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Revista da Abordagem Gestáltica - ITGT

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<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>


Instituto de Treinamento e Pesquisa em<br />

Gestalt-Terapia de Goiânia – <strong>ITGT</strong><br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

Volume XVIII - N. 2<br />

2012<br />

Goiânia – Goiás<br />

www.itgt.com.br


Ficha Catalográfica<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>-gem <strong>Gestáltica</strong>/ Instituto de<br />

Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia –<br />

Vol. 18, n. 2 (2012) – Goiânia: <strong>ITGT</strong>, 2012.<br />

131p.: il.: 30 cm<br />

Inclui normas de publicação<br />

ISSN: 1809-6867<br />

1. Psicologia. 2. Gestalt-Terapia. I. Instituto de<br />

Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia.<br />

CDD 616.891 43<br />

Citação:<br />

REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA. Goiânia, v. 18, n. 1, 2012. xxxp<br />

Impresso no Brasil<br />

Printed in Brazil


<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> aboR<strong>da</strong>gem gestáltica<br />

Volume XVIII - N. 2 – Jul/Dez, 2012<br />

Expediente<br />

Editor<br />

Adriano Furtado Holan<strong>da</strong><br />

(Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná)<br />

Editores Associados<br />

Celana Cardoso Andrade<br />

(Universi<strong>da</strong>de Federal de Goiás)<br />

Danilo Suassuna Martins Costa<br />

(Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Goiás)<br />

Marta Carmo<br />

(Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiás)<br />

Conselho Editorial<br />

Adelma Pimentel (Universi<strong>da</strong>de Federal do Pará)<br />

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro)<br />

Cláudia Lins Cardoso (Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais)<br />

Ênio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de São Paulo)<br />

Gizele Elias Parreira (Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Goiás)<br />

Joanneliese de Lucas Freitas (Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná)<br />

Jorge Ponciano Ribeiro (Universi<strong>da</strong>de de Brasília)<br />

Josemar de Campos Maciel (Universi<strong>da</strong>de Católica Dom Bosco, MS)<br />

Lílian Meyer Frazão (Universi<strong>da</strong>de de São Paulo)<br />

Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de São Paulo)<br />

Marcos Aurélio Fernandes (Universi<strong>da</strong>de Católica de Brasília)<br />

Marisete Malaguth Mendonça (Universi<strong>da</strong>de Católica de Goiás)<br />

Mônica Botelho Alvim (Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de Janeiro)<br />

Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Campinas)<br />

Patrícia Valle de Albuquerque Lima (Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro)<br />

Pedro M. S. Alves (Universi<strong>da</strong>de de Lisboa, Portugal)<br />

Sérgio Lízias (Universi<strong>da</strong>de Federal de Goiás – Campus Catalão)<br />

Tommy Akira Goto (Universi<strong>da</strong>de Federal de Uberlândia)<br />

Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Goiás)<br />

William Barbosa Gomes (Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande do Sul)<br />

Suporte Técnico<br />

Josiane Almei<strong>da</strong><br />

Marcos Janzen<br />

Norma Susana Romero Martinovich


Capa<br />

Franco Jr.<br />

Diagramação e Arte Final<br />

Franco Jr.<br />

Bibliotecário<br />

Arnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)<br />

Financiamento<br />

Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (<strong>ITGT</strong>-GO)<br />

Encaminhamento de Manuscritos<br />

A remessa de manuscritos para publicação, bem como to<strong>da</strong> a correspondência<br />

de seguimento que se fizer necessária, deve ser endereça<strong>da</strong> a:<br />

Editor<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia (<strong>ITGT</strong>)<br />

Rua 1.128, nº 165 - St. Marista - Goiânia-GO - CEP: 74.175-130<br />

Fone/Fax: (62) 3941-9798<br />

E-mail: revista@itgt.com.br<br />

Normas de Apresentação de Manuscritos<br />

To<strong>da</strong>s as informações concernentes a esta publicação, tais como normas de<br />

apresentação de manuscritos, critérios de avaliação, mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de textos, etc.,<br />

podem ser encontra<strong>da</strong>s no site http://pepsic.bvs-psi.org.br<br />

Fontes de Indexação<br />

- Clase<br />

- Latindex<br />

- Lilacs<br />

- Index Psi Periódicos (BVS-Psi Brasil)<br />

- ScopuS<br />

As opiniões emiti<strong>da</strong>s nos trabalhos aqui publicados, bem como a exatidão<br />

e adequação <strong>da</strong>s referências bibliográficas são de exclusiva responsabili<strong>da</strong>de<br />

dos autores, portanto podem não expressar o pensamento dos editores.<br />

A reprodução do conteúdo desta publicação poderá ocorrer desde que<br />

cita<strong>da</strong> a fonte.


Sumário<br />

EDIToRIAl ...................................................................................................................................................ix<br />

ARTIGoS<br />

- Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañe<strong>da</strong> .......................................................................... 131<br />

Ana Gabriela Rebelo dos Santos (Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense) & Roberto Novaes de Sá (Universi<strong>da</strong>de Federal<br />

Fluminense)<br />

- Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas<br />

Iniciantes .................................................................................................................................................. 136<br />

Jéssica Paula Silva Mendes (Universi<strong>da</strong>de Paranaense/Unipar); Sionara Karina Alves de Brito Gressler (Universi<strong>da</strong>de<br />

Paranaense/Unipar) & Sylvia Mara Pires de Freitas (Universi<strong>da</strong>de Estadual de Maringá/Universi<strong>da</strong>de Paranaense)<br />

- os Sentidos do Sentido: Uma leitura Fenomenológica......................................................................... 144<br />

Marta Helena de Freitas (Universi<strong>da</strong>de Católica de Brasília); Rita de Cássia Araújo (Universi<strong>da</strong>de Católica de<br />

Brasília); Filipe Starling Loureiro Franca (Universi<strong>da</strong>de Católica de Brasília); Ondina Pena Pereira (Universi<strong>da</strong>de<br />

Católica de Brasília) & Francisco Martins (Universi<strong>da</strong>de Católica de Brasília)<br />

- A Força <strong>da</strong> Palavra em Nicolau de Cusa ................................................................................................ 155<br />

Sonia Lyra (Instituto Icthys de Psicologia e Religião, Paraná)<br />

- Tédio e Trabalho na Pós-Moderni<strong>da</strong>de .................................................................................................. 161<br />

Karina Okajima Fukumitsu (Universi<strong>da</strong>de Presbitariana Mackenzie), Júlia Yoriko Hayakawa (Universi<strong>da</strong>de<br />

Presbitariana Mackenzie), Suzan Emie Ku<strong>da</strong> (Universi<strong>da</strong>de Presbitariana Mackenzie), Elisa Harumi Musha<br />

(Universi<strong>da</strong>de Presbitariana Mackenzie), Tauane Cristina do Nascimento (Universi<strong>da</strong>de Presbitariana Mackenzie),<br />

Bruna Bezerra Oliveira (Universi<strong>da</strong>de Presbitariana Mackenzie), Elisabete Hara Garcia Rocha (Universi<strong>da</strong>de<br />

Presbitariana Mackenzie), Daiany Apareci<strong>da</strong> Alves dos Santos (Universi<strong>da</strong>de Presbitariana Mackenzie), Karen Ueki,<br />

(Universi<strong>da</strong>de Presbitariana Mackenzie), Lucas Palhari Vasconcelos (Universi<strong>da</strong>de Presbitariana Mackenzie)<br />

- origens e Destinos <strong>da</strong>s Psicoterapias Humanistas: o Caso <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong><br />

na Pessoa .................................................................................................................................................. 168<br />

Ana Maria Monte Coelho Frota (Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará)<br />

- “Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia .................................... 179<br />

João Vitor Moreira Maia (Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará), José Célio Freire (Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará) &<br />

Mariana Alves de Oliveira (Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará)<br />

- Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo ..................................................................................... 188<br />

Lauane Baroncelli (University College Cork)<br />

- A Espaciali<strong>da</strong>de na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial .................... 197<br />

Gustavo Alvarenga Oliveira Santos (Universi<strong>da</strong>de Federal do Triângulo Mineiro)<br />

- Análise <strong>da</strong> Narrativa de Viktor Frankl acerca <strong>da</strong> Experiência dos Prisioneiros nos<br />

Campos de Concentração ........................................................................................................................206<br />

Thiago Antonio Avellar de Aquino (Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Paraíba)<br />

vii <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): vii-viii, jul-dez, 2012<br />

S u m á r i o


S u m á r i o<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): vii-viii, jul-dez, 2012<br />

Sumário<br />

- A linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a<br />

Partir de Gaston Bachelard .................................................................................................................... 216<br />

Rafael Auler de Almei<strong>da</strong> Prado (Universi<strong>da</strong>de Católica de Pernambuco); Marcus Tulio Cal<strong>da</strong>s (Universi<strong>da</strong>de Católica<br />

de Pernambuco); Karl Heinz Efken (Universi<strong>da</strong>de Católica de Pernambuco) & Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto<br />

(Universi<strong>da</strong>de Católica de Pernambuco)<br />

- As Psicopatologias como Distúrbios <strong>da</strong>s Funções do Self: Uma Construção Teórica na<br />

Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> ............................................................................................................................. 224<br />

Carlene Maria Dias Tenório (Centro Universitário de Brasília/UniCEUB)<br />

TEXToS ClÁSSICoS<br />

- Edmund Husserl e os Fun<strong>da</strong>mentos de sua Filosofia (1940) ................................................................. 235<br />

Marvin Farber (University of Buffalo, New York)<br />

DISSERTAÇÕES E TESES<br />

- Pesquisa Fenomenológica na Justiça do Trabalho – Proposta de Conciliação Humanista (2010) ..... 249<br />

Nayara Queiroz Mota de Sousa (Mestrado em Direito, Universi<strong>da</strong>de Católica de Pernambuco)<br />

- “A Crise <strong>da</strong>s Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental” de Edmund Husserl:<br />

uma apresentação (2011) ......................................................................................................................... 251<br />

Erico de Lima Azevedo (Mestrado em Filosofia, Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de São Paulo)<br />

NoRMAS<br />

- Normas de Publicação <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> .............................................................. 255<br />

viii


Editorial<br />

A Fenomenologia ca<strong>da</strong> vez mais toma corpo no cenário<br />

nacional e internacional, seja no tradicional contexto filosófico,<br />

seja em suas múltiplas aplicações. Recentemente<br />

fomos brin<strong>da</strong>dos com novos estudos sobre seu pensamento,<br />

bem como a publicação – e algumas traduções, particularmente<br />

para o inglês e o francês – de textos inéditos<br />

de Husserl, onde temas complexos, como “intersubjetivi<strong>da</strong>de”<br />

ou “temporali<strong>da</strong>de” foram sendo desvelados.<br />

Igualmente os desdobramentos e revisões que o pensamento<br />

fenomenológico foi conhecendo ao longo dos anos<br />

desenvolvem-se a passos largos. Assim, questões existenciais<br />

ou mesmo reflexões no terreno <strong>da</strong>s filosofias <strong>da</strong><br />

existência vem ganhando corpo igualmente.<br />

A <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>, que desde o ano<br />

de 2006 se propôs a ser um veículo de divulgação desse<br />

conjunto de saberes – múltiplos, diversificados, abertos<br />

e profundos – vem se consoli<strong>da</strong>ndo no cumprimento <strong>da</strong><br />

sua missão, e vem ca<strong>da</strong> vez mais se especializando no<br />

amplo espectro <strong>da</strong>s reflexões fenomenológicas, associa<strong>da</strong>s<br />

às ciências humanas, sociais e <strong>da</strong> saúde.<br />

Ao encerrarmos o ano de 2012 com este número, estamos<br />

não somente consoli<strong>da</strong>ndo nossa posição de uma revista<br />

de quali<strong>da</strong>de – graças ao reconhecimento do Qualis-<br />

Capes – como também de acesso livre e gratuito, graças<br />

ao apoio do PePSIC; e de um veículo aberto e multidisciplinar<br />

(com a participação de varia<strong>da</strong>s áreas de estudo e<br />

pesquisa). Ganhamos recentemente o reconhecimento <strong>da</strong><br />

parte dos pesquisadores em História <strong>da</strong> Psicologia, por<br />

nosso esforço em trazer ao público brasileiro traduções<br />

de textos clássicos e fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> Fenomenologia,<br />

como pode ser atestado no Blog <strong>da</strong> Rede Iberoamericana<br />

de Pesquisadores em História <strong>da</strong> Psicologia.<br />

Nossa meta para o ano que se aproxima é agora a<br />

consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> “fenomenologia” como nosso caminho<br />

“natural”. E na<strong>da</strong> mais metafórico do que encerrar o ano<br />

com a tradução de um brilhante texto de Marvin Farber,<br />

de 1940, sobre os “fun<strong>da</strong>mentos” <strong>da</strong> filosofia husserliana.<br />

Ao todo, apresentamos ao leitor, um total de doze trabalhos,<br />

nos quais se reflete essa diversi<strong>da</strong>de e multiplici<strong>da</strong>de,<br />

e onde se afirma o “lugar” <strong>da</strong> Fenomenologia como<br />

interlocução, com o pensamento psicológico – com textos<br />

de Gestalt Terapia, de Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa, de<br />

fenomenologia-existencial e sobre Viktor Frankl – e com<br />

outros campos do saber filosófico, social e psiquiátrico.<br />

Boa leitura a todos<br />

Adriano Furtado Holan<strong>da</strong><br />

- Editor -<br />

ix <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): ix, jul-dez, 2012<br />

E d i t o r i a l


NomiNata 2011-2012<br />

Listamos abaixo todos aqueles que contribuíram com a revista, na quali<strong>da</strong>de de pareceristas, entre os<br />

anos de 2011 e 2012. Agradecemos a colaboração e esperamos contar novamente com sua participação.<br />

Adão José Peixoto (Universi<strong>da</strong>de Federal de Goiás)<br />

Adelma Pimentel (Universi<strong>da</strong>de Federal do Pará)<br />

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro)<br />

Ângela Schillings (Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa Catarina)<br />

Beatriz Helena Paranhos Cardella (Instituto de Gestalt Terapia de São Paulo)<br />

Carlos Augusto Serbena (Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná)<br />

Carlos Diógenes Cortes Tourinho (Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense)<br />

Celana Cardoso Andrade (Universi<strong>da</strong>de Federal de Goiás)<br />

Cibele Mariano Vaz (Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro)<br />

Cláudia Lins Cardoso (Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais)<br />

Daniela Schneider (Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa Catarina)<br />

Danilo Suassuna (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia)<br />

Elza Dutra (Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande do Norte)<br />

Ênio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de São Paulo)<br />

Gizele Elias Parreira (Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Goiás)<br />

Gustavo Gauer (Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande do Sul)<br />

Joanneliese de Lucas Freitas (Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná)<br />

Jorge Ponciano Ribeiro (Universi<strong>da</strong>de de Brasília)<br />

Josemar de Campos Maciel (Universi<strong>da</strong>de Católica Dom Bosco, MS)<br />

Josiane Almei<strong>da</strong> (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia)<br />

Karina Okajima Fukumitsu (Universi<strong>da</strong>de Presbitariana Mackenzie)<br />

Lílian Meyer Frazão (Universi<strong>da</strong>de de São Paulo)<br />

Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de São Paulo)<br />

Lúcia Cecília <strong>da</strong> Silva (Universi<strong>da</strong>de Estadual de Maringá)<br />

Márcio Luiz Fernandes (Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica do Paraná)<br />

Marcos Aurélio Fernandes (Universi<strong>da</strong>de Católica de Brasília)<br />

Marisete Malaguth Mendonça (Universi<strong>da</strong>de Católica de Goiás)<br />

Marta Carmo (Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Goiás)<br />

Mônica Botelho Alvim (Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de Janeiro)<br />

Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Campinas)<br />

Patrícia Valle de Albuquerque Lima (Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro)<br />

Roberto Novaes de Sá (Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense)<br />

Sandra Albernaz (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia)<br />

Selma Ciornai (Instituto de Gestalt de São Paulo)<br />

Sérgio Lízias (Universi<strong>da</strong>de Federal de Goiás - Campus Catalão)<br />

Sylvia Mara Pires de Freiras (Universi<strong>da</strong>de Estadual de Maringá)<br />

Thiago Gomes de Castro (Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande do Sul)<br />

Tommy Akira Goto (Universi<strong>da</strong>de Federal de Uberlândia)<br />

Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Goiás)<br />

William Barbosa Gomes (Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande do Sul)


Artigos ..........................


Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañe<strong>da</strong><br />

ARTE E MUNDO: DIÁLOGOS ENTRE HEIDEGGER E CASTANEDA 1<br />

Art and World: Dialogues Between Heidegger and Castane<strong>da</strong><br />

Arte y Mundo: Diálogos entre Heidegger y Castane<strong>da</strong><br />

AnA GAbrielA rebelo dos sAntos<br />

roberto novAes de sá<br />

Resumo: Propomos pensar possibili<strong>da</strong>des de experiência de mundo a partir <strong>da</strong> articulação entre obra de arte, na concepção do<br />

filósofo Martin Heidegger em “A Origem <strong>da</strong> Obra de Arte”, e parar o mundo, idéia exposta pelo antropólogo Carlos Castane<strong>da</strong>.<br />

Segundo Heidegger, ser obra de arte é instalar um mundo, deixar em aberto o aberto do mundo: abertura de sentido. Para o filósofo,<br />

o homem é o ente cujo ser está sempre em jogo na sua existência. “Parar o mundo” é um ensinamento do índio Don Juan<br />

a Castane<strong>da</strong>. Ele precisa parar o mundo, desmoronar seu conceito de mundo para conseguir ver o mundo desprendido do consenso<br />

social. Os autores discorrem sobre reali<strong>da</strong>des plásticas, mundos que existem a partir de experiências, formas de Ec-xistir<br />

e transitar entre mundos se mantendo na abertura do ser. Não objetivamos equivaler idéias, buscamos abrir um espaço para<br />

pensar acerca <strong>da</strong> existência do homem. Como recurso metodológico, destacamos passagens <strong>da</strong> obra de Castane<strong>da</strong> e buscamos<br />

caminhos junto às idéias de Heidegger que nos auxiliem a elaborar um horizonte de diálogo.<br />

Palavras-chave: Fenomenologia; Heidegger; Castane<strong>da</strong>; Reali<strong>da</strong>de; Arte.<br />

Abstract: We propose to consider possibilities of world experience from the relationship between work of art, an idea developed<br />

by the philosopher Martin Heidegger in “The Origin of the Work of Art” and stop the world, an idea expounded by the anthropologist<br />

Carlos Castane<strong>da</strong>. According to Heidegger, being a work of art is to install a world, leave open the opening of the world:<br />

opening of sense. For the philosopher, man is the being whose being is always at stake in its existence. “Stop the world,” is what<br />

speaks the Indian Don Juan to Castane<strong>da</strong>. He needs to stop the world, collapsing his concept of world in order to see the world<br />

detached from social consensus. The authors discuss plastic realities, worlds that are based on experiences, forms of Existence<br />

and sometimes appearing to move between worlds and keeping the opening of Being. We do not aim to equate ideas, we open<br />

a space to think about the existence of man. As a methodological resource, we discusses highlighted passages of Castane<strong>da</strong>’s<br />

work and seek ways to the ideas of Heidegger which help us to elaborate a common horizon of dialog.<br />

Keywords: Phenomenology; Heidegger; Castane<strong>da</strong>; Reality; Art.<br />

Resumen: Nos proponemos estudiar las posibili<strong>da</strong>des de experiencia de mundo. Partindo de la relación entre obra de arte, una<br />

idea desarrolla<strong>da</strong> por el filósofo Martin Heidegger en “El origen de la obra de arte” y detener el mundo, una idea expuesta por el<br />

antropólogo Carlos Castane<strong>da</strong>. Según Heidegger, ser obra es la instalación de un mundo, mantener abierto el abierto del mundo:<br />

el sentido abierto. Para el filósofo, el hombre es el ser cuyo ser está siempre en juego en su existencia. “Detener el mundo,”<br />

es lo que propone el indio Don Juan a Castane<strong>da</strong>. Él tiene que detener el mundo, deshaciendo su concepto del mundo para que<br />

pue<strong>da</strong> ver el mundo separado del consenso social. Los autores hablan de reali<strong>da</strong>des plásticas, de mundos que se basan en las<br />

experiéncias, de formas del Existir y permaneciendo en la apertura del ser. La intención no es lo apunte a igualar las ideas, pero<br />

abrimos un espacio para pensar en la existencia del hombre. Como método, utilizamos fragmentos de la obra de Castane<strong>da</strong> junto<br />

de las ideas de Heidegger.<br />

Palabras-clave: Fenomenología; Heidegger; Castane<strong>da</strong>; Reali<strong>da</strong>d; Arte.<br />

Introdução<br />

No verão de 1960, o até então estu<strong>da</strong>nte de antropologia<br />

Carlos Castane<strong>da</strong> parte em viagem para o sudoeste<br />

dos Estados Unidos em busca de maiores informações<br />

sobre as plantas medicinais utiliza<strong>da</strong>s pelos índios do<br />

local. E é no estado do Arizona que acontece o primeiro<br />

encontro com o índio yaqui Don Juan Matus. O primeiro<br />

de muitos encontros que aconteceriam por mais 13 anos.<br />

1 A presente pesquisa foi desenvolvi<strong>da</strong> no Programa de Pós-Graduação<br />

em Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense, pela primeira<br />

autora (Bolsista Capes), sob orientação do segundo autor.<br />

A princípio, Castane<strong>da</strong> pede que o índio lhe ensine sobre<br />

as plantas, principalmente sobre o peiote, e de alguma<br />

forma – que não sabe bem explicar –, se sente intrigado<br />

e atraído por Don Juan. Esse primeiro encontro é descrito<br />

pelo autor como perturbador.<br />

Depois disso, ain<strong>da</strong> sob o sentimento de inquietação,<br />

Castane<strong>da</strong> descobre onde mora Don Juan e passa então a<br />

visitá-lo constantemente. Mas, nas longas horas que passavam<br />

juntos, durante um ano, não falaram sobre plantas.<br />

Os acontecimentos estavam dirigidos para longe de seu<br />

propósito original. Passado esse tempo, Don Juan diz a<br />

Castane<strong>da</strong> ter certos conhecimentos que lhe foram pas-<br />

131 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

sados por seu benfeitor; conhecimentos relacionados ao<br />

que ele chama de “caminho do guerreiro”. Por uma série<br />

de circunstâncias, que não se encerram no desejo de nenhum<br />

dos dois, Castane<strong>da</strong> fora escolhido como aprendiz<br />

de Don Juan e, juntos, trilharam um caminho que abalou<br />

definitivamente o mundo <strong>da</strong>quele.<br />

Os primeiros cinco anos de aprendizado são relatados<br />

no seu livro mais famoso – A Erva do Diabo<br />

(Castane<strong>da</strong>, 1968) –, que foi sua dissertação de mestrado<br />

pela Universi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Califórnia, em Los Angeles. Nele,<br />

o autor descreve principalmente suas experiências com<br />

plantas alucinógenas, o que foi bastante importante no<br />

seu percurso. Cabe aqui lembrar que a visão dos feiticeiros<br />

sobre as plantas não se esgota em sua descrição botânica<br />

e a experiência de encontro com ca<strong>da</strong> uma delas<br />

deve ser vista como um fenômeno, de modo que a coisa<br />

com a qual li<strong>da</strong>mos, nesse caso a planta, nunca é uma<br />

coisa ideal e sim a coisa de que fazemos experiência.<br />

Dessa forma, é possível manter um olhar de abertura à<br />

experiência vivi<strong>da</strong> e ao seu horizonte próprio de sentido.<br />

Os feiticeiros podem se utilizar <strong>da</strong>s plantas como<br />

aliados, mas não é necessário que se use. Em passagem<br />

de Porta para o infinito (Castane<strong>da</strong>, 1974), podemos ver o<br />

momento em que Don Juan diz a Castane<strong>da</strong> que no caso<br />

dele foi preciso fazer uso <strong>da</strong>s plantas, porque ele era um<br />

homem muito duro e essas experiências foram necessárias<br />

para sacudir seu mundo. Além dessas experiências<br />

que incluíam o uso de determina<strong>da</strong>s plantas, o autor nos<br />

fala, ao longo de seus doze livros, de inumeráveis acontecimentos<br />

de outros tipos. Aquilo que a princípio lhe<br />

parecia mais improvável, foi o que mais lhe atormentou:<br />

tudo que ele tomava como o mundo real estava abalado.<br />

Diz Castane<strong>da</strong> (1972/2006): “O ponto crucial de meu<br />

dilema naquele momento era minha falta de vontade de<br />

aceitar o fato de que Dom Juan era bem capaz de demolir<br />

to<strong>da</strong>s as minhas concepções prévias de mundo...” (p. 39).<br />

Em fins de 1965, Castane<strong>da</strong> se retira do aprendizado<br />

e decide não mais ver Don Juan. Porém, em 1968, já<br />

com seu primeiro livro em mãos, ele vai visitar o índio<br />

e a relação mestre-aprendiz é restabeleci<strong>da</strong>. Ao que vem<br />

a se passar a partir de então, Castane<strong>da</strong> chama de seu<br />

segundo ciclo de aprendizado. É nesse segundo ciclo<br />

que encontramos aquilo a que vamos <strong>da</strong>r maior relevância<br />

no nosso trabalho: a difícil tarefa de parar o mundo.<br />

É preciso que Castane<strong>da</strong> consiga “parar o mundo”. Mas o<br />

que seria “parar o mundo”? Essa pergunta é feita muitas<br />

e muitas vezes a seu mestre, que por sua vez, evita palavras<br />

e propõe de diversas formas que ele tenha – como<br />

Castane<strong>da</strong> fala – uma “experiência mais direta do mundo”.<br />

“Referia-me ao conhecimento acadêmico que transcende<br />

a experiência, enquanto ele falava do conhecimento<br />

direto do mundo”, diz Castane<strong>da</strong> (1971/2009, p. 10).<br />

Em outra passagem, quando perguntado sobre o<br />

que seria exatamente um ente a que chamam “aliado”,<br />

em Porta para o Infinito (Castane<strong>da</strong>, 1974), Don Juan<br />

responde:<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012<br />

Ana G. R. Santos & Roberto N. Sá<br />

– Não há como dizer, precisamente, o que é um aliado,<br />

assim como não há meio de dizer exatamente o que<br />

é uma árvore.<br />

– Uma árvore é um organismo vivo – disse eu.<br />

– Isso não me diz muito – retrucou ele. Também posso<br />

dizer que o aliado é uma força, uma tensão. Mas isso<br />

não acrescenta muita coisa a respeito de um aliado.<br />

Assim como no caso de uma árvore, o único meio de<br />

saber o que é um aliado é experimentando-o (p. 78).<br />

Essas e outras passagens nos fazem recor<strong>da</strong>r os caminhos<br />

<strong>da</strong> fenomenologia, particularmente aqueles trilhados<br />

por Martin Heidegger. Propomos que, como o filósofo<br />

nos diz em A Questão <strong>da</strong> Técnica (Heidegger, 1953/1997),<br />

atentemos para o caminho sem permanecermos presos a<br />

proposições e títulos particulares, e, assim, possamos refletir<br />

a partir de uma livre relação de pensamento. Como<br />

diz Don Juan, em A Erva do Diabo (Castane<strong>da</strong>, 1968), tenhamos<br />

em vista que um caminho é apenas um caminho.<br />

Quando Heidegger nos fala de mundo, ele não está<br />

falando de um objeto que está ante nós e que pode ser<br />

sensorialmente percebido; não se trata de um espaço pré-<br />

-existente a nós onde as coisas também já ali se encontram<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s e onde somos simplesmente inseridos como<br />

bonecos numa caixa. Homem e mundo não pré-existem<br />

um ao outro, homem e mundo co-emergem na experiência.<br />

Mundo para Heidegger é abertura de sentido.<br />

Em A Origem <strong>da</strong> Obra de Arte, lemos:<br />

Mundo nunca é um objeto, que está ante nós e que<br />

pode ser intuído. O mundo é o sempre inobjetal a<br />

que estamos submetidos enquanto os caminhos do<br />

nascimento e <strong>da</strong> morte, <strong>da</strong> benção e <strong>da</strong> maldição<br />

nos mantiverem lançados no Ser (Heidegger, 1950/<br />

2007, p. 35).<br />

Segundo Heidegger, o sentido está sempre em jogo na<br />

existência. Em seu relacionar-se com as coisas enquanto<br />

coisas o homem habita o mundo, desvelando sentido.<br />

Em nosso modo de ser cotidiano mais comum, tomamos<br />

o mundo como algo simplesmente <strong>da</strong>do, e a nós mesmos<br />

como sujeitos empíricos, cuja existência fosse ontologicamente<br />

separa<strong>da</strong> do mundo. Quando Castane<strong>da</strong> diz conhecer<br />

o mundo, ele se refere àquilo que sempre, desde<br />

que ele nasceu, as pessoas vem lhe dizendo que é mundo.<br />

É importante destacar aquilo que Don Juan nos fala<br />

ao longo de to<strong>da</strong> a obra de Castane<strong>da</strong> e que parece ecoar<br />

o que a fenomenologia sinaliza como fun<strong>da</strong>mental: a dimensão<br />

de abertura <strong>da</strong> experiência, abertura constitutiva<br />

de sentido, porque é na própria relação de sentido que<br />

as coisas vêm a ser. Parar o mundo significa desmoronar<br />

todo o conceito prévio que se tem de mundo e, assim, o<br />

guerreiro vê o mundo desprendido do que se convenciona<br />

previamente como mundo. O ver aqui difere do olhar,<br />

diz respeito a uma apreensão que não se limita aos olhos,<br />

tampouco se determina por um suposto mundo ver<strong>da</strong>dei-<br />

132


Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañe<strong>da</strong><br />

ro. Quando se “vê”, tudo se torna igual e ao mesmo tempo<br />

tudo é novo. Tudo se torna igual no sentido do valor, na<strong>da</strong><br />

é (em si mesmo) mais importante que na<strong>da</strong>, e ao mesmo<br />

tempo tudo é novo por percebermos as coisas desprendi<strong>da</strong>s<br />

dos preconceitos cotidianos.<br />

Pensar o mundo como ver<strong>da</strong>deiro ou falso não faz<br />

mais sentido, pois isso implicaria tomarmos como critério<br />

um mundo simplesmente <strong>da</strong>do. Ao longo de seu<br />

aprendizado, Castane<strong>da</strong> insiste diversas vezes que Don<br />

Juan lhe fale o que é ver e o que se vê quando se vê. A isso<br />

Don Juan responde:<br />

– Você tem de aprender a ver para saber disso. Não<br />

posso lhe dizer.<br />

– É um segredo que não posso saber?<br />

– Não. Acontece que não posso descrevê-lo.<br />

– Por quê?<br />

– Não faria sentido pra você.<br />

– Experimente Don Juan. Talvez faça sentido para<br />

mim.<br />

– Não. Tem de fazê-lo por si. Uma vez que apren<strong>da</strong>,<br />

poderá ver ca<strong>da</strong> coisa no mundo de maneira diferente<br />

(Castane<strong>da</strong>, 1971/2009, p. 48).<br />

Além deste privilégio <strong>da</strong>do à experiência como modo<br />

de ser irredutível ao conhecimento representacional, é<br />

pertinente observarmos, ain<strong>da</strong>, outra ressonância em<br />

nossas leituras de Heidegger e Castane<strong>da</strong> referente a essa<br />

dimensão existencial do conhecimento: trata-se <strong>da</strong>s noções<br />

de fazer e não-fazer, apresenta<strong>da</strong>s por Don Juan a<br />

Castane<strong>da</strong>. Quando perguntamos, cotidianamente, o que<br />

é algo, estamos questionando, na maioria, para que serve<br />

a coisa em questão, qual sua função ou utili<strong>da</strong>de.<br />

Em sua analítica <strong>da</strong> existência, Heidegger aponta que<br />

o nosso modo predominante de ser é o estar absorvido<br />

na ocupação com as coisas. Essa “ocupação” não é para<br />

ele a mera li<strong>da</strong> objetiva com coisas previamente <strong>da</strong><strong>da</strong>s,<br />

mas uma relação intencional, no sentido fenomenológico,<br />

de constituição de sentido. Ocupar-se com as coisas<br />

é participar de modo irrefletido <strong>da</strong> dinâmica de realização<br />

de um mundo. Nos deixamos absorver tão firmemente<br />

a essa li<strong>da</strong> ocupacional que deixamos escapar o<br />

aberto do mundo. Em uma conferência muito posterior a<br />

Ser e Tempo, intitula<strong>da</strong> A Questão <strong>da</strong> Técnica, Heidegger<br />

(1953/1997) trata mais especificamente do modo moderno<br />

e contemporâneo de acontecimento histórico do mundo.<br />

Na “era <strong>da</strong> técnica”, como é denomina<strong>da</strong>, por ele, a época<br />

atual, o homem toma todos os entes como recursos para<br />

os seus afazeres, como se to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de se reduzisse a<br />

mera reserva de energia disponível para sua exploração<br />

e consumo (Novaes de Sá & Rodrigues, 2007). A experiência<br />

do pensamento se reduz, por sua vez, às operações<br />

calculantes que visam à previsão e ao controle dos entes.<br />

Heidegger diz que o mundo atual é pobre de pensamento,<br />

querendo significar com isso que a presente era <strong>da</strong> técnica<br />

põe sob ameaça a possibili<strong>da</strong>de mais essencial do<br />

homem: a meditação sobre o sentido <strong>da</strong>s coisas, <strong>da</strong> existência<br />

e do mundo. Para que essa possibili<strong>da</strong>de seja preserva<strong>da</strong><br />

em meio ao nivelamento calculante promovido<br />

pela técnica moderna, Heidegger (1966) propõe o exercício<br />

de uma disposição do espírito denomina<strong>da</strong> como<br />

sereni<strong>da</strong>de (Gelassenheit). Inspirado no místico alemão<br />

Mestre Eckhart, o filósofo entende essa disposição como<br />

uma equanimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma, uma atitude de suspensão<br />

e desapego <strong>da</strong> vontade. A “sereni<strong>da</strong>de” faz parte do pensamento<br />

que medita. Ao contrário do pensamento calculante,<br />

que reduz tudo à condição de disponibili<strong>da</strong>de, o<br />

pensamento meditante nos solicita uma atenção livre de<br />

qualquer violência subjetiva, isto é, de qualquer identificação<br />

a um aspecto exclusivo <strong>da</strong>s coisas, preservando em<br />

sua abertura compreensiva a diferença irredutível entre<br />

as reali<strong>da</strong>des que se apresentam e a dinâmica de realização<br />

dessas reali<strong>da</strong>des. Em nossas leituras de Castane<strong>da</strong>,<br />

não pudemos evitar a evocação do “deixar-ser” <strong>da</strong> “sereni<strong>da</strong>de”<br />

heideggeriana quando nos deparamos com a estranha<br />

proposta do “não-fazer” de Don Juan.<br />

Antes de parar o mundo, um dos ensinamentos fun<strong>da</strong>mentais<br />

que Don Juan apresenta a Castane<strong>da</strong> em Viagem<br />

a Ixtlan é o “não-fazer”. Segundo ele o guerreiro precisa<br />

não fazer a fim de experimentar outras possibili<strong>da</strong>des de<br />

ser de uma coisa ao relacionar-se com ela. Destacamos, a<br />

seguir, um trecho <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> obra:<br />

– Aquela pedra ali é uma pedra por causa de fazer<br />

– disse ele.<br />

...não havia entendido o que ele queria dizer.<br />

– Aquilo é fazer! – exclamou.<br />

– Como?<br />

– Isso também é fazer.<br />

– De que é que está falando, Don Juan?<br />

– Fazer é o que torna aquela pedra uma pedra e um<br />

arbusto um arbusto. Fazer é o que torna você, você<br />

e eu, eu.<br />

(...)<br />

– Tome aquela pedra por exemplo. Olhar para ela é<br />

fazer, mas vê-la é não fazer.<br />

Tive de confessar que as palavras dele não estavam<br />

fazendo sentido para mim.<br />

– Ah, fazem, sim! – exclamou. – Mas você está convencido<br />

do contrário porque isso é você fazendo. É assim<br />

que você age em relação a mim e ao mundo...<br />

– O mundo é o mundo porque você conhece o fazer<br />

necessário para torná-lo mundo – disse ele. – Se você<br />

não soubesse o seu fazer, o mundo seria diferente<br />

(Castane<strong>da</strong>, 1972/2006, p. 237).<br />

A fim de não-fazer, Castane<strong>da</strong> precisava conseguir<br />

parar seu diálogo interno, pois só de olhar uma pedra já<br />

estamos fazendo-a pedra pelo nosso pensamento. O nosso<br />

diálogo interno, a todo instante sustenta um mundo que<br />

nos é mais familiar. A questão que trazemos é: que mundo<br />

temos nós, ao longo dos últimos tempos, feito? Don Juan<br />

133 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

nos fala que todos nós fomos ensinados a concor<strong>da</strong>r sobre<br />

o fazer e que não temos idéia de como esse fazer é poderoso,<br />

mas felizmente, o não-fazer é igualmente poderoso.<br />

Quando tentamos co-responder à leitura desses pensadores,<br />

buscamos abrir um espaço para pensar em novos<br />

modos de estar no mundo. Modos que privilegiem<br />

as possibili<strong>da</strong>des de experiência do mundo enquanto<br />

mundo. Pensar já é em si uma prática, pois pensamento<br />

é uma forma de desvelar mundo. O termo desvelamento<br />

(Unverborgenheit), utilizado por Heidegger para traduzir<br />

a palavra grega aletheia, indica que a ver<strong>da</strong>de não é<br />

a correspondência adequa<strong>da</strong> a uma reali<strong>da</strong>de em si, mas<br />

a própria dinâmica de acontecimento/aparecimento <strong>da</strong>s<br />

reali<strong>da</strong>des.<br />

A obra de arte, na concepção de Heidegger, tem uma<br />

articulação essencial com essas idéias, na medi<strong>da</strong> em que<br />

ser obra é instalar um mundo, e para instalar mundo é<br />

preciso deixar em aberto o aberto do mundo. A obra coloca<br />

à luz o ser <strong>da</strong>s coisas e a possibili<strong>da</strong>de de abertura<br />

e transcendência no relacionar-se com elas. Na referi<strong>da</strong><br />

conferência do filósofo – A Origem <strong>da</strong> Obra de Arte<br />

(Heidegger, 1950/2007) –, ele toma como exemplo algumas<br />

telas do pintor holandês Vincent Van Gogh, onde ele pinta<br />

sapatos de camponeses. Pares de sapatos camponeses,<br />

o que há de especial para se ver aí? Todos nós sabemos<br />

de que matéria é feito um sapato, e também conhecemos<br />

a serventia do apetrecho sapato.<br />

Na li<strong>da</strong> cotidiana <strong>da</strong> camponesa com seus sapatos o<br />

que vem ao encontro de modo mais imediato e irrefletido<br />

é o caráter instrumental do apetrecho sapato. Seria ilusão<br />

pensar que foi a nossa descrição, enquanto ativi<strong>da</strong>de<br />

subjetiva, que tudo figurou assim para depois projetar no<br />

quadro. Essa seria mais uma forma de pensar homem e<br />

mundo separados e independentes, com isso acabaríamos<br />

fazendo uma gênese psicológica para a criação artística.<br />

A seguir, vemos um trecho de Heidegger (1950/2007):<br />

Na escura abertura do interior gasto dos sapatos,<br />

fita-nos a dificul<strong>da</strong>de e o cansaço dos passos do trabalhador.<br />

Na gravi<strong>da</strong>de rude e sóli<strong>da</strong> dos sapatos está<br />

reti<strong>da</strong> a tenaci<strong>da</strong>de do lento caminhar pelos sulcos<br />

que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo,<br />

sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, está a<br />

umi<strong>da</strong>de e a fertili<strong>da</strong>de do solo. Sob as solas, insinua-<br />

-se a solidão do caminho do campo, pela noite que<br />

cai. No apetrecho para calçar impera o apelo calado<br />

<strong>da</strong> terra, a sua mu<strong>da</strong> oferta do trigo que amadurece<br />

e a sua inexplicável recusa na desola<strong>da</strong> improdutivi<strong>da</strong>de<br />

do campo no inverno. Por este apetrecho passa<br />

o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa<br />

alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia<br />

do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça <strong>da</strong><br />

morte (p. 25).<br />

Este apetrecho sapato está abrigado no mundo <strong>da</strong><br />

camponesa e é a partir mesmo desta abriga<strong>da</strong> pertença<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012<br />

Ana G. R. Santos & Roberto N. Sá<br />

que ele surge para o seu repousar-em-si-mesmo. Mas é<br />

quando os sapatos estão no quadro que os vemos como<br />

possibili<strong>da</strong>de disso tudo. A obra coloca à luz o ser <strong>da</strong>s<br />

coisas e a possibili<strong>da</strong>de de abertura e transcendência no<br />

relacionar-se com elas. É na relação <strong>da</strong> camponesa com<br />

os sapatos que o ser sapato acontece. E esse é o sapato<br />

dos longos caminhos pelo campo, do cansaço do trabalho,<br />

<strong>da</strong>s horas de frio... É o sapato do qual se tem experiência,<br />

são esses sapatos que Vincent abre em suas telas.<br />

Quando Castane<strong>da</strong> para o mundo pela primeira vez,<br />

ele conversa com um coiote que está an<strong>da</strong>ndo pelo campo.<br />

Ademais, fala de uma série de experiências que diz<br />

não poder descrever com palavras. Ao contar o ocorrido<br />

ao índio Don Juan, este lhe diz que o coiote não falara <strong>da</strong><br />

mesma maneira como os homens falam e que Castane<strong>da</strong><br />

não conseguiu reconhecer isso, mas seu corpo havia compreendido<br />

pela primeira vez.<br />

– Seu corpo compreendeu pela primeira vez. Mas você<br />

não conseguiu reconhecer que não era um coiote,<br />

para começar, e que certamente não estava falando<br />

<strong>da</strong> maneira que você ou eu falamos.<br />

– Mas o coiote falou mesmo, Don Juan!<br />

– Agora olhe quem está falando como um idiota.<br />

Depois de todos esses anos de aprendizado, já devia<br />

saber. Ontem você parou o mundo e podia até ter visto.<br />

Um ser mágico lhe disse uma coisa e seu corpo foi capaz<br />

de entender, porque o mundo tinha desmoronado.<br />

– O mundo estava como hoje, Don Juan.<br />

– Não estava, não. Hoje os coiotes não lhe dizem na<strong>da</strong>,<br />

e você não consegue ver as linhas do mundo. Ontem<br />

fez tudo isso simplesmente porque alguma coisa tinha<br />

parado dentro de você.<br />

– O que foi que parou em mim?<br />

– O que parou em você ontem foi aquilo que as pessoas<br />

têm dito que é o mundo. Enten<strong>da</strong>, as pessoas<br />

nos dizem, desde o momento em que nascemos, que<br />

o mundo é assim e assado, naturalmente não temos<br />

outra escolha senão ver o mundo do jeito que as pessoas<br />

nos dizem que é (Castane<strong>da</strong>, 1972/2006, p. 314).<br />

Parar o mundo e ser obra de arte, falando dessas noções,<br />

os dois autores discorrem sobre reali<strong>da</strong>des plásticas,<br />

sobre mundos que existem a partir de experiências,<br />

sobre formas de ec-xistir e transitar entre mundos, mantendo-se<br />

na abertura do ente. Quando Van Gogh pinta os<br />

sapatos, ele os traz à presença, e aqui entendemos presença<br />

como proximi<strong>da</strong>de, a intensi<strong>da</strong>de própria de sua<br />

experiência. A arte não consiste em mera representação<br />

de um mundo; <strong>da</strong> mesma forma quando o guerreiro vê,<br />

ele faz uma experiência livre de suas idéias prévias de<br />

um mundo simplesmente <strong>da</strong>do. “Parar o mundo”, em<br />

Castane<strong>da</strong>, e “ser obra de arte”, em Heidegger, podem<br />

ser relecionados pelo fato de apontarem para uma abertura<br />

de possibili<strong>da</strong>des de sentido para além do mundo<br />

que tomamos como <strong>da</strong>do.<br />

134


Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañe<strong>da</strong><br />

Em Viagem a Ixtlan, após passar por uma determina<strong>da</strong><br />

experiência, Castane<strong>da</strong> se inquieta e diz não conseguir<br />

entender o que tinha se passado. Don Juan diz<br />

a ele: “Insiste em explicar tudo como se o mundo inteiro<br />

fosse composto de coisas que podem ser explica<strong>da</strong>s.<br />

(...) Já lhe ocorreu que há poucas coisas nesse mundo<br />

que podem ser explica<strong>da</strong>s do seu jeito?” (Castane<strong>da</strong>,<br />

1972/2006, p. 160).<br />

Quando Castane<strong>da</strong> explica o mundo, ele simplesmente<br />

reafirma sua representação prévia do mundo e<br />

assim o esgota enquanto abertura de possibili<strong>da</strong>des.<br />

Em vários momentos de sua trajetória de aprendizado,<br />

Castane<strong>da</strong> se vê dividido entre dois mundos, o mundo<br />

cotidiano dos homens e o mundo dos feiticeiros: qual<br />

mundo seguir?<br />

Certa vez ao ingerir uma <strong>da</strong>s plantas de poder – botões<br />

de peiote – ele pergunta qual o caminho certo a seguir,<br />

qual o mundo certo. O espírito do peiote, Mescalito, o<br />

conduz em experiências distintas. A princípio, Castane<strong>da</strong><br />

tem visões e sensações agradáveis, que lhe trazem felici<strong>da</strong>de,<br />

mas logo depois ruídos começam a entrar nesse<br />

mundo pleno de felici<strong>da</strong>de e a experiência começa a se<br />

transformar de forma desagradável. Castane<strong>da</strong> se vê em<br />

uma situação de luta e todo o conforto desaparece. Diante<br />

disso, ele não consegue interpretar sozinho o que foi que<br />

Mescalito veio lhe dizer; confuso pede aju<strong>da</strong> de Don Juan<br />

que lhe diz que a lição de Mescalito foi lin<strong>da</strong>mente clara.<br />

Ele disse que Castane<strong>da</strong> acredita existirem dois mundos<br />

para ele, dois caminhos, enquanto na ver<strong>da</strong>de só existe<br />

um: o mundo dos homens.<br />

O único mundo possível para um homem é o mundo<br />

dos homens, porque somos homens e isso não podemos<br />

resolver largar. Na primeira experiência, onde tudo é felici<strong>da</strong>de<br />

não há diferença entre as coisas porque não há<br />

ninguém que in<strong>da</strong>gue pela diferença. Por isso Mescalito<br />

sacode Castane<strong>da</strong> e o tira novamente de uma posição<br />

confortável, para lhe mostrar como o homem pensa e<br />

luta. Trata-se de um horizonte de mistério fun<strong>da</strong>mental<br />

do ser homem: horizonte de abertura <strong>da</strong> própria existência.<br />

Don Juan diz que presumir que se vive em dois<br />

mundos é vai<strong>da</strong>de, pois se sendo homem, se vive o mundo<br />

dos homens.<br />

Aproximemos este pensamento com o que desenvolve<br />

Heidegger sobre o modo de ser do homem, o “ser-aí”.<br />

O homem é o único ente cujo ser está sempre em jogo em<br />

sua existência. Para a fenomenologia, não há uma essência<br />

a priori à própria experiência do existir. O homem é<br />

ser-no-mundo. Don Juan diz que é preciso, de certa forma,<br />

entender que, essencialmente, não somos na<strong>da</strong> para,<br />

assim, podermos ser tudo. Nenhum mundo é o mundo<br />

certo ou ver<strong>da</strong>deiro. Mais adiante, em Viagem a Ixtlan,<br />

Don Juan fala a Castane<strong>da</strong> que após ver o mundo dos feiticeiros<br />

ele deverá perceber que a grande arte do guerreiro<br />

é saber transitar entre os mundos, sabendo que nenhum<br />

é mais ver<strong>da</strong>deiro que o outro, mas que todos são possibili<strong>da</strong>des<br />

de experiência.<br />

Não devemos concluir desse esboço de um diálogo<br />

insólito, que o mundo que convencionamos em socie<strong>da</strong>de<br />

não é importante. O que se põe em questão nesses<br />

pensamentos é a cristalização <strong>da</strong> experiência cotidiana<br />

de mundo como ver<strong>da</strong>de absoluta, e, também, a cristalização<br />

dos nossos modos de ser medianos como únicas<br />

possibili<strong>da</strong>des de estar no mundo. O nosso modo de ser<br />

mais comum é tão próprio ao nosso existir, quanto o fato<br />

de que ele não esgota nossas possibili<strong>da</strong>des existenciais<br />

enquanto ser-no-mundo. Mais do que fazer experiências<br />

exóticas de mundos, o que buscamos lembrar, através <strong>da</strong><br />

ressonância entre esses pensamentos tão distintos, seja<br />

através <strong>da</strong> arte ou por outros caminhos, é a “brecha”, a<br />

“abertura” que nos permite transitar entre mundos.<br />

Referências<br />

Castane<strong>da</strong>, C. (1968). A Erva do Diabo. Rio de Janeiro: Record.<br />

Castane<strong>da</strong>, C. (1974). Porta para o infinito. Rio de Janeiro: Record.<br />

Castane<strong>da</strong>, C. (2006). Viagem a Ixtlan. Rio de Janeiro: Nova Era<br />

(Original publicado em 1972).<br />

Castane<strong>da</strong>, C. (2009). Uma estranha reali<strong>da</strong>de. Rio de Janeiro:<br />

Nova Era (Original publicado em 1971).<br />

Heidegger, M. (1997). A Questão <strong>da</strong> técnica. Cadernos de<br />

Tradução, número 2. São Paulo: DF/USP (Original publicado<br />

em 1953).<br />

Heidegger, M. (2007). A Origem <strong>da</strong> Obra de Arte. São Paulo:<br />

Edições 70 (Original publicado em 1950).<br />

Heidegger, M. (1966) “Sérénité”. Em Questions III, p. 159-181.<br />

Paris: Gallimard.<br />

Sá, R. N., de & Rodrigues, J. T. (2007). A questão do sujeito e<br />

do intimismo em uma perspectiva fenomenológico hermenêutica.<br />

Em A. M. L. C. de Feijoo & R. N. de Sá (Orgs).<br />

Interpretações fenomenológico-existenciais para o sofrimento<br />

psíquico na atuali<strong>da</strong>de [pp. 35-54]. Rio de Janeiro:<br />

GdN /IFEN.<br />

Ana Gabriela Rebelo dos Santos - Gradua<strong>da</strong> em Psicologia pela Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal Fluminense, Mestre em Psicologia pelo Programa<br />

de Pós-Graduação em Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense<br />

/ Bolsista REUNI (UFF) e Arteterapeuta integrante <strong>da</strong> equipe <strong>da</strong> Clínica<br />

Pomar no Rio de Janeiro. Email: anagabrielarebelo@gmail.com<br />

Roberto Novaes de Sá - Professor Associado <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal<br />

Fluminense, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia<br />

<strong>da</strong> UFF. Endereço Institucional: Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense,<br />

Centro de Estudos Gerais, Departamento de Psicologia. Campus<br />

Gragoatá, bl. O, sala 218 (São Domingos). CEP 24210-350, Niterói (RJ).<br />

Email: roberto_novaes@terra.com.br<br />

Recebido em 01.06.2011<br />

Aceito em 21.07.2012<br />

135 <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012<br />

Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas<br />

SER pSICOTERApEUTA: REfLExõES ExISTENCIAIS SObRE<br />

vIvêNCIAS DE ESTAGIÁRIOS-TERApEUTAS INICIANTES 1<br />

Be Psychotherapist: Existential Reflections on Experiences of Trainees-Therapists Beginners<br />

Ser un Psicoterapeuta: Reflexiones Existenciales cerca de Vivéncias de Alumnos-Terapeutas<br />

Principiantes<br />

JéssicA PAulA silvA Mendes<br />

sionArA KArinA Alves de brito Gressler<br />

sylviA MArA Pires de FreitAs<br />

Resumo: Esta produção apresenta uma análise reflexiva, com base no existencialismo sartreano, sobre a idealização do estagiário-terapeuta<br />

iniciante sobre o Ser Terapeuta. Tal reflexão teve como ponto de parti<strong>da</strong> algumas vivências <strong>da</strong>s autoras, bem como<br />

a observação <strong>da</strong>s dos demais estagiários que se encontravam diante do início <strong>da</strong> prática <strong>da</strong> psicoterapia individual para adultos<br />

e terceira i<strong>da</strong>de, desenvolvi<strong>da</strong> por meio <strong>da</strong> disciplina de Estágio Específico I, <strong>da</strong> ênfase de Psicologia e Processos Clínicos, do<br />

4º ano do curso de Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Paranaense, Campus Umuarama/PR, no ano de 2010. Partindo dessas vivências,<br />

propomos desconstruir o lugar de soberania onde muitas vezes é colocado o psicoterapeuta, lugar esse construído por ideologias<br />

que criaram o papel do profissional responsável pela cura, valorizando-o sobremaneira ao ponto de enfatizar ver<strong>da</strong>des que<br />

desconsideram a interdependência <strong>da</strong> relação terapeuta-cliente, proporcionando sentidos que levam o estagiário-terapeuta iniciante<br />

a criar expectativas frente suas atuações, as quais, ao abarcar to<strong>da</strong> a responsabili<strong>da</strong>de pela “cura” do Outro, nega-o como<br />

artífice de sua existência. Diante disso, consideramos que projetos idealizados não abarcam frustrações, impossibilitando o reconhecimento<br />

dos limites do próprio projeto de Ser terapeuta.<br />

Palavras-chave: Terapeuta iniciante; Ser psicoterapeuta; Idealização; Fenomenologia-existencial.<br />

Abstract: This production presents a reflective analysis, based on Sartrean existentialism, on the idealization of the traineetherapist<br />

Being a beginner on the therapist. This reflection has as its starting point a few experiences of the authors and the observation<br />

of other trainees who were before the start of the practice of individual psychotherapy for adults and seniors, developed<br />

through the discipline of Stage-Specific I, the emphasis of Psychology Clinical and Processes, 4th year of Psychology at the<br />

University of Parana, Campus Umuarama / PR, in 2010. Based on these experiences, we deconstruct the place where sovereignty<br />

is often placed on the psychotherapist, this place built by ideologies that have created the role of the professional responsible for<br />

healing, valuing it greatly to the point of value truths that ignore the interdependence of the therapist- client, providing directions<br />

that lead the trainee-therapist beginner to create expectations facing his performances, which, embracing all responsibility<br />

for the “cure” the Other, it denies its existence as a journeyman. Therefore, we believe that projects do not cover idealized<br />

frustrations, making it impossible to recognize the limits of the project itself being a therapist.<br />

Keywords: Beginning therapist; Being a psychotherapist; Idealization; Existential phenomenology.<br />

Resumen: Esta producción presenta un análisis reflexivo, basado sobre el existencialismo sartreano, en la idealización del<br />

aprendiz-terapeuta ser un principiante en el terapeuta. Esta reflexión tiene como punto de parti<strong>da</strong> algunas experiencias de los<br />

autores y la observación de los alumnos que estaban antes del inicio de la práctica de la psicoterapia individual para adultos y<br />

personas de e<strong>da</strong>d avanza<strong>da</strong>, desarrolla<strong>da</strong> a través de la disciplina de la Etapa I-específicas, el énfasis de la Psicología Clínica y<br />

Procesos, 4 º año de Psicología en la Universi<strong>da</strong>d de Paraná, Campus Umuarama / PR, en 2010. Con base en estas experiencias,<br />

deconstruir el lugar donde la soberanía es a menudo puesto en el psicoterapeuta, este lugar construido por las ideologías que<br />

han creado el papel del profesional responsable de la curación, lo que valora en gran medi<strong>da</strong> hasta el punto de toma el valor<br />

de las ver<strong>da</strong>des que hacen caso omiso de la interdependencia del terapeuta- cliente, proporcionando indicaciones que llevan al<br />

alumno principiante-terapeuta para crear las expectativas frente a sus actuaciones, que, abrazando to<strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>d por la<br />

“cura” el otro, niega su existencia como un jornalero. Por lo tanto, creemos que los proyectos no cubren frustraciones idealizado,<br />

lo que hace imposible reconocer los límites del propio proyecto de ser un terapeuta.<br />

Palabras-clave: Terapeuta principiante; Ser un psicoterapeuta; La idealización; La fenomenología existencial.<br />

1 Comunicação oral apresenta<strong>da</strong> no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná, realizado<br />

na Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, de 04 a 07 de junho de 2011.<br />

