como escolha disso ou <strong>da</strong>quilo, mas<br />

<strong>da</strong> decisão em que a presença se torna decidi<strong>da</strong>, isto é,<br />

livre para o poder-ser si mesma e para assumir a factici<strong>da</strong>de<br />

abissal <strong>da</strong> existência. Instante é o advir <strong>da</strong> joviali<strong>da</strong>de<br />

de ser, que assume a abissali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> existência<br />

como mistério <strong>da</strong> gratui<strong>da</strong>de. Instante é o momento azado,<br />

o kairós, <strong>da</strong> libertação e <strong>da</strong> maturação <strong>da</strong> presença<br />

na ver<strong>da</strong>de do ser.<br />

5. Cui<strong>da</strong>do como Ser-com-o-outro<br />

O mundo que se abre com a própria abertura <strong>da</strong> presença<br />

a partir <strong>da</strong> temporali<strong>da</strong>de é também e de modo<br />

igualmente originário o mundo <strong>da</strong> convivência, do sercom-os-outros<br />

(Heidegger, 1988, p. 168-178). Se factual e<br />

onticamente o outro pode faltar, estar ausente, fáctica e<br />

ontologicamente o outro é sempre presente, melhor, copresente.<br />

O ser-com não é o resultado <strong>da</strong> ocorrência de<br />

uma plurali<strong>da</strong>de de sujeitos. O ser-com é estrutura a priori<br />

<strong>da</strong> existência. Neste sentido, duas coisas que ocorrem<br />

aí ou que estão à mão não são propriamente uma com<br />

a outra. Neste contexto, só são um com o outro aqueles<br />

entes que são no modo de ser <strong>da</strong> presença, que igual-<br />

167 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

mente existem, e que compartilham do mesmo modo de<br />

ser-no-mundo.<br />

Ser-com, enquanto a priori <strong>da</strong> factici<strong>da</strong>de, significa<br />

que o eu nunca precisa sair de si para entrar no mundo<br />

do outro. O ser-com determina, de antemão, que o eu já<br />

esteja desde sempre aberto para o outro, comunicado com<br />

ele, no mesmo mundo compartilhado <strong>da</strong> convivência.<br />

Trata-se de uma comunicação ontológico-existencial, isto<br />

é, uma comunicação que já acontece pelo simples fato de<br />

existir. Ca<strong>da</strong> eu é o mundo, não um mundo fechado e sim<br />

um mundo aberto, pela disposição, pela compreensão e<br />

pela linguagem, onde já sempre se deu a abertura para o<br />

outro, que também é, igualmente, um constituidor e um<br />

configurador de mundo. Isso quer dizer: O mundo é, na<br />

ver<strong>da</strong>de, um ser-com de muitos mundos.<br />

O ser-com é o fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> relação eu-tu. Na ver<strong>da</strong>de,<br />

a idéia de uma relação eu-tu ain<strong>da</strong> fica presa ao<br />

eu. O fun<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> relação não é o eu, nem simplesmente<br />

o tu, mas a própria relação que se instaura em sua reciproci<strong>da</strong>de,<br />

a partir do ser-com: “Em vez de se falar sempre<br />

de uma chama<strong>da</strong> relação eu-tu seria melhor falar de<br />

uma relação tu-tu, porque eu-tu é sempre falado somente<br />

a partir de mim, enquanto na reali<strong>da</strong>de é uma relação<br />

mútua” (Heidegger, 2001a, p. 224). O ser-com é também,<br />

por conseguinte, o fun<strong>da</strong>mento do nós. O nós não resulta<br />

<strong>da</strong> soma ou do ajuntamento de eus. O nós se constitui<br />

a partir <strong>da</strong> comum-pertença dos humanos no ser-com, à<br />

medi<strong>da</strong> que compartilham e coparticipam <strong>da</strong> existência,<br />

do mundo, <strong>da</strong> história. Portanto, por já ser no ser-com é<br />

que a presença sempre pode dizer: eu, tu, nós, vós. O dizer<br />

eu-tu ou o dizer nós-vós não depende tanto <strong>da</strong> ocorrência<br />

dos outros, nem do seu número, mas do fato de os<br />

outros serem encontrados num determinado tipo de relação,<br />

onde o cui<strong>da</strong>do se realiza desse ou <strong>da</strong>quele modo.<br />

É o como <strong>da</strong> relação que decide se há ou não uma relação<br />

eu-tu ou uma relação onde emerge propriamente o nós ou<br />

o vós. Na ver<strong>da</strong>de, na impessoali<strong>da</strong>de do “todo o mundo”,<br />

não se dá propriamente um eu, um tu, um nós, um vós.<br />

Todos são como “eles”. Ca<strong>da</strong> um é “os outros”, um “a gente”.<br />

O tu não é encontrado como tu, mas como um isso. O<br />

nós também não acontece propriamente, pois não há lugar<br />

para a comuni<strong>da</strong>de, apenas para a socie<strong>da</strong>de e o povo<br />

não pode ser povo, mas apenas massa. A plurali<strong>da</strong>de se<br />

dissolve na homogenei<strong>da</strong>de e não há mais propriamente<br />

um nós e um vós, pois tudo sucumbe na virulência <strong>da</strong><br />

indiferença. O ser-com, fun<strong>da</strong>mento do eu, tu, nós, vós,<br />

é, por sua vez, um ser-quem, são mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des <strong>da</strong> “simesmi<strong>da</strong>de”<br />

ou ipsei<strong>da</strong>de. Contudo, a própria ipsei<strong>da</strong>de,<br />

ou o ser-quem, já é sempre, a priori, relação. Ela é aquele<br />

modo de ser em que o que está em jogo é uma livre relação<br />

de ser com o ser, podendo-se, portanto, ganhar-se ou<br />

perder-se para a regência <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de.<br />

A relação, portanto, está radica<strong>da</strong> no modo de ser <strong>da</strong><br />

existência e requer ser compreendi<strong>da</strong> em sua existenciali<strong>da</strong>de.<br />

Como tal, ela não é objetiva, nem subjetiva, mas<br />

existencial. Qual sua essência?<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

Marcos A. Fernandes<br />

A relação com algo ou alguém, na qual eu estou, sou<br />

eu. Entretanto, “relação” não deve ser objetivamente<br />

entendi<strong>da</strong> aqui no sentido moderno, matemático de<br />

relação. A relação existencial não pode ser objetiva<strong>da</strong>.<br />

Sua essência fun<strong>da</strong>mental é ser aproximado e deixarse<br />

interessar, um corresponder, uma solicitação, um<br />

responder, um responder por base no ser tornado claro<br />

em si <strong>da</strong> relação (Heidegger, 2001a, p. 202).<br />

Por conseguinte, a proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relação depende do<br />

como <strong>da</strong> aproximação, do interesse, <strong>da</strong> correspondência,<br />

<strong>da</strong> solicitação, ou seja, no como <strong>da</strong> resposta à interpelação<br />

do outro, se esta resposta se libera para a liber<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> recepção e <strong>da</strong> doação e se clareia na disposição, na<br />

compreensão e na linguagem, ou se ela se tranca e não<br />

alcança transparência. Em sua estruturação, a relação<br />

com o outro é, portanto, regi<strong>da</strong> pelo cui<strong>da</strong>do. Este pode<br />

acontecer, por exemplo, no modo privativo <strong>da</strong> indiferença<br />

<strong>da</strong> impessoali<strong>da</strong>de. Não só pode acontecer como acontece<br />

de início e na maior parte <strong>da</strong>s vezes. Neste caso, o<br />

cui<strong>da</strong>do com o outro se priva de suas possibili<strong>da</strong>des, se<br />

tranca de antemão e permanece inteiramente opaco. Se,<br />

contudo, o cui<strong>da</strong>do com o outro acontece de fato, então<br />

ele oscila entre dois modos extremos: a negligência e a<br />

solicitude. A negligência se alimenta <strong>da</strong> desconfiança e<br />

<strong>da</strong> vontade de se sobrepor ao outro, dominando-o. A solicitude,<br />

por sua vez, pode se <strong>da</strong>r de modo impróprio e<br />

próprio. No modo impróprio, a solicitude busca substituir<br />

o outro na incumbência de seu cui<strong>da</strong>do. Ela retira<br />

do outro o poder-ser. No modo próprio, porém, a solicitude<br />

busca antecipar-se ao outro na incumbência de seu<br />

cui<strong>da</strong>do. Ela libera o outro para as incumbências de seu<br />

cui<strong>da</strong>do e apoia-o para que ele tenha a capaci<strong>da</strong>de de assumir<br />

por si mesmo o seu poder-ser si-mesmo. O cui<strong>da</strong>do<br />

solícito é aquele em que alguém se antecipa no cui<strong>da</strong>do<br />

pelo outro, preocupando-se com ele numa atitude<br />

de consideração, não para lhe retirar a possibili<strong>da</strong>de do<br />

cui<strong>da</strong>do, mas para preparar-lhe os caminhos do assumir<br />

responsável pelo cui<strong>da</strong>do que é confiado e que lhe solicita<br />

e lhe reivindica como um apelo.<br />

6. Cui<strong>da</strong>do, poder-Ser e amor<br />

O que decide, por conseguinte do cui<strong>da</strong>do, é o como<br />

de seu poder-ser. O que está em jogo no cui<strong>da</strong>do é a capaci<strong>da</strong>de<br />

de assumir positivamente as suas possibili<strong>da</strong>des<br />

de ser.<br />

Assumir uma possibili<strong>da</strong>de significa ter sido atingido<br />

por ela, ter-se afeiçoado a ela, significa deixar-se conduzir<br />

pela sua tendência, fazer a sua travessia, deslanchar nela,<br />

crescendo no seu gosto. O gosto é o apego à possibili<strong>da</strong>de.<br />

Trata-se de um apego amoroso. O amor é o que possibilita<br />

a possibili<strong>da</strong>de. O amor é o que torna a possibili<strong>da</strong>de<br />

possível, isto é, capaz de ser. É o que a faz vingar, o que<br />

a faz deslanchar bem, é o que a faz consumar.<br />

168


O Cui<strong>da</strong>do como Amor em Heidegger<br />

Apegar-se a uma coisa” ou “pessoa” em sua essência,<br />

quer dizer: amá-la, querê-la. Pensando de modo mais<br />

originário, querer significa essencializa, <strong>da</strong>r essência.<br />

Esse querer é que constitui a própria essência do<br />

poder, que não somente pode realizar isso ou aquilo<br />

mas também deixa uma coisa “vigorar” em sua proveniência,<br />

isto é, deixa que ela seja. O poder do querer<br />

é aquilo em cuja “força” uma coisa pode propriamente<br />

ser. Esse poder é o “possível” em sentido próprio, a<br />

saber, aquilo cuja essência se fun<strong>da</strong> no querer” (Heidegger,<br />

1967, p. 29).<br />

O amor, o querer como bem-querer, benevolência, é<br />

possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relação do ser-com, pois<br />

o amor é o que deixa-ser, isto é, o amor é o que presenteia<br />

essência, reconduzindo tudo e todos ao seu próprio. O<br />

amor, como possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de do relacionamento<br />

é o fun<strong>da</strong>mento do cui<strong>da</strong>do. A in-sistência no sercom<br />

se dá, no seu sentido mais próprio, como diligência e<br />

dileção (diligo = dilectio = o lógos do relacionamento).<br />

Entende-se, aqui, possibili<strong>da</strong>de como poder-ser, isto<br />

é, como capaci<strong>da</strong>de e gosto de ser. Qual, porém, a relação<br />

entre poder e ser no poder-ser? Ser é, originariamente,<br />

poder. Poder como potência, isto é, como vigência e regência.<br />

A atuação do poder como vigência e regência se<br />

chama autori<strong>da</strong>de: a capaci<strong>da</strong>de de fazer surgir, crescer<br />

e consumar o que está sendo (auctoritas, em latim, de<br />

augeo = aumentar, fazer crescer). Com outras palavras,<br />

autori<strong>da</strong>de, enquanto dinâmica de atuação do poder, é<br />

a capaci<strong>da</strong>de de fazer surgir a concreção do sendo, entendendo-se<br />

esta concreção como con-crescimento e cocriativi<strong>da</strong>de.<br />

A potência do poder, que atua como autori<strong>da</strong>de,<br />

consiste, portanto, na positivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de,<br />

ou seja, na benigni<strong>da</strong>de e cordiali<strong>da</strong>de do deixar-ser. O<br />

ser enquanto poder coincide, nesse sentido, com o bem,<br />

melhor, “é” a bon<strong>da</strong>de (bom-<strong>da</strong>de, o vigor de ser do bom)<br />

que, ao mesmo tempo, se difunde e se retrai. Difunde-se<br />

e irradia na sua magnanimi<strong>da</strong>de e se retrai e se vela no<br />

pudor de sua simplici<strong>da</strong>de. É a grandeza em cuja magnanimi<strong>da</strong>de<br />

tudo se ergue, cresce e amadurece, e, ao<br />

mesmo tempo, a simplici<strong>da</strong>de, que, em sua singeleza e<br />

humil<strong>da</strong>de, já sempre se subtraiu, se retraiu e se velou.<br />

Por isso a autori<strong>da</strong>de do ser enquanto poder é suave. Seu<br />

vigor não se impõe. Sua força é silenciosa. Sua força é a<br />

fraqueza e a vulnerabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ternura. É que o poder,<br />

na sua essência, não é outra coisa do que querer. Poder<br />

é querer. Isto quer dizer: potência é “volência”, melhor,<br />

benevolência (a “volência”, a querença do bem), isto é,<br />

bem-querer que possibilita ser (Heidegger, 2001b, p. 180).<br />

Poder é querer, melhor, benquerença que presenteia o<br />

dom de ser. Trata-se, no entanto, de um presentear onde<br />

quem presenteia se oculta, se vela, se retrai no pudor de<br />

seu mistério. Por conseguinte, somente o amor é poder,<br />

é poder que possibilita ser.<br />

Dileção e benevolência, por sua vez, se dão ao modo<br />

de ser <strong>da</strong> gratui<strong>da</strong>de (charis). A gratui<strong>da</strong>de é o modo de<br />

ser originário, fontal, do cui<strong>da</strong>do. É a origem, a fonte<br />

mesma de todo o sendo, que, brotando espontaneamente<br />

do fundo abissal do ser, deixa e faz ser o manancial, o<br />

fluxo, <strong>da</strong>s possibilitações e realizações de todo o sendo.<br />

Intuímos isso, se tivermos presente o modo de ser, isto é,<br />

de vigorar <strong>da</strong> fonte. A fonte é origem de um manancial. Em<br />

seu efluir e fluir, as águas de um manancial brotam <strong>da</strong>s<br />

entranhas <strong>da</strong> Terra, serpenteiam por entre as chapa<strong>da</strong>s,<br />

traçam vere<strong>da</strong>s, abrem paisagem, saltam de montanhas,<br />

rasgam regiões, tornando-se ca<strong>da</strong> vez mais longínquas,<br />

acolhendo e recolhendo afluentes, alargando-se, aprofun<strong>da</strong>ndo-se,<br />

até que, por fim, mergulham no grande mar.<br />

Por isso, o mar não é o outro <strong>da</strong> fonte. É antes, o aparecer<br />

<strong>da</strong> profundi<strong>da</strong>de abissal <strong>da</strong> fonte, a vigência <strong>da</strong> generosi<strong>da</strong>de<br />

originária <strong>da</strong> fonte. A fonte, porém, deixando e fazendo<br />

aparecer o manancial como tal, nunca a si mesma<br />

se mostra. Ela se retrai no vigor de sua renúncia. A fonte<br />

deixa e faz tudo aparecer, mas ela mesma se oculta, se<br />

esconde. Ela é como a protagonista do filme “A festa de<br />

Babette”: celebração <strong>da</strong> pura gratui<strong>da</strong>de e graciosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>. O brotar sem por quê nem para quê do ser. Ou então<br />

como a Rosa do poeta Ângelus Silesius (poeta do século<br />

XVII), cujo poema diz: “A rosa é sem por quê / floresce<br />

por florescer / não olha pra seu buquê / nem pergunta /<br />

se alguém a vê” (cfr. Silesius, 1992, p. 156).<br />

A rosa sem porquê no orvalho matinal: a alegria<br />

acolhe o coração do mortal, no frescor, na clari<strong>da</strong>de<br />

natal <strong>da</strong> inocência original. O mortal descansa, respira<br />

livre, regozija-se e renasce, na cercania <strong>da</strong> rosa,<br />

porque se recolhe e é acolhido no recato <strong>da</strong> natureza.<br />

A natureza <strong>da</strong> rosa de Angelus Silesius não é uma região<br />

do ente em oposição ao homem. É a nascivi<strong>da</strong>de,<br />

a liber<strong>da</strong>de do mistério que evoca o homem para a sua<br />

essência. É a própria vigência <strong>da</strong> presença que se abre<br />

como o frescor, a limpidez, a transparência e a graça<br />

de to<strong>da</strong>s as coisas. É à mercê <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de do mistério<br />

que é o amor, a ternura, a benigni<strong>da</strong>de, a paz, o bem,<br />

o rigor, a coragem, a sinceri<strong>da</strong>de, a simplici<strong>da</strong>de. A<br />

liber<strong>da</strong>de do mistério, a nascivi<strong>da</strong>de é a joviali<strong>da</strong>de. A<br />

joviali<strong>da</strong>de é paciente, é benigna, ela não é invejosa,<br />

a joviali<strong>da</strong>de não é jactanciosa, não se ensoberbece.<br />

Não é descortês, não é interesseira, não se irrita, não<br />

guar<strong>da</strong> rancor: tudo desculpa, tudo crê, tudo espera,<br />

tudo tolera (1Cor 13,4-7) (Hara<strong>da</strong>, s.d., p. 110).<br />

A liber<strong>da</strong>de do mistério do ser, que é joviali<strong>da</strong>de e<br />

gratui<strong>da</strong>de, benevolência e dileção, estão evoca<strong>da</strong>s na<br />

palavra que nomeia o ser enquanto ser, em Heidegger:<br />

Ereignis – o evento originário <strong>da</strong> apropriação, a regência<br />

originária e fontal <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, que, no deixar-ser do<br />

ser, faz emergir ca<strong>da</strong> coisa em seu próprio. Em sua forma<br />

originária, porém, Ereignis se dizia Eräugnis (Ur- äugnis)<br />

– o olhar originário, a mira originária. É o vigorar do instante<br />

(Augenblick), ou seja, do “piscar de olhos”, em que<br />

a presença e o ser se encontram em seu copertencimen-<br />

169 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

to. O instante, em que a presença se abre, eclode, como a<br />

clareira do ser e, em sua liber<strong>da</strong>de e transparência, deixaser<br />

o próprio ser, consuma sua relação de ser com o ser,<br />

relação em que ela, originariamente, existe. Esta relação,<br />

porém, acontece originariamente desde o ser mesmo, que<br />

busca o homem como presença, como abertura. Trata-se<br />

<strong>da</strong> relação do ser para com o homem. O que está, pois,<br />

em jogo aqui é:<br />

A relação eleva<strong>da</strong>, na qual o homem está de pé, é a<br />

relação do Ser para com o homem, de tal modo que o<br />

Ser mesmo é esta relação, que puxa para si <strong>da</strong> essência<br />

do homem, enquanto aquela essência que está de pé<br />

nesta relação e, subsistindo nela, a custodia e a habita.<br />

No aberto desta relação do Ser para com a essência<br />

do homem, nós experimentamos o ‘espírito’ – ele é<br />

o que suavemente reina (<strong>da</strong>s Waltende) vigorando a<br />

partir do Ser e, presumivelmente, em favor do Ser<br />

(Heidegger, 1994c, p. 7).<br />

O que o pensamento, pela primeira vez, procurou<br />

expressar-se em Ser e Tempo, pretende alcançar, é algo<br />

de muito simples. Por ser simples, o Ser permanece<br />

misterioso, a proximi<strong>da</strong>de calma de um vigor (Walten),<br />

que não se impõe à força. Essa proximi<strong>da</strong>de se essencializa<br />

como linguagem.. (Heidegger, 1967, p. 54)<br />

A palavra “ser” diz, aqui, a proximi<strong>da</strong>de calma de<br />

um vigor (Walten), que não se impõe à força, mas que<br />

pede para ser recebi<strong>da</strong> ao doar-se, que solicita, portanto,<br />

do homem, a disposição de <strong>da</strong>r ao doador a possibili<strong>da</strong>de<br />

de ser recebido. Suave é a regência do ser pois o relacionamento<br />

que ele é vigora como deixar-ser. Deixarser<br />

é libertar tudo quanto é para o vigor de sua própria<br />

essência. Deixar-ser é poupar (schonen), não no sentido<br />

de não usar, mas no sentido de cui<strong>da</strong>r com atenção e carinho.<br />

Deixar-ser é deixar repousar em sua própria essência,<br />

através do desvelo que custodia e salvaguar<strong>da</strong><br />

(Heidegger, 1994c, p. 8).<br />

“Agora, porém, justamente o ser, que todo ente, a ca<strong>da</strong><br />

vez e sempre de novo, deixa ser o que é e como é, é o libertador,<br />

o que deixa ca<strong>da</strong> coisa repousar em sua essência,<br />

isto é, o que a ca<strong>da</strong> coisa trata com cui<strong>da</strong>do e carinho”<br />

(Heidegger, 1994c, p. 9).<br />

O homem existe. Isso significa: ele se ergue no espaço<br />

livre para a ressonância e a transparência do ser. Essa<br />

abertura <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ressonância e transparência em<br />

que o ser se confia ao homem e o homem se confia ao ser<br />

é a ver<strong>da</strong>de. Ver<strong>da</strong>de como o mistério do ser, isto é, o jogo<br />

amoroso de aparecer e retrair-se, de <strong>da</strong>r-se e retirar-se. Mas,<br />

no retrair-se e retirar-se, o ser não se desvia do homem, ele,<br />

antes, o atrai para dentro <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de de seu mistério,<br />

onde oculta as riquezas de seus dons. Esta insistência na<br />

ver<strong>da</strong>de do ser é o cui<strong>da</strong>do (Sorge). O fun<strong>da</strong>mento, pois, do<br />

cui<strong>da</strong>do é o relacionamento amoroso com o ser: filo-sofia<br />

(de philein, amar, tó sophon, o ser - como “um-tudo”).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

Marcos A. Fernandes<br />

A relação própria, portanto, <strong>da</strong> presença com o ser, é<br />

amorosa, tanto <strong>da</strong> parte <strong>da</strong> presença para com o ser, como<br />

<strong>da</strong> parte do ser para com a presença. O ser se dá. Ele se<br />

entrega ao homem enquanto presença.<br />

“Só enquanto se a-propria a clareira do Ser, é que o Ser<br />

se entrega, no que ele é propriamente, ao homem. Que,<br />

porém, o Da (lugar), a clareira, como Ver<strong>da</strong>de do próprio<br />

Ser, se a-proprie, é destinação do próprio Ser. É o destino<br />

<strong>da</strong> clareira” (Heidegger, 1967, p. 60).<br />

A entrega do ser ao homem, portanto, é destinação<br />

e isso perfaz a essência <strong>da</strong> história. Na destinação<br />

(Geschick) do ser está um presentear-se (sich schenken),<br />

o <strong>da</strong>r-se de si como dádiva. Pensar (denken) é, justamente,<br />

agradecer (<strong>da</strong>nken) este presentear-se do ser. Ereignis<br />

significa, portanto, o recolhimento na uni<strong>da</strong>de amorosa<br />

de ente, presença e ser.<br />

Podemos dizer que a dinâmica dessa coincidência<br />

Dasein:Ser:ente, assim descrita de modo desengonçado,<br />

é o sentido propriamente dito <strong>da</strong> famosa “Khere”<br />

Heideggeriana, que não está a dizer a reviravolta<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de literária e mutação ou transmutação<br />

ou evolução <strong>da</strong>s ideias de Heidegger, mas sim a<br />

estruturação interna do ente ser. O Ser é: o Da do<br />

<strong>da</strong>-seiend, ao aparecer concreto no pudor <strong>da</strong> contenção<br />

<strong>da</strong>s implicâncias do evento (Ereignis) como este<br />

próprio ente, aquele próprio ente, na “naturali<strong>da</strong>de”<br />

imediata. Na modéstia, no insignificante do <strong>da</strong>r-se<br />

simplesmente, como ca<strong>da</strong> vez o próprio, como em<br />

sendo co-creação viva do pulsar tênue no nascer,<br />

crescer e consumar-se, como estremecer do viver, o<br />

cintilar “do olho” de ca<strong>da</strong> coisa forma em composições<br />

estruturais, a imensa superfície aparentemente<br />

opaca e óbvia do cotidiano e comum, i. é, <strong>da</strong> maioria e<br />

do imediato do ente, sob cuja pele na tênue vibração,<br />

nesse <strong>da</strong>-seiend, se oculta o frêmito de vi<strong>da</strong> do ser.<br />

Frêmito de vi<strong>da</strong> do ser! É a vigência <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>, que<br />

no abalo instantâneo, se revela superfície e abismo,<br />

sereni<strong>da</strong>de e ira conti<strong>da</strong>, ternura e vigor, nascimento<br />

e morte do estremecer e do abrir os olhos do renascimento,<br />

a se anunciar na penumbra do declínio<br />

ocidental e no cinzento claro do arrebol vindouro; é<br />

o incoativo retorno do outro início ao entardecer do<br />

primeiro início: o oriente do ocidente: esse sempre<br />

de novo e novo, ca<strong>da</strong> vez <strong>da</strong>-seiend, i. é, o ente. (...)<br />

Então Ser, Tempo, Vi<strong>da</strong>, coincide como, no e a partir<br />

do “ponto de salto”, cuja mira, se dá na contenção e<br />

continência, no espanto e no pudor, no titubear de<br />

uma tênue vibração que ao assim se pôr constitui a<br />

empiria nasciva <strong>da</strong> aberta do retraimento na ver<strong>da</strong>de<br />

do ser, acolhi<strong>da</strong> e recolhimento <strong>da</strong> vigência do sabor<br />

humano, demasia<strong>da</strong>mente humano do “Homem<br />

humano”, o ser-in de to<strong>da</strong>s as coisas, a novi<strong>da</strong>de do<br />

saber do concreto positivismo e <strong>da</strong> sua “lógica” analítica,<br />

cujo início longínquo ecoa e diz: to on legethai<br />

polakhos (Hara<strong>da</strong>, 2004, p. 94-95).<br />

170


O Cui<strong>da</strong>do como Amor em Heidegger<br />

Por falar em oriente, terminamos esta reflexão com<br />

um poema oriental do sábio chinês Chuang-Tzu (Merton,<br />

2002 p. 65-66). Parece evocar aquela proximi<strong>da</strong>de calma<br />

de um vigor que não se impõe, a regência <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de,<br />

do evento-apropriador (Ereignis).<br />

O sopro <strong>da</strong> natureza<br />

Quando a Natureza magnânima suspira<br />

Ouvimos os ventos<br />

Que, silenciosos,<br />

Despertam as vozes dos outros seres,<br />

Soprando neles.<br />

De to<strong>da</strong> fresta<br />

Soam altas vozes. Já não ouvistes<br />

O marulhar dos tons?<br />

Lá está a floresta pendente<br />

Na íngreme montanha:<br />

Velhas árvores com buracos e rachaduras,<br />

Como focinhos, goelas e orelhas,<br />

Como orifícios, cálices,<br />

Sulcos na madeira, buracos cheios d’água:<br />

Ouve-se o mugir e o estrondo, assobios,<br />

Gritos de comando, lamentações, zumbidos<br />

Profundos, flautas plangentes.<br />

Um chamado desperta o outro no diálogo.<br />

Ventos suaves cantam timi<strong>da</strong>mente,<br />

E os fortes estron<strong>da</strong>m sem obstáculos.<br />

E então o vento abran<strong>da</strong>. As aberturas<br />

Deixam sair o último som.<br />

Yu respondeu: Compreendo:<br />

A música terrestre canta por mil frestas.<br />

A música humana é feita de flautas e de instrumentos.<br />

Que proporciona a música celeste?<br />

Mestre Ki respondeu:<br />

Algo está soprando por mil frestas diferentes.<br />

Alguma força está por trás de tudo isso e faz<br />

Com que os sons esmoreçam.<br />

Que força é esta?<br />

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Silesius, A. (1992). Il Pellegrino Cherubico. Torino: Paoline.<br />

Marcos Aurélio Fernandes - Graduado em Filosofia pela Universi<strong>da</strong>de<br />

São Francisco (1991), com Mestrado e Doutorado em Filosofia pela<br />

Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Antonianum (2000 e 2003). Atualmente<br />

é Professor Doutor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Católica de Brasília, lotado<br />

no Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia <strong>da</strong> Religião.<br />

Endereço Institucional: Universi<strong>da</strong>de Católica de Brasília (Centro<br />

de Reflexão sobre Ética e Antropologia). QS 07 LOTE 01 EPCT -<br />

Areal (Águas Claras). CEP 71966-700 - Brasilia, DF – Brasil. E-mail:<br />

framarcosaurelio@hotmail.com<br />

Recebido em 12.05.11<br />

Aceito em 23.10.11<br />

171 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 158-171, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 172-184, jul-dez, 2011<br />

Virgínia Moreira<br />

a ContRiBuição de JaSpeRS, BinSwangeR, BoSS e<br />

tatoSSian paRa a pSiCopatologia fenomenolÓgiCa<br />

The Contribution of Jaspers, Binswanger, Boss and Tatossian to Phenomenological Psychopathology<br />

La Contribución de Jaspers, Binswanger, Boss y Tatossian para la Psicopatología Fenomenológica<br />

vi r g í n i a mo r e i r a<br />

Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir as contribuições de quatro grandes nomes <strong>da</strong> tradição <strong>da</strong> Psicopatologia Fenomenológica:<br />

Karl Jaspers, que através de um método descritivo-compreensivo fundou a psicopatologia enquanto área específica<br />

do conhecimento com sua Psicopatologia Geral; Ludwig Binswanger, o criador <strong>da</strong> Psicopatologia Fenomenológica; Me<strong>da</strong>rd Boss<br />

que se propôs a desenvolver uma psicopatologia de inspiração Daseinsanalítica e, finalmente, Arthur Tatossian que desenvolve<br />

uma psicopatologia do Lebenswelt (mundo vivido).<br />

Palavras-chave: Psicopatologia fenomenológica; Jaspers; Binswanger; Boss; Tatossian.<br />

Abstract. This article aims to discuss the contributions of four big names of the Phenomenological Psychopathology tradition:<br />

Karl Jaspers, whom through a descriptive comprehensive method funded psychopathology as an specific area of knowledge<br />

with his General Psychopathology; Ludwig Binswanger, the creator of the Phenomenological Psychopathology; Me<strong>da</strong>rd Boss<br />

whom tried to develop a psychopathology from a Daseinsanalytic inspiration, and finally, Arthur Tatossian, whom develops a<br />

psychopathology of the Lebenswelt (lived world).<br />

Keywords: Phenomenological psychopathology; Jaspers; Binswanger; Boss; Tatossian.<br />

Resumen: Este artículo tiene como objetivo discutir las contribuciones de cuatro grandes nombres de la tradición de la<br />

Psicopatología Fenomenológica: Karl Jaspers, que a través de un método descriptivo comprensivo ha fun<strong>da</strong>do la psicopatología<br />

en cuanto área específica del conocimiento con su Psicopatología General; Ludwig Binswanger, el creador de la Psicopatología<br />

Fenomenológica; Me<strong>da</strong>rd Boss que se ha propuesto a desarrollar una psicopatología de inspiración Daseinanalítica y, finalmente,<br />

Arthur Tatossian que desarrolla una psicopatología del Lebenswelt (mundo vivido).<br />

Palabras-clave: Psicopatología psicopatológica; Jaspers; Binswanger; Boss; Tatossian.<br />

introdução<br />

Psicopatologia [de psic(o)- + patologia.] se define<br />

como patologia <strong>da</strong>s doenças mentais ou como o estudo<br />

<strong>da</strong>s causas e natureza <strong>da</strong>s doenças mentais. Psic(o) – vem<br />

do grego – psyché – que significa alento, sopro de vi<strong>da</strong>,<br />

alma. Patologia, afecção, dor, pato, que também provém<br />

do grego – pathos – que significa “doença, paixão, sentimento”.<br />

Ambos os termos foram introduzidos na linguagem<br />

científica internacional a partir do século XIX<br />

(Cunha, 1997).<br />

O primeiro registro de utilização do termo psicopatologia<br />

foi na Alemanha em 1878, com Emminghaus, mas,<br />

neste momento, psicopatologia equivalia à psiquiatria<br />

clínica. Enquanto método e disciplina, a psicopatologia<br />

nasce no início do século XX, na França, com o filósofo<br />

Theodule Ribot e a criação do método psicopatológico<br />

enquanto psicologia patológica, um ramo <strong>da</strong> psicologia<br />

científica diferente <strong>da</strong> psicologia experimental ou genética<br />

(Bauchesne, 1993). A substituição do termo psicologia<br />

patológica por psicopatologia ocorreu gra<strong>da</strong>tivamente,<br />

correspondendo a um deslizamento de sentido, que se<br />

deu quando a psicologia patológica se propôs a ser uma<br />

psicologia <strong>da</strong> conduta, substituindo, paulatinamente, a<br />

linguagem <strong>da</strong>s ações nervosas por uma linguagem psicológica<br />

(Widlöcher, 1996; Moreira, 2002).<br />

Em 1913, na Alemanha, com a publicação de<br />

Psicopatologia Geral de Karl Jaspers, nasce a psicopatologia<br />

propriamente dita, representando uma corrente<br />

diferencia<strong>da</strong> em relação à vertente de Ribot, que se desenvolverá<br />

como uma psicopatologia fenomenológica.<br />

Este artigo tem como objetivo discutir as contribuições<br />

singulares de Karl Jaspers, Ludwig Binswanger, Me<strong>da</strong>rd<br />

Boss e Arthur Tatossian ao desenvolvimento <strong>da</strong> tradição<br />

<strong>da</strong> psicopatologia fenomenológica.<br />

1. Karl Jaspers e uma psicopatologia descritivo-<br />

Compreensiva<br />

Karl Jaspers (1883-1902), médico psiquiatra alemão,<br />

foi também professor de filosofia na Universi<strong>da</strong>de de<br />

Heidelberg. Seu pensamento está assim imbuído, desde<br />

sua origem, de seu interesse em reunir as ciências na-<br />

172


A Contribuição de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian para a Psicopatologia Fenomenológica<br />

turais e as ciências humanas, caminho sobre o qual ele<br />

desenvolverá a psicopatologia. Isto foi possível a partir<br />

<strong>da</strong> situação privilegia<strong>da</strong> de Jaspers, como filósofo, dispor<br />

para a fun<strong>da</strong>mentação de suas idéias, dos elementos empíricos<br />

acessíveis na Clinica Psiquiátrica de Heildelberg<br />

(Rodrigues, 2005).<br />

A publicação de Psicopatologia Geral, em 1913, marca<br />

o início <strong>da</strong> psicopatologia enquanto campo específico do<br />

saber, diferenciado <strong>da</strong> psiquiatria. A proposta de Jaspers<br />

era integrar o modelo causalista-explicativo empregado<br />

pelas ciências naturais, ao modelo histórico-compreensivo,<br />

próprio <strong>da</strong>s ciências humanas, para a descrição e<br />

compreensão do fenômeno psíquico. O que conferiu valor<br />

central a esta obra foi, especialmente, sua crítica metodológica<br />

e sistematização dos <strong>da</strong>dos. Sua tarefa foi mapear<br />

suportes conceituais e métodos vigentes pelo exame de<br />

suas virtudes e limitações na sua aplicação individual,<br />

isto é, a partir <strong>da</strong> descrição e compreensão de casos individuais,<br />

Jaspers propôs um modelo de psicopatologia<br />

geral, que na sua visão, poderia atender às aspirações<br />

científicas (Rodrigues, 2005). Nas palavras de Jaspers,<br />

na introdução de Psicopatologia Geral:<br />

A prática <strong>da</strong> profissão psiquiátrica se ocupa sempre<br />

do indivíduo humano todo (...). Aqui, todo o trabalho<br />

se relaciona com um caso particular. Não obstante,<br />

para satisfazer as exigências decorrentes dos casos<br />

particulares, o psiquiatra lança mão, como psicopatólogo,<br />

de conceitos e princípios gerais (Jaspers,<br />

1913/1987, p. 11).<br />

A psiquiatria de sua época era entendi<strong>da</strong> como parte<br />

<strong>da</strong>s ciências naturais, utilizando, unicamente, o modelo<br />

explicativo-causal para compreender os fenômenos<br />

objetivos. Com o objetivo de associar este modelo<br />

ao modelo histórico-compreensivo, Jaspers introduz em<br />

Psicopatologia Geral o método fenomenológico, que se<br />

tornou então, a grande “novi<strong>da</strong>de” do seu pensamento no<br />

âmbito <strong>da</strong> psiquiatria. Este fato gera, até os dias de hoje,<br />

muitos mal-entendidos no sentido de nomear o trabalho<br />

de Jaspers como psicopatologia fenomenológica, quando<br />

ele mesmo deixa muito claro que a fenomenologia é apenas<br />

um dos métodos possíveis para a psicopatologia. No<br />

prefácio <strong>da</strong> sétima edição de 1959 esclarece:<br />

Se, (...) o meu livro é por vezes designado como<br />

representante <strong>da</strong> corrente fenomenológica ou <strong>da</strong><br />

corrente de psicologia compreensiva, só em parte<br />

esta designação é correta, uma vez que o seu sentido<br />

é mais compreensivo: a saber o esclarecimento dos<br />

métodos <strong>da</strong> psiquiatria em geral, de seus modos de<br />

concepção e de seus caminhos de investigação (Jaspers,<br />

1913/1987, p. 7).<br />

Ou seja, Jaspers entende seu método como compreensivo,<br />

não como fenomenológico, indicando com isto que a<br />

compreensão inclui tanto o método fenomenológico (que<br />

para ele será prioritariamente a descrição), como o tradicional<br />

método explicativo-causal.<br />

1.1 A Psicopatologia como uma Ciência<br />

Para Jaspers (1913/1987), a psiquiatria, como uma profissão<br />

prática, se volta para os casos individuais enquanto<br />

que a psicopatologia, como uma ciência, se desenvolve no<br />

domínio dos conceitos e <strong>da</strong>s regras gerais, isto é, sobre os<br />

modos <strong>da</strong>s experiências, buscando seu sentido geral:<br />

O objeto <strong>da</strong> psicopatologia é o acontecer psíquico<br />

realmente consciente. Queremos saber o que os<br />

homens vivenciam e como o fazem. Pretendemos<br />

conhecer a envergadura <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des psíquicas.<br />

E não queremos investigar apenas as vivências humanas<br />

em si mas também as condições e causas de<br />

que dependem os nexos em que se estruturam, as<br />

relações em que se encontram e os modos em que,<br />

de alguma maneira, se exteriorizam objetivamente<br />

(Jaspers, 1913/1987, p. 13).<br />

O tema <strong>da</strong> Psicopatologia Geral de Jaspers é o homem<br />

todo em sua enfermi<strong>da</strong>de psíquica ou psiquicamente determina<strong>da</strong>.<br />

O homem se diferencia do animal e ocupa<br />

um lugar especial, pois o espírito e a alma atuam sobre<br />

as enfermi<strong>da</strong>des psíquicas. A alma, por sua vez, tornase<br />

objetiva pelo que é perceptível no mundo: fenômenos<br />

somáticos, expressões, comportamentos e ações, bem<br />

como na linguagem.<br />

Para Jaspers (1913/1987), a consciência se caracteriza<br />

como consciência objetiva, como interiori<strong>da</strong>de real<br />

de uma vivência, como auto-reflexão e consciência de si<br />

mesmo, como intencionali<strong>da</strong>de do sujeito e como o todo<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica momentânea. A noção de inconsciente,<br />

encontra<strong>da</strong> em “Psicopatologia Geral”, refere-se ao não<br />

lembrado, o que não está relacionado com a atenção, o que<br />

é inadvertido, o que dá origem. A atenção é defini<strong>da</strong> neste<br />

contexto como consciência clara, onde se dá a vivência<br />

do voltar-se para um objeto. A seleção de conteúdos conscientes<br />

e o afeto sobre o curso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica condicionam<br />

a clari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> consciência de uma vivência.<br />

As noções de percepção, enquanto conhecimento e<br />

reconhecimento de um <strong>da</strong>do fenômeno, e de orientação,<br />

como rendimento apreensivo mais complexo, serão também<br />

fun<strong>da</strong>mentais à psicopatologia fenomenológica de<br />

Jaspers, compreendi<strong>da</strong> por ele como fenomenológica por<br />

investigar o fenômeno subjetivamente: o psíquico expressa<br />

o mundo do paciente através de seu funcionamento,<br />

suas manifestações e ações (Moreira, 2002)<br />

Ain<strong>da</strong> para Jaspers (1913/1987), no seu propósito de<br />

construção de uma psicopatologia científica, a compreensão<br />

do fenômeno psicopatológico pode ser estática, genética<br />

(contextualiza<strong>da</strong>) ou total, o que implica na consti-<br />

173 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 172-184, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


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tuição do indivíduo, abor<strong>da</strong>ndo a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> doença e a<br />

totali<strong>da</strong>de biográfica. Sua psicopatologia geral distingue<br />

quatro grupos de fatos a serem estu<strong>da</strong>dos: os fenômenos<br />

vividos (consciência), o rendimento objetivo (apreensão,<br />

memória e inteligência), os fenômenos somáticos e as<br />

objetivi<strong>da</strong>des de sentido (estruturas de percepção). Na<br />

perspectiva destes fenômenos, a expressão dos pacientes<br />

com relação aos seus sintomas se dá pela descrição<br />

do espaço e tempo e a consciência do corpo e <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

(Moreira, 2002).<br />

1.2 A Introdução do Método Fenomenológico<br />

Embora Psicopatologia Geral seja a fonte mais difundi<strong>da</strong><br />

do método fenomenológico de Jaspers, neste livro<br />

ele está descrito de maneira sucinta. O foco maior é sobre<br />

a descrição fenomenológica <strong>da</strong>s experiências específicas<br />

sem oferecer maiores detalhes do método. É em um trabalho<br />

menos conhecido, de 1912 – intitulado “A abor<strong>da</strong>gem<br />

fenomenológica em psicopatologia” – que a fun<strong>da</strong>mentação,<br />

a descrição e a aplicação do método fenomenológico<br />

são mais detalha<strong>da</strong>s (Rodrigues, 2005).<br />

No artigo de 1912, Jaspers observa que ao se examinar<br />

um paciente psiquiátrico é comum a distinção entre<br />

sintomas objetivos e subjetivos. Os sintomas objetivos são<br />

aqueles “mensuráveis”, que podem ser percebidos pelos<br />

sentidos tais como movimentos registráveis, a fisionomia<br />

do indíviduo, sua ativi<strong>da</strong>de motora, expressão verbal,<br />

ações e conduta em geral, que podem incluir idéias<br />

delirantes ou falsas memórias etc. Ou seja, os sintomas<br />

objetivos são todos os conteúdos racionais comunicados<br />

pelo paciente sem o auxílio de qualquer “empatia” para<br />

com o mesmo.<br />

No entanto, lembra Jaspers (1912/2005), existem os<br />

sintomas subjetivos que, para serem compreendidos,<br />

exigem um processo subjetivo de “transposição de si<br />

mesmo, por assim dizer, ao psiquismo do outro indivíduo;<br />

isto é, pela empatia” (p. 770). Os sintomas subjetivos<br />

incluem as emoções como alegria, medo, tristeza:<br />

processos mentais que necessitam ser inferidos a partir<br />

<strong>da</strong>s manifestações do paciente e que por isso, são considerados<br />

pouco confiáveis do ponto de vista científico.<br />

Trata-se <strong>da</strong> priorização de uma “psicologia científica” em<br />

detrimento de uma “psicologia subjetiva”. É esta posição<br />

tradicional que Jaspers (1912/2005) critica: “Enquanto a<br />

psicologia objetiva, eliminando tudo aquilo que é psíquico,<br />

se converte em fisiologia, a psicologia subjetiva<br />

ambiciona preservar a dita vi<strong>da</strong> psíquica como objeto de<br />

seu estudo” (p. 771).<br />

Tendo em vista a diversi<strong>da</strong>de de fenômenos psíquicos<br />

existentes, Jaspers (1912/2005) assinala que, para se<br />

abor<strong>da</strong>r questões subjetivas, é necessário tornar claro<br />

qual é a experiência psíquica específica referi<strong>da</strong> a diferentes<br />

fenômenos psíquicos, identificando semelhanças<br />

e diferenças entre estes:<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 172-184, jul-dez, 2011<br />

Virgínia Moreira<br />

Este trabalho preliminar de representação, definição<br />

e classificação dos fenômenos, perseguido como<br />

ativi<strong>da</strong>de independente, constitui a fenomenologia<br />

(...). Na esfera <strong>da</strong> investigação psicológica E. Husserl<br />

deu o primeiro passo crucial em direção a uma fenomenologia<br />

sistemática, seus antecessores antes nisto<br />

havendo sido Brentano e sua escola, assim como Th.<br />

Lipps (Jaspers, 1912/2005, p. 772).<br />

Para desenvolver o seu método fenomenológico na psicopatologia,<br />

Jaspers toma como base o primeiro Husserl<br />

– o <strong>da</strong> “psicologia descritiva” (nesta fase, ain<strong>da</strong> muito<br />

próximo do pensamento de Brentano) – que foi interpretado<br />

por ele como uma fenomenologia descritiva. Mas<br />

como bem assinala Rodrigues (2005), reconhecer que a<br />

fenomenologia de Jaspers é uma fenomenologia descritiva<br />

não deve se <strong>da</strong>r no sentido pejorativo, como acontece<br />

freqüentemente por parte de seus críticos. Jaspers<br />

se restringe à etapa descritiva como a etapa inicial para<br />

que se possa atingir o fenômeno subjetivo. Seu objetivo<br />

era garantir a cientifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> compreensão dos sintomas<br />

subjetivos.<br />

Assim, a fenomenologia surge, para ele, como um método<br />

visado para responder às necessi<strong>da</strong>des de cientifici<strong>da</strong>de<br />

para a psico(pato)logia e, ao mesmo tempo,<br />

atender ao imperativo de não exclusão ao ver<strong>da</strong>deiro<br />

objeto de estudo destas disciplinas: a experiência<br />

subjetiva (Rodrigues, 2005, p. 764).<br />

Ain<strong>da</strong> que Karl Jaspers não deva ser considerado o<br />

iniciador <strong>da</strong> Psicopatologia Fenomenológica – um mal<br />

entendido comum em nossos dias – cabe a ele, sem dúvi<strong>da</strong>,<br />

o papel pioneiro de se preocupar com cientifici<strong>da</strong>de<br />

do sintoma subjetivo. Foi esta preocupação que fez com<br />

que ele buscasse na fenomenologia do primeiro Husserl<br />

um método que pudesse compreender cientificamente o<br />

sintoma subjetivo. Assim, deve-se reconhecer que a fenomenologia<br />

de Jaspers não pode ser chama<strong>da</strong> de psicopatologia<br />

fenomenológica, justamente por sua concepção<br />

restritiva <strong>da</strong> experiência científica liga<strong>da</strong> ao dualismo<br />

cartesiano <strong>da</strong> psique e do soma (Tatossian, 2006). Mas,<br />

como assinala Fédi<strong>da</strong> (1998), “a psicopatologia geral de<br />

Karl Jaspers, pouco rigorosa fenomenologicamente, tem o<br />

mérito de contribuir historicamente para a constituição<br />

de uma antropologia fenomenológica em psicopatologia”<br />

(p. 109). É possível afirmar que em Jaspers se encontram<br />

os germes <strong>da</strong> psicopatologia fenomenológica desenvolvi<strong>da</strong><br />

posteriormente em Binswanger e to<strong>da</strong> a tradição <strong>da</strong><br />

psicopatologia fenomenológica até os dias atuais.<br />

Enquanto um campo específico do saber científico<br />

que se fun<strong>da</strong> na interseção <strong>da</strong> tradição histórico-compreensiva<br />

<strong>da</strong>s ciências humanas com a tradição explicativo-causal<br />

<strong>da</strong>s ciências naturais, a psicopatologia deve<br />

a Jaspers não apenas a sua origem, mas seu desenvolvimento<br />

conturbado, sempre envolvido pela discussão <strong>da</strong><br />

174


A Contribuição de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian para a Psicopatologia Fenomenológica<br />

subjetivi<strong>da</strong>de versus objetivi<strong>da</strong>de, que se mantém ain<strong>da</strong><br />

em seu bojo na contemporanei<strong>da</strong>de.<br />

2. ludwig Binswanger: uma psicopatologia fenomenológica<br />

Ludwig Binswanger (1881-1966), médico suíço com<br />

formação psiquiátrica junto a Bleuer e a Jung, no Hospital<br />

Burghölzli, foi diretor do Sanatório Bellevue, fun<strong>da</strong>do por<br />

seu avô, em Kreuzlingen, na Suiça. Iniciou sua carreira<br />

aderindo à proposta clínica psicanalítica, mas foi gradualmente<br />

se afastando <strong>da</strong>s proposições metapsicológicas de<br />

Freud, à medi<strong>da</strong> em que seus estudos <strong>da</strong> fenomenologia<br />

de Husserl e <strong>da</strong> ontologia fun<strong>da</strong>mental de Heidegger iam<br />

se aprofun<strong>da</strong>ndo (Pereira, 2001). No seu texto “Analyse<br />

Existentielle et Psychothérapie”, Binswanger retoma<br />

uma comunicação feita no Congresso Internacional de<br />

Psicoterapia em Barcelona em 1958, em que deixa clara<br />

sua divergência em relação à psicanálise:<br />

Apesar de to<strong>da</strong> a nossa admiração pela obra de Freud<br />

e to<strong>da</strong> a estima pela importância gigantesca <strong>da</strong> psicanálise<br />

no plano <strong>da</strong> psicoterapia, nossa formação<br />

filosófica não nos permitiu reconhecer suas hipóteses<br />

filosóficas, particularmente no que concerne à relação<br />

entre corpo e alma, entre o instinto e o espírito<br />

(Binswanger 1971c, p. 155).<br />

Ao contrário <strong>da</strong> psicanálise, que havia sido cria<strong>da</strong> por<br />

Freud a partir de uma preocupação terapêutica, a análise<br />

existencial de Binswanger teria sido inicialmente um<br />

novo método de pesquisa, que pretendia se contrapor ao<br />

<strong>da</strong> psiquiatria tradicional: “A direção de pesquisa analítico<br />

existencial em psiquiatria surgiu <strong>da</strong> insatisfação<br />

quanto aos projetos de compreensão científica <strong>da</strong> psiquiatria<br />