136


Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes<br />

Introdução<br />

Ao pensar em psicoterapia, a idéia que instiga primeiramente<br />

é a de um tratamento cuja função principal<br />

é a cura. Tal concepção de livrar o paciente de determinados<br />

sintomas passa pelo senso comum, configurando-<br />

-se inclusive como expectativa do próprio estu<strong>da</strong>nte de<br />

Psicologia frente à prática psicoterápica (Camon, 1999).<br />

Para Zaro, Barach, Nedelman e Dreiblatt (1980), as<br />

expectativas do estu<strong>da</strong>nte, quando inicia os atendimentos<br />

psicoterapêuticos, influenciam a maneira como compreendem<br />

as vivências de seus clientes e suas próprias.<br />

Discutir sobre essas expectativas nos remete, necessariamente,<br />

a contextualizar algumas condições que levam a<br />

escolha de Ser terapeuta. Sobre esse assunto, Zaro et al.<br />

(1980) mencionam que, apesar de ca<strong>da</strong> pessoa possuir<br />

seus próprios motivos, de acordo com seus projetos, geralmente<br />

os estu<strong>da</strong>ntes de Psicologia tendem a compartilhar<br />

de alguns deles tais como a preocupação com o bem-estar<br />

<strong>da</strong>s pessoas e o desejo em ajudá-las. Associa<strong>da</strong> a isto está<br />

a busca pelo reconhecimento de ser um terapeuta capaz<br />

de melhorar a quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> dessas pessoas.<br />

Chegamos, portanto, ao possível motivo para to<strong>da</strong><br />

ansie<strong>da</strong>de e angústia do estagiário-terapeuta iniciante,<br />

que são vivencia<strong>da</strong>s antes mesmo do primeiro atendimento,<br />

ao imaginar sua atuação basea<strong>da</strong> no projeto de<br />

terapeuta ideal.<br />

Durante a formação do psicoterapeuta, ele geralmente<br />

é também habilitado para realizar o psicodiagnóstico<br />

a partir do conhecimento de teorias que fun<strong>da</strong>mentarão<br />

sua prática. Entretanto, podemos dizer que aquilo o que<br />

ele leva para a prática, antes de qualquer coisa, é a si próprio<br />

como pessoa. Sua relação com o cliente também será<br />

construí<strong>da</strong> de acordo com seu projeto de ser, podendo,<br />

a princípio e pela falta de prática do método que deverá<br />

embasar sua prática, analisar os sentimentos e comportamentos<br />

dos clientes com referência em suas próprias<br />

experiências, expectativas e valores morais.<br />

Sobre a psicoterapia enquanto vivência de diferentes<br />

sensações experimenta<strong>da</strong>s pelo estagiário-terapeuta iniciante,<br />

não se pode deixar de falar em como a supervisão,<br />

tanto do acadêmico em ativi<strong>da</strong>des curriculares, quanto<br />

dos recém formados, torna-se um recurso que viabiliza<br />

o conhecimento básico e a experiência mínima para atuação<br />

enquanto prática clínica (Boris, 2008).<br />

É sobre as principais expectativas e sentimentos diversos<br />

que acometem o estu<strong>da</strong>nte de Psicologia frente às<br />

ativi<strong>da</strong>des práticas em psicoterapia, ou seja, as possíveis<br />

vivências diante seu projeto em Ser terapeuta, que nos debruçaremos<br />

reflexivamente neste artigo. Sob os conceitos<br />

<strong>da</strong> filosofia de Jean-Paul Sartre, um dos principais filósofos<br />

existencialista <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, é que fun<strong>da</strong>mentaremos<br />

nosso olhar, uma vez que, a respectiva abor<strong>da</strong>gem<br />

difunde a idéia de uma educação progressista, que<br />

coloca o estu<strong>da</strong>nte no centro de todo o processo, exórdio<br />

de to<strong>da</strong> discussão apresenta<strong>da</strong> nesta produção científica.<br />

137<br />

A concepção <strong>da</strong> Psicologia volta<strong>da</strong> à prática enquanto<br />

Clínica vem, ao longo do tempo, se adequando às deman<strong>da</strong>s<br />

emergentes com exigências contemporâneas ca<strong>da</strong><br />

vez mais peculiares, onde problemas <strong>da</strong>s mais varia<strong>da</strong>s<br />

ordens se apresentam. Tal atuação que se difundiu no<br />

meio acadêmico e social como a mais nobre, revelou a<br />

figura do psicólogo que atua dentro de um contexto terapêutico<br />

tradicional.<br />

Historicamente, a Psicologia Clínica dispõe de um<br />

sujeito idealizado, que surge para atender a uma deman<strong>da</strong><br />

de exaltação <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de, característica do individualismo<br />

moderno. Há uma inversão na relação teoria<br />

e prática, que se deve, segundo Portela (2008), à tentativa<br />

de encaixar os fenômenos em um conceito teórico que<br />

acaba por engessar a historici<strong>da</strong>de e factici<strong>da</strong>de desses<br />

eventos. Nesse sentido é que este autor cita o apego aos<br />

modelos científicos como fator limitante <strong>da</strong> compreensão<br />

dos fenômenos, uma vez visto o método como forma<br />

de um (falso) controle para sua ocorrência.<br />

Para Pretto, Langaro e Santos (2009), a abor<strong>da</strong>gem<br />

Existencialista tem abarcado essa deman<strong>da</strong> <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de<br />

por meio de seus vários instrumentos em<br />

uma metodologia fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> historicamente, de forma<br />

concreta e atualiza<strong>da</strong>, e segundo as relações que são<br />

estabeleci<strong>da</strong>s. Busca-se então uma clínica amplia<strong>da</strong>, não<br />

limita<strong>da</strong>, desenvolvi<strong>da</strong> nos mais diversos contextos nos<br />

quais a Psicologia se insere, seja na saúde pública, no<br />

meio organizacional, educação ou qualquer outra área,<br />

com uma prática pauta<strong>da</strong> na visão global desse cliente.<br />

Não nos debruçaremos na caracterização desses variados<br />

contextos por acreditarmos que as expectativas do<br />

estagiário-terapeuta iniciante se assemelham independente<br />

do local onde atue. Nosso foco se mantém então, em<br />

levantarmos sucintamente algumas dessas expectativas,<br />

destacando aspectos que nos parecem fun<strong>da</strong>mentais sob<br />

a perspectiva existencialista. Antes, porém, faz-se mister<br />

definirmos alguns conceitos básicos que fun<strong>da</strong>mentam<br />

a Fenomenologia husserliana, na qual Sartre apoiou-se<br />

no conceito de consciência intencional, para assim também<br />

podermos compreender em que Sartre transcende<br />

Husserl em suas reflexões. Posteriormente, a partir dessa<br />

breve contextualização, partiremos para a análise compreensiva<br />

a temática que nos propomos.<br />

1. A fenomenologia Husserliana<br />

Fenomenologia na<strong>da</strong> mais é que um método que surge<br />

dentre os movimentos do pensamento do século XX.<br />

Na concepção husserliana, essa definição restaura um “retorno<br />

às coisas mesmas” (Galeffi, 2000, p. 19), provocando<br />

assim importantes mu<strong>da</strong>nças no fazer filosófico deste século.<br />

Husserl se empenhou em diferenciar a consciência<br />

do eu empírico. Para Husserl (1906/1990, p. 32) “o eu no seu<br />

sentido habitual é um objeto empírico”, ou seja, ele não possui<br />

outra uni<strong>da</strong>de senão aquela que lhe é <strong>da</strong><strong>da</strong> pela própria<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

consciência. Contudo, esta concepção do eu sofrerá uma<br />

mu<strong>da</strong>nça radical a partir do momento em que Husserl encaminha<br />

a fenomenologia na direção de uma filosofia transcendental.<br />

Uma vez que perceber o objeto é intencioná-lo,<br />

o ego transcendental passa a ser visto como a origem de<br />

to<strong>da</strong> significação e a fenomenologia vem a partir <strong>da</strong>í, explicar<br />

esta constituição do ego transcendental (Santos, 2008).<br />

Considerando o Eu transcendental, a individuali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> consciência e esta, por sua vez caracteriza<strong>da</strong> enquanto<br />

intencional e vazia, Husserl enfatiza esse Eu como responsável<br />

por todo conhecimento, constituindo e <strong>da</strong>ndo<br />

sentido ao mundo. Assim, a fenomenologia se desenvolve<br />

com o objetivo principal de descrição de vivências, a<br />

partir <strong>da</strong>s quais se constituem objetos intencionais <strong>da</strong><br />

consciência (Brandão, 2009). Nesse sentido, para Husserl,<br />

o Eu Transcendental unifica as vivências. É ele que vai<br />

ao mundo, capta e conhece a coisa (objeto).<br />

A busca de Husserl então se fun<strong>da</strong>menta naquilo que<br />

podemos chamar de uma consciência absoluta, revela<strong>da</strong><br />

pela redução fenomenológica. Seu caráter epistemológico<br />

é o que define o significado de mundo para ca<strong>da</strong> indivíduo,<br />

evidenciando o conteúdo concreto de vi<strong>da</strong> de forma<br />

autêntica. Posta a ação do mundo suspensa, se permite a<br />

consciência tornar-se plenamente consciente de si mesma<br />

(Giles, 1989).<br />

2. O Existencialismo Sartreano<br />

Diferente de Husserl, Sartre (1937/1994) compreende<br />

que o Eu não pode ser visto como estrutura constituinte<br />

<strong>da</strong> consciência. Desta maneira, a definição de uma consciência<br />

vazia seria aniquila<strong>da</strong>, contradizendo e comprometendo<br />

assim a teoria husserliana (Santos, 2008). Assim, o<br />

Eu não pode estar presente na consciência irrefleti<strong>da</strong> uma<br />

vez que o “Eu penso” só surge por meio do ato reflexivo.<br />

Ou seja, é a reflexão que constitui este objeto transcendente<br />

chamado Eu, que a partir deste momento passa a<br />

existir no mundo como um Em-si. Sartre postula então um<br />

Ego transcendido e não transcendental, haja vista ser este<br />

conhecido e não o que conhece (Bocca & Freitas, 2011).<br />

Apoiados no conceito de projeto <strong>da</strong> filosofia sartreana,<br />

encontramos a caracterização do homem enquanto expressão<br />

de sua liber<strong>da</strong>de. Nesse sentido, o Existencialismo baseia-se<br />

em uma análise compreensiva <strong>da</strong> existência a partir<br />

do entendimento de uma liber<strong>da</strong>de de escolha situa<strong>da</strong>,<br />

não obstante, sem obrigatoriamente garantia de obtenção,<br />

em que o homem opta por esse ou aquele projeto de acordo<br />

com sua valorização, que se respal<strong>da</strong> também em uma<br />

moral vigente de seu contexto. Sob essa óptica o homem<br />

passa a ser um existente separado de todos, uma vez que<br />

consciente, se apresenta como algo distinto de si. Ao passo<br />

que “transporta em mim os projetos do Outro e no Outro<br />

os meus próprios projetos” (Sartre, 1960/2002, p. 212).<br />

Vê-se então a contradição fun<strong>da</strong>mental entre homem<br />

x mundo. Ao mesmo tempo em que o homem faz<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012<br />

Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas<br />

parte de uma totali<strong>da</strong>de, sendo o próprio todo, ele não é<br />

o todo à medi<strong>da</strong> que se coloca contraditório a ele. Para<br />

Perdigão (1995), é o mundo que lhe dá o Ser ao afirmá-lo<br />

não só como sujeito, mas enquanto totali<strong>da</strong>de acaba<strong>da</strong>.<br />

O Outro o objetiva, tornando-o um Em-si, coisa entre as<br />

coisas. Entretanto, o homem particulariza-se no âmbito<br />

de tal contradição. Enquanto tese, o homem se contrapõe<br />

ao mundo que é antítese, e é a existência desse não-ser<br />

em an<strong>da</strong>mento entre a totalização constituinte e o todo<br />

constituído que estabelece a existência dialética de um<br />

na<strong>da</strong> ativo e, ao mesmo tempo passivo (Sartre, 1960/2002).<br />

Inerente à construção do mundo pelo homem está a<br />

constituição deste último enquanto produto desse mundo<br />

feito por ele. Necessário se faz, neste caso, estabelecer<br />

relações com outros homens para se tornar homem,<br />

já que se constitui enquanto tal pela mediação de uma<br />

reali<strong>da</strong>de que ele próprio estabelece.<br />

Assim, a ca<strong>da</strong> escolha que transcende as contradições<br />

inerentes a existência humana, constitui o enfoque<br />

<strong>da</strong>quilo que Sartre denominou de histórico-dialético. O<br />

sujeito deve ser compreendido a partir de sua história<br />

individual e, ain<strong>da</strong>, dos contextos social, cultural, econômico<br />

e político ao qual está inserido.<br />

Com foco nesta concepção histórico-dialética de<br />

Sartre (1960/2002), sua contribuição para a Psicologia diz<br />

respeito ao estudo de um homem em situação, e principalmente,<br />

dos fenômenos que permeiam as relações no<br />

decorrer de sua existência. To<strong>da</strong> essa investigação proposta<br />

pela filosofia sartreana visa alcançar a compreensão<br />

dos diversos aspectos <strong>da</strong> existência em todo seu movimento<br />

e constituição do projeto de Ser.<br />

Desse modo, a fenomenologia-existencial nos fornece<br />

métodos para a prática clínica: do método fenomenológico,<br />

a partir <strong>da</strong> epoqué, abstraímos a base para uma atitude<br />

compreensiva e pelo método progressivo-regressivo podemos<br />

entender o projeto de Ser a partir <strong>da</strong>s escolhas realiza<strong>da</strong>s<br />

pelos clientes, que se dão num movimento dialético<br />

temporal. E é por este mesmo movimento que a Psicologia<br />

clínica foi e continua sendo construí<strong>da</strong> historicamente.<br />

3. A psicologia Clínica e o Sujeito Objetivado<br />

Falar em atuação clínica nos remete inevitavelmente<br />

a uma discussão, mesmo que breve, do movimento <strong>da</strong><br />

Psicologia enquanto construção de um saber científico,<br />

cuja prática foi mol<strong>da</strong><strong>da</strong> ao longo do tempo e influencia<strong>da</strong><br />

pelas questões sociais e antropológicas que conferem<br />

ao homem em suas varia<strong>da</strong>s formas de ser, o objeto de<br />

estudo do fazer psicológico.<br />

Para concretizar-se enquanto ciência, a Psicologia,<br />

no que diz respeito à prática clínica, é um campo marcado<br />

pela busca de um saber inquestionável. Propunha a<br />

confiabili<strong>da</strong>de de um método que fosse capaz de prever<br />

e controlar os fenômenos responsáveis pela construção<br />

de um homem subjetivado. Seguindo o percurso de uma<br />

138


Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes<br />

subjetivi<strong>da</strong>de marginaliza<strong>da</strong> pelo processo científico, à<br />

medi<strong>da</strong> que se opõe a objetivi<strong>da</strong>de proposta pela ciência,<br />

ao terapeuta foi concedi<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong>de de transformar a<br />

natureza de seu cliente, cujos fenômenos característicos<br />

foram reduzidos apenas a um objeto de estudo.<br />

Nesse sentido é que Neubern (2001) aponta o grande<br />

dilema <strong>da</strong> Psicologia Clínica, pois à medi<strong>da</strong> que se desenvolvem<br />

novas formas de atuação, ain<strong>da</strong> assim, esbarramos<br />

na limitação epistemológica que tende a excluir<br />

a subjetivi<strong>da</strong>de.<br />

Provavelmente o maior resultado dessa discrepância<br />

para as relações terapêuticas está relacionado à dificul<strong>da</strong>de<br />

de aceitação <strong>da</strong>s mais varia<strong>da</strong>s formas possíveis de<br />

compreensão de mundo, reduzindo as experiências a conceitos<br />

universalizados, logo generalizantes.<br />

Pode-se dizer que o conhecimento foi associado a<br />

uma hierarquia, uma relação de poder, onde as perspectivas<br />

do terapeuta, de maneira sutil, foram impostas,<br />

substituindo ou influenciando assim as peculiari<strong>da</strong>des<br />

do cliente. Concomitante a isto, a Psicologia foi tomando<br />

como função oferecer explicações confiáveis, principalmente<br />

dos sujeitos que estavam à margem do conceito<br />

de normali<strong>da</strong>de. O foco no patológico veio reafirmar a<br />

condição desse homem enquanto dependente e submisso<br />

do processo terapêutico, uma vez que a Psicologia lhe<br />

foi apresenta<strong>da</strong> como uma, senão a única, capaz de promover<br />

soluções eficazes.<br />

A avaliação <strong>da</strong>s múltiplas e complexas dimensões<br />

de um processo histórico é de fun<strong>da</strong>mental importância<br />

no sentido de estabelecer a prática de um conhecimento<br />

vinculado, inclusive, às resistências impostas por ele enquanto<br />

obstáculo epistemológico (Neubern, 2001).<br />

139<br />

Uma vez que partimos <strong>da</strong> dispersão dos organismos<br />

humanos, vamos considerar indivíduos inteiramente<br />

separados (pelas instituições, por sua condição social,<br />

pelos acasos de sua vi<strong>da</strong>) e tentaremos descobrir nessa<br />

separação – isto é, em uma relação que tende para<br />

a exteriori<strong>da</strong>de absoluta – seu vínculo histórico e<br />

concreto de interiori<strong>da</strong>de (Sartre, 1960/2002, p. 213).<br />

Por estarmos inseridos em uma estrutura social que<br />

fora organiza<strong>da</strong> pela práxis de outros que nos precederam<br />

historicamente, torna a práxis individual uma reorganização<br />

de um setor de materiali<strong>da</strong>de inerte, cuja função é atender<br />

as exigências de outro setor material, e não mais uma<br />

livre organização do campo prático. Matéria, em um sentido<br />

mais amplo, seria não-consciência (Sartre, 1960/2002).<br />

Entretanto, segundo Perdigão (1995), não somente as<br />

práxis de nossos antecedentes, mas também as nossas<br />

enquanto liber<strong>da</strong>de produzem o fenômeno <strong>da</strong> contra-finali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> matéria. Para este autor, o homem intervém<br />

na matéria influindo nela seu próprio projeto, disperso,<br />

resultando em um fenômeno alheio que foge ao controle,<br />

e a matéria pode responder contrariamente aos efeitos<br />

que se buscava.<br />

O isolamento dos sujeitos que se condenam a sofrer<br />

a contra-finali<strong>da</strong>de aliena seus projetos livres e favorece<br />

o estabelecimento de relações de domínio, devendo realizar<br />

projetos que não lhe são próprios, e sim determinados<br />

por outros (Perdigão, 1995). Assim, o homem também<br />

escolhe e produz seus próprios condicionamentos, logo<br />

a maneira de alienar-se.<br />

Romagnoli (2006) define as relações contemporâneas<br />

como intrínsecas, qualitativas e afetivas, por se desenvolverem<br />

nesse cenário globalizado de uma socie<strong>da</strong>de pretensiosamente<br />

autoritária que envolve aquilo que a autora<br />

definiu como corpo social, por meio dos mais diversos<br />

mecanismos de dominação. A alienação faz com que as<br />

imposições dessa socie<strong>da</strong>de dominante sejam, ao mesmo<br />

tempo, também deseja<strong>da</strong>s pela subjetivi<strong>da</strong>de, produzindo<br />

assim formas de vi<strong>da</strong>s padroniza<strong>da</strong>s.<br />

Para Luczinski e Ancona-Lopez (2010), na prática clínica,<br />

a busca do psicólogo é pela compreensão do homem<br />

no mundo, assim como uma forma de acompanhar esse<br />

homem em suas necessi<strong>da</strong>des de acordo com os objetivos<br />

terapêuticos. Entretanto, é certo que o homem pode<br />

apresentar crescimentos e mu<strong>da</strong>nças no que diz respeito<br />

ao desenvolvimento pessoal, a partir <strong>da</strong>s mais diversas<br />

experiências vivi<strong>da</strong>s, sem que para isso seja necessária<br />

qualquer intervenção psicológica.<br />

Nesse aspecto é que a prática <strong>da</strong> Psicologia Clínica<br />

imersa no contexto social, não visa uma política de atenção<br />

às cama<strong>da</strong>s sociais mais favoreci<strong>da</strong>s. Diz respeito<br />

a uma proposta para uma “clínica de qualquer lugar”,<br />

segundo Romagnoli (2006, p. 53). O objetivo primeiro,<br />

neste caso, seria a aniquilação de produções em massa,<br />

vincula<strong>da</strong> a uma apreensão <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de do cliente<br />

não submisso a um modelo de estudo. Isso vale também<br />

para o próprio terapeuta que não se atenha ao pensamento<br />

narcísico de detentor do poder de modelar seus clientes.<br />

Tendo em vista a fun<strong>da</strong>mental importância do mundo<br />

enquanto produto e produtor de subjetivi<strong>da</strong>des objetiva<strong>da</strong>s,<br />

cabe ressaltar o processo de sociabili<strong>da</strong>de, como se dá<br />

e o nível de influência que este exerce sobre a constituição<br />

do homem. Em meio a esse processo encontra-se também a<br />

construção do Ser terapeuta, que tende ir ao encontro <strong>da</strong>s<br />

expectativas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e as perspectivas dos estu<strong>da</strong>ntes<br />

que se dedicam a esta atuação profissional, como por<br />

exemplo, a conciliação indubitável entre naturali<strong>da</strong>de e<br />

critério, as quais serão foco de nossa reflexão mais adiante.<br />

4. A Sociabili<strong>da</strong>de e o Social<br />

Iniciaremos uma discussão a respeito <strong>da</strong> sociabili<strong>da</strong>de<br />

a partir <strong>da</strong> conceituação de Quali<strong>da</strong>de de Vi<strong>da</strong>. Ao<br />

pensar Quali<strong>da</strong>de de Vi<strong>da</strong> há uma tendência a associar<br />

tal conceito à saúde. Segundo definição <strong>da</strong> Organização<br />

Mundial <strong>da</strong> Saúde (OMS), saúde não diz respeito somente<br />

à ausência <strong>da</strong> doença, e sim a presença de um bem estar<br />

físico, mental e social (Fleck, 2000).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012<br />

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Em um artigo apresentado por Campos e Rodrigues<br />

Neto (2008), que trata de uma narrativa reflexiva sobre<br />

Quali<strong>da</strong>de de Vi<strong>da</strong>, os autores trazem um tópico intitulado<br />

“Instrumentos de Medi<strong>da</strong> de Quali<strong>da</strong>de de Vi<strong>da</strong>” (p.<br />

235), onde descrevem construtos capazes de mensurar e<br />

comparar os diversos níveis que caracterizam e determinam<br />

o bem-estar social.<br />

O tema é abor<strong>da</strong>do como se o fenômeno do bem-estar<br />

fosse padronizado e a tal ponto generalizado que permitiria<br />

uma avaliação cabal de to<strong>da</strong> e qualquer subjetivi<strong>da</strong>de.<br />

Nesse aspecto, ressaltamos a importante influência exerci<strong>da</strong><br />

pela ascensão do capitalismo no que diz respeito ao<br />

entendimento de bem-estar contemporâneo. Os padrões<br />

de beleza, padrões comportamentais, status social são<br />

alguns dos predicativos que diariamente são impostos<br />

pela mídia, por exemplo, e sobre os quais se fun<strong>da</strong>menta<br />

a condição de se ter ou não bem-estar. Podemos observar<br />

também que para se atingir tais projetos impostos<br />

como necessários ao bem-estar, há a necessi<strong>da</strong>de de se<br />

consumir produtos para esses fins. A valorização do homem,<br />

então, diz respeito à capaci<strong>da</strong>de de consumo que<br />

ele apresenta, e não <strong>da</strong>quilo que o constitui enquanto Ser.<br />

Nesse contexto e no senso comum, o psicólogo se insere<br />

como alguém capaz de modificar os comportamentos<br />

vistos como “não saudáveis”, proporcionando assim<br />

o bem-estar ao seu cliente. Mais que isso, quiçá, por algumas<br />

pessoas, considerado como o único capaz de tal<br />

mu<strong>da</strong>nça, pelo fato de possuir conhecimento relativo ao<br />

homem enquanto processo e suas diferentes formas de<br />

compreensão do mundo.<br />

Em 2008, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná<br />

(CRP 08) contemplou a edição n. 57 <strong>da</strong> revista Contato<br />

com a temática Quali<strong>da</strong>de de Vi<strong>da</strong>, enfocando as contribuições<br />

<strong>da</strong> Psicologia para se alcançar esse bem-estar tão<br />

almejado pelo homem. Uma <strong>da</strong>s reportagens foi direciona<strong>da</strong><br />

à profissionais envolvidos com a prática <strong>da</strong> Psicologia<br />

em um contexto ambiental, que denunciaram os resultados<br />

<strong>da</strong>nosos <strong>da</strong>s ações do homem sobre a natureza, que<br />

afetam sobremaneira sua quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong>. Diante o que<br />

é construído por esta relação dialética homem-mundo,<br />

por meio <strong>da</strong> qual o homem sente a contra-finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

matéria, ou seja, o homem se vê controlado por sua criação,<br />

cabe aqui uma análise.<br />

A expressão ‘Em-si’ na teoria sartreana se refere ao<br />

Ser, ou seja, tudo aquilo que é, estanque, fechado. Dito<br />

de outra forma: encontra-se fora <strong>da</strong> pessoa, não mantém<br />

relação nem consigo nem com outro Ser, é o universo <strong>da</strong>s<br />

coisas materiais. Em contraparti<strong>da</strong> o ‘Para-si’ é o pleno<br />

vazio, o na<strong>da</strong>. É a consciência (Para-si) que faz reconhecermo-nos<br />

como Ser (Em-si) (Perdigão, 1995).<br />

A relação dialética ‘Para-si’ e ‘Em-si’ na<strong>da</strong> mais é que<br />

a relação entre a consciência e o mundo. Já disse Sartre<br />

(1943/1997, p. 131) que “o homem é um para-si-em-si”, uma<br />

vez que ontologicamente o homem é o na<strong>da</strong>, o vazio que<br />

será preenchido por algo, tornando-se momentaneamente<br />

um ‘Em-si’ na relação com o mundo (Para-si-Em-si).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012<br />

Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas<br />

O único fun<strong>da</strong>mento concreto <strong>da</strong> dialética histórica é<br />

a estrutura dialética <strong>da</strong> ação individual. E, na medi<strong>da</strong><br />

em que podemos abstrair, por um instante, essa ação<br />

do meio social onde, de fato, está submersa, surpreendemos<br />

nela um desenvolvimento completo <strong>da</strong> inteligibili<strong>da</strong>de<br />

dialética como lógica <strong>da</strong> totalização prática<br />

e <strong>da</strong> temporalização real (Sartre, 1960/2002, p. 328).<br />

Portanto, a prática clínica na<strong>da</strong> mais é que um olhar<br />

desse homem na sociabili<strong>da</strong>de (relações), limitado por<br />

aquilo que é instituído por essas mesmas relações, ou<br />

seja, o social será o produto dessas relações, como, por<br />

exemplo, as normas, as leis, as teorias e as políticas. Sendo<br />

produto, o social é a antítese do individuo e seu projeto de<br />

Ser também será construído a partir desta relação, como<br />

interioriza esse social e como age sobre ele.<br />

Por ser falta e por estar inseri<strong>da</strong> no mundo, a relação<br />

com as coisas e com os outros se dá num movimento recíproco,<br />

que remete o homem ao reconhecimento de si<br />

próprio enquanto meio, tal como vê o outro, que se move<br />

em direção a um fim. Essa relação é, ao mesmo tempo,<br />

mediadora e media<strong>da</strong> pela materiali<strong>da</strong>de. Um conjunto de<br />

homens e de coisas, segundo Bettoni e Andrade (2001), em<br />

meio a qual a práxis <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong>de atua para determinado<br />

fim a sobrevir sobre a reali<strong>da</strong>de. A somatória <strong>da</strong>s<br />

ações de vários sujeitos constitui um grupo que, mais tarde,<br />

irá demarcar e, de certa forma, exercer controle sobre a<br />

individuali<strong>da</strong>de expressa em prol dos objetivos coletivos.<br />

Podemos dizer que enquanto a reali<strong>da</strong>de coletiva se<br />

apresenta ao homem como algo imposto, esta é constituí<strong>da</strong><br />

também a partir de sua individuali<strong>da</strong>de. Sob esta<br />

lógica <strong>da</strong> dialética homem-mundo configura-se uma totalização-em-curso.<br />

Cabe então à consciência desvelar todo<br />

esse movimento dialético e retirá-lo <strong>da</strong> inércia, fazendo<br />

com que seja possível refletir sobre a trajetória <strong>da</strong>s coisas<br />

(Bettoni & Andrade, 2001).<br />

5. Ser Terapeuta Ideal<br />

No eixo <strong>da</strong> Fenomenologia-existencial, a construção<br />

do projeto de Ser terapeuta é também produto dessa dialética<br />

ontológica. Inicialmente, ao pensar nos objetivos <strong>da</strong><br />

educação como sendo o de fun<strong>da</strong>mentar uma identi<strong>da</strong>de<br />

ao homem, a formação acadêmica em Psicologia, assim<br />

como em qualquer outra área do conhecimento, traria<br />

em seu bojo uma atitude de má-fé ao tentar impor um<br />

Ser psicólogo ao Não-ser, como resposta frente ao na<strong>da</strong>.<br />

Segundo Danelon (2004), é como instituir uma essência<br />

antes <strong>da</strong> existência, a qual se constituirá mais tarde<br />

como reali<strong>da</strong>de interior do sujeito, servindo de referencial<br />

para que este elabore e concretize seus projetos, contrapondo-se<br />

assim a premissa básica do Existencialismo de<br />

que a existência precede a essência.<br />

O Ser ontológico do homem, ao pensar, pensa sempre<br />

em algo que, a partir <strong>da</strong>í, torna-se objeto captado por<br />

sua intencionali<strong>da</strong>de. Pensar em Ser psicoterapeuta im-<br />

140


Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes<br />

plicaria então, em projetar um Ser terapeuta, primeiramente<br />

idealizado.<br />

Já impregnados com conceitos do senso comum sobre<br />

o papel do terapeuta, o estu<strong>da</strong>nte inicia a graduação podendo<br />

ter alguns desses conceitos reforçados por paradigmas<br />

de uma formação que limitam a prática desse profissional<br />

somente ao contexto do consultório e que designam<br />

à figura do terapeuta características utópicas, como, por<br />

exemplo, a onipotência de detentor do poder de curar o<br />

outro. E é nesse aspecto que a educação pode assumir um<br />

caráter perverso ao propor um Ser para o homem que se<br />

projeta a partir do que foi instituído. Compromete-se assim,<br />

o princípio de intencionali<strong>da</strong>de também, que desse<br />

momento em diante impossibilita a abertura <strong>da</strong> consciência<br />

para o mundo, já que será parte de uma subjetivi<strong>da</strong>de<br />

que lhe foi instituí<strong>da</strong> anteriormente (Danelon, 2004).<br />

A formação, porém, tem o poder de caracterizar o sujeito.<br />

Concretizá-lo como um Ser-em-si, que poderia ser<br />

definido como subjetivi<strong>da</strong>de individual, não fosse o fato<br />

<strong>da</strong> consciência apresentar-se objetiva<strong>da</strong> de conceitos que<br />

foram pré-determinados (Danelon, 2004).<br />

A possibili<strong>da</strong>de de livrar o cliente do sofrimento e<br />

ser reconhecido como um bom profissional tende a incitar<br />

o terapeuta, pois esta possibili<strong>da</strong>de de ser lhe confere<br />

poder. Ideologicamente fixado em conceitos, como os<br />

padrões de saúde mental, quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong>, bem-estar,<br />

e condições sociais, por exemplo, disseminados na socie<strong>da</strong>de<br />

capitalista, o terapeuta iniciante pode se deter a<br />

uma pretensão de enquadrar o cliente em conceitos pré-<br />

-estabelecidos, de modo que se sinta capaz de mudá-lo e<br />

reinseri-lo tal como o meio exige.<br />

Diante o exposto, fica evidente uma intensa preocupação<br />

do estagiário-terapeuta iniciante, com o desempenho<br />

nos primeiros atendimentos psicoterapêuticos. Certo nível<br />

de ansie<strong>da</strong>de demonstra as incertezas do futuro com<br />

o cliente e <strong>da</strong> habili<strong>da</strong>de para estar realmente com ele.<br />

Sabido que o que se fizer pode causar um impacto no<br />

outro, é possível aceitar tais ansie<strong>da</strong>des como normais,<br />

embora uma ansie<strong>da</strong>de demasia<strong>da</strong> talvez acabe com to<strong>da</strong><br />

confiança que tenha em si próprio.<br />

O estagiário-terapeuta iniciante se encontra imerso<br />

em um mar de dúvi<strong>da</strong>s em relação ao que deverá ser<br />

dito e de que forma, e, apreensivo pelas coisas que acredita<br />

não poder dizer, pode conformar-se com o silêncio<br />

em alguns momentos ou mesmo quebra-lo inadequa<strong>da</strong>mente<br />

para livrar-se <strong>da</strong> angústia diante do vazio que se<br />

instaura na relação, que pensa poder se entendido pelo<br />

outro como uma impotência de sua parte. Nesse aspecto,<br />

a supervisão funciona como moderador dessa ansie<strong>da</strong>de<br />

e angústia por meio <strong>da</strong> orientação <strong>da</strong><strong>da</strong> por profissional<br />

que tenha experiência.<br />

A supervisão se dá com o uso de vivências, discussões,<br />

dramatização dos casos atendidos, estudo de material<br />

teórico e outras ativi<strong>da</strong>des com o objetivo de aju<strong>da</strong>r<br />

e avaliar o desenvolvimento do estagiário-terapeuta iniciante<br />

na sua prática. Isso se torna possível por meio <strong>da</strong><br />

reflexão, neste instiga<strong>da</strong>, sobre suas habili<strong>da</strong>des, assim<br />

141<br />

como suas limitações, que é levado a repensar a autoimagem,<br />

relações dentro do grupo e, paralelamente, seu<br />

crescimento pessoal (Távora, 2002).<br />

A prática idealiza<strong>da</strong> <strong>da</strong> psicoterapia estaria vincula<strong>da</strong><br />

a conciliação de uma metodologia científica aplica<strong>da</strong> em<br />

um contexto previsível, agindo de forma inquestionável<br />

sobre a motili<strong>da</strong>de que caracteriza a vi<strong>da</strong> humana. Como<br />

se o estagiário-terapeuta iniciante fosse detentor de uma<br />

receita que livrasse o cliente de todo seu sofrimento, levando-o<br />

a crer que a “cura” seria algo ofertado pelo primeiro,<br />

ao invés de considerar o processo terapêutico como uma<br />

caminha<strong>da</strong> para a conscientização e apropriação do projeto<br />

de Ser do e pelo cliente, que pode ser mantido ou não.<br />

Estagiários-terapeutas iniciantes tendem a antever seu<br />

encontro inicial com os clientes vivendo sentimentos ambivalentes.<br />

Aplicar na prática os conceitos teóricos-metodológicos<br />

aprendidos configura-se como uma <strong>da</strong>s maiores<br />

preocupações enquanto atuação. O anseio por intervir<br />

no momento que considera ser o certo, e de maneira que<br />

também acha ser a pertinente, acaba por vezes comprometendo<br />

a vivência <strong>da</strong>quilo que o cliente fala, no exato<br />

momento em que ele traz. O terapeuta fica preso a um<br />

modelo ideal de atuação e perde a singulari<strong>da</strong>de do processo,<br />

em seu âmbito vivencial <strong>da</strong> relação com o cliente.<br />

E por falar de singulari<strong>da</strong>de e de relação, dois outros<br />

aspectos podem também ser compreendidos de maneira<br />

errônea pelo estagiário-terapeuta iniciante: (1) a questão<br />

<strong>da</strong> individuali<strong>da</strong>de do indivíduo ser compreendi<strong>da</strong> de<br />

maneira descontextualiza<strong>da</strong> do social e (2) a não consideração<br />

<strong>da</strong> relação dialética no próprio setting terapêutico.<br />

Sendo aspectos que se imbricam, a individuali<strong>da</strong>de,<br />

tanto do cliente quanto do terapeuta, não está dissocia<strong>da</strong><br />

dos seus respectivos contextos coletivos. As vivências de<br />

ambos vêm carrega<strong>da</strong>s do que é instituído por um contexto<br />

maior por meio de suas relações extra setting. Sendo assim,<br />

a maneira como superam as contradições <strong>da</strong>s relações<br />

fora do setting influenciará a relação que travarão dentro<br />

deste, bem como transcenderão to<strong>da</strong>s as demais. Logo, nenhuma<br />

delas pode deixar de ser apreendi<strong>da</strong> e trabalha<strong>da</strong>.<br />

Outro aspecto importante a ser pontuado refere-se às<br />

atitudes de silêncio do cliente que, por vezes, são significa<strong>da</strong>s<br />

pelos estagiários-terapeutas iniciantes como uma<br />

barreira à intervenção psicoterápica. O silêncio do cliente<br />

é vivenciado pelo estagiário-terapeuta iniciante com um<br />

tempo interminável e não é incomum que este se sinta<br />

ameaçado a ponto de buscar algo contraproducente com o<br />

fim de quebrá-lo, livrando-se assim <strong>da</strong> angústia diante do<br />

vazio. Por remetê-los ao vazio, o silêncio passa a ser associado<br />

a uma impotência do estagiário-terapeuta iniciante<br />

que se sente na obrigatorie<strong>da</strong>de de interrompê-lo, dizendo<br />

coisas, por vezes desnecessárias, ou lançando mão de um<br />

inquérito com o único intuito de totalizar a lacuna que se<br />

estabelece no momento em que o cliente se cala, como já<br />

dissemos anteriormente. Entretanto, assim como qualquer<br />

outro comportamento, o silêncio, quando trabalhado em<br />

terapia, contribui para que o cliente obtenha consciência<br />

de si, servindo inclusive como recurso de intervenção<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

para o próprio psicoterapeuta, uma vez que pode assinalar<br />

ao cliente a maneira como escolhe li<strong>da</strong>r com o vazio.<br />

No entanto, é mister identificar a intenção do cliente<br />

por meio de sua atitude de silenciar-se, haja vista que<br />

o silêncio produtivo tem caráter reflexivo (Erthal, 1994).<br />

Contudo, este tipo de silêncio é menos mobilizador de<br />

angústia no estagiário-terapeuta iniciante, pelo fato de o<br />

cliente, em sua atitude reflexiva, estar voltado para si e<br />

não para o terapeuta. Diferente do silêncio estéril, que tem<br />

seu significado na evitação de algum assunto em específico<br />

que tenha incomo<strong>da</strong>do o cliente e/ou a dificul<strong>da</strong>de<br />

de tomar a iniciativa de falar, neste, o cliente demonstra<br />

com o comportamento de silenciar-se, outras atitudes geralmente<br />

não-verbais, que informam ao estagiário-terapeuta<br />

iniciante que este é quem deve quebrar o silêncio.<br />

Neste caso, suportar o silêncio passa a ser uma vivência<br />

um tanto ameaçadora, haja vista que, não responder ao<br />

apelo do cliente é intervir com uma negativa, e como se<br />

esta não fosse também uma intervenção.<br />

Quase sempre as intervenções iniciais ocorrem de maneira<br />

intranquila para o estagiário-terapeuta iniciante. Há<br />

uma tendência a sentir-se intimi<strong>da</strong>do e receoso, como se<br />

algo que pudesse dizer tivesse o poder de destruir o cliente<br />

de modo que ele nem retorne na sessão seguinte. Nesse<br />

sentido, evita-se falar sobre o que supõe ser desagradável<br />

para o cliente. Diante tal compreensão equivoca<strong>da</strong>, a atuação<br />

fica restrita a uma prática amena, amigável, porém,<br />

a real intenção é a de manter o controle <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de do<br />

cliente. Esta tentativa de controle remete à expectativa<br />

do estagiário-terapeuta iniciante em estar de acordo com<br />

as expectativas que supõe que o cliente tenha. Em outras<br />

palavras, a atuação fica vincula<strong>da</strong> à uma tentativa de não<br />

frustrar o cliente para não frustrar a si próprio. Alienado<br />

em sua liber<strong>da</strong>de, e em busca de retoma-la, o estagiário-<br />

-terapeuta iniciante tende a abster-se de uma possível confrontação<br />

com o cliente, tentando também transformar a<br />

liber<strong>da</strong>de deste último em algo alienável ao seu controle.<br />

Enfim, reverte o lugar de quem deve estar impotente.<br />

Outro contexto relacional em que o estagiário-terapeuta<br />

iniciante pode mostrar o seu ideal de Ser terapeuta<br />

é na relação com seu orientador. Assim como receia<br />

que sua atuação não seja reconheci<strong>da</strong> pelo cliente pelo<br />

modelo idealizado, o olhar do orientador também poderá<br />

ser percebido como uma ameaça ao seu projeto. Em ambas<br />

as relações que trava – com o cliente e com o orientador<br />

– o estagiário-terapeuta iniciante tenderá controlar<br />

a liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> consciência alheia. Contudo, na segun<strong>da</strong><br />

relação, caberá ao orientador a ajudá-lo a conscientizar-<br />

-se de seu projeto.<br />

Nesta trama dialética <strong>da</strong>s relações, para obter sucesso<br />

com a psicoterapia fenomenológico-existencial e com a<br />

orientação, todos – orientador, estagiário e cliente – devem<br />

se comprometer com suas escolhas: o orientador, com a<br />

de ensinar ao estagiário-terapeuta iniciante a desenvolver<br />

habili<strong>da</strong>des e competências para a aplicação <strong>da</strong> teoria e<br />

do método em questão, bem como encorajá-lo a desistir<br />

de idealizações e assim a arriscar-se, com isso o orienta-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012<br />

Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas<br />

dor também precisa se expor-se na relação; o estagiário-<br />

-terapeuta iniciante, com a sua escolha pela abor<strong>da</strong>gem<br />

e pelo tipo de prática, aprendendo na orientação pode<br />

transpor a experiência para com o seu cliente, mas deve<br />

arriscar-se em ambas as relações; e, finalmente, o cliente<br />

com a decisão de fazer terapia pode engajar-se com sua<br />

proposta, e assim apropriar-se de seu Projeto de Ser e com<br />

possíveis transcendências ao seu modo de Ser. Tais engajamentos<br />

provocarão mu<strong>da</strong>nças nas relações de todos.<br />

Considerações finais<br />

Aquele que almeja ser psicoterapeuta geralmente se<br />

enquadra em características tais como: o interesse pelas<br />

pessoas, a estabili<strong>da</strong>de emocional, a capaci<strong>da</strong>de de inspirar<br />

confiança nos outros, e principalmente, tolerância às<br />

mais diversas formas e estilos de vi<strong>da</strong> e crenças.<br />

Na contemporanei<strong>da</strong>de, exige-se ain<strong>da</strong> que esse terapeuta-iniciante<br />

desenvolva a condição de compreender e<br />

aceitar o seu Eu tanto quanto os outros. Assim, quando<br />

vão à prática os estu<strong>da</strong>ntes de Psicologia são submetidos<br />

à prova <strong>da</strong> sua capaci<strong>da</strong>de de integração e aplicação de<br />

tudo aquilo que aprenderam durante a formação acadêmica.<br />

Mesmo estando cientes <strong>da</strong> influência que os docentes<br />

exercem enquanto modelo de terapeuta, ignora-se<br />

a singulari<strong>da</strong>de do potencial individual ao tentar imitá-<br />

-los. Os recursos podem e devem ser usados, mas buscando<br />

sempre caminhos que sejam peculiares a ca<strong>da</strong> olhar.<br />

Ao longo dessa discussão, onde alguns paradigmas<br />

foram abor<strong>da</strong>dos e discutidos, ressaltamos que a formação<br />

científico-metodológica não é suficiente para garantir<br />

uma prática psicoterápica com êxito. A busca, não de<br />

ser um produto acabado, mas de permanecer aberto no<br />

sentido de vir-a-ser um profissional ca<strong>da</strong> vez mais preparado,<br />

é, entre outras, uma <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong>des mais importantes<br />

para a experiência de tornar-se psicoterapeuta.<br />

Esta experiência implica correr riscos, manifestar a coragem<br />

e a vontade de abandonar a segurança do conhecido<br />

para mergulhar no desconhecido, de onde possa emergir<br />

muitas possibili<strong>da</strong>des de Ser. Tais funções destina<strong>da</strong>s ao<br />

ser terapeuta ocultam, por sua vez, a condição humana,<br />

pois se precaver à manutenção <strong>da</strong>s expectativas de um papel<br />

estereotipado superpõe o indivíduo enquanto pessoa.<br />

Quando possível, deve-se questionar os conhecimentos<br />

adquiridos, uma vez que a vi<strong>da</strong> acadêmica é construí<strong>da</strong><br />

por pessoas e estas não detêm saberes absolutos.<br />

Teorias, métodos, instrumentos e recursos estão no mundo,<br />

logo passíveis de serem transcendidos. Seja qual foi<br />

o grau de embasamento teórico acadêmico e prático, o<br />

estagiário-terapeuta iniciante não deve sobrecarregar-se<br />

<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de ser perfeito. Os erros serão cometidos<br />

tanto por principiantes quanto pelos mais experientes,<br />

afinal, o cliente não é frágil a ponto de fa<strong>da</strong>r vossas vi<strong>da</strong>s<br />

aos nossos erros.<br />

Projetos idealizados não toleram frustrações, logo<br />

não abarcam limites, sendo assim, não colocar limites ao<br />

142


Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes<br />

cliente, aju<strong>da</strong>ndo-o a se conscientizar sobre seu Projeto<br />

de Ser, é também não querer reconhecer os limites de seu<br />

próprio projeto de Ser terapeuta.<br />

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Jéssica Paula Silva Mendes - Discente do curso de Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Paranaense (UNIPAR). E-mail: tata_jotape@hotmail.com<br />

Sionara Karina Alves de Brito Gressler - Discente do curso de Psicologia<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Paranaense (UNIPAR). E-mail: sionaragressler@<br />

hotmail.com<br />

Sylvia Mara Pires de Freitas - Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e<br />

<strong>da</strong> Personali<strong>da</strong>de pela Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica do Rio Grande<br />

do Sul (PUC/RS). Especialista em Psicologia do Trabalho pelo Centro<br />

Universitários Celso Lisboa (CEUCEL/RJ). Formação em Psicoterapia<br />

Existencial pelo Núcleo de Psicoterapia Vivencial (NPV/RJ). Docente e<br />

Orientadora de Estágio em Psicologia Clínica e de Grupo, na abor<strong>da</strong>gem<br />

Fenomenológico-Existencial e Co-coordenadora do Curso de Especialização<br />

em Psicologia Fenomenológico-Existencial <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Paranaense - UNIPAR/Umuarama - Paraná. Docente-orientadora de<br />

Estágio em Psicologia do Trabalho, na Universi<strong>da</strong>de Estadual de Maringá<br />

(UEM/PR). Endereço Institucional: Av. Mascarenhas de Moraes, s/n.<br />

Universi<strong>da</strong>de Paranaense, Campus sede Umuarama, Paraná - Colegiado<br />

do curso de Psicologia. E-mail: sylviamara@gmail.com.<br />

Recebido em 03.07.11<br />

Aceito em 12.03.12<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012<br />

Marta H. Freitas; Rita C. Araújo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins<br />

OS SENTIDOS DO SENTIDO: UMA LEITURA fENOMENOLÓGICA<br />

Los Sentidos del Sentido: Una Lectura Fenomenologica<br />

The Meanings of Meaning: A Phenomenological Reading<br />

MArtA HelenA de FreitAs<br />

ritA de cássiA ArAúJo<br />

FiliPe stArlinG loureiro FrAncA<br />

ondinA PenA PereirA<br />

FrAncisco MArtins<br />

Resumo: Neste artigo, procedemos a uma leitura fenomenológica <strong>da</strong> noção de sentido e suas múltiplas significações. Partindo<br />

de uma primeira visa<strong>da</strong> às definições apresenta<strong>da</strong>s ao termo nos verbetes dos dicionários comuns, tal multiplici<strong>da</strong>de de significações<br />

é discuti<strong>da</strong> à luz do conceito husserliano de “intencionali<strong>da</strong>de” e compreendi<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> proposta merleau-pontyana<br />

de “reabilitação do sensível”. Retomamos, então, o termo sentido desde suas acepções físicas e sensoriais até aquelas de cunho<br />

idealizado, relacional e teleológico, considerando-as como um conjunto expresso num único termo e que aponta para uma vi<strong>da</strong><br />

consciente basea<strong>da</strong> no campo <strong>da</strong> experiência corporal pré-predicativa desdobrando-se em experiência reflexiva, intersubjetiva<br />

e transcendental. Desta forma, o vocábulo sentido mostra-se como uma espécie de multiplici<strong>da</strong>de unifica<strong>da</strong> e, por isso, considerado<br />

como que paradigmático: pura “mostração” do processo perceptivo, diante do qual se tem a contradição-continui<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> imanência (o <strong>da</strong>do imediatamente) e <strong>da</strong> transcendência (o que vai além do imediatamente <strong>da</strong>do). Discutimos as implicações<br />

desse entendimento para uma psicologia que se queira eficaz no seu processo de compreender a experiência humana fun<strong>da</strong>mental<br />

em sua inserção no mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Palavras-chave: Sentido; Fenomenologia; Intencionali<strong>da</strong>de; Husserl; Merleau-Ponty.<br />

Abstract: In this article we carried out a phenomenological reading of the notion of meaning and its multiple meanings. Starting<br />

from an initial target to the definitions provided in the dictionaries term, such a multiplicity of meanings is discussed in light<br />

of the Husserlian concept of “intentionality” and understood from the Merleau-Ponty propose about “rehabilitation of the sensible.”<br />

Getting back the term direction from its physical and sensory meanings to those of idealized nature, relational and teleological,<br />

considering them as a whole expressed in a single term and points to a conscious life based in the field of body experience<br />

prepredicative unfolding in reflective experience, intersubjective and transcendental. Thus, the word order shows up as a<br />

kind of multiplicity unified and, therefore, considered that paradigm: pure “showing” the perceptual process, before which one<br />

has the contradiction-continuity of immanence (the immediately <strong>da</strong>ta) and transcendence (what goes beyond the immediately<br />

given). We discuss the implications of this understanding to a psychology that is effective in the process of understanding the<br />

fun<strong>da</strong>mental human experience inserted in the living world.<br />

Keywords: Meaning; Phenomenology; Intentionality; Husserl; Merleau-Ponty.<br />

Resumen: En este texto, llevamos a cabo una lectura fenomenológica del concepto sentido y sus múltiples significados. Partiendo<br />

de un primero enfoque sobre las definiciones del término en los artículos de los diccionarios comunes, la multiplici<strong>da</strong>d de significados<br />

es examina<strong>da</strong> a la luz de la noción intencionali<strong>da</strong>d en Husserl y comprendi<strong>da</strong> desde la propuesta de “rehabilitación de<br />

lo sensible” de Merleau-Ponty. Tomamos entonces el sentido del término desde sus significados sensoriales y físicos a los de naturaleza<br />

idealiza<strong>da</strong>, teleológico y relacional, considerándolos como un conjunto que se expresa en un solo término y que apunta<br />

a una vi<strong>da</strong> consciente fun<strong>da</strong><strong>da</strong> en el terreno de la experiencia pre-predicativa del cuerpo, con desdoblamientos en los terrenos<br />

reflexivo, intersubjetivo y trascendental. De esta manera, el sentido de la palabra se muestra como una especie de multiplici<strong>da</strong>d<br />

unificado y por lo tanto, lo consideramos paradigmático: es una demonstración del proceso perceptual, en lo cual tenemos la<br />

contradicción-continui<strong>da</strong>d de la inmanencia (lo inmediatamente <strong>da</strong>do) y la trascendencia (que va más allá de lo que se <strong>da</strong> de<br />

modo inmediato). Analizaremos las implicaciones de este entendimiento para una psicología que quisiera ser eficaz en su proceso<br />

de comprensión de la experiencia humana fun<strong>da</strong>mental inserta<strong>da</strong> en el mundo de la vi<strong>da</strong>.<br />

Palabras-clave: Dirección; Fenomenología; Intencionali<strong>da</strong>d; Husserl; Merleau-Ponty.<br />

“De tudo o que vivo, enquanto o vivo,<br />

tenho diante de mim o sentido,<br />

sem o que não o viveria.”<br />

Merleau-Ponty, A Fenomenologia <strong>da</strong> Percepção<br />

(1945/1999, p. 41)<br />

“Porque o único sentido oculto <strong>da</strong>s cousas<br />

é elas não terem sentido oculto.”<br />

Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro.<br />

144


Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica<br />

Introdução<br />

É no mínimo curioso como certas palavras nos soam<br />

como feixes de nomes, tal a multiplici<strong>da</strong>de de sentidos a<br />

que nos remetem. É este o caso do próprio vocábulo sentido.<br />

Qualquer bom dicionário o confirma. Mas, é no mundo<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que o sentimos, cotidianamente. Falamos então<br />

dos órgãos do sentido, do sentido de um rio, do sentido<br />

desperto, do sentido tessitura, do sentido de uma palavra,<br />

frase ou texto, do olhar sentido, do amor sentido, <strong>da</strong><br />

dor senti<strong>da</strong>, do coração sentido (ou ressentido), do sexto<br />

sentido, <strong>da</strong> fé senti<strong>da</strong>, do sentido <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, do verbo sentir...<br />

E um novelo de sentidos se desfia.<br />

Talvez sejam exatamente os sentidos intrínsecos à<br />

polissemia do termo “sentido” que o façam tão caro e especial<br />

à psicologia, sobretudo quando esta toma como<br />

seu objeto a experiência humana em sua plena vitali<strong>da</strong>de.<br />

Se tal vitali<strong>da</strong>de já foi muitas vezes evita<strong>da</strong>, nega<strong>da</strong><br />

e marginaliza<strong>da</strong> na história desta mesma ciência, em<br />

nome de um certo tipo de rigor conceitual e metodológico<br />

que preferiu empregar vocábulos menos sujeitos a<br />

tantas ambigui<strong>da</strong>des, ela tem sido frequentemente resgata<strong>da</strong><br />

ultimamente, e de várias maneiras. De fato, talvez<br />

o termo sentido nunca tenha estado tão em voga na psicologia,<br />

como em suas versões contemporâneas. Fala-se<br />

em “sentido do sintoma”, “resgate de sentido”, “busca de<br />

sentido”, “construção de sentido”, “núcleos de sentido”,<br />

“representações do sentido”, “sistema de sentidos”, “vontade<br />

de sentido”, “necessi<strong>da</strong>de de sentido”, “encontro (ou<br />

reencontro) de sentido”, “versão de sentido”, “fenomenologia<br />

do sentido”, para falar dos mais frequentes.<br />

Neste ensaio, porém, não pretendemos simplesmente<br />

apresentar mais uma abor<strong>da</strong>gem acerca do termo sentido.<br />

Ao contrário, em vez de apresentar mais uma concepção<br />

concorrente a tantas outras, nosso intuito é o de discutir<br />

justamente essa multiplici<strong>da</strong>de natural do termo e suas<br />

respectivas vinculações à riqueza <strong>da</strong> experiência fun<strong>da</strong>mental<br />

em causa. Evidentemente que seria tarefa hercúlea<br />

e, sobretudo, pretensiosa, propormos uma abor<strong>da</strong>gem<br />

integradora de to<strong>da</strong>s as demais já desenvolvi<strong>da</strong>s em<br />

torno <strong>da</strong> concepção de sentido. Entretanto, podemos, ao<br />

menos, dirigir um olhar mais integrador sobre a própria<br />

experiência humana, tal como nos ensina, por exemplo,<br />

a fenomenologia de Husserl (1859-1938) e de Merleau-<br />

Ponty (1908-1961). Esse, então, o propósito do qual buscamos<br />

nos aproximar aqui: um exercício de apreensão<br />

fenomenológica dos sentidos do sentido e suas implicações<br />

para uma psicologia que se queira efetiva na abor<strong>da</strong>gem<br />

ao mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

1. Do Dicionário à Noção fenomenológica de Intencionali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> Consciência<br />

Um dicionário comum <strong>da</strong> Língua Portuguesa que<br />

apresenta, de modo exaustivo, a varie<strong>da</strong>de de significa-<br />

145<br />

dos do termo sentido, pode relacionar até muito mais de<br />

vinte itens. O dicionário eletrônico Priberan <strong>da</strong> Língua<br />

Portuguesa (2010), por exemplo, apresenta 14 significados<br />

para o termo “sentido”, no singular, número que se<br />

eleva para 18, quando o termo é empregado no plural –<br />

“sentidos”, e para 28 (!) quando se refere à conjugação<br />

do verbo “sentir”. Considerando-se nosso intuito de realizar<br />

aqui uma espécie de “exegese” fenomenológica do<br />

termo, reproduziremos integralmente os três verbetes,<br />

conforme a seguir:<br />

“Sentido: adj. 1. Ressentido; melindrado; magoado.<br />

2. Sensível; susceptível; que se ofende facilmente.<br />

3. Contristado; pesaroso; triste. 4. Lamentoso; plangente.<br />

s. m. 5. Facul<strong>da</strong>de que têm o homem e os animais<br />

de receber as impressões dos objectos exteriores.<br />

6. Razão, bom senso. 7. Intento, mira, pensamento.<br />

8. Atenção, cui<strong>da</strong>do. 9. Memória, cabeça. 10. Lado de<br />

uma coisa, direcção. 11. Significação. 12. Acepção.<br />

13. Espírito, pensamento. 14. Modo, aspecto, ponto<br />

de vista, maneira de considerar ou de distinguir.<br />

Sentidos: s. m. pl. 15. Conjunto <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des para<br />

a percepção dos objectos exteriores. 16. Conjunto<br />

<strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des intelectuais. = rAciocÍnio 17. Voluptuosi<strong>da</strong>de,<br />

prazer, sensuali<strong>da</strong>de, concupiscência.<br />

interj. 18. Expressão usa<strong>da</strong> para pedir concentração ou<br />

cui<strong>da</strong>do em relação a algo. = AtenÇÃo, cuidAdo<br />

com os cinco sentidos: com todo o cui<strong>da</strong>do, como é<br />

devido. sentido proibido: sentido contrário ao sentido<br />

normal de uma faixa de ro<strong>da</strong>gem. = contrAMÃo.<br />

Sexto sentido: intuição.<br />

Sentir - Conjugar (latim sentio, -ire, perceber pelos<br />

sentidos, perceber, pensar) v. tr. 1. Perceber por um dos<br />

sentidos; ter como sensação. 2. Perceber o que se passa<br />

em si; ter como sentimento. = eXPeriMentAr.<br />

3. Ser sensível a; ser impressionado por. 4. Estar convencido<br />

ou persuadido de. = AcHAr, considerAr,<br />

JulGAr, PensAr. 5. Ter determina<strong>da</strong> opinião ou<br />

maneira de pensar sobre (algo ou alguém). = AcHAr,<br />

considerAr, JulGAr, rePutAr. 6. Conhecer,<br />

notar, reconhecer. 7. Supor com certos fun<strong>da</strong>mentos.<br />

= conJecturAr =, Prever. 8. Aperceber-se de,<br />

<strong>da</strong>r fé ou notícia de. = Perceber. 9. Ter a consciência<br />

de. = Perceber. 10. Compreender, certificar-se de.<br />

11. Adivinhar, pressagiar, pressentir. 12. Conhecer por<br />

certos indícios. = Pressentir 13. Ouvir indistintamente.<br />

= entreouvi. 14. Experimentar mu<strong>da</strong>nça<br />

ou alteração física ou moral por causa de. = ressentir.<br />

15. Sofrer as consequências de. 16. Sentir<br />

tristeza ou constrangimento em relação a; afligir-se<br />

por. = lAMentAr. 17. Ressentir-se, melindrar-se<br />

ou ofender-se com (algo). 18. [Belas-artes] Ter o<br />

sentimento estético. 19. [Belas-artes] Saber traduzir<br />

por meio <strong>da</strong> arte. v. intr. 20. Ter a facul<strong>da</strong>de de sentir.<br />

21. Ter sensibili<strong>da</strong>de; ter alma sensível. 22. Sofrer. v. pron.<br />

23. Experimentar um sentimento ou uma sensação.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

24. Ter a consciência de algum fenómeno ou do que<br />

se passa no interior de si mesmo. = reconHecer-<br />

-se. 25. Apreciar o seu estado físico ou moral. =<br />

crer-se, iMAGinAr-se, JulGAr-se, rePutAr-<br />

-se. 26. Tomar algo como ofensa. = MelindrAr-se,<br />

oFender-se, ressentir-se s. m. 27. Sentimento,<br />

sensibili<strong>da</strong>de. 28. Maneira de pensar ou de ver. =<br />

oPiniÃo, entender, PArecer”.<br />

Essa varie<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> não esgota todos os significados<br />

possíveis do termo sentido, o que pode ser verificado<br />

quando se compara com outro verbete correspondente ao<br />

mesmo termo em outro dicionário, como por exemplo o<br />

Dicionário On Line Michaelis – Moderno Dicionário <strong>da</strong><br />

Língua Portuguesa (1998/2009), que convi<strong>da</strong>mos o leitor<br />

a buscar, pois sua reprodução, como de tantos outros, tomaria<br />

muito espaço nos limites deste ensaio.<br />

O que é interessante observar de saí<strong>da</strong> é que, dentre<br />

as diferentes acepções do termo, existem aquelas que remetem<br />

às funções biológicas, como os órgãos dos sentidos,<br />

por exemplo, mas também muitas outras – a maioria,<br />

inclusive – que nos remetem às chama<strong>da</strong>s “funções<br />

psíquicas”, classicamente descritas pela psicologia em<br />

seus diferentes níveis. Assim, podemos identificar, dentre<br />

os vários significados relacionados no verbete, desde<br />

aqueles que remetem às chama<strong>da</strong>s “funções básicas”,<br />

mais diretamente vincula<strong>da</strong>s ao corpo – como a sensação<br />

e a percepção, passando pelas relaciona<strong>da</strong>s às chama<strong>da</strong>s<br />

“funções intermediárias” – humor, afeto e sensibili<strong>da</strong>de,<br />

culminando nas que se associam às chama<strong>da</strong>s<br />

“funções superiores” – memória, consciência, sentimento,<br />

linguagem, pensamento e juízo. Por outro lado, se a<br />

maioria dos significados elencados nos verbetes podem<br />

ser relacionados a estes diferentes níveis do psiquismo,<br />

os quais, no seu conjunto, podemos chamar de “subjetivi<strong>da</strong>de”,<br />

notemos também que alguns deles remetem a algo<br />

que a ultrapassa, seja por fazer referência à física (sentido<br />

enquanto lado de uma coisa, ou enquanto rumo ou<br />

direção de uma linha, força ou movimento) ou à cultura<br />

(sentido enquanto voz de comando e respectiva posição<br />

<strong>da</strong> tropa no contexto militar).<br />

Ora, se as definições dos dicionários comuns buscam<br />

relacionar justamente os diferentes significados dos termos<br />

conforme o seu emprego cotidiano, num <strong>da</strong>do contexto<br />

linguístico e cultural, podemos compreender essa<br />

multiplici<strong>da</strong>de de aspectos relacionados ao termo sentido<br />

como ilustrando justamente aquilo que ocorre com a<br />

nossa consciência no mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> (Lebenswelt). Sendo<br />

assim, o termo sentido, no contexto <strong>da</strong>s línguas latinas,<br />

parece-nos paradigmático por evidenciar aquilo que<br />

Husserl (1931/2001, p. 48), inspirado em Brentano (1838-<br />

1917), chamou de “intencionali<strong>da</strong>de” <strong>da</strong> consciência:<br />

“particulari<strong>da</strong>de intrínseca e geral que a consciência tem<br />

de ser consciência de qualquer coisa, de trazer, na sua<br />

quali<strong>da</strong>de de cogito, o seu cogitatum em si próprio” (grifo<br />

nosso). Essa multiplici<strong>da</strong>de intrínseca ao termo sentido –<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012<br />

Marta H. Freitas; Rita C. Araújo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins<br />

que remete, simultaneamente, a concepções <strong>da</strong> física, <strong>da</strong><br />

fisiologia, do psiquismo e <strong>da</strong> cultura – confirma a já tão<br />

denuncia<strong>da</strong> falsa dicotomia estabeleci<strong>da</strong> pelo pensamento<br />

moderno através <strong>da</strong>s distinções entre cogito e cogitatum,<br />

entre mundo exterior e mundo interior, entre objetivi<strong>da</strong>de<br />

e subjetivi<strong>da</strong>de, entre natureza e sensibili<strong>da</strong>de.<br />

Por outro lado, curiosamente, podemos verificar também<br />

que, em geral, os sentidos do termo sentido estão intrinsicamente<br />

relacionados à própria noção fenomenológica<br />

de intencionali<strong>da</strong>de. Senão, vejamos. Esta noção está<br />

presente no conhecimento desde o neoplatonismo árabe,<br />

passando por Santo Tomás e Ockhman, no mundo medieval,<br />

tendo sido recupera<strong>da</strong> modernamente por Brentano<br />

(1838-1917), e posteriormente retoma<strong>da</strong> por Husserl (1859-<br />

1938), justamente por reconhecerem que só tem sentido<br />

falar de consciência enquanto consciência de algo, ou<br />

seja: a intencionali<strong>da</strong>de representa justamente o direcionamento<br />

<strong>da</strong> consciência em relação ao objeto, e vice-versa,<br />

o modo como tal objeto se apresenta à consciência. Como<br />

tal, a intencionali<strong>da</strong>de remonta a um contíguo mental em<br />

movimento ininterrupto em direção ao mundo. Por esse<br />

motivo, não faz sentido pensá-la como instância de conteúdos<br />

mentais fechados e estagnados. Deste modo, to<strong>da</strong><br />

vez que se tenta descrever as proprie<strong>da</strong>des restritas ao<br />

objeto a que ela se dirige, às suas próprias proprie<strong>da</strong>des<br />

enquanto instância, estamos diante de um estado vivido<br />

com certa duração, portanto como uma espécie de registro<br />

temporal de determinado ponto onde o seu movimento,<br />

constantemente pendular, se situa naquela ocasião. Nesta<br />

sua contínua relação com o objeto, a consciência se realiza<br />

em intuições originárias, ou seja, ao modo como os<br />

fenômenos lhe aparecem. Assim, embora os fenômenos<br />

possuam uma multiplici<strong>da</strong>de de aspectos, eles aparecem<br />

à consciência como uma uni<strong>da</strong>de idêntica a ela mesma,<br />

pois esta mesma consciência “tem a capaci<strong>da</strong>de de ligar<br />

os aspectos ou estados vividos a outros por meio <strong>da</strong> síntese”<br />

(Silva, 2009, p. 45). Poderíamos dizer, então, que<br />

as diferentes noções de sentido são o testemunho desse<br />

movimento, evidenciando que, no mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o fenômeno<br />

só existe em ato: suas proprie<strong>da</strong>des não são restritas<br />

ao objeto em si mesmo, mas só existem em função<br />

<strong>da</strong>quele que o observa e, nessa visa<strong>da</strong>, lhe atribui sentido.<br />

Considerando-se o exposto, qualquer tentativa de encontrar<br />

uma possível “essência” (Wesenshau) <strong>da</strong> noção<br />

de sentido só pode ser alcança<strong>da</strong> a partir e de dentro do<br />

próprio mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> (Lebenswelt). Conforme nos ensina<br />

Merleau-Ponty (1951/1973, p. 50), “é no curso de uma<br />

história sedimenta<strong>da</strong> que se dá uma “gênese de sentido”<br />

(Sinngenesis). No intuito de aprofun<strong>da</strong>rmos essa compreensão<br />

de uma espécie de fio ontológico que ata a diversi<strong>da</strong>de<br />

na uni<strong>da</strong>de – o sentido dos sentidos – procuraremos<br />

explorar em mais detalhes, no próximo subitem deste<br />

ensaio, as suas diversas nuanças, desde sua concepção<br />

enquanto corporei<strong>da</strong>de, passando pela noção de sensibili<strong>da</strong>de<br />

e mentali<strong>da</strong>de, até sua concepção propriamente<br />

teleológica. E, para tanto, caminharemos nas trilhas <strong>da</strong><br />

146


Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica<br />

reabilitação do sensível, proposta por Merleau-Ponty, em<br />

especial em sua Fenomenologia <strong>da</strong> Percepção (Merleau-<br />

Ponty, 1945/1999).<br />

2. Da Corporei<strong>da</strong>de à Transcendência<br />

Se considerarmos a noção de sentido segundo sua<br />

acepção meramente fisiológica, em referência aos órgãos<br />

receptores que nos trazem impressões sobre os objetos<br />

externos, estes são “considerados responsáveis pelos diferentes<br />

tipos de sensação que percebemos” (Japiassu &<br />

Marcondes, 1996, p. 245). Desta perspectiva, o conceito<br />

de sentido relaciona-se, então, à função sensorial do corpo<br />

humano e é considerado porta aos estímulos do mundo<br />

externo: a sensação é considera<strong>da</strong> aqui a base para a<br />

percepção e para o conhecimento. Sentido, aqui, seria então<br />

o fenômeno psicológico causado pela estimulação do<br />

nosso organismo. Segundo esta mesma acepção de sentido,<br />

as sensações podem ser classifica<strong>da</strong>s em externas<br />

ou sensoriais (as que provêm dos órgãos dos sentidos) e<br />

internas ou orgânicas (que provêm do interior do nosso<br />

organismo e são conheci<strong>da</strong>s como sinestesia). Esta última,<br />

então, remete à consciência corporal <strong>da</strong>s próprias funções<br />

orgânicas, ou consciência de corporei<strong>da</strong>de.<br />

A fenomenologia de Merleau-Ponty veio demonstrar,<br />

entretanto, que a delimitação entre sentido externo<br />

e sentido interno é grosseira. Como afirma o<br />

filósofo (Merleau-Ponty, 1945/1999), embora seja possível<br />

identificar funcionalmente ca<strong>da</strong> órgão do sentido de<br />

modo isolado, é impossível reduzir o corpo em partes independentes<br />

e de modo desconectado. Deste modo,<br />

“os sentidos traduzem-se uns nos outros sem precisar de<br />

um intérprete”, como diz Sokolowski (2010, p. 137):<br />

147<br />

Os vários sentidos efetivam identi<strong>da</strong>des através <strong>da</strong><br />

sinestesia, do reconhecimento de um único objeto<br />

<strong>da</strong>do pelos vários sentidos distribuídos em to<strong>da</strong> parte<br />

de nosso corpo próprio. Essas varie<strong>da</strong>des de partes<br />

sensíveis, noéticas e noemáticas, servem como uma<br />

multiplici<strong>da</strong>de através <strong>da</strong> qual objetos vêm a ser identificados<br />

de mais e mais perspectivas: a árvore é vista,<br />

ouvi<strong>da</strong> (no vento), toca<strong>da</strong>, cheira<strong>da</strong>; caminhamos em<br />

volta e subimos nela; po<strong>da</strong>mos seus ramos e rompemos<br />

pe<strong>da</strong>ços de casca morta; e em tudo isso uma e a<br />

mesma árvore é registra<strong>da</strong> em sua identi<strong>da</strong>de e suas<br />

muitas características.<br />

Assim, em relação ao sentido enquanto sensação,<br />

observa-se que ninguém diz que “sente” quando usa os<br />

sentidos fisiológicos. Em vez disso, há uma apropriação<br />

<strong>da</strong>s quali<strong>da</strong>des aos seres mais amplos e complexos<br />

do que a sensação isola<strong>da</strong> de sua quali<strong>da</strong>de como parte<br />

integrante. E então, ao invés de dizermos que sentimos<br />

o frio, vemos o verde e engolimos o doce, dizemos que<br />

a água está fria, a mata é verde e que a fruta está doce.<br />

Da mesma forma, todos os seres humanos têm os órgãos<br />

dos sentidos similares, mas o modo como suas capaci<strong>da</strong>des<br />

são usa<strong>da</strong>s e desenvolvi<strong>da</strong>s tornam-se únicas. Ca<strong>da</strong><br />

um de nós sentimos e percebemos o mundo de uma maneira<br />

peculiar, pois isso envolve a própria história, a própria<br />

cultura e as crenças que advêm <strong>da</strong> nossa experiência<br />

subjetiva e intersubjetiva.<br />

Por outro lado, é através do registro dos atos dos cinco<br />

sentidos que podemos dizer que temos um corpo. Para<br />

Husserl (1935/2008, p. 42), “homens e bichos não são<br />

simples corpos”, mas o corpo é por excelência o meio de<br />

acesso ao mundo e de to<strong>da</strong> a experiência vivencial possível.<br />

Ou, para falarmos nos termos de Merleau-Ponty<br />

(1945/1999), o corpo “dissolve-se” neste mundo: ele é reconhecido<br />

como fun<strong>da</strong>mento último de todos os processos<br />

de vivência. E assim, quando, em fenomenologia, nos<br />

referimos a corpo, não queremos fazer referência apenas à<br />

matéria (Körper), mas ao corpo animado (Leib). Deste<br />

modo, não é preciso refletir sobre os limites do próprio<br />

corpo, a todo o momento, mas se tem consciência dele.<br />

O corpo sintetiza a ambigui<strong>da</strong>de (imanência/transcendência)<br />

do ser no mundo. Na visão de Merleau-Ponty<br />

(1945/1999, p. 207-208), a imanência e a transcendência<br />

são dois elementos estruturais de qualquer<br />

ato perceptivo: “eu não estou diante de meu corpo, estou<br />

em meu corpo, ou antes, sou meu corpo”.<br />

Ora, a concepção de uma corporei<strong>da</strong>de nos remete à<br />

noção de sentido também enquanto facul<strong>da</strong>de para a percepção<br />

dos objetos exteriores e interiores. No modelo <strong>da</strong><br />

psicologia clássica, considera-se que a passagem do sentido-sensação<br />

para o sentido-percepção é realiza<strong>da</strong> pela<br />

capaci<strong>da</strong>de intelectual do sujeito do conhecimento que<br />

organiza e dá sentido às sensações. Mais uma vez, a fenomenologia<br />

leva à superação <strong>da</strong> dicotomia na concepção<br />

do mundo sensível: não se pode estabelecer diferenças<br />

entre sensação e percepção, pois nunca temos sensações<br />

em partes ou de modo pontual, sendo impossível identificarmos<br />

sensações separa<strong>da</strong>s de sua quali<strong>da</strong>de que, só<br />

depois, a mente uniria e organizaria como percepção de<br />

um objeto único. Na ver<strong>da</strong>de, nós sentimos e percebemos<br />

formas como totali<strong>da</strong>des estrutura<strong>da</strong>s e dota<strong>da</strong>s de significação<br />

e sentido (Chauí, 2003).<br />

Para a fenomenologia, então, a percepção constitui-se<br />

uma fusão de sujeito-mundo, uma vivência ver<strong>da</strong>deira de<br />

uma experiência simultaneamente imediata e anterior a<br />

uma reflexão, num hipotético e espontâneo acordo sujeito<br />

e mundo. A percepção é sempre a percepção de algo, e<br />

nesse ato tem-se não só o sujeito, mas também um objeto<br />

para ele. Assim, o sentido definido como capaci<strong>da</strong>de perceptiva<br />

é uma função cerebral que confere significado a<br />

estímulos sensoriais a partir <strong>da</strong> experiência de vi<strong>da</strong> ou<br />

<strong>da</strong> memória. E é, também, simultaneamente, ativi<strong>da</strong>de<br />

sensível, emotiva e cognitiva que organiza e interpreta<br />

as impressões sensoriais, de modo intrínseco à própria<br />

conexão cerebral de to<strong>da</strong>s elas para formar a percepção,<br />

utilizando-se <strong>da</strong> sinestesia, associação espontânea entre<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

sensações de natureza diferente, mas que se mostram intimamente<br />

liga<strong>da</strong>s, variando segundo o sujeito <strong>da</strong> percepção.<br />

Deste modo, para Merleau-Ponty (1945/1999, p. 68),<br />

“nenhuma análise <strong>da</strong> percepção poder ignorar a percepção<br />

como fenômeno original, sob pena de ignorar-se a si<br />

mesma enquanto análise”. Afinal, ela é a configuração e<br />

a organização de todos esses elementos que a mente integrou<br />

nas experiências passa<strong>da</strong>s, ligando e unificando-<br />

-as, escolhendo-as por meio dos fatores de significação<br />

<strong>da</strong> linguagem e <strong>da</strong> cultura de ca<strong>da</strong> um.<br />

Nas definições de dicionários <strong>da</strong> Língua Portuguesa,<br />

o termo sentido é também empregado para se referir ao<br />

“sentir em ato” (feeling), ou ain<strong>da</strong> ao sentimento (feeling<br />

of), como uma reação afetiva ao que já ocorreu e como<br />

significado substantivado experimentado em relação a diversos<br />

fenômenos na vi<strong>da</strong>, objetos, pessoas ou situações<br />

intelectuais ou morais. Aqui o termo é geralmente empregado<br />

para referir-se ao sentimento que se viveu. Em<br />

psicologia, é também considerado um estado afetivo geral,<br />

frequentemente relacionado por oposição ao conhecimento<br />

(Durozol, 1996) e como resultante de percepções<br />

sensoriais ou representações mentais. Segundo outra<br />

acepção, também comum em psicologia, sentido-<br />

-sentimento constitui-se numa espécie de emoção<br />

mais delica<strong>da</strong> e de maior duração, representando<br />

formas afetivas mais estáveis, e distinguindo-se <strong>da</strong><br />

emoção propriamente dita por ser revestido de um<br />

número maior de elementos intelectuais (Sousa,<br />

2006). Como veremos a seguir, de novo a fenomenologia<br />

vem mostrar ser artificial esta dicotomia.<br />

Para Merleau-Ponty, os sentimentos constituem uma<br />

linguagem, pois as formas de expressão dos sentimentos<br />

não são naturalmente <strong>da</strong><strong>da</strong>s. As manifestações dos sentimentos<br />

são varia<strong>da</strong>s e mas passam necessariamente<br />

pelo corpo. O próprio corpo é também o próprio ponto<br />

de vista sobre o mundo, o mediador entre a consciência<br />

e o mundo (Merleau-Ponty, 1945/1999). Portanto, todo<br />

ato físico terá um sentido interior. Todo sentimento terá<br />

sua contraparti<strong>da</strong> física e vice-versa: o homem considerado<br />

concretamente não é apenas um psiquismo unido a<br />

um organismo, mas uma constante oscilação <strong>da</strong> existência<br />

que ora é corporal e ora se dirige aos atos pessoais.<br />

Enfim, o corpo próprio não pode ser observado como a<br />

um objeto, pois meu corpo existe comigo (Merleau-Ponty,<br />

1945/1999). Sendo assim, o corpo próprio é, simultaneamente,<br />

o sujeito <strong>da</strong> sensação, <strong>da</strong> percepção, do sentimento<br />

e do pensamento.<br />

E aqui, então, nos deparamos com outra acepção de<br />

sentido comum nos dicionários: o sentido enquanto espírito,<br />

juízo e pensamento. Para Merleau-Ponty (1945/1999,<br />

p. 241), sentido-pensamento não se dá de modo dissociado<br />

de sentido-percepção: “A visão é um pensamento<br />

sujeito a um certo campo e é isso que chamamos<br />

de um sentido” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 292).<br />

Dito de outro modo, este pensamento está para esta<br />

visão e “no final <strong>da</strong>s contas, o cérebro e o olho talvez<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012<br />

Marta H. Freitas; Rita C. Araújo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins<br />

tenham uma relação contratual na qual o cérebro concor<strong>da</strong><br />

em acreditar no que os olhos veem, mas, por sua<br />

vez, o olho concor<strong>da</strong> em ver aquilo que o cérebro quer.”<br />

(Gilbert, 2006, p. 154) Da mesma forma, o sentido, enquanto<br />

pensamento, não se realiza separado do<br />

sentido-sentimento: “o sujeito pensante está ele próprio<br />

numa espécie de ignorância de seus pensamentos enquanto<br />

não os formulou ain<strong>da</strong> para si, ou mesmo não os<br />

disse ou escreveu.” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 241).<br />

E não se pode separar o sujeito pensante do sujeito “sentinte”.<br />

O sujeito “sentinte” está também numa espécie de<br />

ignorância ou inoperância de seus sentimentos, enquanto<br />

não os expressar. A expressão poderá ser pela fala e<br />

esta será uma fala primária quando falar o próprio sentimento.<br />

Deste modo, ao sentido de felici<strong>da</strong>de que alguém<br />

experimenta ao ouvir uma música, considera-se como<br />

uma sensação, mas ao estado agradável e de prazer que<br />

permanece nesta sensação é o que se torna sentimento.<br />

A sensação que obtemos ao ouvir a música é passiva, pois<br />

não passa por um processo ativo de apreensão. Já o sentimento<br />

depende <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> música e <strong>da</strong> observação<br />

<strong>da</strong> pessoa. A percepção do sentimento é um processo ativo<br />

e empírico de compreensão objetiva. Nas palavras de<br />

Merleau-Ponty (1945/1999, p. 178): “Os sentidos, e em geral,<br />

o corpo próprio apresentam o mistério de um conjunto<br />

que sem abandonar sua eccei<strong>da</strong>de e sua particulari<strong>da</strong>de,<br />

emite, para além de si mesmo, significações capazes de<br />

fornecer sua armação a to<strong>da</strong> uma série de pensamentos<br />

e de experiências.”<br />

Assim, para o filósofo, o corpo é forma de expressão,<br />

pleno de intencionali<strong>da</strong>de e poder de significação.<br />

Ca<strong>da</strong> movimento, ca<strong>da</strong> gesto produzido é também pleno<br />

de sentidos, e o sentido dos gestos não é apenas <strong>da</strong>do,<br />

mas sobretudo, compreendido: “O corpo próprio está no<br />

mundo assim como o coração no organismo; ele mantém<br />

o espetáculo visível continuamente em vi<strong>da</strong>, anima-o e<br />

alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema”<br />

(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 273). O caminho proposto<br />

é partir do corpo como mediador à via do sentido, que é<br />

também o caminho <strong>da</strong> pessoa, do afeto, do pensamento,<br />

<strong>da</strong> linguagem e <strong>da</strong> comunicação.<br />

A linguagem e a comunicação remetem-nos à acepção<br />

de sentido enquanto significado (meaning), termo também<br />

polissêmico, conforme se constata nos dicionários<br />

e no mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Assim, ele pode referir-se a uma<br />

categoria linguística ou a uma interpretação específica,<br />

neste caso como significação, com uma intenção ou um<br />

fim determinado. É empregado também para se referir à<br />

expressivi<strong>da</strong>de de uma palavra, sua aceitação, sua intenção,<br />

sua significação, seu conteúdo semântico ou lexical.<br />

Refere-se, ain<strong>da</strong>, tanto ao objetivo subjacente ou destinado<br />

pela ação, pela fala ou outro modo de expressão, enfim, ao<br />

conteúdo válido, como também à interpretação interna,<br />

simbólica ou real, o valor ou a mensagem do significado<br />

de algo, como por exemplo, de um sonho. Por último, o<br />

significado pode ser ain<strong>da</strong> a definição, a explicação,<br />

148


Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica<br />

a eluci<strong>da</strong>ção, a denotação discutindo sobre o significado<br />

exato <strong>da</strong> palavra, sua finali<strong>da</strong>de, seu objetivo<br />

final, a ideia, o projeto, o objeto, a intenção (Collins<br />

Thesaurus, 2003/2008). No campo específico <strong>da</strong> lexicologia<br />

e <strong>da</strong> linguística, entretanto, entende-se por sentido,<br />

enquanto significado, “ca<strong>da</strong> um dos significados de uma<br />

palavra ou locução; acepção” (Dicionário Houaiss). Aqui<br />

falamos do sentido como parte de um signo linguístico,<br />

como um significado bem definido, denotativo, ao modo<br />

de um conceito, já definido previamente, dicionarizado.<br />

Se as definições anteriores parecem remeter a uma<br />

desvinculação entre sentido enquanto sensoriali<strong>da</strong>de/percepção<br />

e sentido linguístico, <strong>da</strong>ndo a impressão de que<br />

a linguagem nos distancia do corpo próprio, ressalte-se<br />

que a fenomenologia compreende-a como sendo ain<strong>da</strong><br />

uma extensão dele. Para Husserl (1901/2000), a intencionali<strong>da</strong>de<br />

linguística categorial simplesmente humaniza<br />

a percepção, a recor<strong>da</strong>ção, a imaginação e as eleva a um<br />

nível mais racional, no qual o objeto é desdobrado diante<br />

de nós. Como tal, ela está relaciona<strong>da</strong> ao chamado ato<br />

perceptivo categorial, ou ideal, um nível terciário do processo<br />

contínuo de percepção, que se nos revela como uma<br />

fusão de atos parciais num único ato. Como esclarecem<br />

Castro, Castro e Castro (2009, p. 96)<br />

149<br />

(...) no ato perceptivo categorial desdobramos o objeto<br />

diante de nós, destacamos as partes, estabelecemos<br />

relações entre estas partes destaca<strong>da</strong>s, sejam relações<br />

de uma com a outra, sejam relações <strong>da</strong>s partes com o<br />

todo, e por meio dessa percepção, dessa nova maneira<br />

de apreensão, os membros ligados e relacionados<br />

ganham o caráter de “partes” ou, respectivamente,<br />

de “todos”.<br />

Deste modo, a intencionali<strong>da</strong>de categorial é um tipo<br />

de identificação predicativa que vem suplementar e completar<br />

a que foi alcança<strong>da</strong> na experiência pré-predicativa.<br />

Ela nos eleva a um nível humano de construção <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

que envolve a linguagem e o raciocínio. O seu contexto<br />

é, portanto, tão amplo e extenso como a gramática<br />

<strong>da</strong> linguagem humana. As categorias servem como princípio<br />

para a classificação onde os assuntos são integrados<br />

numa estrutura que constitui o universo de conhecimento.<br />

Os objetos categoriais são modos nos quais as coisas<br />

se apresentam. Aqui se evidencia a linguagem como um<br />

instrumento usado para a concepção do mundo, mas sua<br />

função de projetar esse mundo não se exaure no que pode<br />

ser alcançado a partir de um exame dos significados de<br />

palavras lexicais. De fato, o processo de significação extrapola<br />

o significado denotativo <strong>da</strong>s palavras, incluindo<br />

a intencionali<strong>da</strong>de de quem está atribuindo significação.<br />

Podemos pensar aqui em termos do significado que uma<br />

experiência tem para uma determina<strong>da</strong> pessoa. Por ser<br />

intencional, a consciência humana sempre “faz o mundo<br />

aparecer como significação” (Zilles, 2002, p. 30). Como<br />

explica Merleau-Ponty (1945/1999, p. 576), “o sentido de<br />

uma frase é seu propósito ou sua intenção, o que supõe<br />

ain<strong>da</strong> um ponto de parti<strong>da</strong> e um ponto de chega<strong>da</strong>, uma<br />

visa<strong>da</strong>, um ponto de vista.” Para o filósofo, a fala surge<br />

como gesto do corpo que estabelece uma relação de sentido<br />

com o mundo, e “procurando descrever o fenômeno<br />

<strong>da</strong> fala e o ato expresso de significação poderemos ultrapassar<br />

definitivamente a dicotomia clássica entre sujeito<br />

e objeto” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 237).<br />

Nessa compreensão de corporei<strong>da</strong>de, então, vê-se que<br />

a noção de sentido se desloca para além <strong>da</strong> própria subjetivi<strong>da</strong>de,<br />

para incluir também a noção de espaciali<strong>da</strong>de<br />

e temporali<strong>da</strong>de. E, por consequência, <strong>da</strong> intersubjetivi<strong>da</strong>de.<br />

Ser corpo, então, é estar ligado ao mundo; e o corpo<br />

não está no espaço primeiramente: “ele é no espaço”<br />

(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 205). Sendo assim, a percepção,<br />

em seus diferentes níveis, nos leva ao movimento<br />

em direção intencional ao mundo segundo as normas<br />

vitais do organismo, manifestando a atitude de se orientar<br />

em direção ao mundo. Pelo movimento nos comunicamos<br />

e nos relacionamos com tudo o que está ao nosso<br />

redor. Desde a mais tenra infância, é por meio <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

motora que a criança se desenvolve e por a<strong>da</strong>ptações<br />

contínuas vai adquirindo informações mais complexas,<br />

diversifica<strong>da</strong>s e progressivamente mais elabora<strong>da</strong>s. A capaci<strong>da</strong>de<br />

de nos movimentar permite respostas apropria<strong>da</strong>s<br />

ao ambiente, o que implica que a nossa orientação de<br />

atenção se concentra mais nas ações que fazemos do que<br />

nos movimentos propriamente ditos.<br />

O exposto acima nos remete a outro conjunto de significados<br />

mormente <strong>da</strong>do ao termo sentido, qual seja, o<br />

de direção. Mas, a palavra direção também é polissêmica.<br />

Assim, numa primeira visa<strong>da</strong>, ela pode se referir ao movimento<br />

físico – para frente, para trás, para o lado, para<br />

cima, para baixo, o qual se relaciona às direções básicas<br />

de espaço: norte, sul, leste e oeste. O sentido<br />

como direção é uma linha que conduz a um lugar<br />

ou ponto. É o itinerário, a rota, o caminho – uma<br />

linha estabeleci<strong>da</strong> de viagens ou acesso: a direção<br />

ou o caminho, a relação espacial, ao longo <strong>da</strong> qual<br />

algo se move ou ao longo do qual se situa a tendência,<br />

as linhas gerais de orientação.<br />

Por outro lado, no seu sentido ideativo, direção<br />

pode ser também um curso geral, no tempo,<br />

ao longo do qual algo tem uma tendência a desenvolver.<br />

Refere-se, portanto, a uma inclinação, uma<br />

tendência, uma disposição, uma atitude <strong>da</strong> mente.<br />

Este sentido é também o que mostra se a pessoa tem um<br />

plano de vi<strong>da</strong> traçado, se ela está pensando no seu futuro<br />

e o construindo no presente. Simultaneamente, direção<br />

é algo que fornece direcionamento ou conselho<br />

a respeito de uma decisão ou curso de ação de<br />

aconselhamento, orientação, conselhos, mapas de<br />

estra<strong>da</strong>s, um plano detalhado ou uma explicação<br />

para orientá-lo no estabelecimento de normas ou<br />

determinar um curso de ação (Collins Thesaurus,<br />

2003/2008).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Todos esses sentidos do termo “direção” possibilitam<br />

o direcionamento de um ato, tal como na noção<br />

de intencionali<strong>da</strong>de: “A intencionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> consciência<br />

é tal que alcança o mundo exterior todo o tempo, até<br />

quando tem por alvo coisas que não estão diante dela”<br />

(Sokolowski, 2010, p. 107). Assim, a intencionali<strong>da</strong>de<br />

do ato perceptivo, em seus diversos níveis, do orgânico<br />

ao ideativo, expressa-se através do corpo fenomenal<br />

e configura-se no meio existencial. É dessa forma que<br />

Merleau-Ponty (1945/1999) argumenta que espaciali<strong>da</strong>de<br />

e esquema corporal convergem para o princípio ontológico<br />

do ser-no-mundo. E mais, o corpo como ser<br />

físico está presente, mas sem desconsiderar sua<br />

capaci<strong>da</strong>de de transcendência. O corpo fenomenal é<br />

compreendido como o lugar existencial do ser-no-mundo;<br />

seu ethos. Na fenomenologia, corporali<strong>da</strong>de é a relação<br />

indissolúvel do corpo com o tempo, com o espaço<br />

e com o outro: a corporali<strong>da</strong>de não é apenas sinônima<br />

de um “eu”, é também sinônimo de maneiras de viver<br />

o tempo e o espaço.<br />

O corpo é uma potência que nasce em conjunto com<br />

um meio e se sincroniza com ele. Por isto também o tempo<br />

só existe como passado, presente e futuro na medi<strong>da</strong><br />

em que se relaciona com o ser. Para Merleau-Ponty,<br />

portanto, o tempo não é apenas uma linha, mas antes,<br />

uma rede de intencionali<strong>da</strong>des. No âmbito desta rede, a<br />

consciência se volta para o mundo num modo de relação<br />

que não envolve uma compreensão racional a priori,<br />

mas um movimento próprio de si mesma em direção ao<br />

mundo, desde uma perspectiva pré-reflexiva. E é desta<br />

maneira que se pode compreender a noção de sentido<br />

também como intuição (Anschaunng), considera<strong>da</strong> em<br />

fenomenologia fonte de autori<strong>da</strong>de para o conhecimento<br />

(Martins & Bicudo, 1989). De fato, a fenomenologia<br />

de Husserl busca “uma intuição originária”, nos moldes<br />

em que a descreve Dartigues (1973, p. 21): “se é ver<strong>da</strong>de<br />

que os fenômenos se dão a nós por intermédio dos sentidos,<br />

eles se dão sempre como dotados de um sentido<br />

ou de uma “essência”. Eis por que, para além dos <strong>da</strong>dos<br />

dos sentidos, a intuição será uma intuição <strong>da</strong> essência<br />

ou do sentido.”<br />

Deste modo, infere-se que a intuição <strong>da</strong> essência se<br />

distingue <strong>da</strong> percepção do fato. Ela é a própria visão do<br />

sentido ideal que se atribui ao fato materialmente <strong>da</strong>do e,<br />

ao mesmo tempo, o que se permite identificá-lo. Merleau-<br />

Ponty (1945/1999, p. 18) afirma que “porque estamos no<br />

mundo, estamos condenados ao sentido” e, assim, leva-nos<br />

a compreender o sentido também em termos de empatia,<br />

que se realiza na experiência intersubjetiva:<br />

O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o<br />

sentido que transparece na intersecção de minhas<br />

experiências, e na intersecção de minhas experiências<br />

com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas<br />

outras; ele é, portanto inseparável <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de<br />

e <strong>da</strong> intersubjetivi<strong>da</strong>de que formam sua uni<strong>da</strong>de<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012<br />

Marta H. Freitas; Rita C. Araújo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins<br />

pela retoma<strong>da</strong> de minhas experiências passa<strong>da</strong>s em<br />

minhas experiências presentes, <strong>da</strong> experiência do<br />

outro na minha.<br />

Podemos então compreender que as significações do<br />

termo sentido – variando desde suas acepções físicas e<br />

sensoriais até aquelas de cunho idealizado e relacional –<br />

apontam para uma vi<strong>da</strong> consciente basea<strong>da</strong> no campo<br />

<strong>da</strong> experiência corporal pré-predicativa e que se<br />

desdobra em experiência reflexiva e intersubjetiva.<br />

Deste modo, em to<strong>da</strong> percepção, tem-se também a<br />

contradição entre a imanência e a transcendência,<br />

que, na visão de Merleau-Ponty (1945/1999), são dois<br />

elementos estruturais de qualquer ato perceptivo,<br />

de modo que, sempre, objeto percebido é também<br />

conhecido ao sujeito que o percebe (imanência).<br />

Por outro lado, to<strong>da</strong> percepção de algo tem uma<br />

não-percepção de alguma coisa que está para além<br />

do <strong>da</strong>do imediato, e que a transcende. Em outras<br />

palavras, to<strong>da</strong> vez que se tem consciência de algo,<br />

abre-se a possibili<strong>da</strong>de de não conhecer outros aspectos<br />

relacionados ao objeto percebido. Deste modo,<br />

quando estu<strong>da</strong>mos um fenômeno temos apenas uma percepção<br />

parcial porque a experiência acompanha uma mistura<br />

de presença e ausência. “A percepção, então, envolve<br />

cama<strong>da</strong>s de sínteses, cama<strong>da</strong>s de múltiplas presentações,<br />

que são de dois tipos, atual e potencial” (Sokolowski, 2010,<br />

p. 28). E a identi<strong>da</strong>de de um objeto transcende suas múltiplas<br />

manifestações porque vai além delas.<br />

Assim, o sentido como transcendência, na fenomenologia,<br />

é aquilo que ultrapassa a própria ativi<strong>da</strong>de<br />

e alcance <strong>da</strong> consciência. As noções de noese<br />

e noema podem nos auxiliar aqui. Enquanto noese<br />

é termo empregado para se referir à própria ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

consciência (sujeito intencionado), noema é usado em referência<br />

ao objeto (intuído) constituído por essa ativi<strong>da</strong>de,<br />

entendendo que há um mesmo campo de análise no<br />

qual a consciência aparece como se projetando para fora<br />

de si em direção a seu objeto e o objeto como fazendo referência<br />

aos atos <strong>da</strong> consciência (Dartigues, 1973). A noese<br />

e o noema ocorrem simultaneamente, em contínuo<br />

movimento, porque não há objeto em si, ver<strong>da</strong>de em si,<br />

mas sempre em perspectivas e com sentido na esfera de<br />

compreensão do sujeito. A transcendência seria, então, o<br />

contínuo “pôr a descoberto” os diversos níveis que constituem<br />

o mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> na busca de sentido.<br />

Pode-se dizer, enfim, que a fenomenologia é um<br />

método de transcendência em seu contínuo e progressivo<br />

desvelamento do ser, do mundo e do ser-<br />

-no-mundo. É um constante conhecer-se e este conhecimento<br />

passa pelo corpo, pois este não pode<br />

ser entendido como um simples organismo. Ele é<br />

também cultura, transcendendo o aspecto físico e,<br />

nas palavras de Merleau-Ponty (1945/1999, p. 257),<br />

“o uso que um homem fará de seu corpo é transcendente<br />

com respeito a este corpo como ser simples-<br />

150


Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica<br />

mente biológico”. Então se o corpo não é somente<br />

biológico, os comportamentos derivados dele também<br />

não o podem ser. Para ele o corpo sintetiza a ambigui<strong>da</strong>de<br />

(imanência/transcendência) do ser no mundo.<br />

Ele não é, diretamente, a única forma de expressão, pois é<br />

também um ser de linguagem, como expressão que modifica<br />

e transcende o fenômeno <strong>da</strong>do na percepção, ou seja,<br />

transcende a si mesma, pois seu movimento vai sempre no<br />

sentido de ir além <strong>da</strong>s relações entre um mundo e outro.<br />

A atitude fenomenológica e a redução fenomenológica<br />

são frequentemente denomina<strong>da</strong>s transcendentais,<br />

tal como Husserl define o transcendental<br />

e Sokolowski a descreve (2010, p. 67):<br />

151<br />

A palavra significa ir além, basea<strong>da</strong> na sua raiz latina,<br />

transcendere, elevar-se sobre ou ir além, de trans e<br />

scando. A consciência, mesmo na atitude natural, é<br />

transcendental porque ela vai além de si mesma, até as<br />

identi<strong>da</strong>des e coisas que lhe são <strong>da</strong><strong>da</strong>s. O ego pode ser<br />

chamado transcendental à medi<strong>da</strong> que é envolvido,<br />

em cognição, no alcance <strong>da</strong>s coisas. O ego transcendental<br />

é o ego ou o si mesmo como o agente <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />

A redução transcendental é o giro em direção ao ego<br />

como o agente <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, e a atitude transcendental<br />

é a instância que assumimos quando exercermos esse<br />

ego e suas intencionali<strong>da</strong>des temáticas.<br />

Vê-se, assim, que a transcendência está também relaciona<strong>da</strong><br />

ao sujeito. Para Bicudo (1999, p. 20), a transcendência,<br />

na fenomenologia, é “uma percepção retrospectiva<br />

do vivido, de modo que haja evidência dos fatos<br />

geradores do noema.” Já Zilles (2001, p. 515) diz que “a<br />

subjetivi<strong>da</strong>de realiza-se na medi<strong>da</strong> em que se transcende<br />

a si mesma por opção <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de.” Este sujeito não<br />

é apenas psicológico, um ser que vive no mundo,<br />

mas um ser transcendente, aquele que vê o mundo<br />

como um conjunto de uni<strong>da</strong>des de sentidos.<br />

Poderíamos dizer, então, que a transcendência é o<br />

sentido do sentido.<br />

E é este mesmo sujeito que, em vendo – e vivendo – o<br />

mundo como um conjunto de uni<strong>da</strong>des de sentido, formula,<br />

a partir de sua experiência no mundo, os múltiplos<br />

significados de um mesmo termo, os quais identificamos,<br />

sob a forma de verbete, na composição dos dicionários<br />

comuns. Podemos compreender, então, suas múltiplas<br />

significações como um conjunto de mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des expressivas<br />

que se configuram, no mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong> imanência<br />

à transcendência, como que condensa<strong>da</strong>s num único<br />

e mesmo termo: sentido.<br />

3. Das Mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des Expressivas ao Mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

No mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, água não é apenas H2O. Ela é<br />

muito mais: é agua que mata a sede, é agua refrescante,<br />

é água solvente, é água <strong>da</strong> maré baixa ou alta, é água que<br />

apaga o fogo, é água que afoga, é água que rega a planta,<br />

é água purificadora, é água benta... Nenhum destes modos<br />

de ser água é menos ver<strong>da</strong>deiro que outro, embora se<br />

saiba que, na ausência <strong>da</strong> água que mata a sede, a pessoa<br />

morre. Daí a proposta husserliana de retorno às coisas<br />

mesmas, tal como elas aparecem no mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, para<br />

as pessoas de carne e osso. O mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> apresenta<br />

essa riqueza de possibili<strong>da</strong>des e a fenomenologia busca<br />

estar alerta para captá-la em to<strong>da</strong>s as suas facetas, e mais<br />

ain<strong>da</strong>: entende que a ciência só tem valor se ela estiver<br />

reconheci<strong>da</strong>mente comprometi<strong>da</strong> com o mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Este, sim, é o que lhe oferece a fun<strong>da</strong>mentação axiológica;<br />

é dele, por ele e para ele que a ciência foi desenvolvi<strong>da</strong>.<br />

Nas palavras de Merleau-Ponty (1945/1999, p. 3): “Todo o<br />

universo <strong>da</strong> ciência é construído sobre o mundo vivido,<br />

e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar<br />

exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos<br />

primeiramente despertar essa experiência do mundo <strong>da</strong><br />

qual ela é expressão segun<strong>da</strong>.”<br />

Desta perspectiva, então, qualquer formulação teórico-conceitual<br />

acerca de um objeto ou termo deve voltar-<br />

-se inicialmente para os homens enquanto pessoas, para<br />

suas vi<strong>da</strong>s e realizações existenciais. E como o esclarecera<br />

Husserl (1935/2008, p. 12), vi<strong>da</strong> aqui não é toma<strong>da</strong><br />

apenas no seu aspecto fisiológico, mas sim “vi<strong>da</strong> ativa em<br />

vista de fins, realizadora de formações espirituais – no<br />

sentido mais lato, vi<strong>da</strong> criadora de cultura na uni<strong>da</strong>de<br />

de uma historici<strong>da</strong>de”. Tal perspectiva implica em superar,<br />

pois, a dicotomia entre naturante e naturado, entre<br />

ver<strong>da</strong>de objetiva e ver<strong>da</strong>de subjetiva, entre o ser real <strong>da</strong>s<br />

coisas e o seu parecer.<br />

Ora, através do olhar fenomenológico, parece-nos que<br />

o termo sentido e sua multiplici<strong>da</strong>de de significações é<br />

uma ilustração de que a reali<strong>da</strong>de não é única, estável ou<br />

universal, como o quer o princípio <strong>da</strong> não-contradição.<br />

Ao contrário, a reali<strong>da</strong>de do mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é múltipla,<br />

variante e relativa, dependendo do olhar que lancemos<br />

sobre ela. E isso se dá não por uma falha conceitual ou<br />

metodológica, mas pela própria natureza do mundo <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, que inclui tanto o ser como o parecer ser de qualquer<br />

coisa em que nele se apresente. Ou seja, a reali<strong>da</strong>de<br />

no mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> se dá não apenas a partir do que dela<br />

se mostra, mas também do que dela própria se transcende.<br />

Esse modo de compreensão poderia ser apontado<br />

como metafísico, no sentido mais tradicional do termo.<br />

Mas, tal como o poeta homônimo de Fernando Pessoa,<br />

Alberto Caeiro, nos mostra que há metafísica bastante<br />

em não pensar em na<strong>da</strong>, a fenomenologia cria<strong>da</strong> por<br />

Husserl vem mostrar que justamente a perspectiva positivista,<br />

que exige objetivi<strong>da</strong>de em lugar <strong>da</strong> expressivi<strong>da</strong>de,<br />

é que se caracterizaria como ver<strong>da</strong>deira metafísica.<br />

Afinal, ela entende que podemos superar a suposta ilusão<br />

dos sentidos a partir de determinados procedimentos<br />

metodológicos. Ora, ao fazer isso, ela se fun<strong>da</strong> sobre<br />

um paradoxo: seria um determinado olhar, metodologicamente<br />

controlado, que nos levaria à ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s coisas<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

mesmas. Ou seja, sem se <strong>da</strong>r conta, a perspectiva positivista<br />

parte do princípio de que a objetivi<strong>da</strong>de não estaria<br />

no objeto em si, mas no olhar que ela mesma lança<br />

para o objeto; a objetivi<strong>da</strong>de estaria no procedimento e<br />

não na reali<strong>da</strong>de; seria o olhar do cientista que atribuiria<br />

a objetivi<strong>da</strong>de à mesma. Ao qualificar o sentido, nas<br />

suas mais varia<strong>da</strong>s expressões, a fenomenologia assume<br />

que a essência estaria na própria aparência <strong>da</strong>s coisas,<br />

compreendendo que faz parte <strong>da</strong>s coisas parecerem diferentes<br />

sob diferentes olhares. Ou seja, é <strong>da</strong> natureza do<br />

real mostrar-se e ocultar-se continuamente: as coisas se<br />

mostram sob um determinado olhar, mas elas também<br />

se escondem a esse mesmo olhar.<br />

Do mesmo modo, se ca<strong>da</strong> significado do termo sentido<br />

parece esconder o outro, ele também o mostra, não<br />

apenas pela sonori<strong>da</strong>de ou grafia de uma mesma palavra<br />

(sentido), mas pela dimensão de corporei<strong>da</strong>de e transcendência<br />

que se estendem desde sua concepção enquanto<br />

sensoriali<strong>da</strong>de, passando pelos campos <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de –<br />

afeto e sentimento, <strong>da</strong> intersubjetivi<strong>da</strong>de – empatia e bom<br />

senso, <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de – pensamento, conceito e juízo,<br />

mas realizando-se sempre no campo <strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de e<br />

<strong>da</strong> temporali<strong>da</strong>de – direção, destino – e culminando no<br />

campo <strong>da</strong> teleologia – propósito, finali<strong>da</strong>de.<br />

4. O Sentido dos Sentidos: entre o buquê e o Jardim<br />

Para compreendermos a noção de sentido em uma<br />

perspectiva fenomenológica, podemos fazer uma analogia<br />

com o buquê de flores, tal como na semiologia de<br />

Roland Barthes (1966/2008). Sabemos que o buquê é composto<br />

por várias flores individuais, mas o buquê é mais<br />

que isso. Podemos dizer, acompanhando a Psicologia <strong>da</strong><br />

Gestalt, que o todo é maior que a soma de suas partes.<br />

O mesmo vale para a questão do sentido. O sentido total<br />

<strong>da</strong> experiência engloba to<strong>da</strong>s as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de sentido<br />

aponta<strong>da</strong>s no verbete de um dicionário, mas de modo integrado<br />

e interconectado. Assim, o que o corpo sente não<br />

é separado do significado e <strong>da</strong> sensação, isto é, a experiência<br />

corporal só pode ser entendi<strong>da</strong> como uma reali<strong>da</strong>de<br />

subjetiva onde o corpo, a percepção dele e os significados<br />

a que remetem se unem numa experiência única<br />

que vai além dos limites do corpo em si.<br />

Se a ciência objetivista teve como consequência um<br />

empobrecimento <strong>da</strong> rica reali<strong>da</strong>de do mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a<br />

fenomenologia, ao resgatar a noção de sentido, vem propor<br />

a compreensão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de humana na sua proposta de<br />

retorno às coisas mesmas, de forma complexa, dinâmica,<br />

com múltiplas possibili<strong>da</strong>des de significação. Diríamos<br />

que o termo sentido é paradigmático em mostrar suas várias<br />

nuanças e, ao mesmo tempo, em superar a fragmentação<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. De alguma forma, a própria linguagem<br />

humana, através <strong>da</strong> polissemia do vocábulo sentido,<br />

conseguiu apreender a polivalência e multiplici<strong>da</strong>de do<br />

mundo perceptivo que não é o mundo meramente men-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012<br />

Marta H. Freitas; Rita C. Araújo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins<br />

surável. A palavra sentido se mostra como um símbolo<br />

que contém múltiplos elementos, os quais, por sua vez,<br />

remetem a tantos outros elementos simbólicos, ilustrando<br />

o modo como Amatuzzi (1996, p. 20), ao fun<strong>da</strong>mentar<br />

teoricamente o uso <strong>da</strong> versão de sentido, define símbolo:<br />

aquilo “que em si mesmo “reúne”, põe junto uma série<br />

de coisas que antes estavam separa<strong>da</strong>s, e o faz intencionalmente”.<br />

Há, implícita nesta multiplici<strong>da</strong>de unifica<strong>da</strong><br />

por meio de um mesmo símbolo, uma qualificação do<br />

movimento perceptivo-intuitivo, nos moldes em que o<br />

descreve Merleau-Ponty (1945/1999, p. 63):<br />

(...) perceber no sentido pleno <strong>da</strong> palavra, que se<br />

opõe a imaginar, não é julgar, é aprender com sentido<br />

imanente ao sensível antes de qualquer juízo.<br />

O fenômeno <strong>da</strong> percepção ver<strong>da</strong>deira oferece, portanto,<br />

uma significação inerente aos signos, e do qual o<br />

juízo é apenas a expressão facultativa.<br />

Pensemos no beijo por exemplo. O beijo envolve o sentido<br />

do tato, do pala<strong>da</strong>r, do olfato, mas também envolve<br />

sentimento e um significado, que pode ser de paixão ou<br />

de indiferença. Envolve também uma noção de direção,<br />

podendo apontar para um desfecho <strong>da</strong> relação (um beijo<br />

frio, por exemplo) ou para um aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> mesma<br />

(um beijo apaixonado). E pode, ain<strong>da</strong>, conter elementos <strong>da</strong><br />

ordem do ideal – romântico, sagrado ou religioso – quando<br />

se realiza também na metáfora do beijar o sapo, no ato<br />

de beijar a mão dos avós, ou no ritual de beijar o santo.<br />

Esses sentidos não são vividos pelas pessoas de maneira<br />

isola<strong>da</strong>, mas apreendidos como um todo. Portanto, um<br />

conceito que se quer fiel e completo ao sentido deste verbo<br />

– beijar – há que se referir a to<strong>da</strong>s essas significações<br />

de modo intrinsecamente articulado.<br />

Ao tentarmos descrever o buquê de sentidos, podemos<br />

falar dos diferentes aspectos separa<strong>da</strong>mente, mas<br />

apenas para fins didáticos, como fazem os dicionários<br />

em ca<strong>da</strong> item dos seus verbetes. Mas no mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

eles são experimentados sempre como um todo integrado.<br />

Não existe sensação pura quando se trata de experiência<br />

humana. O sentido enquanto percepção fisiológica<br />

não existe separado do todo. To<strong>da</strong> sensação é já imediatamente<br />

interpretação, significação. Um calafrio não é<br />

só uma experiência fisiológica – contração involuntária<br />

de músculos somáticos – mas pode ser significado como<br />

medo ou quem sabe como a passagem de um espírito por<br />

perto, como assim o interpretam alguns. Esta última forma<br />

de interpretar o calafrio não é menos ver<strong>da</strong>de para<br />

a fenomenologia do que aquela primeira, pois ela também<br />

emerge na interação dos humanos com as coisas.<br />

O mundo, na perspectiva fenomenológica, é uma trama<br />

de significação. O mundo é também o conjunto de significados<br />

que atribuímos a ele. Nós somos os agentes criadores<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e to<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de só existe em função<br />

de uma consciência que a apreende como tal. Qualquer<br />

ponto de vista é apenas a vista de um ponto. Qualificar<br />

152


Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica<br />

o sentido dos sentidos, portanto, marca uma diferença<br />

epistemológica, assim explicita<strong>da</strong> por Merleau-Ponty<br />

(1945/1999, p. 13-14):<br />

153<br />

(...) não é preciso perguntar-se se nós percebemos<br />

ver<strong>da</strong>deiramente um mundo, é preciso dizer, ao<br />

contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos. (...)<br />

O mundo não é não aquilo que eu penso, mas aquilo<br />

que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico<br />

indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é<br />

inesgotável.<br />

Justamente por ser fugidio, o termo é paradigmático<br />

do quanto é relevante ater-se à sintaxe enquanto tecido<br />

conectivo dos juízes: todo significado é definido por relação.<br />

Um chapéu sobre a cabeça de um camponês é um<br />

simples utilitário de proteção contra o sol; sobre a cabeça<br />

de uma <strong>da</strong>ma de cerimônia, é um adorno; na fronte<br />

de um cardeal, é um símbolo de poder; na mão estendi<strong>da</strong><br />

de um mendigo, significa um pedido de auxílio.<br />

Do mesmo modo, um cachimbo na poltrona do escritório<br />

indica circunspecção e tranquili<strong>da</strong>de; no volante de<br />

um veículo, extravagância; no interior de um quadro de<br />

hospital, desrespeito e insensibili<strong>da</strong>de. (Fiorin & Platão,<br />