<strong>da</strong> época” (Binswanger 1970, p. 115). Isto explica<br />

o caráter mais completo e elaborado <strong>da</strong> psicopatologia<br />

decorrente <strong>da</strong> análise existencial binswangeriana do que<br />

suas teorizações sobre a psicoterapia propriamente dita,<br />

tendo em vista que só secun<strong>da</strong>riamente ela teria se organizado<br />

como proposta de tratamento. A Daseinsanalyse<br />

de Binswanger instituiu um corte na tradição médica e<br />

psiquiátrica <strong>da</strong> psicopatologia (Pereira, 2001).<br />

2.1 A Psicopatologia como um Campo Diferenciado<br />

do Saber<br />

Na perspectiva de sua Daseinanalyse e de sua antropologia<br />

fenomenológica Binswanger (1971b) defendeu a<br />

idéia – já defendi<strong>da</strong> anteriormente por Jaspers, embora<br />

sobre outras bases – de se especificar a psicopatologia em<br />

um campo diferente do <strong>da</strong>s ciências naturais, que entendiam<br />

o homem como um sistema de funções de ordem<br />

orgânica liga<strong>da</strong>s a processos naturais no tempo. Sua pro-<br />

posta <strong>da</strong> antropologia fenomenológica deveria ser a disciplina<br />

para fun<strong>da</strong>r a psicopatologia e a psiquiatria tendo<br />

em vista que “vê nele [o homem] um ser pessoal que vive<br />

sua vi<strong>da</strong> e cuja continui<strong>da</strong>de – não somente vivi<strong>da</strong>, mas<br />

se vivendo, ela mesma – se desdobra em história” (Kuhn<br />

& Maldiney 1971, p, 12).<br />

No seu famoso texto Fonction vitale et histoire intérieure,<br />

publicado em Introduction a l’Analyse Existentiele,<br />

Binswanger (1971b) reconhece a contribuição metodológica<br />

de Jaspers em relação à distinção entre relações de<br />

causali<strong>da</strong>de e de compreensão no campo do acontecer psíquico.<br />

As relações causais se referem aos fatos concretos<br />

que estabelecem conjunções constantes com o surgimento<br />

de certos quadros mentais. As relações de compreensão<br />

visam a <strong>da</strong>r conta do encadeamento psíquico de uma<br />

forma compreensível para nós. “E nós já assinalamos repeti<strong>da</strong>s<br />

vezes que não podemos nos apoiar nem em um<br />

conceito de valor causal de um lado, nem, por outro lado,<br />

naquele <strong>da</strong> compreensão” (Binswanger, 1971b, p. 55-56).<br />

Buscando a superação desta discussão que remete à duali<strong>da</strong>de<br />

físico x psíquico:<br />

Binswanger propõe que se examine, em seu lugar, a<br />

questão mais fun<strong>da</strong>mental: aquela do Ser e <strong>da</strong>s relações<br />

do fenômeno psicopatológico com a existência<br />

do que padece. Dessa forma a análise existencial<br />

abriria a possibili<strong>da</strong>de de um olhar sobre a totali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> existência do homem. A dimensão histórica,<br />

anteriormente evoca<strong>da</strong>, é decisiva no pensamento<br />

binswangeriano, na medi<strong>da</strong> em que se apóia na Daseinsalytik<br />

de Heidegger para construir suas próprias<br />

bases teóricas e metodológicas de abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> psicopatologia<br />

(Pereira 2001, p. 139).<br />

2.2 A Analítica do Dasein de Heidegger na Psicopatologia<br />

Binswangeriana<br />

É por partir <strong>da</strong> Análise do Dasein heideggeriana que<br />

na Daseinsanalyse de Binswanger os conceitos de temporali<strong>da</strong>de<br />

e espaciali<strong>da</strong>de terão um lugar de destaque.<br />

As dimensões fun<strong>da</strong>mentais constituintes do Dasein –<br />

os existenciais descritos por Heidegger em Ser e Tempo<br />

– são a temporali<strong>da</strong>de, a espaciali<strong>da</strong>de, o ser-com-o-outro,<br />

a disposição, a compreensão, o cui<strong>da</strong>do (Sorge), a<br />

que<strong>da</strong> e o ser-para-a-morte (Moreira, 2010). No seu texto<br />

“Analyse existentielle et psychotherapie”, Binswanger<br />

(1971d) esclarece que:<br />

Ain<strong>da</strong> que Heidegger tenha sido para nós o pensador<br />

mais prestigiado de nossos tempos, e que ano a ano<br />

mergulhemos mais fundo no coração de sua obra,<br />

nosso propósito pessoal não era de estudá-la como<br />

tal, mas de retirar dela o que seria útil à psiquiatria,<br />

cujo fun<strong>da</strong>mento e aprofun<strong>da</strong>mento filosófico sempre<br />

haviam sido objeto de nossas preocupações (p. 156).<br />

175 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 172-184, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

É importante observar que a apropriação que<br />

Binswanger faz <strong>da</strong> Daseinanlyse de Heidegger para aplicá-la<br />

à sua Daseisnanalyse no campo <strong>da</strong> psicopatologia,<br />

utilizando-se do método fenomenológico, não se restringe<br />

apenas a descrever as vivências dos doentes e seus<br />

encadeamentos psíquicos ou naturais que levaram ao<br />

surgimento <strong>da</strong> doença, como o faz Jaspers, mas apreender<br />

as condições particulares de existência de um indivíduo<br />

singular em relação aos existenciais descritos por<br />

Heidegger no plano ontológico.<br />

O método psicopatológico de Binswanger visa descrever<br />

a experiência de mundo e as condições de existência<br />

tal como estas se dão nas condições particulares do<br />

Dasein. Trata-se de uma abor<strong>da</strong>gem fenomenológica, no<br />

sentido em que depende <strong>da</strong> abertura à experiência concreta<br />

do outro, mas, ao mesmo tempo, volta-se às estruturas a<br />

priori e transcendentais <strong>da</strong> existência, visando situar a organização<br />

específica <strong>da</strong>quele indivíduo enquanto Dasein,<br />

face a seus existenciais. Trata-se, portanto, de descrever<br />

o mundo a partir <strong>da</strong> perspectiva e <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong>quela<br />

existência singular (Pereira 2001, p, 140).<br />

2.3 Umwelt, Mitwelt e Eigenwelt<br />

Em um de seus primeiros escritos – Grundformen und<br />

Erkenntnis menschlichen Daseins (“Formas fun<strong>da</strong>mentais<br />

e conhecimento <strong>da</strong> existência humana”), publicado em<br />

1942 –, Binswanger descreve modos simultâneos de ser<br />

no mundo de seus pacientes, distinguindo três regiões<br />

do mundo: Umwelt, Mitwelt e Eigenwelt. Ain<strong>da</strong> que os escritos<br />

posteriores de Binswanger tenham ampliado suas<br />

análises para modos existenciais de ser no mundo, esta<br />

definição dos três modos de ser no mundo passou a ser<br />

bastante conheci<strong>da</strong> e associa<strong>da</strong> ao nome de Binswanger,<br />

tanto como por conta dele ter utilizado estes três modos<br />

de ser no mundo para analisar seu conhecido caso<br />

de Ellen West (Binswanger, 1977), como pelo fato desta<br />

definição ter sido utiliza<strong>da</strong> e divulga<strong>da</strong> por Rollo May,<br />

nos Estados Unidos. Em seu livro A Descoberta do Ser,<br />

Rollo May (1988) resume os três modos de ser-no-mundo<br />

de Binswanger.<br />

O primeiro modo é o Umwelt, que significa literalmente<br />

“o mundo ao redor”. É o mundo natural, o mundo<br />

biológico, conhecido por ambiente. O Umwelt é o mundo<br />

material, que cerca a todos os animais e seres humanos,<br />

abrangendo necessi<strong>da</strong>des biológicas, impulsos e instinto.<br />

É o mundo dos ciclos naturais do dormir e acor<strong>da</strong>r,<br />

do nascer e morrer, o mundo que é imposto a ca<strong>da</strong> um<br />

nós pelo nascimento. O segundo modo – o Mitwelt – é o<br />

mundo dos inter-relacionamentos, o mundo com o outro,<br />

que caracteriza o humano. Os animais vivem apenas no<br />

Umwelt. O ser humano não existe senão no Mitwelt, que<br />

é a característica básica do Dasein: ser-no-mundo. Podese<br />

dizer que os animais têm um ambiente, enquanto que<br />

os seres humanos têm um mundo, que envolve suas re-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 172-184, jul-dez, 2011<br />

Virgínia Moreira<br />

lações com os outros indivíduos, com a família e a comuni<strong>da</strong>de.<br />

O Mitwelt é o modo de ser no mundo social.<br />

Finalmente, o terceiro modo – o Eigenwelt é o “mundo<br />

próprio”, o “eu”, que inclui um corpo. O Eigenwelt pressupõe<br />

uma autoconsciência, uma percepção de si mesmo,<br />

um “auto-relacionamento” que também está presente apenas<br />

nos seres humanos. Não se trata de uma experiência<br />

meramente subjetiva, ao contrário, é a base sobre a qual<br />

nos relacionamos a partir <strong>da</strong> percepção do que uma coisa<br />

qualquer no mundo significa para mim.<br />

Binswanger estava preocupado em descobrir a visão<br />

de mundo de seus pacientes, o mundo vivido de ca<strong>da</strong><br />

um. Neste sentido é que considerou importante, na clínica,<br />

que envolve principalmente a relação intersubjetiva<br />

médico-paciente, observar como o paciente vivencia<br />

ca<strong>da</strong> uma dessas dimensões de ser-no-mundo. Ain<strong>da</strong> que<br />

Umwelt, Mitwelt e Eigenwelt sejam três regiões de mundo<br />

diferentes, eles serão sempre modos simultâneos de<br />

ser-no-mundo.<br />

2.4 Método Fenomenológico x Método Psicopatológico<br />

No seu texto “De la Phénomenologie”, Binswanger<br />

(1971c) discute as diferenças metodológicas entre a fenomenologia<br />

e a psicopatologia, lembrando que a pesquisa<br />

fenomenológica <strong>da</strong>s essências é diferente <strong>da</strong> busca dos<br />

fatos patológicos:<br />

Desde que a psicopatologia é e será sempre uma<br />

ciência <strong>da</strong> experiência ou dos fatos, ele não quererá<br />

nem poderá jamais aceder em uma generali<strong>da</strong>de<br />

absoluta, a uma intuição <strong>da</strong>s essências puras (...).<br />

Entendemos, por outro lado que não é insensato<br />

falar de uma fenomenologia psicopatológica, apesar<br />

desta profun<strong>da</strong> diferença entre a pesquisa dos fatos<br />

psicopatológicos e a pesquisa fenomenológica <strong>da</strong>s<br />

essências (p. 101).<br />

Binswanger (1971c) adverte que, se por um lado uma<br />

fenomenologia psicopatológica não pode buscar as essências,<br />

por outro é importante que não se cometa o engano<br />

de realizar uma psicopatologia meramente descritiva<br />

ou subjetiva. Uma fenomenologia psicopatológica<br />

busca o sentido, a significação <strong>da</strong> palavra, a experiência<br />

vivi<strong>da</strong>. Busca se introduzir “dentro” em lugar de julgar<br />

“sobre” a significação <strong>da</strong> palavra, tal como longamente<br />

explicado no seu conhecido exemplo do paciente com<br />

alucinação que ao ser perguntado se ele estaria escutando<br />

vozes, responde: “Não, eu não escuto vozes, mas<br />

à noite as salas-de-falar estão abertas e que elas fossem<br />

dispensa<strong>da</strong>s eu gostaria”. Ao descrever as longas<br />

conversas com este paciente, o psiquiatra suíço mostra<br />

que, no fenômeno particular, a pessoa se faz conhecer<br />

e, inversamente, é o fenômeno que faz o psicoterapeuta<br />

penetrar na pessoa.<br />

176


A Contribuição de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian para a Psicopatologia Fenomenológica<br />

Do ponto de vista do fenomenólogo, o essencial de tais<br />

fenômenos psicopatológicos reside em que você não<br />

vê jamais um fenômeno isolado, mas aquele que se<br />

desenrola sobre um plano de fundo de um Eu, de uma<br />

pessoa, ou, dito de outra forma, nós o vemos sempre<br />

como expressão ou manifestação emanando de tal ou<br />

tal pessoa (Binswanger, 1971c, p. 105).<br />

E mais adiante no mesmo texto:<br />

O fenomenólogo, analisando a experiência psicopatológica<br />

vivi<strong>da</strong>, (...) busca se familiarizar com as significações<br />

que a expressão verbal do doente despertam<br />

nele (...). No lugar de refletir sobre sua relação com outros<br />

fenômenos psíquicos anormais e suas condições<br />

de aparição, ele busca apenas os sinais distintivos<br />

imanentes a esta experiência psicopatológica e o que<br />

se pode descobrir nela (Binswanger, 1971c, p. 116).<br />

2.5 A Psicopatologia Fenomenológica<br />

A partir deste arcabouço teórico e metodológico é<br />

que, na introdução do seu livro Introduction a l’Analyse<br />

Existentielle, Binswanger (1971a) afirma que “o ser-psiquiatra<br />

depende referencialmente do encontro e <strong>da</strong> compreensão<br />

mútua com o outro tomado em sua totali<strong>da</strong>de e<br />

ele está dirigido à compreensão do homem em sua totali<strong>da</strong>de<br />

(...)” (p. 47). Nesse sentido, entende que a psiquiatria<br />

é uma ciência do homem, <strong>da</strong> presença humana, cuja<br />

missão enquanto ciência é discriminar o que se aplica ao<br />

doente ou ao sadio e buscar a maneira como a presença<br />

do doente pode ser modifica<strong>da</strong> em uma presença sadia.<br />

Assim, “o pro-jeto científico <strong>da</strong> psiquiatria não é mais ‘a<br />

psyché doente’, e seus ‘transtornos funcionais’, nem tão<br />

pouco se trata mais ‘do doente do espírito’ com suas anomalias<br />

de comportamento, mas ‘do homem’” (Binswanger<br />

1971d, p. 157).<br />

A psicopatologia deve ser entendi<strong>da</strong> como o que se<br />

afasta <strong>da</strong> estrutura apriorística do ser em suas categorias<br />

ontológicas. A presença perturba<strong>da</strong> se caracteriza<br />

como o extravio ou o malogro <strong>da</strong> sua realização ontológica,<br />

de maneira que uma só categoria passa a servir de<br />

“fio condutor” do projeto de mundo (May, 1988). A presença<br />

fica limita<strong>da</strong> em torno de uma categoria existencial<br />

prioritária (os chamados existenciais de Heidegger).<br />

Por exemplo, quando a presença fica limita<strong>da</strong> em torno<br />

<strong>da</strong> corporali<strong>da</strong>de, temos o Dasein hipocondríaco ou o<br />

bulímico; na temporali<strong>da</strong>de temos o melancólico ou o<br />

maníaco (Tatossian, 2006); na espaciali<strong>da</strong>de encontramos<br />

o agorafóbico, e assim por diante. Ocorre aí o que<br />

Binswanger vai chamar de formas de existência frustra<strong>da</strong>,<br />

onde o indivíduo se fecha em si mesmo perdendo o<br />

eixo comum com o mundo do outro. A presença psicopatológica<br />

se projeta assim de diferentes formas: presença<br />

perdi<strong>da</strong> (melancolias), momentânea (manias), vazia (es-<br />

quizofrenias), exibicionista (histeria) e controla<strong>da</strong> (transtorno<br />

obsessivo-compulsivo).<br />

Ain<strong>da</strong> que o Dasein seja um conceito fun<strong>da</strong>mental na<br />

teoria <strong>da</strong> psicopatologia e <strong>da</strong> psicoterapia de Binswanger,<br />

e ele se utilize amplamente do pensamento de Heidegger<br />

em seus livros, seu pensamento permanece mais próximo<br />

do de Husserl do que do de Heidegger (Loparic, 2002;<br />

Tatossian; 2006, Freire, 2008; Gonçalves, Garcia, Dantas<br />

& Ewald, 2008; Mattar & Novaes de Sá, 2008; Moreira,<br />

2010). O proprio Heidegger (2001), no seminário de 23<br />

de novembro de 1965, em Zollikon, na Suíca explicita:<br />

“A fenomenologia de Husserl, que ain<strong>da</strong> o influencia<br />

[Binswanger], a qual permanece fenomenologia <strong>da</strong> consciência,<br />

impede a visão clara <strong>da</strong> hermenêutica fenomenológica<br />

do Dasein” (Heidegger 2001, p. 146). Binswanger<br />

reconheceu este fato, o que o levou a propor, por ocasião<br />

do I Congresso de Psiquiatria, em 1950, em Paris, a ideia<br />

de uma “Análise Antropológica-Fenomenológica”. Esta<br />

denominação não chegou a ser amplamente utiliza<strong>da</strong> e<br />

foi, finalmente, sob a denominação “Análise existencial”<br />

que seu trabalho passou a ser divulgado nos últimos anos,<br />

agora com a sua concordância que, no mesmo congresso,<br />

de 1950, fora nega<strong>da</strong> por não querer que sua proposta<br />

fosse associa<strong>da</strong> com o pensamento de Sartre (Verdeaux<br />

& Kuhn, 1971).<br />

Para além <strong>da</strong>s várias denominações assumi<strong>da</strong>s pela<br />

extensa obra de Binswanger – Dasinsanalyse, Análise<br />

Antropológica-Fenomenológica, Análise Existencial –,<br />

no âmbito <strong>da</strong> psicopatologia sua contribuição fenomenológica<br />

foi de tal magnitude que Binswanger passou a<br />

ser considerado o “pai <strong>da</strong> psicopatologia fenomenológica”<br />

(Van den Berg, 1994; Moreira, 2010).<br />

3. me<strong>da</strong>rd Boss: uma psicopatologia de inspiração<br />

Daseinsanalítica<br />

Me<strong>da</strong>rd Boss (1903-1990), médico psiquiatra também<br />

suíço, foi analisado por Freud e influenciado por<br />

Bleuler, com quem trabalhou por quatro anos no Hospital<br />

Burghölzli. Quando estudou em Berlim teve professores<br />

do círculo de Freud, como Karen Horney e Kurt Goldstein.<br />

Foi, também, sócio de Jung, que propunha uma psicanálise<br />

diferente <strong>da</strong> proposta freudiana.<br />

No prefácio à primeira edição dos Seminários de<br />

Zollikon, de Martin Heidegger, editado por Boss (1976),<br />

este descreve seu encontro com Heidegger. Conta que,<br />

quando serviu na guerra, pela primeira vez em sua vi<strong>da</strong><br />

ficara entediado: “Aquilo que chamamos ‘tempo’ tornouse<br />

problemático. Comecei a refletir sobre essa ‘coisa’.<br />

Procurei aju<strong>da</strong> em to<strong>da</strong> a literatura a esse respeito a que<br />

tive acesso. Por acaso encontrei num jornal uma nota sobre<br />

o livro Ser e Tempo, de Martin Heidegger” (p. 10).<br />

Neste prefácio, Boss relata o quanto lhe parecera difícil<br />

e intrigante, a leitura <strong>da</strong> obra de Heidegger, tendo<br />

em vista sua formação científico-médica. De forma que,<br />

177 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 172-184, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

ain<strong>da</strong> que houvesse sido desestimulado por colegas que<br />

designavam a Heidegger de nazista (que Boss argumenta<br />

serem calúnias), em 1947 entrou em contato por carta<br />

com Heidegger de quem se tornou amigo pessoal, se correspondendo<br />

ao longo de cerca de 30 anos.<br />

Durante dez anos, a partir de 1959, Boss deu início<br />

à coordenação de uma série de seminários ministrados<br />

por Heidegger em sua casa em Zollikon, na Suíça, para<br />

cerca de 70 psiquiatras e estu<strong>da</strong>ntes de psiquiatria. Estes<br />

seminários tornaram-se famosos nos meios psiquiátrico<br />

e psicológico clínico, pois se constituiu em momento<br />

único em que Heidegger mais profun<strong>da</strong>mente descreve<br />

sua Analítica do Dasein para um público de psiquiatras,<br />

e não de filósofos (o que, conta Boss, era de interesse de<br />

Heidegger que visava a um maior público que o filosófico).<br />

Estes seminários, bem como as cartas troca<strong>da</strong>s entre<br />

Me<strong>da</strong>rd Boss e Martin Heidegger foram publicados no<br />

livro Seminários de Zollikon, cuja edição em português,<br />

em 1976, se deveu à iniciativa do médico e psicoterapeuta<br />

brasileiro, Solon Spanoudis, quem, por sua vez, trocara<br />

cartas com Boss convi<strong>da</strong>ndo-o a participar de alguns<br />

seminários no Brasil, a partir de 1973.<br />

É interessa nte obser va r como a origem <strong>da</strong><br />

Daseinsanalyse de Boss se diferencia <strong>da</strong> de Binswanger,<br />

no sentido de que o que moveu Boss ao encontro com<br />

Heidegger foi um interesse pessoal e não teórico, a partir<br />

de sua própria vivência de tédio durante a guerra (tema sobre<br />

o qual Heidegger escrevera). Enquanto Binswanger foi<br />

antes de tudo levado a penetrar no pensamento desse filósofo<br />

por um ‘impulso puramente científico’ e não, como<br />

Freud, por um interesse de ordem terapêutica, foram sobretudo<br />

preocupações terapêuticas que determinaram a<br />

escolha de Boss. Esperava em primeiro lugar que as recentes<br />

considerações filosóficas de Heidegger lhe fossem<br />

úteis no domínio <strong>da</strong> terapêutica (Boss & Condrau 1997,<br />

p. 26). O artigo de autoria de Boss, publicado em 1997<br />

na <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Associação Brasileira de Daseinsanalyse,<br />

onde ele faz uma apresentação pessoal <strong>da</strong> Analítica do<br />

Dasein de Heidegger é intitulado “Encontro com Boss”<br />

(Boss, 1997).<br />

3.1 A Daseinsanalyse de Boss<br />

Descontente com os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> psiquiatria<br />

tradicional e, de início, estimulado pelos trabalhos<br />

de Binswanger, Boss se voltou para o pensamento de<br />

Heidegger, desenvolvendo todo o seu trabalho, ao longo<br />

dos anos que se seguiram, em torno <strong>da</strong> sua Analítica do<br />

Dasein. Acreditava que a psicopatologia muito se enriqueceria<br />

por um pensamento que não permitia a colocação <strong>da</strong><br />

distinção cartesiana sujeito-objeto e que, por outro lado,<br />

aproximava a medicina <strong>da</strong> psicologia. Por isso considerava<br />

que a Daseinsanalyse não deveria ser considera<strong>da</strong><br />

simplesmente mais uma escola: “É, antes de tudo e primordialmente<br />

uma nova abor<strong>da</strong>gem do conjunto dos fe-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 172-184, jul-dez, 2011<br />

Virgínia Moreira<br />

nômenos normais e patológicos do existir humano (...) tem<br />

como intuito ver sem deformações aquilo que se mostra a<br />

nós do si-mesmo” (Boss & Condrau, 1997, p. 26).<br />

A concepção Daseinanalítica de Boss parte <strong>da</strong> observação<br />

de que o homem nunca se encontrou primordialmente<br />

sozinho, subsistindo sozinho; o homem pode<br />

se relacionar de diferentes modos, mas não pode não se<br />

relacionar; mesmo a indiferença é um modo de relação;<br />

os homens estão sempre e primordialmente co-existindo<br />

perto <strong>da</strong>s mesmas coisas de um mesmo mundo, contribuindo<br />

primariamente em comum, embora ca<strong>da</strong> um a seu<br />

modo, para manter aberto este mundo, o que se constitui<br />

no caráter fun<strong>da</strong>mental de ser-com-o-outro primordial<br />

(Boss & Condrau, 1997). Ou seja, o existencial ser-como-outro<br />

é central, ain<strong>da</strong> que Boss também dê atenção aos<br />

outros existenciais descritos por Heidegger tais como a<br />

temporali<strong>da</strong>de, a espaciali<strong>da</strong>de, a disposição, o cui<strong>da</strong>do<br />

(Sorge), a que<strong>da</strong> e o ser para a morte. Boss retoma assim,<br />

o mais ao “pé <strong>da</strong> letra” possível, as idéias de Heidegger em<br />

Ser e Tempo, onde o grande filósofo distingue, no Dasein,<br />

os planos ôntico (plano relacionado à eluci<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> existência<br />

do Dasein) e ontológico, que é a apresentação <strong>da</strong>s<br />

estruturas existenciais do ser, dimensões fun<strong>da</strong>mentais<br />

constituintes do Dasein que Heidegger chamará de “existenciais”.<br />

O ôntico se refere ao ente, enquanto o ontológico<br />

diz respeito ao ser (Heidegger, 1989).<br />

Com base no existencial ser-com-o-outro a<br />

Daseinsanalytik de Heidegger, retoma<strong>da</strong> por Boss, entende<br />

a existência humana como uma abertura estendi<strong>da</strong><br />

e transparente, tanto no sentido temporal quanto espacial,<br />

para tudo aquilo que vem ao seu encontro no mundo. A<br />

essência do existir humano é ser esta “clareira”, que consiste<br />

meramente em um poder “ver”, experienciar, o que<br />

vem ao seu encontro (Heidegger, 1989).<br />

3.2 A Inspiração Daseinsanalítica na Psicopatologia<br />

Ao contrário de Binswanger, Boss nunca chegou (nem,<br />

aparentemente era esta sua intenção) a propor uma teoria<br />

de psicopatologia. No entanto, parece possível dizer<br />

que seus escritos, particularmente o artigo Análise<br />

Existencial – Daseinsanalyse: como a <strong>da</strong>seinsanalyse entrou<br />

na psiquiatria, escrito em co-autoria com seu assistente<br />

G. Condrau, a partir do qual desenvolvemos este<br />

tópico neste artigo, mostram que ele realizou curtos “ensaios”<br />

do que poderia vir a ser chamado uma “psicopatologia<br />

de inspiração <strong>da</strong>seinsanalítica”. Nesta perspectiva,<br />

“o modo de ser-doente só pode ser compreendido a partir<br />

do modo de ser-sadio e <strong>da</strong> constituição fun<strong>da</strong>mental<br />

do homem normal, não perturbado, pois todo modo de<br />

ser-doente representa um aspecto particular de determinado<br />

modo de ser-são” (Boss & Condrau 1997, p. 29). Na<br />

medi<strong>da</strong> em que entende que a essência fun<strong>da</strong>mental do<br />

homem sadio caracteriza-se por suas possibili<strong>da</strong>des de<br />

relação na abertura livre de seu mundo – a “clareira” – o<br />

178


A Contribuição de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian para a Psicopatologia Fenomenológica<br />

modo de ser-doente poderá ser compreendido como uma<br />

limitação dessas possibili<strong>da</strong>des.<br />

Boss & Condrau (1997) subdividem o modo de ser-doente<br />

em: 1) Ser doente caracterizado por uma perturbação<br />

evidente <strong>da</strong> corporei<strong>da</strong>de do existir humano; 2) Serdoente<br />

caracterizado por uma perturbação pronuncia<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de do seu ser-no-mundo; 3) Modo do serdoente<br />

caracterizado por uma limitação <strong>da</strong> disposição<br />

própria à essência <strong>da</strong> pessoa; e 4) Modos de ser-doente<br />

concernentes a limitações na realização do ser-aberto e <strong>da</strong><br />

liber<strong>da</strong>de. Ain<strong>da</strong> que ca<strong>da</strong> um destes modos de ser-doente<br />

faça referência a um existencial específico do Dasein,<br />

descrito em Ser e Tempo enquanto dimensões fun<strong>da</strong>mentais<br />

do ser-aí, formam, todos juntos, uma estrutura total<br />

e indivisível. Assim, se um deles é perturbado em sua<br />

realização, as outras dimensões, como parte do todo, sofrerão<br />

igualmente as conseqüências.<br />

Esta questão é esclareci<strong>da</strong> por Boss & Condrau (1997)<br />

com um exemplo sobre o primeiro modo de ser-doente,<br />

relativo à corporei<strong>da</strong>de do existir humano:<br />

(..) qualquer modo <strong>da</strong> corporei<strong>da</strong>de faz parte a tal<br />

ponto e tão diretamente do ser-no-mundo do homem,<br />

isto é, de sua existência, que qualquer redução toca<br />

sempre e imediatamente este ser-no-mundo e, por<br />

isso mesmo, to<strong>da</strong>s as suas possibili<strong>da</strong>des de relação<br />

com o mundo. Assim, uma fratura na perna constitui<br />

primordialmente uma redução <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de existencial<br />

de se aproximar ou de se afastar <strong>da</strong>quilo que<br />

se oferece ao nosso encontro no mundo, independentemente,<br />

aliás do fato dos sofrimentos provocados por<br />

uma fratura reduzirem consideravelmente a abertura<br />

para o mundo de um ‘<strong>da</strong>-sein’, não lhe deixando mais<br />

que um pequeno número de interesses (p. 30).<br />

Boss & Condrau (1997) citam outros exemplos na<br />

mesma linha do citado <strong>da</strong> fratura, agora no domínio <strong>da</strong><br />

psicopatologia. Para compreender uma paralisia histérica,<br />

dizem eles, a Daseinsanalyse não precisa recorrer à<br />

“invenção de desejos insconscientes” [e aqui, como em<br />

alguns outros momentos deste artigo, os autores são explícitos<br />

em sua crítica a Freud]:<br />

Sem que seja necessário recorrer a hipóteses metapsicológicas,<br />

qualquer paralisia histérica pode ser diretamente<br />

compreendi<strong>da</strong> como uma perturbação que<br />

afeta a possibili<strong>da</strong>de de realizar na corporei<strong>da</strong>de uma<br />

certa relação com o que se apresenta no mundo, isto<br />

é, como uma perturbação que consiste em interdições<br />

estranhas à pessoa” (Boss, & Condrau, 1997, p. 30).<br />

No mesmo artigo os autores assinalam que o modo de<br />

ser-doente pela redução dos existenciais “disposição” “e<br />

o ser-aberto”, relaciona<strong>da</strong>s às distimias depressivas são<br />

ca<strong>da</strong> vez mais freqüentes: “Hoje encontra-se ca<strong>da</strong> vez mais<br />

pessoas sofrendo de uma opressão vaga, do absurdo e do<br />

tédio, de sua vi<strong>da</strong> (...) Freqüentemente estes doentes tentam<br />

durante muito tempo mascarar seu desespero se entorpecendo,<br />

seja pelo trabalho, pelas distrações ou pelas<br />

drogas”. (Boss & Condrau 1997, p. 31).<br />

Esta observação, ain<strong>da</strong> que se refira à reali<strong>da</strong>de de pelo<br />

menos cerca de 40 anos atrás, parece muito característica<br />

<strong>da</strong> nossa socie<strong>da</strong>de contemporânea <strong>da</strong> epidemia <strong>da</strong> depressão<br />

(Moreira, 2002). Este distúrbio <strong>da</strong> abertura para<br />

mundo do Dasein é descrito por Boss & Condrau (1997)<br />

como o tédio, em que o homem ain<strong>da</strong> que esteja aberto<br />

para o mundo enquanto ente, não o está como ser, ou seja,<br />

não deixa que lhe cheguem mensagens do mundo, não<br />

se deixa tocar, permanecendo fun<strong>da</strong>mentalmente indiferentes<br />

a tudo. Para estas pessoas o tempo é comprido,<br />

o que quer dizer que no tédio é principalmente a temporali<strong>da</strong>de<br />

que é afeta<strong>da</strong>, não existindo futuro ver<strong>da</strong>deiro<br />

ou passado rico de experiências, nem mesmo presente<br />

que tenha algum sentido.<br />

Ain<strong>da</strong> que todos estes modos de ser-doente apresentem<br />

uma perturbação <strong>da</strong> realização do caráter fun<strong>da</strong>mental<br />

do ser-humano que é seu ser-livremente-no-mundo,<br />

ao mesmo tempo em que lhe revela o mundo, para Boss<br />

& Condrau (1997) a esquizofrenia deve ser considerado<br />

o modo de ser-doente mais humano e, ao mesmo tempo,<br />

mais desumano:<br />

Justamente porque aqui se manifesta abertamente<br />

uma grave perturbação fun<strong>da</strong>mental do ser humano,<br />

isto é, em seu ser-aberto esta doença mais do que qualquer<br />

outra coisa lança uma luz sobre a natureza mais<br />

profun<strong>da</strong> de nosso existir e por isso mesmo sobre sua<br />

fragili<strong>da</strong>de. A esquizofrenia pode ser considera<strong>da</strong> uma<br />

perturbação específica do ‘poder-existir-o-ser-aberto’<br />

conforme a essência do ser-aí (p. 31).<br />

Existiria no esquizofrênico uma dupla incapaci<strong>da</strong>de:<br />

de poder se engajar totalmente no que se mostra na abertura<br />

do seu existir e de preservar seu si-mesmo capaz de<br />

manter uma relação livre com o que aparece.<br />

O esquizofrênico perde sua liber<strong>da</strong>de existencial no<br />

momento em que como ser-aí, enquanto possibili<strong>da</strong>de<br />

de responder aos numerosos significados e às<br />

diversas solicitações do que aparece em seu mundo,<br />

se sobrecarrega a tal ponto que ele não é mais capaz<br />

de responder ao que aparece como o fazem to<strong>da</strong>s as<br />

pessoas ao seu redor. Ele não é mais capaz de resistir à<br />

dissolução de seu ser na esfera de seu mundo tornado<br />

vasto demais (Boss & Condrau 1997, p. 32).<br />

Isto explicaria o fato deste modo de ser-doente aparecer,<br />

mais freqüentemente, na puber<strong>da</strong>de ou em mulheres<br />

depois <strong>da</strong> materni<strong>da</strong>de quando as exigências em<br />

relação ao outro se tornam mais fortes, para um “deixar<br />

aproximar-se” entre adultos do sexo oposto ou para o<br />

devotamento do amor materno. Boss & Condrau (1997)<br />

179 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 172-184, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

defendem a idéia de que ninguém pode ser considerado<br />

esquizofrênico e que a esquizofrenia não pode ser considera<strong>da</strong><br />

uma doença em si-mesma. Mais conveniente<br />

seria se perguntar:<br />

Esquizofrênico diante de qual situação relacional<br />

acima de suas forças? (...) O caráter patológico destes<br />

doentes reside no fato de lhes faltar uma possibili<strong>da</strong>de<br />

de existir em relação aos seres sãos. Falta-lhes acentua<strong>da</strong>mente<br />

a capaci<strong>da</strong>de de assumir as possibili<strong>da</strong>des<br />

constitutivas do seu ser-aí para tornar-se si-mesmo<br />

livre e autônomo cuja abertura para o mundo possa<br />

se manter firme face a tudo que a eles se oferece. (...)<br />

Assim, pode-se dizer que [os esquizofrênicos] existem<br />

em grande parte fora deles mesmos. São tão pouco<br />

capazes de assumir as suas possibili<strong>da</strong>des num sersi-mesmo<br />

autônomo que somente podem sentir o que<br />

se mostra a eles como algo estranho e imposto de fora.<br />

É por isso que tão freqüentemente têm a impressão<br />

de que o que a eles se oferece é ditado por ‘vozes’ exteriores<br />

e que tudo o que fazem e pensam é pensado<br />

por outra pessoa (pp. 32-33).<br />

Em outras palavras, as assim chama<strong>da</strong>s alucinações<br />

no esquizofrênico seriam fruto de uma total impossibili<strong>da</strong>de<br />

de ser-si-mesmo autônomo. Da mesma forma que<br />

nos esquizofrênicos, Boss & Condrau (1997) vêem nos<br />

neuróticos obsessivos uma perturbação <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />

existencial, de caráter defensivo tal como ocorre nas esquizoidias<br />

ou no autismo: “De fato, o que existe de mais<br />

oposto à liber<strong>da</strong>de do que a obsessão?” (p, 33). No entanto,<br />

os autores assinalam que a realização do ser-aberto e<br />

do ser-livre nos neuróticos obsessivos jamais será atingi<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> mesma maneira que nos esquizofrênicos; eles jamais<br />

são absorvidos completamente pelo percebido nem<br />

se perdem, enquanto ser-humano, totalmente nele como<br />

ocorre nos esquizofrênicos.<br />

Na medi<strong>da</strong> em que Boss desloca o entendimento <strong>da</strong><br />

doença para a compreensão <strong>da</strong> experiência do ser-doente,<br />

considera, então, a psicopatologia como redução ou per<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des constitutivas dos modos do existir<br />

humano enquanto Dasein. Assim, no ser-doente por<br />

uma perturbação na corporali<strong>da</strong>de teremos, por exemplo,<br />

as doenças psicossomáticas ou a conversão histérica; na<br />

espaciali<strong>da</strong>de teremos a agorofobia; no humor teremos a<br />

mania e a depressão, na realização do ser aberto teremos<br />

a esquizofrenia (Boss & Condrau, 1997).<br />

Ain<strong>da</strong> que Me<strong>da</strong>rd Boss seja considerado o autor na<br />

área <strong>da</strong> psiquiatria que se manteve mais próximo <strong>da</strong> proposta<br />

heideggeriana (Gonçalves, Garcia, Dantas & Ewald,<br />

2008), Loparic (2002) insiste no “fracasso <strong>da</strong> escola suíça”<br />

(referindo-se a Boss e a Binswanger) no que se refere à utilização<br />

apropria<strong>da</strong> <strong>da</strong> Analítica do Dasein de Heidegger<br />

pela psiquiatria. Para além desta discussão, é possível<br />

observar que as interessantes observações de Boss sobre<br />

os modos de ser-doente, com base nos existenciais de<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 172-184, jul-dez, 2011<br />

Virgínia Moreira<br />

Heidegger, carecem de maior profundi<strong>da</strong>de e sistematização.<br />

Além disso, o pensamento de Heidegger é infinitamente<br />

mais amplo que os existenciais, aos quais Boss<br />

parece se aferrar. Neste sentido, mesmo tendo claro que<br />

mais pesquisas sobre este assunto necessitariam ser feitas,<br />

talvez seja possível arriscar dizer que Loparic (2002)<br />

tinha razão. Só que, no caso de Binswanger, se ele não<br />

conseguiu “se apropriar adequa<strong>da</strong>mente” <strong>da</strong> Analítica do<br />

Dasein heideggeriana, acabou criando novas vertentes: a<br />

Análise Existencial e a Psicopatologia Fenomenológica.<br />

No caso de Boss, a questão parece mais complica<strong>da</strong>, merecendo<br />

pesquisas mais extensas que possam vir a esclarecer<br />

melhor esta questão.<br />

4. arthur tatossian: uma psicopatologia Contemporânea<br />

do Lebenswelt<br />

Arthur Tatossian (1929-1995) nasceu em Marseille, na<br />

França, filho de uma família de emigrantes armênios, o<br />

que segundo Jeanne Tatossian – sua esposa –, teve repercussões<br />

profun<strong>da</strong>s na sua personali<strong>da</strong>de tími<strong>da</strong> e sempre<br />

discreta. Foi o que poderia ser chama<strong>da</strong> de “uma criança<br />

superdota<strong>da</strong>”, dormia poucas horas por noite e usava<br />

as outras horas para trabalhar (Tatossian & Samuelian,<br />

2006). De formação médica, dedicou-se a neurologia e,<br />

posteriormente a psiquiatria, sendo seus artigos mais profundos<br />

os fenomenológicos (Darcourt, 2006). Ao longo<br />

de sua carreira ocupou vários cargos, tanto na docência<br />

<strong>da</strong> psicopatologia, como de chefias de serviços médicos.<br />

Trabalhou no Hospital de Marseille em 1952 e em 1959<br />

se tornou Chefe do Serviço de Neuropsiquiatria. Ocupou,<br />

ain<strong>da</strong>, vários outros cargos, entre os quais o de Médico-<br />

Chefe <strong>da</strong> Rede de Hospitais de Marseille e encarregado<br />

do curso de Psicologia na Facul<strong>da</strong>de de Medicina de<br />

Marseille, em 1961.<br />

Além de artigos e capítulos de livros deixou três publicações<br />

na França: Psychiatrie Phénomenologique, obra<br />

póstuma que reúne seus primeiros textos fenomenológicos<br />

praticamente desconhecidos visto que ele os publicava<br />

em revistas locais ou não os publicava; La vie en faute<br />

de mieux, um livro sobre a depressão, de linguagem<br />

menos acadêmica e mais acessível que, segundo Jeanne<br />

Tatossian 1 , Arthur Tatossian não valorizava muito; e<br />

Phénomenologie des Psychoses, publicado em português<br />

pela Editora Escuta em 2006.<br />

Mas, se Tatossian, após sua morte prematura aos 66<br />

anos, não deixou mais que três livros publicados (que se<br />

superam em número pela densi<strong>da</strong>de de seu texto), chama<br />

a atenção o número de pessoas – ex-alunos e colegas<br />

dele na universi<strong>da</strong>de ou no Hospital de La Timone, onde<br />

dirigiu o Serviço de Psiquiatria e de Psicologia Médica a<br />

partir de 1980, além, é claro, de Jeanne Tatossian – que<br />

1 Algumas <strong>da</strong>s informações aqui relata<strong>da</strong>s como sendo de autoria de<br />

Mme Tatossian, esposa de Arthur Tatossian, foram relata<strong>da</strong>s em<br />

conversas informais quando <strong>da</strong> i<strong>da</strong> <strong>da</strong> autora em visita a Marseille,<br />

no outono de 2001.<br />

180


A Contribuição de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian para a Psicopatologia Fenomenológica<br />

o admiravam em sua enorme sensibili<strong>da</strong>de humana, fato<br />

que pode ser observado nos prólogos e prefácios de seus<br />

livros, que não apenas mencionam a obra, mas o homem.<br />

Ele foi reconhecido não apenas pelo seu papel desempenhado<br />

no pensamento fenomenológico como na prática<br />

psiquiátrica do seu cotidiano clínico. Nunca quis ser considerado<br />

um mestre nem criar escolas, pois achava que a<br />

fenomenologia já se “vivia” e não poderia se resumir em<br />

receitas (Tatossian & Samuelian, 2006). A possibili<strong>da</strong>de<br />

de reunir esta sensibili<strong>da</strong>de, juntamente com sua grande<br />

capaci<strong>da</strong>de de trabalho (tinha o hábito de dormir quatro<br />

horas por noite, trabalhando durante as outras horas),<br />

além de sua reconheci<strong>da</strong> geniali<strong>da</strong>de (vide, por exemplo, o<br />

fato de ter aprendido alemão sozinho a fim de ler os originais<br />

de Husserl, Heidegger e outros autores alemães para<br />

a sua tese de Doutorado em Medicina, de 1957, intitula<strong>da</strong><br />

Étude Phénomenologique d’un cas de esquizophrenie<br />

paranöide, publicado postumamente no livro Psychiatrie<br />

Phénomenologique, em 1997, faz do pensamento de Arthur<br />

Tatossian uma psicopatologia fenomenológica <strong>da</strong> clínica<br />

– sua preocupação prioritária era a pessoa em sofrimento,<br />

o paciente; para a clínica – entendia que o que de<br />

mais útil a fenomenologia poderia oferecer à psiquiatria<br />

seria “uma comunicação compreensiva com o Outro”<br />

(Tatossian & Samuelian, 2006, p. 354).<br />

4.1 Uma Psicopatologia Fenomenológica <strong>da</strong> Clínica e<br />

para a Clínica<br />

Um aspecto que salta aos olhos ao leitor <strong>da</strong> obra de<br />

Arthur Tatossian é a enorme facili<strong>da</strong>de com que ele passeia<br />

através <strong>da</strong>s obras dos vários autores <strong>da</strong> fenomenologia:<br />

Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Scheler,<br />

bem como autores que contribuem diretamente para<br />

a tradição fenomenológica em psicopatologia: Jaspers,<br />

Binswanger, Minkowski, Blankenburg, Tellenbach, Von<br />

Gebsattel, Van Den Berg, Kimura, entre outros.<br />

Seus escritos consistem em um constante diálogo<br />

com estes representantes <strong>da</strong> fenomenologia, o que faz de<br />

sua obra uma psicopatologia fenomenológica contemporânea,<br />

na medi<strong>da</strong> em que integra em um só texto, em um<br />

momento histórico um pouco mais avançado – segun<strong>da</strong><br />

metade do século XX até a atuali<strong>da</strong>de – grandes nomes<br />

<strong>da</strong> fenomenologia. A partir deste diálogo crítico com alguns<br />

dos clássicos <strong>da</strong> psicopatologia fenomenológica,<br />

Tatossian escreve uma psicopatologia fenomenológica<br />

mais amadureci<strong>da</strong>, em que:<br />

A fenomenologia utiliza<strong>da</strong> em psiquiatria não é a<br />

banal aplicação de uma teoria filosófica, mas antes,<br />

uma forma de ‘questionar’ e de compreender o doente<br />

mental; que realiza uma fenomenologia que sabe distinguir<br />

sintoma de fenômeno e tomando consciência<br />

<strong>da</strong> importância do ‘modo de ser-no-mundo’ (...) não<br />

esquecendo que o doente é um ser que sofre e que o<br />

melhor a fazer é reconfortá-lo em vez de elaborar hipóteses,<br />

certamente muito sedutoras, mas pouco úteis<br />

na prática clínica cotidiana (Tatossian & Samuelian,<br />

2006, p. 354-355).<br />

A preocupação em desenvolver uma psicopatologia<br />

<strong>da</strong> clínica e para a clínica é central no pensamento de<br />

Tatossian. Logo no início de Fenomenologia <strong>da</strong>s Psicoses<br />

ele explicita sua posição:<br />

Talvez o presente estudo se justifique por apresentar,<br />

sem pretensão de originali<strong>da</strong>de, mas com a preocupação<br />

<strong>da</strong> fideli<strong>da</strong>de a uma visão de conjunto a mais<br />

completa possível, o quadro <strong>da</strong> fenomenologia psiquiátrica<br />

tal como ela tem sido pratica<strong>da</strong> pelos psiquiatras<br />

e não como poderia ou deveria sê-lo a partir de tal<br />

filosofia (Tatossian, 2006, p. 23).<br />

E mais adiante:<br />

Se ele [o psiquiatra] deseja atingir a experiência propriamente<br />

fenomenológica <strong>da</strong> doença mental, não<br />

pode se isolar com o filósofo transcendental em sua<br />

torre de marfim. Ao trabalho especulativo sobre a<br />

literatura especializa<strong>da</strong>, que foi o método de Merleau-<br />

Ponty e de outros também, deve preferir obrigatoriamente<br />

o comércio direto com o que está em questão:<br />

a loucura e o louco (Tatossian, 2006, p. 29).<br />

A preocupação primordial de Tatossian com a clínica<br />

leva-o a se posicionar criticamente em relação ao “quadrunvirato<br />

fenomenológico dos anos 1920” – Binswanger,<br />

Minkowski, Straus e Von Gebsattel –, criticando a<br />

Binswanger, um de seus constantes interlocutores, por<br />

suas habituais e, em sua opinião, excessivas exposições<br />

teóricas e análises com considerações metodológicas.<br />

Acreditava que Minkowski, Straus e Von Gebsattel permaneciam<br />

mais próximos <strong>da</strong> experiência clínica, o que<br />

também acontecia na psiquiatria mais recente, onde apesar<br />

<strong>da</strong> via segui<strong>da</strong> por Binswanger, seria a imbricação<br />

mais íntima entre metodologia e análise de casos clínicos<br />

que predominava (Tatossian, 2006).<br />

Da mesma forma, Tatossian critica o que ele chama<br />

de “reviravolta fenomenológica” do pensamento de<br />

Binswanger que, havendo partido do Dasein de Heidegger<br />

para pensar a psicopatologia, como que retrocede à fenomenologia<br />

<strong>da</strong> consciência de Husserl. Referindo-se a obra<br />

de Binswanger, Melancolia e Mania, afirma: “A análise<br />

existencial de Heidegger permanece, sem dúvi<strong>da</strong>, como<br />

o afirma no prefácio, o ponto de parti<strong>da</strong>, mas se apaga no<br />

corpo do trabalho diante <strong>da</strong> fenomenologia de Husserl,<br />

sob a sua forma mais técnica” (Tatossian, 2006, p. 172).<br />

Para Tatossian, distanciar-se do Dasein como horizonte<br />

metodológico <strong>da</strong> clínica, traz graves e profun<strong>da</strong>s implicações,<br />

<strong>da</strong>do que significa perder de vista a idéia dos estados<br />

psíquicos enquanto transformação <strong>da</strong> estrutura onto-<br />

181 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 172-184, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

lógica primordial do ser-no-mundo, independente de um<br />

modo de ser patológico. Na fenomenologia transcendental,<br />

os estados psíquicos estariam explicitamente presentes<br />

enquanto doença mental em sua constituição:<br />

A passagem <strong>da</strong> Daseinsanalyse à fenomenologia<br />

transcendental comporta, assim, ir de uma atitude<br />

profun<strong>da</strong>mente impregna<strong>da</strong> pela historici<strong>da</strong>de humana<br />

a uma outra totalmente a-histórica e, mais grave, de<br />

uma perspectiva que, com Heidegger, teria superado a<br />

distinção sujeito/objeto a uma outra que não a supera<br />

mais, já que fala de doenças. A solução é sem dúvi<strong>da</strong><br />

que a perspectiva <strong>da</strong> fenomenologia não exclui aquela<br />

<strong>da</strong> Daseinsanalyse (Tatossian, 2006, p. 173).<br />

Ou seja, trata-se de pensar em termos de uma complementari<strong>da</strong>de<br />

entre as propostas de Husserl e de Heidegger<br />

para se pensar a psicopatologia.<br />

4.2 O Lebenswelt como Foco na Psicopatologia Fenomenológica<br />

Contemporânea<br />

Tatossian (2006) entende que o último Husserl quis<br />

mostrar a capaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fenomenologia de incorporar a<br />

existência e o que havia sido colocado por Heidegger em<br />

Ser e Tempo. Para isto desenvolveu mais amplamente o<br />

conceito de Lebenswelt que, por sua vez irá, posteriormente,<br />

caracterizar a fenomenologia existencial de Merleau-<br />

Ponty “e que interessa à psicopatologia fenomenológica<br />

em sua referência simultânea a Husserl e Heidegger”<br />

(p. 87). Merleau-Ponty, um representante contemporâneo<br />

do pensamento fenomenológico, tem o conceito de<br />

Lebenswelt como fio condutor de todo o seu pensamento<br />

ambíguo (Bidney, 1989).<br />

Para além de uma complementari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Fenomenologia<br />

e <strong>da</strong> Daseinsanalyse, defendi<strong>da</strong> por Kuhn,<br />

Tatossian (2006) vai, então, preferir a pista deixa<strong>da</strong> por<br />

Husserl e desenvolvi<strong>da</strong> por Merleau-Ponty: o Lebenswelt.<br />

Cita a Bröekman para quem a análise heideggeriana seria<br />

uma análise do Lebenswelt e a Merleau-Ponty, em<br />

Fenomenologia <strong>da</strong> Percepção quando este afirma que<br />

tudo em Heidegger havia partido de uma indicação de<br />

Husserl, o Lebenswelt. Com base no desenvolvimento<br />

deste conceito é que Tatossian justifica a “reviravolta” de<br />

Binswanger à fenomenologia husserliana: “É por isso que<br />

a fenomenologia psiquiátrica atual, impulsiona<strong>da</strong> pelo<br />

próprio Binswanger se orientou em direção a Husserl em<br />

sua obra tardia...” (p. 85).<br />

Segundo Tatossian (2006), o Lebenswelt, tal como conceituado<br />

nos textos do último Husserl – <strong>da</strong> Experiência e<br />

Julgamento e <strong>da</strong> Krisis – significa uma reali<strong>da</strong>de primária<br />

<strong>da</strong> nossa experiência imediata, o mundo <strong>da</strong>s significações<br />

tal como ele se apresenta à ação humana. Este mundo é,<br />

antes de tudo, o mundo do indivíduo humano, ou seja, é<br />

o segmento <strong>da</strong> existência humana vivi<strong>da</strong> pelo indivíduo<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 172-184, jul-dez, 2011<br />

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em sua unici<strong>da</strong>de sendo, assim, o lugar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> primária<br />

do indivíduo, caracterizado essencialmente por sua<br />

familiari<strong>da</strong>de – o meu mundo – um horizonte interno <strong>da</strong><br />

experiência. “Os conteúdos podem variar de uma socie<strong>da</strong>de<br />

a outra e neste sentido há os Lebenswelten, mas a<br />

forma do Lebenswelt é única (...) É porque ‘meu’mundo é<br />

sempre assim ‘nosso’mundo, um mundo intersubjetivo,<br />

um mundo comum” (Tatossian, 2006, p. 88).<br />

O Lebenswelt, aqui, é ain<strong>da</strong> o mundo correlativo do<br />

mundo natural, mas agora no nível <strong>da</strong> experiência préintencional,<br />

não mais no nível intencional e conceitual tal<br />

como descrito no jovem Husserl. O Husserl tardio revela<br />

as estruturas pré-predicativas <strong>da</strong> experiência:<br />

O Lebenswelt é o mundo percebido por baixo <strong>da</strong>s<br />

construções do pensamento. O eidos está presente<br />

aqui, mas não como essência fecha<strong>da</strong>, inata e fixa<strong>da</strong>,<br />

mas como estrutura de sentido aberta, histórica e,<br />

portanto, de vali<strong>da</strong>de forçosamente transitória, assintótica<br />

<strong>da</strong> experiência humana vivi<strong>da</strong> (Tatossian,<br />

2006, p. 88-89).<br />

Neste sentido, na medi<strong>da</strong> em que se encontra no domínio<br />

do pré-reflexivo, não cabe a distinção entre consciente<br />

e inconsciente. Para Tatossian (2006), a psicopatologia<br />

deve visar o Lebenswelt do doente em duas dimensões de<br />

sua experiência: por um lado trata-se de uma experiência<br />

pré-teórica e pré-objetiva que temos diante do doente<br />

e, por outro, parte <strong>da</strong> questão de como se constitui um<br />

Lebenswelt particular que se imprime sobre seu vivido,<br />

sua experiência, sua ação, sua forma de se apresentar no<br />

mundo. O Lebenswelt<br />

(...) existe como mundo concreto e cotidiano, é sempre<br />

individual, é sempre ‘meu’mundo, sendo também<br />

totalmente ‘nosso’ mundo porque [é] impregnado de<br />

historici<strong>da</strong>de e intersubjetivi<strong>da</strong>de (...) o Lebenswelt<br />

não pode ser compreendido como pura derrelição e<br />

implica a entra<strong>da</strong> em cena <strong>da</strong> estrutura de projeto de<br />

ser humano” (Tatossian, 2006, p. 207).<br />

4.3 O Tempo Vivido<br />

O conceito de Lebenswelt é utilizado ao longo <strong>da</strong><br />

Fenomenologia <strong>da</strong>s Psicoses, seja na descrição e compreensão<br />

<strong>da</strong>s diferentes enfermi<strong>da</strong>des, seja no diálogo<br />

com outros autores <strong>da</strong> psicopatologia fenomenológica.<br />

Diretamente liga<strong>da</strong> ao vivido no Lebenswelt é que a<br />

questão <strong>da</strong> temporali<strong>da</strong>de ocupou um lugar de destaque<br />

no pensamento de Tatossian, sem que com isso ele se<br />

descolasse <strong>da</strong>s outras dimensões do vivido humano tal<br />

como espaciali<strong>da</strong>de, corporali<strong>da</strong>de, abertura ao mundo<br />

e assim por diante.<br />

A temporali<strong>da</strong>de esteve intimamente relaciona<strong>da</strong> a<br />

sua própria clínica, onde Tatossian deu especial aten-<br />

182


A Contribuição de Jaspers, Binswanger, Boss e Tatossian para a Psicopatologia Fenomenológica<br />

ção a esta questão, sempre muito atento à forma como<br />

o tempo era vivenciado por seus pacientes. Este tema –<br />

amplamente desenvolvido em Binswanger, Minkowski<br />

e Tellenbach – fez com que ele estivesse em constante<br />

diálogo com estes autores. O tempo vivido, seja para o<br />

indivíduo doente ou sadio, não é o tempo mensurável,<br />

que pode ser medido objetivamente – “o tempo do mundo<br />

exterior ao sujeito” –, mas é o tempo imanente ao sujeito,<br />

o tempo dele. Para Tatossian (2006), os indivíduos<br />

“normais” tem o tempo dominado pela noção de devir, de<br />

futuro, enquanto que o indivíduo doente vivencia alterações<br />

no tempo vivido: o melancólico, por exemplo, vive,<br />

passivamente, uma estagnação do tempo pela inibição do<br />

devir e a impossibili<strong>da</strong>de de antecipações, ficando preso<br />

ao passado; o maníaco também vivencia esta mesma estagnação<br />

embora ativamente, como que querendo antecipar<br />

o futuro, e assim por diante.<br />

O tempo vivido é o tempo do Lebenswelt: imanente<br />

e transcendente, consciente e inconsciente, singular e<br />

universal. E, nesse sentido, é fun<strong>da</strong>mento de um modo<br />

de ser-no-mundo sadio ou patológico:<br />

No homem normal o primado do futuro faz do vivido<br />

temporal um vivido de poder – poder de transformar<br />

o mundo pela ação, e a si mesmo pelo alargamento<br />

<strong>da</strong> pessoa. A imobilização do tempo vivido tem por<br />

corolário a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> categoria do possível – não como<br />

possibili<strong>da</strong>de lógica, vazia, mas como possibili<strong>da</strong>de<br />

concretamente ‘minha’, como capaci<strong>da</strong>de (p. 127).<br />

Segundo Tatossian & Samuelian (2006) a significação<br />

particular que Tatossian dá ao tempo vivido permite<br />

compreender sua tolerância e paciência em relação aos<br />

outros, o que repercutiu na sua quali<strong>da</strong>de de relação com<br />

seus pacientes. Para ele:<br />

(...) o tempo é a escola <strong>da</strong> experiência, experiência do<br />

fenômeno. A identi<strong>da</strong>de do sujeito não é mais que o<br />

equilíbrio entre identi<strong>da</strong>de do eu e identi<strong>da</strong>de do papel;<br />

é, portanto, um equilíbrio entre a constituição do outro<br />

por si e a constituição de si pelo outro. Se esse equilíbrio<br />

não é atingido, ou se subitamente é posto em dúvi<strong>da</strong>,<br />

a vi<strong>da</strong> cotidiana não pode ser vivi<strong>da</strong> senão como uma<br />

impostura evidente, e os distúrbios do comportamento<br />

aparecem (...) É, portanto, nesta situação paradoxal em<br />

que se encontra colocado o sujeito que ele deve construir<br />

o mundo fora dele, que lhe é ao mesmo tempo<br />

imanente e transcendente (Tatossian, 2006, p. 356).<br />

É neste sentido que a psicopatologia fenomenológica<br />

de Arthur Tatossian não é uma explicação, mas um “ver”<br />

<strong>da</strong> experiência psiquiátrica, sendo em si empírica e apriórica.<br />

A contribuição singular do pensamento de Arthur<br />

Tatossian tem um duplo sentido: aliado ao fato de, por se<br />

encontrar em um momento histórico posterior, Tatossian<br />

ter tido a possibili<strong>da</strong>de de construir seu pensamento no<br />

diálogo com os autores clássicos <strong>da</strong> fenomenologia <strong>da</strong> primeira<br />

metade do século XX, ele atualiza esta vertente na<br />

medi<strong>da</strong> em que procura desenvolver seu pensamento em<br />

torno do conceito de Lebenswelt. Cria-se com Tatossian<br />

uma psicopatologia fenomenológica contemporânea.<br />

Considerações finais<br />

A psicopatologia fenomenológica não pode se <strong>da</strong>r de<br />

outra forma que não seja a existencial. É impossível uma<br />

psicopatologia fenomenológica transcendental, pois esta<br />

não é uma ciência natural, que pode ter um método eidético<br />

transcendental puro, tal como era o projeto do<br />

primeiro Husserl, mas uma ciência do empírico, do outro,<br />

do ser-no-mundo, ou do Lebenswelt. Como bem lembra<br />

Merleau-Ponty, no prefácio <strong>da</strong> “Fenomenologia <strong>da</strong><br />

Percepção”: a essência está na existência. Este é o eixo<br />

central que, de alguma maneira, atravessa o pensamento<br />

de ca<strong>da</strong> um destes quatro grandes nomes <strong>da</strong> psicopatologia<br />

fenomenológica.<br />

Karl Jaspers, ao introduzir o método fenomenológico<br />

em seu trabalho de descrever e compreender uma psicopatologia<br />

geral inaugura uma nova área do saber – a psicopatologia<br />

– que a partir de então se preocupará tanto<br />

com a reali<strong>da</strong>de subjetiva quanto com a reali<strong>da</strong>de objetiva<br />

de pessoas que sofrem com transtornos mentais. Ludwig<br />

Binswanger, com sua <strong>da</strong>seinsanalyse, que passou a se<br />

chamar análise existencial, inaugura a tradição <strong>da</strong> psicopatologia<br />

fenomenológica, cuja preocupação primordial<br />

não é mais o psíquico ou a doença, mas o homem.<br />

Me<strong>da</strong>rd Boss desenvolve, ou pelo menos dá os primeiros<br />

passos, na direção de uma psicopatologia mais puramente<br />

inspira<strong>da</strong> no Dasein de Heidegger. Finalmente, Artur<br />

Tatossian, a partir do diálogo com os filósofos e psiquiatras<br />

representantes <strong>da</strong> tradição fenomenológica em psiquiatria,<br />

descreve uma psicopatologia fenomenológica<br />

contemporânea do Lebenswelt.<br />

Quatro grandes nomes, quatro contribuições singulares<br />

à psicopatologia fenomenológica existencial.<br />

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Virginia Moreira - Psicoterapeuta, Doutora em Psicologia Clínica<br />

pela Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de São Paulo e Pós-Doutora em<br />

Antropologia Médica pela Harvard University. É Professora Titular<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Fortaleza e Affiliated Faculty <strong>da</strong> Harvard Medical<br />

School. Endereço para correspondência: APHETO – Laboratório de<br />

Psicopatologia e Psicoterapia Humanista Fenomenológica Crítica.<br />

Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universi<strong>da</strong>de de Fortaleza.<br />

Av. Washington Soares, nº1321 – Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail:<br />

virginiamoreira@unifor.br; virginia_moreira@hms.harvard.edu<br />

Recebido em 30.03.2011<br />

Aceito em 25.07.2011<br />

184


A Clínica Psicológica Infantil em uma Perspectiva Existencial<br />

a ClíniCa pSiColÓgiCa infantil em<br />

uma peRSpeCtiva exiStenCial 1<br />

The children’s psychological clinic in an existential perspective<br />

La clínica psicológica de niños en una perspectiva existencial<br />

an a ma r i a lop e z Ca lv o d e Fei j o o<br />

Resumo: Neste artigo, tentaremos responder aos questionamentos acerca <strong>da</strong> viabili<strong>da</strong>de de uma clínica psicológica com base na<br />

filosofia <strong>da</strong> existência. Iniciamos assinalando aspectos que apontam para a possibili<strong>da</strong>de de uma clínica psicológica infantil em<br />

uma perspectiva existencial. Para tanto, consideraremos que o que está em questão na criança, ou seja, seu caráter de indeterminação,<br />

de liber<strong>da</strong>de e de cui<strong>da</strong>do, em na<strong>da</strong> difere do adulto. E que os aspectos essenciais na postura do clínico são a atitude<br />

fenomenológica e a preocupação libertadora. Desta forma, o psicólogo clínico, prescindindo de qualquer posicionamento teórico<br />

e <strong>da</strong> respectiva categorização acerca do comportamento infantil, pode acercar-se do fenômeno tal como esse se apresenta.<br />

Palavras-chave: Clínica infantil; Fenomenologia; Filosofia <strong>da</strong> existência; Heidegger.<br />

Abstract: In this article we will try to show a child psychological clinic is possible under the existential perspective. So, for<br />

this we will start by considering that what is at issue in the child, i.e. their character of indetermination, freedom and care differs<br />

nothing from adult. And that the essential aspects of posture are clinical phenomenological attitude and liberating concern.<br />

Thus, the clinical psychologist - besides any theoretical position and categorization about child’s behavior - can get closer<br />

to the phenomenon as it presents itself.<br />

Keywords: Child clinics; Phenomenology; Philosophies of existence; Heidegger.<br />

Resumen: En este artículo intentaremos mostrar elementos que hacen viable la clínica psicológica en una perspectiva existencial.<br />

Por lo tanto, vamos a empezar por considerar lo que está presente en el niño, es decir, su carácter de indeterminación y<br />

libertad que en na<strong>da</strong> difiere del adulto. Y que los aspectos esenciales de la postura clínica son la actitud fenomenológica y la<br />

preocupación libertadora. Así, el psicólogo clínico, sin cualquier posicionamiento teórico y sin la categorización del comportamiento<br />

infantil, se acerca del fenómeno tan como éste se presenta a él.<br />

Palabras clave: Clínica com niños; Fenomenología; Filosofías de la existencia; Heidegger.<br />

introdução<br />

Apresentar a clínica psicológica em uma perspectiva<br />

existencial consiste em uma tarefa desafiadora na medi<strong>da</strong><br />

em que muitos estudiosos <strong>da</strong> psicologia consideram<br />

a relação <strong>da</strong> Filosofia com a Psicologia algo improvável.<br />

Por esse motivo, consideramos que, muito mais do que<br />

convencer os nossos leitores <strong>da</strong> viabili<strong>da</strong>de desta relação,<br />

devemos problematizá-la. Porém, como não só estabeleceremos<br />

um diálogo entre a filosofia <strong>da</strong> existência e<br />

a Psicologia, mas também traremos à discussão a clínica<br />

psicológica e a infância, consideramos que primeiramente,<br />

teremos muito mais elementos a serem clarificados,<br />

para depois pensarmos na viabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> clínica psicológica<br />

existencial na primeira etapa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. A tarefa<br />

então, para ser executa<strong>da</strong>, dependerá de seguir um percurso<br />

até podermos dispor dos elementos necessários à<br />

problematização <strong>da</strong> proposta e a consequente discussão<br />

1 Trabalho apresentado ao II Congresso Sul Brasileiro de Fenomenologia<br />

& II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná (2-4 de<br />

junho de 2011), Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná (UFPR).<br />

de sua viabili<strong>da</strong>de. Importante aqui é trazer como esses<br />

filósofos – mais especificamente Heidegger –, interpretam<br />

temas tais como ser-aí, indeterminação, liber<strong>da</strong>de e<br />

responsabili<strong>da</strong>de. E, ain<strong>da</strong>, de que modo eles dialogam<br />

polemicamente com as classificações diagnósticas muito<br />

próprias <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de.<br />

Para a realização de nossa tarefa, primeiramente, teremos<br />

que nos deslocar <strong>da</strong>s teorias psicológicas tradicionais<br />

acerca do desenvolvimento <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de e<br />

<strong>da</strong> aprendizagem <strong>da</strong> criança, e nos reconduzirmos ao fenômeno<br />

<strong>da</strong> experiência infantil tal como ela se mostra.<br />

Esse modo de reconduzir-se ao fenômeno denomina-se<br />

Fenomenologia.<br />

Para exercitarmos uma outra visa<strong>da</strong> sobre a experiência<br />

em questão, traremos alguns esclarecimentos sobre<br />

o modo como os filósofos <strong>da</strong> existência, por meio de um<br />

posicionamento fenomenológico, discutem e posicionam<br />

o ser <strong>da</strong> criança. Os três filósofos <strong>da</strong> existência mais discutidos<br />

– Kierkegaard, Heidegger e Sartre – partem <strong>da</strong><br />

noção de que a existência acontece desde o início pelo<br />

seu caráter de indeterminação e negativi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>í o fato<br />

185 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 185-192, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> angústia e do desespero serem constitutivos<br />

do existir. E, já ao nascer, a indeterminação traz<br />

em si essas outras condições. Logo, a criança – desde seu<br />

nascimento – constitui-se, respectivamente como espírito<br />

(Kierkegaard), como ser-aí (Heidegger) ou como para-si<br />

(Sartre). Ou ain<strong>da</strong>, em uma abertura, indeterminação e<br />

negativi<strong>da</strong>de que estarão presentes em to<strong>da</strong> a sua existência.<br />

É no decorrer de sua vi<strong>da</strong> que a criança tomará para<br />

si o seu modo de ser, em sua incompletude e sempre em<br />

jogo com as determinações do mundo.<br />

A partir <strong>da</strong> filosofia <strong>da</strong> existência, buscamos o que<br />

acontece frente à indeterminação e negativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> existência.<br />

Já que na<strong>da</strong> a princípio determina o homem, como<br />

ele se constitui? Como ele se determina? Trata-se então<br />

de uma tabula rasa? Para desenvolver essas questões,<br />

teremos que trazer à baila a discussão acerca do caráter<br />

de imanência <strong>da</strong> existência, <strong>da</strong> co-originali<strong>da</strong>de homem/<br />

mundo, de ter de ser em abertura, em que o existente<br />

torna-se responsável por constituir-se no mundo, desse<br />

ser que é responsável pela sua existência. Iniciaremos,<br />

para isto, com esclarecimentos sobre a noção de intencionali<strong>da</strong>de<br />

tal como introduzi<strong>da</strong> e amplamente estu<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

por Husserl e de seus desdobramentos em Heidegger<br />

com a noção de ser-aí. Por fim, trataremos de que modo<br />

acontecem na factici<strong>da</strong>de, os processos de atribuição de<br />

identi<strong>da</strong>de, e de como tal procedimento acaba por resultar,<br />

em primeiro lugar, em escapar do caráter de negativi<strong>da</strong>de<br />

e indeterminação.<br />

Embora o homem ten<strong>da</strong> a escapar a sua negativi<strong>da</strong>de<br />

e indeterminação, buscando uma identi<strong>da</strong>de, ao mesmo<br />

tempo tenta escapulir <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de que o outro lhe<br />

atribui – por um clamor de sua liber<strong>da</strong>de. Esses processos<br />

identificatórios acabam por alicerçar as categorizações<br />

e os diagnósticos tão frequentes na atuali<strong>da</strong>de.<br />

Diagnósticos que muitas vezes aliviam a angústia frente<br />

à indeterminação, mas retira do homem a responsabili<strong>da</strong>de<br />

pelos seus atos e escolhas. Por fim, além do mundo<br />

passar a justificá-los, também os tutela. Essa discussão<br />

em Heidegger (1927/1989) vai dirigir-se ao modo que ele<br />

interpreta a li<strong>da</strong> com os utensílios. Dado como esta se<br />

dá por meio <strong>da</strong>s determinações dos objetos, tendemos<br />

a nos compreender do mesmo modo que compreendemos<br />

aquilo que manuseamos, logo também como se nos<br />

constituíssemos por meio de determinações e sentidos<br />

previamente <strong>da</strong>dos.<br />

Após esclarecermos as questões acerca <strong>da</strong> constituição<br />

<strong>da</strong> existência, discutiremos a viabili<strong>da</strong>de de uma clínica<br />

psicológica existencial com crianças. Sabemos que<br />

Heidegger (1987/2001) apenas refere-se à clínica psicológica<br />

nos Seminários de Zollikon. Mas, por outro lado, sabemos<br />

também que a tentativa de articular a Fenomenologia<br />

hermenêutica com a clínica psicológica <strong>da</strong>ta dos meados<br />

do século XX, com dois proeminentes psiquiatras: Ludwig<br />

Binswanger e Me<strong>da</strong>rd Boss, que mesmo pouco estu<strong>da</strong>dos<br />

(principalmente, aqui no Brasil), jamais foram esquecidos.<br />

A questão que se impõe consiste em perguntar sobre<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 185-192, jul-dez, 2011<br />

Ana M. L. C. Feijoo<br />

o risco iminente de traduzir o pensamento filosófico em<br />

termos de mais uma disciplina. E como tal, acabar por<br />

reduzir as reflexões filosóficas em um produto palpável,<br />

intercambiável e técnico. Mas, se não é isso, o que queremos?<br />

Como fazer para que não aconteçam essas reduções?<br />

Devemos manter-nos, com muito esforço, no campo<br />

de questionamentos <strong>da</strong> clínica psicológica e não no<br />

<strong>da</strong>s certezas. Assim, mantemo-nos em um espaço em que<br />

não importa o numérico, os resultados, as informações e<br />

as teorias. Importa o deixar-se corresponder ao essencial<br />

em uma clínica infantil.<br />

Por fim, despenderemos de todo esforço para apresentar<br />

os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> filosofia <strong>da</strong> existência, com<br />

um maior detalhamento <strong>da</strong>s considerações heideggerianas,<br />

tentando não recair em uma disciplina ou em uma<br />

nova técnica que nos diga como devemos proceder para<br />

obtermos resultados efetivos e eficazes. Para tanto, iniciaremos<br />

apresentando aquilo o que caracteriza uma filosofia<br />

<strong>da</strong> existência.<br />

A filosofia <strong>da</strong> existência consiste em não partir de<br />

pressupostos de que a constituição do homem já está<br />

apriori <strong>da</strong><strong>da</strong>, seja pela constituição biológica, psíquica ou<br />

pelos condicionamentos ambientais. Nesses três pressupostos,<br />

o homem, já ao nascer, apresenta-se passivo frente<br />

a estas determinações. A filosofia existencial defende o<br />

caráter de indeterminação <strong>da</strong> existência, a partir do que<br />

esta se constitui. Logo, é no existir, em sua articulação<br />

homem/mundo que a existência acontece. Este modo de<br />

articular à existência humana é expressa na máxima de<br />

Sartre (1943/1997) de que “a existência precede a essência”;<br />

afirmativa esta que, mesmo critica<strong>da</strong> por Heidegger<br />

(1947/1987), não deixa de tornar clara a situação de indeterminação<br />

<strong>da</strong> existência.<br />

o método fenomenológico e a investigação do Ser<br />

<strong>da</strong> Criança<br />

Heidegger (1947/1987), ao tecer considerações acerca<br />

do sentido <strong>da</strong> existência nos primeiros anos de vi<strong>da</strong>,<br />

assume uma atitude fenomenológica para discorrer sobre<br />

o ser-aí <strong>da</strong> criança. Para tanto, vai suspender to<strong>da</strong> e<br />

qualquer pressuposição teórica - seja <strong>da</strong> Psicologia ou <strong>da</strong><br />

Biologia - acerca do comportamento infantil. E assim poder<br />

deixar que o sentido do fenômeno se dê no próprio<br />

campo de mostração deste fenômeno. Husserl (1952/ 2007)<br />

vai denominar este posicionamento referente àquilo que<br />

se mostra de atitude antinatural. Esta consiste em reduções<br />

fenomenológicas, exercício que requer um esforço<br />

incessante para alcançar o fenômeno, deixando para<br />

trás to<strong>da</strong>s as pressuposições sobre o mesmo. Ain<strong>da</strong> de<br />

Husserl, Heidegger manteve a tese de que a consciência<br />

não pode ser toma<strong>da</strong> a partir de uma concepção de que<br />

esta se constitui como substância e de que se encontra<br />

espacial e temporalmente determina<strong>da</strong>. Husserl confere à<br />

consciência uma imanência, logo por seu caráter de inten-<br />

186


A Clínica Psicológica Infantil em uma Perspectiva Existencial<br />

cionali<strong>da</strong>de, encontra-se sempre ‘dirigi<strong>da</strong> a’...Heidegger<br />

denomina então de Dasein (ser-aí) a este campo de imanência<br />

onde a existência se dá.<br />

A Psicologia dispõe de diferentes teorias do desenvolvimento<br />

infantil que muitas vezes servem de base para<br />

a compreensão do modo de ser <strong>da</strong> criança por meio dos<br />

critérios de normali<strong>da</strong>de e ajustamento, podendo-se assim<br />

prescrever os comportamentos inadequados, desajustados,<br />

enfim fora dos padrões estabelecidos pelo numérico<br />

ou qualitativo. Assumir uma postura fenomenológica<br />

frente ao fenômeno consiste em suspender qualquer<br />

posicionamento ontológico, seja <strong>da</strong> ciência ou do senso<br />

comum sobre as coisas, fenômenos. Sem qualquer posicionamento<br />

ontológico prévio acerca do comportamento<br />

<strong>da</strong>s crianças, é possível assim se aproximar <strong>da</strong>quele modo<br />

que se mostra em sua expressão singular.<br />

o Caráter de indeterminação <strong>da</strong> existência: Cui<strong>da</strong>do<br />

e liber<strong>da</strong>de<br />

Cabe esclarecer que liber<strong>da</strong>de, na perspectiva existencial,<br />

diz respeito ao fato <strong>da</strong> indeterminação <strong>da</strong> existência,<br />

o que torna o homem responsável por aquilo que<br />

fizer de si. A indeterminação, a liber<strong>da</strong>de e a angústia<br />

são temas presentes nos três grandes representantes <strong>da</strong><br />

filosofia, que se voltam para a existência, anteriormente<br />

mencionados. Kierkegaard (1842/2010) refere-se à posição<br />

psicológica de liber<strong>da</strong>de como sendo a posição que o homem<br />

se apresenta frente a sua indeterminação e respectiva<br />

angústia. À tentativa de escapar <strong>da</strong> mobilização <strong>da</strong><br />

angústia, Kierkegaard denomina de posição psicológica<br />

de não-liber<strong>da</strong>de, na qual o homem tenta a qualquer preço<br />

posicionar-se como se ele fosse determinado por algo que<br />

transcende seu existir. Heidegger (1927/1989) denomina<br />

essa situação de cui<strong>da</strong>do, que consiste em tomar o ser-aí<br />

como aquele que sempre tem de ser, e assim ele tem de<br />

assumir a tutela por sua existência. Sartre (1943/1997) diz<br />

que estamos fa<strong>da</strong>dos à liber<strong>da</strong>de. Logo, a criança, ser-aí,<br />

para-si que desde sempre é um existente, não prescinde<br />

de seu caráter de indeterminação, liber<strong>da</strong>de e responsabili<strong>da</strong>de<br />

por sua existência e a tentativa de fugir dessa<br />

condição é o que muitas vezes mobiliza a criança e seus<br />

pais a buscarem psicoterapia.<br />

A liber<strong>da</strong>de e a responsabili<strong>da</strong>de na perspectiva existencial<br />

dizem respeito ao caráter de indeterminação <strong>da</strong><br />

existência e ao fato de que qualquer que seja a etapa <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, ca<strong>da</strong> um tem de cui<strong>da</strong>r de sua existência. Os filósofos<br />

<strong>da</strong> existência apontam para a indeterminação<br />

como o caráter mais próprio do existir. Kierkegaard, em<br />

O conceito de angústia, esclarece a situação de indeterminação<br />

do homem como marca <strong>da</strong> existência humana.<br />

A este respeito, diz:<br />

O surgimento <strong>da</strong> angústia condensa o fulcro de to<strong>da</strong><br />

a questão. O ser humano é uma síntese de corpo e<br />

alma; esta apenas se torna inimaginável se ambos os<br />

elementos não se reunirem em um terceiro. O terceiro<br />

é o espírito. No estado de inocência, o homem não é<br />

apenas um animal e, finalmente, e se alguma vez o<br />

fosse, em qualquer instante de sua existência, nunca<br />

se tornaria homem. Assim o espírito já está presente,<br />

ain<strong>da</strong> que em um estado de imediati<strong>da</strong>de, de sonho.<br />

(Kierkegaard, 1842/2010, p. 47)<br />

O pensador dinamarquês responde prontamente a pergunta<br />

que ele mesmo colocou: “Qual é, portanto, a relação<br />

do homem com a potência ambígua? Qual é a relação do<br />

espírito com ele mesmo e com sua condição? A relação<br />

é a angústia.” (ibid, p. 47) Para este filósofo, aquilo que<br />

confere humani<strong>da</strong>de ao homem é a presença do espírito,<br />

síntese do eterno e do temporal, do finito e infinito, dos<br />

possíveis e do necessário, mesmo que de início esse se<br />

encontre adormecido.<br />

Heidegger – na mesma linha de pensamento de<br />

Kierkegaard – em Ser y tiempo (1927/1989) já afirma que<br />

as estruturas existenciais não são estruturas ônticas, e<br />

nesse sentido elas podem ser encontra<strong>da</strong>s em qualquer<br />

experiência de mundo do ser-aí. Isto não diz respeito<br />

apenas à caracterização do ser-aí europeu desenvolvido,<br />

mas tanto ao que se refere ao ser-aí infantil, como<br />

ao ser-aí dos povos primitivos; o que estará em questão<br />

é o ser-aí humano. E a base do ser-aí humano é seu caráter<br />

essencialmente histórico. E, por mais que Heidegger<br />

(1929/2008) afirme que as estruturas existenciais se mostram<br />

mais claramente no homem primitivo ou no aborígine,<br />

por conta <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> desses homens,<br />

as estruturas históricas existenciais estão presentes em<br />

seu caráter de aí em todos os homens, em to<strong>da</strong>s as épocas,<br />

lugares ou fases de desenvolvimento de suas vi<strong>da</strong>s.<br />

E é a partir deste caráter que o ser-aí conquista o poderser<br />

que ele é.<br />

Sartre (2005/1939), em seu conto “A infância de um<br />

chefe”, deixa clara a sua defesa ao caráter de indeterminação<br />

e liber<strong>da</strong>de presentes no percurso de vi<strong>da</strong> do protagonista<br />

do conto, Lucien Fleurier. O filósofo traz o modo<br />

como Lucien vai traçando a sua existência, do princípio<br />

ao fim. O marcante nesse trajeto é que sempre ele tem<br />

de escolher frente àquilo que o mundo lhe apresentava,<br />

mostrando que a determinação está ausente. A tarefa de<br />

Lucien consiste em determinar-se por si mesmo por meio<br />

<strong>da</strong>s referências <strong>da</strong> sua situação.<br />

Agora vale ressaltar como acontece esse constituir-se,<br />

já que a criança ao nascer já se constitui na relação com o<br />

mundo. Cabe perguntar como isto é possível, se a criança<br />

na<strong>da</strong> sabe, na<strong>da</strong> conhece. Não haveria uma determinação<br />

biológica, que a levaria a sobreviver, conduzindo-a<br />

a alimentar-se? Ou ela não sobreviria caso não tivesse a<br />

presença de outros homens? Estas questões foram amplamente<br />

debati<strong>da</strong>s na déca<strong>da</strong> de 50 e 60, quando o menino<br />

Victor, abandonado em uma selva, nos primeiros anos de<br />

vi<strong>da</strong>, foi encontrado em Eveyron, na França. A partir de<br />

187 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 185-192, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

então, todos os posicionamentos teóricos - sejam inatistas<br />

ou empiristas - tentaram comprovar suas teses, por meio<br />

<strong>da</strong>quilo que no comportamento de Victor evidenciaria e<br />

comprovaria as premissas <strong>da</strong>s teorias racionalista e empirista.<br />

A primeira que os fun<strong>da</strong>mentos do humano são<br />

inatos e a segun<strong>da</strong> que são aprendidos.<br />

As filosofias <strong>da</strong> existência surgem em uma tentativa<br />

de se deslocar <strong>da</strong>s discussões epistemológicas, que se<br />

interessam pela origem, pelas determinações iniciais.<br />

Kierkegaard em La enfermi<strong>da</strong>d mortal (1849/2008, p. 33),<br />

ao tratar <strong>da</strong> constituição do eu, refere-se ao desespero:<br />

O homem é espírito, mas o que é o espírito? O espírito<br />

é o eu. Mas o que é o eu? O eu é uma relação que se relaciona<br />

consigo mesmo. Dito de outra maneira: é o que na<br />

relação faz com que a relação se relacione consigo mesma.<br />

O eu não é a relação, mas o fato de que a relação se<br />

relaciona consigo mesma. O homem é uma síntese de infinitude<br />

e finitude, de temporal e de eterno, de liber<strong>da</strong>de<br />

e necessi<strong>da</strong>de, em uma palavra, é uma síntese. 2<br />

Kierkegaard nesse trecho deixa claro que é na relação<br />

que a existência se constitui, <strong>da</strong>í o fato <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de e <strong>da</strong><br />

responsabili<strong>da</strong>de que ca<strong>da</strong> um carrega com relação a sua<br />

existência. A relevância e importância <strong>da</strong><strong>da</strong> ao existir em<br />

detrimento a qualquer posicionamento apriorístico sobre<br />

a constituição do homem são, marca<strong>da</strong>mente, explicita<strong>da</strong>s<br />

por Kierkegaard, a quem devemos a retoma<strong>da</strong> do aspecto<br />

sensível <strong>da</strong> existência humana, a que denominou<br />

com estádio estético, também marcante <strong>da</strong> experiência<br />

infantil.; tanto que no seu texto A rotação dos cultivos,<br />

que conta <strong>da</strong> obra O lo uno o lo otro (1842/2006), referindo-se<br />

a tal experiência, recomen<strong>da</strong> – do lugar do conselheiro<br />

esteta – que quem procura uma babá nunca deve<br />

contratá-la pelas suas características éticas. Explica-se:<br />

a moça vai ser muito fiel aos horários e ao cumprimento<br />

do estabelecido, porém vai entediar a criança. A boa<br />

babá, diz através do pseudônimo esteta, é aquela que, entregue<br />

ao caráter sensível <strong>da</strong> brincadeira, sabe distrair a<br />

criança, de modo que, quando esta se encontrar toma<strong>da</strong><br />

pelo tédio na intranquili<strong>da</strong>de que lhe é própria, possa<br />

distrair-se com as brincadeiras <strong>da</strong> babá e, assim, rapi<strong>da</strong>mente<br />

possa se afastar do entediar-se próprio à repetição<br />

do existir. Essa situação de fuga do tédio e <strong>da</strong> repetição<br />

vai estar presente, segundo o filósofo dinamarquês durante<br />

to<strong>da</strong>s as etapas <strong>da</strong> existência humana.<br />

As considerações de Kierkegaard sobre a existência,<br />

embora pauta<strong>da</strong>s em observações atentas e ricas em detalhes,<br />

<strong>da</strong>vam-se por meio de um gesto fenomenológico,<br />

ou seja, não considerando as teorias e os sistemas que<br />

tentavam, já em sua época, elaborar sistematicamente o<br />

acontecimento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Kierkegaard tentava acompanhar<br />

as experiências e descrevê-las a partir do modo como ele<br />

as apreendia. Dizia que o caráter universal <strong>da</strong>s experiências<br />

humanas poderia ser encontrado em suas expressões<br />

singulares (1959/1966).<br />

2 Tradução livre <strong>da</strong> autora.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 185-192, jul-dez, 2011<br />

Ana M. L. C. Feijoo<br />

Porém foi Husserl que trouxe o como poderíamos<br />

utilizar um modo de alcançar o fenômeno em sua mobili<strong>da</strong>de<br />

estrutural, na existência mesma. Dois aspectos<br />

desenvolvidos por Husserl em sua Fenomenologia foram<br />

fun<strong>da</strong>mentais para o desenrolar <strong>da</strong>s filosofias <strong>da</strong> existência<br />

– assim denomina<strong>da</strong>s por retomarem o aspecto<br />

fáctico <strong>da</strong> existência humana. São eles: a noção de intencionali<strong>da</strong>de<br />

e a atitude antinatural. E é a partir dessas<br />

duas concepções que tanto Heidegger quanto Sartre vão<br />

proceder as suas ontologias.<br />

Para Heidegger, pensar no ser-aí <strong>da</strong>s crianças requer,<br />

primeiramente, esclarecer de que modo se dá este ente<br />

em seu primeiro momento de vi<strong>da</strong>. Em uma interpretação<br />

existencial, partimos <strong>da</strong> noção de que, desde o início,<br />

a criança, ser-aí, é um ente que tem o caráter de indeterminado,<br />

exposto, jogado, lançado para fora dele. Ao<br />

tomar a existência como se constituindo pela indeterminação,<br />

deslocamo-nos de qualquer tentativa de posicionar<br />

o homem a partir de determinações biológicas ou sociais<br />

para aproximarmo-nos assim <strong>da</strong> existência mesma.<br />

Com isto, a ênfase acontece na intencionali<strong>da</strong>de, espaço<br />

onde a existência acontece. Logo, já que a existência se<br />

constitui nesse espaço, a que Husserl denominou intencionali<strong>da</strong>de,<br />

na<strong>da</strong> aprioristicamente pode ser considerado<br />

como constituindo o homem que não seja ele mesmo<br />

na esfera do existir.<br />

a desconstrução <strong>da</strong>s teorias identificatórias<br />

Para referir-se ao modo identificatório em que o homem<br />

moderno tenta se posicionar, Kierkegaard utiliza-se<br />

<strong>da</strong> denominação de estádio, estádio em que a existência é<br />

toma<strong>da</strong> de acordo com um processo normativo. Heidegger,<br />

em Ser y tiempo, diz que, no início e na maioria <strong>da</strong>s vezes,<br />

o ser-aí se toma como coisa e assim se compreende. Isso<br />

acontece porque se considera do mesmo modo em que<br />

se dá a sua li<strong>da</strong> com os objetos a sua volta, na ocupação.<br />

Ao tomar-se com um ente presente à vista, logo com determinações<br />

e identificações <strong>da</strong><strong>da</strong>s em si mesmo, acaba<br />

por esquecer seu caráter de poder-ser e acredita que, do<br />

mesmo modo que os objetos, ele possui características e<br />

funções previamente determina<strong>da</strong>s. No entanto, o ser-aí<br />

não se deixa aprisionar, apresentando sempre duas possibili<strong>da</strong>des<br />

– a de clarificação e a de obscurecimento de seu<br />

ser. E Sartre (1943/1997) refere-se ao modo como o homem<br />

busca uma identi<strong>da</strong>de e ao mesmo tempo a considera o<br />

seu inferno, já que é o fato do olhar do outro que o torna<br />

um em-si. Esse filósofo relata com riqueza de detalhes o<br />

percurso de Lucien Fleurier em sua existência, no conto<br />

A infância de um chefe (1939/2005). Lucien, logo de início,<br />

ao confundirem-no com uma menina, questiona-se:<br />

“Serei uma menina ou um menino?”. Este, entre outros<br />

trechos, deixa claro como a criança se define a partir do<br />

mundo. No final, já homem, Lucien diz precisar de um<br />

bigode para parecer um chefe. E pelo caráter do indeter-<br />

188


A Clínica Psicológica Infantil em uma Perspectiva Existencial<br />

minado <strong>da</strong> existência e a tentativa de sair <strong>da</strong> situação <strong>da</strong><br />

indeterminação é que as categorizações se enraizam em<br />

to<strong>da</strong>s as especiali<strong>da</strong>des, sejam médicas ou psicológicas. É<br />

preciso cui<strong>da</strong>do para não nos deixarmos conduzir por tais<br />

rótulos, que obscurecem a visa<strong>da</strong> <strong>da</strong>quilo que se mostra.<br />

Aliás, a clínica existencial vai logo de início retirar de seu<br />

campo de visão todos os rótulos, diagnósticos e categorizações<br />

que provêm tanto <strong>da</strong>s disciplinas científicas como<br />

do senso comum, numa postura frente ao fenômeno que<br />

Husserl denominou de atitude antinatural.<br />

Em síntese, a clínica psicológica infantil com fun<strong>da</strong>mentos<br />

existenciais requer primeiramente uma postura<br />

fenomenológica, suspendendo todos os posicionamentos<br />

teóricos – seja <strong>da</strong> psicologia do desenvolvimento, <strong>da</strong><br />

personali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> aprendizagem ou qualquer outro. Em<br />

segundo lugar, cabe dizer que liber<strong>da</strong>de e responsabili<strong>da</strong>de<br />

na perspectiva existencial dizem respeito ao caráter<br />

de indeterminação <strong>da</strong> existência e ao fato de que,<br />

qualquer que seja a etapa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, ca<strong>da</strong> um tem de cui<strong>da</strong>r<br />

de sua existência. Tomar a existência como se constituindo<br />

pela indeterminação, consiste em deslocar-se<br />

de qualquer tentativa de posicionar o homem, no caso, a<br />

criança, a partir de determinações biológicas ou sociais.<br />

E, por fim, para pensar em uma clínica fenomenológicoexistencial<br />

infantil, é preciso partir <strong>da</strong> ideia de que desde<br />

o início a criança é este ente que, por se constituir pela<br />

indeterminação, exposto, jogado, lançado para fora dele,<br />

livre de determinações, é marca<strong>da</strong> pelo caráter de poder<br />

ser e ter de ser.<br />

a Clínica psicológica com Crianças<br />

Como anteriormente explicado, a atitude fenomenológica<br />

consiste em abandonar to<strong>da</strong>s as teorias e técnicas em<br />

Psicologia, que determinam caminhos e procedimentos.<br />

Duas situações deixam evidente a importância de assumirmos<br />

tal postura. A primeira situação consiste em ver<br />

a criança a partir dos diagnósticos previamente <strong>da</strong>dos.<br />

Aproximar-se fenomenologicamente <strong>da</strong> situação consiste<br />

em reconduzir aquilo que é apresentado, de forma a não<br />

se deixar conduzir pelo que previamente já foi posicionado.<br />

A segun<strong>da</strong> seria partir do princípio de que a criança<br />

não pode jamais assumir a responsabili<strong>da</strong>de pelas suas<br />

ações e situações. Já a postura antinatural, na clínica,<br />

consistiria em acompanhar a criança, porém, deixando<br />

que ela mesma tutele as suas decisões e escolhas.<br />

Assim, a primeira situação consiste quando a criança<br />

chega ao consultório, portando todos os rótulos e determinações<br />

de seus problemas que, normalmente, a escola<br />

e os pais, dentre outros, já atribuíram, como diagnóstico<br />

e as interpretações do que vem acontecendo. Com<br />

esta configuração previamente determina<strong>da</strong>, o fenômeno<br />

propriamente dito desaparece, <strong>da</strong>ndo lugar a uma configuração<br />

do real previamente <strong>da</strong><strong>da</strong>, com determinações<br />

também já <strong>da</strong><strong>da</strong>s. Uma atitude fenomenológica na clínica<br />

consistirá em suspender qualquer interpretação acerca<br />

do que está acontecendo com a criança trazi<strong>da</strong> ao consultório.<br />

Assim, poder-se-á acompanhar o fenômeno no<br />

seu modo de revelar-se, ou seja, na sua própria mobili<strong>da</strong>de<br />

estrutural.<br />

Em uma atitude natural, acredita-se que a criança<br />

deva ficar sempre na tutela do adulto, e que a este compete<br />

to<strong>da</strong> a responsabili<strong>da</strong>de pelas escolhas <strong>da</strong> criança.<br />

Desta forma, nós estamos correspondendo ao horizonte<br />

histórico em que nos encontramos, o qual interpreta o<br />

primeiro momento de vi<strong>da</strong> como uma situação naturalmente<br />

frágil, não cabendo à criança nenhum compromisso<br />

com sua existência, desonerando-a de sua responsabili<strong>da</strong>de,<br />

transferi<strong>da</strong> aos pais ou aos adultos próximos a<br />

ela. Os adultos, de um modo geral, também neste mesmo<br />

horizonte, tendem a assumir a tutela, sem nem mesmo<br />

refletirem acerca do modo como se relacionam com<br />

a criança. E ain<strong>da</strong>, temendo que a criança fique sozinha,<br />

tentam, a qualquer preço, distraí-la, por variados e diferentes<br />

modos. E por não conseguirem sustentar a criança<br />

no seu silêncio, acabam assumindo para si mesmos todo<br />

o cui<strong>da</strong>do e tutela, deixando assim que a criança acabe<br />

por acreditar que não cabe a ela mesma a responsabili<strong>da</strong>de<br />

por sua existência. E o medo <strong>da</strong> solidão e a não responsabili<strong>da</strong>de<br />

por sua existência acaba acompanhando-a<br />

não só na primeira etapa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, mas em to<strong>da</strong>s as suas<br />

etapas. É isso que Kierkegaard vai considerar as sequelas<br />

<strong>da</strong> existência e Sartre vai denominar de má-fé.<br />

Adotar uma atitude fenomenológica na clínica psicológica<br />

implica em não fazer ou pensar o que naturalmente<br />

se faz ou se pensa. Junto à criança, o profissional não<br />

assumirá no lugar dela o seu cui<strong>da</strong>do, ou seja, a responsabili<strong>da</strong>de<br />

pelo seu existir. E assim, desprovido de um<br />

modo de pensar como naturalmente se pensa, o psicólogo<br />

pode questionar o que naturalmente se toma como<br />

ver<strong>da</strong>de pronta e acaba<strong>da</strong>. Nisso consiste o seu ofício. E,<br />

ao assumir um posicionamento fenomenológico, o clínico<br />

estará sempre presente e, ao mesmo tempo, deixando<br />

parecer à criança que ele está ausente. Desta forma, permite<br />

que a criança, entregue a si mesma, o mais demora<strong>da</strong>mente<br />

possível, possa ter uma experiência de permanecer<br />

consigo mesma e, assim, desvele-se no seu caráter<br />

de ter de cui<strong>da</strong>r de si e poder-ser. A postura antinatural<br />

consiste em poder <strong>da</strong>r um passo atrás, deixando a criança,<br />

no momento clínico, na tutela por si mesma. Ao recuar,<br />

pode-se acompanhar as determinações oriun<strong>da</strong>s do seu<br />

comportamento, a partir <strong>da</strong> sua própria tutela. Heidegger<br />

(1927/1989) denomina esse modo de acompanhar o outro<br />

de preocupação por anteposição ou libertadora.<br />

Para esclarecer o que foi dito até aqui e exemplificar a<br />

postura fenomenológica em uma situação de atendimento<br />

clínico infantil, apresentaremos fragmentos de um caso<br />

clínico. Neste caso, a atenção volta-se para a criança em<br />

seu modo próprio de comportar-se, deixando-a que ela<br />

se mostre por si mesma. E, ao mesmo tempo, confiar no<br />

caráter de indeterminação do seu ser que lhe confere a<br />

189 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 185-192, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

libertação de todos os diagnósticos estabelecidos, seja<br />

pela Psiquiatria, pela Psicologia ou pelo senso comum.<br />

E nisso consistem a liber<strong>da</strong>de e responsabili<strong>da</strong>de desta<br />

criança. Mantê-la em liber<strong>da</strong>de, entregando-a a sua própria<br />

tutela, ou seja, à sua responsabili<strong>da</strong>de, é a própria<br />

relação psicoterápica. Deixá-la caminhar por si mesma,<br />

sem tentar desonerá-la desta tarefa de diferentes modos,<br />

é o caminho no qual a criança perde a tutela do adulto,<br />

mas pode ganhar a si mesma, ao assumir o seu cui<strong>da</strong>do<br />

por si próprio, a sua tutela. O adulto, ao mesmo tempo,<br />

sem preocupar-se ao modo substitutivo, tem sob os olhos<br />

o que está acontecendo.<br />

No caso apresentado a seguir, os <strong>da</strong>dos foram trocados<br />

a fim de garantir o sigilo <strong>da</strong> criança atendi<strong>da</strong>. Antônio<br />

tinha sete anos quando sua mãe procurou acompanhamento<br />

psicológico para ele. A primeira entrevista foi com<br />

ambos os pais por ser importante que os dois trouxessem<br />

a questão de Antônio e o modo como vinham li<strong>da</strong>ndo com<br />

aquilo que se apresentava. Além disto, os dois deveriam<br />

estar de acordo com o acompanhamento psicológico, comprometendo-se<br />

a comparecer quando solicitados.<br />

Os pais de Antonio procuram psicoterapia, por indicação<br />

de um psiquiatra, preocupados com o fato de<br />

a criança estar “pegando coisas dos outros”. O médico<br />

dissera que se tratava de uma cleptomania. A mãe colocara<br />

em dúvi<strong>da</strong> o diagnóstico médico, acrescentando<br />

que Antônio só queria chamar a atenção dos pais. Tenta,<br />

assim, justificar o comportamento do filho usando uma<br />

determinação psíquica. Ela mostra-se bastante aflita com<br />

a situação e inicia: “Antônio vem pegando coisas dos outros.<br />

(chora). Isto me preocupa muito, porém acho que ele<br />

está querendo chamar a atenção, estamos precisando ficar<br />

mais próximos dele, sempre muito preocupados com<br />

o trabalho e outras coisas e acho que Antônio vai ficando<br />

meio esquecido. Por isso, vim aqui te pedir aju<strong>da</strong>, todos nós<br />

precisamos ser aju<strong>da</strong>dos, as coisas an<strong>da</strong>m meio confusas.”<br />