1998). Ou seja, no mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, do mesmo modo como<br />

no mundo mágico <strong>da</strong> ficção, o contexto – dimensão de<br />

espaço e de tempo – interfere no significado <strong>da</strong>s ações<br />

dos personagens. Deste modo, sem o princípio metódico<br />

<strong>da</strong> evidência no próprio mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, “a linguagem<br />

comum é fugidia, equívoca, muito pouco exigente quanto<br />

à adequação dos termos”. É justamente por isso que,<br />

nas situações onde seus meios de expressão são empregados<br />

“será preciso conferir às significações um novo<br />

fun<strong>da</strong>mento, orientá-los de modo original sobre esses<br />

significados fun<strong>da</strong>mentados em nova forma” (Husserl,<br />

1931/2001, p. 31): a descrição <strong>da</strong> estrutura total <strong>da</strong> experiência<br />

vivi<strong>da</strong> e seus respectivos significados para os<br />

seres que a vivenciam.<br />

Se ca<strong>da</strong> item de um verbete de um dicionário comum,<br />

ao remeter às diversas significações possíveis para o termo<br />

sentido, nos falam de rosas individuais, neste ensaio<br />

o que buscamos alcançar foi o buquê. A fenomenologia<br />

nos ajudou neste processo justamente por contrapor-se a<br />

um determinado modo de fazer ciência psicológica que<br />

privilegia os métodos meramente analíticos, de decomposição<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de em partes, como se as partes fossem<br />

mais importantes que o todo, ou como se apenas fosse<br />

possível compreender o todo a partir <strong>da</strong> soma <strong>da</strong>s partes.<br />

Ora, quando enviamos ou recebemos um buquê, se o<br />

exame de ca<strong>da</strong> rosa reduz-se à percepção <strong>da</strong> mesma como<br />

pedúnculo, receptáculo, sépalas, estames, carpelos, antera,<br />

gineceu, etc, tal como faria o biólogo ao fragmentar<br />

a flor em infinitas partes, o sentido do buquê, como um<br />

todo, desaparece. Cadê a poesia que estava alí? Ora, no<br />

mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, as rosas são vivi<strong>da</strong>s como beleza, como<br />

romance, como amor, enfim, como significação. Podemos<br />

fatiar a rosa inteira, mas nunca vamos encontrar to<strong>da</strong> a<br />

beleza dela nas suas partes. E mesmo que as rosas não<br />

falem, sua poesia só é apreendi<strong>da</strong> no todo, como bem sabem<br />

os poetas.<br />

Com isso, no entanto, não estamos afirmando que o<br />

método analítico não sirva para na<strong>da</strong> e que deva, simplesmente,<br />

ser substituído. Propomos apenas a superação do<br />

equívoco de acreditarmos na soberania de sua perspectiva.<br />

Estamos, portanto, chamando a atenção para a importância<br />

de se olhar também para o todo, pois é assim<br />

que a reali<strong>da</strong>de se apresenta em nossas vi<strong>da</strong>s. A fragmentação<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de obstrui a apreensão <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de<br />

na uni<strong>da</strong>de e respectiva amplidão do sentido <strong>da</strong>s coisas,<br />

posto que este só pode ser apreendido num movimento<br />

de síntese, integrativo.<br />

Se olharmos para o verbete-buquê – os sentidos do<br />

sentido – apenas de modo analítico, estamos nos alienando<br />

do mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, justamente o jardim provedor de<br />

to<strong>da</strong>s as flores que o constituem. E ao fazemos isso, estamos<br />

condenando to<strong>da</strong> uma civilização ao padecimento<br />

<strong>da</strong>s duras consequências de uma perspectiva meramente<br />

tecnicista, aliena<strong>da</strong> do próprio solo que a fertiliza. É ver<strong>da</strong>de<br />

que, ao nos voltarmos para o jardim – o sentido dos<br />

sentidos, certamente que não encontramos aí apenas as<br />

flores. Nele há ain<strong>da</strong>, dentre outras tantas coisas, os instrumentos<br />

do jardineiro, assim como também o estrume<br />

que fertiliza o solo. Devemos reconhecer, no entanto, tal<br />

como nos recomen<strong>da</strong> o poético Wittgenstein (1980/1996)<br />

nos seus manuscritos, o que aí os distingue não é meramente<br />

o seu valor, mas – sobretudo – suas funções no jardim.<br />

Acreditamos que distinguir e reconhecer tais funções<br />

se torna absolutamente imprescindível tanto para a<br />

ciência quanto para a prática psicológica que se queiram<br />

realmente efetivas no mundo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

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Marta Helena de Freitas - Doutora em Psicologia pela Universi<strong>da</strong>de de<br />

Brasília (UnB), com Pós-Doutorado na University of Kent at Canterbury<br />

(Inglaterra). Atualmente é Professora e Pesquisadora do Programa de<br />

Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Católica<br />

de Brasília (UCB). Endereço Institucional: Universi<strong>da</strong>de Católica de<br />

Brasília, Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa, Mestrado em Psicologia.<br />

SGAN 916, Módulo B, W5 Norte (Asa Norte). CEP 70790-160,<br />

Brasília, DF. Email: mhelena@ucb.br<br />

Rita de Cássia Araújo - Mestre em Psicologia pela Universi<strong>da</strong>de<br />

Católica de Brasília (UCB) e Psicoterapeuta na CLIMAI (Brasília).<br />

Email: ritaholsback@yahoo.com.br<br />

Filipe Starling loureiro Franca - Mestre em Psicologia pela Universi<strong>da</strong>de<br />

Católica de Brasília (UCB) e Psicoterapeuta em Brasília.<br />

Email: filipe.starling@gmail.com<br />

ondina Pena Pereira - Doutora em Filosofia pela Universi<strong>da</strong>de de Brasília<br />

(UnB), Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação<br />

Stricto Sensu em Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Católica de Brasília (UCB).<br />

Email: ondina@pos.ucb.br<br />

Francisco Martins - Doutor em Psicologia pela Universi<strong>da</strong>de de<br />

Louvain (Bélgica), Professor Titular <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Brasília,<br />

Psiquiatra, Psicanalista, Professor e Pesquisador do Programa de Pós-<br />

-Graduação Stricto Sensu em Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Católica de<br />

Brasília (UCB). Email: fmartins@unb.br<br />

Recebido em 25.04.2012<br />

Aceito em 26.09.2012<br />

154


A Força <strong>da</strong> Palavra em Nicolau de Cusa<br />

155<br />

A fORÇA DA pALAvRA EM NICOLAU DE CUSA<br />

Power of the Word and According to Nicholas of Cusa<br />

La Fuerza de la Palabra en Nicolás De Cusa<br />

soniA lyrA<br />

Resumo: A partir do momento em que se transpõe a dialética dos símbolos, rumo à experiência mística, é a força <strong>da</strong> palavra<br />

devi<strong>da</strong>mente potencializa<strong>da</strong> o que vai poder mover o ouvinte, uma vez que há uma força oculta por detrás de ca<strong>da</strong> palavra.<br />

A força <strong>da</strong>s palavras aparece, como uma contracção <strong>da</strong> força <strong>da</strong> mente, que se ‘explica’ nas múltiplas palavras que são, no<br />

mais fundo delas próprias, núcleos energéticos discursivos e que só podem ser entendi<strong>da</strong>s nesse jogo dinâmico que se estabelece<br />

entre as coisas do mundo externo e seu referente interno, isto é, a mente. O discernimento é passado inicialmente,<br />

como propõe Nicolau de Cusa, por imagens sensíveis, continuando a proposta de Jesus, que falou inicialmente por figuras,<br />

mas disse também que chegaria a hora em que já não falaria por figuras, mas claramente, pois as palavras que de Deus recebeu,<br />

ele as deu aos homens cumprindo-se a profecia: no princípio era o Verbo (In principio erat verbum), no qual subjaz o<br />

poder criador <strong>da</strong> palavra. A proposta do Cusano é que nesta teoria do conhecimento se reconheçam as limitações <strong>da</strong> palavra<br />

e do discurso, inscrevendo-se a sua dialética no conhecimento intelectual <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>de, o qual, na uni<strong>da</strong>de, ultrapassa tudo.<br />

Palavras-chave: Nicolau de Cusa; Força <strong>da</strong> palavra; Dialética; Verbo.<br />

Resumen: A partir del momento en que se transpone la dialéctica de los símbolos rumbo a la experiência mística, es la fuerza<br />

de la palabra debi<strong>da</strong>mente potencializa<strong>da</strong>, lo que hará hacer estremecer al oyente, una vez que hay una fuerza oculta detrás<br />

de ca<strong>da</strong> palabra. La fuerza de las palabras aparece como una contracción de la fueza mental, que se ‘explica’ en las múltiples<br />

palabras que son en lo más fondo de las mismas, núcleos energéticos discursivos y que solo pueden ser compreendi<strong>da</strong>s en ese<br />

juego dinámico, que se estabelece entre las cosas del mundo externo y su referente interno, esto es, la mente. El discernimiento<br />

es pasado inicialmente como lo propone Nicolás de Cusa, por imágenes sensibles, dándole continui<strong>da</strong>d a la propuesta de Jesús;<br />

que habla inicialmente por figuras, pero también disse que llegaría la hora en que no hablaría mas por médio de figuras, pero<br />

claramente, pues las palabras que de Dios recibió, él se las dio a los hombres cumpliendo la profecia: En el pincipio era el verbo<br />

(In principio erat verbum) en el cual subyace el poder crador de la palabra. La propuesta del Cusano es que en esta teoria de conocimiento<br />

sean reconoci<strong>da</strong>s las de limitaciones de la palabra y del discurso, inscribiéndose en su propia dialéctica, en el conocimiento<br />

intelectual de la Trini<strong>da</strong>d, lo cual en la uni<strong>da</strong>d lo ultra passa todo.<br />

Palabras-clave: Nicolás de Cusa; Fuerza de la palabra; Dialéctica; Verbo.<br />

Abstract: From the moment in which the dialectics of symbols is transposed, toward the mystical experience, it is the power<br />

of the word duly potentialized that will move the listener, once there is a hidden force behind each word. The power of the<br />

words appears as a contraction of the strength of the mind that “explains” itself in multiple words that are, in their deeper selves,<br />

discoursive energetic cores and that can only be understood in this dynamic game that is established between the things<br />

of the external world and its internal referent, that is, the mind. Discernment is passed initially, as Nicholas of Cusa proposed,<br />

by sensitive images, continuing Jesus’ proposal that spoke at the beginning through images, however He also said that the time<br />

would come when He would no longer speak through images, but clearly, for the words He received from God He[[he gave them<br />

to men, thus fulfilling the prophecy: in the beginning was the Word (In principio erat verbum), in which lies the creative power<br />

of the word. Nicholas of Cusa’s proposal is that in this theory of knowledge the limitations of the word and of the discourse are<br />

acknowledged, registering its dialectics in the intellectual knowledge of Trinity which, in the unity, exceeds all.<br />

Keywords: Nicholas of Cusa; Power of the Word; Dialectics; the Word.<br />

Introdução<br />

Um jornalista perguntou a Madre Tereza de Calcutá:<br />

“Quando você reza, o que você diz a Deus?” E ela respondeu:<br />

“Não falo, escuto.” O jornalista então perguntou:<br />

“O que Deus diz a você?” Madre Tereza respondeu: “Ele<br />

não fala. Ele escuta. E se você não pode compreender isso,<br />

não posso lhe explicar.” A epígrafe de meu livro: Nicolau<br />

de Cusa: Visão de Deus e Teoria do Conhecimento (Lyra,<br />

2012) aponta para essa “estranha” linguagem. Ela diz:<br />

“Não só de pão vive o homem, mas de to<strong>da</strong> palavra proferi<strong>da</strong><br />

pela boca de Deus.” Essa frase precisa ser entendi<strong>da</strong><br />

também no modo desse diálogo, assim como está<br />

exposto por Madre Tereza para que nela se possa intuir<br />

a força <strong>da</strong> palavra.<br />

Sem a força <strong>da</strong> paixão presente na palavra, esta é apenas<br />

conceito, mas um conceito <strong>da</strong>quilo que já se conhece,<br />

ou assim se pensa conhecer, como esquematização<br />

lógico-categorial ou conjectural que desemboca na assim<br />

chama<strong>da</strong> ciência positiva.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Jesus Cristo é o logos que, segundo ele mesmo, é “o pão<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>” (Jo 6,35), o pão que, quem comer “viverá eternamente”<br />

(Jo 6,51). Este pão não é como aquele que os pais<br />

comeram e pereceram, mas o pão <strong>da</strong> palavra. O mesmo<br />

Cristo ain<strong>da</strong> disse: “Por que não reconheceis minha linguagem?<br />

É porque não podeis escutar minha palavra”<br />

(Jo 8,43), e completa dizendo que “quem é de Deus ouve<br />

as palavras de Deus” (Jo 8,47). Destas passagens, segue-<br />

-se o porquê <strong>da</strong> vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> palavra, pois disse ain<strong>da</strong> Jesus:<br />

“para um discernimento é que vim a este mundo” (Jo 9,39).<br />

O discernimento é passado inicialmente, como propõe<br />

Nicolau de Cusa por imagens sensíveis. Continuando a<br />

proposta de Jesus: “Disse-vos essas coisas por figuras.<br />

Chega a hora em que já não vos falarei em figuras, mas<br />

claramente vos falarei do Pai” (Jo 16,25). É quando Jesus<br />

diz aos discípulos que a vi<strong>da</strong> eterna está em que conheçam<br />

“o único Deus ver<strong>da</strong>deiro” (Jo 17,3), pois as palavras<br />

que de Deus recebeu ele as deu aos homens cumprindo-<br />

-se a profecia: no princípio era o Verbo (In principio erat<br />

verbum) (André, 2006, p. 8), no qual subjaz o poder criador<br />

<strong>da</strong> palavra. A proposta do Cusano é que nesta teoria<br />

do conhecimento se reconheçam as limitações <strong>da</strong> palavra<br />

e do discurso, inscrevendo-se a sua dialética no conhecimento<br />

intelectual <strong>da</strong> trin<strong>da</strong>de, o qual, na uni<strong>da</strong>de,<br />

ultrapassa tudo.<br />

O Verbo divino, ao se plurificar nas suas expressões,<br />

que são o mundo <strong>da</strong>s criaturas, em seus sinais e palavras<br />

sensíveis, é confirmado por Nicolau de Cusa quando<br />

ele afirma:<br />

De acordo com esta comparação, o nosso princípio<br />

unitrino, pela sua bon<strong>da</strong>de, criou o mundo sensível<br />

como matéria e uma espécie de voz, na qual fez<br />

resplandecer de modo vário o verbo mental, a fim<br />

de que to<strong>da</strong>s as coisas sensíveis sejam o discurso<br />

de várias elocuções do Deus Pai, explica<strong>da</strong>s através<br />

do Verbo, seu Filho, tendo como fim o espírito dos<br />

universos, para que a doutrina do sumo magistério<br />

transborde, através dos sinais sensíveis, para as<br />

mentes humanas e as transforme perfeitamente num<br />

magistério semelhante, de modo a que todo o mundo<br />

sensível esteja em função do intelectual, o homem<br />

seja o fim <strong>da</strong>s criaturas sensíveis e Deus glorioso seja<br />

o princípio, o meio e o fim de to<strong>da</strong> a sua activi<strong>da</strong>de<br />

(André, 2006, p. 9).<br />

Segundo André (2006), no De filiatione Dei, o Cardeal<br />

aponta o uno como o pai ou o gerador do Verbo, querendo<br />

dizer com isto que “tudo aquilo que é dito em qualquer<br />

palavra, significado em qualquer sinal e assim sucessivamente”<br />

(André, 2006, p. 9), exprime em forma de<br />

palavra humana o verbo divino, sendo que na sua força<br />

se fun<strong>da</strong>mentam a força <strong>da</strong> palavra do homem e, simultaneamente,<br />

os seus limites. “A sua força, porque ela é a<br />

expressão do verbo divino, os seus limites, porque é sempre<br />

uma expressão contraí<strong>da</strong> e limita<strong>da</strong> pela finitude hu-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012<br />

Sonia Lyra<br />

mana que dista infinitamente de plenitude de sentido <strong>da</strong><br />

infinitude divina” (André, 2006, p. 9).<br />

Independente <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de morrer, devido à sua<br />

natureza mortal, pode o homem chegar à experiência <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> do espírito imortal em virtude do Verbo Encarnado<br />

no homem Jesus Cristo, “in virtute verbi dei” (André, 2006,<br />

p. 10). Nele a humani<strong>da</strong>de é o nexo de ligação entre a natureza<br />

inferior e a superior, isto é, <strong>da</strong> temporal e <strong>da</strong> eterna,<br />

e que se experimenta, em semelhança, pela fé e pelo<br />

amor. É quando a sabedoria encarna<strong>da</strong> revela, com o seu<br />

exemplo, o caminho para a vi<strong>da</strong>, pelo qual ain<strong>da</strong> que se<br />

morra se experimenta a ressurreição <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, “que é tudo<br />

o que se busca” (Vescovini, 1998, p. 132).<br />

Tudo o que se busca, filosoficamente, é considerar a<br />

força <strong>da</strong> palavra quase como se o nome fosse a representação<br />

precisa <strong>da</strong> coisa. Mas, se os nomes foram impostos<br />

às coisas segundo a razão concebi<strong>da</strong> pelo homem, então<br />

os nomes não são precisos, pois uma coisa pode ser denomina<strong>da</strong><br />

com outros nomes talvez mais precisos. É por<br />

isso que os desacordos não estão na razão que dá substância<br />

às coisas, mas nos vocábulos que são atribuídos<br />

diferentemente às diversas razões <strong>da</strong>s coisas. É em virtude<br />

<strong>da</strong> virtus ou força <strong>da</strong> palavra, cujo conceito coincide<br />

com sapientia, que se transfere o verbo divino para<br />

os verbos humanos, sendo estes então “explicationes<br />

<strong>da</strong> sapientia na sua uni<strong>da</strong>de mais profun<strong>da</strong> e absoluta”<br />

(André, 2006, p. 10).<br />

Nicolau de Cusa desenvolve essa “dinâmica expressiva<br />

e manifestativa <strong>da</strong>s palavras” (André, 2006, p. 13)<br />

em várias de suas obras, entre elas no De pace fidei;<br />

De principio; De mente e Compendium. O Cusano, <strong>da</strong><br />

mesma forma que Agostinho, afirma que a palavra que<br />

soa exteriormente<br />

é um sinal <strong>da</strong> palavra que brilha no interior, à qual<br />

melhor convém o nome de verbo. Na ver<strong>da</strong>de, a palavra<br />

que os lábios pronunciam é a voz do verbo e chama-<br />

-se também verbo porque aquele a assume para que<br />

apareça exteriormente (André, 2006, p. 12).<br />

Como falar é manifestar, o Cardeal quer traduzir em<br />

teoria a palavra interior que, por si mesma, já é uma tradução<br />

no “nome preciso e indizível” (André, 2006, p. 13),<br />

do qual a linguagem humana é a explicatio.<br />

Da mesma forma, Platão diz que “a ver<strong>da</strong>de é anterior<br />

aos vocábulos, aos discursos, ou seja, às definições dos<br />

vocábulos e às imagens sensíveis, e ele traz como exemplo,<br />

o desenho do círculo, do seu nome, <strong>da</strong> sua definição<br />

verbal e do seu conceito” (Vescovini, 1998, p. 133), ain<strong>da</strong><br />

que Dionísio Areopagita recomende que se dê “mais<br />

atenção à intenção que à força <strong>da</strong> palavra” (Vescovini,<br />

1998, p. 134). De qualquer modo, para Nicolau de Cusa,<br />

tudo que pode ser dito é o verbo, é a manifestação de<br />

um verbo único, que se constitui na arte <strong>da</strong> fala, “uma<br />

arte infinita, não no seu resultado, mas no seu processo<br />

e no seu dinamismo” (André, 2006, p. 13), quando então<br />

156


A Força <strong>da</strong> Palavra em Nicolau de Cusa<br />

a sua limitação a transforma na busca pela palavra infinita,<br />

que, oculta no silêncio de sua plenitude, é a fonte<br />

de to<strong>da</strong>s as palavras. No entanto, no segundo capítulo do<br />

De docta ignorantia, o Cusano chama a atenção num esclarecimento<br />

preliminar para o fato de que, aquele que<br />

quer atingir o sentido do que está para ser dito deve elevar<br />

o intelecto “para lá <strong>da</strong> força <strong>da</strong>s palavras, mais do<br />

que insistir nas proprie<strong>da</strong>des dos vocábulos que não podem<br />

a<strong>da</strong>ptar-se convenientemente a tão elevados mistérios<br />

intelectuais” (Cusa, 2003). Os exemplos <strong>da</strong>dos, ele os<br />

utilizará como guias para a elevação do plano <strong>da</strong>s coisas<br />

sensíveis para o intelectual.<br />

O uso <strong>da</strong>s matemáticas, por exemplo, tem como finali<strong>da</strong>de<br />

confrontar as etapas metodológicas necessárias,<br />

partindo de uma lógica conjectural, edifica<strong>da</strong>, segundo<br />

André, “sobre o princípio de não-contradição” (André,<br />

2001, p. 321); seguindo para uma dialética coincidencial,<br />

edifica<strong>da</strong> “sobre o princípio <strong>da</strong> coincidência dos opostos”<br />

(André, 2001, p. 321) e finalmente desembocando<br />

numa dialógica transsumptiva, edifica<strong>da</strong> “sobre a consciência<br />

<strong>da</strong> distância, mas também sobre a natureza dialógica<br />

do movimento pelo qual nos sentimos chamados a<br />

transpor essa distância” (André, 2001, p. 321), reflexão<br />

esta que conduz para a experiência do infinito em que<br />

já não há figuras.<br />

Uma vez que se pode considerar a questão sobre a<br />

nomeação de Deus ou de se saber o que Deus é e como é<br />

possível experimentá-lo como o centro ou o princípio <strong>da</strong><br />

coincidência, como o lugar a partir do qual se pode compreender<br />

to<strong>da</strong> a filosofia de Nicolau de Cusa, pode-se também<br />

deduzir que essa teoria do conhecimento proposta<br />

pelo Cusano surge na introdução do De docta ignorantia<br />

como “uma hermenêutica dos nomes divinos, profun<strong>da</strong>mente<br />

influencia<strong>da</strong> pela obra do Pseudo-Dionísio, como<br />

já foi referido, e que só terminará com a última obra, o<br />

De ápice theoriae” (Cusa, 2003, p. XXI).<br />

No ápice <strong>da</strong> teoria, experiência (afeto, humor) e método<br />

(compreensão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de), próprios <strong>da</strong> dinâmica de<br />

realização <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, co-incidem numa transsumptio<br />

cusana, que, para Fogel (2003), “se constitui num pôr-se<br />

no mesmo tônus, no mesmo “tom”, ou seja, na mesma experiência,<br />

na mesma origem; trata-se assim de um sintonizar-se,<br />

de um sincronizar-se com a “coisa” – assim se<br />

é co-originário e co-partícipe” (Fogel, 2003, p. 49). O conhecimento<br />

torna-se então simpatia, paixão. É a experiência<br />

do logos, o sentido e a força <strong>da</strong> palavra nela conti<strong>da</strong><br />

e por ela perpassa<strong>da</strong>.<br />

É o momento em que a força <strong>da</strong> palavra se torna conhecimento,<br />

em que o problema do conhecimento e <strong>da</strong><br />

palavra é o mesmo que o problema do real. “É nessa<br />

hora, nesse contexto de intensi<strong>da</strong>de máxima do pensamento,<br />

nessa hora de radical concretização <strong>da</strong> essência<br />

do homem, que é preciso ouvir aquela afirmação: viver,<br />

existir, ser homem, no modo mais radical ou essencial<br />

possível, é conhecer” (Fogel, 2003, p. 52). É transpor-se<br />

para este ou aquele humor “o necessário <strong>da</strong> ocasião, <strong>da</strong><br />

157<br />

‘hora’ – para então ajustar-se, ‘adequar-se’ com ele, isto<br />

é, com as coisas” (Fogel, 2003, p. 53). Vê-se então que<br />

ser simpático é ajustar-se, supondo-se que ver<strong>da</strong>de seja<br />

mesmo a adequação, a correspondência, a consonância<br />

com as coisas.<br />

No entanto, segundo Vescovini, na obra La Caccia<br />

della sapienza (1998), o Cusano afirma que ninguém esteve<br />

mais atento a essa questão do que Aristóteles, para<br />

quem “aquele que forjou todos os nomes sabia perfeitamente<br />

ter expresso isto que sabe nos seus nomes e, como<br />

desenvolver esta ciência, fosse encontrar a perfeição do<br />

saber” (Vescovini, 1998, p. 134). Mas, apesar de tudo isto,<br />

chega o momento em que o buscador <strong>da</strong> sabedoria precisa<br />

negar todos os nomes que o homem impôs a Deus.<br />

Negar os nomes é diferente de interpretá-los. A interpretação<br />

requer alguns princípios; assim como fez Nicolau<br />

de Cusa em De genesi, ao partir <strong>da</strong> idéia de que todos os<br />

que falaram <strong>da</strong> Gênese fizeram-no de modos diversos.<br />

Usando o tema <strong>da</strong> Gênese como base a interpretação aponta<br />

inicialmente para “a necessi<strong>da</strong>de de contextualizar o<br />

discurso bíblico na capaci<strong>da</strong>de humana de compreensão<br />

e de apreensão” (Vescovini, 1998, p. 322); em segui<strong>da</strong><br />

aponta para “a transformação do movimento interpretativo<br />

num movimento de assimilação ao idem, ou seja, de<br />

confluência para o idem indizível, por um processo de relativização<br />

<strong>da</strong>s formas contraí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> expressão humana”<br />

(Vescovini, 1998, p. 322), e finalmente entendendo que<br />

“a percepção de que as interpretações dos sábios e Padres<br />

<strong>da</strong> Igreja não são senão modos diversos de apreensão do<br />

idem absoluto” (Vescovini, 1998, p. 322), que ca<strong>da</strong> qual<br />

procura representar de modo assimilativo.<br />

É desse modo que a interpretação dos textos bíblicos,<br />

filosóficos, teológicos ou místicos, funciona igualmente<br />

para todos, segundo esses princípios. Mesmo as expressões<br />

religiosas, ain<strong>da</strong> que permea<strong>da</strong>s “pela força <strong>da</strong> sabedoria<br />

inefável” (Vescovini, 1998, p. 325), não sejam senão<br />

conjecturas. Presente já no De intellectu et intelligibili de<br />

Alberto Magno 1 , está a afirmação de que “o intelecto é o<br />

ponto para o qual tendem to<strong>da</strong>s as filosofias” (Vescovini,<br />

1998, p. 134). É onde, para o teólogo Alberto, se articulam<br />

a natureza do pensar com a natureza <strong>da</strong> graça, apontando<br />

para uma visão beatífica do intelecto divino que é a<br />

partir de onde falam todos os filósofos, isto é, de uma teofania<br />

– manifestação ou revelação de Deus.<br />

Na medi<strong>da</strong> em que, para Alberto, as figuras do filósofo<br />

e do profeta tendem a se sobrepor, esse homem<br />

pode se elevar pelo pensamento ao “intelectus divinus”<br />

(Vescovini, 1998, p. 308). Citando Avicena, Hermes e<br />

Homero, Alberto continua dizendo ousa<strong>da</strong>mente que o filósofo<br />

é nexus dei et mundi, tendo uma função na liturgia<br />

cósmica. Instrumento de uma espécie de palingenesia 2 ,<br />

1 Cf. A. Combes, Jean Gerson commentateur dionysien. Texte inédit.<br />

Démonstration de son authenticité. Appendices historiques, Paris,<br />

Vrin, 1940. [1973].<br />

2 Renascimento, regeneração. Fil. Rel. O mesmo que metempsicose.<br />

Fil. Entre os estoicos, retorno periódico e incessante dos mesmos<br />

fenômenos; eterno retorno. Aulete Digital.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

o filósofo aparece em Scotus Erigena e Mestre Eckhart<br />

numa imensa lista de citações, operando como que uma<br />

fusão <strong>da</strong> “abstractio filosófica e <strong>da</strong> ablatio místico-teológica”<br />

(Vescovini, 1998, p. 312). Naturalmente surgem críticos,<br />

como Gerson, que preferem a visão de Agostinho,<br />

Dionísio e São Boaventura, que, a seus olhos, por não<br />

serem filósofos, têm mais direito de falar <strong>da</strong> ablatio por<br />

serem cristãos. O conteúdo de to<strong>da</strong> essa busca filosófico-<br />

-teológica e mística é definido por al-Farabi como “a união<br />

do filósofo com o intelecto absoluto [séparés]” (Vescovini,<br />

1998, p. 329), em outras palavras, como uma via que se<br />

adquire, objeto de um trabalho que se supõe seja progressivo.<br />

Mestre Eckhart denominou esse homem <strong>da</strong> busca de<br />

“homem nobre”, “homem pobre” ou “homem desapegado”<br />

(Vescovini, 1998, p. 330). Discípulo de Alberto, Eckhart<br />

“continuou em teologia a obra compila<strong>da</strong> por seu mestre<br />

na filosofia” (Vescovini, 1998, p. 333).<br />

O modelo do homem desprendido (l´home détaché)<br />

é Jesus Cristo, que na exegese de Lucas (19,12) aparece<br />

como um homem de nobre origem que parte para uma<br />

região distante a fim de ser investido <strong>da</strong> realeza e então<br />

voltar. Essa metáfora aponta para a necessi<strong>da</strong>de de superação,<br />

de “ultrapassamento do saber em direção ao Verbo”<br />

(Vescovini, 1998, p. 336), quando então o modelo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

bem-aventura<strong>da</strong> é cristológico. Encontrar esse fundo sem<br />

imagens, onde a ética e a filosofia estão para lá de todos<br />

os nomes de Deus, é a ver<strong>da</strong>deira pobreza, é quando filosofar<br />

e contemplar<br />

consiste em “reentrar” em seu próprio fundo e, estando<br />

lá, “agir” “sem porque”, “nem por Deus, nem<br />

por sua própria felici<strong>da</strong>de, nem por quem esteja fora<br />

de si, mas unicamente em consideração disto que é<br />

em si seu ser próprio e sua própria vi<strong>da</strong> (Vescovini,<br />

1998, p. 341).<br />

No fundo, afirma De Libera, “Eckhart não diz na<strong>da</strong><br />

além do que disse Orígenes: to<strong>da</strong> a filosofia já está<br />

na Escritura” (Vescovini, 1998, p. 350), especialmente<br />

no Novo Testamento, mais especialmente ain<strong>da</strong>, no<br />

Evangelho segundo São João.<br />

A partir do momento em que se transpõe a dialética<br />

dos símbolos, rumo à experiência mística, é a força <strong>da</strong> palavra<br />

devi<strong>da</strong>mente potencializa<strong>da</strong> o que vai poder mover<br />

o ouvinte, uma vez que há uma força oculta por detrás de<br />

ca<strong>da</strong> palavra. A força <strong>da</strong>s palavras aparece, diz André:<br />

“Assim como uma contracção <strong>da</strong> força <strong>da</strong> mente, que se<br />

‘explica’ nas múltiplas palavras que são, no mais fundo<br />

delas próprias, núcleos energéticos discursivos e que só<br />

podem ser entendi<strong>da</strong>s nesse jogo dinâmico” (André, 2006,<br />

p. 18), que se estabelece entre as coisas do mundo externo<br />

e seu referente interno, isto é, a mente.<br />

É assim que em seu desdobramento, o Verbo, Jesus<br />

Cristo, “não sendo cognoscível neste mundo onde, no âmbito<br />

<strong>da</strong> razão, <strong>da</strong> opinião, <strong>da</strong> doutrina, somos conduzidos,<br />

através de símbolos, pelas coisas desconheci<strong>da</strong>s ao des-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012<br />

Sonia Lyra<br />

conhecido, só é apreendido onde cessam as persuasões e<br />

começa a fé” (Cusa, 2003, p. 173). Uma vez que o conhecimento<br />

intelectual é dirigido pela fé, visto ser uma explicatio<br />

<strong>da</strong> fé, onde a fé não for sã, aí também não é possível<br />

um conhecimento intelectual ver<strong>da</strong>deiro, conduzindo<br />

nesse caso à debili<strong>da</strong>de dos princípios e fun<strong>da</strong>mentos.<br />

Esta fé é o próprio Jesus Cristo, uma vez que como diz São<br />

João, é a própria encarnação do Verbo, a douta ignorância.<br />

E o Cusano finaliza dizendo que, “quando nos esforçamos<br />

por olhar com os olhos intelectuais, caímos na escuridão,<br />

sabendo que dentro dessa escuridão está o monte<br />

no qual só é permitido habitar àqueles que são dotados<br />

de intelecto” (Cusa, 2003, p. 173). São estes os capazes de<br />

compreender incompreensivelmente que “to<strong>da</strong> palavra<br />

corporal é sinal do verbo mental” (Cusa, 2003, p. 174) e<br />

que to<strong>da</strong>s as coisas cria<strong>da</strong>s são, <strong>da</strong> mesma forma, “sinais<br />

do Verbo de Deus” (Cusa, 2003, p. 174).<br />

Esse conhecimento se manifesta gradualmente através<br />

<strong>da</strong> fé, pela qual se ascende a Cristo, isto é, Cristo é a<br />

causa de todo verbo mental corruptível, pois ele é a razão,<br />

o verbo incorruptível. Cristo é a própria razão encarna<strong>da</strong><br />

de to<strong>da</strong>s as razões, porque “o verbo se fez carne”<br />

(Cusa, 2003, p. 175).<br />

1. A Definição que Tudo Define<br />

De acordo com Nicolau de Cusa, todo conceito humano<br />

é “conceito de algo uno” (Cusa, 2008, p. 197), isto é,<br />

to<strong>da</strong> definição que tudo define é não outro que o definido.<br />

É a definição que, acima de tudo, nos faz saber. Em outras<br />

palavras, “a razão é a definição” (Cusa, 2008, p. 29).<br />

O Cusano diz que, talvez, seja Dionísio quem mais se<br />

aproximou desse entendimento, quando, ao chegar ao<br />

fim <strong>da</strong> Teologia Mística, afirma que “o criador nem é algo<br />

que possa ter nome nem é algo outro” (Cusa, 2008, p. 35).<br />

Sendo Deus princípio de todos os nomes assim como <strong>da</strong>s<br />

coisas, e ain<strong>da</strong> que o próprio princípio possa receber muitos<br />

nomes, nenhum nome lhe pode ser adequado. Não se<br />

podendo constatar que nenhum outro vocábulo dirige melhor<br />

a visão humana até o primeiro princípio, é denominado,<br />

por isso, “li no-otro” (Cusa, 2008, p. 37). É quando<br />

se pode ver que “Deus é não-outro que Deus e que algo<br />

é não-outro que algo, e que na<strong>da</strong> é não-outro que na<strong>da</strong>,<br />

e que não-ente é não outro que não-ente” (Cusa, 2008, p.<br />

39). É quando se vê então que não-outro é a definição que<br />

antecede to<strong>da</strong> definição, sendo, pois, o significado de li<br />

o que mais se aproxima do inominável nome de Deus.<br />

Experimenta-se assim que o olhar sensível, sem a<br />

luz, na<strong>da</strong> pode ver, e que a cor não é senão a determinação<br />

ou a definição <strong>da</strong> luz sensível, sendo então que “a<br />

luz sensível é o princípio do ser e do conhecer o visível<br />

sensível” (Cusa, 2008, p. 43); <strong>da</strong> mesma forma, o som é<br />

o princípio do ser e do conhecer o audível. Suprimido o<br />

não-outro, segundo o Cardeal, na<strong>da</strong> resta <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />

nem do conhecimento.<br />

158


A Força <strong>da</strong> Palavra em Nicolau de Cusa<br />

Tal conhecimento somente pode ser entendido por<br />

meio de si mesmo, não podendo ser expresso de outra<br />

maneira. Não pode ser afirmação nem negação, e só pode<br />

ser percebido pela coincidência dos opostos, sendo visto<br />

“antes de todo acréscimo e de to<strong>da</strong> supressão” (Cusa,<br />

2008, p. 53), isto é, o não-outro de modo nenhum pode<br />

ser alterado ou mu<strong>da</strong>do pelo que quer que seja.<br />

Nessa teoria do conhecimento, que, por assim dizer,<br />

desemboca no conceito de não-outro, o não-outro,<br />

ele mesmo,<br />

159<br />

é a razão mais adequa<strong>da</strong> e o discernimento e a medi<strong>da</strong><br />

de tudo o que é, para que seja; e o que não é para que<br />

não seja; e o que pode ser para que possa ser; e o que<br />

é assim para que assim seja; e o que é movido, para<br />

que se mova; e o que está em pé, para que permaneça<br />

em pé; e o que vive, para que viva; e o que entende,<br />

para que enten<strong>da</strong>; e do mesmo modo, tudo (Cusa,<br />

2008, p. 59).<br />

É, pois, necessário que o não-outro defina a si mesmo<br />

como, <strong>da</strong> mesma forma, conceituando e nomeando<br />

tudo aquilo que pode ser nomeado. Antes do conceito<br />

está portanto o não-outro, o que significa que o conceito<br />

é “não-outro que conceito” (Cusa, 2008, p. 197). Em consequência<br />

disso, o não-outro é denominado de conceito<br />

absoluto, o qual pode somente ser visto com a mente, ain<strong>da</strong><br />

que não possa ser conceituado. O não-outro, não conceituável,<br />

no entanto, ao definir-se a si mesmo, se mostra<br />

trino. Denominar a trin<strong>da</strong>de como “uni<strong>da</strong>de”, “igual<strong>da</strong>de”<br />

e “nexo” é um modo de aceder ao uno, pois são esses os<br />

termos nos quais “reluz o não-outro” (Cusa, 2008, p. 65)<br />

de modo mais claro. Tratando-se de definições, os termos<br />

“isto”, “isso” e “o mesmo”, segundo o Cusano, “imitam de<br />

modo mais brilhante e mais preciso o não-outro” (Cusa,<br />

2008, p. 66, 67), embora sejam termos menos usados.<br />

É quando, ao definir-se a si mesmo, o primeiro princípio,<br />

significado por meio do não-outro, “nesse movimento<br />

definido a partir do não-outro, se origina do não-outro e<br />

também a partir do não-outro e é originado o não-outro,<br />

no não-outro termina a definição” (Cusa, 2008, p. 67).<br />

Qualquer apreensão somente poderá ser intuí<strong>da</strong> para<br />

além <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de humana, através <strong>da</strong> contemplação,<br />

pois de outro modo não seria possível dizê-la.<br />

Sendo, portanto, outro que o não-outro, Deus “é em<br />

tudo, ain<strong>da</strong> que na<strong>da</strong> de tudo” (Cusa, 2008, p. 71), o que<br />

significa um cessar de tudo que é e que não é, caso cesse<br />

o não-outro. A proposta de Nicolau de Cusa é que se<br />

veja no inominável não a privação do nome, mas, antes,<br />

o “antes de todo nome” (Cusa, 2008, p. 73). É este o modo<br />

como o desconhecido reluz no conhecido cognoscitivamente,<br />

do mesmo modo que a clari<strong>da</strong>de do sol reluz sensivelmente<br />

e que com a visão <strong>da</strong> mente se alcança por<br />

sobre ou fora de to<strong>da</strong> compreensão.<br />

Tratando-se, porém, do fato de que não se pode explicar<br />

na<strong>da</strong> sem a palavra e só podendo fazê-lo através<br />

do termo “ser”, deve-se assim proceder para que os que<br />

ouvem compreen<strong>da</strong>m. Convém, diz o Cusano, que aquele<br />

que especula opere<br />

como o que vê a neve através de um vidro vermelho, o<br />

qual vê a neve e atribui a aparência do vermelho não à<br />

neve, mas ao vidro; <strong>da</strong> mesma maneira opera a mente;<br />

por meio <strong>da</strong> forma vê a não-forma (Cusa, 2008, p. 93).<br />

O não-outro é, então, tanto princípio do ser, “através<br />

do qual a alma tem o ser, como princípio do conhecer,<br />

pelo qual conhece e, como princípio do desejar, pelo<br />

qual não somente tem o querer, senão que, especulando<br />

seu princípio unitrino naqueles princípios, ascende à sua<br />

glória” (Cusa, 2008, p. 95). Pode-se ver então que to<strong>da</strong><br />

criatura é manifestação do mesmo criador, que se define<br />

a si mesmo, ou<br />

<strong>da</strong> luz que é Deus, que se manifesta a si mesma; como<br />

se fosse a exibição <strong>da</strong> mente que se define a si mesma;<br />

que para os presentes se faz pela elocução viva e para<br />

os distantes por meio <strong>da</strong> mensagem ou <strong>da</strong> escrita<br />

(Cusa, 2008, p. 233).<br />

Dialogar é a metáfora mais precisa para designar o<br />

projeto filosófico de Nicolau de Cusa. Os nomes impostos<br />

pela razão são sempre passíveis de um excedente, de um<br />

mais e de um menos, ou seja, de proporção e de comparação<br />

e, consequentemente, partem <strong>da</strong>s oposições relativas<br />

entre os contrários.<br />

A preferência de Nicolau de Cusa pela teologia negativa<br />

ocorre para que possa negar a adequação de todo<br />

nome criatural para com Deus e com isso evitar a idolatria,<br />

empurrando, por assim dizer, o intelecto no sentido<br />

de situá-lo para além <strong>da</strong> afirmação e <strong>da</strong> negação,<br />

tentando captar formulações “que expressem a captação<br />

de Deus como coincidência dos opostos” (Cusa, 2008,<br />

p. 251). O Cusano propõe ain<strong>da</strong>, através <strong>da</strong> negação e pelo<br />

conceito de não-outro, a negação <strong>da</strong> disjunção comparativa,<br />

bem como a negação <strong>da</strong> própria conjunção. Nega<br />

não só que o primeiro princípio seja ou não seja, como<br />

se poderia fazer por meio <strong>da</strong> linguagem intelectual <strong>da</strong><br />

coincidência, mas chega ao ponto de negar essa mesma<br />

linguagem que afirma que o primeiro princípio é e não<br />

é. Isso faz com que eleve o intelecto, que é a raiz <strong>da</strong> razão,<br />

e dos termos intelectuais que são a raiz dos racionais,<br />

para a busca do primeiro princípio que é anterior à<br />

coincidência dos opostos.<br />

Conclui que, nessa teoria do conhecimento, os nomes<br />

intelectuais onde os contrários coincidem, são menos<br />

inadequados, uma vez que uma linguagem divinal que<br />

supere tanto a razão quanto o intelecto pode ser apenas<br />

reconhecível, não, porém, praticável.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

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Vescovini, G. F. (1998). Il pensiero di Nicolau Cusano. Turim:<br />

UTET.<br />

Sonia Regina lyra é Psicóloga - Analista Junguiana, Mestre em Filosofia<br />

pela Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica do Paraná, Doutora em<br />

Ciências <strong>da</strong> Religião pela Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de São Paulo<br />

e Pós-Doutoran<strong>da</strong> em Humani<strong>da</strong>des e Saúde pela Universi<strong>da</strong>de Federal<br />

de São Paulo. É Diretora do Ichthys – Instituto de Psicologia e Religião<br />

(www.ichthysinstituto.com.br). Email: sonia@ichthysinstituto.com.br<br />

Recebido em 17.05.11<br />

Aceito em 25.03.12<br />

160


Tédio e Trabalho na Pós-Moderni<strong>da</strong>de<br />

161<br />

TÉDIO E TRAbALHO NA pÓS-MODERNIDADE<br />

Boredom and work in the post-modernity<br />

Apatia existencial y trabajo en la pos moderni<strong>da</strong>d<br />

KArinA oKAJiMA FuKuMitsu<br />

JúliA yoriKo HAyAKAwA, suzAn eMie KudA, elisA HAruMi MusHA, tAuAne cristinA do nAsciMento, brunA bezerrA oliveirA,<br />

elisAbete HArA GArciA rocHA, dAiAny APArecidA Alves dos sAntos, KAren ueKi, lucAs PAlHAri vAsconcelos<br />

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar as relações entre tédio existencial, tempo e trabalho na pós-moderni<strong>da</strong>de.<br />

O trabalho considera duas perspectivas: a primeira, o caráter que impede o trabalhador de se apropriar do tempo tornando-se<br />

entediado; a segun<strong>da</strong>, a dimensão facilitadora para o serviço que faz sentido ao trabalhador. Na socie<strong>da</strong>de pós-moderna,<br />

percebe-se um esvaziamento de significados devido à deman<strong>da</strong> de produção técnica que, associa<strong>da</strong> ao tédio, resulta na per<strong>da</strong><br />

de sentido para o trabalhador. Nesse contexto, o homem que busca preencher seu tempo por meio <strong>da</strong>s inúmeras ocupações não<br />

se permite entrar em contato com seu projeto existencial. Entretanto, a vantagem <strong>da</strong> constatação do tédio existencial favorece a<br />

autentici<strong>da</strong>de e permite possibili<strong>da</strong>des de ressignificações para a compreensão do tempo vivido.<br />

Palavras-chave: Tédio existencial; Trabalho; Tempo.<br />

Abstract: This present article there is how objective show the established relation between the existential boredom, time and<br />

work in the post-modernity. The work is seen from two perspectives: the first is about a one negative character; and the second,<br />

a positive dimension. In the post-modernity society, there is one emptying of your positive mean that associate with boredom<br />

can result in lose sense. In this context, the man to fill search your time through every<strong>da</strong>y occupations and as soon as the work<br />

to show like central factor in your life, can create to mount up activities that don´t permit enter in contact with your existential<br />

project. However, the existential boredom can open to way to new possibilities of the meet with future reframes.<br />

Keywords: Existential boredom; Work; Time.<br />

Resumen: El siguiente artículo tiene como objetivo presentar las relaciones entre la existencia y el burrimiento, tiempo y trabajo<br />

en la pos moderni<strong>da</strong>d. El trabajo considera dos perspectivas: la primera, el carácter que impide al trabajador de apropiarse<br />

del tiempo volviéndose tedioso; la segun<strong>da</strong>, la dimensión facilitadora para el servicio que <strong>da</strong> sentido al trabajador. En la socie<strong>da</strong>d<br />

post-moderna, se percibe una carencia de significados debido a la deman<strong>da</strong> de producción técnica que, asocia<strong>da</strong> a la<br />

monotonía, resulta en la perdi<strong>da</strong> del sentido para el trabajador. En este contexto el hombre que busca satisfacer su tiempo por<br />

medio de las innumerables ocupaciones no se permite entrar en contacto con su proyecto esencial. Entretanto, la ventaja de<br />

la constancia de apatía existencial favorece a la autentici<strong>da</strong>d y permite posibili<strong>da</strong>des de re significación para la comprensión<br />

del tiempo vivido.<br />

Palabras-clave: Apatía existencial; Trabajo; Tiempo.<br />

Introdução<br />

A ação e ocupação humana estão intrinsicamente relaciona<strong>da</strong>s<br />

ao tempo. Apesar de o trabalho ser reconhecido<br />

como uma ativi<strong>da</strong>de central, que ocupa quase totalmente<br />

o tempo e espaço do cotidiano humano, torna-se crescente<br />

o número de trabalhadores que não reconhecem o<br />

ambiente profissional como um espaço de realização e<br />

possibili<strong>da</strong>des.<br />

No contexto pós-moderno, as informações sobre bens<br />

de consumo podem provocar no homem a falsa percepção<br />

de que ele é o que produz, tornando-o refém de um<br />

status quo e de uma exigência para produzir ca<strong>da</strong> vez<br />

mais. Assim, o dilema entre ser, ter e parecer se instala.<br />

O presente artigo tem o objetivo de estabelecer relações<br />

entre tédio e trabalho na pós-moderni<strong>da</strong>de, segun-<br />

do a concepção fenomenológico-existencial que além de<br />

ser uma visão preocupa<strong>da</strong> com as questões existenciais,<br />

está também comprometi<strong>da</strong> com o modo de o ser humano<br />

apoderar-se de sua existência.<br />

O mundo moderno é demarcado por dois tempos: o<br />

cronológico e o vivencial. Sendo assim, o trabalho é apresentado<br />

no estudo como uma ocupação do ser humano<br />

associa<strong>da</strong> ao tempo.<br />

Chauí (1995, p. 241) nos ensina que:<br />

Somos seres temporais – nascemos e temos consciência<br />

<strong>da</strong> morte. Somos seres intersubjetivos – vivemos na<br />

companhia dos outros. Somos seres culturais – criamos<br />

a linguagem, o trabalho, a socie<strong>da</strong>de, a religião,<br />

a política, a ética, as artes e as técnicas, a filosofia e<br />

as ciências.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Karina O. Fukumitsu; Júlia Y. Hayakawa; Suzan E. Ku<strong>da</strong>; Elisa H. Musha; Tauane C. Nascimento; Bruna B. Oliveira;<br />

Elisabete H. G. Rocha; Daiany A. A. Santos; Karen Ueki & Lucas P. Vasconcelos<br />

Reflete, portanto, sobre o tempo quando vivenciado<br />

pelo esvaziamento de significados e, concomitantemente,<br />

sobre a voraci<strong>da</strong>de que impele o ser a buscar novi<strong>da</strong>des<br />

para evitar a constatação do vazio existencial.<br />

Considera-se também nesse estudo o tédio e a falta de<br />

sentido no trabalho, e a fuga do tédio por meio do trabalho,<br />

contemplando a compreensão <strong>da</strong>s pessoas que trabalham<br />

demasia<strong>da</strong>mente, os workaholics.<br />

O tempo permite tanto compreender o existente humano<br />

em seu ser, quanto qualquer modo de ser possível<br />

e, por esse motivo, nas duas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de tempo<br />

supracita<strong>da</strong>s, o tédio emerge e pode ser compreendido<br />

como uma <strong>da</strong>s manifestações <strong>da</strong> angústia do indivíduo<br />

moderno que projeta sua inautentici<strong>da</strong>de provoca<strong>da</strong> pelo<br />

esquecimento do ser.<br />

1. O Homem e o Tempo na pós-Moderni<strong>da</strong>de<br />

O homem é possibili<strong>da</strong>de de ser e se relaciona com<br />

o tempo não apenas objetiva e mensuravelmente, mas o<br />

experiencia de maneira singular e própria. Logo, o tempo<br />

não é, mas se temporaliza, porque produz a si mesmo<br />

de diferentes modos: temporali<strong>da</strong>de originária, tempo do<br />

mundo e tempo comum (Reis, 2005).<br />

O tempo comum tem origem na <strong>da</strong>tabili<strong>da</strong>de do tempo<br />

cronológico (kronos), o que resulta uma série de instantes<br />

idênticos e não relacionados entre si. Em geral, o ser humano<br />

não se relaciona com o tempo de outro jeito a não<br />

ser aquele mensurável que remete ao tempo do relógio, ao<br />

aqui e agora, ao ontem e ao amanhã (Josgrilberg, 2007).<br />

Em contraparti<strong>da</strong>, apresentar o tempo somente como uma<br />

somatória de eventos do presente reduz outras possibili<strong>da</strong>des<br />

de compreensões. Desse modo, Kirchner (2007,<br />

p. 187) questiona: “Será que, quanto mais o tempo é exclusivamente<br />

mensurado e cronometrado, menos experiências<br />

as pessoas fazem com o tempo junto à ocupação<br />

do mundo e como tempo <strong>da</strong> temporali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> presença?”<br />

O autor se baseia na consideração de que responder<br />

a tal questão seria um equívoco e ain<strong>da</strong> reflete sobre o<br />

fato de que mensurar e cronometrar o tempo só se torna<br />

viável pela possibili<strong>da</strong>de de a contagem já ser sempre<br />

acessível ao próprio ser.<br />

Josgrilberg (2007) aponta também para a interpretação<br />

ontológica de Heidegger sobre a experiência do tempo que<br />

constitui o próprio Dasein, o existente humano. Na mesma<br />

direção, Bilibio (2005, p. 78) tenta “(...) compreender<br />

a experiência do tempo de modo fenomenológico a partir<br />

<strong>da</strong> própria existência humana e de sua finitude (...)”.<br />

De acordo com Minkowski (2011), tanto a ideia de<br />

tempo mensurável quanto a noção de desorientação no<br />

tempo não esgotariam o fenômeno do tempo vivido e,<br />

dessa forma, é possível desorientar-se no tempo em alguns<br />

momentos. A monotonia gera<strong>da</strong> por essa desorientação<br />

leva ao tédio que, por sua vez, gera sofrimento nas<br />

pessoas que lutam contra esse fenômeno essencialmen-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012<br />

te temporal. Para o autor, o tempo apresenta um excesso<br />

de imagens dinâmicas e artificiais que aparecem constantemente<br />

e se relacionam a eventos do mundo exterior<br />

e/ou <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> íntima do ser. Sendo assim, a vi<strong>da</strong> segue<br />

um curso violento, levando a uma sucessão de imagens e<br />

acontecimentos que não oferecem nenhum apoio à necessi<strong>da</strong>de<br />

de refletir, tornando-a um turbilhão de episódios.<br />

2. O Ser-no-Mundo na pós-Moderni<strong>da</strong>de<br />

É o homem que precisa se adequar ao lugar e ao tempo?<br />

Ou deve-se pensar o contrário: é o lugar e o tempo<br />

que precisam ser adequados ao homem? Para eluci<strong>da</strong>r<br />

tais questões, pode-se compreender o tempo e o espaço<br />

por meio <strong>da</strong> mitologia grega em torno dos mitos de<br />

Kronos e Kairós.<br />

Kronos, de acordo com a mitologia, era um dos deuses<br />

que receava a realização <strong>da</strong> profecia de que seria destronado<br />

por um de seus filhos, motivo pelo qual os devorava.<br />

Zeus, um desses filhos, foi poupado <strong>da</strong> morte e escondido<br />

por sua mãe, retornando para reivindicar o trono e<br />

exigindo que Kronos libertasse seus irmãos Ades, Hera,<br />

Possêidon, Héstia e Deméter. Zeus expulsou então Kronos<br />

do Olimpo e se tornou imortal, poder concedido também<br />

aos irmãos, enquanto seu pai foi jogado ao limbo. Kairós,<br />

segundo a len<strong>da</strong>, demarca o tempo vivido.<br />

A socie<strong>da</strong>de contemporânea, igualmente, pauta-se no<br />

tempo cronológico, ou seja, em Kronos, sendo este o útil,<br />

o sequencial, que se contrapõe ao tempo vivenciado e<br />

representado por Kairós. Nesse sentido, o trabalho pode<br />

se embasar nas concepções de Kronos e não permitem<br />

que o indivíduo se aproprie de seu projeto existencial.<br />

Em contraparti<strong>da</strong>, o apropriar-se do tempo relaciona-se<br />

à concepção pertencente ao tempo vivenciado, isto é,<br />

Kairós, que possibilita a reflexão sobre a ação e se aproxima<br />

do vazio fértil.<br />

Vazio e solidão fazem parte <strong>da</strong> condição de singularização.<br />

Ao contrário, o anonimato é o esforço <strong>da</strong> evitação<br />

do contato com a angústia. É pela manutenção do anonimato<br />

que o ser humano encontra lugar para devolver<br />

a aparência de que tudo está bem e que na<strong>da</strong> precisa ser<br />

alterado. É pela constatação <strong>da</strong> angústia e vivência de<br />

acolhimento do vazio existencial que o homem desperta<br />

de sua condição de ser-no-mundo. Nesse sentido, a diferença<br />

entre estar-no-mundo dos homens e ser-no-mundo<br />

é aponta<strong>da</strong>, pois estar-no-mundo dos homens significa<br />

seguir determinismos e a justificativa causal de que o<br />

homem é produto do meio, restando-lhe apenas o quietismo<br />

e o anonimato. Em contraparti<strong>da</strong>, o ser-no-mundo<br />

significa habitar, atuar sobre e no mundo de modo que<br />

possa interferir, modificar, inventar, criar e sobretudo,<br />

engajar-se e exercitar sua transcendência. E assim como<br />

Sartre (2010) ensina “O quietismo é a atitude <strong>da</strong>queles que<br />

dizem: ‘Os outros podem fazer aquilo que eu nao posso’<br />

(...) só existe reali<strong>da</strong>de na ação.’” (pp. 41-42)<br />

162


Tédio e Trabalho na Pós-Moderni<strong>da</strong>de<br />

Porém, a possibili<strong>da</strong>de de despertar do anonimato revela<br />

a possibili<strong>da</strong>de de refletir sobre a ampliação <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des<br />

existenciais, quer dizer, para ser visto é necessário<br />

ser preciso no tempo e no espaço. Para ser visto, o<br />

ser humano precisa se ver e se reconhecer, sem depender<br />

do reconhecimento externo do que faz, de quem é e do lugar<br />

a que pertence. No entanto, há de se considerar, nesse<br />

momento, os casos de pessoas que trabalham apenas pela<br />

necessi<strong>da</strong>de financeira e que trocariam prontamente de<br />

ativi<strong>da</strong>de profissional se recebessem mais. Por isso faz-se<br />

importante a reflexão do tédio existencial no contexto do<br />

trabalho, pois “não somos mais capazes de nos situar no<br />

mundo porque nossa própria relação com ele [mundo] foi<br />

praticamente perdi<strong>da</strong>” (Svendsen, 2006, p. 20).<br />

3. A Satisfação é Encontra<strong>da</strong> no Ser, Ter ou no parecer?<br />

O homem busca a satisfação <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des e a expressão<br />