Ao dizer que o menino só queria chamar a atenção dos<br />

pais, retira-lhe a responsabili<strong>da</strong>de de seu ato e coloca-o<br />

na tutela do psíquico. O pai também dá uma interpretação<br />

a partir de sua experiência e em uma atmosfera afetiva<br />

de irritabili<strong>da</strong>de com a situação: “Eu só quero saber<br />

porque Antônio está me agredindo. João (o irmão) é totalmente<br />

diferente, um garoto exemplar, faz tudo como deve<br />

ser feito (...) Eu digo sempre para Antônio: ‘João, o irmão,<br />

é um exemplo a ser seguido’. Agora, se ele insistir em me<br />

provocar, se não mu<strong>da</strong>r, se continuar a ter atos ilícitos, eu<br />

não vou mais querer saber dele. Se continuar me agredindo,<br />

eu vou esquecer que ele existe.” O pai deixa claro que,<br />

caso o menino não modifique a situação, ele suspenderá<br />

a sua tutela, pois não aceita um ato ilícito.<br />

Apenas com esse breve trecho, podemos refletir sobre<br />

como se dá uma atitude fenomenológica frente à questão<br />

apresenta<strong>da</strong> pelo médico e pelos pais. O médico, em uma<br />

“atitude natural”, tende a classificar o comportamento <strong>da</strong><br />

criança pelas características que constam nos manuais<br />

de Psicopatologia e conclui, a partir dos sintomas, que se<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 185-192, jul-dez, 2011<br />

Ana M. L. C. Feijoo<br />

trata de uma cleptomania. Assim os comportamentos do<br />

menino se transformam em sintomas. E o conjunto desses<br />

sintomas são o suficiente para deduzir que se trata de<br />

uma compulsão. A criança e seus comportamentos desaparecem,<br />

<strong>da</strong>ndo lugar a uma categoria de diagnóstico,<br />

que fala por si mesmo.<br />

Outra atitude natural foi assumi<strong>da</strong> pela mãe, ao interpretar<br />

a ação <strong>da</strong> criança como uma tentativa de chamar<br />

a atenção. Aqui não é mais a voz <strong>da</strong> ciência que dá<br />

o veredicto, mas a do senso comum. Deste modo, o furto<br />

teria sido motivado por algo que se encontrava por trás<br />

do ato, no caso, “chamar a atenção”. Segundo esta visão,<br />

não caberia mais a Antônio o compromisso com sua ação,<br />

estava totalmente justificado. Já o pai caracteriza a situação<br />

como ilícita. Assim, uma vez identificado por uma<br />

classificação psiquiátrica, pelo senso comum ou pela contravenção,<br />

não era mais Antônio que pegava as coisas dos<br />

outros e sim aquilo com que o passaram a identificar.<br />

A postura fenomenológica implica em deslocar-se <strong>da</strong>s<br />

interpretações comumente atribuí<strong>da</strong>s, assumindo uma<br />

atitude antinatural com relação à questão que se apresenta,<br />

ou seja, tomando o modo de ser <strong>da</strong> criança em sua<br />

expressão singular. Na postura antinatural, o psicólogo<br />

clínico suspende o “diagnóstico” <strong>da</strong>do pela mãe e pelo<br />

médico. Ao voltar-se para o fenômeno em sua mobili<strong>da</strong>de<br />

estrutural, importa o sentido que Antônio dá a sua experiência.<br />

A visa<strong>da</strong> sobre o fenômeno que se apresenta não<br />

se dá a partir de nenhum pressuposto em tese acerca do<br />

que possa ser uma “compulsão a furtar coisas” e a atenção<br />

clínica volta-se para a criança em seu modo próprio<br />

de comportar-se. Permite-se que a criança se mostre por<br />

si mesma, deixando–a livre para si mesma, para assim<br />

poder assumir a sua liber<strong>da</strong>de e responsabili<strong>da</strong>de.<br />

Em uma clínica fenomenológica, a criança será recebi<strong>da</strong><br />

a partir <strong>da</strong>quilo que vai acontecer na relação, neste<br />

momento estabeleci<strong>da</strong>. Para tanto, vai-se suspender todo<br />

e qualquer pressuposto que anteriormente se fez presente,<br />

inclusive no relato dos pais. Para exemplificar este<br />

modo de proceder clinicamente, apresentaremos um trecho<br />

desse atendimento:<br />

Antônio: Eu queria contar um problema. Pedro vai ter<br />

a festa de aniversário dele, só que vai ser na casa dele.<br />

Eu não tenho vontade de ir, sabe? Eu não quero ir à festa,<br />

tem muita gente que rouba e também tem um pequeno<br />

probleminha: acusam a pessoa de uma coisa que ela não<br />

fez. Alex rouba as coisas dos outros. Eu desconfio também<br />

<strong>da</strong> Flávia, ela também pega as coisas dos outros. Mas não<br />

é só isso não, tem outro problema: meu pai vai sair com<br />

João, e eu também quero ficar com meu pai, sair com os<br />

dois. Psicóloga: Então você tem dois motivos para não<br />

querer ir à festa.<br />

Antônio: Tem outro, tenho medo de não controlar.<br />

Psicóloga: Tem medo de não controlar o quê?<br />

Antônio: A vontade. (silêncio)<br />

Psicóloga: Vontade de que, Antônio?<br />

Antônio: De pegar as coisas dos outros. Eu não quero<br />

190


A Clínica Psicológica Infantil em uma Perspectiva Existencial<br />

pegar, mas eu olho a coisa e me dá muita vontade, vontade<br />

mesmo. Também tenho medo que Flávia coloque coisas na<br />

minha bolsa e depois me culpe. Ela já fez isso, guardou no<br />

meu estojo o lápis de Bruna. Bruna sentiu a falta do lápis,<br />

aí eu coloquei o lápis na mesa de Bruna, só que ela me viu<br />

colocando o lápis e eu me defendi, disse que tinha sido a<br />

Flávia que tinha colocado no meu estojo, só que ninguém<br />

acreditou, ficou todo mundo olhando para mim.<br />

Antônio fica calado, parecendo triste, abaixa a cabeça,<br />

põe a mão no rosto, parecia estar chorando.<br />

Repentinamente, levantou a cabeça e fitou-me por um<br />

longo tempo). Na tentativa de mobilizá-lo e tentar compreender<br />

o que estava acontecendo, falei:<br />

Psicóloga: Parece que essa situação te deixa muito<br />

triste.<br />

Antônio: E vou ficar muito sozinho.<br />

Psicóloga: E como é ficar sozinho para você?<br />

Antonio: (permanece em silêncio) Não ter ninguém<br />

por perto, nunca vivi isto, tenho medo, ficar sozinho no<br />

recreio.<br />

Assumindo uma atitude fenomenológica, a psicóloga<br />

não interveio, nem se colocou como alguém que, desde<br />

o início, já sabia qual era o problema. Caso partisse de<br />

diagnósticos ou de teorias acerca do “problema”, criaria<br />

obstáculos à apresentação do fenômeno. Na situação de<br />

Antônio seria, por exemplo, destinar-lhe uma identi<strong>da</strong>de<br />

de cleptomaníaco e insistir para que ele falasse no tema,<br />

buscando rapi<strong>da</strong>mente o que determinava esse comportamento.<br />

Assim, entregue a si mesmo, pode ver as consequências<br />

do modo como vinha se comportando, só a ele<br />

cabendo a decisão do que iria ou não fazer.<br />

Partir do diagnóstico que lhe havia sido previamente<br />

conferido, seria <strong>da</strong>r-lhe uma identi<strong>da</strong>de que, além de<br />

retirar-lhe o seu caráter de poder ser, também o desoneraria<br />

de sua escolha. Assim, todo o seu modo de ser seria<br />

justificado por tal identi<strong>da</strong>de, não cabendo a ele a sua tutela.<br />

Retirar o caráter de poder ser de sua existência, por<br />

um procedimento identitário, constitui-se em um caminho<br />

de acesso fácil, porém pode acabar por sedimentar<br />

um determinado modo de ser. Esse processo é discutido<br />

com muita pertinência em Sartre (2001) ao referir-se a<br />

todo percurso do personagem Lucien Fleurier até tornarse<br />

um chefe, tal como já havia sido decidido pelos seus<br />

pais, muito antes dele nascer.<br />

A atenção fenomenológica consiste em abandonar<br />

to<strong>da</strong> e qualquer identi<strong>da</strong>de estabeleci<strong>da</strong> para a criança,<br />

seja com relação a um diagnóstico, expectativa familiar<br />

ou social, entre outros modos. Em uma postura fenomenológica,<br />

cabe então ao psicólogo deixar a criança em liber<strong>da</strong>de<br />

e entregá-la a sua própria tutela, ou seja, à sua<br />

responsabili<strong>da</strong>de. Trata-se, sem dúvi<strong>da</strong>, de uma tarefa delica<strong>da</strong>.<br />

No entanto, deixá-la caminhar por si mesma sem<br />

tentar desonerá-la desta tarefa, de diferentes modos, pa-<br />

rece ser o caminho pelo qual a criança perde a tutela do<br />

adulto, mas ganha a si mesma. Deixá-la sozinha, consigo<br />

mesma, nesta abor<strong>da</strong>gem, é uma arte que consiste em<br />

estar sempre presente, sem mostrar a criança que se está<br />

ali. E assim permitir que a criança por si própria possa<br />

aproximar-se, entregue a si mesma o mais demora<strong>da</strong>mente<br />

possível, de uma experiência de si mesma.<br />

Considerações finais<br />

Com o desenvolvimento <strong>da</strong> temática acerca <strong>da</strong> clínica<br />

psicológica em uma perspectiva existencial, pudemos<br />

afiançar que a filosofia <strong>da</strong> existência traz aspectos formais<br />

que criam um espaço de articulação de uma práxis<br />

clínica por diferentes motivos. O primeiro deles é que as<br />

filosofias <strong>da</strong> existência retomam o que as filosofias modernas<br />

haviam abandonado, ou seja, a existência mesma<br />

tal como acontece em seu campo de imanência. Esse<br />

projeto de voltar-se à imanência foi ineditamente apresentado<br />

por Husserl. Esse filósofo deslocou-se <strong>da</strong> noção<br />

de consciência como algo encapsulado, que se encontra<br />

localizado em uma interiori<strong>da</strong>de e com sentidos e determinações<br />

<strong>da</strong>dos em si mesmo, tomando, então a consciência<br />

como algo que acontece em um espaço relacional,<br />

logo imanente. Ele refere-se então à intencionali<strong>da</strong>de, que<br />

passou a ser o elemento fun<strong>da</strong>mental, mesmo que com diferentes<br />

acepções <strong>da</strong>s filosofias <strong>da</strong> existência. Heidegger<br />

e Sartre deram continui<strong>da</strong>de ao projeto de retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

existência, ca<strong>da</strong> um a seu modo, mas preocupados com<br />

a factici<strong>da</strong>de onde o existir acontece. Esse mesmo movimento<br />

foi acompanhado pela Psicologia que, primeiramente,<br />

seguindo o projeto moderno, tomou o psíquico em<br />

to<strong>da</strong>s as suas denominações como algo <strong>da</strong> ordem de uma<br />

interiori<strong>da</strong>de que se relaciona com o exterior. Ao surgir<br />

uma Psicologia Fenomenológica, a pretensão também é<br />

de pensar o psíquico como algo imanente, co-originário<br />

ao mundo e, portanto, não passível de ser determinado,<br />

nem localizado em uma interiori<strong>da</strong>de.<br />

Pensar a Psicologia a partir <strong>da</strong>s filosofias <strong>da</strong> existência<br />

consiste em assumir o caráter de indeterminação que<br />

não pressupõe mais uma essência, seja ela qual for, que<br />

precede a existência. Consiste, ain<strong>da</strong>, em aceitar a árdua<br />

tarefa de não ter como prever, nem garantir nenhum resultado,<br />

<strong>da</strong>do o caráter de abertura e consequente liber<strong>da</strong>de<br />

em que a existência sempre se encontra.<br />

Articular uma proposta de clínica infantil com base<br />

na filosofia existencial torna-se possível ao tomar a criança<br />

na mesma perspectiva em que se toma o adulto. Tratase<br />

de pensar a existência em sua imanência, qualquer<br />

que seja a etapa de vi<strong>da</strong> em que nos encontramos. Logo,<br />

importa é que, aquele que tenta evitar a sua condição de<br />

liber<strong>da</strong>de, abertura e indeterminação, possa assumir-se<br />

como um ser de possibili<strong>da</strong>des, logo, em liber<strong>da</strong>de para<br />

dizer sim e não às determinações inseri<strong>da</strong>s no horizonte<br />

histórico em que se encontra.<br />

191 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 185-192, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

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Husserl, E.(1952/ 2007). La filosofia como ciencia restricta. La<br />

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Kierkegaard, S. (1959/1966). Ponto de vista explicativo <strong>da</strong> minha<br />

obra como escritor. Porto: Edições 70.<br />

Kierkegaard, S. (1842/2006) O lo uno o lo otro: un fragmento de<br />

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Sartre. J.P. (1939/2005). A infância de um chefe. In: O muro.<br />

Rio de Janeiro: Nova Fronteira<br />

Sartre. J.P. (1943/1997). O ser e o na<strong>da</strong>. Petrópolis: Vozes.<br />

Ana Maria lopez Calvo de Feijoo - Doutora em Psicologia, Professor-<br />

Adjunto <strong>da</strong> Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia<br />

Social <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro. Endereço<br />

Institucional: Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro, Departamento<br />

de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia. Rua São Francisco<br />

Xavier, 524 (Maracanã). CEP 20550.013. Rio de Janeiro/RJ. E-mail:<br />

ana.maria.feijoo@gmail.com.br<br />

Recebido em 15.03.11<br />

Aceito em 22.09.11<br />

192


A (Pouco Conheci<strong>da</strong>) Contribuição de Brentano para as Psicoterapias Humanistas<br />

a (pouCo ConHeCi<strong>da</strong>) ContRiBuição de BRentano<br />

paRa aS pSiCoteRapiaS HumaniStaS 1<br />

The (Little Known) Contribution of Brentano for Humanistic Psychotherapies<br />

La (Poco Sabi<strong>da</strong>) Contribución de Brentano para las Psicoterapias Humanistas<br />

ge org e s <strong>da</strong> n i e l ja n j a Bl o C Bo r i s<br />

Resumo: Este texto se propõe a discutir, entre aqueles vinculados à fenomenologia, o estranho fato de que, ao contrário do que<br />

ocorre em relação a Husserl, Heidegger, Sartre ou Merleau-Ponty, poucos parecem reconhecer a importante contribuição de Franz<br />

Brentano para as psicoterapias humanistas. Embora não fosse psicólogo, Brentano se dedicou à Psicologia e, como precursor <strong>da</strong><br />

fenomenologia, foi um desbravador de questões fun<strong>da</strong>mentais que, atualmente, perpassam as bases epistemológicas e filosóficas<br />

<strong>da</strong>s abor<strong>da</strong>gens fenomenológicas e humanistas em psicoterapia. Assim, o texto abor<strong>da</strong> sua teoria <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de, a Psicologia<br />

do Ato e a Filosofia do Presente como contribuições significativas à prática <strong>da</strong>s psicoterapias humanistas.<br />

Palavras-chave: Fenomenologia; Brentano; Psicoterapias humanistas; Psicologia.<br />

Abstract: This text is proposed to discuss, between those who are linked to phenomenology, the strange fact of that, in contrast<br />

of what happens to Husserl, Heidegger, Sartre or Merleau-Ponty, few of them seem to recognize the important contribution of<br />

Franz Brentano for humanistic psychotherapies. Although he was not a psychologist, Brentano was dedicated to psychology<br />

and, as a precursor of phenomenology, he was a pioneer of fun<strong>da</strong>mental questions that, currently, cross the epistemological and<br />

philosophical bases of phenomenological and humanistic approaches in psychotherapy. Thus, the text discusses his theory of<br />

intentionality, the Act-Psychology and the Philosophy of the Present as meaningful contributions to the practice of humanistic<br />

psychotherapies.<br />

Keywords: Phenomenology; Brentano; Humanistic psychotherapies; Psychology.<br />

Resumen: Este texto se propone a discutir, entre los que se vinculan à la fenomenología, el hecho extraño de que, al contrario<br />

de lo que sucede en relación a Husserl, Heidegger, Sartre y Merleau-Ponty, pocos parecen reconocer la contribución importante<br />

de Franz Brentano para las psicoterapias humanistas. Aunque él no era psicólogo, Brentano estuvo dedicado a la psicología<br />

y, como precursor de la fenomenología, era un pionero de cuestiones fun<strong>da</strong>mentales que, actualmente, cruzan las bases epistemológicas<br />

y filosóficas de los enfoques fenomenológicos y humanistas en la psicoterapia. Así, el texto discute su teoría de la<br />

intencionali<strong>da</strong>d, la Psicología del Acto y la Filosofía del Presente como contribuciones significativas a la práctica de las psicoterapias<br />

humanistas.<br />

Palabras-clave: Fenomenología; Brentano; Psicoterapias humanistas; Psicología.<br />

Os objetivos dos esforços que acabamos de descrever<br />

não são nem os últimos, nem os supremos objetivos<br />

de uma eluci<strong>da</strong>ção fenomenológica do conhecimento<br />

em geral. Por mais extensas que sejam as nossas<br />

análises, o domínio extraordinariamente frutífero do<br />

pensar e do conhecer mediatos permaneceu quase<br />

completamente não elaborado; a essência <strong>da</strong> evidência<br />

mediata e de seus correlatos ideais continua sem<br />

uma eluci<strong>da</strong>ção suficiente. Ain<strong>da</strong> assim, acreditamos<br />

que as nossas pretensões não foram insignificantes, e<br />

esperamos ter desnu<strong>da</strong>do os mais básicos e, por sua<br />

própria natureza, primeiros fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> crítica do<br />

conhecimento. É preciso fazer uso, também na crítica<br />

do conhecimento, <strong>da</strong>quela modéstia que pertence à<br />

1 Trabalho apresentado ao II Congresso Sul Brasileiro de Fenomenologia<br />

& II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná, de 2 a<br />

4 de junho de 2011, na Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná (UFPR), em<br />

Curitiba.<br />

essência de to<strong>da</strong> investigação científica. (...) As análises<br />

que seguem mostrarão que mesmo um trabalho<br />

epistemológico tão modesto terá que superar ain<strong>da</strong><br />

uma enorme quanti<strong>da</strong>de de dificul<strong>da</strong>des, ou melhor,<br />

terá ain<strong>da</strong> quase tudo a fazer.<br />

Husserl, em Investigações Lógicas (1900-1901/1980)<br />

introdução<br />

Franz Clemens Honoratus Hermann Brentano era<br />

alemão e lecionou em Würzburg e na Universi<strong>da</strong>de de<br />

Viena. Em 1864, foi ordenado padre, mas questionou a<br />

doutrina <strong>da</strong> infalibili<strong>da</strong>de papal, abandonando a Igreja<br />

em 1873. Sua Filosofia era niti<strong>da</strong>mente empírica em seu<br />

método. Os trabalhos mais importantes de Brentano estão<br />

voltados ao campo <strong>da</strong> Psicologia, por ele defini<strong>da</strong> como<br />

ciência dos fenômenos psíquicos ou <strong>da</strong> consciência. Os<br />

193 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 193-197, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

objetos de seus estudos não foram, porém, os estados,<br />

mas os atos e processos psíquicos. Segundo ele, o fenômeno<br />

psíquico se distingue dos demais por se referirem<br />

sempre a um objeto, bem como a um conteúdo de consciência,<br />

por meio de mecanismos puramente mentais. À<br />

Psicologia, caberia, então, investigar os diversos modos<br />

pelos quais a consciência institui suas relações com os<br />

objetos nela existentes, descrevendo a natureza de sua<br />

relação, bem como o modo de existência de tais objetos.<br />

Seu trabalho mais importante publicado em vi<strong>da</strong> foi A<br />

Psicologia Segundo o Ponto de Vista Empírico, de 1874.<br />

Foi o mestre de Edmund Husserl, sendo um dos precursores<br />

<strong>da</strong> fenomenologia. Ele é mais conhecido por reintroduzir<br />

o conceito escolástico <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de na<br />

Filosofia e proclamá-la como a marca característica dos<br />

fenômenos psíquicos. Seus ensinamentos, especialmente<br />

sua Psicologia descritiva, influenciaram o movimento<br />

fenomenológico no século XX. O significado <strong>da</strong>s contribuições<br />

de Brentano para a Filosofia e a Psicologia contemporâneas<br />

é ain<strong>da</strong> estranhamente subestimado. A fenomenologia<br />

seria inconcebível sem ele. Ele foi o mestre<br />

de Husserl, influenciando, também, Scheler e Heidegger.<br />

Seu método tem uma notável semelhança, em muitos aspectos,<br />

com os procedimentos do empirismo dos dias de<br />

hoje (Crisholm & Simons, 1998).<br />

1. a teoria <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de<br />

A primeira preocupação de Brentano no campo <strong>da</strong><br />

Psicologia era encontrar uma característica que separasse<br />

os fenômenos psicológicos dos físicos. Foi a partir de<br />

tal tentativa que ele desenvolveu sua doutrina célebre <strong>da</strong><br />

intencionali<strong>da</strong>de como componente determinante dos fenômenos<br />

psicológicos. O termo “intencionali<strong>da</strong>de” é de<br />

crucial importância: todo fenômeno psíquico é caracterizado<br />

por aquilo que os escolásticos <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média<br />

chamavam de in-existência (ou existência em, dentro de)<br />

intencional de um objeto na consciência, ou o que poderíamos<br />

chamar de referência (Beziehung) a um conteúdo,<br />

ou, ain<strong>da</strong>, de direcionamento (Richtung) a um objeto.<br />

Aqui, “in-existência intencional” significa, literalmente,<br />

a existência de uma ‘intentio’ dentro do que pretende ser,<br />

como se encaixado nele. Ou seja, referência a um objeto<br />

é, portanto, a característica decisiva e indispensável do<br />

psíquico: na representação (Vorstellung), algo é representado;<br />

no julgamento, algo é confirmado ou rejeitado; no<br />

desejo, desejamos algo ou alguém etc. Tal “in-existência<br />

intencional” é peculiar somente aos fenômenos psíquicos.<br />

Os fenômenos físicos não apresentam na<strong>da</strong> parecido,<br />

sendo caracterizados, por outro lado, como a falta de tal<br />

referência. Portanto, podemos definir os fenômenos psíquicos<br />

como aqueles que contêm objetos em si mesmos.<br />

Também deve ficar claro que os fenômenos psicológicos<br />

de Brentano são sempre atos ou processos, pois envolvem<br />

as experiências dos sujeitos, bem como seus estados de<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 193-197, jul-dez, 2011<br />

Georges D. J. B. Boris<br />

consciência, o que, então, viria a se tornar um dos padrões<br />

básicos para to<strong>da</strong> análise fenomenológica a partir<br />

<strong>da</strong> Psicologia do Ato de Brentano (Spiegelberg, 1963). O<br />

conceito de intencionali<strong>da</strong>de é, na ver<strong>da</strong>de, um problema<br />

entre Brentano e a fenomenologia. De fato, ele, posteriormente,<br />

desistiu do termo “intencional” porque acreditava<br />

que a sua opinião tinha sido mal interpreta<strong>da</strong>. Portanto,<br />

Brentano não usa a expressão “intencionali<strong>da</strong>de”, mas<br />

“in-existência intencional” para distinguir os fenômenos<br />

psíquicos dos fenômenos físicos. A cor vermelha é um fenômeno<br />

físico, mas, ao se relacionar com a consciência,<br />

torna-se um fenômeno psíquico (Münch, 1997).<br />

2. a Psicologia do Ato de Brentano<br />

Brentano criou um sistema filosófico que era uma síntese<br />

do aristotelismo, do cartesianismo e do empirismo<br />

inglês. Este sistema foi modificado de diferentes formas,<br />

muitas vezes altamente originais, por seus discípulos,<br />

entre os quais, um dos mais importantes foi Edmund<br />

Husserl. Em contraposição a Hegel e seus companheiros<br />

idealistas, a Escola de Brentano foi muito bem sucedi<strong>da</strong><br />

em associar a sua obra filosófica aos modernos desenvolvimentos<br />

no campo <strong>da</strong>s ciências, sobretudo na Psicologia<br />

e na Lingüística. Os alunos de Brentano foram responsáveis<br />

pela fun<strong>da</strong>ção não apenas de novos movimentos<br />

filosóficos, como a fenomenologia, mas, também, novas<br />

perspectivas de investigação científica, tais como as teorias<br />

<strong>da</strong> Gestalt (Smith & Burkhardt, 1991). Como filósofo,<br />

Brentano discordou <strong>da</strong>s teses do empirismo clássico, do<br />

racionalismo e do criticismo kantiano; como psicólogo,<br />

rejeitou a tese associacionista do conteúdo <strong>da</strong> consciência<br />

como algo permanentemente real, assim como as idéias<br />

de Wundt sobre a consciência como um epifenômeno,<br />

reduzido aos seus aspectos fisiológicos. Neste sentido,<br />

Brentano denominou sua perspectiva de Psicologia do<br />

Ato, argumentando que os fenômenos psíquicos constituem<br />

ativi<strong>da</strong>des, não conteúdos. Seu método era empírico,<br />

mas não experimental, como propunha o empirismo<br />

clássico inglês. Afirmava que a Psicologia, à semelhança<br />

<strong>da</strong>s ciências <strong>da</strong> natureza, devia partir <strong>da</strong> percepção<br />

e <strong>da</strong> experiência, sendo a percepção interna seu principal<br />

recurso metodológico. As idéias de Brentano exerceram<br />

forte influência nas Filosofias fenomenológicas de<br />

Husserl, de Scheler e de Heidegger. Embora questionasse<br />

os determinismos biológico e psicológico, não retornou<br />

à Psicologia como estudo <strong>da</strong> alma nem à Filosofia<br />

especulativa. Negava a possibili<strong>da</strong>de de levar o psiquismo<br />

ao laboratório, mas propunha que ele fosse abor<strong>da</strong>do<br />

de forma empírica, não experimental, abandonando a<br />

introspecção como método, já que ela implicava em observação<br />

interna, pois aos fenômenos psíquicos cabia a<br />

percepção interna. Tal proposta está claramente descrita<br />

em seu livro A Psicologia do Ponto de Vista Empírico<br />

(Brentano, 1874/1973):<br />

194


A (Pouco Conheci<strong>da</strong>) Contribuição de Brentano para as Psicoterapias Humanistas<br />

al como as ciências <strong>da</strong> natureza, a Psicologia repousa<br />

sobre a percepção e a experiência. Mas seu recurso<br />

essencial é a percepção interna de nossos próprios<br />

fenômenos psíquicos, consistindo em uma representação,<br />

um julgamento. O que é prazer e dor, desejo e<br />

aversão, esperança e inquietação, coragem e desencorajamento,<br />

decisão e intenção voluntária, nunca o<br />

saberíamos se a percepção interna de nossos próprios<br />

fenômenos não nos lho ensinasse (p. 29).<br />

Brentano considerava a consciência um substrato sintético<br />

de representações, sensações, imagens, lembranças<br />

e esperanças, denominando-as to<strong>da</strong>s de vivências de fenômenos<br />

psíquicos, e, portanto, intencionados. São atos<br />

mentais que se referem a objetos exteriores. A intencionali<strong>da</strong>de<br />

constitui a proprie<strong>da</strong>de essencial <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> consciente,<br />

indicando uma direção ou tensão <strong>da</strong> consciência para<br />

o objeto. A consciência, na Psicologia do Ato de Brentano,<br />

difere <strong>da</strong> consciência cartesiana, que se desdobra sobre<br />

si mesma, enquanto, para Brentano, ela tende sempre a<br />

algo no mundo; assim, denominava-a de consciência intencional.<br />

A intencionali<strong>da</strong>de, como a principal característica<br />

<strong>da</strong> consciência, modifica a noção de experiência<br />

como estrutura e conteúdo. A consciência intencional<br />

constitui uma ativi<strong>da</strong>de na qual os fatos físicos diferem<br />

dos fatos psicológicos, denominados de fenômenos por<br />

Brentano. Os fenômenos psíquicos constituem experiências<br />

intencionais, ocorrendo como representações, juízos<br />

e fenômenos emocionais. Assim, as idéias de Brentano<br />

deram início a uma Psicologia que busca as proprie<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> consciência por meio <strong>da</strong> experiência interna. A partir<br />

<strong>da</strong> sistematização de sua teoria, surgiram a Psicologia <strong>da</strong><br />

Gestalt, a perspectiva lewiniana e a Psicologia fenomenológica,<br />

ou seja, to<strong>da</strong> a Psicologia cuja ênfase recai sobre<br />

a consciência e sua característica fun<strong>da</strong>mental: a intencionali<strong>da</strong>de<br />

(Feijoo, 1999).<br />

Em 1874, ao mesmo tempo em que publicava A<br />

Psicologia do Ponto de Vista Empírico, Brentano foi designado<br />

professor na Universi<strong>da</strong>de de Viena. Lá, permaneceu<br />

até 1895. Gozava de grande populari<strong>da</strong>de entre<br />

os estu<strong>da</strong>ntes, entre os quais estavam Sigmund Freud<br />

e o filósofo Edmund Husserl. Freud assistiu suas aulas<br />

por pelo menos dois anos, exatamente na época em que<br />

Brentano publicou seu famoso livro de 1874, no qual<br />

seu equacionamento entre o físico e o psíquico, o psicossomático,<br />

é mais salientado. O que Freud retirou de<br />

Schopenhauer foi, provavelmente, através de Brentano<br />

(Cobra, 2001). Em 1884, Husserl, matemático de formação,<br />

despertou seu interesse pela Filosofia sob a influência<br />

decisiva de Brentano, seu mestre, influência confirma<strong>da</strong><br />

por Husserl, num texto de 1932: “sem Brentano<br />

eu não teria escrito uma única linha de Filosofia” (conforme<br />

citado por Maciel, 2003, p. 28). Brentano se opunha<br />

à Psicologia experimental, objetiva e mensurante de<br />

Wundt. Distinguia a Psicologia <strong>da</strong> Filosofia, propondo<br />

uma Psicologia empírica, tanto subjetiva quanto objetiva<br />

e, portanto, rigorosa (Penha, 1985). Brentano recomendou<br />

a Husserl que participasse, em 1886, dos cursos, em<br />

Halle, do filósofo e psicólogo Stumpf, seu aluno e colaborador<br />

direto, onde Husserl se interessou pela percepção<br />

e pela imaginação, analisando criticamente os fun<strong>da</strong>mentos<br />

introspectivos e experimentais <strong>da</strong> Psicologia<br />

(Depraz, 2007). Ao publicar sua primeira obra, Filosofia<br />

<strong>da</strong> Aritmética, em 1891, Husserl deduziu que teria que<br />

retornar à tese de Brentano de que to<strong>da</strong> representação<br />

objetiva está fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> numa representação psíquica<br />

pré-mental (Capalbo, 2001).<br />

3. Brentano: uma Filosofia do Presente nas psicoterapias<br />

Humanistas<br />

Poucos sabem, mas a Filosofia do Presente, que afirma<br />

que os fenômenos ocorrem aqui e agora e que o presente<br />

é a única experiência possível (Boris, 1994), nasceu de<br />

Brentano, senão exclusivamente, pelo menos numa parte<br />

decisiva. Neste sentido, para Ramón (2006),<br />

(...) os postulados <strong>da</strong> Psicologia brentaniana não estão<br />

menos presentes na Psicologia <strong>da</strong> Gestalt, de forma<br />

geral, e, de forma muito mais níti<strong>da</strong>, na chama<strong>da</strong><br />

Gestalterapia. Essa influência explica-se pelo fato de<br />

Stumpf (1884-1936) ter sido aluno e colaborador de<br />

Brentano (p. 341).<br />

acrescentando que<br />

(...) o método de centrar-se na descrição imediata dos<br />

fenômenos <strong>da</strong>s experiências vivi<strong>da</strong>s, preconizado<br />

pela Fenomenologia e que teve muita influência<br />

sobre os teóricos <strong>da</strong> Gestalt, antes de ser sistematizado<br />

por Husserl, já havia sido propugnado por<br />

Brentano (p. 341).<br />

Assim, nas psicoterapias humanistas, trabalhar fenomenologicamente<br />

significa que a experiência única e<br />

imediata de nossos pacientes precede to<strong>da</strong> tentativa de<br />

classificação ou de julgamento. Neste sentido, importa<br />

mais que ele descreva sua experiência do que qualquer<br />

tentativa nossa, por mais brilhante que possa parecer, de<br />

interpretá-la (Ribeiro, 1994). Desta forma,<br />

Brentano propõe é que, ao estu<strong>da</strong>r, por exemplo, a<br />

esquizofrenia, não basta apenas conhecer suas bases<br />

genéticas e fisiológicas. O saber científico do transtorno<br />

deve incluir também sua dimensão psicológica,<br />

ou seja, o saber ou significado de ser esquizofrênico<br />

vivenciado por ca<strong>da</strong> sujeito esquizofrênico. Os frutos<br />

<strong>da</strong> chama<strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem fenomenológica <strong>da</strong> psicopatologia,<br />

defendi<strong>da</strong> entre outros por Jaspers, Binswanger<br />

e Rogers, confirmam de forma irrefutável a tese brentaniana<br />

(Ramón, 2006, p. 344).<br />

195 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 193-197, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Nas psicoterapias humanistas que têm como base a<br />

fenomenologia, o psicoterapeuta busca que as pessoas se<br />

deparem com a diferença entre o que é percebido e sentido<br />

na situação presente e o que são resíduos do passado.<br />

As abor<strong>da</strong>gens humanistas privilegiam a percepção<br />

imediata, tratando tanto o que é vivido subjetivamente<br />

no presente quanto o que é objetivamente observado,<br />

considerando-os <strong>da</strong>dos reais e importantes, o que contrasta<br />

com as abor<strong>da</strong>gens que tratam o que o paciente experiencia<br />

como meras aparências e usam a interpretação<br />

para buscar um pretenso significado ver<strong>da</strong>deiro (Yontef,<br />

1998). Neste sentido, endosso a posição de Granzotto &<br />

Granzotto (2010) de que,<br />

(...) para Brentano, tão importante quanto explicar,<br />

com base em um modelo associacionista ou reflexivo,<br />

como opera o intelecto na constituição dos objetos, é<br />

descrever quais as ‘intenções’ (ou de que maneira os<br />

sentimentos e as ações) orientam o intelecto (p. 37).<br />

Destaque-se que tais “intenções” na<strong>da</strong> têm a ver com<br />

o sentido corriqueiro que atribuímos ao termo: “(...) a noção<br />

brentaniana de intencionali<strong>da</strong>de não implica a prévia<br />

concepção de algum objeto, [mas] apenas a antevisão<br />

de um objeto possível” (p. 37). Neste sentido, podemos<br />

compreender a importância <strong>da</strong>s “intuições” do psicoterapeuta<br />

no trabalho de facilitação <strong>da</strong> awareness de seus<br />

pacientes.<br />

A vivência imediata representa o momento de contato<br />

com a reali<strong>da</strong>de, contendo a chave do passado e do futuro<br />

e podendo responder às questões mais sutis de como<br />

o tempo se concretiza e o espaço se temporaliza: tratase<br />

do fenômeno (Ribeiro, 1994). Neste sentido, mais do<br />

que afirmar que as psicoterapias humanistas trabalham<br />

com o presente, prefiro considerar que elas sempre partem<br />

dele, num processo de “presentificação” que atualiza<br />

tanto o passado quanto o futuro.<br />

Para adotar uma atitude ver<strong>da</strong>deiramente fenomenológica,<br />

ou seja, para que possa fazer intervenções descritivas<br />

sem a priori, é imprescindível que o psicoterapeuta<br />

humanista mantenha suas crenças, seus valores e<br />

suas necessi<strong>da</strong>des entre parênteses, o que implica numa<br />

suspensão de seu juízo, tanto na compreensão quanto<br />

na condução <strong>da</strong> situação psicoterápica. Neste sentido,<br />

o psicoterapeuta humanista convi<strong>da</strong> o paciente a descrever<br />

sua experiência, a expandir suas fronteiras e a<br />

alcançar novos significados para o experiencia no presente<br />

<strong>da</strong> situação psicoterápica e em sua própria vi<strong>da</strong><br />

(Aguiar, 2005). Ribeiro (1985) assim descreve o objetivo<br />

<strong>da</strong> fenomenologia:<br />

(...) ela procura descrever a experiência do modo como<br />

ela acontece e se processa. Para tanto é preciso, como<br />

diz Husserl, colocar a reali<strong>da</strong>de entre parênteses,<br />

suspendendo todo e qualquer juízo. Não afirmar,<br />

nem negar, mas antes abandonar-se à compreensão<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 193-197, jul-dez, 2011<br />

Georges D. J. B. Boris<br />

é o modo de atingir a reali<strong>da</strong>de, assim como ela é<br />

(p. 47). [...] Assim, podemos deduzir que “(...) o ato<br />

psicoterapêutico se converte, então, em um ato criativo,<br />

numa busca a dois, se converte numa procura<br />

paciente de descrever, de compreender e analisar a<br />

reali<strong>da</strong>de como vem ao meu encontro” (p. 57).<br />

Considerações finais<br />

De acordo com Granzotto & Granzotto (2007), há uma<br />

ampla gama de influências exerci<strong>da</strong>s pelo criador <strong>da</strong><br />

Psicologia do Ato, em especial no que se refere à Gestalt-<br />

Terapia, mas, também, sobre diversas áreas <strong>da</strong> ciência<br />

psicológica. Neste sentido, em outra obra (Granzotto &<br />

Granzotto, 2010), consideram que a fenomenologia é uma<br />

postura ética, por meio <strong>da</strong> qual se privilegia a descrição<br />

<strong>da</strong>quilo que se mostra desde si mesmo: mais precisamente,<br />

as Gestalten. Da mesma forma, destacam que a fenomenologia<br />

husserliana passou por muitas transformações<br />

desde a ideia de intencionali<strong>da</strong>de de Brentano, e, a partir<br />

dela, podemos detectar diversas repercussões nas psicoterapias<br />

humanistas.<br />

Para Fonseca (2008), a Gestalt-Terapia tem raízes muito<br />

claras na fenomenologia, na Filosofia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de Nietzsche<br />

e, particularmente (pelo menos para os fins deste trabalho),<br />

no empirismo de Brentano: “a raiz <strong>da</strong> Gestalt-Terapia<br />

é Brentano, ou melhor, é o empirismo fenomenológico de<br />

Brentano”. Para ele, Brentano e Nietzsche são as principais<br />

raízes não apenas <strong>da</strong> Gestalt-Terapia, mas, também,<br />

<strong>da</strong> perspectiva de Heidegger.<br />

Assim, portanto, espero que, a partir desta breve explanação,<br />

possamos perceber mais claramente que, apesar<br />

<strong>da</strong>s varia<strong>da</strong>s posições e do questionamento <strong>da</strong> influência<br />

<strong>da</strong> fenomenologia sobre as diversas psicoterapias<br />

humanistas, um ponto comum é apontado com frequência:<br />

na criação de tais abor<strong>da</strong>gens, a principal raiz é o<br />

empirismo de Brentano.<br />

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Georges Daniel Janja Bloc Boris - Psicólogo, Mestre em Educação<br />

e Doutor em Sociologia pela Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará (UFC).<br />

Professor do Programa de Pós-Graduação <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

Fortaleza (UNIFOR). Coordenador do Laboratório de Psicopatologia<br />

e Psicoterapia Humanista-Fenomenológica Crítica - APHETO.<br />

Psicoterapeuta fenomenológico-existencial, supervisor de estágios<br />

em Psicologia Clínica, formador de psicoterapeutas em Gestalt-<br />

Terapia. Endereço Institucional: Universi<strong>da</strong>de de Fortaleza. Aveni<strong>da</strong><br />

Washington Soares, 1321 (Bairro Edson Queiroz). CEP 60811-905.<br />

Fortaleza/CE. E-mail: geoboris@uol.com.br; geoboris@unifor.br<br />

Recebido em 15.06.11<br />

Primeira Decisão Editorial em 08.09.11<br />

Aceito em 10.12.11<br />

197 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 193-197, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 198-204, jul-dez, 2011<br />

Fernan<strong>da</strong> Alt; Carolina M. Campos & André Barata<br />

difiCul<strong>da</strong>deS, deSafioS e poSSiBili<strong>da</strong>deS<br />

paRa uma ClíniCa SaRtReana<br />

Difficulties, Challenges and Possibilities for a Sartrean Clinic<br />

Dificultades, Retos y Posibili<strong>da</strong>des para una Clínica Sartreana<br />

Fe r n a n d a alT<br />

Ca r o l i n a me n d e s Ca m p o s<br />

an d r é Ba r a T a<br />

Resumo: Refletir sobre a possibili<strong>da</strong>de de uma clínica fenomenológico-existencial é ain<strong>da</strong> hoje um grande desafio para os profissionais<br />

e estudiosos deste campo. Por se tratar de um trabalho que parte <strong>da</strong> filosofia, este se revela por vezes mais árduo, ao<br />

se mostrar carente de pressupostos psicológicos. No entanto, esta carência, longe de ser um impedimento, abre espaço para pensarmos<br />

em uma clínica desembaraça<strong>da</strong> <strong>da</strong>s amarras cientificistas e positivistas que impregnaram a psicologia desde o seu nascimento.<br />

Frente a essa possibili<strong>da</strong>de, destacamos dentre as filosofias fenomenológicas e existenciais a de Jean-Paul Sartre, devido<br />

à constante preocupação presente em sua extensa obra de considerar criticamente as teorias psicológicas. É diante deste panorama<br />

que pretendemos, neste artigo, levantar algumas considerações sobre o desafio de pensar e realizar uma psicologia fenomenológico-existencial,<br />

tendo em vista a importância de sustentar o caráter crítico do qual ela é oriun<strong>da</strong>. Para tal, discutimos o<br />

problema <strong>da</strong> “importação” de conceitos por via de noções fun<strong>da</strong>mentais do pensamento de Sartre, como liber<strong>da</strong>de e má-fé.<br />

Palavras-chave: Fenomenologia; Existencialismo; Psicologia clínica; Liber<strong>da</strong>de; Má-fé.<br />

Abstract: Reflecting on the possibility of a phenomenological-existential clinical is still a great challenge for professionals and<br />

scholars of such field. Because it is a work that stems from philosophy, it sometimes proves to be more difficult, as it shows to<br />

have a lack of psychological assumptions. However, this gap, far from being an impediment, opens our minds up for thinking<br />

about a clinical cleared of its scientistic and positivist ties that have permeated psychology since its birth. Faced with this possibility,<br />

we highlight among the existential and phenomenological philosophies the one of Jean-Paul Sartre, owing to his constant<br />

concern during his extensive work to critically consider psychological theories. It is before this scenario that we intend<br />

in this article to raise some considerations about the challenge of thinking and realizing an existential-phenomenological psychology<br />

keeping in mind, at the same time, the importance of preserving the critical character of which it is originated. To this<br />

end, we discussed the problem of the “importation” of concepts by considering some fun<strong>da</strong>mental notions of Sartre’s thought,<br />

like freedom and bad faith.<br />

Keywords: Phenomenology; Existentialism; Clinical psychology; Freedom; Bad faith.<br />

Resumen: Reflexionar sobre la posibili<strong>da</strong>d de una clínica fenomenológica-existencial es to<strong>da</strong>vía un gran desafío para los profesionales<br />

y estudiosos en este campo. Teniendo en cuenta que este es un trabajo que parte de la filosofía, esto a veces resulta ser<br />

más difícil, por mostrar la carencia de los presupuestos psicológicos. Sin embargo, esta carencia, lejos de ser un impedimento,<br />

deja un espacio abierto para pensarnos en una clínica libre de las amarras del cientificismo y del positivismo que ha impregnado<br />

la psicología desde su nacimiento. Ante esta posibili<strong>da</strong>d, destacamos entre las filosofías existenciales y fenomenológicos a<br />

de Jean-Paul Sartre, debido a la constante preocupación presente en su extensa obra de considerar críticamente las teorías psicológicas.<br />

Es en este contexto que pretendemos en este artículo plantear algunas consideraciones sobre el desafío de pensar y<br />

realizar una psicología existencial-fenomenológica teniendo en cuenta la importancia de sustentar el carácter crítico de lo cual<br />

proviene. Con este fin, hemos discutido el problema de la “importación” de conceptos a través de las nociones fun<strong>da</strong>mentales<br />

del pensamiento de Sartre, como la libertad, y la mala fe.<br />

Palabras Clave: Fenomenología; Existencialismo; Psicología clínica; Libertad; Mala fe.<br />

introdução<br />

Considerar as possibili<strong>da</strong>des de uma clínica fenomenológico-existencial<br />

continua, hoje, a ser um desafio para<br />

os profissionais e estudiosos no campo <strong>da</strong> psicologia clínica.<br />

A princípio, esse desafio parece se anunciar pelo<br />

fato de estarmos nos referindo a uma zona de entrecru-<br />

zamentos metodológicos, práticos e conceituais, seja na<br />

referência a uma metodologia fenomenológica, já por si<br />

mesma plural, seja na inspiração numa atitude existencial<br />

que nem sempre, porém, é entendi<strong>da</strong> no sentido de<br />

um existencialismo, seja, enfim, na origem destas perspectivas<br />

não no campo <strong>da</strong> psicologia clínica, mas no <strong>da</strong><br />

filosofia. Tal entrecruzamento nos confronta com os ris-<br />

198


Dificul<strong>da</strong>des, Desafios e Possibili<strong>da</strong>des para uma Clínica Sartreana<br />

cos e dificul<strong>da</strong>des que sempre resultam do diálogo interdisciplinar,<br />

<strong>da</strong>s suas articulações e apropriações, com<br />

migrações conceituais não raras vezes equívocas, bem<br />

como <strong>da</strong> árdua tarefa de fazer a ponte entre o plano <strong>da</strong><br />

teoria psicológica e o <strong>da</strong> prática clínica.<br />

Aliás, a problemática não segue apenas na direção<br />

de entra<strong>da</strong> para o campo <strong>da</strong> psicologia clínica. Já dentro<br />

deste campo, têm sido tantas as abor<strong>da</strong>gens, cambiando<br />

aspectos, inspirações e filiações, que se torna difícil<br />

o mapeamento exato <strong>da</strong>s suas diferenças e, talvez mais<br />

importante, <strong>da</strong>s suas expectativas face ao que o pensamento<br />

fenomenológico e existencial pode trazer à prática<br />

clínica na psicologia. Apesar <strong>da</strong> ingenui<strong>da</strong>de de algumas<br />

formulações adota<strong>da</strong>s pelos psicólogos americanos que,<br />

há mais de meio século, avançaram com a perspectiva<br />

de uma psicologia e de uma psicoterapia existenciais,<br />

Rollo May (1960) já advertia sabiamente que era “duvidoso<br />

que tenha sentido falar-se de um ‘psicólogo ou psicoterapeuta<br />

existencial’, em contraposição a outras escolas”<br />

(p. 17). E explicitava em segui<strong>da</strong> o seu pensamento nos<br />

seguintes termos:<br />

Existencialismo não é um sistema de terapia, mas<br />

uma atitude para com a terapia. Muito embora tenha<br />

conduzido a muitos avanços na técnica, não é um<br />

conjunto de técnicas por si mesmas, mas é um interesse<br />

pela compreensão <strong>da</strong> estrutura do ser humano e<br />

sua experiência que deve sustentar to<strong>da</strong>s as técnicas<br />

(May, 1960, p. 17-18).<br />

Esta exigência de “compreensão <strong>da</strong> estrutura do ser<br />

humano e sua experiência”, no quadro de uma “atitude”<br />

existencial face à terapia não autoriza a sua dogmatização<br />

num receituário de técnicas. Fazer prevalecer a atenção<br />

crítica sobre os esquematismos generalizadores e abstratos<br />

e sobre os determinismos é um dos aspectos mais notáveis<br />

nas reflexões que Jean-Paul Sartre produziu quer<br />

sobre a psicologia, quer sobre a psicanálise.<br />

O presente artigo anima-se deste propósito tão sartriano<br />

de atenção crítica, mas precisamente tomando como<br />

objeto algumas <strong>da</strong>s noções mais celebriza<strong>da</strong>s (e também<br />

por isso muitas vezes simplifica<strong>da</strong>s) que o existencialista<br />

cunhou ao longo <strong>da</strong> sua reflexão. Em concreto, propomos<br />

discutir, com este artigo, a “importação” de noções<br />

sartreanas como as de liber<strong>da</strong>de e má-fé para o âmbito<br />

<strong>da</strong> clínica fenomenológico-existencial.<br />

No itinerário <strong>da</strong> obra de Sartre encontramos reflexões<br />

marcantes, a partir de uma abor<strong>da</strong>gem fenomenológica,<br />

para uma psicologia <strong>da</strong> imaginação e <strong>da</strong>s emoções, bem<br />

como de uma descrição <strong>da</strong>s estruturas psíquicas dos estados<br />

e quali<strong>da</strong>des do Ego. Além <strong>da</strong>s importantes contribuições<br />

para uma psicologia fenomenológica, no sentido<br />

que Edmund Husserl atribuía a esta nova disciplina,<br />

Sartre também sustenta uma longa interlocução com<br />

Sigmund Freud, indicação de uma ambição sua de ir além<br />

de especulações teóricas e desenvolver um esboço me-<br />

todológico que pudesse servir de base para uma prática<br />

clínica. Apesar de discor<strong>da</strong>r de alguns dos pressupostos<br />

fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> psicanálise freudiana como, por exemplo,<br />

a postulação <strong>da</strong> hipótese do inconsciente, esta forma<br />

de abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong>s questões relativas ao homem é a principal<br />

inspiração para o projeto levado a cabo por Sartre<br />

de uma psicanálise existencial. Tal projeto o ocupará<br />

ao longo de sua obra de forma recorrente e significativa,<br />

desde O ser e o na<strong>da</strong> até O idiota <strong>da</strong> família, aliando<br />

às suas críticas metapsicológicas à psicanálise empírica<br />

uma permanente preocupação metodológica, em particular<br />

no que diz respeito à fun<strong>da</strong>mentação de um método<br />

de compreensão do homem.<br />

O fato de podermos identificar no rastro <strong>da</strong> obra de<br />

Sartre um “caminho a seguir” em vista de uma clínica<br />

psicológica de recorte sartriano, dentro do círculo <strong>da</strong>s<br />

abor<strong>da</strong>gens fenomenológico-existenciais, não suprime as<br />

dificul<strong>da</strong>des teóricas e metodológicas a serem enfrenta<strong>da</strong>s.<br />