<strong>da</strong>s próprias emoções. E, por muitas vezes, acredita<br />

que, se for considerado bem-sucedido profissionalmente<br />

ou se ganhar muito dinheiro, garantirá seu lugar<br />

de pertencimento. Adota então, várias estratégias para<br />

manter o status quo, tornando-se aprisionado pela ideia<br />

de que para ser visto e reconhecido, precisa dedicar seu<br />

tempo somente ao trabalho. Ou quando sua competência<br />

é testa<strong>da</strong> e a insegurança se instala, o olhar do outro<br />

é perseguido como um pedido de aprovação, e o ser humano<br />

sente necessi<strong>da</strong>de de ser visto e confirmado não<br />

por quem é, mas pelo que conquistou. Dessa maneira, o<br />

ter e o parecer se tornam mais importantes do que o ser.<br />

Sabe-se que tudo depende do grau e, em caso de pessoas<br />

que trabalham demasia<strong>da</strong>mente, o excesso causa a<br />

falta, pois ao mergulhar em seu trabalho, o workaholic não<br />

precisa se submeter ao olhar profundo do próprio vazio<br />

existencial e, em contraparti<strong>da</strong>, <strong>da</strong>r-se-á um luto de significados<br />

do tempo e do espaço que ocupa. O tédio será<br />

mantido. O vazio perdurará e a solidão se manifestará,<br />

independentemente do que fizer ou produzir.<br />

Nesse ponto, o ocupar-se pode ser vivido própria ou<br />

impropriamente, mas “(...) tanto em um quanto o outro<br />

há a possibili<strong>da</strong>de de autentici<strong>da</strong>de” (Seibt, 2008, p. 501).<br />

Assim, a inautentici<strong>da</strong>de surge quando o ser não se apodera<br />

de seu projeto existencial, quando procura nos entes<br />

o significado de sua existência, quando não se conscientiza<br />

<strong>da</strong> finitude e quando enfatiza o ter e o parecer.<br />

O eu é dito pelo impessoal, que foge de si, e se percebe<br />

por meio de suas ocupações, ou seja, o ser se dilui nas<br />

ocupações diárias e desvela seu jeito inautêntico de ser,<br />

manifestando-se em três constituições fun<strong>da</strong>mentais:<br />

a factici<strong>da</strong>de, a existenciali<strong>da</strong>de e a ruína, que diz respeito<br />

a se lançar na cotidiani<strong>da</strong>de e no anonimato, isto<br />

é, “(...) ele [Dasein] vegeta na banali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ocupações<br />

corriqueiras, desviando-se de si mesmo e do projeto ontológico”<br />

(Costa, 2010, p. 156).<br />

163<br />

Nesse caso, Costa (2010) aponta que a ocupação ocorre<br />

por uma aproximação de acordo com o Dasein, que necessita<br />

de um sentido para sua vi<strong>da</strong>, e a maneira como<br />

absorve ou não o tempo orienta também a forma de existir<br />

no mundo. O autor ain<strong>da</strong> acrescenta que:<br />

O homem contemporâneo é dominado pelo processo<br />

técnico, no sentido de enxergar nele o único meio<br />

de sobrevivência e consequentemente de se adequar<br />

no mundo moderno, se diluindo em meio aos outros<br />

entes, se deixando arrastar pela vi<strong>da</strong> inautêntica em<br />

meio aos objetos que manipula (p. 155).<br />

O trabalho não é um fim em si mesmo, mas unicamente<br />

um meio para alcançar outra finali<strong>da</strong>de (Ribeiro<br />

& Le<strong>da</strong>, 2004). É no contexto em que o sentido é depositado<br />

nos objetos e não na finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que podemos<br />

compreender a per<strong>da</strong> de significação que Giovanetti<br />

(2002, p. 99) descreve como “(...) a ausência de rumo que<br />

dê significado ao ato”. Portanto, para o mesmo autor,<br />

o sentido é expresso na direção que se imprime ao viver<br />

algo e, colocar sentido nas coisas é, então, falsear o<br />

problema. De acordo com Ribeiro e Le<strong>da</strong> (2004, p. 77):<br />

“Ao longo dos tempos, identificam-se duas visões contraditórias<br />

do trabalho que convivem nos mesmos espaços,<br />

e, por vezes, um mesmo indivíduo revela sentimentos ambíguos<br />

em relação a sua vi<strong>da</strong> profissional.”<br />

Por muito tempo o significado de trabalho foi associado<br />

ao fardo e sacrifício, e sua concepção como fonte<br />

de identi<strong>da</strong>de e autorrealização humana foi constituí<strong>da</strong><br />

a partir do Renascimento. Então, “constata-se (...) que o<br />

trabalho apresenta duas perspectivas distintas. A primeira<br />

referente a um caráter negativo; e a segun<strong>da</strong> a uma dimensão<br />

positiva” (Ribeiro & Le<strong>da</strong>, 2004, p. 77).<br />

No entanto, na pós-moderni<strong>da</strong>de, percebe-se a retira<strong>da</strong><br />

do valor positivo do trabalho e vive-se um momento<br />

histórico de esvaziamento de seu significado, ou, nas<br />

palavras de Ribeiro e Le<strong>da</strong> (2004, p. 80): “há um desconforto<br />

que, conforme as circunstâncias a serem vivi<strong>da</strong>s,<br />

vai desencadeando adoecimento psíquico e somático nos<br />

indivíduos”.<br />

4. O Esvaziamento do Significado e o Tédio<br />

O esvaziamento do significado de trabalho associa-se<br />

diretamente ao tédio, pois abrange tanto a per<strong>da</strong> de definições<br />

pessoais quanto o esgotamento de sentido na vi<strong>da</strong><br />

e na relação com o mundo. Albom (1998, p. 48) aponta a<br />

lição de seu professor Morrie:<br />

Tanta gente an<strong>da</strong> de um lado para outro levando vi<strong>da</strong>s<br />

sem sentido. Parecem semi-adormeci<strong>da</strong>s, mesmo<br />

quando ocupa<strong>da</strong>s em coisas que julgam importantes.<br />

Isso acontece porque estão correndo atrás do objetivo<br />

errado. Só podemos <strong>da</strong>r sentido à vi<strong>da</strong> dedicando-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Karina O. Fukumitsu; Júlia Y. Hayakawa; Suzan E. Ku<strong>da</strong>; Elisa H. Musha; Tauane C. Nascimento; Bruna B. Oliveira;<br />

Elisabete H. G. Rocha; Daiany A. A. Santos; Karen Ueki & Lucas P. Vasconcelos<br />

-nos a nossos semelhantes e à comuni<strong>da</strong>de e nos<br />

empenhando na criação de alguma coisa que tenha<br />

alcance e sentido.<br />

O tédio é compreendido como restrição <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />

existencial pela qual há evidência na dificul<strong>da</strong>de de<br />

ação, ou seja, torna-se subjacente à maioria <strong>da</strong>s ações humanas<br />

corriqueiras, com um caráter positivo e negativo.<br />

Por conseguinte,<br />

O tédio está associado a uma maneira de passar o<br />

tempo, em que o tempo, em vez de ser um horizonte<br />

para oportuni<strong>da</strong>des, é algo que precisa ser consumido.<br />

[...] Não sabemos o que fazer com o tempo quando estamos<br />

entediados, pois é precisamente então que nossas<br />

capaci<strong>da</strong>des ficam inertes e nenhuma oportuni<strong>da</strong>de<br />

real se apresenta (Svendsen, 2006, p. 24).<br />

Além disso, cabe salientar a diferença entre o tédio<br />

do senso comum – o situacional – e o tédio existencial.<br />

O primeiro é o estado de ficar entediado e responsabilizar<br />

outrem pela dificul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ação. O segundo é ser entediado<br />

e relacionar-se ao vazio existencial. Em geral, o<br />

tédio situacional manifesta-se quando não se pode fazer<br />

o que se quer ou em situações em que o indivíduo precisa<br />

fazer o que não quer e, consequentemente, surge a<br />

necessi<strong>da</strong>de de passatempos. Para Kirchner (2007), passatempos<br />

têm o objetivo de aniquilar o tempo do mundo<br />

e são resultados de um tempo que não é pensado, sendo<br />

possível inferir que o homem não pode compensar o tempo<br />

em suas ocupações.<br />

Para Svendsen (2006), o tédio se caracteriza por uma<br />

condição de desorientação que se apresenta no estado<br />

de tédio profundo. O tédio se faz entediante, porque parece<br />

algo infinito. É capaz também de revelar a própria<br />

finitude <strong>da</strong> existência. O tédio, em comparação à morte,<br />

assemelha-se a uma espécie de antecipação fúnebre, pois<br />

tédio tem relações com a finitude e com o na<strong>da</strong>. “É uma<br />

morte em vi<strong>da</strong>, uma não vi<strong>da</strong>” (p. 43).<br />

Como dito anteriormente, reflete-se sobre indivíduos<br />

que procuram se ocupar, porque a ocupação se torna um<br />

jeito de evitar o vazio provocado pelo tédio. Desse modo,<br />

o que mais importa não é a ativi<strong>da</strong>de com a qual se ocupam,<br />

e, sim, como a ocupação em si acontece. Portanto, o<br />

passar o tempo pode ser considerado uma tentativa de se<br />

evitar o tédio, ao se procurar qualquer coisa com a qual se<br />

possa consumir o tempo. O ser humano preenche o tempo<br />

com a apropriação cotidiana e a prática dos entes, o que<br />

caracteriza o papel de ca<strong>da</strong> pessoa na contemporanei<strong>da</strong>de<br />

(Costa, 2010), porém, confunde a ocupação com evitação<br />

e, nas palavras de Feijoo (2000, p. 113), “(...) o eu se perde<br />

quando se paralisa uma tentativa de resolver o inevitável,<br />

isto é, a situação paradoxal <strong>da</strong> existência humana”.<br />

No tédio, o Dasein é aprisionado no tempo, em um vazio<br />

que parece ser impossível de ser preenchido. Svendsen<br />

(1970, p. 32) menciona que:<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012<br />

O tédio pode ser compreendido como um desconforto<br />

que comunica que a necessi<strong>da</strong>de de significado não<br />

está sendo satisfeita. Para eliminar esse desconforto,<br />

atacam-se os sintomas, em vez de atacar a própria<br />

doença, e procuramos to<strong>da</strong>s as espécies de significados<br />

substitutos.<br />

O ficar entediado ocorre porque falta um significado<br />

e um propósito, e a tarefa do tédio é atrair a atenção exatamente<br />

para essa situação. Portanto, o trabalho é percebido<br />

como a fonte de supressão temporária dos problemas<br />

do cotidiano, <strong>da</strong> existência inautêntica que se ocupa dos<br />

entes presentes no mundo, mas não reflete sobre a existência<br />

destes. Assim, conforme nos afirma Costa (2010,<br />

p. 153): “A cotidiani<strong>da</strong>de do ser-aí caracteriza em certo<br />

sentido a ocupação que se torna deficitária, ao passo que,<br />

o que está em jogo não é um intento ontológico, mas sim<br />

a manuali<strong>da</strong>de do instrumento em si mesmo.”<br />

Em casos <strong>da</strong>queles que trabalham demasia<strong>da</strong>mente,<br />

os workaholics, pode-se inferir que, no discurso de “não<br />

ter tempo para na<strong>da</strong>”, privam-se de tempo para tudo o que<br />

não está relacionado ao trabalho e denunciam que suas<br />

escolhas direcionam-se à dedicação profissional em detrimento<br />

a outros afazeres que poderiam agregar em seu<br />

projeto existencial.<br />

Para Spanoudis (1976), a razão pela qual o modo de<br />

viver, hoje, vivencia e propaga o tédio pode ser compreendi<strong>da</strong><br />

pela alienação com que a vi<strong>da</strong> é leva<strong>da</strong>. Dessa<br />

maneira, trabalhando demasia<strong>da</strong>mente ou abusando de<br />

passatempos é que o homem busca a libertação de sua<br />

vi<strong>da</strong> monótona e estagna<strong>da</strong> – justamente para preencher<br />

seu vazio existencial. Esse vazio sem significado é chamado<br />

por Matos (2007) de tempo patológico, que considera<br />

o estresse como ideal, uma vez que, na monotonia,<br />

o tempo não passa, pois o ser está alienado na per<strong>da</strong> do<br />

sentido <strong>da</strong>s ações.<br />

A ilusão de promoção <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de divulga<strong>da</strong> pelos<br />

meios de consumo, pela qual se percebe um consumo ilimitado,<br />

impede a reflexão. Assim, a relação do ser com o<br />

trabalho deixa de ser de produtivi<strong>da</strong>de e ação e torna-se<br />

reprodução, uma inativi<strong>da</strong>de na qual se observa a falta<br />

de sentido, gerando um mal-estar que conduz ao tédio,<br />

o que leva a uma desvalorização de si, <strong>da</strong>s relações e do<br />

próprio trabalho (Matos, 2007). Falta tempo para se vivenciar<br />

o tédio e na<strong>da</strong> pode preencher totalmente o vazio<br />

existencial que o ser humano deve assumir com responsabili<strong>da</strong>de.<br />

Falta tempo para ser.<br />

De acordo com Giovanetti (2002), o contexto atual é<br />

marcado também pela transformação de uma consciência<br />

política a uma consciência narcísica, em que a centrali<strong>da</strong>de<br />

sobre o eu passa a definir a orientação de to<strong>da</strong>s as<br />

ações do indivíduo moderno, ao ponto de excluir o outro<br />

de sua vi<strong>da</strong>. Consequentemente, na pós-moderni<strong>da</strong>de,<br />

as desordens neuróticas – trata<strong>da</strong>s pelos terapeutas do<br />

início até os meados do século XX – foram substituí<strong>da</strong>s<br />

pelas desordens narcísicas, que se caracterizam por um<br />

164


Tédio e Trabalho na Pós-Moderni<strong>da</strong>de<br />

mal-estar longo e indefinido e, naturalmente, o esvaziamento<br />

dos significados <strong>da</strong> existência e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana.<br />

Ain<strong>da</strong> segundo o autor, o grande sintoma, na vi<strong>da</strong> moderna,<br />

pode ser bem-representado pela dificul<strong>da</strong>de de se<br />

assumir o vazio existencial.<br />

5. O valor do vazio fértil<br />

Van Dusen (1977) apresenta comparações entre a cultura<br />

ocidental e oriental, afirmando que, no Oriente, o<br />

vazio é confortável e familiar, podendo ter um valor máximo<br />

em si mesmo e possibilitando a produtivi<strong>da</strong>de, ao<br />

contrário do mundo ocidental em que espaço vazio significa<br />

desperdício – a não ser que seja preenchido com<br />

ações, uma vez que é muito comum, na socie<strong>da</strong>de ocidental,<br />

preencherem-se esses espaços também com objetos<br />

ou até mesmo deixar que as ações dos objetos preencham<br />

os espaços dos indivíduos. E o autor continua: “O vazio<br />

é o centro, e o coração <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça terapêutica” (p. 125).<br />

Assim, trabalhar na socie<strong>da</strong>de pós-moderna parece<br />

algo indiscutível. A criança, desde pequena, é questiona<strong>da</strong><br />

sobre o que quer “ser” quando crescer, sendo que “ser”<br />

tem o sentido de executar uma tarefa que deve, necessariamente,<br />

contribuir para a socie<strong>da</strong>de – direta ou indiretamente.<br />

Questionar uma criança sobre qual profissão<br />

executará no futuro também lhe mostra a importância de<br />

preparar o seu devir, no aqui e agora, com estudo, experiências,<br />

em prol dessa parte do tempo chamado futuro.<br />

Porém, na maioria <strong>da</strong>s vezes, não é possível ser astronauta,<br />

jogador de futebol, atriz de novela, como aquela criança<br />

previa e, para sobreviver em uma socie<strong>da</strong>de capitalista, o<br />

adulto tem a necessi<strong>da</strong>de de trabalhar em cargos que não<br />

são aquele em que de fato esperava trabalhar. Com isso,<br />

frustra-se e, obrigado a trabalhar para sobreviver, passa<br />

a enxergar o trabalho como uma ocupação e o tempo do<br />

aqui-e-agora como algo a ser consumido ao seu máximo,<br />

visando a um vivenciar projetado para um futuro previamente<br />

estabelecido.<br />

Quando o trabalho é satisfatório, pode-se pensar na<br />

combinação entre diversos fatores, tais como valores,<br />

experiências e objetivos que variam de acordo com ca<strong>da</strong><br />

um e com ca<strong>da</strong> etapa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Isso não significa que, necessariamente,<br />

a satisfação leve à estagnação, mas pode<br />

ser também um motivador para busca de novas experiências<br />

que gerem significados. Porém, para que isso realmente<br />

se torne eficaz é necessário participar de todo o<br />

processo, entrar em contato com a angústia, reformular<br />

as questões existenciais e <strong>da</strong>r vi<strong>da</strong> a novos significados<br />

ou ressignificá-los. Entretanto, não são muitos os que concluem<br />

o processo sem passar pela obscuri<strong>da</strong>de do tédio.<br />

A maioria dos indivíduos que se percebem entediados<br />

não se permite vivenciar e desfrutar o tempo de maneira<br />

mais prazerosa e consomem o tempo do mundo como se<br />

fosse o mesmo. O trabalho torna-se o mesmo, bem como<br />

a falta de sentido é a mesma. O significado do trabalho<br />

165<br />

é vazio, e o homem se automatiza sem encontrar sentido<br />

para suas ações. O trabalho é comumente associado a um<br />

meio de sobrevivência, no qual nem sempre é possível<br />

questionar as deman<strong>da</strong>s. Dessa forma, aquele se conforma<br />

de que no futuro poderá mu<strong>da</strong>r essa situação e acredita<br />

ou deseja acreditar que eliminará o tédio com o passar<br />

do tempo. Concebe como um dever continuar aceitando<br />

as coisas como estão, ain<strong>da</strong> que esteja insatisfeito.<br />

6. O Homem e a Transcendência<br />

Sentir-se angustiado e cansado são os primeiros sinais<br />

para entrar em contato com o tédio existencial, e<br />

não se reconhecer naquilo que se faz automaticamente<br />

é essencial, pois, uma vez que o homem se questiona e<br />

reflete sobre o sentimento de esvaziamento e de existência<br />

inautêntica no mundo e por meio <strong>da</strong> transcendência,<br />

encontra a possibili<strong>da</strong>de de refletir sobre sua existência<br />

no aqui-e-agora. Isto é, o que está sendo feito dele e<br />

como está se apoderando de sua existência pode provocar<br />

transformações, bem como descobertas dentre inúmeras<br />

possibili<strong>da</strong>des de ser e estar no mundo. E como Perdigão<br />

(1995, p. 115) cita: “somos livres, resta-nos descobrir o que<br />

devemos fazer com essa assombrosa liber<strong>da</strong>de”.<br />

Sabe-se que a tônica existencial é a crença de que o<br />

homem é angústia. Desse modo, faz-se necessário ficar<br />

atento à sua condição existencial para que encontre ca<strong>da</strong><br />

vez mais sentido nas ativi<strong>da</strong>des, a fim de ressignificá-las.<br />

E como aponta Kundtz (1999), é possível criar no cotidiano<br />

alguns momentos especiais de pequenas pausas que<br />

permitam a ressignificação. Mas nem sempre a reflexão é<br />

possível diante <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des do dia a dia. No mundo<br />

pós-moderno, há uma grande exigência de que as pessoas<br />

estejam em constante ativi<strong>da</strong>de, ain<strong>da</strong> que para exercê-la<br />

se abra mão de muitas outras coisas. Mas será que seria<br />

necessário parar dias ou semanas para refletir? Às vezes,<br />

parar por apenas alguns minutos pode permitir que a reflexão<br />

ocorra ou se apoderar do vazio existencial como<br />

Perls (1979, p. 231) preconiza: “Vazio fértil, fale através<br />

de mim. Em estado de graça quero ver. Benção e ver<strong>da</strong>de<br />

sobre mim. Face a face com você”.<br />

Para entender o vazio, faz-se necessário verificar dois<br />

componentes: o antropológico e o social. O componente<br />

antropológico é a per<strong>da</strong> de sentido, ou seja, as coisas<br />

que preenchiam o cotidiano dos indivíduos vão se esfacelando,<br />

e a vi<strong>da</strong> começa a desmoronar. O componente<br />

sociológico do problema do vazio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana, por<br />

sua vez, é expresso pelo esvaziamento <strong>da</strong>s relações interpessoais,<br />

o que provoca um desaparecimento de laços<br />

pessoais entre os homens. Esse esvaziamento provoca a<br />

exclusão do outro e exacerba mais o individualismo pregado<br />

pela socie<strong>da</strong>de contemporânea (Giovanetti, 2002).<br />

Para Giovanetti (2002), pensar na superação do vazio<br />

é tentar ressignificar esses dois componentes que o caracterizam.<br />

No plano antropológico, torna-se necessário<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Karina O. Fukumitsu; Júlia Y. Hayakawa; Suzan E. Ku<strong>da</strong>; Elisa H. Musha; Tauane C. Nascimento; Bruna B. Oliveira;<br />

Elisabete H. G. Rocha; Daiany A. A. Santos; Karen Ueki & Lucas P. Vasconcelos<br />

construir um projeto de vi<strong>da</strong>; no plano sociológico, ressignificar<br />

as relações interpessoais e buscar a sedimentação<br />

<strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de. Por isso, para o autor, “(...) os relacionamentos<br />

pessoais estão na base de um redimensionamento<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de individualista para uma socie<strong>da</strong>de<br />

solidária” (p. 100).<br />

Ao se sentir ameaçado pelo vazio, o Dasein tenta se<br />

abster, retirando-se do contexto ameaçador, ou busca<br />

preenchê-lo por meio do trabalho; o vazio então cresce e<br />

atenua a vontade. No entanto, quando o indivíduo aceita<br />

que o vazio é fértil, pode descobrir coisas surpreendentemente<br />

novas dentro de si. Assim, o vazio emerge na psicoterapia<br />

para que o indivíduo possa refletir sobre seu<br />

feitio de existir, já que “o vazio nem é na<strong>da</strong>, nem é algo.<br />

É o vazio fértil” (Van Dusen, 1977, p. 129).<br />

O indivíduo que vive constantemente o enfadonho<br />

tédio e que não consegue refletir sobre como vivencia o<br />

tempo, ocupando-se sobremaneira com diversas tarefas,<br />

evita o encontro consigo e com o vazio existente.<br />

No geral, o tédio representa a reali<strong>da</strong>de subjetiva que<br />

desordena o mundo e coloca o homem frente a um<br />

tipo de morte, a morte <strong>da</strong> significação. Significação<br />

esta necessária à vi<strong>da</strong> humana e à qual corremos em<br />

direção, na contramão do tempo, por meio <strong>da</strong>s novi<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de como via de solução (Pinheiro,<br />

2007, p. 162).<br />

O tédio existencial significa a morte de possibili<strong>da</strong>des,<br />

pela qual surge a per<strong>da</strong> de significados na vi<strong>da</strong>. Para<br />

transcendê-lo, o homem tem de ressignificar o sentido de<br />

sua vi<strong>da</strong> e não estruturar sua vi<strong>da</strong> somente na má-fé. Cabe<br />

enfatizar que é possível ser inautêntico e agir sem má-fé,<br />

pois a má-fé é a manifestação <strong>da</strong> coisificação. Sendo assim,<br />

como não há uma atitude humana sem intencionali<strong>da</strong>de,<br />

o grande problema é a usura e quando o homem<br />

age como se não soubesse <strong>da</strong> própria intenção. Quando<br />

o ser humano perde a ética, perde também o respeito por<br />

si e a discriminação de suas necessi<strong>da</strong>des. Dessa maneira,<br />

torna-se imprescindível que compreen<strong>da</strong> que a ética<br />

é a própria condição humana que permite a digni<strong>da</strong>de<br />

de ser livre e de assumir suas escolhas.<br />

A vi<strong>da</strong> é uma série de puxões para a frente e para<br />

trás. Queremos fazer uma coisa, mas somos forçados<br />

a fazer outra. Algumas coisas nos machucam, apesar<br />

de sabermos que não deviam. Aceitamos certas coisas<br />

como inquestionáveis, mesmo sabendo que não<br />

devemos aceitar na<strong>da</strong> como absoluto (Albom, 1998,<br />

pp. 44-5).<br />

Além disso, em concordância com a proposta heideggeriana,<br />

faz-se necessário recuperar o sentido esquecido<br />

do ser, reconhecendo-se o tédio como um paradoxo<br />

que contém tanto o problema quanto a solução para vi<strong>da</strong><br />

moderna, uma vez que o tédio é também um potencial<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012<br />

para futuras ressignificações. O tédio e a angústia do<br />

vazio fértil permitem a revisão do projeto existencial,<br />

pois o ser humano recebe o convite para que possa refletir<br />

sobre a necessi<strong>da</strong>de de reconhecimento, aceitação<br />

e pertencimento. O significado é próprio; portanto, é<br />

preciso notar que não é o tempo que deve ser refém do<br />

trabalho; ao contrário, o trabalho existe somente porque<br />

existe um tempo que deve ser vivido e vívido para<br />

que o ser não seja esquecido.<br />

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Summus.<br />

Karina okajima Fukumitsu - Psicóloga, psicoterapeuta, professora<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Presbiteriana Mackenzie. Professora convi<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

pelo departamento de Gestalt-terapia do Instituto Sedes Sapientiae.<br />

Doutoran<strong>da</strong> em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano<br />

(Universi<strong>da</strong>de São Paulo-USP/SP). Mestre em Psicologia Clínica<br />

(Michigan School of Professional Psychology-Center for Humanistic<br />

Studies - EUA). Especialista em Psicope<strong>da</strong>gogia (PUC-SP) e em<br />

Gestalt-terapia (Sedes Sapientiae-SP). Endereço para correspondência:<br />

Aveni<strong>da</strong> Fagundes Filho, 145 - sala 96 (Edifício Austin Office Center)<br />

Vila Monte Alegre. São Paulo-SP - Brasil - CEP: 04304-010. E-mail:<br />

karinafukumitsu@gmail.com<br />

Júlia Yoriko Hayakawa, Suzan Emie Ku<strong>da</strong>, Elisa Harumi Musha,<br />

Tauane Cristina do Nascimento, Bruna Bezerra oliveira, Elisabete<br />

Hara Garcia Rocha, Daiany Apareci<strong>da</strong> Alves dos Santos, Karen Ueki,<br />

lucas Palhari Vasconcelos - Alunos do 8º semestre de graduação do<br />

Curso de Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Presbiteriana Mackenzie, São<br />

Paulo, Brasil.<br />

Recebido em 23.05.2012<br />

Aceito em 19.11.2012<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

ORIGENS E DESTINOS DA AbORDAGEM CENTRADA NA<br />

pESSOA NO CENÁRIO bRASILEIRO CONTEMpORÃNEO:<br />

REfLExõES pRELIMINARES<br />

Origins and Destinations of the The Person-Centered Approach in the Brazilian<br />

Contemporary Scenario: Introductory reflections<br />

Orígenes y Destinaciones de lo Enfoque Centrado en la Persona en escenario<br />

brasileño contemporáneo: Reflexiones Preliminares<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012<br />

Ana M. M. C. Frota<br />

AnA MAriA Monte coelHo FrotA<br />

Resumo: Este artigo trata de reflexões introdutórias acerca <strong>da</strong>s origens e dos destinos que vêm se delineando para a Abor<strong>da</strong>gem<br />

Centra<strong>da</strong> na Pessoa (ACP). Para tanto, discute os paradigmas que sustentaram o surgimento <strong>da</strong> teoria rogeriana, a partir de um<br />

contexto histórico determinado pelo projeto modernista. Analisa o surgimento <strong>da</strong> Psicologia Humanista como a terceira força,<br />

contrapondo-a ao Behaviorismo e Psicanálise. A seguir, passeia sobre a teoria rogeriana, discutindo seus conceitos fun<strong>da</strong>mentais,<br />

que atravessam pelas diferentes fases do trabalho de Rogers. Finalmente, faz um apanhado teórico <strong>da</strong>s aproximações possíveis<br />

entre a ACP e alguns filósofos fenomenólogos, sendo escolhidos Husserl, Merleau-Ponty e Heidegger, tal como têm sido<br />

trabalhados por alguns estudiosos brasileiros. O artigo procura clarificar as possibili<strong>da</strong>des de continuação <strong>da</strong> ACP a partir destes<br />

encontros, colocando o problema de se estar construindo algo tão novo, que não se possa colocar alinhado com a Abor<strong>da</strong>gem<br />

Centra<strong>da</strong> na Pessoa.<br />

Palavras-chave: Abor<strong>da</strong>gem centra<strong>da</strong> na pessoa; Psicologia humanista; Fenomenologia.<br />

Abstract: This article brings the introductory reflection on the origins and destinations that are being constructed for the<br />

Person Centered Approach (PCA) in the brazilian scenario. This paper discusses the paradigms that supported the emergence<br />

of the Rogerian theory from the historical context of the modernist project. It makes the analysis of the emergence of humanistic<br />

psychology as a third force as opposed to Behaviorism and Psychoanalysis. It presents Rogers’ theory and its fun<strong>da</strong>mental<br />

concepts in the different stages of the work of Rogers. Finally, it presents some possible approaches between the Person Centered<br />

Study and some phenomenological philosophers, been chosen Husserl, Merleau-Ponty and Heidegger, as they have been presented<br />

by some brazilian scholars. The work search to clarify the possibilities of continuing the Person Centered Approach by<br />

those relations, pointing to the direction of the construction of something so new that it cannot be aligned with the Person<br />

Centered Study.<br />

Keywords: Person centered approach; Humanistic psychology; Phenomenology.<br />

Resumen: En este artículo se trata de reflexiones introductorias sobre los orígenes y destinos que han sido delineados para el<br />

Enfoque Centrado persona (PCA). Los paradigmas de discusión que apoyaron el surgimiento de la teoría de Rogers, a partir de<br />

un contexto histórico determinado por el proyecto modernista. Analiza el surgimiento de la psicología humanista como una<br />

tercera fuerza, oponiéndose al conductismo y el psicoanálisis. A continuación, <strong>da</strong>r un paseo en la teoría de Rogers, discutir los<br />

conceptos fun<strong>da</strong>mentales que atraviesan las diferentes fases de la obra de Rogers. Por último, se ofrece una visión general de<br />

las similitudes teóricas posibles entre los países ACP y algunos filósofos fenomenólogos, siendo elegido Husserl, Merleau-Ponty<br />

y Heidegger, como se ha trabajado por algunos estudiosos brasileños. El artículo trata de aclarar las posibili<strong>da</strong>des de continuación<br />

de ACP a partir de estas reuniones, poner el asunto a la construcción de algo tan nuevo, que no se pueden poner de acuerdo<br />

con el Enfoque Centrado en Persona.<br />

Palabras-clave: Enfoque centrado en la persona; Psicología humanística; Fenomenología.<br />

1. A Ciência Moderna e a psicologia<br />

Os paradigmas clássicos do método científico influenciam<br />

fortemente as idéias e práticas de uma época.<br />

Oferecem ao mundo uma certeza extremamente ansia<strong>da</strong><br />

de progresso, respostas objetivas, ordem, liber<strong>da</strong>de e<br />

justiça social. Segundo Dahlberg, Moss e Pence (2003),<br />

o projeto sustentado e defendido pela moderni<strong>da</strong>de, ber-<br />

ço do surgimento <strong>da</strong> ciência clássica, compreende o ser<br />

humano totalmente realizado, maduro, independente,<br />

autônomo, livre e racional. Ressaltam que: “(...) o projeto<br />

<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de tinha objetivos ambiciosos: progresso, linear<br />

e contínuo; ver<strong>da</strong>de, como a revelação de um mundo<br />

‘conhecível’, emancipação e liber<strong>da</strong>de para o indivíduo –<br />

social, política e culturalmente” (p. 33).<br />

168


Origens e Destinos <strong>da</strong>s Psicoterapias Humanistas: O Caso <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa<br />

Nesta direção, a busca <strong>da</strong> razão constitui-se no caminho<br />

<strong>da</strong> busca <strong>da</strong> essência humana e <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> natureza.<br />

Assim, o progresso e a tecnologia caminham de<br />

mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s em direção à prometi<strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de. A partir<br />

destas reflexões torna-se muito clara a grande aceitação<br />

e difusão do projeto <strong>da</strong> ciência moderna, uma vez que<br />

trazia embuti<strong>da</strong> no seu paradigma, uma promessa de desenvolvimento,<br />

ordem e progresso social.<br />

Com a moderni<strong>da</strong>de, incrementa<strong>da</strong> que foi pela invenção<br />

<strong>da</strong> imprensa, pelas conquistas <strong>da</strong>s grandes navegações,<br />

pela revolução industrial, pela transformação<br />

social e familiar, pelas mu<strong>da</strong>nças do sistema econômico<br />

mundial, dentre outras, ofereceu-se ao mundo a promessa<br />

<strong>da</strong> produção de um saber construído a partir de uma<br />

metodologia objetiva, quantificável, infalível. Ora, esta<br />

promessa encheu os olhos e aqueceu o coração de todos<br />

aqueles que desejavam respostas para suas questões.<br />

A socie<strong>da</strong>de sonhava com o dia em que pudesse resolver<br />

seus problemas mais urgentes como a cura de doenças,<br />

a produção de alimentos suficiente para todos, a<br />

busca de uma justiça social e, principalmente, a superação<br />

<strong>da</strong>s crenças religiosas que, por muito tempo dominaram<br />

as mentes humanas, impedindo-as ou dificultando<br />

na produção de um saber que se sustentasse em si mesmo.<br />

A criação de um método científico foi extremamente<br />

bem-vindo na socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> época, sendo profun<strong>da</strong>mente<br />

marca<strong>da</strong> pela filosofia de Descartes, pela metodologia<br />

científica de Bacon e pela teoria matemática de Newton<br />

(Feijoo, 2000).<br />

A partir <strong>da</strong> análise de Feijoo (2000), para Descartes,<br />

o mundo material deveria ser estu<strong>da</strong>do com absoluta objetivi<strong>da</strong>de,<br />

constituindo, a partir de então, a necessi<strong>da</strong>de<br />

de neutrali<strong>da</strong>de do pesquisador. Além disso, criou-se<br />

um método de busca de saber, ou seja, de produção de<br />

conhecimento, que seguisse uma metodologia objetiva,<br />

passível de ser repeti<strong>da</strong>, testa<strong>da</strong> e generaliza<strong>da</strong>, crível<br />

e infalível. Como resultado, a ciência foi aceita como<br />

a única via de acesso a todo e qualquer conhecimento,<br />

passando a desvalorizar qualquer saber produzido por<br />

outros caminhos. A crença existente era a de que o método<br />

científico descrevia corretamente a reali<strong>da</strong>de, sendo<br />

adota<strong>da</strong> como modelo pelos saberes que se pretendessem<br />

científicos.<br />

Assim, a racionali<strong>da</strong>de deveria superar qualquer paixão<br />

na busca dos saberes científicos a partir dos paradigmas<br />

clássicos <strong>da</strong> ciência moderna. Além disso, perseguindo<br />

a herança newtoniana, o mundo deveria ser compreendido<br />

como um grande complexo, formado por partes<br />

contínuas que, soma<strong>da</strong>s, resultariam numa totali<strong>da</strong>de.<br />

Para atingir uma compreensão e posterior domínio do<br />

todo, seria necessário desmembrá-lo em partes, cognoscíveis<br />

através de um método objetivo, seguido por cientistas<br />

neutros e racionais. Tal busca seria possível uma<br />

vez que as leis do universo seguiriam uma causali<strong>da</strong>de<br />

mecanicista, e seriam regi<strong>da</strong>s por uma temporali<strong>da</strong>de<br />

linear – com presente, passado e futuro bem marcados<br />

169<br />

– autônoma e independente do observador; assim como<br />

por um espaço constante e em repouso. Uma figura metafórica<br />

seria “a imagem do universo (...) compara<strong>da</strong> a um<br />

grande relógio gigantesco, inteiramente determinístico”<br />

(Feijoo, 2000, p. 19).<br />

A busca de ver<strong>da</strong>des pela ciência moderna é marca<strong>da</strong><br />

pelo estatuto de cientifici<strong>da</strong>de, sendo garanti<strong>da</strong> pela<br />

construção de conceitos logicamente parametrados e pela<br />

ausência de intimi<strong>da</strong>de entre homens e mundo. O modo<br />

técnico pelo qual o homem moderno habita o mundo tem<br />

estreita relação, denuncia Critelli (1996), com sua necessi<strong>da</strong>de<br />

de superar a insegurança do seu ser ou, senão,<br />

esconder esta condição. Porém, não é porque os homens<br />

criaram métodos, técnicas e processos que nos permitem<br />

controlar alguns fenômenos e criar outros, que se alterou<br />

a condição ontológica de inospitali<strong>da</strong>de no mundo e de<br />

liber<strong>da</strong>de humana.<br />

O modelo de pensamento e produção de conhecimentos<br />

<strong>da</strong> ciência moderna marcou profun<strong>da</strong>mente a<br />

socie<strong>da</strong>de ocidental desde o século XVIII até meados do<br />

século XX. A partir <strong>da</strong>í, o projeto <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de vem<br />

sofrendo grandes abalos na sua tão propaga<strong>da</strong> pretensão<br />

<strong>da</strong> busca de ver<strong>da</strong>des universais. Aos poucos, a humani<strong>da</strong>de<br />

foi se <strong>da</strong>ndo conta de que a ciência moderna não<br />

seria capaz de compreender e acomo<strong>da</strong>r a diversi<strong>da</strong>de e<br />

a complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> experiência humana concreta. Na ver<strong>da</strong>de,<br />

“o projeto <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de de controle através do<br />

conhecimento, a avidez por certeza, implodiu” (Dahlberg<br />

et al., 2003, p. 36).<br />

Chamou-se de saber pós-moderno aquele estado <strong>da</strong><br />

cultura construído após as transformações que afetaram<br />

as regras do jogo <strong>da</strong> ciência, <strong>da</strong> literatura e <strong>da</strong>s artes<br />

a partir do século XIX (Lyotard, 1989). Seu saber não<br />

se propunha ser um instrumentalizador de poderes.<br />

Ele refina a sensibili<strong>da</strong>de para o diferente e para suportar<br />

o incomensurável. Sob uma perspectiva pós-moderna,<br />

não existe conhecimento absoluto, reali<strong>da</strong>de cristaliza<strong>da</strong><br />

esperando pra ser conheci<strong>da</strong> e doma<strong>da</strong>; um ensinamento<br />

universal, que se faça fora <strong>da</strong> história ou <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

(Frota, 2007). No lugar disso, seu projeto propõe que o<br />

mundo e o conhecimento sejam vistos como socialmente<br />

construídos. Isso significa pensar que todos nós estamos<br />

engajados na construção de significados, em vez de engajados<br />

na descoberta de ver<strong>da</strong>des. Torna-se possível afirmar,<br />

deste modo, que não existe somente uma reali<strong>da</strong>de,<br />

mas várias. O conhecimento não é único, e sim múltiplo,<br />

variável, fragmentado e mutável, inscrito nas relações de<br />

poder, que determinam o que deve ser considerado como<br />

ver<strong>da</strong>de e falsi<strong>da</strong>de (Lipovetsky, 2004; Goergen, 2005).<br />

A ver<strong>da</strong>de é compreendi<strong>da</strong> como uma correspondência<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, uma representação falsea<strong>da</strong>, mas que, como<br />

tal deve ser toma<strong>da</strong>.<br />

Na origem <strong>da</strong>s psicologias existe uma tendência a atuar<br />

como se os saberes psicológicos fossem “grandes narrativas”,<br />

e, como tal, representassem o modelo essencialista<br />

<strong>da</strong> natureza humana. As grandes teorias psicológicas,<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

encarna<strong>da</strong>s por seus seguidores, assumem seus saberes<br />

como se eles fossem “os ver<strong>da</strong>deiros” e representassem<br />

“o modelo correto” <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Contudo como alertam<br />

Dahlberg et al. (2003), “em vez de serem vistas como representações<br />

socialmente construí<strong>da</strong>s de uma reali<strong>da</strong>de<br />

complexa, uma maneira seleciona<strong>da</strong> de como descrever<br />

o mundo, essas teorias parecem se tornar o próprio território”<br />

(p. 54). O risco <strong>da</strong>í advindo é esquecermos a contextualização<br />

histórica do saber ou, ain<strong>da</strong>, perdermos de<br />

vista a subjetivi<strong>da</strong>de concreta do humano. Perderíamos de<br />

vista o homem, ficando dele somente sua re-presentação,<br />

falsea<strong>da</strong>, que é, via teoria. Além deste risco, não podemos<br />

esquecer que as grandes narrativas contam as histórias<br />

dos saberes como se fossem únicos e universais, já repudia<strong>da</strong>s<br />

pelo estatuto pós-modernista, por representarem<br />

perspectivas teóricas descola<strong>da</strong>s <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e empecilhos<br />

para a compreensão dos sujeitos reais em situações<br />

históricas concretas.<br />

Vivendo numa condição pós-moderna, o conhecimento<br />

e os diversos saberes solicitam que abandonemos<br />

as grandes narrativas teóricas e nos contentemos com<br />

objetivos locais e mais práticos. Para Heywood (2004),<br />

isso significa abandonar as esperanças mais profun<strong>da</strong>s<br />

do pensamento iluminista: que o que está para ser descoberto<br />

seria, de fato, um mundo ordeiro e sistemático,<br />

idêntico para ca<strong>da</strong> um de nós, sendo possível estabelecer<br />

um acordo universal com a natureza. O que fica,<br />

então, é a busca de conhecer ver<strong>da</strong>des, multiplici<strong>da</strong>des<br />

de narrativas, saberes construídos na e pela reali<strong>da</strong>de<br />

social concreta.<br />

A partir destas reflexões, pensemos no que isso<br />

interfere nos nossos pensares e fazeres psicológicos,<br />

para nos achegarmos na nossa questão maior: origens<br />

e destinos <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa, no cenário<br />

do Brasil.<br />

Também para a Psicologia foi importante o método<br />

científico, como possibili<strong>da</strong>de de se fazer aceita e receber<br />

o estatuto de ciência, como afirma Capra (1983). Deste<br />

modo, a a<strong>da</strong>ptação do objeto de estudo <strong>da</strong> psicologia, o<br />

psiquismo humano, aos princípios <strong>da</strong> mecânica clássica<br />

de Newton fez-se no sentido de busca de cientifici<strong>da</strong>de.<br />

É assim que a Psicanálise de Freud e o Behaviorismo<br />

de Skinner se enquadram no mecanicismo <strong>da</strong> ciência<br />

positivista.<br />

Capra (1983) tem razão ao dizer que a primeira tópica<br />

de Freud seguia um modelo mecanicista. Como o<br />

próprio Freud afirma no seu Projeto de uma psicologia<br />

científica, sua intenção era representar os processos psíquicos<br />

como estados, quantitativamente determinados.<br />

Deste modo, pelo menos de princípio, é lícito afirmar que<br />

Freud parece respeitar e seguir os princípios apregoados<br />

pela ciência moderna, os quais, certamente, lhe garantiriam<br />

respeitabili<strong>da</strong>de e divulgação. Coelho Jr. (1995)<br />

também aponta a origem mecanicista dos trabalhos de<br />

Freud, frisando o contexto histórico deste início. Deixa<br />

clara a evolução histórica <strong>da</strong> metapsicologia e <strong>da</strong> psica-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012<br />

Ana M. M. C. Frota<br />

nálise, e seu distanciamento, ca<strong>da</strong> vez mais nítido, <strong>da</strong><br />

herança cientificista.<br />

Também o behaviorismo skinneriano segue o modelo<br />

científico. Aliás, para Skinner, seu objeto de estudo era<br />

o comportamento, aquele que poderia ser observado e<br />

quantificado. A mente existia somente enquanto expressa<br />

pelo comportamento. Na ver<strong>da</strong>de, o behaviorismo de<br />

Skinner se adequa completamente ao método experimental:<br />

a relação causa-efeito é inquestionável, as causas dos<br />

fenômenos psíquicos encontram-se no mundo externo, o<br />

tempo é linear, a força é sempre externa (Skinner, 1985).<br />

Para os behavioristas, a objetivi<strong>da</strong>de é imprescindível e<br />

deve ser garanti<strong>da</strong> pelo controle <strong>da</strong>s condições que regem<br />

as relações sujeito-objeto. Por sua vez, as técnicas comportamentais<br />

clássicas “possuem um status físico para o<br />

qual as técnicas usuais <strong>da</strong> ciência são adequa<strong>da</strong>s e permitem<br />

uma explicação dos comportamentos nos moldes<br />

<strong>da</strong> de outros objetos explicados pelas respectivas ciências”<br />

(Skinner, 1985, p. 42).<br />

A Psicanálise e o Behaviorismo formaram as duas<br />

primeiras forças dentro <strong>da</strong> psicologia. A terceira força –<br />

a Psicologia Humanista – surgiu como reação ao panorama<br />

<strong>da</strong> psicologia norte-americana, dominado pela leitura<br />

mecanicista e determinística dominantes (Boainain Jr,<br />

1998). Maslow (2007) foi um dos principais responsáveis<br />

pela criação <strong>da</strong> Psicologia Humanista, que pretendia, de<br />

início, unir tendências que se opusessem ao behaviorismo<br />

e psicanálise.<br />

Deste modo, ao contrário do Behaviorismo e <strong>da</strong><br />

Psicanálise, a Psicologia Humanista não se identificou<br />

com o pensamento de determinado autor ou escola, especificamente.<br />

Consistia, na ver<strong>da</strong>de, de um discurso<br />

congregado de diversas tendências, uni<strong>da</strong>s especialmente<br />

pela oposição às abor<strong>da</strong>gens cita<strong>da</strong>s, assim como pela<br />

convergência em torno de algumas propostas comuns,<br />

tais como um compromisso inalienável com uma visão<br />

de homem orienta<strong>da</strong> para a saúde e desenvolvimento<br />

pessoal.<br />

A partir <strong>da</strong>í, torna-se clara a negação <strong>da</strong> perspectiva<br />

pessimista e psicopatologizante <strong>da</strong> metapsicologia freudiana.<br />

Além disso, a terceira força assume a perspectiva<br />

holística e organísmica do ser humano e adota uma<br />

visão fenomenológica e existencial para a compreensão<br />

do homem.<br />

Assim, a volta ao humano como objeto de estudo é<br />

uma <strong>da</strong>s bandeiras do movimento, importante a ponto<br />

de fornecer-lhe o título designativo. Quali<strong>da</strong>des, e capaci<strong>da</strong>des<br />

humanas por excelência, tais como valores,<br />

criativi<strong>da</strong>de, sentimentos, identi<strong>da</strong>de, vontade, coragem,<br />

liber<strong>da</strong>de, responsabili<strong>da</strong>de, auto-realização,<br />

etc., fornecem temas de estudo típicos <strong>da</strong>s abor<strong>da</strong>gens<br />

humanistas (Boainain Jr, 1998, p. 31).<br />

A Psicologia Humanista defende uma visão globalizante<br />

do ser humano, enfatizando a vivência <strong>da</strong>s emo-<br />

170


Origens e Destinos <strong>da</strong>s Psicoterapias Humanistas: O Caso <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa<br />

ções, a subjetivi<strong>da</strong>de, a intuição e as potenciali<strong>da</strong>des.<br />

Provavelmente como resultado <strong>da</strong> exacerbação do sentimento,<br />

<strong>da</strong> vivência e <strong>da</strong> experienciação, adota<strong>da</strong>s como<br />

métodos de trabalho, ela foi duramente acusa<strong>da</strong> de irresponsável,<br />

de teoricamente vazia (Fonseca, 1998, 2011;<br />

Moreira, 2009b). Segundo Fonseca (1998), tais críticas<br />

acabaram sendo positivas, uma vez que geraram estudos<br />

dentro do movimento humanista brasileiro, buscando<br />

esclarecer e fortalecer sua fun<strong>da</strong>mentação, assim como<br />

possíveis distorções.<br />

O movimento humanista teve forte influência <strong>da</strong>s filosofias<br />

existenciais e <strong>da</strong> fenomenologia. Assim, “assume<br />

e propõe a inevitabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> adoção de um modelo<br />

de homem, ou seja, uma concepção filosófica <strong>da</strong> natureza<br />

humana, como ponto de parti<strong>da</strong> e princípio norteador de<br />

qualquer projeto de construção de psicologia” (Boainain<br />

Jr, 1998, p. 31). Além disso, prioriza o fenômeno, em detrimento<br />

<strong>da</strong>s técnicas e teorias, centrando-se na “relação<br />

fenomenativa existencial atual entre seus agentes”<br />

(Fonseca, 1998, p. 12).<br />

A prática humanista parece ter sido desvirtua<strong>da</strong> pelo<br />

laisser faire, pelo fetiche <strong>da</strong> vivência pura, caindo em descrédito<br />

na academia. Embora não concorde de todo com a<br />

crítica que Figueiredo (1991) faz à Psicologia Humanista,<br />

assim como a generalização que faz <strong>da</strong> prática dos psicoterapeutas<br />

de base humanista, ele tem razão ao inserir<br />

a psicologia humanista na matriz vitalista e naturista.<br />

Sua crítica dirige-se à ausência de um construto teórico<br />

epistemológico, contrabalançando razão e sentimento.<br />

Como resposta a esta falta, muitos profissionais com formação<br />

humanista (Amatuzzi, 1989; Moreira, 1990, 2007,<br />

2009a, 2009b; Advíncula, 1991; Holan<strong>da</strong>, 1998; Messias<br />

& Cury, 2006; Dutra, 2008) iniciaram um período muito<br />

fértil de produção teórica, capaz de <strong>da</strong>r suporte à prática<br />

psicoterápica, através de pesquisas com base fenomenológica<br />

e existencial.<br />

Tentando nos aproximar dos sentidos <strong>da</strong>s psicologias<br />

humanistas/fenomenológicas-existencias, passaremos<br />

a discutir a Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa, uma<br />

<strong>da</strong>s abor<strong>da</strong>gens psicológicas que teve seu berço nas origens<br />

humanistas.<br />

2. Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na pessoa: Da Noção de<br />

Homem planetário à de Homem Mun<strong>da</strong>no – De<br />

Rogers a seus Discípulos Contemporâneos<br />

A obra de um autor tem muito <strong>da</strong>s influências que<br />

ele sofre durante sua formação pessoal e profissional.<br />

Rogers teve grande influência de uma tendência biológica<br />

de saber, justificando um pouco o que ele chama<br />

de tendência formativa. Acaba, por esta vertente, enfatizando<br />

mais a natureza do que a cultura e a história do<br />

homem. Já a influência religiosa, que recebeu de sua família<br />

protestante, pode ser percebi<strong>da</strong> na crença otimista<br />

<strong>da</strong> natureza humana, que sempre acompanhou seu tra-<br />

171<br />

balho. Além <strong>da</strong> Teologia, também se dedicou ao estudo<br />

<strong>da</strong> Psicologia, fazendo atendimento clínico e orientação<br />

psicope<strong>da</strong>gógica.<br />

Para Rogers e Kinget (1977), existe no homem uma<br />

tendência atualizante, que o concebe como naturalmente<br />

livre e bom, sendo essencialmente dotado de uma<br />

capaci<strong>da</strong>de para desenvolver-se positivamente. Assim,<br />

para Rogers, são as condições externas desfavoráveis que<br />

corrompem e adoecem o homem. Por ser o que existe de<br />

mais importante na sua teoria e prática psicoterápica,<br />

pressupõe, fun<strong>da</strong>mentalmente, um respeito maior ao ser<br />

humano, por concebê-lo como um “organismo digno de<br />

confiança” (Rogers, 1976, p. 16). Afirma ain<strong>da</strong> Rogers e<br />

Kinget (1977, p. 52):<br />

Quando a tendência atualizante pode se exercer sob<br />

condições favoráveis, isto é, sem entraves psicológicos<br />

graves, o indivíduo se desenvolverá no sentido<br />

<strong>da</strong> maturi<strong>da</strong>de. Sua percepção de si mesmo e de<br />

seu ambiente, e o comportamento que se articula de<br />

acordo com estas percepções, se modificarão constantemente<br />

num sentido de uma diferenciação e de<br />

uma autonomia crescentes, típicas do progresso em<br />

direção à i<strong>da</strong>de adulta. A personali<strong>da</strong>de representará,<br />

portanto, a atualização máxima <strong>da</strong>s potenciali<strong>da</strong>des<br />

do organismo.<br />

A compreensão empática, congruência e consideração<br />

positiva incondicional também são princípios fun<strong>da</strong>ntes<br />

<strong>da</strong> ACP, assim como a tendência atualizante.<br />

A capaci<strong>da</strong>de de o psicoterapeuta colocar-se no lugar<br />

do outro, sem deixar de ser quem é, facilita o encontro<br />

entre pessoas. Já a congruência, ela significa a capaci<strong>da</strong>de<br />

do psicoterapeuta ser autêntico em relação a seus<br />

sentimentos, referindo-se à pessoa que busca aju<strong>da</strong>. Ser<br />

congruente, é ser genuíno, é ser fluido. “Quando somos<br />

congruentes conosco mesmo, nossas necessi<strong>da</strong>des, nossos<br />

desejos e nosso curso de ação são uma coisa só”, afirma<br />

Bowen (1987, p. 65). Finalmente, a consideração positiva<br />

incondicional, é caracteriza<strong>da</strong> como a capaci<strong>da</strong>de de<br />

aceitar o outro como ele é, não significando concor<strong>da</strong>r<br />

com ele. Deste modo, “quando o terapeuta estima o cliente,<br />

de uma maneira total, em vez de uma maneira condicional,<br />

então o movimento para a frente pode ocorrer”<br />

(Rogers, 1987, p. 68).<br />

A influência do contexto sócio-cultural para a origem<br />

<strong>da</strong> teoria rogeriana é claramente descrita por Fonseca (1983):<br />

A Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa surgiu e cresceu<br />

no seio <strong>da</strong>queles para cujas mesas, carros e casas vai<br />

muito do que é expropriado do corpo e do ser, <strong>da</strong> casa<br />

e dos pratos <strong>da</strong>queles em cujo seio nasceu a Pe<strong>da</strong>gogia<br />

do Oprimido (p. 46).<br />

A teoria de Rogers constrói-se a partir de uma dimensão<br />

individual <strong>da</strong> pessoa, deixando-se perceber<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

através <strong>da</strong> noção de “desenvolvimento do eu” (Rogers,<br />

1961), enfatizando a polari<strong>da</strong>de individual em detrimento<br />

<strong>da</strong> social. Também em seu livro Um Jeito de Ser,<br />

Rogers (1983) enfatiza a dimensão individual e subjetiva<br />

<strong>da</strong> pessoa. Para Rogers (1961) a natureza humana é<br />

moralmente positiva. Segue acreditando que a pessoa<br />

plena seria aquela que conseguisse se deixar guiar pelo<br />

organismo, já que ele é mais sábio que a razão. Valoriza<br />

a influência social, enxergando, no entanto, uma oposição<br />

entre indivíduo–socie<strong>da</strong>de, interior-exterior, objetivi<strong>da</strong>de-subjetivi<strong>da</strong>de,<br />

deixando claro seu limite epistemológico<br />

de compreender a indissociabili<strong>da</strong>de entre os<br />

pólos. Resumi<strong>da</strong>mente, podemos afirmar que a noção de<br />

pessoa rogeriana pressupõe uma pessoa centra<strong>da</strong>, autônoma,<br />

livre, individualiza<strong>da</strong>.<br />

O trabalho de Rogers vem sendo dividido em fases, a<br />

partir de características centrais, criando vertentes também<br />

distintas. Assim, múltiplas teorizações contemporâneas<br />

vêm sendo teci<strong>da</strong>s e novos caminhos sendo trilhados<br />

(Boris, 1987; Boainain Jr. 1998; Belém, 2004; Moreira,<br />

2010). Deste modo, a partir do delineamento de seus pressupostos,<br />

Rogers divulgou uma terapia que tinha a pessoa<br />

como centro do processo terapêutico, caracterizando sua<br />

primeira fase de trabalho, a fase não diretiva (1940-1950).<br />

Desde sempre enfatizou o respeito pelo outro, a importância<br />

<strong>da</strong> relação com o cliente para além de sua sintomatologia,<br />

a expressão emocional através, não somente<br />

do conteúdo verbal, mas do próprio corpo. O terapeuta<br />

deveria buscar uma relação genuína, empática, isenta de<br />

interpretações e julgamentos e, principalmente, adotando<br />

uma postura de consideração positiva incondicional<br />

dirigi<strong>da</strong> ao cliente. A fase seguinte, reflexiva (1950-1957),<br />

ain<strong>da</strong> se centrava no cliente, colocando como única possibili<strong>da</strong>de<br />

expressiva do terapeuta, respostas de apoio e<br />

compreensão ao que fosse apresentado.<br />

Com o tempo, a postura do terapeuta rogeriano deixa<br />

de enfatizar a pessoa, como centro <strong>da</strong> relação, estabelecendo<br />

um campo interativo entre a dupla. Esta postura<br />

caracteriza a posição experiencial <strong>da</strong> terapia rogeriana<br />

(1957-1970). Nesta nova postura, terapeuta e cliente fazem<br />

parte do processo. Como afirma Boainain Jr (1998): “Este<br />

novo centrar-se, focalizando a experiência do terapeuta,<br />

alternativo à anterior unilaterali<strong>da</strong>de do centrar-se no<br />

cliente, descortinou to<strong>da</strong> uma ampla gama de possibili<strong>da</strong>des<br />

expressivas para o terapeuta e veio tornar a terapia<br />

rogeriana muito mais bicentra<strong>da</strong>” (p. 85). Finalmente, na<br />

quarta fase <strong>da</strong> terapia rogeriana, o movimento dos grandes<br />

grupos, fase coletiva (1970-1985), revelou um Rogers<br />

profun<strong>da</strong>mente envolvido na formação de novos terapeutas<br />

e enriquecendo a prática <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem humanista.<br />

Para Carrenho, Tassinari e Pinto (2010), o percurso<br />

<strong>da</strong> ACP no Brasil passou por fases: Pré-história (1945-<br />

1976), caracteriza<strong>da</strong> pela pouca presença de trabalhos<br />

nesta abor<strong>da</strong>gem; Fertilização (1977-1986), marca<strong>da</strong> pela<br />

presença de Rogers e sua equipe no Brasil, assim como a<br />

formação de profissionais, tais como Rachel Rosenberg,<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012<br />

Ana M. M. C. Frota<br />

que se dedicaram a promover eventos de treinamento<br />

profissional e workshops; Declínio (1978-1989), atravessado<br />

pelo luto trazido pela morte de Rogers e Rosenberg;<br />

Renascimento (90 até hoje), trazendo consigo um aumento<br />

significativo de profissionais que têm contribuído criativamente<br />

para a construção <strong>da</strong> ACP.<br />

Conforme estudos de Carrenho et al. (2010), é visível<br />

um movimento de expansão <strong>da</strong> ACP no Brasil. Ca<strong>da</strong><br />

um desses movimentos traz uma sustentação filosófica<br />

que caminha ao lado dos princípios básicos rogerianos.<br />

Porém, alguns estudos trazem também contribuições que,<br />

ao invés de caminharem bem ao lado <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem<br />

centra<strong>da</strong> na pessoa, introduzem novas teorias e metodologias<br />

de prática psicoterápica e de pesquisa clínica.<br />

Encontramos seguidores de Rogers que têm ampliado sua<br />

perspectiva, criando uma nova metodologia de trabalho e<br />

pesquisa a partir de Husserl, Merleau Ponty e Heidegger,<br />

dentre outros. Nossas reflexões conduzem-nos, então, a<br />

pensar o limite existente entre uma aliança <strong>da</strong> ACP e<br />

esses filósofos referidos e uma necessária ruptura entre<br />

ambos, por um distanciamento de paradigmas.<br />

Sabemos que Rogers leu Kiekegaard, adotando dele<br />

sua crença na experiência pessoal. De Buber, adotou a<br />

filosofia do diálogo. Porém, de acordo com a história <strong>da</strong><br />

psicologia rogeriana – conta<strong>da</strong> por autores contemporâneos<br />

brasileiros, como Belém (2000), Cury (1987), Fonseca<br />

(1998), Moreira (1990, 1997, 2009a, 2009b) –, não se pode<br />

afirmar que o pensamento de Rogers tenha sido fenomenológico.<br />

Rogers sempre valorizou a relação cliente-terapeuta,<br />

contudo sua visão de homem era a de um homem<br />

individual. Moreira (2009b) é clara ao afirmar:<br />

Parece possível buscar afini<strong>da</strong>des entre as bases<br />

filosóficas fenomenológicas e/ou existenciais e o<br />

pensamento rogeriano como é desenvolvido na<br />

atuali<strong>da</strong>de, mas não devemos nos iludir de que tais<br />

filósofos tenham influenciado a teoria rogeriana<br />

original. Afirmar que a fenomenologia influenciou<br />

a Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa (...) é um engano.<br />

No entanto, é possível considerar que as fenomenologias<br />

existenciais passaram a ter um papel fun<strong>da</strong>mental<br />

em muitas <strong>da</strong>s vertentes atuais <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem<br />

Centra<strong>da</strong> na Pessoa (p. 10).<br />

Aqui começa um novo capítulo nos estudos e derivações<br />

<strong>da</strong> ACP: os movimentos dos seus discípulos nas<br />

suas aproximações com a fenomenologia. Mas não existe<br />

somente uma fenomenologia, ela também é múltipla.<br />

3. A Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na pessoa Marca Encontro<br />

com a fenomenologia – um processo em processo<br />

A Fenomenologia surgiu no final do século XIX, rompendo<br />

com o modelo cartesiano e a perspectiva metafísica,<br />

que afirmava a existência de uma ver<strong>da</strong>de universal,<br />

172


Origens e Destinos <strong>da</strong>s Psicoterapias Humanistas: O Caso <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa<br />

pura e imutável, possível de ser alcança<strong>da</strong> pelo homem<br />

através <strong>da</strong> razão. Segundo Frota (1997), a fenomenologia<br />

aponta a “impossibili<strong>da</strong>de de se produzir um conhecimento<br />

científico universal, uma vez que a universali<strong>da</strong>de se reduz<br />

a generali<strong>da</strong>des abstratas e a necessi<strong>da</strong>de à freqüência<br />

e repetição dos eventos observados” (p. 28).<br />

A Fenomenologia surge em oposição ao Positivismo,<br />

em que o conhecimento é considerado válido apenas<br />

quando os conceitos são construídos a partir de parâmetros<br />

lógicos e com a garantia de privação <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de<br />

entre os homens e o mundo. A Fenomenologia acredita<br />

que o conhecimento é possibilitado, exatamente, por<br />

meio <strong>da</strong> aceitação desta intimi<strong>da</strong>de e envolvimento entre<br />

homem e mundo. Pensar, para a Fenomenologia, significa<br />

in<strong>da</strong>gar, questionar, tentar compreender. Algo processual,<br />

parcial, relativo. Muito diferente do conhecer<br />

metafísico, que pretende “dominar” o conteúdo de uma<br />

matéria ou disciplina.<br />

Para a metafísica, há a distinção entre o ser <strong>da</strong>s coisas<br />

e a aparência destas. Sendo a aparência, para tal<br />

corrente, falaciosa, como se escondesse a ver<strong>da</strong>deira essência<br />

dos fenômenos. Já para a Fenomenologia, o que<br />

se mostra, ou seja, a aparência é o próprio fenômeno<br />

sujeito à produção de sentidos <strong>da</strong>dos pelo telespectador.<br />

Na sua aparição, o fenômeno mostra-se carregado<br />

de todos os sentidos a ele atribuído, que se interliga à<br />

história, cultura, socie<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> qual faz parte. Em resumo,<br />

Fenomenologia refere-se ao estudo do fenômeno.<br />

Fenômeno, por sua vez, segundo Karwowski (2005), pode<br />

ser entendido no seu sentido estrito, como aparecer, ou<br />

aquilo que se mostra por si mesmo, partindo do grego<br />

phainestai. Deste modo, não existe um fenômeno puro,<br />

visto que a forma como o apreendo está diretamente ligado<br />

aos meus valores, à minha história, o que colabora<br />

com a negação <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de.<br />

Segundo Critelli (1996), o pensar fenomenológico não<br />

é privilégio somente dos filósofos. A partir dos anos 50<br />

do século passado, houve um grande desenvolvimento do<br />

enfoque fenomenológico para a Psicologia. O método fenomenológico<br />

passou a fazer parte do campo <strong>da</strong> Psicologia<br />

tendo como objetivo capturar o sentido ou mesmo o significado<br />

<strong>da</strong> vivência <strong>da</strong> pessoa, tal qual experimenta<strong>da</strong>s<br />

na sua existência concreta. Contrária à idéia de ver<strong>da</strong>de<br />

como veritas, a fenomenologia existencial busca conhecer<br />

a ver<strong>da</strong>de como aletheia, como desvelamento. Desse<br />

modo, acredita que a ver<strong>da</strong>de é sempre precária, incompleta,<br />

parcial. Seu método também não é o mesmo <strong>da</strong><br />

ciência positivista, constituindo-se num interrogar-se<br />

constante. Na ver<strong>da</strong>de, a fenomenologia surge como um<br />

contraponto à ciência mecanicista, acenando para um<br />

novo modo de se produzir conhecimento e, principalmente,<br />

de ver o mundo.<br />

Esta perspectiva surge rompendo com o modelo de<br />

ciência cartesiana e metafísica, que afirmava, conforme<br />

já dissemos, que a ver<strong>da</strong>de é universal e imutável, que o<br />

conhecimento científico poderia ser apreendido sem fa-<br />

173<br />

lhas através de um método racional e objetivo. O método<br />

fenomenológico vai buscar o sentido do ser do modo<br />

como este se dá. Deste modo, abandonando-se o método<br />

positivista, assim como a noção de causali<strong>da</strong>de, adota-se o<br />

método fenomenológico, que tem como objetivo alcançar<br />

o fenômeno em sua totali<strong>da</strong>de, tentando compreendê-lo<br />

a partir de um olhar específico.<br />

Porém, ao se falar de um método fenomenológico de<br />

compreensão de um fenômeno, vemos que não existe<br />

uma única forma de se investigar. Como afirma Holan<strong>da</strong><br />

(2001):<br />

Não podemos falar simplesmente de pesquisa fenomenológica<br />

como se esta fosse um conjunto único de<br />

modos de ação. Há de se destacar que existem tantas<br />

diferenças em termos de ação metodológica na fenomenologia<br />

quantas compreensões existem <strong>da</strong> própria<br />

fenomenologia (p. 42).<br />

Para Fonseca (2011), existiu no Brasil, e em to<strong>da</strong> a<br />

América Latina, um grande movimento de reconstrução<br />

<strong>da</strong> ACP após a morte de Rogers, provavelmente facilitado<br />

pela ocorrência dos grandes fóruns de debates e encontros<br />

Latinos e Brasileiros. Nestes encontros firmou-se<br />

uma crítica vigorosa à concepção de pessoa “planetária”,<br />

evidenciando a indissociabili<strong>da</strong>de indivíduo-mundo.<br />

Afirma: “assumir esta concepção de pessoa na América<br />

Latina é alienar <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem amplos<br />

segmentos <strong>da</strong> população, e colaborar com o processo de<br />

sua aniquilação já a um nível conceitual” (Fonseca, 2011,<br />

p. 15). Tal crítica tem proporcionado estudos e pesquisas<br />

que tentam uma aproximação <strong>da</strong> ACP com as fenomenologias,<br />

por acreditarem que tanto enquanto epistemologia,<br />

método e filosofia, ela pode potencializar uma psicologia<br />

que integre o homem ao seu mundo.<br />

No Brasil, o movimento de discípulos de Rogers que<br />

constroem uma interlocução teórica entre os fun<strong>da</strong>mentos<br />

<strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa e as Fenomenologias<br />

tem se revelado um terreno fértil e produtivo. Neste percurso,<br />

alguns se aliam a Husserl e sua ontologia transcendental<br />

(Holan<strong>da</strong>, 2001, 2009; Amatuzzi, 2009, 2010);<br />

enquanto outros caminham ao lado de Heidegger, tentando<br />

uma hermêutica ontológica (Frota, 1997; Feijoo,<br />

2000; Barreto & Morato, 2009); outros ain<strong>da</strong> buscam<br />

Merleau-Ponty, e a possibili<strong>da</strong>de de uma fenomenologia<br />

encarna<strong>da</strong> (Moreira, 2007, 2009a). Vejamos alguns destes<br />

percursos, ain<strong>da</strong> em construção, numa visa<strong>da</strong> superficial<br />

e panorâmica.<br />

Amatuzzi (2010) compreende que o percurso que<br />

Husserl faz, ao aprofun<strong>da</strong>r a redução no contexto <strong>da</strong> filosofia,<br />

foi semelhante ao de Rogers, no contexto <strong>da</strong> psicoterapia.<br />

Para ele, Husserl parte de uma colocação entre<br />

parênteses <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de do mundo e de uma concentração<br />

no próprio ato de conhecimento. Enquanto isso,<br />

Rogers fala de deixar de lado tanto as teorias <strong>da</strong> pessoa<br />

que fala, quanto às do próprio sujeito. Assim, caminha<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

em direção ao puro vivido. Nesta perspectiva, assumi<strong>da</strong><br />

por Amatuzzi (2010),<br />

Rogers e Husserl se aproximam muito: eles usam o<br />

mesmo método <strong>da</strong> redução, embora com finali<strong>da</strong>des<br />

diferentes. Um para clarear o problema do conhecimento<br />

e outro para abrir caminho para a experiência<br />

vivi<strong>da</strong> numa relação facilitadora de crescimento. Husserl<br />

chega na necessi<strong>da</strong>de de um eu transcendental,<br />

e Rogers formula as reduções necessárias para um<br />

contato humano profundo e criativo. Husserl acredita<br />

que a redução desven<strong>da</strong> uma face do humano que<br />

tinha ficado escondi<strong>da</strong> (o eu como sujeito) e cria a<br />

necessi<strong>da</strong>de de um novo conceito (o eu transcendental,<br />

que é afinal o eu sujeito). Rogers, um americano<br />

pragmático, acredita que essa tríplice redução é que<br />

abre o caminho para os dinamismos <strong>da</strong> pessoa em<br />

pleno funcionamento e é isso que lhe interessa (p. 9).<br />

Além disso, para Amatuzzi (2009), a atitude empática<br />

de Rogers leva a entrar em contato não somente com<br />

o sentimento puro, mas com seu significado, captando o<br />

movimento intencional <strong>da</strong> experiência, que, nesta perspectiva,<br />

seria muito mais ver<strong>da</strong>deiro.<br />

Defendendo a perspectiva de que “to<strong>da</strong> Psicologia é<br />

e deve ser fenomenológica”, Holan<strong>da</strong> (2009, p. 1) afirma<br />

que para Husserl o fenômeno subjetivo é, antes de qualquer<br />

outra coisa, um fenômeno intersubjetivo, o que significa<br />

afirmar que o mundo não existe sem meu olhar.<br />

Assim, não existe um mundo a ser visto e sim um intermundo.<br />

Evidencia-se aqui o conceito de mundo vivido:<br />

mundo que nos é <strong>da</strong>do antes de elaborarmos conceitos<br />

sobre ele. Deste modo,<br />

Não se trata <strong>da</strong> natureza enquanto reali<strong>da</strong>de objetiva<br />

(estu<strong>da</strong><strong>da</strong> pela ciência positivista), mas do mundo que<br />

se dá na relação, que se mostra como fenômeno primeiro<br />

e que pode ser depois elaborado no pensamento.<br />

Conhecer este mundo é, então, conhecer nosso estar<br />

nele, conhecer nossas relações (Amatuzzi, 2009, p. 5).<br />

Contudo, apesar <strong>da</strong> compreensão de que a Psicologia<br />

não pode deixar de ver o fenômeno como uma fusão de<br />

mundos, Rogers não parece ter se dedicado a esta premissa,<br />

é o que denunciam alguns seguidores <strong>da</strong> ACP. Senão<br />

como compreender as críticas que se seguem?<br />

A partir <strong>da</strong> perspectiva de Moreira (2007) o objetivo<br />

maior <strong>da</strong> proposta rogeriana é <strong>da</strong>r importância à pessoa,<br />

referindo-se a qualquer pessoa. Como consequência, perde<br />

de vista a estrutura social que constitui o indivíduo.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, parece que Rogers segue<br />

(...) falando de um homem subjetivo, que não se insere<br />

na reali<strong>da</strong>de concreta, objetiva. Fala de um homem<br />

planetário, um homem do planeta Terra, ignorando<br />

to<strong>da</strong>s as diferenças existentes entre homens que vivem<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012<br />

Ana M. M. C. Frota<br />

em contextos tão diversos e ignorando a reali<strong>da</strong>de<br />

concreta em função de uma visão subjetiva (Moreira,<br />

2007 p. 57).<br />

Para a autora, Rogers não consegue ultrapassar o individualismo,<br />

centrando-se no homem abstrato, descontextualizado<br />

sócio-historicamente, o que dificulta a emergência<br />

dos diferentes sentidos dos fenômenos. Moreira<br />

(1990) afirma, que no primeiro momento do trabalho de<br />

Rogers, não existia nem mesmo a tentativa <strong>da</strong> busca de<br />

articulações de sentidos emergentes na relação terapeuta-cliente,<br />

uma vez que o cliente era mantido como centro.<br />

O mesmo acontecia na fase reflexiva, já que as interferências<br />

do terapeuta costumavam se <strong>da</strong>r a partir do<br />

que era trazido pelo cliente e pelo que surgia na relação<br />

terapeuta-cliente. As fases posteriores iniciam a exploração<br />

dos mundos fenomenais <strong>da</strong> dupla terapêutica, viabilizando<br />

uma fenomenologia <strong>da</strong> relação intersubjetiva<br />

e não mais somente do cliente. Porém, ain<strong>da</strong> se mantém<br />

numa concepção de “centrado na pessoa”, mesmo que<br />

seja bi-centrado, como afirma Cury (1987). Isso acaba por<br />

inviabilizar o processo terapêutico experienciado como<br />

inter-subjetivo, uma vez que continua existindo amarras<br />

de uma concepção centra<strong>da</strong> na pessoa.<br />

Para Moreira (2009a), é a crítica à visão antropocêntrica<br />

de homem que se constitui no principal fun<strong>da</strong>mento<br />

epistemológico <strong>da</strong> psicologia humanista-fenomenológica,<br />

no qual ela vem trabalhando. O postulado que Rogers<br />

tinha <strong>da</strong> pessoa humana, considerando-a como centro,<br />

com um externo e um interno, como uma dicotomia entre<br />

subjetivo e objetivo, impede que ele tenha uma prática<br />

efetivamente fenomenológica. Assim: “Rogers desenvolveu<br />

uma teoria <strong>da</strong> psicoterapia centra<strong>da</strong> na pessoa e não<br />

uma teoria psicoterapêutica fenomenológica mun<strong>da</strong>na”<br />

(Moreira, 2009a, p. 38). Como consequência, Moreira vem<br />

desenvolvendo um trabalho de assimilação psicológica <strong>da</strong><br />

teoria filosófica, ou seja, <strong>da</strong> fenomenologia de Merleau-<br />

Ponty, adotando-a como suporte para a construção de<br />

uma psicoterapia humanista fenomenológica.<br />

Husserl foi duramente criticado por ser considerado<br />

idealista, buscando uma filosofia transcendental, acreditando<br />

que na<strong>da</strong> mais existe que o pensamento, e que a<br />

reali<strong>da</strong>de estaria nele. A crítica à intencionali<strong>da</strong>de e à redução<br />

fenomenológica também foi grande (Critelli, 1996;<br />

Frota, 1997). Contudo, Merleau-Ponty não aceitou estas<br />

críticas a seu mestre, assegura Amatuzzi (2010). Para<br />

ele, Husserl não era um idealista, pois o mundo já está<br />

<strong>da</strong>do como pressuposto do próprio pensamento. Afirma:<br />

Se nos instalarmos no interior do pensamento e<br />

tentarmos deduzir <strong>da</strong>í o mundo como reali<strong>da</strong>de<br />

externa, jamais o conseguiremos. Se nos fecharmos<br />

no pensamento, na<strong>da</strong> nos fará sair dele. Só há um<br />

meio: compreender que o mundo já está <strong>da</strong>do como<br />

um pressuposto, algo que podemos ver no próprio<br />

pensamento, ou na consciência, desde que tenhamos<br />

174


Origens e Destinos <strong>da</strong>s Psicoterapias Humanistas: O Caso <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa<br />

175<br />

uma atitude fenomenológica. É a intencionali<strong>da</strong>de que<br />

nos restitui o mundo. Através dela percebemos que<br />

ele sempre esteve lá (Amatuzzi, 2010, p. 6).<br />

Para os profissionais que tentam um caminho merleau-pontyano,<br />

a proposta <strong>da</strong> visão de homem antropocêntrica<br />

de Rogers é substituí<strong>da</strong> pela visão de homem mun<strong>da</strong>no,<br />

criando condições de se construir uma psicoterapia<br />

humanista fenomenológica. Deste modo, partindo de um<br />

novo fun<strong>da</strong>mento epistemológico e filosófico, a fenomenologia<br />

antropológica de Merleau-Ponty apresenta a noção<br />

de homem como encarnado no mundo, um homem<br />

enquanto um ser-no-mundo, um fenômeno em constante<br />

interação com o mundo.<br />

Resta-nos in<strong>da</strong>gar, até que ponto não se vem criando<br />

algo novo, tão novo, que rompe com a abor<strong>da</strong>gem centra<strong>da</strong>,<br />

por caminhar por paradigmas outros que Rogers se<br />

apoiou na construção de sua teoria? Será possível ain<strong>da</strong><br />

falarmos de uma aproximação com a ACP, ou falamos de<br />

uma construção que trilha outras vere<strong>da</strong>s des-encontra<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong>s de Rogers?<br />

Já na perspectiva <strong>da</strong> fenomenologia heideggeriana,<br />

<strong>da</strong> fenomenologia ontológica de Heidegger como método<br />

e base epistemológica para fazer uma articulação com a<br />

psicoterapia, temos que a noção que se oferece como base<br />

para a prática psicoterápica é a noção de homem como<br />

<strong>da</strong>sein, como ser-aí. Nesta perspectiva, o que importa é o<br />

ontológico e não o ôntico, embora saibamos que somente<br />

pela via do ôntico chegamos ao ontológico. Para saber<br />

do ser do homem é necessário voltar-se a uma reflexão<br />

ontológica, perguntar pelo ser do ente. Neste caminho,<br />

o método hermenêutico é a via por meio <strong>da</strong> qual se pode<br />

acessar ao sentido do existir em uma existência particular,<br />

única, e, ao mesmo tempo, tão imprópria.<br />

Para Heidegger, o homem é um ser de cui<strong>da</strong>do e perguntar<br />

pelo ser, remete ao ente e seu modo de cui<strong>da</strong>r de<br />

si. Como o ser não se mostra como é, e sim como representação<br />

ôntica, deve-se partir do que se mostra para<br />

chegar ao que se é. Ou seja, do impróprio para o próprio,<br />

do inautêntico para o autêntico.<br />

O método hermenêutico é o modo de acesso à compreensão<br />

do ser, via fala. Para Heidegger, os seres humanos<br />

falam enquanto escutam e a escuta já é uma fala.<br />

Assim, a fala é a casa do homem. Diz também que uma<br />

visita de casa em casa é quase impossível. É no quase<br />

que transitamos, na psicoterapia, para compreender o<br />

ser, já que abre uma possibili<strong>da</strong>de de diálogo, de visita à<br />

casa do outro. Visito a casa do outro a partir <strong>da</strong> minha<br />

casa (Feijoo, 2000).<br />

Heidegger e sua perspectiva de fenomenologia sugerem<br />

uma possibili<strong>da</strong>de de pensar a questão do ser. Está<br />

completamente entranha<strong>da</strong> na sua filosofia ontológica.<br />

O homem, <strong>da</strong>sein, é um ser lançado no mundo, cuja pré-<br />

-sença é a abertura de possibili<strong>da</strong>des completa e total de<br />

existência. É um ser incompleto, somente se completando<br />

com a morte. Assim, quando o Dasein é, não é mais.<br />

A angústia e o temor são os modos de abertura do ser.<br />

Do mesmo modo, a proprie<strong>da</strong>de e a improprie<strong>da</strong>de também<br />

são características constitutivas do ente, que tem seu<br />

ser em jogo. No modo próprio, o ser flui mais facilmente,<br />

relacionando-se melhor com o ente. No impróprio, o ente<br />

vive convenções, falatórios, regras sociais.<br />

Enfim, a fenomenologia ontológica de Heidegger abre<br />

uma possibili<strong>da</strong>de de, através <strong>da</strong> hermenêutica, chegar a<br />

um sentido do ser.<br />

Neste aspecto, cabe ao psicoterapeuta reconhecer a<br />

inautentici<strong>da</strong>de, a impessoali<strong>da</strong>de e o esquecimento<br />

<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des do cliente, como também seu poder<br />

ser mais próprio e pessoal na revelação de suas<br />

experiências para que, então, possa atuar como tal no<br />

espaço psicoterapêutico do outro (Feijoo, 2000, p. 16).<br />

Feijoo (2000) analisa a possibili<strong>da</strong>de de se fazer uma<br />

clínica fenomenológico-existencial partindo de Heidegger<br />

e de sua hermenêutica. Porém, não faz nenhuma aproximação<br />

com Rogers e a ACP. Para Lessa (2009), a clínica<br />

existencialista, inspira<strong>da</strong> nas idéias de Heidegger, tem<br />

características bem específicas:<br />

(...) problematiza a vi<strong>da</strong> enquanto processo de experimentação<br />

e não como uma representação <strong>da</strong>quilo<br />

que foi experimentado. Nosso objetivo principal é<br />

pensar o modo como o clínico li<strong>da</strong> com as diferentes<br />

concepções do ato de pensar que atravessam o plano<br />

<strong>da</strong> clínica existencial, visando <strong>da</strong>r visibili<strong>da</strong>de tanto<br />

a sua concepção teórica quanto ao exercício efetivo de<br />

sua prática. Especificamente pretendemos identificar<br />

em que a clínica existencial se diferencia <strong>da</strong> clínica<br />

que se restringe à representação, destacando, assim,<br />

os elementos que propriamente constituem o modo<br />

existencial de pensar a clínica (p. 15).<br />

Barreto e Morato (2009) são categóricas ao negar a<br />

possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ACP se constituir numa abor<strong>da</strong>gem fenomenológico-existencial.<br />

Afirmam: “a abor<strong>da</strong>gem fenomenológica<br />

existencial, tão acriteriosamente confundi<strong>da</strong><br />

com a Psicologia Humanista, com a Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong><br />

na Pessoa e a Gestalt-Terapia (...)” (p. 41-42). Nesta perspectiva,<br />

os saberes e práticas basea<strong>da</strong>s na compreensão<br />

do sujeito separado do mundo, o sujeito em si, não dá<br />

conta de compreender o homem, Dasein e, muito menos,<br />

de “proporcionar ao sujeito a compreensão do seu<br />

modo de ser no mundo, abrindo-lhe possibili<strong>da</strong>des para<br />

novas formas de existir, e devolver-lhe a capaci<strong>da</strong>de de<br />

dispor <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des próprias e mais autênticas”<br />

(p. 45), que seria o objetivo <strong>da</strong> psicoterapia fenomenológica<br />

existencial.<br />

A partir de uma visa<strong>da</strong> crítica, Barreto (2006) acredita<br />

que Rogers desenvolveu a “teoria <strong>da</strong> Terapia Centra<strong>da</strong><br />

no Cliente, na qual manteve a idéia de desenvolvimento<br />

autocentrado, hipervalorizando a pessoa-indivíduo e as-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

sumindo a perspectiva do humanismo romântico presente<br />

no pensamento moderno” (p. 117). Acredita que Rogers<br />

concebe sua teoria numa “estrita ideologia individualista,<br />

centra<strong>da</strong> na possibili<strong>da</strong>de inesgotável do potencial<br />

humano que se realiza a si mesmo, transformando o resto<br />

do mundo em meros intermediários, os quais funcionam<br />

como forças facilitadoras ou dificultadoras” (p. 117).<br />

A autora desacredita que a Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na<br />

Pessoa, tal como postulou Rogers, reconheça a possibili<strong>da</strong>de<br />

do acontecer humano em um mundo adverso, uma<br />

vez que assume a intenção de expurgar a dimensão do trágico<br />

<strong>da</strong> existência humana. Desse modo, afirma, “Rogers<br />

não estaria apontando para possibili<strong>da</strong>des de compreender<br />

a existência humana como ser-no-mundo-com-outros,<br />

porque ain<strong>da</strong> se baseava em uma compreensão de ação<br />

clínica fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na liberação <strong>da</strong> força vital de auto-realização<br />

do indivíduo” (p. 123). Assim, parece claro<br />

que declara uma cisão entre a ACP e a Hermenêutica<br />

heidegeriana.<br />

Para uma aproximação de uma clínica fenomenológica<br />

existencial, na compreensão de Barreto e Morato<br />

(2009), a ação deve ser<br />

(...) repensa<strong>da</strong> como um espaço aberto, condição de<br />

possibili<strong>da</strong>de para a emergência de uma transformação<br />

não produzi<strong>da</strong>, mas emergente em forma de<br />

reflexão, aqui compreendi<strong>da</strong> como quebra do estabelecido<br />

e condição necessária para um novo olhar poder<br />

emergir. Esse novo olhar, ao desalojar o homem <strong>da</strong> sua<br />

habitual relação com o mundo e a consciência, abre<br />

um espaço que só aparece quando o habitual é desconstruído<br />

e o homem (Dasein) se descobre entregue<br />

à tarefa inexorável de ter-que-ser (p. 50).<br />

Há, no entanto, pensamentos divergentes. Para<br />

Bezerra (2007), por exemplo, é possível uma articulação<br />

entre a ACP e Heidegger. Apresentando alguns conceitos<br />

utilizados por psicólogos que adotam o modelo fenomenológico-existencial,<br />

Bezerra (2007) destaca o conceito de<br />

angústia como possibili<strong>da</strong>de de revelação de um projeto<br />

existencial inserido em um contexto situacional, e não<br />

como um sintoma psicopatológico a ser extinto. Acredita<br />

a autora que<br />

(...) na psicoterapia centra<strong>da</strong> na pessoa, a articulação<br />

entre as perspectivas rogeriana e heideggeriana aponta<br />

para a necessi<strong>da</strong>de de se abrir espaço, na teoria e<br />

método <strong>da</strong> ACP, ao estranho, à falta, como condição<br />

de possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> existência. Esta perspectiva<br />

des-centra<strong>da</strong> consiste em um olhar que vá além <strong>da</strong><br />

pessoa-indivíduo (Bezerra, 2007, p. 115).<br />

Resta in<strong>da</strong>gar: será oportuno se pensar em diálogos<br />

entre a ACP e a filosofia heideggeriana que se tornem capazes<br />

de possibilitar a construção de algo novo, que se afine<br />

à Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa proposta por Rogers?<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012<br />

Concluindo... se é que se pode concluir algo<br />

Ana M. M. C. Frota<br />

Apesar <strong>da</strong> crítica ao trabalho de Rogers – talvez até<br />

um pouco imereci<strong>da</strong>, já que ele nunca se disse fenomenólogo<br />

– muito <strong>da</strong>s contribuições <strong>da</strong> ACP fazem parte <strong>da</strong><br />

prática clínica <strong>da</strong> psicoterapia humanista fenomenológica.<br />

A consideração positiva incondicional, por exemplo,<br />

quando compreendi<strong>da</strong> como respeito ao outro, respeito à<br />

alteri<strong>da</strong>de, à particulari<strong>da</strong>de, permite reconhecê-la como<br />

a confirmação do outro como um outro que mantém um<br />

diálogo comigo. Tomando a mesma linha de pensamento,<br />

a relação empática deixa de ser critica<strong>da</strong> por seu romantismo,<br />

para ser valoriza<strong>da</strong> como a inauguração de uma parceria<br />

<strong>da</strong> dupla cliente-terapeuta, pressupondo uma compreensão<br />

e aceitação efetiva do outro, enquanto diferente.<br />

Muitos caminhos vêm sendo desven<strong>da</strong>dos. Muitas trilhas<br />

ain<strong>da</strong> a serem abertas. Rogers vem sendo discutido,<br />

re-inventado, por muitos de seus seguidores que, ávidos<br />

por ampliar seus campos de compreensão, perscrutam<br />

diferentes possibili<strong>da</strong>des. Fica o desejo de conhecer novos<br />

horizontes investigados, sem preconceito, com a mente<br />

aberta para o novo e o diferente. Atentos, no entanto,<br />

para o cui<strong>da</strong>do de não nos perdermos numa construção<br />

na qual a tessitura se esgarce, se rompa, se parta em pe<strong>da</strong>ços<br />

frankensteinianos, por total falta de coerência paradigmática<br />

e prática.<br />

Rogers não se voltou a construir uma teoria fenomenológica.<br />

Tal movimento é mais uma característica contemporânea,<br />

feita por pesquisadores que têm se voltado<br />

a estu<strong>da</strong>r filosofia fenomenológica. Assim, a busca por<br />

aproximar Rogers de Husserl, Heidegger e Merleau Ponty,<br />

por exemplo, é muito mais uma preocupação atual, do<br />

que a que foi assumi<strong>da</strong> por Rogers.<br />

Os destinos <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa, como<br />

Terapia Humanista Existencial estão se deixando descobrir/construir.<br />

A obra de Rogers está viva e, como tal, em<br />

processo. Talvez nesta fase pós-rogeriana, tal como referen<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

por Segrera (2002), se construa algo não novo<br />

que ganhe nomes e existência própria. Estaremos falando<br />

ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa?<br />

Referências<br />

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um paralelo entre Rogers e Nietzsche. Psicologia:<br />

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Papirus.<br />

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aproximação teórico-humanista. Estudos de Psicologia<br />

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176


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Ana Maria Monte Coelho Frota - Gradua<strong>da</strong> em Psicologia, Mestre em<br />

Educação pela Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará e Doutora em Psicologia<br />

Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universi<strong>da</strong>de de São Paulo.<br />

Atualmente é Professora Associa<strong>da</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará<br />

(UFC). Endereço Institucional: Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará, Centro<br />

de Ciências Agrárias (Departamento de Economia Doméstica) - Campus<br />

do Pici, s/n, CEP 60455-760 (Fortaleza/CE). E-mail: anafrota@ufc.br<br />

Recebido em 12.02.2012<br />

Primeira Decisão Editorial em 03.07.2012<br />

Segun<strong>da</strong> Decisão Editorial em 11.09.2012<br />

Aceito em 30.11.12<br />

178


“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia<br />

179<br />

“vERSANDO SENTIDOS” SObRE O pROCESSO DE<br />

ApRENDIZAGEM EM GESTALT-TERApIA<br />

“Traversing Meanings” About the Learning Process in Gestalt Therapy<br />

“Ejercitando Sentidos “ Sobre el Proceso de Aprendizaje en Terapia Gestalt<br />

JoÃo vitor MoreirA MAiA<br />

José célio Freire<br />

MAriAnA Alves de oliveirA<br />

Resumo: Propomo-nos, a partir de um estudo exploratório, questionar: como se dá o processo de facilitação <strong>da</strong> aprendizagem em<br />

Gestalt-terapia no ambiente acadêmico? Fez-se necessário compreender como a Gestalt-terapia, em seus referenciais teóricos,<br />

entende o processo de facilitação <strong>da</strong> aprendizagem. Nesse sentido, nos detivemos em estudos sobre Gestaltpe<strong>da</strong>gogia, e sobre a<br />

formação do psicoterapeuta na Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>. Ampliamos nossos referenciais a partir <strong>da</strong>s ideias de Martin Buber sobre<br />

Educação e sobre a Filosofia Dialógica, estabelecendo também o diálogo com a Filosofia <strong>da</strong> Alteri<strong>da</strong>de de Emmanuel Lévinas,<br />

especificamente no que diz respeito ao conceito de ensino. Partindo do pressuposto que tais referenciais teóricos orientam nossa<br />

prática docente, intencionamos ilustrar nosso entendimento e vivência sobre a temática utilizando-nos <strong>da</strong>s versões de sentido<br />

realiza<strong>da</strong>s por uma aluna que participou do Curso de Capacitação na Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>, oferecido aos estu<strong>da</strong>ntes de graduação<br />

do Curso de Psicologia na Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará. Propomos uma prática docente que possibilite afetação, em<br />

que se experiencie o abandono <strong>da</strong>s referências, <strong>da</strong>s seguranças do conhecido, e que proponha um conhecimento a partir desta<br />

afetação provoca<strong>da</strong> pela exposição ao outro do professor, dos livros e pelas experiências vivi<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> experiência concreta<br />

em sala de aula.<br />

Palavras-chave: Processo de aprendizagem; Gestalt-Terapia; Dialogici<strong>da</strong>de; Alteri<strong>da</strong>de; Versão de sentido.<br />

Abstract: Starting from an exploratory study, we are questioning How the process of learning facilitation in Gestalt therapy<br />

works in the academic environment? It was necessary to understand how Gestalt Therapy views the process of learning facilitation<br />

in its theoretical references. Accordingly, we focus our readings in the Gestaltpe<strong>da</strong>gogy studies, and on the training of psychotherapists<br />

in the Gestalt approach. We expanded our references from the ideas of Martin Buber on Education and Dialogical<br />

Philosophy as well, thus establishing a dialogue with Emmanuel Levinas’s Otherness Philosophy, specifically regarding the<br />

concept of Teaching. Assuming that such theoretical references guide our teaching practice, we intend to illustrate our understanding<br />

and experience on the subject using the versions of meanings performed by a student who participated in the Training<br />

Course in the Gestalt Approach, offered to Psychology Course graduating students at the Federal University Federal of Ceará.<br />

We propose a teaching practice that enables affectation, the experiences of references` abandonment, the security of the known.<br />

We are proposing a knowledge from this affectation caused by exposure to the otherness of the teacher, of the books and the experiences<br />

from the concrete experience in the classroom.<br />

Keywords: Learning process; Gestalt Therapy; Dialogicality; Otherness; Versions of meanings.<br />

Resumen: Se propone como un estudio exploratorio interrogar: ¿cómo es el proceso de facilitar el aprendizaje en la terapia<br />

Gestalt en el ámbito académico? Se hizo necesario entender cómo la terapia Gestalt en sus referencias teóricas entiende el proceso<br />

de facilitar el aprendizaje. Con ello, nos detuvimos en estudios sobre Gestaltpe<strong>da</strong>gogía, y sobre la formación del psicoterapeuta<br />

el Abor<strong>da</strong>je <strong>Gestáltica</strong>. Hemos ampliado nuestras referencias a partir de las ideas de Martin Buber sobre Educación<br />

y sobre Filosofía Dialógica, estableciendo asimismo el diálogo con la Filosofía de la Alteri<strong>da</strong>d de Emmanuel Levinas, en particular<br />

con respecto al concepto de la enseñanza. Suponiendo que tales referenciales teóricos orientan nuestra práctica docente,<br />

tenemos la intención de ilustrar nuestro conocimiento y la experiencia sobre el tema utilizándonos de las versiones de<br />

sentido realiza<strong>da</strong>s por una estudiante que participó del Curso de Capacitación en el enfoque de la Gestalt, que se ofrece a los<br />

estudiantes del Curso de Psicología de la Universi<strong>da</strong>d Federal de Ceará. Proponemos una práctica docente que permite la afectación,<br />

como lo experimenta el abandono de los referenciales, la seguri<strong>da</strong>d del conocido, y proponer un conocimiento desde<br />

esta afectación causa<strong>da</strong> por la exposición al otro del profesor, de los libros y de las experiencias vivi<strong>da</strong>s en la experiencia concreta<br />

en las clases.<br />

Palabras-clave: Proceso de aprendizaje; La terapia gestalt; Dialogici<strong>da</strong>d; Alteri<strong>da</strong>d; Versión de sentidos.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Introdução<br />

Este trabalho tem por objetivo apresentar os relatos<br />

iniciais <strong>da</strong>s experiências vivi<strong>da</strong>s e as reflexões construí<strong>da</strong>s<br />

a partir do Curso de Capacitação na Abor<strong>da</strong>gem<br />

<strong>Gestáltica</strong>, oferecido aos alunos de graduação do Curso<br />

de Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará, em<br />

Fortaleza, como projeto específico do PROPAG/UFC, no<br />

qual propomos uma ativi<strong>da</strong>de essencialmente relaciona<strong>da</strong><br />

ao processo de ensino/aprendizagem <strong>da</strong> Gestalt-terapia<br />

como abor<strong>da</strong>gem psicológica e atuação clínica. Buscou-se<br />

ao longo do curso proporcionar uma melhor fun<strong>da</strong>mentação<br />

epistemológica e teórica, colaborando com a formação<br />

do psicoterapeuta iniciante, no sentido também de<br />

proporcionar um maior embasamento teórico-vivencial<br />

na Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>.<br />

Ao longo do curso referido, intencionamos examinar<br />

as temáticas relativas às bases históricas e epistemológicas<br />

<strong>da</strong> Gestalt-terapia, em sua implicação na teoria e<br />

nos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> prática clínica nesta abor<strong>da</strong>gem.<br />

Destaca-se que, por compreender as psicologias como<br />

construções sócio-históricas, propomos uma reflexão<br />

crítica acerca dos conhecimentos e práticas produzi<strong>da</strong>s<br />

pelas Psicologias, e mais especificamente pela Gestaltterapia,<br />

buscando entender as circunstâncias históricas,<br />

sociais, econômicas e políticas em que as abor<strong>da</strong>gens psicológicas<br />

foram construí<strong>da</strong>s e legitima<strong>da</strong>s socialmente,<br />

sabendo que este processo de construção persiste e se<br />

renova constantemente.<br />

Observamos que, na condição de abor<strong>da</strong>gem psicológica,<br />

a Gestalt-terapia vem, em sua história recente,<br />

se aproximando do espaço acadêmico, com gestalt-terapeutas<br />

ocupando ca<strong>da</strong> vez mais o lugar na docência<br />

e na elaboração de trabalhos acadêmicos – trabalhos de<br />

conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de<br />

doutoramento – que trazem como temáticas questões teóricas<br />

e práticas relaciona<strong>da</strong>s à Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>.<br />

Contudo, ain<strong>da</strong> nos parecem escassos os trabalhos que<br />

se propõem a versar sobre o processo de ensino/aprendizagem<br />

na Gestalt-terapia no âmbito acadêmico, que em<br />

nosso entendimento traz desafios diferentes dos normalmente<br />

encontrados nos cursos de formação/especialização<br />

nesta abor<strong>da</strong>gem. Intencionamos, ao longo do presente<br />

trabalho, apresentar e discutir os desafios encontrados<br />

em nossa experiência, fazendo também provocações sobre<br />

a pertinência desta temática e a necessi<strong>da</strong>de de estudos<br />

que venham a alargar tais questionamentos, entendendo<br />

que os temas aqui refletidos necessitam de um esforço<br />

mais árduo do que o espaço de um artigo nos possibilita.<br />

Destacamos a importância de discutirmos o processo<br />

de aprendizagem <strong>da</strong> Gestalt-terapia no campo acadêmico,<br />

também pela forma que historicamente as abor<strong>da</strong>gens<br />

humanistas são apresenta<strong>da</strong>s e discuti<strong>da</strong>s nos cursos de<br />

graduação. Neste sentido, Moreira (2007) nos fala que as<br />

abor<strong>da</strong>gens psicológicas humanistas, muitas vezes a partir<br />

<strong>da</strong> preocupação prioritária com a experiência, teriam<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012<br />

João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira<br />

colocado a teorização em segundo plano, o que viria a<br />

possibilitar a concepção de que “a formação do psicoterapeuta<br />

humanista é mais fácil e que o aluno teria que<br />

estu<strong>da</strong>r menos, uma vez que o que vale é a vivência <strong>da</strong>s<br />

emoções” (p. 97). Moreira (2007) ressalta a necessi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentação teórico-filosófica dos enfoques psicoterápicos<br />

humanistas, enfatizando a importância <strong>da</strong> pesquisa<br />

fenomenológica mun<strong>da</strong>na, na elaboração de uma<br />

“prática clínica competente, comprometi<strong>da</strong> com o homem<br />

e com o mundo” (p. 108).<br />

Ao analisarmos a história <strong>da</strong> Gestalt-terapia como<br />

abor<strong>da</strong>gem psicoterápica, nos deparamos com o fato de<br />

que ela “(...) esteve tradicionalmente avessa à teorização e<br />

aos ‘sobreísmos’, intencionando com isso jamais desprender-se<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de última e insuperável que é a vivência”<br />

(Karwowski, 2005, pp. 9-10). Tal compreensão gerou<br />

um distanciamento de seus teóricos, em suas primeiras<br />

déca<strong>da</strong>s de história, do desafio e disciplina na construção<br />

de uma fun<strong>da</strong>mentação teórico-epistemológica consistente<br />

e coerente, ressaltando que, desde a déca<strong>da</strong> de<br />

oitenta, percebe-se um esforço por parte dos maiores expoentes<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de gestáltica na construção desse<br />

alicerce teórico.<br />

Neste sentido, Holan<strong>da</strong> (2005) ressalta que “a teoria e<br />

a prática de uma abor<strong>da</strong>gem não podem estar dissocia<strong>da</strong>s<br />

de uma construção coerente e de uma fun<strong>da</strong>mentação<br />

sóli<strong>da</strong>, bem como devem estar situa<strong>da</strong>s num determinado<br />

contexto” (p. 24). Assim, tomamos como compromisso em<br />

nossa prática docente o ensino <strong>da</strong> Gestalt-terapia pautado<br />

em um rigor teórico-epistemológico, no entanto, sem<br />

esquecermos do aspecto vivencial, tão enfatizado pelas<br />

abor<strong>da</strong>gens fenomenológico-existenciais.<br />

Na medi<strong>da</strong> em que as abor<strong>da</strong>gens psicológicas, “devem<br />

estar situa<strong>da</strong>s num determinado contexto”, como aponta<br />

Holan<strong>da</strong> (2005, p. 24), tomamos também como desafio as<br />

colocações de Figueiredo (2009), quando afirma sobre a<br />

urgência em estabelecermos em nossas teorizações “(...)<br />

uma discussão histórica, sociológica e filosófica acerca do<br />

mundo em que vivemos, <strong>da</strong>s formas dominantes de existir<br />

neste mundo e de como as psicologias contemporâneas<br />

são modos de tomar partido em relação aos problemas <strong>da</strong><br />

contemporanei<strong>da</strong>de” (p. 30).<br />

Assim, a partir desta proposta de ativi<strong>da</strong>de docente e<br />

<strong>da</strong>s experiências vivencia<strong>da</strong>s ao longo do processo, surgiu<br />

a necessi<strong>da</strong>de de questionar: como se dá o processo de facilitação<br />

<strong>da</strong> aprendizagem em Gestalt-terapia no ambiente<br />

acadêmico? Na tentativa de responder esta interrogação,<br />

primeiramente, fez-se necessário compreender como a<br />

Gestalt-terapia em seus referenciais teóricos entende o<br />

processo de ensino/aprendizagem. Neste sentido, recorremos<br />

aos trabalhos de Burow e Scherpp (1985) sobre a<br />

Gestaltpe<strong>da</strong>gogia, e de Cardella (2002) sobre a formação<br />

do psicoterapeuta. Ampliamos nossos referenciais para<br />

os trabalhos de Martin Buber sobre Educação e sobre a<br />

filosofia dialógica, e propomo-nos também o diálogo com<br />

a filosofia <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de radical de Emmanuel Lévinas.<br />

180


“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia<br />

1. A Influência <strong>da</strong> Gestaltpe<strong>da</strong>gogia<br />

Burow e Scherpp (1985) entendem a Gestaltpe<strong>da</strong>gogia<br />

como um termo abrangente para conceitos pe<strong>da</strong>gógicos<br />

que se orientam pelas ideias teóricas e práticas <strong>da</strong> Gestaltterapia<br />

e <strong>da</strong> Psicologia <strong>da</strong> Gestalt. Ressaltam que antes<br />

que se inicie qualquer prática pe<strong>da</strong>gógica faz-se necessário<br />

que se tenham claros os objetivos, antes mesmo que<br />

se busquem os métodos e conteúdos com os quais eles<br />

possam ser melhor alcançados. Toma-se também como<br />

premissa que os objetivos, os meios e conteúdos de ensino<br />

se encontram em dependência recíproca, afirmando-<br />

-se assim, a necessi<strong>da</strong>de de harmonizá-los.<br />

Burow e Scherpp (1985) ao retratar o trabalho de<br />

Besems, um gestaltpe<strong>da</strong>gogo que formula explicitamente<br />

seus objetivos a partir de uma perspectiva político-social<br />

– em sua concepção de um ensino intersubjetivo – citam<br />

quatro objetivos amplos:<br />

181<br />

(1) A autoconscientização e a ampliação <strong>da</strong>s próprias<br />

possibili<strong>da</strong>des, dos modelos de comunicação e do<br />

comportamento frente aos outros e às coisas, e <strong>da</strong>s<br />

possibili<strong>da</strong>des de mu<strong>da</strong>nça direta do meio social [...]<br />

(2) Proporcionar discernimento sobre o próprio funcionamento<br />

e sobre as relações históricas e sociais<br />

desse funcionamento nos contextos interpessoal e social<br />

[...] (3) A ampliação <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de escolha<br />

do indivíduo quanto a si próprio, quanto aos outros e<br />

em relação ao mundo [...] (4) Criar premissas a fim de<br />

racionalizar o discernimento <strong>da</strong> interdependência de<br />

funções e, assim, possibilitar a representação ativa de<br />

interesses (pp. 109-110).<br />

Podemos entender que, em uma prática orienta<strong>da</strong> gestaltpe<strong>da</strong>gogicamente,<br />

o objetivo central é o de possibilitar<br />

ao indivíduo o desenvolvimento de suas potenciali<strong>da</strong>des<br />

e de uma consciência sócio-política. Para tanto, segundo<br />

a visão <strong>da</strong> gestaltpe<strong>da</strong>gogia, é preciso apenas que se<br />

criem as condições necessárias.<br />

Outro objetivo central <strong>da</strong> gestaltpe<strong>da</strong>gogia é do levar<br />

em conta, de forma adequa<strong>da</strong>, o aspecto emocional no<br />

processo de aprendizagem. Compreende-se que tomar o<br />

aspecto emocional também como um objetivo central é<br />

de fun<strong>da</strong>mental importância para o processo de aprendizagem<br />

de uma abor<strong>da</strong>gem psicológica, proposta em um<br />

espaço universitário, haja vista que, tradicionalmente, o<br />

ambiente acadêmico privilegia os conhecimentos cognitivos,<br />

em detrimento <strong>da</strong>s outras formas de conhecimento.<br />

Burow e Scherpp (1985) nos esclarecem que a modificação<br />

<strong>da</strong> relação interpessoal entre aluno e professor<br />

é de fun<strong>da</strong>mental importância para a gestaltpe<strong>da</strong>gogia.<br />

Pretende-se que o professor veja e aceite o aluno em sua<br />

existência como ser humano, como premissa para o desenvolvimento<br />

de um clima de confiança mútua, franqueza<br />

e autentici<strong>da</strong>de de comunicação na sala de aula.<br />

A relação intersubjetiva entre aluno e professor significa<br />

que este compreende e trata aquele como ser humano total,<br />

não sendo percebido somente em sua função de aluno.<br />

Entende-se que na concretização <strong>da</strong> influência <strong>da</strong> gestaltpe<strong>da</strong>gogia<br />

em práticas educacionais, dá-se ênfase aos<br />

aspectos experienciais dos afetos e emoções, de auto-conhecimento<br />

e <strong>da</strong>s relações interpessoais <strong>da</strong> situação de<br />

aprendizagem. Sobre isso, parece-nos interessante e cabível<br />

estabelecermos um paralelo <strong>da</strong> proposta <strong>da</strong> gestaltpe<strong>da</strong>gogia<br />

com algumas <strong>da</strong>s críticas que Moreira (2007)<br />

tece à proposta educacional defendi<strong>da</strong> por Carl Rogers.<br />

Dentre outras críticas que Moreira (2007) formula<br />

sobre a abor<strong>da</strong>gem centra<strong>da</strong> no aluno, proposta por Carl<br />