No intuito de trilhar esse caminho de Sartre devemos,<br />

de início, voltar brevemente nossa atenção para sua<br />

crítica a uma psicologia que ain<strong>da</strong> carregava a marca do<br />

espírito de seu tempo: legitimar-se como ciência empírica,<br />

ao lado de outras ciências empíricas como a física e<br />

a química, alicerça<strong>da</strong>s na ideia de um método científico<br />

natural. Para que a psicologia pudesse alcançar semelhante<br />

status, era necessário desenvolver um método particular<br />

cientificamente equivalente, valendo-se <strong>da</strong>s mesmas<br />

ideias positivistas <strong>da</strong>s ciências <strong>da</strong> natureza. Deste modo,<br />

a psicologia tomou de “empréstimo” de outras disciplinas<br />

já legitima<strong>da</strong>s um molde previamente elaborado, no<br />

qual deveria se encaixar com o máximo de exatidão. Os<br />

problemas subseqüentes deste “empréstimo”, feito pelas<br />

ciências humanas em geral, foram muito bem explorados<br />

por pensadores como Wilhelm Dilthey e Edmund<br />

Husserl, ao afirmarem a necessi<strong>da</strong>de de demarcar as ciências<br />

compreensivas, nelas incluindo-se a psicologia e<br />

to<strong>da</strong>s as disciplinas visando à compreensão do humano,<br />

<strong>da</strong>s ciências naturais e <strong>da</strong> sua epistemologia basea<strong>da</strong> no<br />

princípio <strong>da</strong> explicação causal.<br />

Prosseguindo esta linha de demarcação, Sartre, por<br />

sua vez, imprime o seu cunho crítico aos problemas de<br />

fun<strong>da</strong>mentação epistemológica <strong>da</strong> psicologia. Sua intenção,<br />

aliás, vai além <strong>da</strong> mera crítica epistemológica ao<br />

modelo naturalista positivista ao oferecer pressupostos<br />

<strong>da</strong> fenomenologia de Husserl como alternativa para uma<br />

psicologia, conforme podemos observar em Esboço para<br />

uma teoria <strong>da</strong>s emoções ou em A transcendência do ego.<br />

No Esboço, Sartre (2007) demonstra que o problema <strong>da</strong><br />

psicologia está em estabelecer suas premissas a partir dos<br />

fatos isolados, o que significa que ela busca “encontrar”<br />

na experiência dos fatos o seu objeto sem definir anteriormente<br />

o que seria este objeto. Sabemos que este “objeto”<br />

pesquisado pela psicologia é o homem, e esta falta<br />

de definição anterior acaba, segundo Sartre (2007), por<br />

transformar a idéia de homem em uma abstração, em um<br />

conceito vazio. Para os psicólogos, tal definição aparece<br />

199 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 198-204, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

como resultado dos fatos pesquisados que, agrupados e<br />

classificados, oferecem empiricamente suas características.<br />

Assim, a psicologia parte, de acordo com o filósofo,<br />

de uma pretensa posição “neutra” diante de seu objeto<br />

de estudo, como se o pesquisador pudesse encontrar o<br />

“homem” ao final <strong>da</strong> investigação e não o colocasse em<br />

questão desde o início, esquecendo-se de que ele mesmo<br />

pertence à reali<strong>da</strong>de que estu<strong>da</strong>: “eles (psicólogos) querem<br />

estar diante de seu objeto como o físico diante do dele”<br />

(Sartre, 2007, p. 13). Por conseqüência, o psicólogo acaba<br />

por retirar de sua investigação aquilo que mais interessa<br />

ao fenomenólogo: a significação.<br />

Para a fenomenologia, “todo fato humano é por excelência<br />

significativo” (Sartre, 2007, p. 25), e por esta razão<br />

o ponto de parti<strong>da</strong> deverá ser um estudo dos fenômenos<br />

e não dos fatos empíricos positivos, isto é, partir <strong>da</strong> relação<br />

<strong>da</strong> consciência intencional com o mundo. No caso<br />

<strong>da</strong> emoção, por exemplo – estu<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo psicólogo como<br />

fato psíquico –, a psicologia fenomenológica deverá fazer<br />

uma dupla interrogação ao fenômeno:<br />

Assim, o fenomenólogo interrogará a emoção sobre<br />

a consciência ou sobre o homem, perguntar-lhe-á<br />

não apenas o que ela é, mas o que tem a nos ensinar<br />

sobre um ser do qual uma <strong>da</strong>s características é justamente<br />

ser capaz de se emocionar. E, inversamente,<br />

interrogará a consciência, a reali<strong>da</strong>de humana sobre<br />

a emoção: o que deve ser então uma consciência para<br />

que a emoção seja possível, talvez até para que seja<br />

necessária? (Sartre, 2007, p. 25).<br />

Trata-se de uma questão de ponto de parti<strong>da</strong>, de uma<br />

atitude inicial. A psicologia positivista parte do pressuposto<br />

de que o mundo de alguma forma está <strong>da</strong>do e que o<br />

esforço consiste em estu<strong>da</strong>r com rigor os fatos empíricos<br />

positivos para que deles brotem as ver<strong>da</strong>des. Como diz<br />

Sartre (2007), esta psicologia positivista estu<strong>da</strong> o homem<br />

<strong>da</strong> mesma forma que o botânico analisa e classifica as<br />

plantas, procurando enquadrar o humano em categorias<br />

taxonômicas e leis naturais. Em contraparti<strong>da</strong>, a atitude<br />

fenomenológica, ao buscar as significações, convi<strong>da</strong> a<br />

psicologia a “<strong>da</strong>r um passo atrás” e interrogar, a relação<br />

do homem com o mundo.<br />

Posto isto, é importante evitar quatro confusões recorrentes<br />

acerca do estatuto que Sartre se propõe conferir à<br />

psicologia fenomenológica, mas desde logo clarifica<strong>da</strong>s<br />

nas primeiras páginas de A Transcendência do Ego. Em<br />

primeiro lugar, tal psicologia fenomenológica apresenta-se<br />

como uma disciplina científica, dota<strong>da</strong> <strong>da</strong> mesma ambição<br />

de rigor e objetivi<strong>da</strong>de que quaisquer outras ciências<br />

apregoem para si – longe de se tratar de uma psicologia<br />

anti-científica ou contra o discurso científico, a aposta<br />

<strong>da</strong> psicologia fenomenológica consiste em pensar a ciência<br />

de uma maneira diferente <strong>da</strong> do cientificismo e do<br />

positivismo redutor. Em segundo lugar, o fato de Sartre<br />

começar por um exame crítico <strong>da</strong>s bases epistemológi-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 198-204, jul-dez, 2011<br />

Fernan<strong>da</strong> Alt; Carolina M. Campos & André Barata<br />

cas <strong>da</strong> psicologia do seu tempo, aliás muito inspirado<br />

no movimento de Husserl, não converte a sua psicologia<br />

numa psicologia crítica no sentido em que se contentasse<br />

com o exame <strong>da</strong>s suas condições de possibili<strong>da</strong>de, à<br />

maneira de um tribunal <strong>da</strong> razão kantiano. Em terceiro<br />

lugar, e na sequência do ponto anterior, importa deixar<br />

claro que a psicologia fenomenológica, e a fenomenologia<br />

em geral, não são ciências apriorísticas que constituem<br />

o seu conhecimento independentemente <strong>da</strong> experiência.<br />

Bem pelo contrário, é lema central <strong>da</strong> fenomenologia o<br />

retorno às coisas mesmas, às coisas na sua concreta aparição,<br />

imersas na sua significação integral. Por último, e<br />

concluindo estas sequências de observações, a psicologia<br />

fenomenológica é uma ciência de fatos. Evidentemente,<br />

não uma ciência de fatos empíricos positivos, <strong>da</strong>dos no<br />

seu recíproco isolamento e explicados através de uma<br />

lógica causal conferi<strong>da</strong> externamente, a partir <strong>da</strong> constatação<br />

e generalização de correlações, mas uma ciência<br />

de fatos relativos à consciência, fatos dotados de significação<br />

a esclarecer fenomenologicamente, tal qual se dão<br />

à consciência, seu fato primeiro e absoluto.<br />

A fenomenologia é um estudo científico e não crítico<br />

<strong>da</strong> consciência. O seu procedimento essencial<br />

é a intuição. A intuição, segundo Husserl, põe-nos<br />

na presença <strong>da</strong> coisa. Deve entender-se que a fenomenologia<br />

é, portanto, uma ciência de fato e que os<br />

problemas que ela põe são problemas de fato, como<br />

aliás se pode ain<strong>da</strong> perceber considerando que Husserl<br />

a denomina uma ciência descritiva. Os problemas<br />

<strong>da</strong>s relações do Eu com a consciência são, portanto,<br />

problemas existenciais. (…) Esta consciência já não é<br />

um conjunto de condições lógicas, é um fato absoluto<br />

(Sartre, 1994, p. 45).<br />

Estas são as bases constituintes <strong>da</strong> psicologia fenomenológica<br />

que Sartre propõe nos seus primeiros ensaios e<br />

que servem de apoio para o desdobramento de seu pensamento<br />

existencial como um todo, cujas idéias principais<br />

são: 1) a radicalização do princípio de intencionali<strong>da</strong>de<br />

– retirando à consciência qualquer possibili<strong>da</strong>de de ser<br />

mais do que o movimento de fuga em direção às coisas;<br />

2) a assunção do ser <strong>da</strong> consciência como liber<strong>da</strong>de – retirando-lhe<br />

a possibili<strong>da</strong>de de ser determina<strong>da</strong> por algo<br />

mais além dela mesma; 3) a descrição <strong>da</strong> estrutura meta-estável<br />

<strong>da</strong> consciência – como ser que é o que não é e<br />

não é o que é; 4) a descrição <strong>da</strong> angústia como apreensão<br />

reflexiva <strong>da</strong> própria condição livre e indeterminável<br />

<strong>da</strong> consciência, 5) a má-fé como uma conduta de fuga à<br />

angústia, procurando o descanso de um determinismo,<br />

seja o <strong>da</strong>s condições sociais, seja o de um inconsciente<br />

e suas pulsões, seja o de qualquer outro expediente que<br />

vise alijar as responsabili<strong>da</strong>des pelas próprias escolhas.<br />

Assim, se vai costurando aquilo que com inteira legitimi<strong>da</strong>de<br />

se pode designar por psicologia fenomenológicoexistencial<br />

sartreana, nela podendo incluir-se as bases<br />

200


Dificul<strong>da</strong>des, Desafios e Possibili<strong>da</strong>des para uma Clínica Sartreana<br />

para o projeto que Sartre inicia em O Ser e o na<strong>da</strong> de uma<br />

psicanálise existencial, bem como <strong>da</strong>s suas perspectivas<br />

sobre as relações concretas com o outro.<br />

Contudo, aquela vontade de fazer ciência que animou,<br />

na esteira de Husserl, a psicologia fenomenológica<br />

nas obras iniciais de Sartre, não pode ser sobrestima<strong>da</strong><br />

no quadro do pensamento do existencialista. Pelo contrário,<br />

é crucial compreender em que medi<strong>da</strong> tal ambição<br />

“científica” deve ser situa<strong>da</strong> e subordina<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong><br />

que não supera<strong>da</strong>, se se quiser tomar, em todo o seu alcance,<br />

as consequências do pensamento de Sartre para<br />

uma clínica psicológica. Com efeito, a postura científica,<br />

elabora<strong>da</strong> de dentro de uma disciplina científica, esgota-se<br />

diante <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de remontar do plano do conhecer,<br />

de algum modo sempre já derivado, ao plano <strong>da</strong>s<br />

relações de ser. No essencial, é essa a crítica que Sartre<br />

dirige a Husserl. De outro modo, algo fun<strong>da</strong>mental para<br />

uma clínica psicológica como a compreensão <strong>da</strong>s relações<br />

concretas entre os homens veria as suas possibili<strong>da</strong>des<br />

anular-se. Além disso, o projeto de uma psicanálise<br />

sartreana, justamente porque existencial, perderia a<br />

sua maior originali<strong>da</strong>de se se deixasse enre<strong>da</strong>r na ideia<br />

de uma psicanálise científica. Não está em causa, com<br />

isto, tornar impertinente a questão de um método, mas<br />

a sua configuração como um método pensado através de<br />

requisitos científicos de aplicabili<strong>da</strong>de repeti<strong>da</strong>, previsibili<strong>da</strong>de,<br />

fiabili<strong>da</strong>de, etc. O movimento que leva Sartre de<br />

uma psicologia fenomenológica à afirmação de uma ontologia<br />

fenomenológica não pode, portanto, ser entendido<br />

simplesmente como continuação de um fazer científico<br />

num campo disciplinar delimitado através <strong>da</strong> definição<br />

de um objeto de estudo e aplicação de uma metodologia<br />

para o investigar.<br />

Evidentemente, <strong>da</strong> investigação ontológica sartreana<br />

resulta um “saber” que caracterizará a clínica fenomenológico-existencial<br />

e que mol<strong>da</strong>rá escolhas no relacionamento<br />

terapêutico. Por exemplo, que nenhum a priori,<br />

nenhuma abstração, deve interpor-se na compreensão<br />

<strong>da</strong>s relações inter-pessoais. Tal como a existência precede<br />

a essência, também a ontologia <strong>da</strong> relação precede<br />

qualquer ciência <strong>da</strong> relação. Tal “saber” que precede a<br />

“ciência” deverá incorporar, e assim caracterizar distintivamente,<br />

uma clínica fenomenológico-existencial que<br />

se reclame sartreana.<br />

o problema <strong>da</strong> “importação” de Conceitos filosóficos<br />

na psicologia<br />

De acordo com Ana Maria Feijoo (2009), não são poucas<br />

as in<strong>da</strong>gações em torno do que seria uma psicologia<br />

fenomenológico-existencial, especialmente quando se<br />

trata de pensar uma prática clínica. Em meio a mal-entendidos<br />

e confusões entre correntes de pensamentos,<br />

também não são poucas as dificul<strong>da</strong>des a serem transpostas.<br />

Dentre os percalços inerentes a este caminho,<br />

Feijoo (2009) ressalta a constante e complica<strong>da</strong> tentativa<br />

de junção, na psicologia, <strong>da</strong>s filosofias <strong>da</strong> existência ao<br />

pensamento humanista. No caso de Sartre, pensamos<br />

que essa mistura é acentua<strong>da</strong> pelo próprio autor que dá o<br />

nome de “O Existencialismo é um Humanismo” a uma de<br />

suas conferências que viria a se tornar um de seus textos<br />

mais lidos. Em tal conferência, ele explica que o termo<br />

“humanismo” se aplica em dois sentidos distintos. O primeiro<br />

sentido “toma o homem como meta e como valor<br />

superior” (Sartre, 1987, p. 21), o que acaba por gerar um<br />

tipo de culto <strong>da</strong> “humani<strong>da</strong>de”, na qual ela é vista como<br />

admirável e louvável, conduzindo a uma visão vicia<strong>da</strong><br />

de homem e a um humanismo solipsista. Esta concepção<br />

não se assemelha a do existencialismo sartriano, já<br />

que nela o homem nunca é tomado como meta, como um<br />

modelo vangloriável, que é pronto e fechado em si, “pois<br />

ele (homem) está sempre por se fazer” (Sartre, 1987, p.<br />

21). Se o homem está “por se fazer”, ele é busca por metas<br />

fora de si, em um movimento incessante que expressa<br />

sua indissociável relação com o mundo. O sentido de<br />

“humanismo” que Sartre sustenta remete assim a paradoxal<br />

condição <strong>da</strong> existência, na qual o homem só se faz<br />

homem perdendo-se fora de si.<br />

Talvez Sartre tenha sentido a urgência de privilegiar<br />

o “humano” em to<strong>da</strong> a sua concretude no bojo do<br />

pensamento fenomenológico-existencial, por considerar<br />

que seus precursores deram ou excessiva importância à<br />

questão do conhecimento ou um “passo a mais” na crítica<br />

ao subjetivismo, deixando assim o olhar relativo ao<br />

homem ora embaçado pela poeira racional <strong>da</strong> teoria, ora<br />

perdido em relação à experiência mais concreta e cotidiana.<br />

Neste sentido, o esforço de Sartre é o de recuperar<br />

este “homem-no-mundo” entendido, por sua vez, como<br />

radicalmente distinto do homem exultado no centro do<br />

pensamento humanista.<br />

Na psicologia, esta distinção entre os “humanismos”<br />

se torna essencial, visto que o humanismo clássico se encontra<br />

na base de uma teoria psicológica que enveredou<br />

para o desenvolvimento de uma prática que permanece<br />

liga<strong>da</strong> a pressupostos de ordem <strong>da</strong> natureza humana, afastando-se<br />

<strong>da</strong> formulação básica <strong>da</strong>s teorias existenciais,<br />

na qual “a existência precede a essência”. Apesar de tal<br />

diferença de pressupostos, muitas leituras se formaram<br />

na tentativa de manter essa conexão entre o existencialismo<br />

e o humanismo. Isso se faz notar na própria denominação<br />

corrente de “Psicologia Humanista Existencial”,<br />

muito em voga principalmente a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade<br />

do século XX. A abor<strong>da</strong>gem “Humanista Existencial”<br />

surge como uma tentativa de transpor noções <strong>da</strong> filosofia<br />

fenomenológica e existencial aos princípios <strong>da</strong> Psicologia<br />

clínica, fato que pode ser observado, por exemplo, em algumas<br />

leituras entusiasma<strong>da</strong>s, mas igualmente precipita<strong>da</strong>s,<br />

do pensamento de Sartre por parte de psicólogos<br />

humanistas norte-americanos. Esse movimento suscita,<br />

até hoje, dúvi<strong>da</strong>s quanto aos problemas <strong>da</strong>s “importações”<br />

dos conceitos filosóficos, visto que nesta proposta<br />

201 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 198-204, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

é inevitável pôr a serviço <strong>da</strong> psicologia centra<strong>da</strong> numa<br />

essência de pessoa humana um pensamento que visa<br />

justamente desconstruí-la. Em outras palavras, a abor<strong>da</strong>gem<br />

“Humanista Existencial” se utiliza de noções como<br />

angústia, desamparo, desespero e liber<strong>da</strong>de de modo a<br />

diluí-las em um escopo teórico mais amplo, no qual estas<br />

são acresci<strong>da</strong>s de ideias chaves <strong>da</strong> psicologia clássica<br />

como as de saúde/doença, cura, processo terapêutico e,<br />

sobretudo, ideias humanistas de difícil compatibili<strong>da</strong>de<br />

com o pensamento fenomenológico-existencial como as<br />

de pessoa interior, potenciali<strong>da</strong>de e atualização, crescimento<br />

interior e natureza humana.<br />

Por estas razões, é certo que o humanismo implicado<br />

na terapia centra<strong>da</strong> na pessoa de Carl Rogers, referência<br />

maior <strong>da</strong> psicologia humanista, só enganadoramente pode<br />

encontrar fun<strong>da</strong>mento filosófico, caso dele carecesse, no<br />

pensamento existencial de Sartre, ou mesmo, num sentido<br />

mais amplo, no pensamento fenomenológico tout court<br />

– “Uma psicoterapia centra<strong>da</strong> na pessoa é incompatível<br />

com uma psicoterapia fenomenológica” (Moreira, 2009,<br />

p. 36). Isto não significa, porém, que sejam improcedentes<br />

to<strong>da</strong>s e quaisquer aproximações entre humanismo e<br />

fenomenologia, ou ain<strong>da</strong>, entre humanismo e existencialismo.<br />

São, a este propósito, dignas de nota as leituras do<br />

próprio trabalho rogeriano que testemunham uma mu<strong>da</strong>nça<br />

de perspectiva em sua prática clínica, já não tendo<br />

a “pessoa como centro”, mas visando “para além <strong>da</strong><br />

pessoa”, designa<strong>da</strong>mente a “relação cliente-terapeuta” e<br />

de “campo em comum” (Moreira, 2009, p. 35-36).<br />

A tentativa de evitar uma simples “importação” de<br />

termos filosóficos, mantendo ao mesmo tempo as possibili<strong>da</strong>des<br />

abertas para uma prática clínica parece traduzirse<br />

no desafio <strong>da</strong> psicologia fenomenológico-existencial<br />

ain<strong>da</strong> hoje. Se seguirmos o caminho de Sartre, surpreendentemente<br />

ain<strong>da</strong> tão pouco explorado, podemos compreender<br />

que para que essa clínica seja possível é preciso,<br />

primeiramente, <strong>da</strong>r “um passo atrás” e reencontrar o<br />

solo ontológico donde se constitui fenomenologicamente<br />

uma psicologia. Isto implica em desimpregná-la de suas<br />

bases cientificistas e normativas e tomar o homem não<br />

mais pela perspectiva de uma subjetivi<strong>da</strong>de solipsista,<br />

abstração de si mesmo, mas pela prerrogativa primeira<br />

<strong>da</strong> fenomenologia que aponta para uma relação indissociável<br />

entre o homem-e-seu-mundo.<br />

A possibili<strong>da</strong>de de articulação de uma prática clínica<br />

a partir de Sartre deve, portanto, levar em consideração<br />

este esforço de pensar mais originariamente, ou<br />

seja, na atenta consideração <strong>da</strong>s fontes fenomenológicas<br />

de investigação psicológica. Pautados nesta atitude,<br />

podemos tomar as noções desenvolvi<strong>da</strong>s por Sartre em<br />

torno <strong>da</strong> psicologia como um projeto que ultrapassa sua<br />

própria postulação metodológica de psicanálise existencial.<br />

Camila Gonçalves (2006) ressalta que a psicanálise<br />

sartreana deve também abarcar to<strong>da</strong> a análise ontológica<br />

presente em O Ser e o Na<strong>da</strong>, que envolve descrições<br />

acerca “<strong>da</strong> contingência, <strong>da</strong> factici<strong>da</strong>de, do ser do valor,<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 198-204, jul-dez, 2011<br />

Fernan<strong>da</strong> Alt; Carolina M. Campos & André Barata<br />

do ser dos possíveis, do eu, <strong>da</strong> temporali<strong>da</strong>de, e <strong>da</strong> ipsei<strong>da</strong>de”<br />

(p. 58). Desta forma, devido ao amplo desafio de<br />

produzir uma prática na zona de encontros (ou desencontros)<br />

entre a psicologia e a filosofia, devemos caminhar<br />

de modo a evitar uma busca “apressa<strong>da</strong>” por definições<br />

provenientes <strong>da</strong> ontologia que seriam “importa<strong>da</strong>s” e “diluí<strong>da</strong>s”<br />

em um escopo psicologizante transformando-as<br />

em normatizações.<br />

Tal risco se evidencia, a nosso ver, principalmente em<br />

relação às noções sartreanas de liber<strong>da</strong>de e má-fé que, por<br />

se apresentarem como os jargões de base de um pensamento<br />

amplamente difundido, acabam por ser interpreta<strong>da</strong>s<br />

de forma confusa. Na psicologia, isso se expressa<br />

em uma leitura que faz equivaler liber<strong>da</strong>de e vontade, e<br />

de acordo com a qual a psicoterapia passa a servir como<br />

um espaço de reflexão que visa promover uma atitude<br />

voluntariamente responsável sobre as livres escolhas.<br />

Ora, em tal interpretação a existência se reduz àquilo<br />

que “quero (reflexivamente) ser”; as escolhas são encara<strong>da</strong>s<br />

como enganosas ou autênticas no intuito de direcionarem<br />

as mu<strong>da</strong>nças a serem toma<strong>da</strong>s responsavelmente<br />

pelo sujeito. Esta é, contudo, uma interpretação que se<br />

afasta consideravelmente do espírito e <strong>da</strong> letra do pensamento<br />

de Sartre.<br />

Com efeito, a liber<strong>da</strong>de sartreana em na<strong>da</strong> se equivale<br />

à vontade, pelo contrário; segundo ele, a vontade não é<br />

senão uma anunciadora do que a liber<strong>da</strong>de já escolheu:<br />

“Quando delibero, os <strong>da</strong>dos já estão lançados (...) Quando<br />

a vontade intervém, a decisão já está toma<strong>da</strong>, e a vontade<br />

não tem outro valor senão o de anunciadora” (Sartre,<br />

2001, p. 557). Escolhemos simplesmente porque somos<br />

liber<strong>da</strong>de, esta é uma condição ontológica de nosso ser,<br />

que significa a nossa não determinação por uma natureza<br />

substancial. Tal condição de não-natureza determinante<br />

indica, por si só, que ca<strong>da</strong> traço do existir é uma escolha,<br />

ou, nas palavras de Sartre:<br />

O homem é livre porque não é si mesmo, mas presença<br />

a si. O ser que é o que é não poderia ser livre.<br />

A liber<strong>da</strong>de é precisamente o na<strong>da</strong> que é tendo sido<br />

no âmago do homem e obriga a reali<strong>da</strong>de-humana a<br />

fazer-se em vez de ser (...) para a reali<strong>da</strong>de-humana ser<br />

é escolher-se (Sartre, 2001, p. 545, grifo do autor).<br />

Logo, devemos pensar mais originariamente, a saber,<br />

devemos “pensar contra” a tendência natural de atribuirmos<br />

um caráter reflexivo à escolha, a qual nos joga rapi<strong>da</strong>mente<br />

na interpretação de uma liber<strong>da</strong>de voluntarista<br />

que “escolhe o que quer ser”. Para Sartre (2001), o ideal<br />

<strong>da</strong> vontade é um ideal reflexivo que nos conduz ao “sentido<br />

<strong>da</strong> satisfação que acompanha um juízo como ‘fiz o<br />

que quis’” (p. 558). A escolha fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />

sartreana é anterior a reflexão, é irrefleti<strong>da</strong> e espontânea,<br />

constitutiva dos próprios caminhos <strong>da</strong> reflexão. Isto indica<br />

uma principiali<strong>da</strong>de e autonomia do irrefletido em<br />

Sartre, como destaca Pedro Alves (1994), posto que “no<br />

202


Dificul<strong>da</strong>des, Desafios e Possibili<strong>da</strong>des para uma Clínica Sartreana<br />

seio <strong>da</strong> vivência irrefleti<strong>da</strong>, se consuma já um saber atemático<br />

de si que é independente e autônomo relativamente<br />

à consciência reflexiva” (p. 11). Em outras palavras,<br />

esse saber atemático <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> irrefleti<strong>da</strong> se dá pelo que<br />

Sartre denominou de cogito pré-reflexivo, uma relação<br />

primeira <strong>da</strong> consciência consigo mesma, que se escolhe<br />

anteriormente e independentemente de qualquer reflexão.<br />

Escolhas irrefleti<strong>da</strong>s e espontâneas não representam, assim,<br />

uma eleição de si aliena<strong>da</strong> e irresponsável, mas apenas<br />

um movimento original. A responsabili<strong>da</strong>de existencial<br />

em Sartre se aproxima a noção de cui<strong>da</strong>do (sorge) de<br />

Heidegger, na qual mesmo o descuido é compreendido<br />

como uma forma de ser cui<strong>da</strong>do. Isso também vale para<br />

a responsabili<strong>da</strong>de sartreana, já que mesmo decidindo<br />

sobre mim de forma irrefleti<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> assim sou responsável<br />

pelo que escolho, não havendo necessi<strong>da</strong>de de um<br />

recurso de segundo grau (reflexão), para que a responsabili<strong>da</strong>de<br />

entre em jogo.<br />

Dentro desta mesma perspectiva podemos considerar<br />

que também a noção de má-fé corre o risco de ser interpreta<strong>da</strong><br />

equivocamente e, dessa forma, acabar submeti<strong>da</strong><br />

a uma chave interpretativa redutora. Aliás, a própria denominação<br />

má-fé conduz facilmente a uma interpretação<br />

de cunho moralista, visto que pode soar como uma adjetivação<br />

que remete a algo ruim, disfuncional. Por conseguinte,<br />

tal olhar pode transformar a compreensão deste<br />

fenômeno em um rígido campo de julgamento entre escolhas<br />

certas e erra<strong>da</strong>s. Contudo, há, de fato, uma moral<br />

em Sartre. Porém, ela não se aproxima do que podemos<br />

considerar como uma moral dita tradicional, que articula<br />

em seu bojo valores como Bem e Mal. Só pode existir uma<br />

moral em Sartre se a situarmos como uma moral que se<br />

estabelece na e pela liber<strong>da</strong>de e, neste contexto, Bem e<br />

Mal não podem ser tomados como valores objetivos <strong>da</strong>dos<br />

a priori e sequer podem ser pensados apartados <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de inventiva de uma liber<strong>da</strong>de que cria valores e<br />

doa sentido ao mundo. Simone de Beauvoir (2005) afirma<br />

que é próprio de to<strong>da</strong> moral tradicional “considerar<br />

a vi<strong>da</strong> humana como uma parti<strong>da</strong> que se pode ganhar ou<br />

perder, e ensinar ao homem o meio de ganhar” (p. 25). A<br />

principal diferença entre os princípios estruturantes <strong>da</strong><br />

Moral – tradicional e sartreana – se dá, justamente, no<br />

ponto de parti<strong>da</strong>: a concepção de homem. Como resume<br />

muito bem Beauvoir:<br />

Não se propõe moral a um Deus; é impossível propôla<br />

a um homem se o definirmos como natureza, como<br />

<strong>da</strong>do; as morais ditas psicológicas ou empíricas<br />

não logram constituir-se a não ser introduzindo<br />

subrepticiamente alguma falha no seio do homemcoisa<br />

que elas primeiramente definiram (Beauvoir,<br />

2005, p. 16).<br />

Partindo, então, <strong>da</strong> concepção de homem pelo viés sartriano<br />

nos deparamos com uma reali<strong>da</strong>de humana que é<br />

liber<strong>da</strong>de, que se define por sua perpétua incompletude.<br />

O homem que nunca está pronto pode somente “brincar<br />

de ser” to<strong>da</strong> vez que esboça definir para si uma identi<strong>da</strong>de<br />

fecha<strong>da</strong>. Do mesmo modo que a moral só faz sentido<br />

a uma reali<strong>da</strong>de humana inacaba<strong>da</strong> também a má-fé só é<br />

possível ao ser que nunca é capaz de coincidir totalmente<br />

consigo mesmo: “se eu fosse triste ou covarde assim como<br />

o tinteiro é tinteiro, sequer seria concebível a possibili<strong>da</strong>de<br />

de má-fé” (Sartre, 2001, p. 113). Assim, a má-fé não<br />

se trata de um modo de ser “errado” ou uma escolha falsa,<br />

e sim de uma possibili<strong>da</strong>de sempre em aberto e volta<br />

e meia realiza<strong>da</strong> pelo homem, isto é, atalhos inevitáveis<br />

em seu percurso existencial.<br />

Aliás, to<strong>da</strong> interpretação do fenômeno <strong>da</strong> má-fé arrisca<br />

incorrer num equívoco se não for feita a partir de<br />

uma perspectiva ontológica, que é a que Sartre desenvolve<br />

em O ser e o na<strong>da</strong>, e se, pelo contrário, se fixar, desde<br />

logo, num plano moral, de considerações normativas,<br />

sobre o que se deve e o que não se deve fazer (Anderson,<br />

1993). De outro modo, seriam, por exemplo, ininteligíveis<br />

os momentos em que Sartre considera até a sinceri<strong>da</strong>de<br />

como uma forma de má-fé. Por outro lado, importa<br />

distinguir dois âmbitos: um, persistente, em que podemos<br />

falar de uma escolha original de má-fé, e que assim<br />

estruturará todo o projeto de ser como projeto de má-fé;<br />

outro, transitório, em que ambas, a má-fé e a boa-fé são<br />

proporciona<strong>da</strong>s pela própria disposição meta-estável <strong>da</strong><br />

consciência, podendo uma converter-se facilmente na<br />

outra consoante a conveniência <strong>da</strong>s escolhas projeta<strong>da</strong>s<br />

(Catalano, 1985). Na ver<strong>da</strong>de, neste sentido transitório,<br />

a má-fé pode bem ser indispensável para que uma consciência<br />

se determine inteiramente a ser as escolhas que<br />

faz, vencendo o impasse <strong>da</strong> angústia (Barata, 2005). Em<br />

suma, o sentido profundo <strong>da</strong> má-fé se traduz brilhantemente<br />

nas palavras de Gerd Bornheim (2007): “a reali<strong>da</strong>de<br />

humana nunca está realmente em casa, e quando pensa<br />

que está, incide em má-fé. O homem se habita perpetuamente<br />

como um estranho” (p. 126).<br />

Pretendemos ter explorado aqui, justamente, algumas<br />

dificul<strong>da</strong>des e constantes fontes de mal-entendidos que,<br />

por vezes, acabam nos levando a leituras normatizantes,<br />

distorcendo, assim, os significados de noções caras ao<br />

pensamento sartriano. Como vimos, essas confusões se<br />

dão, principalmente, quando ocorre uma simples “importação”<br />

de conceitos <strong>da</strong> filosofia à psicologia, retirando<br />

dos mesmos sua riqueza de origem. Contudo, esses impasses<br />

não representam um impedimento ao diálogo interdisciplinar<br />

entre tais áreas, mas apenas dificul<strong>da</strong>des<br />

a serem trabalha<strong>da</strong>s que indicam, muito pelo contrário,<br />

possibili<strong>da</strong>des necessárias para quem deseja compreender<br />

o homem fora dos determinismos e dos reducionismos<br />

her<strong>da</strong>dos pela psicologia desde o seu nascimento no<br />

auge do positivismo. Além do mais, percebemos que um<br />

olhar atento a esses temas aponta para um necessário delineamento<br />

<strong>da</strong> relação <strong>da</strong> psicologia fenomenológica de<br />

Sartre com a questão <strong>da</strong> ciência e do humanismo. Este<br />

mesmo olhar atento é que nos guia, portanto, a pensar<br />

203 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 198-204, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

as dificul<strong>da</strong>des, desafios e possibili<strong>da</strong>des de uma clínica<br />

com inspiração sartreana.<br />

Resulta de to<strong>da</strong>s essas considerações, que o ponto de<br />

parti<strong>da</strong> adotado pelo psicólogo revela-se essencial para<br />

definir de que forma as relações podem ser articula<strong>da</strong>s no<br />

espaço clínico. Partindo <strong>da</strong> ontologia proposta por Sartre<br />

e de seu projeto de psicanálise existencial não podemos<br />

ansiar “corrigir” o homem em suas escolhas em busca<br />

de um processo terapêutico que potencialize uma atitude<br />

mais “livre” e saudável. Quando buscamos pensar a<br />

prática clínica a partir de Sartre devemos compreender,<br />

a princípio, que para o homem que está em vias de se<br />

fazer, que escapa a to<strong>da</strong> e qualquer lei de causali<strong>da</strong>de e<br />

determinismo, não existem explicações e caminhos prévios<br />

a serem alcançados. Longe de uma visão de natureza<br />

humana, de uma liber<strong>da</strong>de voluntarista e de uma má-fé<br />

sentenciadora,o que existe são possibili<strong>da</strong>des de ser que<br />

podem ser mais bem conheci<strong>da</strong>s e que, assim, colaboram<br />

para revelar esta perpétua escolha que o homem tem que<br />

fazer de si. Também, a fenomenologia nos mostra que a<br />

atitude de mover-se em direção a algo é constitutiva do<br />

próprio fenômeno. Portanto, compreendemos que sem<br />

este movimento de <strong>da</strong>r “um passo atrás”, convite <strong>da</strong> fenomenologia<br />

à psicologia, esta última corre o risco de produzir<br />

relações que, ao invés de abrir um campo de possibili<strong>da</strong>des<br />

de ser para aqueles que estão “em questão” na<br />

relação clínica, acaba por enclausurá-los em suas próprias<br />

ver<strong>da</strong>des inquestionáveis. Desta forma, os contornos que<br />

circunscrevem uma relação clínica com base sartreana<br />

estão ain<strong>da</strong> por serem definidos, mas precisamos, antes<br />

de tudo, libertar essa relação <strong>da</strong>s tendências aprisionadoras,<br />

que reduzem nossa visão de homem a simples esquemas<br />

teóricos. Por fim, seguindo uma inspiração sartrean,<br />

propomos que o objetivo de tal psicologia clínica<br />

deve ser entendido como aquilo que possa tornar a vi<strong>da</strong><br />

humana, de alguma forma, mais possível.<br />

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tese de Sartre. Em Jean-Paul Sartre, A transcendência do<br />

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Cultura: São Paulo.<br />

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Petrópolis: Vozes.<br />

Sartre, J-P. (2007). Esboço para uma teoria <strong>da</strong>s emoções. Porto<br />

Alegre: L&PM.<br />

Fernan<strong>da</strong> Alt - Psicóloga clínica, Mestre em Psicologia Social pela<br />

UERJ, e gradua<strong>da</strong> em Psicologia pela PUC-Rio. Foi professora substituta<br />

<strong>da</strong> UFRJ e atualmente dá aulas sobre existencialismo na Especialização<br />

em Psicologia Clínica do IFEN e em outros cursos de especialização.<br />

Endereço Institucional: Rua Barão de Pirassununga, 62 – Tijuca, Rio<br />

de Janeiro – RJ. E-mail: fernan<strong>da</strong>alt@gmail.com<br />

Carolina Mendes Campos - Psicóloga clínica, Doutoran<strong>da</strong> em<br />

Psicologia <strong>da</strong> Puc-Rio, Mestre em Psicologia também pela PUC-Rio<br />

e Professora <strong>da</strong> Especialização em Psicologia Clínica do Instituto<br />

de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro (IFEN).<br />

Endereço Institucional: Rua Barão de Pirassununga, 62 – Tijuca, Rio<br />

de Janeiro – RJ. E-mail: carolinamendescampos@gmail.com<br />

André Barata - Professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Beira Interior (UBI)<br />

em Portugal, além de filósofo com doutoramento em filosofia<br />

contemporânea pela Universi<strong>da</strong>de de Lisboa. Foi professor visitante<br />

do Instituto de Psicologia <strong>da</strong> UERJ. É autor de livros e artigos<br />

sobre filosofia e fenomenologia. Seus últimos títulos são “Mente e<br />

consciência - ensaios de filosofia <strong>da</strong> mente e fenomenologia” (2009) e<br />

“Sentidos de liber<strong>da</strong>de” (2007). Endereço Institucional: Universi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> Beira Interior, Facul<strong>da</strong>de de Artes e Letras, Rua Marquês d’Ávila e<br />

Bolama, 6200-001 Covilhã, Portugal. E-mail: abarata@ubi.pt<br />

Recebido em 04.02.11<br />

Primeira Decisão Editorial em 06.08.11<br />

Aceito em 03.10.11<br />

204


Uma Análise Existencialista para um Caso Clínico de Transtorno Obsessivo Compulsivo<br />

uma análiSe exiStenCialiSta paRa um CaSo ClíniCo<br />

de tRanStoRno oBSeSSivo CompulSivo 1<br />

An Existential Analysis for a Case of Obssessive Compulsive Disorder<br />

El análisis existencial para un caso deTrastorno obsesivo-compulsivo<br />

Sy lv i a ma r a pir e s d e Fr e i Ta s<br />

Resumo: O presente relato de experiência se refere ao desvelamento do Projeto de Ser de uma mulher de 35 anos, que apresenta<br />

um quadro de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), experienciado pela mesma como um evento ahistórico, singular, desconectado<br />

de uma possível construção com o social, e entendendo-o como de sua única responsabili<strong>da</strong>de. Sendo histórico, dialético<br />

e social, o homem sartreano deve ser compreendido em to<strong>da</strong> trama de sua existência, assim, os pensamentos obsessivos<br />

e os comportamentos compulsivos, apresentados pela cliente, apesar de poderem ser identificados tais como descritos no DMS<br />

IV, anunciam uma existência inun<strong>da</strong><strong>da</strong> pela vivência contraditória entre o Ser-para-si e o Ser-para-o-outro. A estrutura deste<br />

relato busca seguir a metodologia para a compreensão terapêutica do Projeto de Ser <strong>da</strong> cliente, segundo a Psicologia Clínica de<br />

base sartreana, a qual engendra o caminho de conscientização sobre os fun<strong>da</strong>mentos e nexos <strong>da</strong>s ações do sujeito, favorecendo<br />

reflexões sobre os fatores que constituem seu Projeto de Ser, e assim sua apropriação pelo mesmo.<br />

Palavras-chave: Psicoterapia existencialista; Transtorno obsessivo compulsivo; Projeto de ser.<br />

Abstract: This experience report provides readers the unveiling of Project Being a woman of 35 years, which presents a nosological<br />

of Obsessive Compulsive Disorder (Ocd), experienced the same event as an ahistorical, singular, disconnected from a possible<br />

construction with the social, and understanding it as your sole responsibility. As historical, dialectical and social Sartrean<br />

man must be understood in any plot of his existence, so the obsessive thoughts and compulsive behaviors presented by the client,<br />

although they can be identified as described in the DMS IV, announce a flooded existence the contradictory experience of<br />

Being-for-itself and Being-for-the-other. The structure of this report seeks to follow the methodology for the design of therapeutic<br />

understanding of Being customer, according to the Clinical Psychology of Sartre’s base, which generates the path of awareness<br />

about the foun<strong>da</strong>tions and links the actions of the subject, encouraging reflection on the factors that Project constitute its<br />

being, and thus its appropriation for the same.<br />

Keywords: Existential psychotherapy; Obsessive compulsive disorder; Project self.<br />

Resumen: Este informe proporciona a los lectores la experiencia con la presentación del Proyecto Ser una mujer de 35 años,<br />

que presenta una nosológica del trastorno obsesivo compulsivo (Toc), experimentó el mismo evento como un singular ahistórica,<br />

desconectado de una posible construcción con lo social, y la comprensión como de su exclusiva responsabili<strong>da</strong>d. Como<br />

histórico, el hombre sartreano dialéctico y social debe ser entendi<strong>da</strong> en cualquier parcela de su existencia, por lo que los pensamientos<br />

obsesivos y comportamientos compulsivos presenta<strong>da</strong> por el cliente, aunque se pueden identificar como se describe<br />

en el IV DMS, anunciar una existencia inun<strong>da</strong>do la experiencia contradictoria del ser-para-sí y el ser-para-el-otro. La estructura<br />

de este informe trata de seguir la metodología para el diseño de la comprensión terapéutica de ser cliente, de acuerdo<br />

con la Psicología Clínica de la base de Sartre, que genera el camino de la conciencia acerca de los fun<strong>da</strong>mentos y los enlaces<br />

de las acciones del sujeto, fomentando la reflexión sobre los factores que proyecto constituye su ser, y por lo tanto su apropiación<br />

para el mismo.<br />

Palabras-clave: La psicoterapia existencial; Trastorno obsesivo-compulsivo; Proyecto libre.<br />

introdução<br />

Apesar de o título deste artigo colocar em relevo uma<br />

nomenclatura referente a um quadro nosológico (DSM<br />

IV e CID-10), a análise compreensiva do caso clínico<br />

não se fecha nos sintomas que configuram o Transtorno<br />

Obsessivo Compulsivo (TOC). Esta nomenclatura serve<br />

1 Palestra proferi<strong>da</strong> na mesa redon<strong>da</strong> do I Congresso Sul-Brasileiro de<br />

Fenomenologia & I Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná,<br />

realizado na Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba,<br />

de 04 a 07 de junho de 2011.<br />

mais como uma provocação para mostrar como é fácil<br />

reduzirmos nosso olhar à existência de uma pessoa, por<br />

meio de uma classificação diagnóstica.<br />

Em nosso empreendimento, o sujeito será compreendido<br />

em sua totali<strong>da</strong>de, sendo a uni<strong>da</strong>de nosológica<br />

integra<strong>da</strong> a to<strong>da</strong> dimensão <strong>da</strong> existência deste, que também<br />

se constitui pelo quadro sadio. A análise terá como<br />

base a Psicanálise Existencial sartreana, tal como propõe<br />

Schneider (2002; 2011).<br />

O destaque <strong>da</strong>do ao quadro nosológico, objetivou também<br />

evidenciar o momento em que a cliente procurou a<br />

205 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 205-214, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

terapia. Schneider (2011, p. 190) coloca, tendo como base<br />

o argumento de Jaspers (1979), que:<br />

[...] a questão psicopatológica fun<strong>da</strong>mental é o desenvolvimento<br />

de uma personali<strong>da</strong>de, horizonte em que<br />

ela deve ser compreendi<strong>da</strong>. Pode ocorrer que certa<br />

sintomatologia, a princípio específica, vá aos poucos<br />

se apoderando <strong>da</strong> existência inteira e acorrentando a<br />

personali<strong>da</strong>de.<br />

Sendo assim, ao encontrar-me com Sol 2 pela primeira<br />

vez, percebi sua existência inun<strong>da</strong><strong>da</strong> pelos pensamentos<br />

obsessivos e ações compulsivas, mas apesar deste destaque,<br />

também mostrava questionamentos que denunciavam<br />

senso crítico sobre sua situação.<br />

Os pensamentos obsessivos e os comportamentos<br />

compulsivos, como todos os outros atos do sujeito, devem<br />

ser visados em suas finali<strong>da</strong>des e não como uma<br />

soma de manifestações. Em ca<strong>da</strong> ato há o fun<strong>da</strong>mento<br />

<strong>da</strong> inteireza do sujeito. Conhecendo como transcende a<br />

tensão entre mundo concreto e o simbólico, uma vez que<br />

homem e mundo se dialogam fazendo-se mutuamente,<br />

é que podemos chegar a seu projeto fun<strong>da</strong>mental. Em<br />

ca<strong>da</strong> síntese sua história singular e a <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de<br />

são construí<strong>da</strong>s.<br />

É pelo método sartreano que proponho compartilhar<br />

com o leitor mais uma maneira de investigar, compreender<br />

e eluci<strong>da</strong>r o mundo de uma pessoa cujo projeto<br />

de ser foi construído sob os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong>s relações<br />

dualistas entre o certo e errado e do perfeito e imperfeito.<br />

E na vivência do conflito entre o que deve ser e<br />

o que é, mostra algumas ações impregna<strong>da</strong>s pela preocupação<br />

com a necessi<strong>da</strong>de de convencer-se de que seu<br />

Ser corresponde ao ideal imposto na infância e, diante<br />

a experiência duvidosa sobre a veraci<strong>da</strong>de do mesmo,<br />

compele-se a agir de maneira a aliviar a angústia<br />

<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de não Ser, com isso desenvolve comportamentos<br />

identificados como Transtorno Obsessivo<br />

Compulsivo (TOC).<br />

Entre o Ser conforme os modelos apreendidos e o<br />

que é, o sujeito se perde na contradição conti<strong>da</strong> nas informações<br />

interioriza<strong>da</strong>s: deve ser não sendo o que é.<br />

Não conseguindo ser o que não é, confirma o ser não<br />

perfeito, mas experiencia essa vivência sob o manto<br />

<strong>da</strong> culpa.<br />

Para melhor compreender a metodologia utiliza<strong>da</strong><br />

para a realização <strong>da</strong> análise do caso em questão, situarei<br />

brevemente o método sartreano para investigação <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de humana, como já coloquei anteriormente, conforme<br />

eluci<strong>da</strong>do por Schneider (2002; 2011).<br />

2 Por questão ética, referir-me-ei a cliente por este pseudônimo.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 205-214, jul-dez, 2011<br />

Sylvia M. P. de Freitas<br />

em Busca <strong>da</strong> Compreensão do projeto de Ser<br />

O projeto de Sartre (1943/1999; 1960/2002), no desvelamento<br />

do empreendimento humano, transcendeu os três<br />

principais pensadores que deram base para sua teoria: (1)<br />

O Eu transcendente de Husserl (1901/1988) perde o sentido,<br />

haja vista que para Sartre, a consciência é “desprovi<strong>da</strong><br />

de conteúdos formais e materiais” (Cahet, 2008, p.<br />

04), inclusive de um Eu. Sendo este constituído pelo ato<br />

reflexivo, o Eu sartreano reside no mundo, logo é um Eu<br />

transcendido. Somente pela consciência <strong>da</strong> sua criação<br />

de seu Eu, na relação com o mundo, que o homem pode<br />

assumir a responsabili<strong>da</strong>de pelas suas escolhas, pelo seu<br />

Projeto de Ser; (2) a busca pela compreensão do Ser ontológico<br />

heideggeriano, para Sartre deve ser foca<strong>da</strong> no<br />

Para-si e suas condutas, construído pela relação dialética<br />

entre subjetivi<strong>da</strong>de e objetivi<strong>da</strong>de e; (3) na proposta<br />

marxista de conhecer o homem concreto que transforma<br />

o mundo. Sartre ao invés de “[...] descrever a reali<strong>da</strong>de a<br />

partir de categorias universais (economia, modo de produção,<br />

classe social)” (Schneider, 2002, p. 118), resgata<br />

o indivíduo na relação com o coletivo. A concretude <strong>da</strong><br />

existência individual e social se dá, para Sartre, através<br />

<strong>da</strong> interdependência do diálogo entre ambos.<br />

Através dessas e outras superações, o homem sartreano<br />

possui características de um Ser histórico, dialético<br />

e também social, visto que a singulari<strong>da</strong>de não se opõe<br />

à coletivi<strong>da</strong>de e vice versa. Ca<strong>da</strong> ato do sujeito circunscreve<br />

os contextos familiar, social, cultural, econômico,<br />

político, intelectual, bem como a história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de<br />

é construí<strong>da</strong> através de ca<strong>da</strong> escolha singular que tece<br />

com to<strong>da</strong>s as outras a trama do universal. Assim, através<br />

de sua antropologia podemos compreender a práxis<br />

que tem em seu bojo a conversão do processo existencial<br />

e do histórico.<br />

Quiçá, por uma concepção dicotomiza<strong>da</strong> do indivíduo<br />

e do coletivo, corrobora<strong>da</strong> também pelas teorias<br />

sociais que se opõem a concepção de indivíduo <strong>da</strong>s teorias<br />

psicológicas, por sua vez construí<strong>da</strong>s sob a influência<br />

<strong>da</strong> atmosfera liberalista e neoliberalista, é que<br />

ain<strong>da</strong> esbarramos na incompreensão do Ser dialético.<br />

Mas mesmo assim, realizando uma leitura dialética,<br />

neste próprio movimento de oposição, a ver<strong>da</strong>de construí<strong>da</strong><br />

por uma parte dependeu <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de já construí<strong>da</strong><br />

historicamente pela outra, como ponto de referência<br />

para a refutação.<br />

Ao descartarmos a compreensão dialética, negamos o<br />

diálogo entre o homem e o mundo, bem como contribuímos<br />

com o impedimento de uma <strong>da</strong>s atitudes, que podemos<br />

considerar como um dos pilares <strong>da</strong> teoria sartreana:<br />

o assumir a responsabili<strong>da</strong>de por nossas escolhas.<br />

Sendo a consciência sempre intencional (de e para alguma<br />

coisa), todos os nossos atos são livres, solitários e a<br />

nós cabe responder por eles. A liber<strong>da</strong>de de nossas escolhas<br />

e consequentes ações nelas fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s,<br />

206


Uma Análise Existencialista para um Caso Clínico de Transtorno Obsessivo Compulsivo<br />

[...] por mais aliena<strong>da</strong> que seja[m], sempre transforma[m]<br />

o mundo. Isto porque o que caracteriza o homem é<br />

a sua transcendência, pois ele ‘sempre faz alguma<br />

coisa <strong>da</strong>quilo que fizeram dele’, mesmo que ele não se<br />

reconheça na sua ação. Ain<strong>da</strong> que alienados, somos<br />

sujeitos de nossa história. Essa transcendência, que<br />

faz o sujeito ir além <strong>da</strong>quilo que lhe é determinado<br />

pela materiali<strong>da</strong>de, pela socie<strong>da</strong>de, é o que Sartre<br />

denomina de projeto [grifos <strong>da</strong> autora] (Schneider,<br />

2002, p. 120).<br />

Resumindo: as ver<strong>da</strong>des são os projetos singulares/<br />

universais construí<strong>da</strong>s no percurso histórico <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de,<br />

através <strong>da</strong>s relações dialéticas estabeleci<strong>da</strong>s entre<br />

indivíduo/mundo, indivíduo/coletivi<strong>da</strong>de, subjetivi<strong>da</strong>de/<br />

objetivi<strong>da</strong>de. São cria<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ação<br />

individual que, ao se apropriar <strong>da</strong>s diversas ver<strong>da</strong>des objetivas<br />

do mundo, escolhe assimila-las, sufocar-se nelas<br />

ou rejeita-las (Schneider, 2002).<br />

Para compreender o projeto de Ser de uma pessoa,<br />

temos que considerar as condições reais que circun<strong>da</strong>m<br />

sua existência concreta, situa<strong>da</strong> e defini<strong>da</strong> durante to<strong>da</strong><br />

sua história, através de contextos objetivos que podem<br />

oferecer-lhe possibili<strong>da</strong>des e limitações. Por sua vez, os<br />

obstáculos e facili<strong>da</strong>des, também assim serão significados<br />

de acordo com o projeto de Ser.<br />

Sartre (1960/2002) propõe o método progressivo-regressivo<br />

para se realizar a compreensão do projeto de<br />

Ser de uma pessoa. Um método heurístico que permite,<br />

progressivamente, nos aproximar <strong>da</strong> história do sujeito.<br />

Partindo de suas experiências, tomamos uma atitude<br />

compreensiva para perceber o sentido <strong>da</strong>do por ele a ca<strong>da</strong><br />

um de seus atos. Comparando as uni<strong>da</strong>des de sentido entre<br />

estes, chegamos ao seu projeto fun<strong>da</strong>mental.<br />

Tal método se faz importante, já que:<br />

[...] o homem deve ser encontrado inteiro em to<strong>da</strong>s<br />

as suas manifestações. O modo de vi<strong>da</strong>, os trajes, a<br />

postura política e moral, a fala, etc, remetem sempre<br />

ao projeto do indivíduo, que, como vimos, é fruto<br />

<strong>da</strong>s condições materiais, sociais históricas em que<br />

ele está inscrito (objetivo) e <strong>da</strong> sua apropriação ativa<br />

por parte do sujeito (subjetivo). A compreensão <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de humana passa, portanto, pelo movimento<br />

dialético de compreensão entre o objetivo e o subjetivo<br />

(Schneider, 2002, p. 121).<br />

Diante o exposto, os diagnósticos psiquiátricos tradicionais<br />

recortam a existência do indivíduo. Sendo definidos<br />

a partir de alguns comportamentos que expressam a<br />

leitura <strong>da</strong> média abstraí<strong>da</strong> de um coletivo, desconsidera<br />

a minoria excluí<strong>da</strong> dessa média, bem como a singulari<strong>da</strong>de<br />

no diálogo com o mesmo. Reduzir ao diagnóstico a<br />

compreensão do projeto de Ser, é desconsiderar a construção<br />

dialética, histórica e social do sujeito. É restringir<br />

o processo existencial, tornando-o estanque. Mesmo que<br />

o diagnóstico nos seja útil para entendermos alguns comportamentos<br />

à luz <strong>da</strong> teoria, ele (diagnóstico) por si, nunca<br />

refletirá o sentido <strong>da</strong>do pelo sujeito à sua existência.<br />

Buscarei a seguir, apresentar a biografia de Sol, uma<br />

vez que, segundo Schneider, as biografias possibilitam<br />

[...] a compreensão rigorosa do ser dos seus biografados,<br />

[...] devem expor um homem enquanto<br />

totalizações, e não como um conjunto fragmentário<br />

de comportamentos, emoções, desejos [...], colocam<br />

o sujeito concreto, através de um movimento de<br />

compreensão, no qual busca esclarecer as condições<br />

epocais, culturais, sociais, familiares, além <strong>da</strong>s subjetivas,<br />

psicológicas, que possibilitam a seu biografado<br />

chegar a ser quem ele foi e como chegou a sê-lo, não<br />

abrindo mão do movimento, constante <strong>da</strong> análise empreendi<strong>da</strong>,<br />

entre sujeito e a objetivi<strong>da</strong>de, movimento<br />

dialético este produtor do psíquico [grifos <strong>da</strong> autora]<br />

(Schneider, 2011, pp. 234-235).<br />

Sendo assim, estrutura<strong>da</strong> de acordo com o objetivo<br />

<strong>da</strong> Psicanálise Existencial sartreana, através <strong>da</strong> biografia<br />

de Sol, buscarei mostrar “o nexo existente entre os<br />

diversos comportamentos, gostos, gestos, emoções, raciocínio<br />

do sujeito concreto, ao extrair o significado que<br />

salta de ca<strong>da</strong> um desses aspectos em direção a um fim”<br />

(Schneider, 2011, p. 233). Para tal feito, é necessário lançar<br />

mão do método comparativo ao buscar os nexos existentes<br />

entre esses aspectos de um indivíduo em situação<br />

e com o método compreensivo ou sintético chegar “à intuição<br />

do psíquico, atingi<strong>da</strong> por dentro” (Jaspers, 1979<br />

apud Schneider, 2011, p. 234), e assim eluci<strong>da</strong>r o Projeto<br />

fun<strong>da</strong>mental que dá sentido ao conjunto.<br />

No entanto, por uma questão didática, apresentarei a<br />

biografia, num primeiro momento, descrita “por fora” (ibdem,<br />

p. 235), de maneira narrativa, para depois apresentála<br />

através de uma análise compreensiva <strong>da</strong> relação dialética<br />

que Sol trava com a objetivi<strong>da</strong>de, tal como proposto<br />

por Sartre (1997) em sua Psicanálise Existencial.<br />

apresentando (estaticamente) Sol<br />

Sol é uma mulher de 35 anos, casa<strong>da</strong> há quatro, com<br />

nível superior, sem filhos. Mostra investimento em sua<br />

aparência. É uma mulher cui<strong>da</strong>dosa com seu corpo, aparentando<br />

menos i<strong>da</strong>de do que tem. Usa roupas e acessórios<br />

descontraídos que acompanham a mo<strong>da</strong>. Trabalha<br />

em uma lanchonete como vendedora.<br />

Filha do meio de uma família católica praticante,<br />

classe média alta. Os pais estão aposentados. Todos os<br />

irmãos, o marido e o pai possuem nível superior. O pai<br />

sempre supriu financeiramente as necessi<strong>da</strong>des e desejos<br />

<strong>da</strong> família. Apóia a educação dos filhos em uma moral<br />

tradicional. Morou longe dos pais enquanto fez facul<strong>da</strong>de<br />

e depois que se casou.<br />

207 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 205-214, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

1º momento: demarcando o fenômeno (o psicodiagnóstico)<br />

Neste instante, buscaremos delimitar o fenômeno de<br />

acordo com a sua atuali<strong>da</strong>de, uma vez que, de acordo com<br />

Schneider (2011, p. 270), “no caso <strong>da</strong> clínica, a definição<br />

clara <strong>da</strong> sintomatologia e do quadro psicopatológico do<br />

paciente, ou seja, a elaboração do psicodiagnóstico [...] é<br />

que definirá os rumos <strong>da</strong> intervenção”.<br />

na primeira Sessão<br />

Esta ocorreu em dezembro de 2010. Sol relatou que há<br />

dois anos começou a ter pensamentos constantes de que<br />

poderia fazer mal às pessoas e de que poderia contaminar<br />

os objetos. Após conversar com alguém, ou mesmo,<br />

somente ao olhá-las, se angustiava por pensar que poderia<br />

ter falado ou feito alguma coisa que lhe causasse algum<br />

mal. Diante este tipo de pensamento obsessivo, tirava a<br />

dúvi<strong>da</strong> com marido ou, se possível com a própria pessoa,<br />

mas “não sossegava enquanto não perguntava a alguém<br />

sobre as consequências de suas ações” 3 .<br />

Quanto aos pensamentos de possível contaminação,<br />

como trabalha li<strong>da</strong>ndo com comi<strong>da</strong>, lavava constantemente<br />

as mãos, abria a torneira com o braço e tocava na<br />

tampa do lixo somente com luvas “para não contaminar<br />

os objetos e a comi<strong>da</strong>”, e assim poder prejudicar alguém.<br />

A preocupação obsessiva com o ter feito alguma coisa<br />

erra<strong>da</strong>, também se <strong>da</strong>va, por exemplo, em ter colocado<br />

alguma coisa na comi<strong>da</strong> que servia.<br />

Além destes comportamentos, também pensava que<br />

poderia ter deixado alguma coisa liga<strong>da</strong>, acessa ou aberta<br />

em casa e no trabalho, fazendo diversas vezes o ritual<br />

de verificação.<br />

Por isso, sua vi<strong>da</strong> social estava muito pobre, tinha<br />

medo de sair porque “no dia seguinte fica pensando no<br />

mal que pode ter feito a alguém”. Alegou apresentar muito<br />

sono, dormindo quando “não tinha que realizar suas<br />

obrigações”. Neste momento mencionou que achava estar<br />

com Transtorno do Pânico, justificando seu suposto<br />

diagnóstico devido a sua ansie<strong>da</strong>de e ao medo de sair<br />

de casa.<br />

Relatou que tinha uma coisa ruim dentro de si (colocando<br />

a mão no peito), que “queria arrancar isso”, não<br />

sabendo definir o que era. Intuí que Sol estava falando<br />

<strong>da</strong> vivência <strong>da</strong> angústia, mas pensei também que, como<br />

nunca deve ter se permitido refletir sobre tal vivência,<br />

desconhecia do que se tratava.<br />

Queixou-se que depois que casou o dinheiro ficou<br />

escasso, limitando suas possibili<strong>da</strong>des. Sente-se sozinha<br />

quando está em casa, pois está longe <strong>da</strong> família, o marido<br />

trabalha e estu<strong>da</strong> o dia todo.<br />

3 Optei por intercalar o texto com falas <strong>da</strong> cliente, para<br />

melhor compreensão de suas vivências.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 205-214, jul-dez, 2011<br />

Sylvia M. P. de Freitas<br />

Devido aos comportamentos obsessivo-compulsivos,<br />

identificados como clássicos de quem apresenta TOC,<br />

segundo sua descrição dos mesmos e, principalmente<br />

porque percebi a dificul<strong>da</strong>de de escuta devido sua ansie<strong>da</strong>de,<br />

solicitei que procurasse um médico homeopata<br />

de minha confiança que, por ser flexível em sua atuação<br />

profissional, poderia diagnosticar a necessi<strong>da</strong>de de intervenção<br />

medicamentosa e o tipo (alopático ou homeopático)<br />

e/ou de outro tipo de encaminhamento médico. Este,<br />

após consultar Sol, prescreveu Lexapro 4 , iniciando, em<br />

janeiro de 2011, com um comprimido ao dia.<br />

em algumas Sessões Seguintes: Contando Sua História...<br />

A Infância<br />

Ao solicitar-lhe para contar sua história, desde sua infância,<br />

Sol a inicia lembrando de uma fala de sua mãe:<br />

“[...] ela disse que quando eu era bebê, chorava muito.<br />

Por não saberem o motivo, meus pais me levavam<br />

aos médicos e benzedeiras, mas nenhum conseguiu<br />

encontrar uma explicação. Eu não ficava com outra<br />

pessoa sem ser eles. Diante essa experiência, minha<br />

mãe dizia que Deus a livrasse de ter outro filho. Isso<br />

me faz sentir uma pessoa problemática para meus<br />

pais, como um patinho feio <strong>da</strong> família”.<br />

Quando terminou a licença materni<strong>da</strong>de, a mãe retornou<br />

ao seu trabalho. O pai trabalhava durante o dia<br />

e fazia facul<strong>da</strong>de no período noturno, em uma ci<strong>da</strong>de<br />

próxima, ficando Sol e seu irmão aos cui<strong>da</strong>dos de uma<br />

emprega<strong>da</strong> “que gostava muito. Era como uma segun<strong>da</strong><br />

mãe, pois cui<strong>da</strong>va <strong>da</strong> gente e morava também conosco”.<br />

Nos finais de semana “adorava ir dormir na casa <strong>da</strong> emprega<strong>da</strong><br />

e dos meus avós paternos, mesmo sabendo que<br />

tinha a oportuni<strong>da</strong>de de ficar com meus pais”.<br />

Quando começou ir à escola, chorava muito. O pai tinha<br />

que ficar com ela esperando que entrasse. Disse não gostar<br />

muito de estu<strong>da</strong>r e “não entender porque chorava”.<br />

No que tange às brincadeiras, preferia brincar na rua,<br />

subir nas árvores, <strong>da</strong>nçar “em cima <strong>da</strong> mesa”. Não gostava<br />

de brincar com bonecas, ou de qualquer brincadeira<br />

“monótona”. Preferia aquelas que lhe fizessem “sentir-se<br />

em liber<strong>da</strong>de. Nunca fui uma pessoa caseira, desde pequena<br />

adorava liber<strong>da</strong>de”. Gostava também de na<strong>da</strong>r,<br />

de an<strong>da</strong>r de carrinho de rolimã. Brincava mais com seu<br />

4 ESCITALOPRAM (antidepressivo <strong>da</strong> classe dos inibidores<br />

de serotonina. Indicado para tratamento e prevenção<br />

de recaí<strong>da</strong>s ou recorrência <strong>da</strong> depressão, TP, com ou<br />

sem agorafobia, Transtorno de Ansie<strong>da</strong>de Generaliza<strong>da</strong>,<br />

Transtorno Obsessivo Compulsivo e Fobia social).<br />

Outros nomes comerciais: Cipralex e Exodus.<br />

208


Uma Análise Existencialista para um Caso Clínico de Transtorno Obsessivo Compulsivo<br />

irmão do que com a irmã. Considera que esta era protegi<strong>da</strong><br />

pelo pai. “Hoje dizem que sou muito ciumenta, mas<br />

não tive a proteção dele. Tudo que faço, para eles é errado,<br />

isso me frustra muito...”.<br />

Com relação às tarefas que exigiam maior disciplina:<br />

estudou piano até os seis anos, fez pintura em pano<br />

e estudou balé durante dois anos, pois “minha mãe era<br />

contra eu fazer balé, em função dos gastos que se tinha<br />

com as festivi<strong>da</strong>des no final do ano”.<br />

Em suas relações de amizade, nunca foi de ter muitos<br />

amigos, preferindo brincar mais sozinha. Mencionou<br />

que em brincadeiras em grupos, sempre tinha um “líder<br />

que queria ser o melhor, isso me irritava muito! Eu era<br />

muito briguenta e tinha dificul<strong>da</strong>de em ceder. Dois bicudos<br />

não se beijam”. Os pais a comparavam com o irmão<br />

que tinha muitos amigos. Quando ia para festinhas em<br />

casa de amigos, sentia-se o “patinho feio”, pois ninguém<br />

a tirava para <strong>da</strong>nçar.<br />

Apesar de se perceber “mulecona” durante a infância,<br />

mencionou a vai<strong>da</strong>de com sua aparência, desde pequena.<br />

Usava roupas de adulto, brincos grandes, gostava<br />

de ler revista de mo<strong>da</strong>. Inspirava-se nas tias mais novas,<br />

desejando logo crescer para poder se vestir como adulto,<br />

sem as críticas <strong>da</strong> mãe, que não a deixava usar este tipo<br />

de vestimenta e acessórios por ser nova.<br />

Nunca foi aluna exemplar, chegando a reprovar de série,<br />

mas seus pais “tinham noção de que não tinha condição<br />

de ir prá frente. Sabiam que não gostava de estu<strong>da</strong>r.”<br />

A mãe a castigava, não deixando fazer as coisas que gostava<br />

como ir ao clube e na<strong>da</strong>r.<br />

A Juventude<br />

Aos dez anos mudou-se para outra ci<strong>da</strong>de. Para Sol<br />

tudo era novi<strong>da</strong>de, considerando “uma época muito boa”.<br />

Aos 15 anos começou a sair à noite com amigos, tendo<br />

que voltar mais cedo que esses devido ao horário estabelecido<br />

pelos pais, uma vez que para eles “tudo tem o seu<br />

tempo”. Não entendia o real motivo do limite <strong>da</strong>do, porque<br />

“na<strong>da</strong> de errado faria”.<br />

Começou a sair com o irmão e seus amigos, e “se achava”<br />

sendo amiga dos amigos de seu irmão. Por vezes dizia<br />

que ia dormir na casa de uma amiga para estu<strong>da</strong>r, mas<br />

saía para “as bala<strong>da</strong>s”. Expressou de maneira saudosista:<br />

“Que época boa que não volta mais!”.<br />

A Adultez<br />

Na época que fez o cursinho “só tinha o interesse em<br />

festar”. Mencionou que, de sua turma, ninguém passou<br />

no vestibular. Estava ansiosa para se mu<strong>da</strong>r para a outra<br />

ci<strong>da</strong>de onde faria mais um ano de cursinho e prestaria o<br />

vestibular novamente. Justifica por assim sair <strong>da</strong>s vistas<br />

dos pais e ter sua liber<strong>da</strong>de.<br />

Como seu intuito era sair com amigos, sem compromissos<br />

sérios, começou a namorar somente aos 20<br />

anos com um rapaz que a “fazia meio de boba”, pois<br />

como tinha que retornar cedo para casa, ele voltava “às<br />

bala<strong>da</strong>s depois que me deixava em casa”. Aos sábados<br />

a preteria em função do jogo de futebol com amigos.<br />

Com a mãe do namorado tinha uma boa ligação, sendo<br />

cúmplices por esta também não aceitar as atitudes<br />

do filho e torcer pelo namoro. Terminaram quando<br />

Sol mudou-se para a ci<strong>da</strong>de que faria o cursinho.<br />

Atualmente são amigos.<br />

Na nova ci<strong>da</strong>de estu<strong>da</strong>va e festava, “uma nova experiência<br />

de vi<strong>da</strong>, sem pai e mãe para encher o saco. Saía<br />

e não tinha hora para voltar”. Após um ano de facul<strong>da</strong>de<br />

conheceu seu atual marido. Diz ter sido “amor à primeira<br />

vista” e sempre achou que seria com ele que iria<br />

se casar. “Sempre gostei dele”. Naquela época ficavam<br />

juntos esporadicamente, pois ele “na<strong>da</strong> queria comigo,<br />

só queria festar”.<br />

Arrumou um namorado que “era meu oposto, não gostava<br />

de festar, era estudioso, bonzinho, meus pais o amavam”,<br />

mas Sol não. Sente que se acomodou no namoro,<br />

intuindo ser porque a família gostava dele.<br />

Durante a facul<strong>da</strong>de “festava muito… curtia muito…<br />

Foram dois anos de festa, festa, festa, resultado: reprovei!<br />

Como estava namorando e tinha que estu<strong>da</strong>r, dei uma<br />

para<strong>da</strong> com as festas”. No último ano <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de voltou<br />

a “festar”, mas o namorado não gostava, “ele tirava<br />

o telefone do gancho, me proibia de sair. Uma amiga que<br />

morava comigo falava que eu era doi<strong>da</strong>...”. Terminou depois<br />

de um tempo que retornou à casa dos pais.<br />

Namorou outro rapaz que os pais não aceitaram, “eu<br />

tinha que pagar tudo pra ele, emprestar-lhe dinheiro.<br />

Ele me fazia de tonta, apesar de gostar ain<strong>da</strong> dele. Acho<br />

que queria ajudá-lo”. Ele terminou com ela quando arrumou<br />

outra namora<strong>da</strong>. Com o tempo “fui enxergando<br />

quem ele era”.<br />

Após se formar, o pai não quis que trabalhasse, mas<br />

que fizesse um estágio. Assim o fez e recebia uma mesa<strong>da</strong><br />

“gor<strong>da</strong>” do pai. Ficou um tempo sem namorar, até quando<br />

o seu antigo amor à primeira vista ligou. Conversaram<br />

pelo telefone por umas três vezes durante um mês e resolveram<br />

se casar neste ínterim. “Meus pais sabiam que<br />

sempre gostei dele”, mas ficaram receosos, uma vez que<br />

para casar teria que se mu<strong>da</strong>r para a ci<strong>da</strong>de dele. O atual<br />

marido, na época ligou para os pais justificando suas<br />

reais intenções com o casamento. Os pais conversaram<br />

com os pais dele para se certificarem. Como seus pais<br />

nunca aceitaram que fossem morar junto, tiveram que se<br />

casar formalmente. Sol conheceu os sogros uma semana<br />

antes do casamento e o marido, os pais de Sol, cinco<br />

dias antes.<br />

Mencionou nunca ter se arrependido dessa decisão,<br />

pois disse que sempre gostou dele. Os pais não acreditavam<br />

que poderia <strong>da</strong>r certo. Para estes, Sol tinha tudo em<br />

casa e a mu<strong>da</strong>nça seria radical. Atualmente:<br />

209 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 205-214, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

“[...] meus pais amam meu marido. Minha mãe tratava<br />

bem o namorado <strong>da</strong> minha irmã e passou a tratar<br />

<strong>da</strong> mesma maneira meu marido. Ela não tem meio<br />

termo, gosta ou não gosta. A maneira como ela trata<br />

as pessoas é o parâmetro para saber se gosta ou não.<br />

Ela não faz questão de agra<strong>da</strong>r, mas quando gosta<br />

faz de tudo!”<br />

Casou-se, gosta do marido, “ele é uma ótima pessoa”,<br />

dá o respaldo financeiro, mas não como os pais. Ele acredita<br />

que ela pode fazer várias coisas sozinha, sem depender<br />

dele. No início teve dificul<strong>da</strong>des porque não conseguia<br />

trabalhar na sua área. Disse não ter nascido para<br />

fazer serviços domésticos. No 1º ano de casa<strong>da</strong> fez curso<br />

de inglês, mas estava sem dinheiro. Não conseguindo<br />

serviço em sua área, foi trabalhar em uma franquia de<br />

comi<strong>da</strong>. “O primeiro dia foi a morte. Tendo diploma superior,<br />

estava eu ali servindo as pessoas”.<br />

Este foi seu primeiro trabalho depois de casa<strong>da</strong>, em<br />

cujo ambiente de trabalho, sentia-se todo o momento controla<strong>da</strong>,<br />

por haver câmeras e qualquer suspeita de que os<br />

funcionários façam algo errado são chamados à atenção,<br />

correndo o risco de demissão.<br />

Após alguns meses nessa empresa, Sol começa a desenvolver<br />

os pensamentos obsessivos de que estava fazendo<br />

alguma coisa erra<strong>da</strong> e de que poderia prejudicar<br />

alguém, bem como os comportamentos relacionados ao<br />

excesso de limpeza e verificação exagera<strong>da</strong> e repetitiva<br />

dos ambientes e de suas ações para com os outros.<br />

Mencionou que a vi<strong>da</strong> de casa<strong>da</strong> sempre foi uma rotina,<br />

mas tem que acompanhar o marido. Na adolescência,<br />

os pais bancavam tudo e agora tem que correr atrás.<br />

Há dois meses, já em psicoterapia, Sol foi demiti<strong>da</strong><br />

desse emprego, pela armadilha de ter seguido instruções<br />

de sua chefia superior que foram contra as normas <strong>da</strong> empresa.<br />

Tal atitude embasa<strong>da</strong> no medo de colocar limites a<br />

tal instrução e ser demiti<strong>da</strong>, não garantiu sua permanência<br />

no emprego, desprotegendo-a, quando os superiores<br />

descobriram a transgressão <strong>da</strong>s normas.<br />

Ao comunicar seus pais que fora demiti<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong><br />

“tive que ouvir de minha mãe a pergunta sobre o que eu<br />

tinha feito de errado e que estava com vergonha de mim!”.<br />

Ficou alguns dias desemprega<strong>da</strong>, e conseguiu emprego<br />

em outra lanchonete onde se encontra trabalhando até<br />

o momento.<br />

Podemos observar, através do sucinto relato <strong>da</strong> história<br />

de Sol, que não há como não considerar que a<br />

mesma apresenta um quadro nosológico de TOC. No<br />

entanto, através deste quadro, Sol nos anuncia como<br />

li<strong>da</strong> com a contradição entre sua responsabili<strong>da</strong>de e o<br />

julgamento do outro, que a coloca em cheque. Através<br />

dos comportamentos obsessivo-compulsivos parece<br />

mostrar como vivencia a angustiante batalha entre as<br />

suas reais ações, como por exemplo, a de que não ter<br />

feito mal a alguém, ou mesmo ter apagado a luz e a dúvi<strong>da</strong><br />

sobre estas.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 205-214, jul-dez, 2011<br />

Sylvia M. P. de Freitas<br />

Experienciando o TOC como se fosse duas pessoas<br />

numa só, uma ré e a outra o juiz, podemos chegar a um<br />

psicodiagnóstico que descreve uma pessoa, no momento,<br />

tendo a sua existência absorvi<strong>da</strong> por este conflito,<br />

mas que busca ansiosamente <strong>da</strong>r fim nesta batalha, só<br />

que, por não ter apropriado seu projeto de Ser, não sabe<br />

a quem entregará o troféu de vencedor: se ao réu ou ao<br />

juiz. Portanto, o projeto terapêutico engendra o caminho<br />

para que ambos saiam de cena, <strong>da</strong>ndo lugar a uma síntese<br />

em que a avaliação de seus atos seja baliza<strong>da</strong> a partir<br />

de seu próprio crivo e não aliena<strong>da</strong> em projetos alheios,<br />

ou seja, que se torne “sujeito de seu ser” (Schneider,<br />

2011, p. 271).<br />

Destarte, até que tal intento seja alcançado, veremos<br />

a seguir, “as variáveis fun<strong>da</strong>mentais na constituição dos<br />

impasses psicológicos [de Sol], compreendidos no horizonte<br />

<strong>da</strong> sua personali<strong>da</strong>de” (ibdem, p. 270), ou seja, como<br />

Sol se sabe, a partir de sua dinâmica psicológica construí<strong>da</strong><br />

através do diálogo que trava com o mundo.<br />

2º momento: elaboração <strong>da</strong> problemática – possibilitando<br />

a Compreensão terapêutica<br />

O homem sartreano sendo corpo/consciência (emsi-para-si)<br />

é um homem em relação: “entre consciência<br />

e corpo, relação com o mundo que o cerca, relação<br />

com a exteriori<strong>da</strong>de” (Schneider, 2011, p. 213). Como<br />

ser-no-mundo, sua intencionali<strong>da</strong>de está volta<strong>da</strong> sempre<br />

para o exterior. Assim, sua consciência estabelece<br />

relação com a materiali<strong>da</strong>de. Nascemos num mundo<br />

já posto, que se nos apresenta com uma história <strong>da</strong><strong>da</strong><br />

e com condições materiais pré-existentes ao nosso<br />

nascimento.<br />

Sol nasceu na metade <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 70, no berço de<br />

uma família católica, com padrões rígidos de criação, os<br />

quais se confrontavam com um Zeitgeist 5 de transição de<br />

valores culturais e econômicos. O Brasil, apesar de ain<strong>da</strong><br />

estar sob a ditadura militar do então Presidente Ernesto<br />

Geisel, vivenciava o auge do movimento feminista, a eclosão<br />

dos movimentos musicais de rock in roll, do início<br />

<strong>da</strong> era Dancing Days, com o surgimento <strong>da</strong>s discotecas<br />

e do movimento punk. Na mo<strong>da</strong> as vestimentas e adereços<br />

aparecem com muitas cores e brilhos. A calça boca<br />

de sino, sapato plataforma, saltos altos e finos com meia<br />

lurex, ou seja, a mo<strong>da</strong> Psicodélica foi de encontro a tudo<br />

que era tradicional. Para sobreviver a esse movimento de<br />

contracultura, os padrões <strong>da</strong>s famílias tradicionais necessitavam<br />

enrijecer.<br />

Quanto à condição financeira estável <strong>da</strong> família, poderia<br />

ser beneficia<strong>da</strong> também pelo período de crescimento<br />

econômico que o Brasil passava. Sol então, ao nascer<br />

e durante parte de sua infância, se deparou com uma<br />

exteriori<strong>da</strong>de que mostrava um contexto de abertura de-<br />

5 Espírito <strong>da</strong> época.<br />

210


Uma Análise Existencialista para um Caso Clínico de Transtorno Obsessivo Compulsivo<br />

mocrática, mas no familiar, em contraponto, ocorria um<br />

recrudescimento dos padrões de educação.<br />

Como to<strong>da</strong> relação do homem é dialética (interiorização<br />

do exterior e exteriorização do interior), Sol se apropriou<br />

<strong>da</strong> segurança financeira de maneira conflitante: se<br />

por um lado tinha a segurança financeira ofereci<strong>da</strong> pelo<br />

pai, por outro se sentia culpa<strong>da</strong> por depender deste, posto<br />

que as possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong><strong>da</strong>s para usufruir o que desejava<br />

eram também coloca<strong>da</strong>s com cobranças.<br />

No tocante às regras impostas em sua criação, não via<br />

sentido em algumas, inclusive a de ter que sair <strong>da</strong>s festas<br />

mais cedo que seus amigos. Sol se sentia culpa<strong>da</strong> por<br />

poder fazer coisas erra<strong>da</strong>s aos olhos dos pais, sem saber<br />

o fun<strong>da</strong>mento deste prejulgamento.<br />

O projeto dos pais com relação ao filho ideal foi exteriorizado<br />

por estes através de ações que Sol deveria<br />

desempenhar: estu<strong>da</strong>r, fazer facul<strong>da</strong>de, estagiar após se<br />

formar ao invés de trabalhar, chegar mais cedo em casa,<br />

usar roupas adequa<strong>da</strong>s para sua i<strong>da</strong>de, ter amigos como<br />

seu irmão, namorar um rapaz com o perfil traçado pela<br />

família, enfim, tal projeto foi interiorizado por Sol como<br />

aquele que limitava sua espontanei<strong>da</strong>de, sendo assim,<br />

vivenciar suas escolhas sem julgamentos, somente longe<br />

dos pais. Prazer e diversão somente nesta última situação,<br />

porém, continuava financia<strong>da</strong> por eles. O prazer e<br />

as obrigações são entendidos por Sol de maneira dicotômica,<br />

sem haver um diálogo entre eles, somente na base<br />

financeira.<br />

A relação com o corpo, outra condição constitutiva<br />

<strong>da</strong> existência, faz-se importante mencionar. O corpo<br />

não deve ser entendido de maneira cartesiana, separado<br />

<strong>da</strong> consciência. Ambos integram-se 6 , totalizando o Ser.<br />

É por meio do corpo que mediamos nossa relação com<br />

o mundo.<br />

Schneider (2011) menciona que Van Den Berg (1981)<br />

sustenta duas maneiras de o sujeito relacionar-se com o<br />

corpo: o corpo como ser-para-o-outro e o corpo que sou<br />

(corpo ser-para-si). No primeiro, o corpo é visto de fora,<br />

é o corpo alienado ao ponto de vista dos outros, é o corpo<br />

abstrato, e o segundo, o corpo concreto, aquele que<br />

vivencio enquanto espontanei<strong>da</strong>de por ser meu instrumento<br />

no mundo e meta de minhas ações.<br />

A maneira como Sol fala de seu corpo, mostra-nos<br />

interiorizá-lo a partir do olhar do outro. Sentia-se gordinha<br />

e feia na infância, tendo como fun<strong>da</strong>mento a crença<br />

de que os meninos não gostavam dela. Atualmente cui<strong>da</strong><br />

de sua aparência, faz regime, pois ain<strong>da</strong> percebe seu<br />

corpo de maneira distorci<strong>da</strong>, sendo sempre mais avantajado<br />

do que é. No entanto, interessante compreender que<br />

em alguns comportamentos relacionados ao Toc, o corpo<br />

sujo é apropriado como o corpo ser-para-si.<br />

A relação que travamos com a temporali<strong>da</strong>de também<br />

deve ser visa<strong>da</strong>. Sabemos que o existencialismo<br />

compreende que os acontecimentos históricos são criados<br />

6 Corpo/Consciência = Somos.<br />

num movimento do futuro para o passado, condição <strong>da</strong><br />

consciência intencional projetar-se no futuro, ascender<br />

o passado e realizar as escolhas no presente, sintetizando<br />

assim, passado, presente e futuro. No entanto, essa<br />

temporalização real, antropológica nem sempre é experimenta<strong>da</strong><br />

desta maneira pelo sujeito. Este geralmente<br />

entende o passado como determinante de seu presente<br />

e futuro, tornando assim, uma temporalização aparente<br />

(Schneider, 2011).<br />

Sol teve seu futuro praticamente delineado pela sua<br />

criação. Como deveria agir, ter e ser fora predefinido pelos<br />

projetos dos pais, contudo, não a estimularam a arriscar<br />

e aprender, do seu jeito e no seu tempo, o como fazer.<br />

Aprendeu que devia ser responsável no que faz, mas o futuro<br />

tornou-se ameaçador, ansiógeno, quando deve criar<br />

saí<strong>da</strong>s, haja vista que, para Sol, no passado estas eram<br />

cria<strong>da</strong>s por outro. Diante o na<strong>da</strong> do vazio, paralisa-se,<br />

dorme, tem preguiça, e assim age para recusar o risco. Da<br />

mesma maneira ansiógena li<strong>da</strong> com o pensamento de ter<br />

feito algum mal aos outros ou ter deixado algo por fazer<br />

e que pode trazer algum <strong>da</strong>no, na ver<strong>da</strong>de, não ao outro,<br />

mas a ela. No caso do Toc, precisa assegurar-se, através<br />

do outro, que seu futuro não está ameaçado, quando lhe<br />

pergunta se fez algo de errado.<br />

Só podemos nos conhecer através do outro. Assim a<br />

criação do nosso Eu perpassa antes o olhar alheio. Na sua<br />

relação com o outro, Sol o percebe como seu juiz, seu<br />

inferno. Sendo o outro quem define os caminhos a serem<br />

trilhados no percurso <strong>da</strong>s obrigações e compromissos,<br />

tornou-se dependente desses para não correr risco, mas,<br />

paradoxalmente, os outros também são os que limitam<br />

sua liber<strong>da</strong>de relaciona<strong>da</strong> ao prazer e diversão. Estabelece<br />

então, uma relação conflituosa com os outros: estes são<br />

interiorizados como protetores-castradores e não como<br />

limitadores-possibilitadores.<br />

De acordo com a maneira como trava a relação com<br />

o outro, a sua com o TOC se dá fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> através<br />

de um Eu dividido. Vivencia um estranhamento com relação<br />

aos seus pensamentos sobre fazer mal a alguém.<br />

Apesar de ter os pensamentos obsessivos, sabe que não<br />

fez e que não fará mal se não quiser. O mesmo ocorre<br />

com os comportamentos de verificação dos ambientes,<br />

de lavar as mãos e de questionar as pessoas se a fez algum<br />

mal. Tem a compulsão, faz, mas sabe que não há<br />

necessi<strong>da</strong>de.<br />

Tal vivência pode ocorrer porque ter conhecimento<br />

de algo não significa ter consciência reflexiva de.<br />

O Eu só surge diante a consciência reflexiva, uma vez<br />

que somente ela posiciona o Eu no mundo, sendo assim,<br />

podemos desvelar o projeto de Ser de Sol, através<br />

de suas ações, as quais não mostram uma consciência<br />

reflexiva do Eu que, por sua vez, de maneira irreflexiva,<br />

se sabe sendo.<br />

211 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 205-214, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

desvelando o projeto de Ser: o eu alienado<br />

Conforme podemos compreender a dinâmica psicológica<br />

de Sol, esta por se saber sendo impotente, incapaz,<br />

limita<strong>da</strong> intelectualmente, medrosa, preguiçosa,<br />

feia, má, rejeita<strong>da</strong>, mas responsável: (1) projeta ser uma<br />

pessoa com segurança financeira, mas financia<strong>da</strong> pelo<br />

Outro (no caso atual, o marido); (2) por meio do trabalho<br />

busca ser reconheci<strong>da</strong> pela sua honesti<strong>da</strong>de e responsabili<strong>da</strong>de,<br />

não suportando dúvi<strong>da</strong>s sobre sua idonei<strong>da</strong>de;<br />

(3) idealiza ser ama<strong>da</strong> como uma boa filha.<br />

Pela culpa em omitir seus erros e fracassos dos pais, dá<br />

satisfações de sua vi<strong>da</strong> para eles, o que ratifica seu sentimento<br />

de rejeição quando eles a julgam e; (4) mantém<br />

o corpo sob excessivo cui<strong>da</strong>do (corpo abstrato) para ser<br />

bonita para o Outro. Mas, por estar magra, continua recebendo<br />

críticas.<br />

Vemos aí um Projeto de Ser-para-o-outro, cujo Eu fracassado<br />

foi interiorizado pelo olhar do outro. Sem passar<br />

pelo seu senso crítico, a fim de poder escolher com mais<br />

reflexivi<strong>da</strong>de sobre o que criaram para ela, Sol aceitou<br />

e assentou este Eu. Mesmo que apresente em alguns de<br />

seus comportamentos uma tentativa de libertação deste,<br />

o faz com culpa, expondo-se e interiorizando as críticas,<br />

uma vez que a maneira como tenta se livrar deste fardo,<br />

não é de maneira transcendente, mas em oposição, aparecendo<br />

para o outro como um confronto que também<br />

o ameaça.<br />

Diante esta compreensão, o trabalho com Sol foi<br />

encaminhado para que a mesma pudesse apropriar-se<br />

desse Eu que se sabe sendo, construído no modo como<br />

estabeleceu relação com a reali<strong>da</strong>de. Sem a consciência<br />

reflexiva deste, impossível responsabilizar-se como<br />

também construtora do mesmo e assim poder redimensionar<br />

seu Ser.<br />

Veremos a seguir como ocorreu este processo de redimensionamento<br />

até o momento.<br />

Redimensionando o projeto de Ser<br />

Reflexão Espontânea ou Cúmplice<br />

Como coloca Schneider (2002, p. 168):<br />

Um homem escolhe-se em uma <strong>da</strong><strong>da</strong> estrutura de<br />

escolha; a escolha não é, portanto, gratuita, determina<strong>da</strong><br />

unicamente por seu desejo de sujeito, mas<br />

é uma escolha a partir <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des que se lhe<br />

apresentam e frente às quais ele não pode deixar de<br />

escolher.<br />

A estrutura de escolha com que Sol se deparou durante<br />

sua infância, foi a de uma criança que não correspondeu<br />

às expectativas do perfil de filha já desenhado<br />

pelos seus pais antes mesmo dela nascer. De uma maneira<br />

irreflexiva, que posiciona as coisas e pessoas no mundo,<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 205-214, jul-dez, 2011<br />

Sylvia M. P. de Freitas<br />

mas ain<strong>da</strong> não posicional do Eu (Sartre, 1965; Bertolino<br />

et al, 1998 citados por Schneider, 2002, p. 339), Sol reflete<br />

que os pais criaram para ela o projeto de filha perfeita,<br />

mas paradoxalmente, para atingirem o projeto de<br />

serem pais perfeitos, uma vez que para serem pais bons,<br />

precisam ter filhos problemáticos. “Meus pais me deixaram<br />

dependente, impotentes, limita<strong>da</strong> ao traçarem meus<br />

caminhos, buscarem solucionar meus problemas, me bancando<br />

financeiramente.”<br />

Colocou que sua educação foi direciona<strong>da</strong> para a<br />

obediência, o que gera passivi<strong>da</strong>de e infantili<strong>da</strong>de. Não<br />

a deixaram arriscar e assumir as consequências de suas<br />

escolhas, “até porque o que eu escolheria poderia ir contra<br />

os valores deles. Só que me criticam também por não<br />

arriscar. Parece não haver saí<strong>da</strong> na relação com eles, ou<br />

sou do jeito que eles querem ou não tenho valor!”.<br />

No tocante as suas relações amorosas, acredita que<br />

para seu pai nenhum homem seria tão bom para ela quanto<br />

ele, mas que atualmente conseguem aceitar seu marido<br />

e ver que este é bom. Até aqui Sol posiciona o Outro no<br />

mundo, mas é necessário que realize uma reflexão crítica,<br />

posicionando seu Eu para si.<br />

Reflexão Crítica<br />

Intervindo durante o processo psicoterapêutico, de<br />

maneira a mostrar-lhe suas escolhas diante esse mundo<br />

que se deparou, até o momento, Sol conseguiu apropriarse<br />

de algumas escolhas que faz, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s em seu<br />

Projeto de Ser, questionando-as e redimensionando-as,<br />

a saber: (1) no tocante às satisfações que dá aos seus pais<br />

sobre seus erros e fracassos, atualmente têm consciência<br />

de que é uma mulher adulta e casa<strong>da</strong>, que não precisa<br />

<strong>da</strong>r-lhes essa obediência, mas que para isso, precisa ser<br />

independente financeiramente, não emprestando mais dinheiro<br />

deles. “Meu pai não aceita que eu o pague, diz que<br />

estou com pouco dinheiro, mas assim eu crio uma dívi<strong>da</strong><br />

afetiva”; (2) quanto as suas relações com o outro, inclusive<br />

no trabalho, não permite mais que a hierarquia seja<br />

justificativa para tratarem-na mal. “Não é porque é meu<br />

superior que tem o direito de falar do jeito que fala. Que<br />

aponte meus erros, mas não precisa ser sem educação”<br />

e; (3) sobre o TOC, coloca que está melhorando. “Consigo<br />

não voltar atrás para verificar se está tudo desligado em<br />

casa. Se eu tenho a certeza que desliguei, saio, mesmo<br />

com o coração apertado. Estou duvi<strong>da</strong>ndo menos do que<br />

faço”. Atualmente Sol toma um comprimido do Lexapro,<br />

três vezes na semana.<br />

Em busca desta eluci<strong>da</strong>ção do Projeto de Ser, a<br />

psicoterapia encaminha-se com o propósito de aju<strong>da</strong>r<br />

Sol a conscientizar-se de que nossa existência não é<br />

determina<strong>da</strong>, mas sim construí<strong>da</strong>. Os resultados <strong>da</strong><br />

nossa relação com o mundo escrevem a nossa história,<br />

portanto, podemos também escrevê-la de maneira<br />

não aliena<strong>da</strong>.<br />

212


Uma Análise Existencialista para um Caso Clínico de Transtorno Obsessivo Compulsivo<br />

um Ser em Construção: Considerações finais<br />

Diante todo o exposto, acompanhamos, mesmo que de<br />

maneira breve, a história de uma mulher sufoca<strong>da</strong> por um<br />

projeto de ser construído mesmo antes de sua existência.<br />

A maneira dicotômica como interiorizou o mundo,<br />

oportunizou vivências contraditórias entre perfeição x<br />

imperfeição, certo x errado, dependência x independência,<br />

maturi<strong>da</strong>de x imaturi<strong>da</strong>de, alienação x liber<strong>da</strong>de.<br />

Filha de pais cujo projeto de filhos perfeitos é definido<br />

por aquele que não dá trabalho, mas orgulho, Sol fracassa<br />

desde seu nascimento, não se mostrando um bebê<br />

“bonzinho”. Ao chorar frequentemente, sem que o motivo<br />

fosse descoberto, nem pelos especialistas, começou a<br />

tirar a tranquili<strong>da</strong>de dos pais no sucesso de terem uma<br />

filha que correspondesse suas expectativas.<br />

Frustrando o projeto inicial que fizeram para ela,<br />

opostamente, os pais interiorizaram a imagem <strong>da</strong> filha<br />

imperfeita. Quiçá, a mãe ao contar-lhe o episódio de sua<br />

história sobre seu choro, Sol tenha percebido a decepção<br />

em sua fala e o quanto dera trabalho para os pais e os<br />

deixara impotente. Perceber-se irreflexivamente, como<br />

uma criança problemática, por não fazer na<strong>da</strong> certo segundo<br />

os pais, fez sentir-se o patinho feio <strong>da</strong> família e<br />

não ama<strong>da</strong> por eles.<br />

Destarte, no decorrer de sua infância e adolescência,<br />

os comportamentos <strong>da</strong> filha problemática passam a ser<br />

foco de controle dos pais. Normas de conduta compõem a<br />

cartilha <strong>da</strong> boa educação de Sol e a culpa, o instrumento<br />

de controle e manipulação. Sufoca<strong>da</strong> pelos limites impostos<br />

à sua liber<strong>da</strong>de, Sol busca experienciá-la de maneira<br />

opositiva ao projeto dos pais. Mas nessa busca por<br />

ações orienta<strong>da</strong>s somente pela liber<strong>da</strong>de ontológica, Sol<br />

não tinha consciência de que suas escolhas ratificavam<br />

o Ser diferente e problemático definido por eles. A ca<strong>da</strong><br />

ação diferente do que se esperava dela, um olhar que a<br />

julgava e punia pelo seu fracasso em ser um modelo a ser<br />

seguido. Foi através <strong>da</strong>s repetições dos empreendimentos<br />

de ambos os lados, que a relação dependente entre Sol e<br />

seus pais se sintetizou.<br />

A tese dos pais, que compreendia os seus padrões de<br />

conduta, foi um dos focos a ser combatido por Sol, mas<br />

ao buscar transcendê-la, o fazia negando o ser em situação,<br />

não compreendendo que:<br />

O homem é condenado à liber<strong>da</strong>de, numa perspectiva<br />

ontológica, pois não pode deixar de escolher; no sentido<br />

antropológico, contudo, ele nunca é inteiramente<br />

livre, pois como diz Sartre na Questão de Método, “a<br />

alienação está no ápice e na base”, quer dizer, o homem<br />

nunca será inteiramente desalienado, já que sua condição<br />

de ser-com-os-outros o coloca sempre em poder dos<br />

demais [grifo <strong>da</strong> autora] (Schneider, 2002, p. 168).<br />

Assim, ao direcionar a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> experiência<br />

livre somente aos contextos que compreendem diversão<br />

e prazer, excluindo aqueles relacionados aos compromissos<br />

e obrigações, Sol paradoxalmente, enquanto festava,<br />

perdia a admiração dos pais, projeto também a ser conquistado<br />

por ela. Pelo lado dos pais, que a viam incapaz<br />

de agir com responsabili<strong>da</strong>de e ter sucesso em seus empreendimentos,<br />

cobriam financeiramente os prejuízos<br />

causados.<br />

Mesmo tendo a imagem de Sol como uma pessoa imatura<br />

e incapaz, os pais, ao buscarem consertar financeiramente<br />

suas ações inconsequentes, oportunizando a Sol<br />

e aos outros dois filhos as condições objetivas para que<br />

na<strong>da</strong> os faltassem, e indicando o melhor caminho a ser<br />

seguido, mostram o projeto de Ser pais a ser perseguido<br />

e mantido, circunscrito num projeto social.<br />

Vemos até aqui a trama <strong>da</strong> história de Sol teci<strong>da</strong> pela<br />

sua e por várias outras mãos, bem como aju<strong>da</strong>va a escrever<br />

também a história dos pais, <strong>da</strong> família e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de,<br />

tal como coloca Schneider (2002, p. 120):<br />

O homem faz a história, ao mesmo tempo em que é<br />

feito por ela. Eis o processo dialético que engendra<br />

a reali<strong>da</strong>de sócio-cultural. No entanto, é preciso<br />

assinalar que a história não está em meu poder, ela<br />

me escapa.<br />

Se por um lado tinha como ponto de referência os<br />

modelos impostos para se debater, por outro Sol não<br />

aprendera, nem foi ensina<strong>da</strong> a criar saí<strong>da</strong>s alternativas.<br />

Padrões predefinidos e caminhos orientados aju<strong>da</strong>ram<br />

Sol a estabelecer seu ponto de referência no mundo, inclusive<br />

seu Eu real fora baseado empiricamente na oposição<br />

do ideal imposto, e afetivamente na ausência do<br />

reconhecimento de sua capaci<strong>da</strong>de. Um Eu paradoxalmente<br />

construído através <strong>da</strong>s faltas: dos impedimentos<br />

de se expressar como desejava, <strong>da</strong> incapaci<strong>da</strong>de de obter<br />

sucesso, do afeto que envolve a admiração. Foi assim que<br />

Sol conhecia seu Eu: impotente, limitado, incapaz, fracassado,<br />

errado, acomo<strong>da</strong>do, dependente dos pais, mas<br />

não admirado e não amado.<br />

Com relação ao TOC, Sol o experiencia como um evento<br />

ahistórico, singular, desconectado de uma possível<br />

construção com o social. Compreendendo como um evento<br />

isolado, de sua única responsabili<strong>da</strong>de e que reforça<br />

seu projeto de Ser uma pessoa que faz coisas erra<strong>da</strong>s, Sol<br />

busca em sua família de origem o apoio de sua cura.<br />

Mais uma vez a família é aciona<strong>da</strong> para proteger as<br />

ações de Sol, agora diante algo inusitado e desconhecido,<br />

que os deixam impotentes, como sempre devem ter<br />

se sentido na criação desta. Como na época que chorava<br />

quando era bebê, a família procura aju<strong>da</strong> de um especialista,<br />

no caso o psicoterapeuta.<br />

Partindo <strong>da</strong> história de Sol, de seu projeto de Ser, o<br />

trabalho realizado em psicoterapia visa, de uma maneira<br />

geral, a ajudá-la a apropriar-se do projeto fun<strong>da</strong>mental<br />

que criou para si, buscando altera-lo ou não, mas a partir<br />

de seu próprio crivo.<br />

213 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 205-214, jul-dez, 2011<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Os caminhos percorridos para a conquista deste objetivo<br />

mais amplo envolvem alguns outros mais específicos,<br />

tais como: (1) a compreensão de quais valores embutidos<br />

no projeto dos pais, fun<strong>da</strong>dos numa forte moral religiosa,<br />

de uma família patriarcal com certo tom de preceitos machistas,<br />

fazem sentido para ela, como aqueles que deseja<br />

descartar; (2) o reconhecimento <strong>da</strong> diferença entre as preocupações<br />

e medos fun<strong>da</strong>dos em situações reais, objetivas<br />

e aquelas apoia<strong>da</strong>s em situações somente imaginárias e<br />

subjetivas; (3) a compreensão do nexo de suas ações que<br />

se enquadram no diagnóstico tradicional de TOC, com<br />

seu Projeto de ser; (4) a consciência de que precisará criar<br />

saí<strong>da</strong>s alternativas para situações em sua vi<strong>da</strong>, ao invés<br />

de esperá-las prontas, conhecendo seus valores como<br />

ponto de apoio para essas escolhas, e que isso também<br />

envolvem riscos, mas que mostrará através de ações mais<br />

maduras e protetoras de si, por estarem situa<strong>da</strong>s na síntese<br />

de suas limitações e possibili<strong>da</strong>des, podendo assim<br />

responsabilizar-se mais facilmente por elas.<br />

Observo que nos caminhos <strong>da</strong> psicoterapia que estamos<br />

construindo juntas, a liber<strong>da</strong>de que antes era vivi<strong>da</strong><br />

por Sol como se fosse erra<strong>da</strong>, chegando a considerar-se<br />

“muito doi<strong>da</strong>”, hoje é compreendi<strong>da</strong> como uma “loucura<br />

com responsabili<strong>da</strong>de”, uma vez que também em suas<br />

diversões, escolhia de maneira consciente não transgredir<br />

alguns fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> moral que embasa os valores<br />

paternos, por concor<strong>da</strong>r com estes.<br />

Conseguiu também perceber, que o estranhamento<br />

que sentia com relação aos pensamentos obsessivos era<br />

o mesmo que sentia diante a falta de sentido de algumas<br />

regras impostas pelos pais, como, por exemplo, ter que<br />

chegar às 22h em casa, enquanto suas amigas poderiam<br />

continuar se divertindo, sabendo que ela não iria fazer<br />

na<strong>da</strong> que abonasse sua conduta, mas mesmo assim julgava-se<br />

erra<strong>da</strong>, como já dito anteriormente.<br />

Por fim, reconhece agora, que na vi<strong>da</strong> há também limites<br />

e regras, obrigações e compromissos, e a maneira<br />

como deve li<strong>da</strong>r com elas requer sintetiza-las as suas possibili<strong>da</strong>des.<br />

E assim, vamos construindo nossos encontros<br />

psicoterapêuticos.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 205-214, jul-dez, 2011<br />

Referências<br />

Sylvia M. P. de Freitas<br />

Cahet, H.J.P. (2008). Sartre: aspectos de noção de consciência.<br />

Dissertação de Mestrado, Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa<br />

Catarina, Florianópolis, Santa Catarina.<br />

Husserl, E. (1988). Elementos de uma eluci<strong>da</strong>ção fenomenológica<br />

do conhecimento. In HUSSERL, E. Investigações lógicas:<br />

sexta investigação: elementos de uma eluci<strong>da</strong>ção fenomenológica<br />

do conhecimento. São Paulo: Nova Cultural. (publicado<br />

originalmente em 1901).<br />

Sartre, J-P. (1997). O Ser e o Na<strong>da</strong>. Ensaios de ontologia fenomenológica.<br />

Rio de Janeiro: Vozes. (Publicado originalmente<br />

em 1943).<br />

Sartre, J-P. (2002). Crítica <strong>da</strong> razão dialética. Rio de janeiro:<br />

DP&A. (Publicado originalmente em 1960).<br />

Schneider, D. R. (2002). Novas Perspectivas para a Psicologia<br />

Clínica - um estudo a partir <strong>da</strong> obra “Saint Genet: comédien<br />

et martyr” de Jean-Paul Sartre. Tese de Doutorado, Pontifícia<br />

Universi<strong>da</strong>de Católica de São Paulo, São Paulo.<br />

Schneider, D. R. (2011). Sartre e a psicologia clínica. Edufsc:<br />

Florianópolis, SC.<br />

Sylvia Mara Pires de Freitas - Psicóloga. Mestre em Psicologia<br />

Social e <strong>da</strong> Personali<strong>da</strong>de (PUC/RS). Especialista em Psicologia<br />

do Trabalho (CEUCEL/RJ). Formação em Psicologia Clínica na<br />

abor<strong>da</strong>gem existencial (NPV/RJ). Docente dos cursos de Psicologia<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual de Maringá (UEM/PR) e <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Paranaense (UNIPAR/PR). Endereço: Av. Colombo, 5.790 - Bloco 118<br />

(DPI). Jardim Universitário. Maringá. Paraná. CEP 87.020-900. E-mail:<br />

sylviamara@gmail.com<br />

Recebido em 03.07.11<br />

Aceito em 16.11.11<br />

214


te x t o s c l á s s i c o s ...............