Rogers, destacamos uma que nos parece particularmente<br />

importante para revermos a influência <strong>da</strong> gestaltpe<strong>da</strong>gogia<br />

nas práticas educacionais. Para Moreira (2007),<br />

Rogers na medi<strong>da</strong> em que privilegia a experiência vivi<strong>da</strong><br />

pelo aluno enquanto pessoa desvaloriza a transmissão de<br />

conhecimentos no ensino, e nos adverte:<br />

O ensino não somente inclui elementos que se relacionam<br />

com aspectos pessoais e sociais (objetivos<br />

<strong>da</strong> psicoterapia), mas também incorpora matérias<br />

mais específicas, relaciona<strong>da</strong>s com a transmissão do<br />

saber. Uma sala de aula é o lugar onde se relacionam<br />

dialeticamente ser e saber, inseridos numa reali<strong>da</strong>de<br />

institucional e, por conseguinte, social (p. 75).<br />

Friedman (2002) quando nos fala sobre a perspectiva<br />

educacional em Martin Buber, refere-se a esta questão<br />

suscita<strong>da</strong> por Moreira (2007), apontando um conflito<br />

entre as perspectivas filosóficas modernas <strong>da</strong> educação,<br />

sugerindo que este segue até os dias atuais. De um lado,<br />

temos aqueles que enfatizam a importância de os objetivos<br />

educacionais serem obtidos a partir dos grandes livros,<br />

<strong>da</strong> tradição clássica, ou do conhecimento técnico.<br />

Do outro lado, estão aqueles que enfatizam o aspecto subjetivo<br />

do conhecimento e olham para a educação como<br />

o desenvolvimento do poder criativo ou como a assimilação<br />

<strong>da</strong>s experiências pe<strong>da</strong>gógicas a partir dos interesses<br />

e necessi<strong>da</strong>des subjetivas do aluno. Friedman (2002)<br />

nos adverte que, dentro <strong>da</strong>s reflexões de Buber sobre o<br />

processo educacional, estas duas propostas teóricas representam<br />

aspectos parciais de um todo, e afirma que a<br />

educação se dá quando:<br />

(...) o aluno cresce através do encontro com a pessoa<br />

do professor e o Tu do escritor. Neste encontro, a<br />

reali<strong>da</strong>de que o professor e o escritor lhe apresentam<br />

se torna viva para o aluno: ela é transforma<strong>da</strong> de potencial,<br />

abstrata, e sem relação para uma forma atual,<br />

concreta, e como presença imediata <strong>da</strong> pessoa e ain<strong>da</strong>,<br />

em certo sentido, como uma relação de reciproci<strong>da</strong>de.<br />

Isso significa que, nenhuma ver<strong>da</strong>deira aprendizagem<br />

ocorre a menos que o aluno participe, mas também<br />

significa que o aluno deve encontrar algo realmente<br />

“outro” do que ele antes que possa aprender (p. 209).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Tomamos como fun<strong>da</strong>mento de nossa prática docente<br />

esta perspectiva, de que o processo educacional<br />

se dá pelo encontro do estu<strong>da</strong>nte com a pessoa do professor<br />

e com livro, na medi<strong>da</strong> em que o aluno se vê implicado<br />

por este encontro com algo que lhe é diferente,<br />

outro. Temos aqui uma primeira sinalização do aprendizado<br />

pela alteri<strong>da</strong>de, dos outros e dos livros, sem<br />

que possamos em nossas práticas de ensino prescindir<br />

dos aspectos pessoais e sociais, bem como dos objetivos<br />

mais específicos relacionados com a transmissão/<br />

construção do saber.<br />

2. A filosofia Dialógica de Martin buber e suas Contribuições<br />

à Educação<br />

Outro referencial teórico que tomamos, e a partir do<br />

qual estabelecemos relações com o processo de ensino/<br />

aprendizagem <strong>da</strong> Gestalt-terapia, é o pensamento filosófico<br />

de Martin Buber, a partir <strong>da</strong> antropologia filosófica.<br />

Dentre as contribuições de Buber para a reflexão<br />

sobre Educação, destacamos neste estudo as ideias de<br />

Inclusão e de Vere<strong>da</strong> Estreita, e suas reflexões sobre os<br />

modos como se dá o conhecimento, que nos possibilitam<br />

pensar o processo educacional menos pela via <strong>da</strong><br />

construção metodológica, e mais por meio de uma perspectiva<br />

filosófica.<br />

Por Inclusão, podemos entender a capaci<strong>da</strong>de de o indivíduo,<br />

engajado no encontro dialógico, manter duplo<br />

sentimento, tendo consciência de si próprio e, ao mesmo<br />

tempo, percebendo o outro na sua alteri<strong>da</strong>de singular.<br />

Para Buber (conforme citado por Hycner, 1997), a<br />

atitude de inclusão é fun<strong>da</strong>mental para que se estabeleça<br />

uma relação dialógica genuína, traduzindo o conceito<br />

de inclusão como “(...) um salto au<strong>da</strong>cioso – exigindo<br />

a mais intensa mobilização do próprio ser – na vi<strong>da</strong> do<br />

outro” (p. 42).<br />

Na perspectiva buberiana sobre educação, o mais<br />

importante no encontro do professor com o estu<strong>da</strong>nte é<br />

que ele experiencie o aluno do outro lado, sendo que se<br />

este processo é vivido de maneira real e concreta é removido<br />

o perigo de que o ensino se dê de maneira arbitrária,<br />

e se dê a partir do reconhecimento <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des<br />

dos alunos na relação destes com o mundo (Friedman,<br />

2002). Outro conceito que pretendemos trabalhar neste<br />

estudo é o de Vere<strong>da</strong> Estreita. Por ele, Buber (1942/1963)<br />

desejava expressar que, como humani<strong>da</strong>de, não estamos<br />

situados sobre<br />

(...) o amplo planalto de um sistema que compreende<br />

uma série de proposições seguras sobre o Absoluto,<br />

mas que me sustentava em uma vere<strong>da</strong> estreita que<br />

se erguía sobre o abismo, sem ter segurança alguma<br />

de um saber expressável em proposições, mas sim,<br />

tendo a certeza do encontro com o que permanece<br />

oculto (p. 126).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012<br />

João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira<br />

Essa metáfora, <strong>da</strong> Vere<strong>da</strong> Estreita, rejeita uma solução<br />

tranquila para as questões humanas, afirmando ain<strong>da</strong> a<br />

existência de paradoxos e contradições, presentes em ca<strong>da</strong><br />

situação <strong>da</strong> condição humana. Buber (1942/1963) formula<br />

esta perspectiva, se contrapondo às perspectivas filosóficas<br />

que buscam estabelecer uma condição de segurança<br />

a experiência humana, destacando dentre elas o pensamento<br />

hegeliano. Para Buber (1942/1963),<br />

Hegel tenta dotar o homem com uma nova segurança<br />

(...) O sistema de Hegel representa, no<br />

pensamento ocidental, a terceira grande tentativa<br />

de segurança: depois <strong>da</strong> cosmologia de Aristóteles<br />

e a teologia de São Tomás, temos a logológica de<br />

Hegel. Ela subjuga qualquer insegurança, to<strong>da</strong><br />

inquietude sobre o sentido, todo o medo pela decisão,<br />

to<strong>da</strong> problemática abissal (p. 48).<br />

Buber (1942/1963) entende que Hegel exerceu uma<br />

influência decisiva tanto sobre a maneira de pensar de<br />

uma época, como também nas atitudes sociais e políticas.<br />

Influência que teria favorecido o distanciamento <strong>da</strong><br />

pessoa humana concreta e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de humana concreta<br />

em favor de uma experiência racionaliza<strong>da</strong> do mundo,<br />

de processos dialéticos e formações objetivas. Criticando<br />

esta perspectiva racionaliza<strong>da</strong> <strong>da</strong> experiência humana e<br />

do mundo, ele nos fala:<br />

se o homem é o lugar e o meio onde a razão do mundo<br />

se conhece a si mesma, então não há limite algum para<br />

o que o homem pode saber. De acordo com a ideia, ele<br />

realiza tudo, tudo o que há na razão (p. 48).<br />

Buber, em to<strong>da</strong> sua antropologia filosófica, contrapõe-<br />

-se a esta perspectiva de segurança na experiência humana,<br />

e afirma que “a grandeza do homem surge de sua<br />

miséria”, <strong>da</strong> “<strong>da</strong> atitude <strong>da</strong> pessoa que se encontra, sem<br />

mora<strong>da</strong>, na intempérie do infinito” (Buber, 1942/1963,<br />

p. 35). Sobre o homem, Buber (1942/1963) entende que,<br />

(...) este se encontra no mundo como um estrangeiro<br />

e um solitário. Quando se dissipa uma imagem de<br />

mundo, prontamente surge uma nova pergunta por<br />

parte deste homem que se sente inseguro, sem-teto,<br />

que se questiona sobre si mesmo (...) Uma vez que<br />

se tenha levado a sério o conceito de infinito, não é<br />

possível transformar o mundo em uma mansão para<br />

o homem (p. 36-37).<br />

Podemos entender que, no que diz respeito ao mundo<br />

humano, delimitado pelo problema do homem, não<br />

existe nenhuma segurança sobre o futuro, sobre o desconhecido.<br />

A partir destas concepções e entendendo o<br />

processo educacional como uma experiência do mundo<br />

humano, caminhar pela Vere<strong>da</strong> Estreita nos sinaliza que<br />

não temos nenhuma garantia; há suporte, mas nenhum<br />

182


“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia<br />

substituto para o envolvimento na experiência imediata.<br />

Lança-se assim o desafio: como utilizar a segurança <strong>da</strong>s<br />

teorias e, ain<strong>da</strong> assim, não utilizá-las como uma defesa<br />

contra o desconhecido?<br />

Outra reflexão que intencionamos estabelecer tem relação<br />

com as formas como Buber entende que se dá o conhecimento<br />

do homem. Devido à especifici<strong>da</strong>de do processo<br />

educacional ao qual nos propomos, o de facilitar a<br />

formação de futuros terapeutas, entendemos que o conhecimento<br />

de que tratamos não se dá simplesmente por uma<br />

via cognitiva ou racional, mas trata-se de um conhecimento<br />

sobre o humano, conhecimento por parte do aluno de<br />

sua condição humana e <strong>da</strong> forma como ele percebe e se<br />

relaciona com os outros humanos. Neste sentido, Buber<br />

(1982/2009) nos fala de três maneiras pelas quais podemos<br />

perceber um homem que vive diante dos nossos olhos.<br />

Uma destas formas se dá pela observação, quando<br />

se está:<br />

183<br />

(...) inteiramente concentrado em gravar na sua mente<br />

o homem que observa, em ‘anotá-lo’. Ele o perscruta e<br />

o desenha. E na ver<strong>da</strong>de ele se empenha em desenhar<br />

tantos ‘traços’ quanto possível. Ele os vigia para que<br />

nenhum lhe escape (Buber, 1982/2009, p. 41).<br />

Para Buber (1982/2009), outra forma se dá a partir <strong>da</strong><br />

contemplação, quando não se está absolutamente concentrado,<br />

e é possível para o contemplador se colocar numa<br />

atitude que lhe permita ver o objeto livremente e esperar<br />

despreocupado aquilo que a ele se apresentará. Destaca<br />

que a atitude do contemplador só de início pode ser governa<strong>da</strong><br />

pela intenção, sendo que logo em segui<strong>da</strong> tudo<br />

que se segue é involuntário.<br />

Apesar <strong>da</strong>s atitudes de observação e de contemplação<br />

se caracterizarem por uma diferença significativa,<br />

Buber nos esclarece que o observador e o contemplador<br />

estão na mesma posição, justamente o desejo de perceber<br />

o homem, tomando este homem como objeto, que assim<br />

não lhes exige “nenhuma ação e nem lhes impõe destino<br />

algum; pelo contrário, tudo se passa nos campos distantes<br />

<strong>da</strong> estesia” (Buber, 1982/2009, p. 42).<br />

Para Buber (1982/2009), existe uma percepção que é<br />

de uma espécie decidi<strong>da</strong>mente diferente, a qual chama<br />

de toma<strong>da</strong> de conhecimento íntimo, na qual em um <strong>da</strong>do<br />

momento receptivo de nossa vi<strong>da</strong> pessoal, encontra-nos<br />

um homem em que há alguma coisa, que não conseguimos<br />

captar de uma forma objetiva, que nos ‘diz algo’, não<br />

significando que isto que nos foi dito fale como este homem<br />

é ou o que se passa nele, não sendo possível retratar<br />

nem descrever o homem no qual, pelo qual, algo nos<br />

foi dito, na<strong>da</strong> podemos contar sobre ele; se tentássemos<br />

fazê-lo, já seria o fim do dizer. Buber (1982/2009) ressalta<br />

que este homem não é nosso objeto, e na ver<strong>da</strong>de, “o que<br />

importa agora é unicamente que eu me encarregue deste<br />

responder. Mas em ca<strong>da</strong> instância aconteceu-me uma<br />

palavra que exige uma resposta” (p. 43).<br />

Diante <strong>da</strong> exigência desta forma de toma<strong>da</strong> de conhecimento,<br />

que se mostra na necessi<strong>da</strong>de de abertura para<br />

entrar em contato com a palavra que me é dirigi<strong>da</strong> e <strong>da</strong><br />

exigência de uma resposta, nos questionamos sobre a<br />

forma de podermos facilitar em nossos alunos a consciência<br />

destes três modos de conhecer, e facilitar com que<br />

nas relações com os outros em psicoterapia, seja possível<br />

uma atitude que lhes permita também uma toma<strong>da</strong> de<br />

conhecimento íntimo.<br />

3. A Alteri<strong>da</strong>de nas Abor<strong>da</strong>gens psicológicas e na<br />

Aprendizagem <strong>da</strong>s Mesmas<br />

Neste momento, recorremos ao trabalho de Freire<br />

(2002), onde o autor nos provoca ao questionamento sobre<br />

de que forma as abor<strong>da</strong>gens psicológicas possibilitam<br />

o encontro do sujeito com a alteri<strong>da</strong>de do outro e de si,<br />

com o desconhecido, o diferente, o desafiante; usando as<br />

teorias como dispositivos de “descentramento”, possibilitando<br />

a dissolução <strong>da</strong>s ilusões de uni<strong>da</strong>de e identi<strong>da</strong>de<br />

do sujeito moderno, reconhecendo a fragmentação e<br />

a multiplici<strong>da</strong>de do indivíduo. A partir destas provocações,<br />

propomo-nos a refletir sobre a necessi<strong>da</strong>de de estabelecermos<br />

algumas proposições para o ensino destas<br />

psicologias, que para Freire devem possibilitar o encontro<br />

do sujeito com a alteri<strong>da</strong>de do outro e de si. Parece-nos<br />

que as formas tradicionais de ensino e aprendizagem não<br />

dão conta de facilitar nos alunos a construção e a prática<br />

destas psicologias, às quais estamos sendo convocados.<br />

Na direção <strong>da</strong>s ideias de Freire (2002), Cardella (2002)<br />

no livro A construção do psicoterapeuta refere-se ao “trabalho<br />

do psicoterapeuta como confronto com a alteri<strong>da</strong>de”<br />

(p. 87). A autora compreende como condição para o<br />

trabalho do psicólogo uma atitude de abertura para que<br />

a alteri<strong>da</strong>de do outro ressoe em sua própria alteri<strong>da</strong>de.<br />

Seria, assim, “no confronto com as alteri<strong>da</strong>des do outro<br />

e de nós mesmos que este trabalho se realiza” (Cardella,<br />

2002, p. 89).<br />

Na tentativa de compreender e construir uma proposta<br />

de ensino que possibilite ao professor de psicologia e psicoterapia<br />

o aprendizado do aluno nesta abertura à alteri<strong>da</strong>de,<br />

Cardella (2002) apoiando-se na filosofia mestiça de<br />

Michel Serres, entende o processo de aprendizagem como<br />

exposição e estranhamento. Nesta perspectiva, o processo<br />

de aprendizagem “se dá quando ocorre o ‘estranhamento’,<br />

a experiência de olhar de diversos ângulos ou perspectivas,<br />

de sair do lugar conhecido e familiar, de partir para<br />

o desconhecido, de desbravar” (Cardella, 2002, p. 92).<br />

A mesma autora (2002) afirma ain<strong>da</strong> que se faz necessário<br />

que o processo de aprendizagem possibilite ao<br />

aprendiz passar pela experiência de abandono <strong>da</strong>s referências,<br />

no qual se experimenta a exposição, a solidão,<br />

a errância, sendo função do educador facilitar o processo<br />

pelo qual o aluno possa viver o risco de conhecer,<br />

deslocando-o de sua estabili<strong>da</strong>de, ou seja, provocá-lo e<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

facilitar sua exposição ao outro, provocando estranhamentos,<br />

o que possibilitaria que todos os sentidos possam<br />

ser vertidos.<br />

Educar é, portanto, levar o aprendiz a compreender<br />

que é outro para si mesmo e, assim, reconhecer a existência<br />

do diferente em si e no outro. Isso possibilita<br />

um deslocamento, e a experiência <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de<br />

que possibilita o aprender. O aprendiz deve experimentar<br />

o conhecido e o enigmático, o esperado e a surpresa,<br />

o estranho e o familiar (Cardella, 2002, p. 93).<br />

A partir desta perspectiva de Educação, Cardella<br />

(2002) afirma que o professor de psicoterapeutas deve promover<br />

a experiência de per<strong>da</strong> de referências, de errância,<br />

de suspensão, para que o aluno possa se deparar com o<br />

outro em si mesmo. A autora destaca ain<strong>da</strong>:<br />

Na formação de psicoterapeutas é importante que<br />

haja oportuni<strong>da</strong>de para que o aluno seja mobilizado,<br />

perturbado, sob pena de deixar a universi<strong>da</strong>de sem<br />

aprender, num nível básico, a fazer uso de sua própria<br />

experiência, o instrumento terapêutico por excelência,<br />

e colocá-la a serviço do outro (p. 94).<br />

Cardella (2002) sintetiza que a tarefa <strong>da</strong> formação<br />

de psicoterapeutas seria a de contribuir para que o aluno<br />

desenvolva alguma familiari<strong>da</strong>de e, talvez, muita estranheza,<br />

perante si mesmo: suas crenças, seus valores,<br />

seus afetos, suas emoções, suas concepções, seus desejos,<br />

suas necessi<strong>da</strong>des, seus pontos cegos e suas dificul<strong>da</strong>des.<br />

A partir destas colocações acerca do familiar e <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de,<br />

recorremos ao pensamento de Emmanuel Lévinas.<br />

Propomo-nos, assim, o diálogo com a filosofia <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de<br />

de Lévinas, especificamente no que diz respeito ao<br />

conceito de ensino que se dá pela epifania do rosto.<br />

Destacamos que o pensamento de Lévinas parte de<br />

uma crítica à filosofia tradicional, em especial a ontologia,<br />

que em seu entendimento estabelece o primado do<br />

Mesmo, usurpando de suas teorizações o lugar do Outro,<br />

para Lévinas anterior a questão do Eu. Assim, Lévinas<br />

constrói seu pensamento ético-filosófico rompendo com<br />

as tradições filosóficas ocidentais, que se caracterizam<br />

pelo pensamento totalizador e pela primazia do Mesmo.<br />

Com relação à primazia do Mesmo, para Lévinas<br />

(1980/1988) a Teoria, a Razão, e a Representação – conceitos<br />

tradicionalmente privilegiados nos processos educacionais<br />

– se traduzem como uma redução do Outro ao<br />

Mesmo, buscando assegurar a “inteligência – logos do<br />

ser – ou seja, uma maneira tal de abor<strong>da</strong>r o ser conhecido<br />

que a sua alteri<strong>da</strong>de em relação ao ser cognoscente se<br />

desvanece” (p. 30). Lévinas (1980/1988) estabelece uma<br />

crítica ao método socrático – a maiêutica – e afirma que<br />

o primado do Mesmo foi a lição de Sócrates: “na<strong>da</strong> receber<br />

de Outrem a não ser o que já está em mim, como se,<br />

desde to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de, eu já possuísse o que me vem<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012<br />

João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira<br />

de fora” (p. 31). Para Lévinas a perspectiva maiêutica,<br />

em seu sentido último, tem a ver com a permanência no<br />

Mesmo. Nestes termos, “conhecer equivale a captar o ser<br />

a partir de na<strong>da</strong> ou a reduzi-lo a na<strong>da</strong>, arrebatar-lhe a<br />

sua alteri<strong>da</strong>de” (Lévinas, 1980/1988, p. 31).<br />

Neste momento, aproximamos a concepção de Buber<br />

de toma<strong>da</strong> de conhecimento íntimo, que se dá pela condição<br />

de abertura para entrar em contato com a palavra que<br />

me é dirigi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> exigência de uma resposta, com a perspectiva<br />

levinasiana de Discurso, que se dá pela condição<br />

de abertura e resposta ao outro, logo ética. Permitimo-nos<br />

utilizar uma extensa citação de Lévinas (1980/1988) que<br />

nos esclarece as questões aqui discuti<strong>da</strong>s:<br />

O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a<br />

ideia do Outro em mim, chamamo-lo, de facto, rosto.<br />

Esta maneira não em figurar como tema sob meu<br />

olhar, em expor-se como um conjunto de quali<strong>da</strong>des<br />

que formam uma imagem. O rosto de Outrem destrói<br />

em ca<strong>da</strong> instante e ultrapassa a imagem plástica que<br />

ele deixa, a ideia à minha medi<strong>da</strong> e à medi<strong>da</strong> do seu<br />

ideatum – a ideia adequa<strong>da</strong> [...] Exprime-se. O rosto,<br />

contra a ontologia contemporânea, traz uma noção de<br />

ver<strong>da</strong>de que não é o desven<strong>da</strong>r de um Neutro impessoal,<br />

mas uma expressão [...] Abor<strong>da</strong>r Outrem no discurso<br />

é acolher a sua expressão onde ele ultrapassa em<br />

ca<strong>da</strong> instante a ideia que dele tiraria um pensamento.<br />

É, pois, receber de Outrem para além <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de do<br />

Eu; o que significa exatamente: ter a ideia do infinito.<br />

Mas isso significa também ser ensinado. A relação<br />

com Outrem ou o Discurso é uma relação não-alérgica,<br />

uma relação ética, mas o discurso acolhido é um<br />

ensinamento. O ensinamento não se reduz, porém, à<br />

maiêutica. Vem do exterior e traz-me mais do que eu<br />

contenho. Na sua transitivi<strong>da</strong>de não-violenta, produz-<br />

-se a própria epifania do rosto (p. 37-38).<br />

Dentro desta perspectiva ética de ensinamento, como<br />

acolhimento ao discurso, o saber significa “(...) uma relação<br />

tal com o ser que o ser cognoscente deixa o ser conhecido<br />

manifestar-se, respeitando a sua alteri<strong>da</strong>de e sem o<br />

marcar, seja no que for, pela relação de conhecimento”<br />

(Lévinas, 1980/1988, p. 29). Sabedoria ensina<strong>da</strong> pelo rosto<br />

do outro homem, na medi<strong>da</strong> em que abrimos mão dos<br />

saberes totalizantes que se dão pela primazia do Mesmo.<br />

Ensinamento ético a partir do qual “(...) o Mesmo só pode<br />

juntar-se ao Outro nas vicissitudes e nos riscos <strong>da</strong> procura<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, em vez de descansar em si em to<strong>da</strong> a segurança”<br />

(Lévinas, 1980/1988, p. 48).<br />

Por fim, para Lévinas (1980/1988) “afirmar a ver<strong>da</strong>de<br />

como mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relação entre o Mesmo e o Outro não<br />

equivale a opor-se ao intelectualismo, mas a assegurar a<br />

sua aspiração fun<strong>da</strong>mental, o respeito do ser que ilumina<br />

o intelecto” (p. 51), mas destaca que “a experiência do<br />

Outro a partir de um Eu separado continua a ser uma<br />

fonte de sentido para a compreensão <strong>da</strong>s totali<strong>da</strong>des, tal<br />

184


“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia<br />

como a percepção concreta continua a ser determinante<br />

para a significação dos universos científicos” (p. 45). Se<br />

tomarmos a afirmação de Lévinas no âmbito dos discursos<br />

e práticas psicológicas, ressalta-se a necessi<strong>da</strong>de de<br />

um processo de aprendizagem que possibilite o encontro<br />

e o acolhimento do Outro, <strong>da</strong> diferença, do estranho, em<br />

oposição aos discursos teóricos e práticas de ensino totalizantes,<br />

que se fun<strong>da</strong>mentam em ver<strong>da</strong>des absolutas<br />

e redutoras de to<strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de ao primado do Mesmo, do<br />

Saber, <strong>da</strong> Teoria, haja vista que são muitas as escolas e<br />

abor<strong>da</strong>gens psicológicas que se propõem em seus projetos<br />

epistemológicos uma aproximação com o quadro <strong>da</strong>s ciências<br />

naturais, gozando assim, de um status de ver<strong>da</strong>de.<br />

4. Versando Sentidos sobre a Aprendizagem em<br />

Gestalt-Terapia<br />

Retomando neste momento nosso questionamento<br />

inicial – Como se dá o processo de facilitação <strong>da</strong> aprendizagem<br />

em Gestalt-terapia no ambiente acadêmico? – e<br />

na tentativa de respondê-lo não mais apenas a partir dos<br />

referenciais teóricos <strong>da</strong> Gestalt-terapia, mas também a<br />

partir <strong>da</strong>s experiências vivi<strong>da</strong>s no Curso de Capacitação<br />

na Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>, propomos a utilização do recurso<br />

metodológico <strong>da</strong> Versão de Sentido proposta por<br />

Mauro Martins Amattuzi, e que vem sendo utiliza<strong>da</strong> em<br />

pesquisas fenomenológicas e nos processos de supervisão<br />

clínica na formação de psicoterapeutas.<br />

Amatuzzi (2002) entende por Versão de Sentido (VS)<br />

um relato livre, escrito ou falado, que não tem a pretensão<br />

de ser um registro objetivo do que aconteceu, mas sim de<br />

ser uma reação viva a isso, como uma palavra primeira.<br />

Consiste numa fala expressiva <strong>da</strong> experiência imediata<br />

de seu autor, face a um encontro recém-terminado.<br />

Entendemos a pertinência desta proposta metodológica<br />

aos objetivos deste estudo exploratório, por entender<br />

que o mesmo nos possibilita compreender os sentidos<br />

<strong>da</strong>s experiências vivi<strong>da</strong>s no processo de aprendizagem<br />

<strong>da</strong> Gestalt-terapia, bem como de ilustrar nossa proposta<br />

de ensino/aprendizagem ao longo <strong>da</strong> experiência aqui<br />

retrata<strong>da</strong>. Propomos assim, apresentar e discutir alguns<br />

recortes <strong>da</strong>s Versões de Sentido realiza<strong>da</strong>s por uma aluna<br />

do referido curso, que foram realiza<strong>da</strong>s ao término de<br />

quatro encontros, com duração média de três horas ca<strong>da</strong><br />

um, e que se deram por volta do meio do curso.<br />

Tomamos como proposta didática norteadora de nosso<br />

trabalho docente uma metodologia teórico-vivencial,<br />

que privilegiasse a leitura e discussão de textos filosóficos<br />

e teóricos que fun<strong>da</strong>mentam epistemologicamente a<br />

Gestalt-terapia. A partir <strong>da</strong> leitura dos textos era solicitado<br />

aos alunos que entrassem em contato com a forma<br />

como aqueles os tocavam. Tal proposta pode ser ilustra<strong>da</strong><br />

a partir <strong>da</strong> fala <strong>da</strong> aluna: “O João Vitor sempre faz perguntas<br />

pra saber qual a relação que estabelecemos entre o que<br />

estu<strong>da</strong>mos e o que fazemos <strong>da</strong> nossa vi<strong>da</strong>, e a maioria de-<br />

185<br />

las são bem inquietantes”. Tal fala nos sinaliza a riqueza<br />

desta proposta de explicitar o diálogo entre o aluno e o<br />

texto no processo de aprendizagem, promovendo também<br />

ao longo <strong>da</strong>s discussões questionamentos sobre a forma<br />

como as temáticas trazi<strong>da</strong>s pelo texto os afetaram e que<br />

respostas são formula<strong>da</strong>s a partir dos questionamentos,<br />

interpelações, exigências que as obras nos trazem.<br />

Entendemos que ao tomarmos a discussão a partir do<br />

campo existencial dos alunos, diminuindo assim o distanciamento<br />

entre a teoria e suas experiências concretas,<br />

possibilitamos que os mesmos entrem em contato com os<br />

fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> a partir de suas<br />

referências existenciais, o que possibilita também que<br />

estas possam ser confronta<strong>da</strong>s com as concepções éticas<br />

e estéticas <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>. Neste sentido<br />

a aluna nos fala:<br />

Achei a dinâmica do dia bem interessante, pois refletimos<br />

e conversamos sobre categorias como desespero,<br />

sofrimento, solidão, impotência, segurança, liber<strong>da</strong>de...<br />

Mais uma vez o facilitador solicitou que o grupo<br />

se colocasse diante dessas categorias de forma pessoal<br />

e compartilhassem o modo como somos afetados e o<br />

significado <strong>da</strong>quilo na vi<strong>da</strong> de ca<strong>da</strong> um, de forma a<br />

perceber quais crenças nos guiam e como isso pode<br />

se refletir na nossa atitude como psicoterapeuta.<br />

Entendemos que o diálogo entre a teoria e as experiências<br />

concretas dos alunos possibilita-os <strong>da</strong>rem-se conta<br />

de suas crenças, seus valores, seus afetos, suas emoções,<br />

suas necessi<strong>da</strong>des, seus pontos cegos e suas dificul<strong>da</strong>des,<br />

processo de conscientização tão importante para a formação<br />

do psicoterapeuta. Permite ain<strong>da</strong> aos alunos <strong>da</strong>rem-<br />

-se conta do que muitas vezes é vivenciado de maneira<br />

conflitiva e angustiante, o que pode ser percebido a partir<br />

<strong>da</strong> seguinte fala: “Em vários momentos me questionei<br />

sobre como eu serei psicoterapeuta se eu tenho tanta dificul<strong>da</strong>de<br />

em acolher algumas falas de algumas pessoas”.<br />

Entendemos que este processo de conscientização de si e<br />

do outro, possibilita aos alunos entrarem em contato com<br />

a diferença em si e no outro, consciência <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de.<br />

Assim o processo do grupo, mesmo em se tratando de<br />

um grupo didático-vivencial, como em nossa experiência<br />

no curso de capacitação, nos possibilita a experiência<br />

de olhar de diversos ângulos ou perspectivas, de sair do<br />

lugar conhecido e familiar. A partir <strong>da</strong> experiência imediata<br />

grupal se dá a facilitação de uma vivência compreensiva<br />

sobre a experiência de si e do outro, o que reforça<br />

a herança fenomenológica <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>.<br />

O desafio desta vivência grupal compreensiva no contexto<br />

do curso nos sinaliza a importância do processo de<br />

construção de um clima de acolhimento <strong>da</strong>s experiências<br />

e <strong>da</strong>s alteri<strong>da</strong>des percebi<strong>da</strong>s no grupo, o que ultrapassa<br />

a perspectiva de estabelecimento de um clima de<br />

confiança mútua, franqueza e autentici<strong>da</strong>de na relação<br />

inter-humana professor-aluno, e instaura o desafio des-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

te clima nas relações grupais como um todo, que passa a<br />

ser entendido e vivido como um dos principais aspectos<br />

na mediação do processo de aprendizagem em Gestaltterapia.<br />

“Ain<strong>da</strong> é difícil para o grupo se expor e realmente<br />

se implicar nas vivências propostas, mas acho que nesse<br />

encontro caminhamos para uma maior cumplici<strong>da</strong>de e<br />

intimi<strong>da</strong>de”.<br />

Interessante percebermos o que nos é revelado pela<br />

aluna quando fala do grupo, que apesar de não se configurar<br />

como uma proposta de grupo terapêutico, possui<br />

intencionalmente elementos deste 1 . Sobre o grupo<br />

nos é dito:<br />

É engraçado que pra mim o curso às vezes parece<br />

um grupo terapêutico, em que eu vou ampliando<br />

minha consciência e minha percepção sobre o fazer<br />

do psicoterapeuta. Acho que isso também se dá principalmente<br />

devido as pontuação e interrogações que<br />

o João Victor faz, que são geralmente bem pessoais e<br />

profun<strong>da</strong>s. Como o grupo não é terapêutico e ain<strong>da</strong><br />

não há tanta cumplici<strong>da</strong>de, algumas questões não<br />

podem ser aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>s e por isso ficam em aberto e<br />

continuam ressoando depois.<br />

O trabalho com o grupo e o compartilhar de experiências<br />

em nosso entendimento possibilitam o questionamento<br />

e o possível abandono <strong>da</strong>s teorias totalizantes,<br />

na medi<strong>da</strong> em que é permitido aos alunos expressarem<br />

as mais diversas experiências sobre os temas suscitados<br />

pelos textos e discussões, afirmando os diversos sentidos<br />

possíveis para a experiência humana. A forma como<br />

os alunos são afetados e respondem a ca<strong>da</strong> experiência<br />

concreta em sala de aula atestam a impossibili<strong>da</strong>de de<br />

esgotar os sentidos <strong>da</strong> experiência humana, apontando<br />

assim para além do Mesmo.<br />

Compreendemos assim, que o espaço didático-vivencial<br />

do grupo nos permite acessar aquilo que Buber denomina<br />

de toma<strong>da</strong> de conhecimento íntimo, ou a perspectiva<br />

de ensino proposta por Lévinas, na medi<strong>da</strong> em<br />

que possibilita a partir de uma condição de abertura ao<br />

outro a experiência de ser provocado, afetação que exige<br />

uma resposta. Afetação esta que nos <strong>da</strong>mos conta pela inquietação,<br />

desconforto e sensação de sair mexido expressa<br />

pelos alunos, como descrita na fala anterior <strong>da</strong> aluna.<br />

Na intenção de promover um espaço mais fértil possível<br />

para esta condição de afetação e resposta, propomo-<br />

-nos também a utilização de outros recursos tais como<br />

contos, poesias e filmes que buscam permitir no processo<br />

educacional o conhecimento não apenas pela via <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de,<br />

mas também pela sensibili<strong>da</strong>de. Em um <strong>da</strong>do<br />

encontro, propomos o filme O Escafandro e a Borboleta<br />

dirigido por Julian Schnalbe, novamente solicitando aos<br />

alunos que buscassem <strong>da</strong>rem-se conta de como eram afetados<br />

pelo filme. Neste sentido, a aluna nos fala<br />

1 Enquanto facilitadores têm-se consciência dos limites éticos e <strong>da</strong>s<br />

possibili<strong>da</strong>des terapêuticas do espaço proposto.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012<br />

João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira<br />

[...] fiquei observando como ca<strong>da</strong> cena me afetava e<br />

quais partes me chamavam mais atenção [...] Fiquei<br />

emociona<strong>da</strong> com a cena em que o pai liga pra ele, e não<br />

sei explicar porque, mas acho que ali mostra mais uma<br />

vez a sensação de impotência dos dois diante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

A fala <strong>da</strong> aluna nos remete ao conceito de Inclusão, que<br />

trabalhamos anteriormente, e que se faz presente como<br />

um dos conceitos básicos <strong>da</strong> clínica gestáltica, entendido<br />

como a condição de entrar em contato, tanto quanto<br />

possível, com a experiência vivi<strong>da</strong> pelo outro.<br />

Uma última fala <strong>da</strong> aluna nos parece bastante interessante<br />

para evidenciarmos nosso esforço para a superação<br />

<strong>da</strong> histórica dicotomização teoria e vivência nos<br />

processos de formação dos gestalt-terapeutas:<br />

Fiquei muito feliz por conseguir enxergar distúrbios de<br />

contato como a confluência e a retroflexão em casos<br />

reais que eu conheço, o que me transmitiu momentaneamente<br />

uma sensação de segurança em relação<br />

a minha atuação na clínica no próximo semestre [...]<br />

Já aconteceu, mais de uma vez, de eu ‘fechar algumas<br />

gestalten’ teóricas no grupo [...].<br />

Propomo-nos assim, uma perspectiva integrativa destes<br />

aspectos do processo de aprendizagem, <strong>da</strong> experiência<br />

humana, o que intencionamos evidenciar em nossa<br />

proposta de diálogo dos alunos com os textos a partir de<br />

suas experiências concretas. Uma proposta didática que<br />

enfatiza os aspectos experienciais dos afetos e emoções,<br />

de autoconhecimento e <strong>da</strong>s relações interpessoais <strong>da</strong> situação<br />

de aprendizagem sem, no entanto, desvalorizar a<br />

transmissão de conhecimentos no ensino.<br />

Considerações finais<br />

Intencionamos, a partir deste estudo exploratório,<br />

compreender como se dá o processo de facilitação <strong>da</strong><br />

aprendizagem em Gestalt-terapia no ambiente acadêmico,<br />

e, neste intento, caminhamos pelos referenciais teóricos<br />

<strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem, bem como pelas experiências vivi<strong>da</strong>s no<br />

Curso de Capacitação na Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>, a partir<br />

<strong>da</strong>s Versões de Sentido.<br />

Ao entendermos a Gestalt-terapia como construção<br />

sócio-histórica, temos consciência de seu próprio contínuo<br />

processo de (re)construção, <strong>da</strong> mesma forma, <strong>da</strong>s respostas<br />

que a abor<strong>da</strong>gem dá a socie<strong>da</strong>de contemporânea,<br />

afirmando a importância do sentido ético dos discursos<br />

e práticas psicológicas. Compreendemos também que na<br />

tentativa de melhor se organizar em seus fun<strong>da</strong>mentos<br />

epistemológicos e teóricos, a Gestalt-terapia se apresenta<br />

hoje de maneira ca<strong>da</strong> vez mais presente no âmbito acadêmico,<br />

o que afirma a necessi<strong>da</strong>de de pensarmos como<br />

se dá o processo de aprendizagem <strong>da</strong> Gestalt-terapia nestes<br />

espaços.<br />

186


“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia<br />

Destaca-se que na tentativa de superação de antigas<br />

dicotomias presentes nos primeiros momentos do<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>, propomos<br />

uma prática docente compromissa<strong>da</strong> e pauta<strong>da</strong> no rigor<br />

teórico-epistemológico, no entanto, sem esquecer<br />

o aspecto vivencial, tão enfatizado pelas abor<strong>da</strong>gens<br />

fenomenológico-existenciais.<br />

Ao entendermos a Gestalt-terapia como uma abor<strong>da</strong>gem<br />

que propõe uma perspectiva compreensiva do outro,<br />

em que se toma como fun<strong>da</strong>mento de sua prática clínica<br />

a abertura à consciência, o diálogo e o confronto com a<br />

alteri<strong>da</strong>de, defendemos uma prática docente que possibilite<br />

aos alunos a consciência <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de em si e do<br />

outro. Prática docente que possibilite afetação, em que se<br />

experiencie momentaneamente o abandono <strong>da</strong>s referências,<br />

<strong>da</strong>s seguranças do conhecido, e que proponha um<br />

conhecimento a partir desta afetação provoca<strong>da</strong> pela exposição<br />

ao outro do professor, dos livros e <strong>da</strong>s experiências<br />

vivi<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> experiência concreta em sala de<br />

aula. Experiência que promova estranhamento e uma certa<br />

familiari<strong>da</strong>de, mas que tenha como intenção provocar<br />

respostas por parte dos alunos e do professor, respostas às<br />

exigências de ca<strong>da</strong> situação vivi<strong>da</strong>, ca<strong>da</strong> texto, ca<strong>da</strong> face<br />

que se apresente e que exija esta implicação responsiva.<br />

Entendemos a necessi<strong>da</strong>de de investimento em estudos<br />

mais profundos que tomem esta temática, haja vista<br />

que ain<strong>da</strong> nos parecem reduzidos os trabalhos que se propõem<br />

a versar sobre o processo de ensino/aprendizagem<br />

no âmbito acadêmico. Esperamos que a partir do contato<br />

dos leitores com a presente obra novas inquietações<br />

possam ser vivencia<strong>da</strong>s; questionamentos, divergências,<br />

mobilização que sinalizem afetação e que possibilitem o<br />

responder. Que os leitores, alunos e mestres, se conscientizem<br />

desta palavra que lhes é dirigi<strong>da</strong> como texto, e que<br />

nos digam: “e o que me importa agora é unicamente que<br />

eu me encarregue deste responder. Mas em ca<strong>da</strong> instância<br />

aconteceu-me uma palavra que exige uma resposta”<br />

(Buber, 1982/2009, p. 43).<br />

Referências<br />

Amatuzzi, M. M. (2010). Por uma psicologia humana. Campinas:<br />

Editora Alínea.<br />

Buber, M. (1963). ¿Qué es el hombre?. México, DF: Fondo de<br />

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Buber, M. (2009). Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Debates<br />

(Original publicado em 1982).<br />

187<br />

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para a escola e a educação. São Paulo: Summus.<br />

Cardella, B. H. P. (2002). A construção do psicoterapeuta: uma<br />

abor<strong>da</strong>gem gestáltica. São Paulo: Summus.<br />

Figueiredo, L. C. M. (2009). Revisitando as psicologias: <strong>da</strong><br />

epistemologia à ética <strong>da</strong>s práticas e discursos psicológicos.<br />

Petrópolis: Vozes.<br />

Freire, J. C. (2002). O lugar do Outro na moderni<strong>da</strong>de tardia.<br />

São Paulo: Annablume.<br />

Friedman, M. S. (2002). Martin Buber: the life of dialogue. New<br />

York, NY: Routledge.<br />

Karwowski, S. L. (2005). Prefácio. Em A. F. Holan<strong>da</strong> & N. J. de<br />

Faria (Orgs.), Gestalt-terapia e contemporanei<strong>da</strong>de: contribuições<br />

para uma construção epistemológica <strong>da</strong> teoria<br />

e <strong>da</strong> prática gestáltica, pp. 09-12. Campinas: Livro Pleno.<br />

Holan<strong>da</strong>, A. F. (2005). Elementos de Epistemologia <strong>da</strong> Gestaltterapia.<br />

Em A. F. Holan<strong>da</strong> & N. J. de Faria (Orgs.), Gestaltterapia<br />

e contemporanei<strong>da</strong>de: contribuições para uma construção<br />

epistemológica <strong>da</strong> teoria e <strong>da</strong> prática gestáltica (pp.<br />

23-55). Campinas: Livro Pleno.<br />

Hycner, R. (1997). Relação e cura em Gestalt-terapia. São Paulo:<br />

Summus.<br />

Lévinas, E. (1988). Totali<strong>da</strong>de e Infinito. Lisboa: Edições 70<br />

(Original publicado em 1980).<br />

Moreira, V. (2007). De Carl Rogers a Merleau-Ponty: a pessoa<br />

mun<strong>da</strong>na em psicoterapia. São Paulo: Annablume.<br />

João Vitor Moreira Maia - Mestrando em Psicologia pelo Programa<br />

de Pós-Graduação em Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará<br />

(Bolsista Capes/Propag); Gestalt-terapeuta e Coordenador Pe<strong>da</strong>gógico<br />

do Instituto Gestalt do Ceará. Endereço Institucional: Instituto Gestalt<br />

do Ceará, Rua João Regino, 474 (Parque Manibura). CEP 60821-780,<br />

Fortaleza/CE, Brasil. E-mail: jv_psi@yahoo.com.br.<br />

José Célio Freire - Professor Associado do Departamento de Psicologia e<br />

do Mestrado em Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará. Endereço<br />

Institucional: Departamento de Psicologia. Av. <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de, 2762<br />

(Campus do Benfica), CEP 60020-180, Fortaleza/CE, Brasil. E-mail:<br />

jcfreire@ufc.br.<br />

Mariana Alves de oliveira - Graduan<strong>da</strong> em Psicologia pela Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal do Ceará e Aluna do Curso de Capacitação na Abor<strong>da</strong>gem<br />

<strong>Gestáltica</strong>. E-mail: marianadeo@hotmail.com.<br />

Recebido em 10.05.2012<br />

Primeira Decisão Editorial em 25.09.2012<br />

Aceito em 12.12.2012<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

ADOLESCêNCIA: fENÔMENO SINGULAR E DE CAMpO<br />

Adolescence: a singular and field-related phenomena<br />

La adolescencia: un fenómeno único y producidos en el campo<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012<br />

Lauane Baroncelli<br />

lAuAne bAroncelli<br />

Resumo: O período do desenvolvimento humano denominado adolescência vem sendo frequentemente concebido, tanto na literatura<br />

científica sobre o tema, quanto no imaginário do homem comum, de forma estereotipa<strong>da</strong> e generalizante. Condições de<br />

caráter histórico e concreto são, nesta ótica, naturaliza<strong>da</strong>s, e a adolescência é toma<strong>da</strong> como uma série previsível de características<br />

comuns a todos aqueles que vivenciam o período. Neste artigo, analiso como e por que a Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> questiona e<br />

refuta tal perspectiva. Na literatura sobre adolescência, tais questões vêm sendo tradicionalmente discuti<strong>da</strong>s na perspectiva <strong>da</strong><br />

Psicologia Sócio-Histórica. Por isso, e considerando também a afini<strong>da</strong>de teórica desta perspectiva com a Gestalt-terapia no que<br />

tange à relação indivíduo/contexto, o artigo inicia com uma breve discussão sobre a ótica sócio-histórica acerca <strong>da</strong> adolescência.<br />

Em segui<strong>da</strong>, analisa-se como a Gestalt-terapia, por meio de seus pressupostos teóricos mais elementares – destacando-se, entre<br />

eles, a Teoria de Campo de Kurt Lewin – ressoa e oferece novas nuances à crítica sócio-histórica, concebendo a adolescência<br />

como um fenômeno singular e de campo.<br />

Palavras-chave: Adolescência; Gestalt-Terapia; Psicologia sócio-histórica; Teoria de campo.<br />

Abstract: The developmental period called adolescence has been often conceived, both in the scientific literature about the<br />

subject as well as in common sense, from a stereotyped and generalizing point of view. Historical and concrete conditions are,<br />

in this perspective, conceived as natural features of adolescence and the period is taken as a set of predictable characteristics<br />

common to all adolescents. In this paper, I analyze why and how the Gestalt Approach refutes this perspective. In the literature<br />

on adolescence, these issues have been analyzed on the perspective of the Socio-historical Psychology. As such, and also because<br />

of the affinities between this perspective with Gestalt-therapy in regard to the relationship between individual and context,<br />

the paper begins with a brief discussion about the socio-historical outlook on adolescence. Following, it is analyzed how<br />

Gestalt-therapy, according to its most elementary theoretical premises – foremost among them, the Kurt Lewin’s Field theory<br />

– resonates and, at the same time, provides new nuances to the socio-historical critique, conceiving adolescence as a singular<br />

and field-related phenomenon.<br />

Keywords: Adolescence; Gestalt-Therapy; Socio-historical psychology; Field theory.<br />

Resumen: El período de desarrollo llamado adolescencia a menudo se ha concebido, tanto en la literatura científica sobre el<br />

tema, así como en el sentido común, desde un punto de vista estereotipado y generalizado. Condiciones generales de uso histórico<br />

y concreto son, en este punto de vista, naturaliza<strong>da</strong>, y en la adolescencia se toma como una serie predecible de características<br />

comunes a todos los que experimentan el período. En este artículo se analiza cómo y porqué el enfoque Gestáltico refuta<br />

esta perspectiva. en las teorias sobre la adolescencia, estas cuestiones han sido analiza<strong>da</strong>s desde la perspectiva de la Psicología<br />

socio-histórica. Como tal, y también debido a las afini<strong>da</strong>des entre esta perspectiva con la Gestalt-terapia en cuanto a la relación<br />

entre el individuo y el contexto, el artículo comienza con una breve discusión sobre el panorama socio-histórico en la adolescencia.<br />

A continuación, se analiza cómo la Gestalt-terapia, de acuerdo con sus supuestos teóricos más básicos – entre los que<br />

destaca la Teoría del Campo de Kurt lewin – resuena y, al mismo tiempo, ofrece nuevos matices a la crítica histórico-social, concibiendo<br />

la adolescencia como un fenómeno singular y de campo.<br />

Palabras-clave: Adolescencia; Gestalt-Terapia; Psicología socio-histórica; Teoría de campo.<br />

Introdução<br />

O presente artigo pretende discutir a adolescência sob<br />

a perspectiva <strong>da</strong> Gestalt-terapia, entendendo-a como um<br />

fenômeno singular e de campo. Nesta direção, questionamos<br />

a concepção naturalizante presente em diversos<br />

estudos sobre a adolescência em que características de<br />

caráter supostamente universal são toma<strong>da</strong>s como condição<br />

natural deste período.<br />

Para desenvolver tal argumento, o artigo estabelece<br />

uma articulação entre algumas leituras sobre a adoles-<br />

cência na ótica <strong>da</strong> psicologia sócio-histórica e o embasamento<br />

teórico <strong>da</strong> Gestalt-terapia. A escolha de tal rota<br />

teórica se justifica pela coerência entre tais abor<strong>da</strong>gens<br />

no que tange à relação indivíduo-contexto.<br />

A Psicologia Histórico-Cultural ou Sócio-Histórica<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Liev S. Vygotski na déca<strong>da</strong> de 1920 e desenvolvi<strong>da</strong><br />

por autores como Luria e Leontiev entende o<br />

indivíduo como um ser constituído nas condições concretas<br />

de sua existência. Sob inspiração do materialismo<br />

histórico dialético de Karl Marx, o indivíduo é concebido<br />

nesta abor<strong>da</strong>gem como um ser ativo e histórico. Em outras<br />

188


Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo<br />

palavras, como determinado e determinante <strong>da</strong> própria<br />

condição no interior de um <strong>da</strong>do contexto.<br />

Similarmente, a Gestalt-terapia – refletindo dentre outros<br />

aspectos teóricos, a assimilação de certos pressupostos-chave<br />

<strong>da</strong> Teoria de Campo fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Kurt Lewin<br />

– vê o ser humano como um existente impossível de ser<br />

compreendido fora do contexto de suas relações, desde as<br />

mais elementares, com as pessoas de seu convívio, até as<br />

mais amplas, com a socie<strong>da</strong>de, a história, e o universo.<br />

Em um artigo esclarecedor acerca <strong>da</strong>s fontes epistemológicas<br />

do pensamento vigotskiano, Toassa e Souza (2010)<br />

sublinham algumas importantes afini<strong>da</strong>des teóricas entre<br />

Vigotski e Kurt Lewin. Dentre tais afini<strong>da</strong>des, as autoras<br />

destacam os conceitos de espaço vital e campo psicológico<br />

de Lewin de um lado, e o conceito vigotskiano de vivência,<br />

de outro. Segundo elas, a imersão do indivíduo em<br />

seu meio é destaca<strong>da</strong> em ambos, superando concepções<br />

dualistas de outras psicologias nas quais uma cisão artificial<br />

entre meio e indivíduo é estabeleci<strong>da</strong>.<br />

Desde Lewin e Vigotski, portanto, pode-se dizer que<br />

a abor<strong>da</strong>gem sócio-histórica e a Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

convergem no que tange a consideração dos fenômenos<br />

em sua totali<strong>da</strong>de, superando duali<strong>da</strong>des como interno/<br />

externo, biológico/social, ontogênese/filogênese, psíquico/orgânico,<br />

homem/socie<strong>da</strong>de, dentre outras.<br />

Reconhecendo tais ressonâncias, é necessário ressaltar,<br />

entretanto, que o presente estudo não almeja desenvolver<br />

uma articulação <strong>da</strong> ótica Sócio-Historica sobre a<br />

adolescência com a visão <strong>da</strong> Gestalt-terapia. Além de não<br />

ser o foco do artigo, tal proposta ultrapassaria em muito<br />

o espaço disponível.<br />

É importante esclarecer ain<strong>da</strong> que acreditar na possibili<strong>da</strong>de<br />

de diálogo entre tais abor<strong>da</strong>gens não implica<br />

sugerir que estas são congruentes em todos os seus aspectos<br />

teóricos e filosóficos. A própria afini<strong>da</strong>de teórica<br />

entre Lewin e Vigotski, por exemplo, não exclui a<br />

existência de diferenças importantes entre as suas teorias,<br />

o que se revela, por exemplo, na forte inspiração<br />

histórico-cultural, marxista, presente no pensamento<br />

de Vigotski e ausente nas idéias do primeiro. A inspiração<br />

marxista dota a ótica sócio-histórica de uma ênfase<br />

particular na idéia de dominação econômico-ideológica<br />

e política no interior <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de capitalista e de crítica<br />

a este sistema, ênfase esta que não faz sentido na<br />

Gestalt-terapia.<br />

Além disso, embora afirmem o homem como multidimensional,<br />

determinado e determinante de sua condição,<br />

em algumas análises, a dimensão de determinação<br />

se sobrepõe ao reconhecimento e devi<strong>da</strong> valorização<br />

<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de e singulari<strong>da</strong>de humanas como entende<br />

a Gestalt-terapia. Ain<strong>da</strong>, o caráter fenomenológico <strong>da</strong><br />

Gestalt-terapia a diferencia <strong>da</strong> perspectiva sócio-histórica<br />

que, numa inspiração vigotskiana, postula que a compreensão<br />

dos fenômenos só é possível a partir de uma explicação<br />

(e não “meramente” uma descrição) <strong>da</strong>s relações<br />

que o determinam.<br />

189<br />

Muitas outras diferenças poderiam ser discuti<strong>da</strong>s,<br />

mas como dito, não é este o espaço para tal. Nosso objetivo<br />

é, portanto, e tão somente, explorar e desenvolver a<br />

compreensão <strong>da</strong> adolescência na Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

como um fenômeno singular e de campo partindo de um<br />

diálogo com algumas leituras <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem sócio-histórica<br />

acerca do tema.<br />

A afini<strong>da</strong>de de posicionamento teórico no que concerne,<br />

como mencionado anteriormente, à relação indivíduo-contexto<br />

torna tal articulação teórica não só possível<br />

como também bastante inspiradora para o entendimento<br />

do fenômeno <strong>da</strong> adolescência numa ótica gestáltica.<br />

Assim, se por um lado, a ênfase nas determinações<br />

sócio-históricas é rejeita<strong>da</strong> pela Gestalt-terapia, por outro<br />

lado, a ênfase oposta, nos aspectos biográficos do ser em<br />

contraposição aos aspectos mais amplos <strong>da</strong> pertença ao<br />

mundo social, cultural e econômico é outra maneira de<br />

também negligenciar partes e, portanto, de perder a visão<br />

de todo tão valoriza<strong>da</strong> nesta abor<strong>da</strong>gem. Como psicólogos<br />

e psicoterapeutas, sabemos que, na prática, o risco na<br />

direção de uma compreensão psicologizante do humano<br />

é sempre presente, embora também acreditemos que<br />

a fun<strong>da</strong>mentação teórica <strong>da</strong> Gestalt-terapia nos protege<br />

disso. Assim, não só no sentido teórico, mas também no<br />

sentido pragmático, o diálogo com uma abor<strong>da</strong>gem que<br />

sublinha o olhar sócio-histórico parece relevante.<br />

1. A Leitura Sócio-Histórica <strong>da</strong> Adolescência<br />

Conforme os estudos de Aguiar, Bock e Ozella (2001)<br />

a idéia hoje hegemônica sobre a adolescência é contemporânea<br />

ao surgimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de moderna industrial.<br />

Segundo os autores, é por meio <strong>da</strong> maior permanência<br />

dos jovens nas escolas e do correlato retar<strong>da</strong>mento <strong>da</strong><br />

profissionalização dos mesmos no interior de um determinado<br />

sistema sócio-cultural e econômico que se<br />

conforma a adolescência com as características que conhecemos<br />

hoje.<br />

Discutindo a adolescência sob o ponto de vista <strong>da</strong><br />

Psicologia Sócio-histórica, Facci e Tomio (2009) sugerem<br />

que uma indicação clara <strong>da</strong> conformação histórica <strong>da</strong><br />

adolescência se revela no discurso <strong>da</strong>s gerações anteriores.<br />

As autoras observam que pessoas nasci<strong>da</strong>s por volta<br />

<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1940 e anteriormente, costumam declarar<br />

que “no seu tempo não havia adolescência”, no sentido<br />

de um período intermediário entre a infância e a i<strong>da</strong>de<br />

adulta. Tais discursos sugerem que há cerca de 80 anos,<br />

as pessoas passavam <strong>da</strong> condição de criança diretamente<br />

para a de adulto, processo este fortemente vinculado<br />

à presença do trabalho, principalmente no caso dos homens.<br />

No caso <strong>da</strong>s mulheres, apontam as autoras, uma<br />

vez que estas eram chama<strong>da</strong>s a cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> casa ou mesmo<br />

de uma nova família (na medi<strong>da</strong> em que se casavam<br />

bem mais cedo), este “período de latência” entre infância<br />

e vi<strong>da</strong> adulta também não fazia sentido. Somente a partir<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de prolongar o tempo de formação dos jovens<br />

– a fim de prepará-los para as novas as deman<strong>da</strong>s de<br />

trabalho gera<strong>da</strong>s pela industrialização emergente – que a<br />

idéia, os discursos e, em muitos sentidos, a própria experiência<br />

<strong>da</strong> adolescência começa a se constituir.<br />

Um estudo de Clímaco (1991, conforme citado por<br />

Bock, 2007) ressalta que outro aspecto relevante na construção<br />

histórica <strong>da</strong> adolescência foi o impacto gerado pelo<br />

desenvolvimento científico sobre a prolongação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

e o consequente aumento de adultos jovens em i<strong>da</strong>de<br />

de trabalho. A partir disso, mais uma razão se colocava<br />

para aumentar o tempo de permanência nas escolas, pois,<br />

além <strong>da</strong> já cita<strong>da</strong> deman<strong>da</strong> de formação mais sofistica<strong>da</strong>,<br />

a escolarização prolonga<strong>da</strong> aju<strong>da</strong>ria a regular a alta<br />

taxa de desemprego dos estágios iniciais do desenvolvimento<br />

industrial.<br />

Neste processo, os filhos passam a viver mais tempo<br />

sob a tutela dos pais, sem ingressar no mercado de trabalho,<br />

ao mesmo tempo em que surgem as oportuni<strong>da</strong>des<br />

para que encontrem, na escola, os chamados “grupos de<br />

iguais”. Com isso, apesar de ser possível assumir um papel<br />

diverso na socie<strong>da</strong>de (como acontecia no passado), o<br />

jovem se distancia do mundo do trabalho e <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des<br />

de obter autonomia e condições de sustento. Estão<br />

lança<strong>da</strong>s, assim, as condições sociais que “convi<strong>da</strong>m” os<br />

jovens a desenvolver uma série de características que,<br />

nos dias de hoje, são frequentemente concebi<strong>da</strong>s como<br />

naturais (Bock, 2007).<br />

Segundo a crítica sócio-histórica, com a qual concor<strong>da</strong>mos,<br />

os discursos de caráter naturalizado sobre<br />

a adolescência devem ser revisitados. No domínio<br />

<strong>da</strong> Psicologia, sob influência <strong>da</strong> Psicanálise e <strong>da</strong><br />

Epistemologia genética principalmente, uma visão naturalizante<br />

<strong>da</strong> adolescência é desenvolvi<strong>da</strong> e se propaga<br />

por todo o ambiente cultural. Nesta ótica, a adolescência<br />

é decorrente, sobretudo, de um acelerado processo<br />

de mu<strong>da</strong>nças biológicas e ‘pulsionais’ (por meio<br />

do despertar <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de no nível <strong>da</strong> maturi<strong>da</strong>de<br />

genital) que, por si só, acarretam as mu<strong>da</strong>nças supostamente<br />

inerentes ao desenvolvimento adolescente (Facci<br />

& Tomio, 2009).<br />

Ao alienar a participação <strong>da</strong> cultura na conformação<br />

<strong>da</strong>s visões e experiências <strong>da</strong> adolescência, tal perspectiva<br />

naturalizante subestima não apenas as raízes<br />

históricas do período como também os interesses subjacentes<br />

de mercado que se beneficiam de uma delimitação<br />

precisa de características, hábitos e interesses nesta<br />

época <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Num artigo que trata <strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de dos conceitos<br />

de infância e de adolescência, Frota (2007) cita diversos<br />

autores que analisam a interrelação entre adolescência<br />

e mercado. Abramo (1994, conforme citado por Frota,<br />

2007), por exemplo, analisa que por volta <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de<br />

1960, período em que os chamados movimentos estu<strong>da</strong>ntis<br />

e, portanto, os jovens, ganham grande projeção cultural,<br />

surge uma grande varie<strong>da</strong>de de signos associados<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012<br />