Sobre o Conceito de Sensação<br />

SoBRe o ConCeito de SenSação 1<br />

Por ain<strong>da</strong> ser sumariamente escassa a produção nacional<br />

[Espanha] de temas com sentido filosófico, estarei<br />

ocupando essa seção <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> de Libros com trabalhos<br />

estrangeiros, com mais freqüência que em outras revistas.<br />

Dessa maneira, espera-se que o leitor possa, em torno<br />

de um ano, colocar essas notas como índice <strong>da</strong> situação<br />

em que se encontra a presente filosofia, pelo menos enquanto<br />

afeta os problemas superiores e decisivos. A ocasião<br />

é propícia. Assistimos um renascimento <strong>da</strong>quilo que<br />

Schopenhauer chamava de “necessi<strong>da</strong>de metafísica” do<br />

homem. Para as pessoas educa<strong>da</strong>s em pleno século XIX é<br />

incompreensível esse retornar novíssimo e vigoroso, porque<br />

talvez só tenha sido no século X que a Europa chegou<br />

a uma mínima pressão filosófica dessa forma. Contudo,<br />

quiseras ou não, esse fenômeno se apresenta com características<br />

indubitáveis.<br />

Deixando para uma outra ocasião o estudo desse fenômeno<br />

que, em ver<strong>da</strong>de, serviu de tema de uma <strong>da</strong>s conferências<br />

populares <strong>da</strong><strong>da</strong>s por mim em Ateneo, no ano<br />

1912; hoje, limito-me a <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> parte crítica <strong>da</strong> tese<br />

de doutorado abaixo cita<strong>da</strong> 2 .<br />

O senhor Hoffmann foi discípulo de Edmund<br />

Husserl 3 , professor de Gotinga. Com isso fica dito qual o<br />

propósito geral de seu trabalho. A influência – ca<strong>da</strong> vez<br />

maior – <strong>da</strong> “fenomenologia” sobre a psicologia tende a<br />

separar, de modo mais radical e salutar, a descrição <strong>da</strong><br />

explicação.<br />

Na psicologia atual e em Wundt mesmo, por exemplo,<br />

coexistem de forma confusa duas ciências muito diferentes:<br />

uma que trata de descrever e classificar os fenômenos<br />

<strong>da</strong> consciência; e a outra, de construir de forma<br />

causal o mundo psíquico. A diferença de ambas é total,<br />

principalmente se sua diferenciação não for apenas uma<br />

questão formal. Os conceitos psicológicos primários são<br />

intransferíveis de uma ciência para outra; porém, quando<br />

se esquece isso, perde-se todo valor e precisão. O au-<br />

1 Texto publicado originalmente nas séries de artigos <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> de<br />

Libros (Madrid), no ano de 1913.<br />

2 “Estudos sobre o conceito de sensação” (Untersuchungen über dem<br />

Empfindungsbegriff), por Heinrich Hoffmann, Archiv für die gesamte<br />

Psychologie, tomo XXVI, cadernos 1 e 2, 1913.<br />

3 Grifos nossos (Nota do Editor).<br />

textoS CláSSiCoS<br />

José ortega y gasset<br />

(1913)<br />

tor em questão se ocupa especialmente de um desses<br />

conceitos: a sensação. Passa, então, a revisar certas definições<br />

típicas <strong>da</strong> sensação como um elemento psíquico.<br />

Tais definições vêm de Ebbinghaus, de Fr. Hillebrand,<br />

de Wundt, etc.<br />

A primeira definição encontra<strong>da</strong> é o que Hoffmann<br />

chamou de “sensação pura”. Segundo Ebbinghaus são<br />

sensações aqueles conteúdos <strong>da</strong> consciência “produzidos<br />

imediatamente na alma por excitações exteriores,<br />

sem intermediários específicos, em especial sem experiências;<br />

puramente à mercê <strong>da</strong> estrutura inata dos órgãos<br />

materiais de uma parte e, por outra, a maneira original<br />

<strong>da</strong> alma reagir frente os impactos nervosos”. Em<br />

tal definição, tem-se a sensação como algo que, segundo<br />

ela mesma, não poderia estar na consciência real de um<br />

indivíduo adulto. Nessa consciência adulta todo o conteúdo<br />

se apresenta fundido nas experiências (recor<strong>da</strong>ção,<br />

imagens, etc.). Segundo essa concepção, a maioria<br />

de tais sensações “puras”, só poderá existir na consciência<br />

do recém-nascido. Com essa observação, parece claro<br />

que se trata de uma hipótese análoga aos átomos <strong>da</strong><br />

física. Assim, a “sensação pura” constitui um objeto ideal,<br />

construído por reflexão metódica, com o fim de fazer<br />

possível a explicação <strong>da</strong> gênese psíquica. Porém, longe<br />

de colocá-la presente na consciência real, por ser isso um<br />

problema inconcluso, ou seja, um x a determinar assintomaticamente.<br />

Na acepção de Hoffmann, esse conceito de<br />

sensação é necessário para a psicologia genética, contudo<br />

carece de sentido para a psicologia descritiva (é curioso,<br />

não obstante, que o defensor mais extremo <strong>da</strong> psicologia<br />

puramente descritiva – Paul Natorp – nos beneficiou com<br />

um conceito parecido de sensação em sua “Introdução à<br />

Psicologia” de 1888. Eu espero que na nova edição, cujo<br />

segundo tomo ain<strong>da</strong> não apareceu, ele ofereça de certo<br />

modo uma correção).<br />

Enquanto isso o conceito wundtiano de sensação, na<br />

opinião de Hoffmann, resume-se, como “estado simples,<br />

puramente intenso e qualitativo que pode segregar-se<br />

pela análise <strong>da</strong>s diversas percepções sensíveis”. Desse<br />

modo, a sensação resulta em um elemento <strong>da</strong> consciência<br />

real que por sua natureza elementar não se dá, claro,<br />

separado e por si mesmo; mas se dá na mera descrição<br />

217 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 217-223, jul-dez, 2011<br />

T e x t o s C l á s s i c o s


T e x t o s C l á s s i c o s<br />

<strong>da</strong> imediatez originária <strong>da</strong> consciência. Não é como as<br />

sensações do recém-nascido; conteúdo <strong>da</strong> consciência<br />

que se define por características completamente opostas<br />

aos possuídos pela nossa consciência atual, mas na<br />

mera redução dessa e já não sujeito à análise. A simplici<strong>da</strong>de<br />

ou irredutibili<strong>da</strong>de de uma análise maior constitui<br />

a sensação, segundo Wundt (se entende, deixando<br />

de lado todo o âmbito sentimental <strong>da</strong> consciência). Se o<br />

conceito de Ebbinghaus era genético, construtivo e hipotético,<br />

o de Wundt satisfaz aos propósitos <strong>da</strong> psicologia<br />

descritiva, mantendo-se na imanência do espontaneamente<br />

<strong>da</strong>do.<br />

Até aqui o estudo de Hoffmann não nos oferece na<strong>da</strong><br />

de novo. No entanto, é digna a leitura de suas considerações<br />

porque servem, por exemplo, para chegar à escassez<br />

do pensamento de Wundt. À parte de certas dificul<strong>da</strong>des<br />

internas na concepção dos elementos psíquicos sustenta<strong>da</strong>s<br />

pelo famoso psicólogo – que segundo mostrarei em<br />

outro lugar, são maiores <strong>da</strong>s que encontram Hoffmann –,<br />

é sabido que a exposição de Wundt é de uma pobre clareza<br />

e de grave imprecisão de fundo.<br />

Hoffmann procede com um extremo empirismo, não<br />

pretendendo formar um conceito genético de sensação.<br />

Ao contrário, sustenta que para chegarmos ao conceito de<br />

sensação seria preciso estu<strong>da</strong>r isola<strong>da</strong>mente ca<strong>da</strong> classe<br />

de fenômenos sensíveis. Assim, postula que a definição<br />

e o método definidos por Wundt satisfazem nas ditas<br />

representações sonoras, mas não nas visuais. Naquelas,<br />

chegamos efetivamente aos conteúdos “relativamente<br />

independentes”, como Wundt propõe: o som simples,<br />

relativamente simples na<strong>da</strong> mais, mesmo que ain<strong>da</strong> se<br />

integrem à intensi<strong>da</strong>de e quali<strong>da</strong>de. Certo de que esses<br />

dois componentes do som simples são absolutamente<br />

abstratos; ou dito de outro modo, que o fun<strong>da</strong>mento de<br />

sua distinção pertence a um princípio abstrato toto coelo,<br />

diferente <strong>da</strong>quele que chegamos de um acorde aos<br />

últimos sons simples.<br />

A facili<strong>da</strong>de de abstrair o som “simples” dos complexos<br />

não se repete nas visuais. Ain<strong>da</strong>, não entendendo<br />

bem o que Wundt chama “sensações luminosas incolores”,<br />

pergunta-se: em que consiste a simplici<strong>da</strong>de de uma<br />

cor? O critério <strong>da</strong> impossível redução a elementos mais<br />

simples não é tão seguro aqui como era na ordem paralela<br />

ao acústico. Fala-se de quatro cores fun<strong>da</strong>mentais.<br />

Seriam essas as ver<strong>da</strong>deiras sensações visuais? Wundt<br />

afirma que na consciência imediata – e dessa só se fala<br />

descritivamente – as cores fun<strong>da</strong>mentais não se diferenciam<br />

<strong>da</strong>s cores de transição. O laranja é tão simples<br />

como o vermelho ou o amarelo. Wundt se separa – mais<br />

ain<strong>da</strong> do que Hoffmann parece notar – de seu critério de<br />

simplici<strong>da</strong>de e o substitui pelo de “saturação”. As cores<br />

simples são os gesaettigten Farben [cores satura<strong>da</strong>s]. E,<br />

no entanto, indo do vermelho ao amarelo, percebemos<br />

nesse último um processo de combinação até seu triunfo,<br />

de modo que as cores, entre o vermelho e o amarelo,<br />

nos pareçam compostas. Por isso é tão comum entre os<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 217-223, jul-dez, 2011<br />

José Ortega y Gasset<br />

psicólogos a opinião contrária a Wundt, segundo a qual<br />

só o vermelho, o amarelo, o verde e o azul são simples.<br />

Isso mostra que o tema é muito discutível.<br />

Pareceria muito mais discutível se tivéssemos espaço<br />

aqui para referirmos os trabalhos admiráveis de Jaensch<br />

e Katz, que tem influenciado Hoffmann, mesmo que só<br />

citemos o segundo. Em suma, Hoffmann, reconhece também<br />

que o conceito de “sensação simples” é útil para a<br />

psicologia. No entanto, não pôde se contentar com esses<br />

conceitos, porque “representam mais uma meta que um<br />

ponto de parti<strong>da</strong> para a investigação e, consequentemente,<br />

tem que se começar a teoria <strong>da</strong> sensação com formações<br />

sensíveis”, mais complexas “que sejam susceptíveis<br />

de precisa determinação”.<br />

Com isso, encerra Hoffmann seu trabalho crítico, e<br />

inicia a sua descrição fenomenológica <strong>da</strong> percepção visual,<br />

segundo os graus de maior e menor complexi<strong>da</strong>de para<br />

chegar a um novo termo, “intimi<strong>da</strong>de sensível” – <strong>da</strong>s sinnliche<br />

Erlebnis – e detendo-se, sem dizer formalmente, até<br />

um ponto que está por trás <strong>da</strong> “sensação” procura<strong>da</strong>.<br />

A tese a que nos referimos é um grato produto <strong>da</strong> novíssima<br />

tendência que se tem tido no centro de Gotinga.<br />

Por isso vale a pena expor e discutir seu método e suas<br />

conclusões, reunindo frente aos comentários de certa<br />

amplitude, todo um grupo de obras recentes, nasci<strong>da</strong>s<br />

do mesmo ou parecido espírito. Fica, pois, intacto o tema<br />

original de Hoffmann, que poderíamos intitular assim:<br />

o conceito fenomenológico <strong>da</strong> sensação.<br />

Quando percebemos algo e, aqui o percebido é o que<br />

nos interessa: vivemos definitivamente o ato <strong>da</strong> percepção.<br />

Dito de outra maneira: no momento de uma percepção<br />

tal que nos interessa, também irá se constituir em<br />

nossa consciência outros atos – por exemplo, de querer,<br />

de sentir, e ain<strong>da</strong>, de pensar – ademais, o ato de perceber.<br />

Contudo, o foco de nossa atenção passa somente por<br />

este último, que se ergue no centro de nossa vi<strong>da</strong> mental.<br />

Essa preferência <strong>da</strong> atenção por um ato determinado<br />

em ca<strong>da</strong> instante é o que expressamos ao dizer: vivemos<br />

definitivamente esse ato.<br />

Mas quando julgamos, quando dizemos, por exemplo:<br />

“isso é branco”, nos encontramos com um ato complexo,<br />

cujos elementos são díspares. Há nele um puro<br />

ato de predicação pelo qual afirmamos a “brancura” do<br />

“isso”. Contudo esse ato de predicação é impossível sem<br />

outros atos em que nos é <strong>da</strong>do a “brancura” e o “isso” ao<br />

que nos referimos. Nesse exemplo que tomamos o “isso”<br />

significa um objeto visual presente, portanto, algo que<br />

só pode estar frente a nós, mediante um ato perceptivo.<br />

Já a “brancura”, ao contrário, só pode chegar aos nossos<br />

olhos por um ato perceptivo, mas também por um ato meramente<br />

imaginativo ou talvez por um ato de fantasia 4 .<br />

Percepção, imaginação e fantasia são três classes de atos<br />

que se reúnem em uma classe única, principalmente se<br />

as colocarmos em relação com o ato predicativo. Frente<br />

4 Refiro-me ao tema, hoje muito discutido, <strong>da</strong> fantasia de cores em<br />

cegos de nascimento.<br />

218


Sobre o Conceito de Sensação<br />

a esses atos, temos aqueles mais comuns cuja função é<br />

“presentificar” simplesmente os objetos. Os chamaremos<br />

de atos “presentativos”. A predicação não é um ato presentativo,<br />

porém supõe inevitavelmente esse ato. É, portanto,<br />

o juízo um ato de segundo grau que se fun<strong>da</strong> em<br />

atos presentativos ou de primeiro grau. E ain<strong>da</strong>: o juízo é<br />

uma estrutura de atos em que há um ato fun<strong>da</strong>do e atos<br />

básicos ou fun<strong>da</strong>ntes.<br />

Agora bem, essa uni<strong>da</strong>de de atos de diversos graus<br />

traz consigo uma relação funcional entre eles que se manifestam,<br />

por um lado, enquanto atendo ao ato superior<br />

– nesse caso a predicação –, também vivo nele e só nele<br />

me dou conta, não <strong>da</strong>ndo conta dos outros atos concomitantes.<br />

No entanto, não há dúvi<strong>da</strong>s que os realizo; não há<br />

duvi<strong>da</strong>s de que constituem nesse instante minha consciência,<br />

como pode fazê-lo o ato superior. Do mesmo modo,<br />

quando a visão de algo me irrita dou-me conta do objeto<br />

como objeto de minha irritação e não como simples objeto<br />

de minha visão.<br />

Todo o juízo, dizíamos, se fun<strong>da</strong> em atos presentativos.<br />

To<strong>da</strong>via, os atos presentativos são independentes<br />

e não se fun<strong>da</strong>m em outros atos mais simples ain<strong>da</strong>? A<br />

questão, como podemos perceber, tende a dispor um conjunto<br />

íntegro de atos <strong>da</strong> consciência em uma escala que<br />

ca<strong>da</strong> grau supõe o antecedente como fun<strong>da</strong>mento. De um<br />

lado encontraríamos uma classe de situações <strong>da</strong> consciência<br />

em que é essencial a duali<strong>da</strong>de de elementos: atos<br />

definitivos ou aos que atendemos primariamente; e atos<br />

periféricos (periféricos a respeito ao que fixo a atenção)<br />

cujos atos àqueles se fun<strong>da</strong>m. Do outro lado, aparece com<br />

to<strong>da</strong> agudeza o problema se há outro tipo de situação <strong>da</strong><br />

consciência em que esta se coloque constituí<strong>da</strong> por um<br />

só ato. O tipo anterior parecia mais essencial a essa, ou<br />

seja, a funcionali<strong>da</strong>de entre ato central e ato periférico.<br />

Dir-se-ia que a consciência consiste em uma dinâmica<br />

entre uma zona de atenção e uma zona de desatenção:<br />

como se para <strong>da</strong>r-se conta de algo fosse forçoso ter outro<br />

“algo” sem se <strong>da</strong>r conta disso.<br />

Para resolver a dificul<strong>da</strong>de e fixar a essência dos<br />

atos mais simples sobre o qual se ergue o complexo edifício<br />

de nossa consciência integral, convém, pois, trazer<br />

a análise precisa do ato presentativo mais importante:<br />

a percepção. Mas, antes, duas palavras sobre o método<br />

dessa análise.<br />

De propósito deixamos esse lugar para responder à<br />

pergunta: o que é fenomenologia? O que acabamos de tratar<br />

é um exemplo de fenomenologia, por isso será mais<br />

fácil edificarmos uma definição. A propósito: “todo juízo<br />

é um ato de segundo grau que se fun<strong>da</strong> em atos presentativos”,<br />

isso possui um valor legal. É uma lei. Mas<br />

de onde chega esse valor, lei? Para obtê-la não necessitamos<br />

investigar muitos atos reais de juízo, basta apenas<br />

como nos colocaremos diante de um. Não se trata,<br />

pois, de uma lei indutiva, de uma lei empírica; só vale<br />

para fatos observados ou, pelo menos, dentro de um espaço<br />

de experiência limita<strong>da</strong> pelas condições de fato.<br />

Por exemplo, limitando a existência de uma espécie determina<strong>da</strong>,<br />

o homem. Essa proposição vale para todo ser<br />

capaz de julgar. Não expressa uma conexão fática como<br />

expressa a lei <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de. Não nos diz sobre as condições<br />

do espaço e tempo (que são fáticas) a que está submeti<strong>da</strong><br />

um juízo. Ao contrário, proclama uma necessi<strong>da</strong>de<br />

absoluta: a de que é impossível ter um juízo sem<br />

um ato de presentificação, seja de quem julga, seja esse<br />

um homem ou Deus.<br />

Tampouco se trata de uma lei dedutiva. Não partimos<br />

de um conceito de juízo, de um juízo geral para<br />

encontrar ele mesmo, como Kant diria, analiticamente,<br />

na exigência de fun<strong>da</strong>r-se em outros atos. Na dedução,<br />

o caso particular não deriva conhecimento. Somos nós,<br />

que frente à indução, dizemos: não necessitamos de um<br />

ato real e presente de juízo, porque ele e só ele traz a lei...<br />

Não é do conceito de juízo que extraímos a lei, senão do<br />

juízo mesmo, de um juízo qualquer que verificamos ou<br />

fingimos verificar.<br />

O caso não é tão estranho como pudera parecer à primeira<br />

vista. A visão de algo colorido já basta para estabelecer<br />

essa lei: “Não há cor sem extensão sobre aquilo que<br />

se esten<strong>da</strong>”. Agora bem, o conceito “cor” e o conceito “extensão”,<br />

por si mesmos, não possibilitariam nunca essa<br />

lei. Por outro lado, essa lei não se apóia em minha visão<br />

enquanto essa seja um fato – como a lei <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de se<br />

apóia no fato bruto <strong>da</strong> situação dos astros no espaço. Não,<br />

a ver<strong>da</strong>de é que eu não posso separar a cor <strong>da</strong> extensão:<br />

isso não depende de minha constituição fática, de meu<br />

real poder ou não poder. Não sou eu quem tem poder ou<br />

desejo poder: a lei expressa é que a cor não pode libertar-se<br />

<strong>da</strong> extensão.<br />

Indução e dedução são métodos indiretos de obter<br />

proposições ver<strong>da</strong>deiras. Os termos expressam isso com<br />

clari<strong>da</strong>de: a ver<strong>da</strong>de é por esses métodos, induzi<strong>da</strong> ou<br />

deduzi<strong>da</strong>, nunca vista. To<strong>da</strong> proposição, mediante o alcance,<br />

fun<strong>da</strong> sua certeza, eventualmente, nas leis formais<br />

que a lógica estabelece para a indução ou dedução<br />

no geral. De modo que, embora a proposição indutiva<br />

se refira aos objetos materiais – os ópticos, por exemplo<br />

–, sua ver<strong>da</strong>de procede <strong>da</strong> subordinação ao observado<br />

em conceitos puramente lógicos. Como em Stuart Mill,<br />

que to<strong>da</strong>s as ver<strong>da</strong>des indutivas dependem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

do axioma (?) e proclama a uniformi<strong>da</strong>de no curso <strong>da</strong><br />

Natureza. O axioma cujo qual é muito mais um capricho<br />

de Stuart Mill, quanto mais uma louvável esperança.<br />

Disso resulta que nossas afirmações sobre um objeto<br />

físico não extraem seu valor cognoscível do que ele<br />

mesmo é, senão de uma complicação entre o que dele<br />

possuímos e o axioma geral <strong>da</strong> indução. O axioma, sem<br />

hesitar, perturba to<strong>da</strong>s as afirmações sobre os objetos<br />

concretos.<br />

O mesmo acontece com a dedução. Também aqui a<br />

ver<strong>da</strong>de de uma proposição objetiva se obtém abandonando<br />

o objeto que se trata, apoiando-se em outras proposições<br />

que se consideram como ver<strong>da</strong>des prova<strong>da</strong>s. Isso<br />

219 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 217-223, jul-dez, 2011<br />

T e x t o s C l á s s i c o s


T e x t o s C l á s s i c o s<br />

não significa dizer que indução ou dedução não sejam<br />

métodos científicos suficientes: significa simplesmente<br />

dizer que não se pode com eles pretender a digni<strong>da</strong>de de<br />

métodos primários na obtenção <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />

A proposição: “estou vendo uma mesa com livros e<br />

papéis” não deriva sua ver<strong>da</strong>de de na<strong>da</strong> que não seja o estado<br />

objetivo mesmo que se faz referência. A proposição<br />

se limita a descrever em expressões uma objetivi<strong>da</strong>de patente,<br />

imediata, não inferi<strong>da</strong>. O perigo <strong>da</strong> alucinação não<br />

põe em risco sua ver<strong>da</strong>de, porque não falo de um objeto<br />

como existindo à parte e independente de minha visão,<br />

senão do que vejo, enquanto vejo.<br />

Portanto, essa proposição supõe em mim a capaci<strong>da</strong>de<br />

de <strong>da</strong>r-me conta dos estados objetivos individuais:<br />

essa capaci<strong>da</strong>de se chama percepção, imaginação..., na<br />

experiência em geral ou intuição individual 5 . Por essa<br />

intuição é <strong>da</strong>do um objeto individual, ou seja, um objeto<br />

presente, frente a mim em um momento do tempo e em<br />

algum lugar do espaço. A mesa que falávamos é um objeto<br />

individual, porque é um objeto que eu tenho agora,<br />

só agora; aqui e só aqui frente a mim.<br />

Em todo objeto individual há, portanto, dois elementos:<br />

o primeiro, o que o objeto é: a mesa, com sua forma<br />

e cor, etc.; e outro elemento é a observação de sua existência,<br />

aqui e agora. O segundo elemento é o que faz de<br />

um objeto um fato. Como o tempo flui e as relações espaciais<br />

variam isso leva o objeto ser fato junto a que o<br />

envolve externamente e, por isso, se diz que frente a nós<br />

só se dão coisas absolutamente fugazes; uma incessante<br />

mu<strong>da</strong>nça. Contudo, isso é um erro: em to<strong>da</strong> intuição<br />

individual pode-se abstrair algo desse elemento que o<br />

individualiza e converte em fato o objeto, ficando o que<br />

se abstrai isento <strong>da</strong>s narrações têmporo-espaciais, invariável,<br />

eterno.<br />

Meu ato de visão <strong>da</strong> mesa transcorre: a mesa material<br />

– motivo de minha visão – corrompe-se, mas o objeto<br />

“mesa que eu vejo agora” é incorruptível e isento de<br />

vicissitudes. Talvez minha recor<strong>da</strong>ção dela seja obscura<br />

e confusa, mas a mesa que vi, tal e como a vi, constitui<br />

um objeto puro e idêntico a si mesmo. Não é um objeto<br />

individual, mas sim sua essência. A intuição individual,<br />

chama<strong>da</strong> na experiência, converte-se sempre em intuição<br />

essencial. Vejamos como:<br />

Há uma “maneira natural” de efetuar os atos <strong>da</strong> consciência,<br />

quaisquer que sejam esses atos. Essa maneira<br />

natural se caracteriza pelo valor de ação que têm esses<br />

atos. Assim, a “atitude natural” no ato de percepção<br />

consiste em aceitar, existindo diante de nós, uma coisa<br />

pertencente a um âmbito de coisas que consideramos<br />

efetivamente como reais e que chamamos de “mundo”.<br />

A atitude natural no juízo A é B, consiste em crermos<br />

resultantemente que existe um A que é B. Quando amamos,<br />

nossa consciência vive sem reservas no amor. Nessa<br />

eficácia dos atos, quando nossa consciência vive os atos<br />

5 Edmund Husserl, em “Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma<br />

Filosofia Fenomenológica”.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 217-223, jul-dez, 2011<br />

José Ortega y Gasset<br />

em atitude natural e espontânea, chamamos o poder de<br />

execução <strong>da</strong>queles.<br />

Suponhamos agora que, ao ponto de ter efetuado em<br />

nossa consciência, por assim dizer, de boa fé e naturalmente,<br />

um ato de percepção se flexiona sobre si mesma e,<br />

em lugar de viver na contemplação do objeto sensível, se<br />

ocupa agora em contemplar sua percepção mesma. Essa,<br />

com to<strong>da</strong>s suas conseqüências executivas, com to<strong>da</strong> sua<br />

afirmação de que algo real há em sua frente, ficará, por<br />

assim dizer, em suspensão. Sua efetivi<strong>da</strong>de não será definitiva,<br />

será só efetiva como “fenômeno”. Notemos que<br />

esta reflexão <strong>da</strong> consciência sobre seus atos: 1º) não os<br />

perturba, a percepção é o que está antes, só que agora –<br />

como diz Husserl de maneira esboça<strong>da</strong> – está posto “entre<br />

parênteses”; 2º) não se pretende explicá-los, senão que<br />

descrever o que meramente se vê, <strong>da</strong> mesma maneira que<br />

a percepção não explica o objeto, somente a presencia na<br />

perfeita passivi<strong>da</strong>de.<br />

Pois bem, todos os atos de consciência e todos os objetos<br />

desses atos podem ser “colocados entre parênteses”.<br />

O mundo “natural” inteiro, a ciência enquanto sistema de<br />

juízos efetuados de “maneira natural”, tudo fica reduzido<br />

a fenômeno. E não significa aqui fenômeno no que Kant<br />

sugere, por exemplo, com algo substancial por trás dele.<br />

Fenômeno é aqui simplesmente o caráter virtual que adquire<br />

tudo, quando seu valor efetivo natural passa a ser<br />

contemplado, em postura espetacular e descritiva, sem<br />

atribuir-lhe o caráter definitivo. Essa descrição pura é a<br />

Fenomenologia.<br />

A Fenomenologia é descrição pura <strong>da</strong>s essências como<br />

é a matemática. O tema cujas essenciali<strong>da</strong>des a fenomenologia<br />

descreve é tudo aquilo que constitui a consciência<br />

6 . Definição semelhante aproxima de uma maneira<br />

perigosa a fenomenologia <strong>da</strong> psicologia. E, efetivamente,<br />

as primeiras investigações de Husserl – ain<strong>da</strong> sem saber<br />

ter chegado à fórmula clara – padeceram de uma interpretação<br />

psicológica. Husserl mesmo em sua obra de 1900<br />

– Investigações Lógicas – fala equivoca<strong>da</strong>mente <strong>da</strong> fenomenologia<br />

como uma “psicologia descritiva”. Tratava-se<br />

de um novo território de problemas que o próprio fun<strong>da</strong>dor<br />

não podia ain<strong>da</strong> abarcar de uma só vez. Contudo,<br />

fica evidente que a nova ciência não é psicologia, se por<br />

psicologia entendermos, segundo o uso, uma ciência descritiva<br />

empírica ou uma ciência metafísica.<br />

A fenomenologia separa-se <strong>da</strong>s formas usuais na psicologia,<br />

porque se ocupa exclusivamente <strong>da</strong>s essências<br />

e não <strong>da</strong>s existências. Em geral, a psicologia trata do fato<br />

<strong>da</strong> psique humana, como a astronomia do fato dos corpos<br />

celestes. A existência <strong>da</strong> consciência humana é um<br />

suposto constitucional sem a qual a psicologia careceria<br />

de sentido. Ao contrário, esse suposto é só necessário<br />

para que existam fenomenólogos, mas é indiferente para<br />

a constituição <strong>da</strong> fenomenologia. Cabe, com certeza, uma<br />

fenomenologia particular <strong>da</strong> consciência humana. É o que<br />

6 Edmund Husserl, em “Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma<br />

Filosofia Fenomenológica”, § 75.<br />

220


Sobre o Conceito de Sensação<br />

com maior veemência nos interessará – mas, como será<br />

possível isso sem uma fenomenologia geral?<br />

Do que foi dito até aqui, e se meditarmos um pouco,<br />

deixamos de estabelecer uma distância inequívoca entre<br />

fenomenologia e psicologia. Por isso, cabe fazer uma breve<br />

observação que acentue sua diferença. A consciência<br />

humana – de que trata a psicologia – é, digamos com ingenui<strong>da</strong>de,<br />

um objeto bastante específico, ou seja, mais<br />

específico que aquela “razão sã” e aquele “entendimento<br />

são e natural” que se costumava falar em épocas mais<br />

felizes que a nossa. Porque a adição de “humana” traz<br />

uma prudente intenção limitativa, que falta, se falarmos<br />

simplesmente “consciência”. Temos, pois, adiante dois<br />

elementos heterogêneos que aspiram formar uni<strong>da</strong>de de<br />

uma coisa: consciência-humana.<br />

Com efeito, por consciência entendemos aquela instância<br />

definitiva que de uma ou outra maneira constitui<br />

o ser dos objetos. Se nosso interesse ao falar de “consciência<br />

humana”, como acontece em to<strong>da</strong> linhagem de positivismo,<br />

consiste em limitar estritamente a quali<strong>da</strong>de<br />

de ser e não-ser, reduzindo-a às perfeitas relativi<strong>da</strong>des,<br />

necessitamos pelo menos que o objeto limitado – todos<br />

aqueles que envolvemos para mediarmos – não seja um<br />

ser relativo e de quali<strong>da</strong>de limita<strong>da</strong>. De maneira que o<br />

relativismo e antropologismo mais extremo exijam um<br />

sentido do termo consciência ilimitado e absoluto– prova<br />

<strong>da</strong> contradição íntima em que aqueles vivem –, dentro<br />

do qual se constituirá, como objeto entre nós, o objeto<br />

“consciência humana”. Esse sentido é o que tem o termo<br />

consciência na expressão “consciência de”: “consciência<br />

de” branco, <strong>da</strong> figura, <strong>da</strong> existência, etc.<br />

Quando Descartes supôs que to<strong>da</strong>s nossas predicações<br />

sobre as coisas padecem de erro; ain<strong>da</strong>, quando se<br />

coloca entre parênteses to<strong>da</strong> objetivação transcendental,<br />

to<strong>da</strong> afirmação ou negação de algo como reali<strong>da</strong>de,<br />

adverte-se que nem por isso tem-se concluído o âmbito<br />

íntegro do ser. Que anula<strong>da</strong>s pela dúvi<strong>da</strong> to<strong>da</strong>s as nossas<br />

proposições transcendentais, continuam possuindo uma<br />

constância, um ser absoluto toma<strong>da</strong>s como meras cogitationes.<br />

Na cogitatione, na consciência, chegam todos os<br />

objetos de uma vi<strong>da</strong> absoluta. O ser real, o ser transcendente<br />

poderá ser de outro modo que como eu penso que<br />

ele é, mas o que eu penso é tal e como eu penso, seu ser<br />

consiste precisa e exclusivamente no ser pensado. Assim,<br />

o real tem dois lados: o que dele aparece na consciência,<br />

o quê se manifesta e, ademais, aquilo que não se manifesta.<br />

Assim, um corpo físico é essencialmente uma duali<strong>da</strong>de,<br />

porque não pode manifestar-se; se aparece em<br />

três dimensões, somente em uma série e sucessivas cogitationes<br />

(que nesse caso chamaremos percepções) parciais<br />

– agora de um lado, depois do outros, etc. No entanto,<br />

como tem profundi<strong>da</strong>de, tem um interior que vai<br />

se manifestando em séries de percepções até o infinito;<br />

de sorte que, o que do corpo físico é como reali<strong>da</strong>de integral,<br />

nunca obter-se-á por completo a evidência, por ser<br />

fenômeno e consciência. E é por isso que a física nunca<br />

converter-se-á em um ciência pura e exata. Ou seja, um<br />

triângulo é puramente o que pensamos que ele é; o que<br />

é como consciência.<br />

Na fenomenologia, a consciência é o plano <strong>da</strong> objetivi<strong>da</strong>de<br />

primária em que tudo esgota seu ser no aparecer<br />

(phainómenon), mas não como um fato têmporo-espacial<br />

e nem como reali<strong>da</strong>de de uma função biológica ou psicofísica<br />

liga<strong>da</strong> a uma espécie, mas sim, como “consciência<br />

de”. Assim, para concluir essa brevíssima introdução do<br />

que entendemos por fenomenologia, citemos um exemplo,<br />

seguindo a concepção de Husserl.<br />

O brilho metálico é uma evidente peculiari<strong>da</strong>de luminosa<br />

que percebemos envolvendo um objeto de prata.<br />

Um físico estu<strong>da</strong>rá o porquê as combinações não patentes,<br />

não-manifestas, produzem esse fenômeno. O psicólogo<br />

estu<strong>da</strong>rá por quais mecanismos psicofisiológicos<br />

chegamos a essa percepção. O físico, assim, busca num<br />

lado do fenômeno “brilho metálico” a constituição <strong>da</strong><br />

coisa material que dele se manifesta. O psicólogo busca<br />

a gênese desse fenômeno na reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> psique individual.<br />

Ambos partem do fenômeno, porém, o abandonam<br />

pelos objetos reais, isto é, objetos científicos, produtos de<br />

uma operação racional construí<strong>da</strong>. No caso, o fato está<br />

em entendermos sobre o que é o “brilho metálico” mesmo;<br />

ou de outro modo, que classes de cores e em que disposição,<br />

etc., temos que vê-los, para que vejamos “brilho<br />

metálico”. Em suma, convém fixar a essência dele, do<br />

que vejo enquanto, e só enquanto vejo. Parece coisa óbvia<br />

e supérflua? Então, ensaie uma definição para esse<br />

fenômeno e verá como esta tarefa é extremamente penosa.<br />

Provavelmente não se tem <strong>da</strong>do uma descrição satisfatória<br />

de coisa tão trivial. Se a tivéssemos à mão, possuiríamos<br />

a definição <strong>da</strong> “consciência de” brilho metálico,<br />

a qual valeria a pena ao humano, sobretudo, para o<br />

infra-humano e sobre-humano. Todo sujeito, divino ou<br />

mun<strong>da</strong>no, para quem o brilho existe, perceberá <strong>da</strong> mesma<br />

maneira o essencial.<br />

Como vemos, a fenomenologia goza de uma abor<strong>da</strong>gem<br />

invejável, digna de prestígio histórico, sem arrebatar<br />

novi<strong>da</strong>de. Todo clássico idealismo – Platão, Descartes,<br />

Leibniz, Kant – partiram de tal princípio fenomenológico.<br />

Os objetos são, antes que reais ou irreais, objetos, ou seja,<br />

presenças imediatas frente à consciência. O que faz a fenomenologia<br />

ser inédita consiste em interromper o método<br />

científico no plano do imediato e patente enquanto<br />

tal do vivido. O erro a ser evitado radica que, sendo a<br />

pura consciência o plano <strong>da</strong>s vivências 7 – a objetivi<strong>da</strong>de<br />

7 Edmund Husserl em “Idéias para uma Fenomenologia Pura e uma<br />

Filosofia Fenomenológica”, § 75. Aproveito essa ocasião para pedir<br />

auxílio em uma questão terminológica aos que se interessam pela<br />

filosofia espanhola se, como creio, filosofia espanhola significar só<br />

a filosofia explica<strong>da</strong> em vocábulos e que sejam para os espanhóis<br />

plenamente significativos. O caso que agora me refiro trata de um<br />

curioso problema que hoje tem conquistado atenção de to<strong>da</strong> a filosofia<br />

alemã e, contudo, faz poucos anos – que não chegam a cinqüenta<br />

– que tivemos pensadores alemães que buscaram ou compuseram<br />

uma palavra nova que vou expressar. Essa palavra, Erlebnis, foi introduzi<strong>da</strong>,<br />

segundo penso, por Dilthey. Depois de <strong>da</strong>r muitos rodeios<br />

221 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 217-223, jul-dez, 2011<br />

T e x t o s C l á s s i c o s


T e x t o s C l á s s i c o s<br />

primária e envolvente –, quer circunscrever-se dentro de<br />

uma classe parcial de objetos como sendo a reali<strong>da</strong>de. A<br />

reali<strong>da</strong>de é “consciência de” a reali<strong>da</strong>de; mal pode, por<br />

sua vez, ser a consciência uma reali<strong>da</strong>de. Bem, isso porque<br />

a psicologia considera a “consciência humana” como<br />

uma reali<strong>da</strong>de que nasceu em um dia determinado e em<br />

um ponto do espaço sobre o feixe do real. Porém, sem<br />

esquecer que não é o que tem na consciência, mas o que<br />

tem de humana quem faz <strong>da</strong>quela uni<strong>da</strong>de um tema de<br />

estudo realista. A mecânica é uma parte <strong>da</strong> pura consciência,<br />

cuja ver<strong>da</strong>de e não-ver<strong>da</strong>de, juntamente com seus<br />

juízos, raciocínios, etc., é completamente alheia a to<strong>da</strong> a<br />

determinação tempo-espacial. Como poderá ser um problema<br />

para uma psicologia realista? Não o é, com efeito,<br />

nem poderia sê-lo; tal equivaleria a estu<strong>da</strong>r a influência<br />

<strong>da</strong> gravitação nas leis do xadrez. O que se pode estu<strong>da</strong>r<br />

na psicologia é: por que o corpo <strong>da</strong> mecânica ideal, a<br />

“consciência de” a mecânica se atualiza no corpo vivo<br />

de um inglês em tal <strong>da</strong>ta exata. Não, pois, a consciência<br />

mesma, mas a entra<strong>da</strong> e saí<strong>da</strong> dos conteúdos <strong>da</strong> consciência<br />

em um corpo ou, o que me é indiferente em uma<br />

alma, em uma reali<strong>da</strong>de, é tema <strong>da</strong> psicologia explicativa.<br />

Para a fenomenologia fica o campo literalmente ilimitado<br />

<strong>da</strong>s vivências.<br />

Terminando aqui esta breve informação, voltemos à<br />

questão <strong>da</strong> memória em Hoffmann. Os “graus <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de<br />

visual” são os temas principais de Hoffmann. O<br />

seu propósito consiste em delimitar as distintas formas<br />

de “consciência de” uma coisa – entendendo por coisa o<br />

que vulgarmente se entende – o que constitui a percepção<br />

real. Ou de outro modo: quais são os elementos que<br />

se dão ante um sujeito para que este perceba uma coisa.<br />

Os elementos que se buscam não têm de entender-se geneticamente,<br />

senão descritivamente.<br />

É certo que esse propósito fica reduzido à mais modesta<br />

proporção. Hoffmann limita-se a perseguir o que<br />

um sentido – a visão – aporta à percepção. Ele propôs,<br />

antes de tudo, chegar a um conceito claro do último elemento<br />

perceptivo: a sensação. Veremos como fica esse<br />

último empenho.<br />

durante anos, esperando esbarrar em algum vocábulo já existente em<br />

nossa língua e suficientemente apto para transcrever aquela, tenho<br />

constantemente abandonado e passado a buscar uma nova. Trata-se<br />

do que se segue em frases como: “viver a vi<strong>da</strong>”, “viver as coisas”,<br />

que adquire no verbo “viver” um curioso sentido. Sem deixar seu<br />

valor declarante tomar uma forma transitiva, significando aquele<br />

gênero de relação imediata em que entra ou pode entrar o sujeito<br />

com certas objetivi<strong>da</strong>des. Pois bem, como chamar ca<strong>da</strong> atualização<br />

desta relação? Eu não encontro outra palavra que “vivência”. Tudo<br />

aquilo que chega com tal imediatez a meu eu, que entra formando<br />

parte dele, é uma vivência. Como o corpo físico é uma uni<strong>da</strong>de de<br />

átomos, assim também o eu ou corpo cônscio é uma uni<strong>da</strong>de de<br />

vivências. Como to<strong>da</strong> palavra nova, reconheço que esta pode soar<br />

mal. No entanto, ela já existe em composições como convivência,<br />

sobrevivência, etc. e outras análogas. Estou certo que o dicionário<br />

acadêmico não traz essas formas compostas, o que me faz temer se<br />

será um pouco exótica. Solicito, pois, aos filólogos, que se interessem<br />

por essa consulta. Por enquanto não se encontra outro termo<br />

melhor, assim continuarei usando “vivência” como correspondente<br />

a Erlebnis.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 217-223, jul-dez, 2011<br />

José Ortega y Gasset<br />

Antes de qualquer avanço, Hoffmann distingue entre<br />

o que chama “coisa” o físico e o que pensamos no cotidiano.<br />

A “coisa” do físico é um composto de átomos, por definição,<br />

imperceptíveis, dota<strong>da</strong> de quali<strong>da</strong>des, que em rigor<br />

também são imperceptíveis. Algo, portanto, indisponível<br />

para a percepção; um ente só racionalmente abstrato. As<br />

chama<strong>da</strong>s “quali<strong>da</strong>des secundárias” são atribuí<strong>da</strong>s pela<br />

física, não às coisas; mas sim seu influxo mecânico sobre<br />

nossos órgãos do sentido. Ao contrário disso: “quando na<br />

vi<strong>da</strong> ordinária falamos de coisas, entendemos algo corpóreo<br />

que completa o espaço (o aparente, não o geométrico),<br />

que tem essa ou aquela situação frente às outras coisas,<br />

que em seu interior, assim como nas diversas partes de<br />

sua superfície possui tal cor; a que atribuímos certa resistência<br />

contra a pressão; um certo grau de dureza, de<br />

polimento ou aspereza, etc..” A física parte dessas proprie<strong>da</strong>des,<br />

arrebatando umas, adicionando outras, chegando<br />

a formar o que Hoffmann chamou de “coisa atômica”, em<br />

oposição a “coisa sensível”. Essa “coisa sensível” é o conteúdo<br />

<strong>da</strong> percepção plena. Essa coisa existente agora entre<br />

nós no espaço em que percebemos, de tal e qual forma,<br />

com um interior e um exterior.<br />

Aqui se impõe uma nova distinção analítica. É indubitável<br />

que no ato de percepção plena percebemos as<br />

coisas como corpos, isto é, como cheias, não constituí<strong>da</strong>s<br />

por meras superfícies. E, contudo, em ca<strong>da</strong> momento, os<br />

sentidos manifestam só superfícies. De modo que a percepção<br />

já nos surge como síntese de duas formas de consciência<br />

distintas: aquela em que nos dá a coisa superficial<br />

e aquela em que pensamos o interior <strong>da</strong> coisa. Hoffmann<br />

abandona o problema de como isso que chamamos o interior<br />

<strong>da</strong>s coisas se apresenta frente a nós e limita a questão<br />

às proprie<strong>da</strong>des superficiais <strong>da</strong> coisa. Como, por outra<br />

parte, refere-se só à percepção visual, designando o<br />

correlato 8 dessa como “coisa real visual”.<br />

Um exemplo disso está em qualquer objeto alheio,<br />

remoto a nosso tato. Um corpo cúbico colocado a alguns<br />

metros de distância nos oferece três de suas superfícies,<br />

de forma que não coincide nunca com a que atribuímos<br />

à coisa real cubo. Variando nossa orientação e distância<br />

a respeito dele, mu<strong>da</strong>-se a forma, o tamanho, a cor, etc.;<br />

contudo, nós sempre percebemos como cubo. A “coisa<br />

real visual” consiste, assim, em uma série de visões sobre<br />

a coisa com certa continui<strong>da</strong>de que nos representa a<br />

permanência de um idêntico objeto. E, é essencial para<br />

que todos enten<strong>da</strong>m o que é coisa real, que essa série de<br />

visões, de experiências, seja literalmente infinita. Não<br />

podemos esgotar os pontos de vista <strong>da</strong>s quais cabe ver<br />

a coisa que, segundo Hoffmann, Kant chamaria de uma<br />

idéia, pois se trata de um conceito limite.<br />

8 Todo ato de consciência é referência a um objeto por meio do “intencional”<br />

do ato. O correlato do ato não é o objeto – por exemplo, o<br />

sol de que falo –, senão aquele “objeto imanente”, aquele “sentido”<br />

pelo qual penso, referindo-se ao sol. O correlato <strong>da</strong> percepção é o<br />

percebido, não o objeto transcendente a mim. Essa distinção, acaso<br />

difícil, não pode ser aqui explana<strong>da</strong>.<br />

222


Sobre o Conceito de Sensação<br />

Se subtrairmos o que na percepção declaramos como<br />

presente – o que em ver<strong>da</strong>de não está – teremos uma série<br />

de visões efetivas que não nos <strong>da</strong>rá adequa<strong>da</strong>mente a<br />

coisa real, mas sim, o que a to<strong>da</strong> hora estamos tomando<br />

como coisa real. Se eu dou uma volta inteira ao redor de<br />

uma cadeira, uma série contínua de imagens se desenvolve<br />

em mim, chegando a formar um círculo fechado.<br />

Posso chamar isso de coisa real? É certo que não. Essa<br />

série concluí<strong>da</strong> não é mais que uma mínima parte do<br />

que posso apreender sobre o objeto. Se, a partir <strong>da</strong> distância<br />

que mantive ao girar em torno <strong>da</strong> cadeira não se<br />

mostraram os veios, a aspereza, etc., <strong>da</strong> madeira, essas<br />

proprie<strong>da</strong>des podem aparecer se me aproximar. A nova<br />

distância me permitirá obter uma nova série concluí<strong>da</strong>.<br />

Que privilégio pode-se atribuir a uma dessas séries sobre<br />

as outras pretendendo ser ela a real?<br />

Essas coisas obti<strong>da</strong>s são, portanto, uma série concluí<strong>da</strong><br />

de visões, algo que parece adequar-se ao que chamamos<br />

reali<strong>da</strong>de, mas que não é. Hoffmann chama essa série concluí<strong>da</strong><br />

de “coisas visuais” (Sehding), seguindo a terminologia<br />

de Jean Hering, em oposição às reais. Com respeito<br />

a essas, aquelas são ver<strong>da</strong>deiramente presentes na visão.<br />

Tudo o que não seja “coisa visível” <strong>da</strong> “coisa real”, pertence<br />

ao que podemos chamar de fator ideal <strong>da</strong> percepção.<br />

Assim por exemplo: o tamanho. Um tamanho determinado<br />

é proprie<strong>da</strong>de que atribuímos muito caracteristicamente<br />

a ca<strong>da</strong> coisa. Não falo do tamanho métrico, que<br />

seria o <strong>da</strong> “coisa atômica”, mas do tamanho aparente que<br />

geralmente atribuímos a um objeto. Agora bem, as árvores<br />

do final de uma rua têm menor “tamanho visual” que as<br />

primeiras mais próximas. Um copo é grande se estiver a<br />

um metro de distância; menor se estiver a alguns metros.<br />

Por outro lado, o “tamanho visual” varia segundo os indivíduos.<br />

Hoffmann fala que para quem está na lua cheia no<br />

zênite, ao diâmetro rígido pode-se atribuir meio metro.<br />

Qual é, então, o tamanho <strong>da</strong> “coisa real”. Entre os vários<br />

que vimos, tomamos um e fazemos dele o tamanho.<br />

Hoffmann chama esse tamanho de “tamanho natural”.<br />

Ca<strong>da</strong> coisa tem “uma zona de distância” na qual nos parece<br />

mais ela mesma. O tamanho que nessa zona de distância<br />

se oferece é elevado à norma. Não se pode marcar<br />

uma determinação geral a respeito de qual seria essa zona.<br />

Só cabe dizer que os limites dela estariam entre a distância<br />

mais próxima que permite tomar a visão integral<br />

dos objetos e suas partes e a mais distante que conserva<br />

o tamanho que nessa mais próxima apresentava.<br />

Uma curiosa complicação vem ao encontro. As partes<br />

de uma casa – um tijolo, por exemplo – não são vistas<br />

por mim em seu “tamanho natural” quando vejo a casa<br />

inteira em seu “tamanho natural”. Nos objetos de magnitude<br />

considerável, o tamanho natural não é uma simples<br />

soma de tamanhos naturais de suas partes. É possível,<br />

sem dúvi<strong>da</strong>, reunir uma parte sobre a outra em seu<br />

tamanho natural e obter assim um tamanho do todo que<br />

seja a soma. Nesse exemplo <strong>da</strong> casa, isso seria um produto<br />

construtivo e não o tamanho visual do objeto.<br />

Prossegue Hoffmann fazendo observações interessantes<br />

sobre o gênero de dependência entre as variações<br />

de tamanho visual e as variações <strong>da</strong>s imagens <strong>da</strong> retina.<br />

Ao meu entender, essa consideração não interessa ao problema<br />

fenomenológico, prosseguindo o tema memória de<br />

Hoffmann que trago nesse extrato. Só para referir sobre<br />

isso, quando ele fala <strong>da</strong> sensação, reproduzo suas conclusões.<br />

Ao afastar-se uma coisa <strong>da</strong> pupila, diminui-se<br />

o tamanho natural <strong>da</strong> coisa visual em menor grau que o<br />

tamanho métrico <strong>da</strong>s imagens na retina. Por conseguinte,<br />

não há correspondência estrita, há relativa interdependência<br />

entre a base fisiológica e a imagem. Assim,<br />

cabe que, tendo o mesmo tamanho a imagem na retina,<br />

o tamanho visual varia. Tome-se uma pena de escrever:<br />

coloque-a a 30 ou 40 centímetros de distância e aparecerá<br />

em seu tamanho natural. Conservado-a na mesma<br />

distância, coloque de fundo a janela e acomode a visão ao<br />

molde desta. A pena aparecerá, então, bem maior.<br />

Ficam, então, outros constituintes fenomenológicos <strong>da</strong><br />

“coisa visual” ain<strong>da</strong> mais importantes: a figura e a cor 9 .<br />

Nota Biográfica<br />

José ortega y Gasset (1883-1955) foi um filósofo espanhol,<br />

que atuou como ativista político e jornalista. Formou-se<br />

na Universi<strong>da</strong>de Central de Madri em 1904, seguindo para<br />

a Alemanha, período caracterizado pela primeira etapa de sua<br />

filosofia. Nesse período recebe a influência <strong>da</strong> escola de Marburg e <strong>da</strong><br />

Fenomenologia de Edmund Husserl. Já insatisfeito com o neokantismo,<br />

o encontro com a fenomenologia de Husserl foi um “feliz sucesso”. Em<br />

1923, fundou a <strong>Revista</strong> de Occidente, revista que ficou responsável por<br />

publicar, traduzir e comentar grandes autores do pensamento filosófico.<br />

Durante a ditadura espanhola, exila-se na Argentina, contribuindo<br />

também para a difusão <strong>da</strong> Fenomenologia na América Latina. Regressa<br />

à Espanha em 1948, porém, logo em 1955, falece acometido de um<br />

câncer. Autor prolífico, discorreu sobre temas diversos, entre filosofia,<br />

história, política, arte, dentre outros. De sua vasta obra, destacamse:<br />

Investigaciones Psicológicas (curso de 1915–1916, mas publicado<br />

somente em 1982); El tema de nuestro tiempo (1923); ¿Qué es filosofía?<br />

(1928–29, curso publicado postumamente em 1957); Kant (1929-31);<br />

¿Qué es conocimiento? (publicado em 1984, refere-se a três cursos<br />

entre 1929, 1930 e 1931, que tinham como títulos, respectivamente:<br />

“Vi<strong>da</strong> como ejecución (El ser ejecutivo)”, “Sobre la reali<strong>da</strong>d radical”<br />

e “¿Qué es la vi<strong>da</strong>?”); La rebelión de las masas (1929); Misión de la<br />

Universi<strong>da</strong>d (1930); Ensimismamiento y alteración. Meditación de la<br />

técnica (1939). Suas obras completas foram publica<strong>da</strong>s em Madrid<br />

(Editorial Alianza/ <strong>Revista</strong> de Occidente), em doze volumes, entre<br />

1946-1983. Recentemente, o Editorial Taurus (junto com Santillana<br />

Ediciones Generales) e a Fun<strong>da</strong>ción José Ortega y Gasset, reeditaram<br />

suas obras completas em dez volumes (2004-2010).<br />

Tradução: Prof. Dr. Tommy Akira Goto<br />

(Universi<strong>da</strong>de Federal de Uberlândia)<br />

Revisão Técnica: Prof. Dr. Adriano Holan<strong>da</strong><br />

(Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná)<br />

9 No final desse artigo se dizia: “Continuará”, porém não teve continuação<br />

(Nota do Tradutor).<br />

223 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 217-223, jul-dez, 2011<br />

T e x t o s C l á s s i c o s


Di s s e r tA ç õ e s e te s e s ..........


A Ambigui<strong>da</strong>de na Fenomenologia <strong>da</strong> Percepção de Maurice Merleau-Ponty (2007)<br />

Título: A Ambigui<strong>da</strong>de na Fenomenologia <strong>da</strong> Percepção de Maurice Merleau-Ponty<br />

Autor: Leandro Neves Cardim<br />

Instituição: Universi<strong>da</strong>de de São Paulo (USP)<br />

Programa: Programa de Pós-Graduação em Filosofia (Doutorado)<br />

Banca: Franklin Leopoldo e Silva (Orientador)<br />

Débora Cristina Morato Pinto (UFSCar)<br />

Eduardo Brandão (USP)<br />

Luiz Damon Moutinho (UFPR)<br />

Márcio Suzuki (USP)<br />

Defesa: 14 de junho de 2007<br />

diSSeRtaçõeS e teSeS<br />

Resumo: Este trabalho retoma de alguns tópicos <strong>da</strong> Fenomenologia <strong>da</strong> percepção de Maurice<br />

Merleau-Ponty. O rastreamento <strong>da</strong> ambigüi<strong>da</strong>de fecun<strong>da</strong> <strong>da</strong> percepção (inerência vital<br />

e intenção racional) permite a avaliação precisa dos limites <strong>da</strong> primeira fase desta<br />

filosofia. Ela retoma os métodos clássicos de investigação – explicativo e reflexivo<br />

– em uma espécie de oscilação ritma<strong>da</strong> do interior destes dois pólos. Ao fazer isto,<br />

o filósofo se inscreve no interior <strong>da</strong> tradição que ele procura criticar, her<strong>da</strong>ndo,<br />

assim, os seus pressupostos dicotômicos permanecendo, portanto, no interior de<br />

uma filosofia <strong>da</strong> consciência que estabelece uma correlação estrita entre o sujeito<br />

e o objeto. Na ver<strong>da</strong>de, a prometi<strong>da</strong> relação do interior termina por se revelar uma<br />

espécie de justaposição. Mas, uma vez advertidos pelo próprio filósofo de que o livro<br />

em questão não é uma psicologia, e sim ontologia, vale a pena retomar alguns tópicos<br />

que nos ajudem a vislumbrar aquilo que desde 1945 permanecia válido em relação<br />

ao ser: a percepção nos inicia em um estudo de algo que está aquém <strong>da</strong> relação de<br />

conhecimento. São precisamente estes pontos que tentamos matizar com o intuito de<br />

retificar minimamente a ótica <strong>da</strong> filosofia <strong>da</strong> consciência e chamar a atenção para uma<br />

espécie de pensamento que nos ensina certas formulações que em princípio poderiam<br />

ser entendi<strong>da</strong>s como simplesmente abstratas, mas que, desde que as aproximemos<br />

<strong>da</strong>s experiências concretas, na ver<strong>da</strong>de, não o são. Em outras palavras, as descrições<br />

empreendi<strong>da</strong>s por Merleau-Ponty devem ser retoma<strong>da</strong>s e recoloca<strong>da</strong>s no horizonte de<br />

uma investigação ontológica que se preocupe com a ver<strong>da</strong>deira situação do homem,<br />

mas também com o sentido que elas guar<strong>da</strong>m para um leitor atual já prevenido <strong>da</strong><br />

excessiva centrali<strong>da</strong>de do sujeito ou <strong>da</strong> consciência que predomina na Fenomenologia<br />

<strong>da</strong> percepção.<br />

Palavras-chave: Percepção, Ambigüi<strong>da</strong>de, Fenomenologia, Ontologia, Merleau-Ponty.<br />

Abstract: The present work considers some topics of Maurice Merleau-Ponty’s Phenomenology<br />

of perception. The search for the fecund ambiguity of perception (vital inherence<br />

and rational intention) contributes to the precise evaluation of the limits of the<br />

first moment of that philosophy. It resumes the classical methods of investigation –<br />

explicative and reflexive – in a sort of rhythmic oscillation inside those two poles.<br />

Doing that, the philosopher turns to be part of the tradition he was to criticize,<br />

retaking the dichotomous assumptions of it. Thus, he continues to be inside of a<br />

philosophy of consciousness which establishes a strict correlation between subject<br />

and object. Actually, the so-called interior relation turns to be a sort of juxtaposition.<br />

However, once we are prevented by the author that the book considered is not a work<br />

of psychology, but rather an ontology one, it is worth reconsidering some topics that<br />

help us understand what since 1945 has been valid to the being: perception takes us<br />

227 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 227-228, jul-dez, 2011<br />

D i s s e r t a ç õ e s e T e s e s


D i s s e r t a ç õ e s e T e s e s<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 227-228, jul-dez, 2011<br />

Leandro N. Cardim<br />

to something that is before the relation of knowledge. That are the points we wanted<br />

to consider aiming to correct the view of the philosophy of consciousness and to<br />

draw attention to a sort of thinking which inform us of some formulations which<br />

at first could be taken merely as abstract ones, but in fact they are not, as long as<br />

we get close to concrete experiences. That is to say that the descriptions carried on<br />

by Merleau-Ponty must be reconsidered and replaced in an ontological investigation<br />

which is concerned with the actual situation of man, but also with sense for a present<br />

reader who is aware of the excessive centrality of the subject or the consciousness in<br />

the Phenomenology of perception.<br />

Keywords: Perception; Ambiguity; Phenomenology; Ontology; Merleau-Ponty.<br />

Texto Completo: http://www.fflch.usp.br/df/site/posgraduacao/2007_doc/doc_leandroCardim_07.pdf<br />

228


A Clínica <strong>da</strong> Urgência Psicológica: Contribuições <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa e <strong>da</strong> Teoria do Caos (2003)<br />

Título: A Clínica <strong>da</strong> Urgência Psicológica: Contribuições <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa<br />

e <strong>da</strong> Teoria do Caos<br />

Autor(a): Márcia Alves Tassinari<br />

Instituição: Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de Janeiro – UFRJ<br />

Programa: Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Doutorado)<br />

Banca: Éli<strong>da</strong> Sigelmann (Orientadora - UFRJ)<br />

Rogério Christiano Buys (Centro de Psicologia <strong>da</strong> Pessoa)<br />

Ana Maria Lopez Calvo Feijoo (UERJ)<br />

Vera Engler Cury (PUC-Campinas)<br />

Henriette Tognetti Penha Morato (USP)<br />

Defesa: 19 de Dezembro de 2003<br />

diSSeRtaçõeS e teSeS<br />

Resumo: Este estudo é um desdobramento <strong>da</strong>s questões suscita<strong>da</strong>s na dissertação de<br />

mestrado em relação à fertili<strong>da</strong>de e potenciali<strong>da</strong>de dos atendimentos em Plantão<br />

Psicológico, propondo uma clínica <strong>da</strong> urgência psicológica fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na<br />

Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa e nos novos paradigmas <strong>da</strong> ciência, especialmente<br />

na Teoria do Caos. A inspiração básica surgiu a partir <strong>da</strong> reflexão em relação aos<br />

ruídos no processo psicoterápico, isto é, em relação ao alto índice de absenteísmo<br />

e de abandono precoce (até a terceira sessão), entendendo-se essas interferências,<br />

de início, como descontinui<strong>da</strong>de do processo de mu<strong>da</strong>nça psicológica. O presente<br />

trabalho envolve quatro movimentos. Inicialmente, apresenta-se a nova mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

de atenção psicológica, através do surgimento, desenvolvimento e aplicação em<br />

diferentes contextos do Serviço de Plantão Psicológico. No sentido de buscar as<br />

dimensões significativas que permeiam esses recentes trabalhos, entrevistaramse<br />

quatro plantonistas que explicitaram suas principais vivências e aprendizagens<br />

significativas em cinco contextos: institucional para adolescentes, jurídico,<br />

institucional militar, escolar e clínico. Esses depoimentos foram literalizados<br />

e analisados qualitativamente, através de uma <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de análise<br />

fenomenológica, objetivando-se esboçar um fio condutor processual. O segundo<br />

movimento oferece a fun<strong>da</strong>mentação teórica utiliza<strong>da</strong> nos atendimentos em Plantão<br />

Psicológico, a Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa (ACP), através de sua contextualização,<br />

evolução, desenvolvimento e inserção no cenário brasileiro. Os principais conceitos<br />

que norteiam as ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> ACP são contemplados com ênfase no postulado<br />

central, a tendência Atualizante/Formativa e na condição <strong>da</strong> consideração positiva<br />

incondicional, considera<strong>da</strong>s balizadores essenciais no acolhimento <strong>da</strong> urgência<br />

psicológica, no momento exato <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de. A questão <strong>da</strong> promoção <strong>da</strong> saúde<br />

é incluí<strong>da</strong> como referencial potente na compreensão do sofrimento humano. Em<br />

função <strong>da</strong> incompletude do paradigma mecanicista e <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de fun<strong>da</strong>mentar<br />

a importância do momento inicial do processo de mu<strong>da</strong>nça psicológica, introduz-se<br />

o terceiro movimento, apresentando-se as principais idéias dos novos paradigmas <strong>da</strong><br />

ciência. Priorizam-se as propostas <strong>da</strong> Teoria do Caos em sua intenção de trabalhar<br />

com fenômenos complexos que apresentam dependência em relação às condições<br />

iniciais. Utilizam-se as ênfases desse paradigma emergente como potente metáfora<br />

para compreender de que maneira esse momento inicial pode ser significativo a<br />

longo prazo, trazendo alterações de perspectivas, muitas vezes deflagra<strong>da</strong>s em<br />

uma única consulta psicológica. O caráter de vanguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> ACP é explicitado,<br />

mostrando-se que ela já estava inseri<strong>da</strong> nesse novo paradigma, especialmente a<br />

partir <strong>da</strong> ampliação <strong>da</strong> tendência Atualizante para Tendência Formativa, proposta<br />

229 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 229-231, jul-dez, 2011<br />

D i s s e r t a ç õ e s e T e s e s


D i s s e r t a ç õ e s e T e s e s<br />

Palavras-chave:<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 229-231, jul-dez, 2011<br />

Márcia A. Tassinari<br />

por Carl Rogers no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 70. Outras reflexões a respeito <strong>da</strong> utilização<br />

<strong>da</strong> Teoria do Caos e <strong>da</strong> Complexi<strong>da</strong>de em Psicologia são também referen<strong>da</strong><strong>da</strong>s. A<br />

parte central compõe o quarto movimento, apresentando uma clínica <strong>da</strong> urgência<br />

psicológica como sendo a intenção básica dos atendimentos em Plantão Psicológico.<br />

Para tal, são apresenta<strong>da</strong>s outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de atenção psicológica a curto prazo,<br />

com as diferentes denominações e fun<strong>da</strong>mentações teóricas que ocupam-se também<br />

de receber pessoas em crise, em momentos de emergência ou urgência. A expressão<br />

urgência psicológica foi escolhi<strong>da</strong> para minimizar o viés psicopatologizante,<br />

orientando essa clínica para a promoção <strong>da</strong> saúde em qualquer circunstância. Nesse<br />

movimento apresentam-se pesquisas sobre os resultados <strong>da</strong>s psicoterapias de curta e<br />

longa duração, explicitando as controvérsias, limitações e possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s mesmas,<br />

o que convi<strong>da</strong> a repensar em outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de atendimento psicológico para<br />

além do consultório. A título de conclusão, são esboça<strong>da</strong>s s principais reflexões<br />

que este estudo estimulou, especialmente em relação a inserção <strong>da</strong> Psicologia nas<br />

instituições e comuni<strong>da</strong>des, bem como sugestões para a formação do psicólogo como<br />

agente social de mu<strong>da</strong>nça.<br />

Abstract: This study unfolds the questions aroused within the master dissertation regarding<br />

the fertility and potentiality experienced at the Psychological Emergency Atten<strong>da</strong>nce,<br />

aiming for its theoretical foun<strong>da</strong>tion in the Person-Centered Approach as well<br />

as in the new science paradigms, especially Chaos Theory. The basic inspiration<br />

comes from consideration on psychotherapy noises, which are high levels of<br />

dropouts, absenteeism and psychotherapy interruption (up to the third session). It<br />

is understood that these interferences break the psychological change process. This<br />

thesis encompasses four movements. It begins with the new psychological attention<br />

through the Psychological Emergency Atten<strong>da</strong>nce’s start point, development and<br />

different contexts applications. Trying to grasp the meaningful dimensions that<br />

permeate these recent works, four professionals were interviewed. They expressed<br />

their meaningful inner experiences and learning within five contexts: adolescents’<br />

institutional, juridical, military’s institutional, school and clinic. Their interviews<br />

were edited and received qualitative treatment through one kind of phenomenological<br />

analyses aiming to draw a process line thread. The second movement offers an<br />

overview of the Person-Centered Approach (PCA), the theoretical foun<strong>da</strong>tion frame<br />

of reference, as well as its contextualization, evolution, development and insertion<br />

in the Brazilian scenario. The main PCA concepts that inspires all of its applications<br />

are presented with a special emphasis on the Actualizing/Formative Tendency<br />

and the unconditional positive regard condition, regarded as the core frame in<br />

the psychological urgency welcoming. The health promotion issue is included as<br />

a powerful reference to understand the human suffering. Due to the mechanicist<br />

paradigm insufficiency and also from the urgency to deepen the understanding of<br />

the psychological change initial moment, the study unfolds the third movement,<br />

presenting the new sciences paradigms main ideas. Here it is stressed the Chaos<br />

Theory proposals in its intention to deal with complex phenomena which present<br />

dependence on their initials conditions. The emergent paradigm main notions<br />

are displayed as potent metaphors to understand how the initial moment can be<br />

meaningful in the long term, which may account for perspectives changes even<br />

during only one psychological session. The PCA vanguard characteristic is justified<br />

specially from the Actualizing extended to the Formative Tendency conception,<br />

proposed by the late Carl Rogers during the 70’s. Different proposals using Chaos<br />

Theory and Complexity Thought in Psychology are also referred to. The central part<br />

of this project constitutes its fourth movement, introducing a psychological urgency<br />

clinic as the Psychological Emergency Atten<strong>da</strong>nce main goal. To achieve that, it is<br />

presented many psychological treatments features with their different names and<br />

theoretical bases, since they are also utilized with people under crisis, emergency<br />

and urgency complaints. The expression psychological urgency was purposely<br />

230


A Clínica <strong>da</strong> Urgência Psicológica: Contribuições <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa e <strong>da</strong> Teoria do Caos (2003)<br />

Keywords:<br />

chosen to minimize the psychopathological bias, guiding this clinic to the health<br />

promotion under any circumstances. Here it is also presented research on long<br />

and brief psychotherapy outcome, making explicit their controversies, limitation<br />

and possibilities, which is an invitation to address new psychological atten<strong>da</strong>nce<br />

mo<strong>da</strong>lities, beyond the private practice office. As a tentative conclusion from this<br />

study, a couple of reflections are drawn, specially regarding the Psychology insertion<br />

in institutions and communities, as well as suggestions to the professional training<br />

of Psychologists as social change agents.<br />

Texto Completo: http://teses.ufrj.br/IP_D/MarciaAlvesTassinari.pdf<br />

http://www.encontroacp.psc.br/teses.htm<br />

231 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 229-231, jul-dez, 2011<br />

D i s s e r t a ç õ e s e T e s e s


Nor m A s pA r A pu b l i c A ç ã o .....


Normas de Publicação <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

noRmaS de puBliCação <strong>da</strong> ReviSta<br />

<strong>da</strong> aBoR<strong>da</strong>gem geStáltiCa<br />

A REVISTA DA ABoRDAGEM GESTÁlTICA, edita<strong>da</strong><br />

pelo Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestaltterapia<br />

de Goiânia (<strong>ITGT</strong>), foi cria<strong>da</strong> com o objetivo<br />

de ser um veículo de publicação preferencialmente <strong>da</strong><br />

Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>, bem como <strong>da</strong>quelas abor<strong>da</strong>gens<br />

que se fun<strong>da</strong>mentam em bases teórico-científicas e filosóficas<br />

dentro <strong>da</strong>s perspectivas humanistas e existenciais,<br />

além <strong>da</strong>s pauta<strong>da</strong>s na Fenomenologia. As suas diretrizes<br />

são defini<strong>da</strong>s pela Editoria e pelo Conselho Editorial, dos<br />

quais participam psicólogos, filósofos e profissionais <strong>da</strong>s<br />

áreas <strong>da</strong> saúde e educação.<br />

Assim, sua linha editorial procura privilegiar reflexões<br />

– numa perspectiva multiprofissional e interdisciplinar<br />

– em torno dos seguintes temas: a) Gestalt-terapia<br />

e Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>; b) Psicologia Humanista e<br />

Existencial; c) Psicologias e Psicoterapias de orientação<br />

Fenomenológica e Existencial; d) Fenomenologia pura e<br />

aplica<strong>da</strong>; e) Pesquisa Qualitativa e Fenomenológica.<br />

Serão aceitos para apreciação artigos centrados na<br />

pesquisa e na produção do conhecimento relativos às<br />

abor<strong>da</strong>gens cita<strong>da</strong>s, que remetam à reflexão crítica <strong>da</strong><br />

atuação do psicólogo ou de outros profissionais que as<br />

utilizam no seu exercício profissional. Poderão ser artigos<br />

teóricos ou empíricos, que envolvam temáticas relaciona<strong>da</strong>s<br />

à saúde, educação, humani<strong>da</strong>des, filosofia ou<br />

ciências sócio-antropológicas, refletindo assim a perspectiva<br />

holística <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem gestáltica.<br />

1. informações gerais<br />

Os manuscritos serão submetidos à apreciação do<br />

Conselho Editorial para realização de parecer técnico<br />

(em número mínimo de dois pareceres por proposta, ou<br />

mais, quando necessário). A editoria <strong>da</strong> revista lançará<br />

mão (caso necessário) de especialistas convi<strong>da</strong>dos – na<br />

quali<strong>da</strong>de de consultores ad hoc – que poderão sugerir<br />

modificações antes de sua publicação.<br />

A editoração <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> assegura<br />

o anonimato dos autores e dos consultores durante<br />

o processo de avaliação. Serão considera<strong>da</strong>s a atuali<strong>da</strong>de<br />

e a relevância do tema, bem como a originali<strong>da</strong>de, a consistência<br />

científica e o atendimento às normas éticas.<br />

Os trabalhos deverão ser originais, relacionados à<br />

psicologia, filosofia, educação, ciências <strong>da</strong> saúde e sócio-antropológicas,<br />

e se enquadrarem nas categorias que<br />

se seguem:<br />

Relato de pesquisa – relato de investigação concluí<strong>da</strong><br />

ou em an<strong>da</strong>mento, com uso de <strong>da</strong>dos empíricos, meto-<br />

dologia, resultados e discussão dos <strong>da</strong>dos. O manuscrito<br />

deve ter entre 12 e 20 lau<strong>da</strong>s.<br />

Estudo teórico – análise de fatos e idéias publicados sobre<br />

um determinado tema. Busca achados controvertidos<br />

para crítica e apresenta sua própria interpretação <strong>da</strong>s informações.<br />

O manuscrito deve ter entre 12 e 20 lau<strong>da</strong>s.<br />

Relato de experiência – estudo de caso, contendo<br />

análise de implicações conceituais ou descrição de procedimentos<br />

ou estratégias de intervenção, incluindo evidência<br />

metodologicamente apropria<strong>da</strong> de avaliação de eficácia,<br />

de interesse para a atuação de psicólogos em diferentes<br />

áreas. O manuscrito deve ter entre 12 e 20 lau<strong>da</strong>s.<br />

Estudo monográfico – apresenta trabalho desenvolvido<br />

em ativi<strong>da</strong>de acadêmica pelo autor, como especialização,<br />

mestrado ou doutorado. Limitado a 10 lau<strong>da</strong>s.<br />

Ensaio – interpretação original de algum tema que<br />

contribua criticamente para o aprofun<strong>da</strong>mento do conhecimento.<br />

Limitado a 5 lau<strong>da</strong>s.<br />

Resenha – análise de obra recentemente publica<strong>da</strong><br />

(no máximo há dois anos). Limita<strong>da</strong> a 5 lau<strong>da</strong>s.<br />

Resenha (textos clássicos) – análise de obra considera<strong>da</strong><br />

relevante para a abor<strong>da</strong>gem, publica<strong>da</strong> há mais de<br />

dez anos. Limita<strong>da</strong> a 5 lau<strong>da</strong>s.<br />

Ressonância – comentários e/ou réplicas de publicações<br />

de números anteriores deste periódico. Limita<strong>da</strong><br />

a 5 lau<strong>da</strong>s.<br />

Perfil – breve biografia de pessoa que tenha contribuído<br />

para o desenvolvimento <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem gestáltica,<br />

humanista, existencial ou fenomenológica. Limitado a<br />

5 lau<strong>da</strong>s.<br />

Notícias – registro de fatos ou eventos relacionados à<br />

comuni<strong>da</strong>de gestáltica. Limita<strong>da</strong> a 3 lau<strong>da</strong>s.<br />

Resumo de tese e dissertação – conforme apresentado<br />

na tese/dissertação defendi<strong>da</strong>. Limitado a uma<br />

lau<strong>da</strong>.<br />

2. instruções para publicação<br />

Os manuscritos submetidos à publicação devem ser<br />

inéditos e destinarem-se exclusivamente a esta revista,<br />

não sendo permiti<strong>da</strong> a sua apresentação simultânea em<br />

outro periódico. Todos os trabalhos serão submetidos a<br />

uma avaliação “cega”, por – no mínimo – dois pareceristas,<br />

pares especialistas na temática proposta.<br />

Os manuscritos deverão ser enviados via e-mail (revista@itgt.com.br),<br />

conforme especificações disponíveis<br />

no site <strong>da</strong> revista (www.revistagestalt.com.br). Deverá ser<br />

encaminhado também um mini-currículo contendo as seguintes<br />

informações: nome completo do(s) autor(es), afi-<br />

235 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 235-239, jul-dez, 2011<br />

N o r m a s


N o r m a s<br />

liação institucional, títulos e/ou cargos atuais, endereço<br />

eletrônico e endereço para correspondência.<br />

Não serão admitidos acréscimos ou alterações após o<br />

envio dos manuscritos para o Conselho Editorial, salvo<br />

os sugeridos por este.<br />

As opiniões emiti<strong>da</strong>s nos trabalhos, bem como a exatidão<br />

e adequação <strong>da</strong>s Referências Bibliográficas são de<br />

exclusiva responsabili<strong>da</strong>de dos autores.<br />

A publicação dos trabalhos dependerá <strong>da</strong> observância<br />

<strong>da</strong>s normas <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> e<br />

<strong>da</strong> apreciação do Conselho Editorial, que dispõe de plena<br />

autori<strong>da</strong>de para decidir sobre a conveniência <strong>da</strong> sua<br />

aceitação, podendo, inclusive, apresentar sugestões aos<br />

autores para as alterações necessárias.<br />

Quando a investigação envolver sujeitos humanos, os<br />

autores deverão apresentar no corpo do trabalho uma declaração<br />

de que foi obtido o consentimento dos sujeitos<br />

por escrito (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido)<br />

e/ou <strong>da</strong> instituição em que o trabalho foi realizado<br />

(Comissão de Ética em Pesquisa). Trabalhos sem o cumprimento<br />

de tais exigências não serão publicados.<br />

Os autores serão notificados sobre a aceitação ou a recusa<br />

de seus artigos, os quais, mesmo quando não forem<br />

aproveitados, não serão devolvidos.<br />

3. formas de apresentação dos manuscritos<br />

A <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> adota normas<br />

de publicação basea<strong>da</strong>s no Publication Manual of the<br />

American Psychological Association (APA) – 5ª edição,<br />

2001.<br />

Os manuscritos deverão ser preferencialmente redigidos<br />

em português. A critério do Conselho Editorial,<br />

também serão aceitos manuscritos redigidos em inglês,<br />

francês ou espanhol.<br />

Os trabalhos deverão ser digitados em Programa<br />

Word for Windows, em letra Times New Roman, tamanho<br />

12, espaçamento interlinear de 1,5 e margens de<br />

2,5 cm, em papel formato A4, perfazendo o total máximo<br />

de lau<strong>da</strong>s, de acordo com o tipo de publicação deseja<strong>da</strong><br />

(ver Informações gerais), observa<strong>da</strong>s as seguintes<br />

especificações:<br />

a) Cabeçalho - é recomen<strong>da</strong>do que o título do artigo<br />

seja escrito em até doze palavras, refletindo as principais<br />

questões de que trata o manuscrito. O título deverá ser<br />

redigido em caixa alta, fonte 14, centralizado e em negrito.<br />

A seguir, devem vir, em itálico, centralizados e em<br />

fonte 12, os títulos em inglês e espanhol.<br />

b) Os nomes completos dos autores deverão aparecer<br />

abaixo do título, em fonte 12, letra versalete, com<br />

alinhamento à direita, indicando, após as Referências<br />

Bibliográficas, em nota explicativa, a titulação dos autores,<br />

local de ativi<strong>da</strong>de e e-mail (se houver).<br />

c) Epígrafe - deverá ser apresenta<strong>da</strong> em letra normal,<br />

em espaçamento interlinear simples, fonte 10, com ali-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 235-239, jul-dez, 2011<br />

Normas de Publicação <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

nhamento à direita. O nome do autor <strong>da</strong> epígrafe deverá<br />

aparecer em itálico, seguido <strong>da</strong> referência <strong>da</strong> obra.<br />

d) Resumo e Palavras-chave - deverão ser redigidos<br />

em português, inglês e espanhol, em parágrafo único,<br />

espaçamento interlinear simples, fonte 10, com até 200<br />

palavras. As palavras-chave (descritores), de três a cinco<br />

termos significativos, deverão remeter ao conteúdo fun<strong>da</strong>mental<br />

do trabalho. Para a sua determinação, consultar<br />

a lista de Descritores em Ciências <strong>da</strong> Saúde - elabora<strong>da</strong><br />

pela Bireme e/ou Medical subject heading – comprehensive<br />

medline. To<strong>da</strong>s as palavras deverão ser escritas com<br />

iniciais maiúsculas e separa<strong>da</strong>s por ponto e vírgula.<br />

Incluir também descritores em inglês (keywords) e espanhol<br />

(Palabras-clave).<br />

e) Estrutura do manuscrito - os trabalhos referentes<br />

a pesquisas e relatos de experiência deverão conter<br />

introdução, objetivos, metodologia, resultados e conclusão.<br />

O trabalho deverá ser redigido em linguagem clara<br />

e objetiva. As palavras estrangeiras e os grifos do autor<br />

deverão vir em itálico.<br />

f) Adotar a seguinte padronização de palavras<br />

- Gestalt-terapia ou Gestalt-terapia, gestalt-terapeuta,<br />

Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>, Psicologia <strong>da</strong> Gestalt ou<br />

Gestalt-Psychologie. Verificar excesso de espaço entre as<br />

palavras.<br />

g) Subtítulos - deverão ser colocados sempre no alinhamento<br />

<strong>da</strong> margem esquer<strong>da</strong> do manuscrito, em negrito,<br />

apenas com as letras iniciais de ca<strong>da</strong> palavra em<br />

maiúsculas.<br />

h) Ilustrações - figuras, quadros, tabelas, desenhos<br />

e gráficos deverão ser indicados em números arábicos,<br />

com legen<strong>da</strong> em letras maiúsculas, título em minúsculas,<br />

sem grifo.<br />

i) Nomenclaturas e Abreviaturas - usar somente as<br />

oficiais. O uso de abreviaturas e de siglas específicas ao<br />

conteúdo do manuscrito deverá ser feito com sua indicação<br />

entre parênteses na primeira vez em que aparecem<br />

no manuscrito, precedi<strong>da</strong> <strong>da</strong> forma por extenso.<br />

j) Notas de ro<strong>da</strong>pé - deverão ser numera<strong>da</strong>s em ordem<br />

crescente e restritas ao mínimo indispensável.<br />

l) Citações - deverão ser feitas de acordo com as normas<br />

<strong>da</strong> APA (5ª edição, 2001). Em caso de transcrição integral<br />

de um texto com número inferior a quarenta palavras,<br />

a citação deverá ser incorpora<strong>da</strong> ao texto entre aspas<br />

duplas, em itálico, com indicação, após o sobrenome do<br />

autor e a <strong>da</strong>ta, <strong>da</strong>(s) página(s) de onde foi retirado. Uma<br />

citação literal com quarenta ou mais palavras deverá ser<br />

destaca<strong>da</strong> em bloco próprio, começando em nova linha,<br />

sem aspas e sem itálico, com o recuo do parágrafo alinhado<br />

com a primeira linha do parágrafo normal. O tamanho<br />

<strong>da</strong> fonte deve ser 12, e o espaçamento interlinear<br />

1,5, como no restante do manuscrito. A citação destaca<strong>da</strong><br />

deve ser formata<strong>da</strong> de modo a deixar uma linha acima e<br />

outra abaixo <strong>da</strong> mesma<br />

m) Referências Bibliográficas - denominação a ser<br />

utiliza<strong>da</strong>. Não use Bibliografia. O subtítulo Referências<br />

236


Normas de Publicação <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

Bibliográficas deverá estar alinhado à esquer<strong>da</strong>. As referências<br />

deverão seguir normas <strong>da</strong> APA (5ª edição, 2001).<br />

A fonte deverá ser formata<strong>da</strong> em tamanho 12, espaçamento<br />

interlinear 1,5, sempre em ordem alfabética Deixe um<br />

espaço extra entre uma citação e a próxima. Utilize o recuo<br />

“deslocamento”. Verificar se to<strong>da</strong>s as citações feitas<br />

no corpo do manuscrito e nas notas de ro<strong>da</strong>pé aparecem<br />

nas Referências Bibliográficas e se o ano <strong>da</strong> citação no<br />

corpo do manuscrito confere com o indicado na lista<br />

final.<br />

n) Anexos - usados somente quando indispensáveis<br />

à compreensão do trabalho, devendo conter um mínimo<br />

de páginas (serão computa<strong>da</strong>s como parte do manuscrito)<br />

e localizados após Referências Bibliográficas.<br />

4. tipos comuns de citação no manuscrito<br />

Citação de artigo de autoria múltipla<br />

a) dois autores<br />

O sobrenome dos autores é explicitado em to<strong>da</strong>s as<br />

citações, usando “e” ou “&” conforme a seguir: “O método<br />

proposto por Siqueland e Delucia (1969)” ou “o método foi<br />

inicialmente proposto para o estudo <strong>da</strong> visão (Siqueland<br />

& Delucia, 1969)”<br />

b) de três a cinco autores<br />

O sobrenome de todos os autores é explicitado na primeira<br />

citação: “Spielberger, Gorsuch e Lushene (1994)<br />

verificaram que”. Da segun<strong>da</strong> citação em diante, só o sobrenome<br />

do primeiro autor é explicitado, seguido de “et<br />

al.” e o ano: “Spielberger et al. (1994) verificaram que”. Se<br />

houver uma terceira citação no mesmo parágrafo, omita<br />

o ano: “Spielberg et al. verificaram”<br />

Caso as Referências e a forma abrevia<strong>da</strong> produzam<br />

aparente identi<strong>da</strong>de de dois trabalhos em que os co-autores<br />

diferem, esses são explicitados até que a ambigüi<strong>da</strong>de<br />

seja elimina<strong>da</strong>. Os trabalhos de Hayes, S. C., Brownstein,<br />

A. J., Haas, J. R. & Greenway, D. E. (1986) e Hayes, S. C.,<br />

Brownstein, A. J., Zettle, R. D., Rosenfarb, I. & Korn, Z.<br />

(1986) são assim citados: “Hayes, Brownstein, Haas et al.<br />

(1986) e Hayes, Brownstein, Zettle et al. (1986).<br />

Na seção de Referências Bibliográficas, os nomes de<br />

todos os autores devem ser relacionados.<br />

c) de seis ou mais autores<br />

Desde a primeira citação, só o sobrenome do primeiro<br />

autor é mencionado, seguido de “et al.”, exceto se esse<br />

formato gerar ambigui<strong>da</strong>de, caso em que a mesma solução<br />

indica<strong>da</strong> no item anterior deve ser utiliza<strong>da</strong>: “Rodrigues<br />

et al. (1988).”<br />

Mais uma vez, na seção de Referências Bibliográficas<br />

todos os nomes são relacionados.<br />

Citações de trabalho discutido em uma fonte secundária<br />

Caso se utilize como fonte um trabalho discutido em<br />

outro, sem que o texto original tenha sido lido (por exemplo,<br />

um estudo de Flavell, citado por Shore, 1982), deverá<br />

ser usa<strong>da</strong> a seguinte citação: “Flavell (conforme citado por<br />

Shore, 1982) acrescenta que estes estu<strong>da</strong>ntes...”<br />

Na seção de Referências Bibliográficas, informar apenas<br />

a fonte secundária (no caso Shore, 1982), com o formato<br />

apropriado.<br />

Citações de obras antigas reedita<strong>da</strong>s<br />

a) Quando a <strong>da</strong>ta do trabalho é desconheci<strong>da</strong> ou muito<br />

antiga, citar o nome do autor seguido de “sem <strong>da</strong>ta”:<br />

“Piaget (sem <strong>da</strong>ta) mostrou que...” ou (Piaget, sem <strong>da</strong>ta).<br />

b) Em obra cuja <strong>da</strong>ta original é desconheci<strong>da</strong>, mas<br />

a <strong>da</strong>ta do trabalho lido é conheci<strong>da</strong>, citar o nome do autor<br />

seguido de “tradução” ou “versão” e <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> tradução<br />

ou <strong>da</strong> versão: “Conforme Aristóteles (tradução 1931)” ou<br />

(Aristóteles, versão 1931).<br />

c) Quando a <strong>da</strong>ta original e a consulta<strong>da</strong> são diferentes,<br />

mas conheci<strong>da</strong>s, citar autor, <strong>da</strong>ta do original e <strong>da</strong>ta<br />

<strong>da</strong> versão consulta<strong>da</strong>: “Já mostrava Pavlov (1904/1980)”<br />

ou (Pavlov, 1904/1980).<br />

Citação de comunicação pessoal<br />

Este tipo de citação deve ser evita<strong>da</strong>, por não oferecer<br />

informação recuperável por meios convencionais.<br />

Se inevitável, deverá aparecer no texto, mas não na seção<br />

de Referências Bibliográficas, com a indicação de<br />

“comunicação pessoal”, segui<strong>da</strong> de dia, mês e ano. Ex.:<br />

“C. M. Zannon (comunicação pessoal, 30 de outubro de<br />

1994).”<br />

5. Seção de Referências Bibliográficas<br />

Organize por ordem alfabética dos sobrenomes dos<br />

autores. Em casos de referência a múltiplos estudos do<br />

mesmo autor, organize pela <strong>da</strong>ta de publicação, em ordem<br />

cronológica, ou seja, do estudo mais antigo ao mais recente.<br />

Referências com o mesmo primeiro autor, mas com diferentes<br />

segundos ou terceiros autores, devem ser organiza<strong>da</strong>s<br />

por ordem alfabética dos segundos ou terceiros autores<br />

(ou quartos ou quintos...). Os exemplos abaixo auxiliam<br />

na organização do manuscrito, mas certamente não<br />

esgotam as possibili<strong>da</strong>des de citação. Utilize o Publication<br />

Manual of the American Psychological Association (2001,<br />

5ª edição) para suprir possíveis lacunas.<br />

237 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 235-239, jul-dez, 2011<br />

N o r m a s


N o r m a s<br />

Exemplos de tipos comuns de referência<br />

Relatório técnico<br />

Birney, A. J. & Hall, M. M. (1981). Early identification of children<br />

with written language disabilities (relatório n. 81-1502).<br />

Washington, DC: National Education Association.<br />

Trabalho apresentado em congresso, mas não<br />

publicado<br />

Haidt, J., Dias, M. G. & Koller, S. (1991, fevereiro). Disgust, disrespect<br />

and culture: moral judgement of victimless violations<br />

in the USA and Brazil. Trabalho apresentado em Reunião<br />

Anual (Annual Meeting) <strong>da</strong> Society for Cross-Cultural<br />

Research, Isla Verde, Puerto Rico.<br />

Trabalho apresentado em congresso com resumo<br />

publicado em publicação seria<strong>da</strong> regular<br />

Tratar como publicação em periódico, acrescentando<br />

logo após o título a indicação de que se trata de<br />

resumo.<br />

Silva, A. A. & Engelmann, A. (1988). Teste de eficácia de um<br />

curso para melhorar a capaci<strong>da</strong>de de julgamentos corretos<br />

de expressões faciais de emoções [Resumo]. Ciência e<br />

Cultura, 40 (7, Suplemento), 927.<br />

Trabalho apresentado em congresso com resumo<br />

publicado em número especial<br />

Tratar como publicação em livro, informando sobre<br />

o evento de acordo com as informações disponíveis em<br />

capa.<br />

Todorov, J. C., Souza, D. G. & Bori, C. M. (1992). Escolha e decisão:<br />

A teoria <strong>da</strong> maximização momentânea [Resumo]. Em<br />

Socie<strong>da</strong>de Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações<br />

científicas, XXII Reunião Anual de Psicologia<br />

(p. 66). Ribeirão Preto: SBP.<br />

Teses ou dissertações não-publica<strong>da</strong>s<br />

Costa, L. (1989). A família descasa<strong>da</strong>: interação, competência<br />

e estilo. Estudo de caso. Dissertação de Mestrado,<br />

Universi<strong>da</strong>de de Brasília, Brasília.<br />

Livros<br />

a) primeira edição:<br />

Féres-Carneiro, T. (1983). Família: diagnóstico e terapia. Rio<br />

de Janeiro: Zahar.<br />

b) obra reedita<strong>da</strong>:<br />

Franco, F. de M. (1946). Tratado de educação física dos meninos.<br />

Rio de Janeiro: Agir (originalmente publicado em 1790).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 235-239, jul-dez, 2011<br />

Normas de Publicação <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

Vasconcelos, L. A. (1983). Brincando com histórias infantis:<br />

uma contribuição <strong>da</strong> Análise do Comportamento para o desenvolvimento<br />

de crianças e jovens (2ª ed.). Santo André:<br />

ESETec.<br />

Capítulo de livro<br />

Blough, D. S. & Blough, P. (1977). Animal psychophysics. Em W.<br />

K. Honig & J. E. Staddon (Orgs.), Handbook of operant behavior<br />

(p. 514-539). Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall.<br />

Livro traduzido em língua portuguesa<br />

Se a tradução em língua portuguesa de um trabalho em<br />

outra língua é usa<strong>da</strong> como fonte, citar a tradução em português<br />

e indicar ano de publicação do trabalho original.<br />

Salvador, C. C. (1994). Aprendizagem escolar e construção de conhecimento.<br />

(E. O. Dihel, Trad.) Porto Alegre: Artes Médicas<br />

(Trabalho original publicado em 1990).<br />

No texto, citar o ano <strong>da</strong> publicação original e o ano<br />

<strong>da</strong> tradução: (Salvador, 1990/1994).<br />

Artigo em periódico científico<br />

Informar volume do periódico, em segui<strong>da</strong>, o número<br />

entre parêntesis, sobretudo quando a paginação é reinicia<strong>da</strong><br />

a ca<strong>da</strong> número.<br />

Doise, W. (2003). Human rights: common meaning and differences<br />

in positioning. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 19(3),<br />

201-210.<br />

Obra no prelo<br />

Não deverão ser indicados ano, volume ou número de<br />

páginas até que o artigo esteja publicado. Respeita<strong>da</strong> a<br />

ordem de nomes, é a ultima referência do autor.<br />

Conceição, M. I. G. & Silva, M. C. R. (no prelo). Mitos sobre<br />

a sexuali<strong>da</strong>de do lesado medular. <strong>Revista</strong> Brasileira de<br />

Sexuali<strong>da</strong>de Humana.<br />

Autoria institucional<br />

American Psychiatric Association (1988). DSM-III-R,<br />

Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3a<br />

ed. revisa<strong>da</strong>). Washington, DC: Autor.<br />

Artigos consultados na mídia eletrônica<br />

Sanches, M. & Jorge, M.R. (2004). Transtorno Afetivo<br />

Bipolar: Um enfoque transcultural, <strong>Revista</strong> Brasileira<br />

de Psiquiatria [online]. Vol. 26, supl.3, p. 54-<br />

56. Acesso em 05 de julho de 2006, em http://www.<br />

scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-<br />

44462004000700013&lng=pt&nrm=iso.<br />

238


Normas de Publicação <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

6. direitos autorais<br />

Artigos publicados na <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

Os direitos autorais dos artigos publicados pertencem<br />

à <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>. A reprodução total<br />

dos artigos dessa revista em outras publicações, ou para<br />

quaisquer outros fins, está condiciona<strong>da</strong> à autorização<br />

escrita do Editor <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>.<br />

Pessoas interessa<strong>da</strong>s em reproduzir parcialmente os artigos<br />

por ela publicados (partes do texto que excederem<br />

500 palavras, tabelas, figuras e outras ilustrações) deverão<br />

obter permissão escrita dos autores.<br />

Reprodução parcial de outras publicações<br />

Manuscritos submetidos à apreciação que contiverem<br />

partes de texto extraí<strong>da</strong>s de outras publicações deverão<br />

obedecer aos limites especificados para garantir a originali<strong>da</strong>de<br />

do trabalho submetido. Recomen<strong>da</strong>-se evitar a<br />

reprodução de figuras, tabelas e desenhos extraídos de<br />

outras publicações.<br />

O manuscrito que contiver reprodução de uma ou<br />

mais figuras, tabelas e desenhos extraídos de outras<br />

publicações só será encaminhado para análise, se vier<br />

acompanhado de permissão escrita do detentor do direito<br />

autoral do trabalho original, para reprodução especifica<strong>da</strong><br />

na <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>. Tal permissão<br />

deve ser endereça<strong>da</strong> ao autor do trabalho submetido<br />

à apreciação.<br />

Em nenhuma circunstância, a <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem<br />

<strong>Gestáltica</strong> e os autores dos trabalhos publicados poderão<br />

repassar a outrem os direitos assim obtidos.<br />

7. endereço para encaminhamento<br />

To<strong>da</strong> correspondência para a revista deve ser endereça<strong>da</strong><br />

para:<br />

Editor<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

Instituto de Treinamento e Pesquisa<br />

em Gestalt-terapia de Goiânia (<strong>ITGT</strong>)<br />

Rua 1.128 nº 165 - St. Marista<br />

Goiânia-GO CEP: 74.175-130<br />

Comunicações rápi<strong>da</strong>s podem também ser efetua<strong>da</strong>s<br />

por telefone (62) 3941.9798 ou fax (62) 3942.9798 – ou pelo<br />

endereço eletrônico: revista@itgt.com.br. Outras informações<br />

podem ser obti<strong>da</strong>s no site: www.itgt.com.br<br />

239 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVII(2): 235-239, jul-dez, 2011<br />

N o r m a s

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