Lauane Baroncelli<br />

à cultura juvenil. Estes, sendo incorporados pelo mercado<br />

(em rápi<strong>da</strong> evolução na época) e espetacularizados<br />

na lógica própria do marketing e dos meios de comunicação,<br />

aju<strong>da</strong>m a produzir novos traços para a identi<strong>da</strong>de<br />

juvenil. Marca<strong>da</strong>s por imagens produzi<strong>da</strong>s de “ser<br />

jovem” – muitas vezes associa<strong>da</strong>s à rebeldia, contestação<br />

de regras e à busca do prazer – e pelo consumo de<br />

determinados bens e serviços, as identi<strong>da</strong>des adolescentes<br />

vão então se constituindo. Nesse processo, em alguns<br />

níveis, a adolescência se torna um discurso de mercado<br />

que simultaneamente revela e produz visões e experiências<br />

de ser adolescente.<br />

Tais raízes históricas são raramente leva<strong>da</strong>s em consideração<br />

nos estudos clássicos sobre o tema. Ao invés<br />

disso, a adolescência tem sido tradicionalmente descrita<br />

como um período inerentemente problemático em que<br />

a irresponsabili<strong>da</strong>de, a rebeldia gratuita e as identificações<br />

massifica<strong>da</strong>s com grupos e tribos predominam não<br />

como conseqüência de tais forças, mas como um efeito<br />

previsível numa adolescência dita normal.<br />

Aguiar et al. (2001) sublinham o papel central <strong>da</strong><br />

Psicanálise na construção desta perspectiva, em que a<br />

adolescência é toma<strong>da</strong> como uma fase inerentemente problemática<br />

a ser ultrapassa<strong>da</strong> em direção à maturi<strong>da</strong>de.<br />

Particularmente, afirmam os autores, diante <strong>da</strong> influência<br />

exerci<strong>da</strong> pelo psicólogo Stanley Hall (introdutor <strong>da</strong><br />

psicanálise nos Estados Unidos) a adolescência passa a<br />

ser concebi<strong>da</strong> como uma etapa marca<strong>da</strong> por conturbações<br />

vincula<strong>da</strong>s à emergência <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de.<br />

Mais recentemente, Aberastury e Knobel (1992) reproduzem<br />

e disseminam tal concepção naturalizante. Na leitura<br />

dos autores, após tornar-se biologicamente capaz de<br />

exercer a sua genitali<strong>da</strong>de para a procriação, e vivenciar<br />

mu<strong>da</strong>nças “incontroláveis” em seu corpo, instauram-se<br />

conflito referentes à diferença entre o corpo real e o corpo<br />

ideal e ain<strong>da</strong> quanto à própria definição <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de,<br />

que não ocorre de imediato. Tal conflito fomenta reações<br />

de instabili<strong>da</strong>de afetiva, crises, conduta turbulenta ou de<br />

indiferença, angústias e ansie<strong>da</strong>des, configurando uma<br />

espécie de “patologia normal <strong>da</strong> adolescência”.<br />

Outro aspecto problemático <strong>da</strong>s visões sobre a adolescência<br />

que vem sendo denuncia<strong>da</strong>s pela perspectiva<br />

sócio-histórica diz respeito à postulação de características<br />

supostamente universais do período basea<strong>da</strong>s, na<br />

reali<strong>da</strong>de, nas condições de adolescentes oriundos <strong>da</strong>s<br />

classes médias e altas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Tais características e experiências, toma<strong>da</strong>s em análises<br />

pouco cui<strong>da</strong>dosas como generalizáveis, são, entretanto,<br />

plenamente situa<strong>da</strong>s. Neste sentido, a singulari<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s contradições e incertezas de adolescentes oriundos<br />

<strong>da</strong>s classes populares, que pra começar, experimentaram<br />

infâncias bastante diversas, raramente é leva<strong>da</strong> em<br />

consideração. Eles são adolescentes e isso parece dizer<br />

tudo. Será?<br />

As pesquisas de Aguiar e Ozella (2008) sugerem que<br />

a resposta a esta pergunta deve ser um sonoro “não”.<br />

190


Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo<br />

Segundo os autores, muitos adolescentes <strong>da</strong>s classes mais<br />

pobres <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, contrariando a cartilha dos manuais<br />

de psicologia, não sofrem tanto com os tradicionalmente<br />

mencionados conflitos familiares na luta pela diferenciação<br />

e construção de si ou com as dúvi<strong>da</strong>s quanto à<br />

escolha <strong>da</strong> carreira. Frequentemente, observam as autoras,<br />

suas dores se revelam, principalmente, em sua falta<br />

de perspectivas, no medo de ficarem desempregados e,<br />

mais do que pensar em escolher uma profissão, duvi<strong>da</strong>m<br />

se poderão conseguir um trabalho.<br />

Desse modo, se o adolescente vivencia um lugar social<br />

em que projetos de vi<strong>da</strong> e até mesmo de sobrevivência<br />

estão em cheque, definir ‘quem eu sou’ pode ser mais do<br />

que uma manobra de discriminação em relação aos pais<br />

e outros adultos significativos. Em alguns casos, o campo<br />

em que se constituem impõe a necessi<strong>da</strong>de de discriminar-se<br />

de um não-lugar na socie<strong>da</strong>de a fim de que outro<br />

lugar, possível, possa ser projetado.<br />

2. perspectivas <strong>Gestáltica</strong>s: Adolescência-no-Campo<br />

Ao investigar tais circunstâncias sobre o ponto de vista<br />

<strong>da</strong> Gestalt-terapia, constata-se, em primeiro lugar, que<br />

o questionamento acerca dos condicionantes contextuais<br />

<strong>da</strong> adolescência realizado pelos autores <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem<br />

sócio-histórica é bastante coerente com a perspectiva de<br />

relacional abraça<strong>da</strong> pela abor<strong>da</strong>gem.<br />

Como desenvolveremos a seguir, a Gestalt-terapia entende<br />

ser a concretude <strong>da</strong> existência do ser-no-mundo que<br />

se manifesta em ca<strong>da</strong> adolescente. Tal concretude inclui,<br />

mas não se limita, nem se organiza a partir do aspecto<br />

fisiológico <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças corporais, como diversas abor<strong>da</strong>gens<br />

teóricas pressupõem. Ser adolescente é, portanto,<br />

sê-lo num determinado corpo, mas também numa determina<strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de, etnia, classe social, cultura, família<br />

e para determina<strong>da</strong> pessoa que vai significar todos estes<br />

aspectos de formas sempre únicas.<br />

Desta maneira, a perspectiva evolucionista em que o<br />

desenvolvimento psicológico ocorre de maneira progressiva<br />

por meio de estágios fixos e invariáveis – adota<strong>da</strong><br />

pelas teorias tradicionais sobre adolescência – deve ser<br />

contesta<strong>da</strong>. Ao conceberem seres abstratos que atravessam<br />

os mesmos estágios, na mesma sequência, em direção<br />

à maturi<strong>da</strong>de, tais teorias alienam pelo menos dois<br />

aspectos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>: a concretude<br />

existencial dos existentes e sua singulari<strong>da</strong>de.<br />

Concor<strong>da</strong>mos então com as idéias de Antony (2006) e<br />

Soares (2005) quando sustentam que a compreensão do<br />

desenvolvimento segundo a Gestalt-terapia supera a visão<br />

reducionista e determinista do existir humano que compartimenta,<br />

fixa e normaliza as fases <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

Na Gestalt-terapia, a idéia de seres concretos e situados<br />

é revela<strong>da</strong> desde a noção de campo-organismo-ambiente<br />

apresenta<strong>da</strong> por Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997)<br />

no livro inaugural <strong>da</strong> Gestalt-terapia:<br />

191<br />

Em to<strong>da</strong> e qualquer investigação biológica, psicológica<br />

ou sociológica temos de partir <strong>da</strong> interação organismo-<br />

-ambiente. Não tem sentido falar, por exemplo, de um<br />

animal que respirar sem considerar o ar e o oxigênio<br />

como parte <strong>da</strong> definição deste, ou falar de comer sem<br />

mencionar a comi<strong>da</strong> (...). Não há uma única função, de<br />

animal algum, que se complete sem objetos e ambiente<br />

(...). Denominemos esse interagir entre organismo e<br />

ambiente em qualquer função o ‘campo organismo/<br />

ambiente’ e lembremo-nos de que qualquer que seja a<br />

maneira pela qual teorizamos sobre impulsos, instintos,<br />

etc., estamos nos referindo sempre a este campo<br />

interacional e não a um animal isolado (p. 42-43).<br />

A Teoria de Campo de Kurt Lewin, embuti<strong>da</strong> na definição<br />

gestáltica de campo-organismo-ambiente, introduz<br />

a idéia de que, psicologicamente, diversas forças e<br />

influências agem umas sobre as outras produzindo um<br />

resultado que é sempre único dentro de um tempo igualmente<br />

específico.<br />

Em “Principles of Topological Psychology” (1936),<br />

Kurt Lewin explicita sua perspectiva acerca do papel<br />

do ambiente na vi<strong>da</strong> individual, esclarecendo que este<br />

não deve ser tomado como uma força exterior que serve<br />

meramente para facilitar ou para inibir tendências<br />

prévias e definitivamente estabeleci<strong>da</strong>s na natureza<br />

<strong>da</strong> pessoa.<br />

Ora, é justamente essa a perspectiva tradicionalmente<br />

assumi<strong>da</strong> pelas teorias psicológicas do desenvolvimento<br />

ao abor<strong>da</strong>rem a adolescência. De acordo com tais teorias,<br />

o homem é dotado de uma natureza e suas relações com<br />

o meio apenas permitem (ou dificultam) a atualização de<br />

tais traços naturalmente <strong>da</strong>dos.<br />

Segundo o estudo de Muuss (1996), Kurt Lewin apresenta<br />

sua teoria <strong>da</strong> adolescência em trabalho intitulado<br />

“Teoria de campo e experimento na psicologia social”<br />

(Lewin, 1939, citado por Muuss, 1996), fornecendo alguns<br />

elementos importantes para pensar a adolescência<br />

na perspectiva gestáltica.<br />

Um aspecto fun<strong>da</strong>mental do pensamento lewiniano<br />

nesta área é sua crítica de conceitos psicológicos baseados<br />

na frequência com que ocorrem numa população<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>. Segundo Lewin (1939, conforme citado por Muuss,<br />

1996) na medi<strong>da</strong> em que leis psicológicas são abstraí<strong>da</strong>s<br />

a partir do comportamento de muitos s, elas só podem<br />

ser ver<strong>da</strong>deiras em termos de probabili<strong>da</strong>de. A análise<br />

de Kurt Lewin sobre adolescência se propõe, portanto, a<br />

explicar e a descrever a dinâmica de comportamento de<br />

quem vivencia o período sem apostar numa generalização<br />

possível para a adolescência enquanto grupo.<br />

Tal observação é muito oportuna e bastante congruente<br />

com a perspectiva teórica e filosófica <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem<br />

<strong>Gestáltica</strong> bem como com o argumento principal do presente<br />

artigo. Assim, embora as teorias psicológicas se refiram<br />

a comportamentos e sentimentos possíveis e por<br />

vezes freqüentes, estes são equivoca<strong>da</strong>mente transfor-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

mados em leis psicológicas gerais e, portanto, naturais e<br />

intrínsecas ao desenvolvimento humano.<br />

Lewin chama atenção para a dificul<strong>da</strong>de de nomear<br />

a interação indivíduo-ambiente sem isolar ca<strong>da</strong> elemento<br />

do par. Para <strong>da</strong>r conta deste problema, o autor introduz<br />

o termo “espaço de vi<strong>da</strong> psicológico” que indica, segundo<br />

ele, a totali<strong>da</strong>de dos fatos que afeta o comportamento<br />

de uma pessoa num certo momento (Lewin, 1936). Essa<br />

totali<strong>da</strong>de dos fatos cria um campo dinâmico, o que significa<br />

que uma mu<strong>da</strong>nça numa <strong>da</strong>s partes afeta to<strong>da</strong>s as<br />

demais partes e o campo como um todo.<br />

Embora na visão de Kurt Lewin a adolescência seja<br />

vista como um fenômeno sempre diferenciado para ca<strong>da</strong><br />

pessoa, algumas regulari<strong>da</strong>des são aponta<strong>da</strong>s por ele no<br />

que concerne às transformações que ocorrem no espaço<br />

de vi<strong>da</strong> do jovem. No período <strong>da</strong> adolescência, observa<br />

Lewin (1939, citado por Muuss, 1996), este se torna mais<br />

extenso e mais diferenciado em comparação ao espaço<br />

de vi<strong>da</strong> mais restrito e pouco diferenciado <strong>da</strong> criança. O<br />

adolescente conhece mais pessoas, torna-se familiar com<br />

mais áreas geográficas, informações, ou seja, têm maiores<br />

recursos cognitivos, sociais, físicos e de linguagem para<br />

contatar o ambiente e a si mesmo. Muuss (1996) ressalta,<br />

entretanto, que na proposta lewiniana, uma compreensão<br />

acura<strong>da</strong> de tais novi<strong>da</strong>des precisa levar em consideração<br />

o caráter dinâmico e sempre particular do ambiente no<br />

qual as mu<strong>da</strong>nças ocorrem e, ain<strong>da</strong>, as diferentes formas<br />

de sensibili<strong>da</strong>de e modos de ação.<br />

Isso significa que pra Lewin o ambiente não é somente<br />

a totali<strong>da</strong>de dos fatos presentes, mas inclui, também, o<br />

ambiente tal como é percebido e interpretado pela pessoa,<br />

de acordo com suas próprias necessi<strong>da</strong>des do momento.<br />

Como analisa Evangelista (2010), o “meio” na Teoria de<br />

Campo é o “meio fenomenológico”, isto é, o ambiente tal<br />

como a pessoa o experimenta e não como uma presença<br />

objetiva. Neste sentido, verifica-se que a concepção gestáltica<br />

de indivíduo relacional e singular ressoa desde as<br />

idéias lewinianas, perspectiva esta que reconheci<strong>da</strong>mente<br />

influenciou a constituição <strong>da</strong> Gestalt-terapia.<br />

Vale sublinhar, ain<strong>da</strong>, que a idéia de campo na<br />

Gestalt-terapia vai além <strong>da</strong>s definições propostas por<br />

Lewin. Como colocado acima, a Teoria de Campo é apenas<br />

uma <strong>da</strong>s fontes na qual a Gestalt-terapia foi “beber”<br />

para construir a formulação própria desta abor<strong>da</strong>gem.<br />

Deste modo, além de elementos <strong>da</strong> Teoria do<br />

Campo, esta integra (e transforma) elementos <strong>da</strong> Teoria<br />

Organísmica, <strong>da</strong> Psicologia <strong>da</strong> Gestalt e <strong>da</strong>s concepções<br />

filosóficas do Humanismo, Existencialismo e <strong>da</strong><br />

Fenomenologia.<br />

Inclusive, algumas análises (por exemplo, Evangelista,<br />

2010) sugerem que ao recorrer ao modelo <strong>da</strong> física, a<br />

Teoria de Campo tende a objetificar o ser humano entendendo-o<br />

a partir <strong>da</strong>s mesmas leis que regem objetos<br />

físicos. Tal concepção, segundo o autor, se choca com a<br />

ótica fenomenológica, basea<strong>da</strong> na idéia de que as pessoas<br />

devem aparecer para a compreensão do psicólogo a partir<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012<br />

Lauane Baroncelli<br />

de sua humani<strong>da</strong>de e não a partir de leis objetivas mecânicas<br />

como postula a teoria de Lewin.<br />

Embora não caiba aqui uma análise mais amiúde de<br />

tal posicionamento critico, vale destacar que não apenas a<br />

teoria lewiniana, mas diversos outros elementos – filosofias<br />

ou teorias que fun<strong>da</strong>mentam a Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

– compõem a visão gestáltica <strong>da</strong> noção de campo. Deste<br />

modo, uma compreensão “de campo” que supera as menciona<strong>da</strong>s<br />

dicotomias entre indivíduo/socie<strong>da</strong>de e outras<br />

marca a Gestalt-terapia para além <strong>da</strong> influência de Lewin,<br />

pautando-se na própria natureza holística <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem.<br />

É isso que leva Antony e Ribeiro (2005) a afirmarem que<br />

de acordo com as suas teorias de base, “a Gestalt-terapia<br />

fundou uma visão holística calca<strong>da</strong> no conceito todo-<br />

-parte, onde somente a totali<strong>da</strong>de contém o significado a<br />

partir <strong>da</strong>s múltiplas interações existentes entre as partes<br />

e os campos (...)” (p. 193).<br />

Isso sugere uma visão de adolescência como um fenômeno<br />

global que integra “num todo singular” as diversas<br />

forças do ser-no-campo e não como mera latência em<br />

direção à maturi<strong>da</strong>de. Como resume Almei<strong>da</strong> (2010, p.<br />

19), “estamos, a todo instante, imersos em uma complexi<strong>da</strong>de<br />

infindável de estímulos, vivências, experiências<br />

que não podem ser restritas a uma linha do tempo” dotando<br />

a visão de desenvolvimento na Gestalt-terapia de<br />

uma perspectiva oposta à idéia de amadurecimento tão<br />

comumente adota<strong>da</strong> pelas abor<strong>da</strong>gens de desenvolvimento.<br />

Aguiar (2005) também abor<strong>da</strong> a questão, destacando<br />

que ao conceber o homem como um todo singular em<br />

constante transformação na busca de equilíbrio (equilíbrio<br />

este ora perturbado, ora recuperado numa articulação<br />

entre necessi<strong>da</strong>des e possibili<strong>da</strong>des no campo) a<br />

Gestalt-terapia não pode pensar o ser – na lógica <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de<br />

– como um projeto inacabado ou imperfeito<br />

que viria a se concretizar na fase adulta.<br />

Neste ponto, alguém poderia argumentar que um<br />

aspecto universalmente presente na adolescência são<br />

as transformações físicas sofri<strong>da</strong>s pelo corpo neste período<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. De fato, as mu<strong>da</strong>nças físicas são marcas<br />

concretas desta fase. No entanto, o corpo não é entendido,<br />

na Gestalt-terapia, em relação de exteriori<strong>da</strong>de em<br />

relação aos domínios subjetivos e relacionais. Assim<br />

sendo, embora as mu<strong>da</strong>nças físicas sofri<strong>da</strong>s pelo adolescente<br />

tenham um caráter objetivo enquanto “marcas”<br />

no corpo, estas são necessariamente significa<strong>da</strong>s pelo<br />

ser-no-campo.<br />

Nesta direção, Perls (1988) observa que a partir<br />

<strong>da</strong> perspectiva de campo que marca a Gestalt-terapia,<br />

não faz qualquer sentido entender as ações mentais e<br />

físicas de forma cindi<strong>da</strong>. Portanto, a tentativa de encontrar<br />

um padrão geral nos supostos “fatos objetivos”<br />

do corpo (o que contrariaria a concepção de adolescência<br />

como fenômeno sempre singular e de campo)<br />

não se sustenta.<br />

O Gestalt-terapeuta norte-americano McConville<br />

(2001), apoiando-se nos estudos de Kurt Lewin, conce-<br />

192


Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo<br />

be a adolescência como uma desestruturação <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> infância por meio <strong>da</strong> expansão do espaço de vi<strong>da</strong><br />

e <strong>da</strong> transformação dos processos de contato que organizam<br />

o campo.<br />

Para entender esta afirmação, é necessário fazer, neste<br />

ponto, uma breve introdução ao conceito de contato<br />

na Gestalt-terapia. Contato envolve tanto a noção de self<br />

quanto a de campo, referi<strong>da</strong>s anteriormente. Segundo<br />

Perls et al. (1951/1997): “Primordialmente o contato é a<br />

awareness <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de assimilável e o comportamento<br />

em relação a esta e rejeição <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de inassimilável.<br />

O que é difuso, sempre o mesmo, ou indiferente, não é<br />

objeto de contato” (p. 44). Mais adiante, continuam os<br />

autores: “Todo contato é ajustamento criativo do organismo<br />

e ambiente. Resposta consciente no campo (como<br />

orientação e como manipulação) é o instrumento de crescimento<br />

no campo” (p. 45).<br />

A presença <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de na adolescência é, em muitos<br />

aspectos, notável. Neste período, o adolescente começa<br />

a se defrontar com a necessi<strong>da</strong>de de definir a sua<br />

vi<strong>da</strong> diante <strong>da</strong>s novas questões existenciais como as<br />

que se depara – concernentes a sua sexuali<strong>da</strong>de, os seus<br />

estudos, relacionamentos de amizade, escolha <strong>da</strong> carreira<br />

e tantas outras, que deman<strong>da</strong>m decisões íntimas<br />

(McConville,1995). Por consequência, este é um período<br />

do desenvolvimento no qual a capaci<strong>da</strong>de de contato, que<br />

se desenvolve durante to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>, é vivi<strong>da</strong> de maneira<br />

intensa e significativa.<br />

Neste sentido, conforme McConville (1995), a fronteira<br />

de contato do adolescente – limite que contém e protege<br />

o organismo ao mesmo tempo em que contata o ambiente<br />

(Perls et al., 1951/1957) – está se constituindo, amadurecendo<br />

e sendo burila<strong>da</strong> diante dos novos desafios.<br />

Em termos concretos, ain<strong>da</strong> segundo McConville<br />

(1995), quando criança, vivencia-se uma relação de dependência<br />

vinculante com os adultos no qual boa parte<br />

de seu espaço de vi<strong>da</strong> é indiferenciado do espaço de vi<strong>da</strong><br />

adulto. Cabe aos adultos, por exemplo, a maior parte –<br />

senão to<strong>da</strong>s – as decisões a respeito de suas ativi<strong>da</strong>des,<br />

como por exemplo, a escolha de sua escola, métodos pe<strong>da</strong>gógicos,<br />

aceitação de professores, tipo de alimentação,<br />

de diversão e programas culturais, ativi<strong>da</strong>des educativas<br />

extra-escolares etc. O padrão relacional estabelecido na<br />

infância é, fun<strong>da</strong>mentalmente, jogar, obedecer, aprender<br />

e depender enquanto na adolescência, o caminho é em<br />

direção à independência.<br />

Problematizando a descrição de McConville e, ao<br />

mesmo tempo, ressaltando a dimensão de campo deste<br />

processo, é interessante observar que sua análise faz<br />

sentido no interior de um contexto cultural <strong>da</strong>do – o <strong>da</strong>s<br />

socie<strong>da</strong>des ocidentais contemporâneas 1 – e, de forma privilegia<strong>da</strong>,<br />

melhor se ajustam a determinados segmentos<br />

1 Ressaltamos que o próprio contorno do termo “socie<strong>da</strong>des ocidentais<br />

contemporâneas” como uma uni<strong>da</strong>de evidente e indiferencia<strong>da</strong> é<br />

bastante contestável, o que se revela, no campo sociológico, por<br />

meio <strong>da</strong> noção de “múltiplas moderni<strong>da</strong>des” (Eisenstadt, 2000).<br />

193<br />

sócio-culturais no interior dessa. De fato, na tentativa de<br />

aplicar tal descrição à reali<strong>da</strong>de de crianças oriun<strong>da</strong>s de<br />

segmentos pobres de nossa socie<strong>da</strong>de, contradições significativas<br />

emergem. Assim, embora uma criança não<br />

vá, por exemplo, escolher uma escola discernindo sobre<br />

os métodos pe<strong>da</strong>gógicos, muitas crianças, assumindo a<br />

tarefa de cui<strong>da</strong>rem dos irmãos mais novos precisam se<br />

responsabilizar e tomar decisões desde muito cedo. Desse<br />

modo, sua experiência de depender, embora não seja nula,<br />

é certamente diferencia<strong>da</strong> para este público.<br />

Além disso, embora seja possível dizer que, na infância,<br />

a criança está mais disposta a receber informações<br />

de maneira passiva ela definitivamente não é um mero<br />

receptor de princípios adultos. A depender <strong>da</strong>s condições<br />

gerais do campo (incluindo aspectos familiares, culturais,<br />

históricos, educacionais e outros) e <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de de<br />

ca<strong>da</strong> criança, o questionamento e a escolha farão parte<br />

de suas interações na vi<strong>da</strong>. Nesta linha de argumentação,<br />

Aguiar (2005) ressalta o surgimento <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de<br />

de diferenciação ain<strong>da</strong> na infância, quando a criança é<br />

capaz de rejeitar ou digerir determina<strong>da</strong> introjeção familiar,<br />

iniciando o processo de constituição de sua fronteira<br />

de contato, processo esse que continuará a se aperfeiçoar<br />

ao longo do tempo.<br />

Ain<strong>da</strong>, levando em conta o campo sócio-cultural que<br />

caracteriza as socie<strong>da</strong>des contemporâneas – em que as<br />

antigas autori<strong>da</strong>des tradicionais têm seu poder diluído<br />

e, dentre outros aspectos, o antigo abismo de poder entre<br />

as gerações é questionado – as crianças dos dias de hoje<br />

também “são outras”. Ca<strong>da</strong> vez mais, elas perguntam,<br />

questionam e por vezes “colocam os pais em cheque”,<br />

apontando-lhes contradições e até mesmo questionando<br />

seus valores (comportamento anteriormente tipicamente<br />

esperado apenas com a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> adolescência). Assim,<br />

diante <strong>da</strong>s complexi<strong>da</strong>des do mundo contemporâneo, em<br />

que a antiga força e rigidez <strong>da</strong> palavra dos pais são diluí<strong>da</strong>s<br />

diante <strong>da</strong> coexistência de múltiplos referenciais<br />

de sentido (Berger & Luckmann, 1995) é ca<strong>da</strong> vez mais<br />

freqüente que os pais / responsáveis se sintam perdidos<br />

e fragilizados diante <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de impor limites e<br />

mesmo diante <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de se diferenciar, em termos<br />

de papel, <strong>da</strong>s crianças.<br />

Quanto à adolescência, jovens <strong>da</strong>s classes populares<br />

se depararam com questões por vezes bastante diversas<br />

<strong>da</strong>s de um jovem típico <strong>da</strong> classe média.<br />

Isso não significa, entretanto, que a condição sócio-<br />

-econômica determina a adolescência de uma forma totalizante<br />

estabelecendo uma espécie de “classificação”<br />

de características <strong>da</strong> adolescência de acordo com as condições<br />

materiais. Na ótica gestáltica, o que mu<strong>da</strong> são as<br />

forças presentes no campo, o que certamente afeta, mas<br />

de modo algum determina o comportamento e as experiências<br />

dos jovens.<br />

No que diz respeito à dimensão tempo, (que precisa<br />

ser sempre leva<strong>da</strong> em consideração numa abor<strong>da</strong>gem “de<br />

campo” como a Gestalt-terapia) a época contemporânea<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

introduz diversas transformações na experiência de ser<br />

adolescente.<br />

Como diversas análises têm ressaltado (ver por ex.:<br />

Lira, 2010; Garcia & Rocha, 2008; Calligaris, 2000), o antigo<br />

anseio de se tornar adulto, escolher uma profissão,<br />

assumir responsabili<strong>da</strong>des, constituir família etc. vêm<br />

sendo permeado por aspectos contraditórios.<br />

Se por um lado é provável que tais anseios ain<strong>da</strong><br />

existam, por outro, eles convivem com a valorização <strong>da</strong><br />

adolescência como ideal cultural (Garcia & Rocha, 2008).<br />

Isso se revela em circunstâncias nas quais a antiga e tradicional<br />

versão cultural em que adolescentes querem parecer<br />

e ter os direitos e liber<strong>da</strong>des dos adultos aparece<br />

de forma inverti<strong>da</strong>. Atualmente, numa cultura em que<br />

a liber<strong>da</strong>de, o prazer e a juventude (de corpo e espírito)<br />

são propagados como instrumentos de valor pessoal ou<br />

até mesmo como imperativos sociais é ca<strong>da</strong> vez mais comum<br />

encontramos adultos querendo ter direitos e liber<strong>da</strong>des<br />

de adolescentes.<br />

Deste modo, falar em conflitos de gerações, ou mesmo<br />

descrever a adolescência como uma transição para o<br />

mundo adulto, pode significar cair no vazio. O vazio é<br />

gerado pela falta de sensitivi<strong>da</strong>de para os elementos de-<br />

-um-campo que como analisamos anteriormente, é sempre<br />

mutante no tempo e no espaço.<br />

3. “Liber<strong>da</strong>de” e “Campo”: facetas Inextrincáveis no<br />

Conceito de Ajustamento Criativo<br />

O conceito gestáltico de ajustamento criativo, absolutamente<br />

conectado ao conceito de contato e de campo<br />

referidos anteriormente, constitui um elemento central<br />

<strong>da</strong> visão gestáltica sobre processos de saúde e doença,<br />

sendo, portanto, fun<strong>da</strong>mental para a compreensão do<br />

desenvolvimento humano nesta abor<strong>da</strong>gem.<br />

Por meio <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de humana de ajustar-se criativamente<br />

ao meio, ao mesmo tempo em que o ser se constitui<br />

nas factici<strong>da</strong>des do desenvolvimento biológico, <strong>da</strong><br />

cultura, <strong>da</strong> classe social e <strong>da</strong> época em que vivemos, pode<br />

li<strong>da</strong>r criativamente com isso, escolhendo e criando a si<br />

mesmo continuamente.<br />

O ajustamento criativo pode ser definido como o processo<br />

pelo qual o existente se relaciona com o meio criativamente<br />

na busca de equilíbrio através dos recursos<br />

disponíveis no campo (Ribeiro, 2006). Ou ain<strong>da</strong>, como<br />

define Moreira (2010, p. 24): “Ajustamento criativo significa<br />

auto-regulação, abertura ao novo, contato vivo e<br />

vitalizante, referindo-se à formação de novas configurações<br />

pessoais (ou gestalten) a partir <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> de novos<br />

elementos através <strong>da</strong> experiência de contato”. Portanto,<br />

tal processo configura-se como uma expressão do ser-<br />

-no-campo, no qual as facetas humanas de liber<strong>da</strong>de<br />

(revelado na palavra criativo) e contextuali<strong>da</strong>de (sentido<br />

presente na palavra ajustamento) atualizam-se de<br />

maneira integra<strong>da</strong>.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012<br />

Lauane Baroncelli<br />

No caso particular do adolescente, este fará então o<br />

possível para equilibrar-se diante <strong>da</strong> circunstância em<br />

que se encontra num balanço entre possibili<strong>da</strong>des presentes<br />

de si mesmo e do contexto. Alguns ajustamentos<br />

podem, portanto, revelar respostas flui<strong>da</strong>s e espontâneas<br />

às suas novas necessi<strong>da</strong>des. Por outro lado, alguns ajustamentos<br />

podem indicar um modo rígido e pouco respondente<br />

às mu<strong>da</strong>nças enfrenta<strong>da</strong>s.<br />

Assim, se o trânsito entre a vivência do “campo infantil”<br />

para o “campo adolescente” pode, por um lado,<br />

constituir uma experiência de crise, por outro, a busca<br />

pelo projeto de si mesmo pode assemelhar-se mais a uma<br />

progressiva exploração de papéis e potenciais escolhas<br />

(que pode inclusive ter começado paulatinamente desde<br />

a infância) do que uma repentina busca sofri<strong>da</strong> e angustia<strong>da</strong><br />

por si mesmo.<br />

Tradicionalmente, enquanto o aspecto de regulari<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s tormentas emocionais e crises adolescentes é, repeti<strong>da</strong>mente,<br />

objeto de análise em diversas teorias sobre<br />

o desenvolvimento, outros aspectos, como a visão crítica,<br />

a amizade, a sinceri<strong>da</strong>de e até a lucidez adolescente que<br />

a chama<strong>da</strong> maturi<strong>da</strong>de frequentemente amortece são raramente<br />

mencionados. Sendo a Gestalt-terapia uma abor<strong>da</strong>gem<br />

que concebe o indivíduo como um ser relacional,<br />

transformador e único, a generalização ou universalização<br />

de supostas características <strong>da</strong> adolescência, bem<br />

como a exclusão de outras formas possíveis de se ajustar<br />

criativamente devem ser evita<strong>da</strong>s.<br />

Para finalizar, vale destacar um elemento fun<strong>da</strong>mental<br />

do contexto do adolescente que afetará de modo importante<br />

seu processo de ajustamento criativo: seu relacionamento<br />

com os “outros significativos” (pais, responsáveis,<br />

professores, familiares, amigos etc.).<br />

Se na criança o relacionamento com os familiares e<br />

adultos se caracteriza, predominantemente, por uma dependência<br />

vinculante, a partir <strong>da</strong>s diversas mu<strong>da</strong>nças no<br />

espaço de vi<strong>da</strong> dos jovens, estes tendem a sentir a necessi<strong>da</strong>de<br />

de serem tratados como indivíduos separados e<br />

independentes. Consequentemente, se perceberem ser necessário,<br />

podem se ajustar criativamente à nova situação<br />

materializando um jogo de oposições com seus responsáveis,<br />

contrariando opiniões, idéias e valores dos mesmos<br />

a fim de construir sua própria forma de ser.<br />

Em algumas experiências, é possível que os responsáveis<br />

e familiares rivalizem com os adolescentes, ou sigam<br />

tratando-os como crianças para, desta forma, negar<br />

a passagem do tempo e a finitude de seu poder e primazia<br />

sobre eles. Nestes casos, o campo como um todo está<br />

impregnado de elementos de conflito, e não apenas o adolescente,<br />

como se este existisse isolado em uma suposta<br />

interiori<strong>da</strong>de conflituosa.<br />

Por outro lado, tais padrões de relacionamento com a<br />

família também não devem ser naturalizados. Relações<br />

conflituosas com pais e responsáveis têm sido tão amplamente<br />

generaliza<strong>da</strong>s nas leituras acadêmicas e no imaginário<br />

social sobre adolescência que algumas famílias<br />

194


Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo<br />

desconfiam que algo possa estar errado caso o adolescente<br />

mantenha-se responsável, lúcido e uma companhia agradável.<br />

No entanto, a diferença humana ain<strong>da</strong> resiste às<br />

generalizações teóricas e alguns adolescentes efetivam<br />

ajustamentos criativos num campo em que a proximi<strong>da</strong>de<br />

e o diálogo com a família podem se desenvolver sem<br />

afetar sua necessi<strong>da</strong>de de discriminação.<br />

De qualquer modo, o comportamento do adolescente<br />

revela o que vive na escola, na família, na socie<strong>da</strong>de e<br />

na cultura. Em vários níveis, insistimos, ele não é adolescente<br />

sozinho. Na perspectiva de campo adota<strong>da</strong> pela<br />

Gestalt-terapia, ca<strong>da</strong> existente co-existe numa reali<strong>da</strong>de<br />

compartilha<strong>da</strong> em que todos estão implicados (Parlett,<br />

2005). Entretanto, se é ver<strong>da</strong>de que o adolescente não<br />

vivencia seus possíveis conflitos de modo interno, mas<br />

num campo, por outro lado, a família, a escola ou a socie<strong>da</strong>de<br />

também não são as causadoras por excelência de<br />

problemas na adolescência.<br />

O existente (e, consequentemente, o adolescente) é<br />

para a Gestalt-terapia, produto e produtor de sua condição.<br />

Revelando a noção de causali<strong>da</strong>de circular <strong>da</strong> Gestaltterapia,<br />

a escola, a família, o mundo e o adolescente livre se<br />

influenciam mutuamente de modo a se tornar basicamente<br />

impossível detectar relações mecânicas de causa e efeito em<br />

suas interações (Brafman, citado por Toman e Bauer, 2005).<br />

Considerações finais<br />

Como pretendemos ter deixado claro ao longo do<br />

artigo, a Gestalt-terapia compartilha o questionamento<br />

– que vem sendo explorado na literatura sobre o tema,<br />

sobretudo, pela perspectiva sócio-histórica – acerca <strong>da</strong><br />

naturalização <strong>da</strong> adolescência como um fenômeno abstrato<br />

e universal.<br />

Tal naturalização entra em choque com elementos<br />

fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> concepção gestáltica de indivíduo, nota<strong>da</strong>mente<br />

a consideração deste como um ser contextualizado<br />

(ser-no-campo) e singular e, portanto, como um<br />

existente que só pode ser compreendido no interior de<br />

suas relações sempre complexas e únicas com o mundo.<br />

Sendo assim, podemos resumir dizendo que a leitura<br />

sobre a adolescência na ótica <strong>da</strong> Gestalt-terapia precisa ser<br />

flexível e complexa o suficiente para evitar os seguintes<br />

“engodos” teóricos: a naturalização do desenvolvimento<br />

adolescente, alienando aspectos históricos e contextuais<br />

inerentes a este; a correlata generalização e universalização<br />

de características que alienam a singulari<strong>da</strong>de de<br />

ca<strong>da</strong> experiência no mundo concreto; e, finalmente (aspecto<br />

esse que inclui os dois últimos), faz-se fun<strong>da</strong>mental<br />

evitar a cegueira conceitual que reproduz entendimentos<br />

teóricos sobre a adolescência que se tornaram hegemônicos<br />

tanto na academia como no imaginário social, ignorando<br />

os aspectos reducionistas e estáticos embutidos<br />

em tais entendimentos que contrariam os pressupostos<br />

elementares <strong>da</strong> Gestalt-terapia.<br />

195<br />

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lauane Baroncelli - Psicóloga; Mestre em Psicossociologia de Comuni<strong>da</strong>des<br />

e Ecologia Social pela Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de<br />

Janeiro (UFRJ); Doutoran<strong>da</strong> em Sociologia pela University College<br />

Cork e Membro do corpo docente do Dialógico Núcleo de Gestalt-<br />

-terapia (Rio de Janeiro). Endereço Institucional: O’Donovan’s Road,<br />

Department of Sociology, University College Cork, Cork, Ireland.<br />

Email: lauaneb@gmail.com<br />

Recebido em 14.03.12<br />

Primeira Decisão Editorial em 26.09.12<br />

Aceito em 10.11.12<br />

196


A Espaciali<strong>da</strong>de na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial<br />

197<br />

A ESpACIALIDADE NA COMpREENSÃO DO TRANSTORNO<br />

DO pÂNICO: UMA ANÁLISE ExISTENCIAL<br />

The spaciality in the understanding of the panic disorder: an existential analysis<br />

La Espaciali<strong>da</strong>d en la compreensión del transtorno de panico: una análisis existencial<br />

GustAvo AlvArenGA oliveirA sAntos<br />

Resumo: O texto apresenta um caso clínico sob a luz <strong>da</strong> análise existencial de Ludwig Binswanger. Elege-se a espaciali<strong>da</strong>de como<br />

categoria central na compreensão clínica aqui apresenta<strong>da</strong>. Em um primeiro momento, será apresentado ao leitor o conceito de<br />

espaciali<strong>da</strong>de segundo a ontologia fun<strong>da</strong>mental de Heidegger, em Ser e Tempo. Feito isso, o artigo traz à luz o conceito de pânico,<br />

de acordo com a análise existencial. O relato do caso clínico, bem como sua análise, conforme os conceitos apresentados,<br />

desvelará de que forma o pânico pode ser entendido como um transtorno no modo de espacializar. Essa compreensão nos <strong>da</strong>rá<br />

subsídios para um entendimento existencial do transtorno do pânico, bem como nos possibilita pensar em formas de condução<br />

do tratamento, diferente <strong>da</strong>s tradicionais.<br />

Palavras-chave: Transtorno do pânico; Análise existencial; Espaciali<strong>da</strong>de; Binswanger.<br />

Abstract: This text presents a clinical case under the light of the existential analysis of Ludwig Binswanger. It is chosen spaciality<br />

as central category in the clinical understanding presented here. At a first moment, basic on the essential ontology of<br />

Heidegger in Being and Time, will be presented to the reader the concept of spaciality. Made this, the article brings to the light<br />

the concept of panic, in accor<strong>da</strong>nce with the existential analysis. The story of the clinical case, as well as its analysis, will reveal<br />

of that it forms the panic can be understood as a disorder in the way of to space of the individual. This understanding in<br />

will give us subsidies for an existential agreement of the panic disorder, as well as in makes possible to think about forms of<br />

conduction of the treatment, differently of the traditional ones.<br />

Keywords: Panic disorder; Existential analysis; Spaciality; Binswanger.<br />

Resumen: Este trabajo presenta un estudio de caso a la luz del análises existencial de Ludwig Binswanger. Elige a la espaciali<strong>da</strong>d<br />

como uma categoria central en la comprensión del caso. En un primer momento, el lector se introducirá el concepto de<br />

espaciali<strong>da</strong>d de acuerdo a la ontología fun<strong>da</strong>mental de Heidegger, en Ser y Tiempo. A continuación, el artículo saca a la luz el<br />

concepto de pánico, de acuerdo con el análisis existencial. El caso clínico y su análisis <strong>da</strong>rá a conocer como el pánico se puede<br />

compreender como un transtorno en el modo de espacializar. Esa comprensión subsidiará para un entendimento existencial del<br />

transtorno de pânico, mientras possibilitará piensar en modos de conducción del trataimiento, diferente de los tradicionales.<br />

Palabras-clave: Transtorno de pánico; Analísis existencial; Espaciali<strong>da</strong>d; Binswanger.<br />

Introdução<br />

Este texto se propõe a discutir um tema recorrente na<br />

clínica psicológica e psiquiátrica: o transtorno do pânico.<br />

Para tanto, utilizaremos a categoria <strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de,<br />

tal como entendi<strong>da</strong> pela Antropologia Fenomenológica<br />

de Ludwig Binswanger, na análise de um caso clínico.<br />

Em um primeiro momento, será esclarecido o significado<br />

do termo alemão Da-sein, em acordo com a ontologia<br />

fun<strong>da</strong>mental de Martin Heidegger, presente em<br />

Ser e Tempo. Esse conceito é base, e é a partir dele que<br />

entenderemos a categoria <strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de conforme a<br />

Analítica do Dasein.<br />

O médico suíço Ludwig Binswanger foi um dos psiquiatras<br />

inspirados pela nova perspectiva em que o ser do<br />

homem era concebido por Heidegger. A compreensão do<br />

homem como Dasein permitia possibili<strong>da</strong>des de compreensão<br />

<strong>da</strong>s patologias mentais, embasados nos modos de<br />

relação homem-mundo. Destacaremos nesse texto aspectos<br />

do ser do homem como Dasein, no sentido de eluci<strong>da</strong>r<br />

um caso clínico, em especial no que tange à questão <strong>da</strong><br />

espaciali<strong>da</strong>de, já abor<strong>da</strong><strong>da</strong> por Heidegger e aplica<strong>da</strong> por<br />

Binswanger em sua psicopatologia.<br />

Binswanger eluci<strong>da</strong> essa relação <strong>da</strong> compreensão<br />

do homem como Dasein nos casos clínicos reunidos<br />

no livro Schizophrenie, publicado em 1957 (e inédito<br />

em português), onde aparecem os casos: Ellen West<br />

(1944-1945), Use (1945), Jürg Zund (1946-1947), Lola<br />

Voss (1949) e Suzan Urban (1952-1953). Nessa mesma<br />

época é também publica<strong>da</strong> a obra: Três Formas de<br />

Existência Malogra<strong>da</strong>: Extravagância, Excentrici<strong>da</strong>de,<br />

Amaneiramento (Binswanger, 1956/1972) 1 em que são<br />

evidencia<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> compreensão do Dasein, al-<br />

1 Título original: Drei Formen missglückten Daseins. Verstiegenheit,<br />

Verschrobenheit, Manieriertheit.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

guns modos de ser que aparecem na esquizofrenia.<br />

Após essa fase, segundo Giovanetti (1990), o autor se<br />

utilizará <strong>da</strong> fenomenología transcendental de Edmund<br />

Husserl na análise de algumas patologias. Essa nova fase<br />

do pensamento de Binswanger se expressa, por exemplo,<br />

em Melancolia e Mania. Estudos Fenomenológicos 2<br />

(Binswanger, 1960/1987), publicado em 1960, aparecerá<br />

nas considerações finais quando justificaremos por que<br />

o caso relatado não se trata de uma psicose.<br />

Descreveremos brevemente o caso “Suzanne Urban”,<br />

último estudo clínico do autor, em uma perspectiva<br />

Daseinsanalítica, onde nos interessa a noção do Terror,<br />

que na aproximação de Pereira (1997), serve-nos para a<br />

compreensão do hoje chamado Transtorno do Pânico.<br />

Alguns apontamentos teóricos, relevantes <strong>da</strong> análise existencial,<br />

empreendi<strong>da</strong> por Binswanger nesse caso, servirão<br />

como subsídio para a discussão de um caso clínico<br />

de transtorno do pânico atendido pelo autor deste texto.<br />

A descrição desse caso e sua análise, sob um ponto<br />

de vista analítico-existencial, alicerçado à categoria <strong>da</strong><br />

espaciali<strong>da</strong>de, contribui para um entendimento desse<br />

transtorno, tanto do ponto de vista teórico, como do ponto<br />

de vista <strong>da</strong> condução do tratamento.<br />

1. O Modo de Ser-em Espaço: A Espaciali<strong>da</strong>de do<br />

Da-sein como Dis-tanciamento<br />

Devemos esclarecer de antemão a que nos referimos<br />

quando nos utilizamos do termo Da-sein. Traduzido comumente<br />

por pre-sença, graças à edição atual de Ser e<br />

Tempo em português, o conceito tem gerado uma série<br />

de equívocos e mal entendidos quando utilizado à revelia<br />

<strong>da</strong> genuini<strong>da</strong>de que ele traz na concepção de homem<br />

atual. Preferimos neste texto, assim como tem sido utilizado<br />

por estudiosos <strong>da</strong> analítica existencial, utilizar o<br />

termo em alemão: Da-sein, para preservarmos o seu sentido<br />

original e nos livrarmos <strong>da</strong>s ambigui<strong>da</strong>des presentes<br />

na tradução latina, alvo de muitas discussões entre<br />

os especialistas <strong>da</strong> área.<br />

Longe de querermos alongar muito no tema e nos debatermos<br />

em questões filosóficas de ordem ontológica,<br />

cabe-nos, para o que nos interessa neste artigo, demonstrar<br />

o pano de fundo sobre o qual foi concebido o conceito,<br />

de forma que se torne claro a espaciali<strong>da</strong>de implícita<br />

na sua própria concepção.<br />

Da-sein foi o termo utilizado por Heidegger em Ser e<br />

Tempo, na busca de um ente em que poderia se colocar<br />

a questão sobre o Ser 3 . O Ser, segundo o autor, havia caído<br />

no esquecimento em um mundo ca<strong>da</strong> vez mais dominado<br />

pelo tecnicismo científico que o transformou em<br />

2 Título original: Melancholie und Manie. Phänomenologische Studien<br />

(inédito em português).<br />

3 Para distinguirmos o Ser (Sein) em geral e o ser em particular, utilizaremos<br />

o primeiro com maiúscula e o segundo com minúscula. O<br />

Ser em geral é ontológico, pois se refere à questão sobre aquilo que é,<br />

já o ser do Da-sein é particular, pois se singulariza no ente Da-sein.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012<br />

Gustavo A. O. Santos<br />

um ente. A palavra Da- é pronome demonstrativo, significa<br />

“Aí”; sein, “ser”; logo Ser-aí, é sua tradução literal.<br />

Da-sein é o ente através do qual o Ser é em relação,<br />

tornando assim possível a pergunta sobre ele mesmo.<br />

Da-sein é o homem enquanto existente, ou seja, imbuído<br />

<strong>da</strong> tarefa primordial de ter que constituir seu próprio<br />

ser, e nesse processo ser o ente através do qual é possível<br />

uma pergunta sobre o Ser em geral.<br />

Interessa-nos, para este trabalho, apreendermos no<br />

Da-sein seu caráter eminentemente espacial. Destaca-se,<br />

que o modo pelo qual esse aparece, pressupõe de antemão<br />

uma relação intrinsecamente espacial já denota<strong>da</strong><br />

em sua nomeação. O “Aí” é uma relação direta com o espaço:<br />

sendo em relação, o homem não é aqui, junto com<br />

as coisas, mas tem que existir orientado para elas.<br />

Enquanto um existente, que se orienta para algo, o<br />

homem tem entre si e o mundo um distanciamento, segundo<br />

Heidegger (1927/1997, p. 157): “(...) o que se acha<br />

à mão no mundo circun<strong>da</strong>nte, pode vir ao encontro em<br />

sua espaciali<strong>da</strong>de”. Desse modo o Da-sein estabelece o<br />

seu ser-no-mundo, espacializando, e seu espacializar<br />

desvela que a relação com as coisas não é <strong>da</strong><strong>da</strong> de antemão,<br />

mas se dá enquanto ultrapassa o distanciamento<br />

inerente à sua condição.<br />

O modo como um indivíduo particular espacializa,<br />

é, para Binswanger, uma categoria importante na compreensão<br />

<strong>da</strong>s patologias mentais. O autor destaca no entendimento<br />

nos casos clínicos “Lola Voss” e “Suzanne<br />

Urban” essa categoria como elemento central para o entendimento<br />

<strong>da</strong>s consequências <strong>da</strong> experiência que ele<br />

denomina como Terror.<br />

O Terror se dá na vivência direta do abismo, no distanciamento<br />

que há entre o Si e as coisas. A existência 4<br />

é uma condição abissal, pois no seu espacializar, ela se<br />

faz sobre o na<strong>da</strong>. Ela não é fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>, não é com o<br />

mundo, mas no mundo, ou seja, em relação a ele. O Terror<br />

é uma forma de Angústia, e essa última é o sentimento<br />

privilegiado que revela ao Da-sein seu modo de ser sobre<br />

o na<strong>da</strong>. No domínio <strong>da</strong> inautentici<strong>da</strong>de, o Da-sein se crê<br />

fun<strong>da</strong>mentado no próprio solo que ele criou para habitar,<br />

alienando-se. Quando esse solo se revela inautêntico<br />

através <strong>da</strong> vivência <strong>da</strong> angústia, o existente se vê sob<br />

o domínio de “ter-que-ser-si-mesmo” – que é a expressão<br />

utiliza<strong>da</strong> por Binswanger na análise do caso Suzanne<br />

Urban, e que se refere à dimensão própria do existir que<br />

se caracteriza em ser irremediavelmente responsável por<br />

seu próprio ser-no-mundo – e o solo aparece como abissal.<br />

Chamond (2011) ao propor um estudo sobre a psicopatologia<br />

do espaço vivido de acordo com Binswanger<br />

destaca que para o autor:<br />

A imagem <strong>da</strong> que<strong>da</strong> expressa uma possibili<strong>da</strong>de concreta<br />

<strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong>, do corpo habitando o<br />

espaço: ela é uma estrutura antropológica do mundo,<br />

4 Ex-sistere significa ebulência, emergência, salto além de si. Segundo<br />

Heidegger é a tradução latina mais próxima ao conceito de Da-sein.<br />

198


A Espaciali<strong>da</strong>de na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial<br />

199<br />

uma forma de habitá-lo, aquela <strong>da</strong> per<strong>da</strong> do apoio e <strong>da</strong><br />

harmonia, <strong>da</strong> ruptura em uma corporei<strong>da</strong>de tranqüila.<br />

Mas além do corpo que cai realmente, a imagem <strong>da</strong><br />

que<strong>da</strong> traduz a essência mesma <strong>da</strong> per<strong>da</strong> do escoramento<br />

e do vivido de terror que lhe é consubstancial.<br />

A que<strong>da</strong> descreve uma possibili<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong>mental<br />

de ser no mundo: a per<strong>da</strong> do equilíbrio, o colapso, o<br />

terror (p. 5).<br />

O “ter-que-ser-si-mesmo”, dá-se, no entendimento<br />

heideggeriano, como projeto (Entwurf). Entendendo o ser<br />

como projeto em acordo com a categoria <strong>da</strong> espaciali<strong>da</strong>de,<br />

podemos dizer que o primeiro é como um elo que nos<br />

conecta às coisas que nos circun<strong>da</strong>m. Quando esses elos<br />

que construímos com o mundo perdem seu fun<strong>da</strong>mento,<br />

o na<strong>da</strong> sobre o qual eles foram construídos torna-se<br />

evidente, e a angústia torna-se o sentimento prevalente.<br />

Ou seja, se os projetos de determinado sujeito que<strong>da</strong>m<br />

ameaçados, é a existência mesma que perde seu fun<strong>da</strong>mento,<br />

como se já não tivesse laços que a una às coisas<br />

do mundo; em termos binswangerianos, essa existência<br />

torna-se malogra<strong>da</strong>.<br />

Boss (1977) relata o caso de um paciente esquizofrênico<br />

que percebia <strong>da</strong> janela um mundo próximo, bidimensional<br />

e ameaçador que o comprimia. Esse paciente<br />

também apresentava os chamados sintomas negativos<br />

<strong>da</strong> esquizofrenia: embotamento afetivo, lentificação do<br />

pensamento e autismo. Ou seja, o modo como se comprimia<br />

e se limitava na forma de Ser aí, também era o modo<br />

como espacializava, trazendo para a proximi<strong>da</strong>de os entes<br />

enquanto algo que o comprimia. Da mesma forma, um<br />

outro paciente pode perceber o espaço como profundo<br />

e desafiador, luminoso e amplificado, nesse estado ele<br />

aparece como que tomado por uma sensação de êxtase,<br />

como se o mundo fosse dotado de infinitas possibili<strong>da</strong>des<br />

de existência.<br />

Cabe-nos nesse artigo demonstrar em um caso clínico<br />

específico a forma como se dá a espacialização no chamamos,<br />

atualmente, de “Transtorno do Pânico”. Antes disso,<br />

porém, veremos como Binswanger (1957/1988) evidencia<br />

o pânico no caso “Suzanne Urban”. Esse se revelará para<br />

ela como experiência do Terror, que a paciente vivenciará<br />

como evidência não media<strong>da</strong> do abismo, o que ameaça<br />

sua existência como um todo.<br />

2. O Caso Suzanne Urban: Terror e pânico como<br />

perturbação <strong>da</strong> Dimensão Espacial<br />

Sobre a experiência <strong>da</strong> angústia do abismo, Binswanger<br />

(1957/1988) propõe a noção de Terror. O Terror é<br />

a constatação do Da-sein de sua factici<strong>da</strong>de 5 . Enquanto<br />

5 A factici<strong>da</strong>de (Geworfenheit) refere-se à condição do Da-sein enquanto<br />

ser lançado no mundo, “num abandono no meio do ente que o<br />

põe frente à única possibili<strong>da</strong>de de constituir-se ele mesmo o seu<br />

ser” (Pereira, 1997, p. 37).<br />

vivência, ele vem como algo que lhe toma de fora e que<br />

aparece como que estando o Da-sein presa de uma potência<br />

superior.<br />

O abismo traz-lhe a possibili<strong>da</strong>de sempre presente de<br />

não ser ele mesmo e, paradoxalmente, o mantém à vista<br />

as múltiplas possibili<strong>da</strong>des de ser como projeto. Essa experiência,<br />

segundo Binswanger (1957/1988), é típica <strong>da</strong><br />

psicose em que o próprio modo de constituição do ser-<br />

-aí se perde na noção mesma de se orientar no espaço.<br />

Binswanger (1956/1972) estabelece três formas de<br />

“existência malogra<strong>da</strong>” como modos de ser típicos <strong>da</strong> esquizofrenia,<br />

são elas: o maneirismo, a excentrici<strong>da</strong>de e<br />

a extravagância. Na extravagância, o abismo é encarado<br />

pelo Da-sein como algo a ser transposto, o salto que se<br />

dá para o seu atravessamento, porém, que<strong>da</strong> desproporcional<br />

com a possibili<strong>da</strong>de mesma do projeto, ficando o<br />

indivíduo preso em sua própria forma de espacialização.<br />

Sem referências para as quais se orientar, o extravagante<br />

torna-se como um alpinista que, ao escalar uma montanha,<br />

perde a noção de fundo que lhe abriria a possibili<strong>da</strong>de<br />

do próximo passo ou do possível retorno. O terror<br />

é vivenciado diretamente, pois ele paira sobre o abismo<br />

e o na<strong>da</strong> lhe aparece evidente.<br />

Já no caso Suzanne Urban, a experiência do abismo<br />

se dá de outro modo e o aterrorizante vem como algo de<br />

fora. Suzanne é descrita por Binswanger (1957/1988) como<br />

uma mulher extremamente cui<strong>da</strong>dosa com relação aos<br />

seus cui<strong>da</strong>dos pessoais e os dos outros, principalmente<br />

nos aspectos ligados à saúde dos seus entes queridos.<br />

O seu processo psicopatológico começa quando acompanha<br />

seu marido em uma consulta rotineira a um urologista<br />

para tratar de um possível problema urinário. Qual<br />

não foi a surpresa quando o médico diagnostica nele um<br />

câncer de vesícula praticamente inoperável.<br />

A cena do médico proferindo o diagnóstico retém-<br />

-se na memória de Suzanne. Ela passa a se ocupar do<br />

tema, o que repercute no sentido de sua orientação espacial,<br />

onde irá prevalecer o mundo enquanto perigo.<br />

A cena do diagnóstico de câncer é desloca<strong>da</strong> para to<strong>da</strong>s<br />

as suas formas de relação com o mundo e, em seu modo<br />

de espacialização, passa a predominar o que Binswanger<br />

(1957/1988) chama de “atmosferização do tema”. Assim<br />

a ameaça não se refere ao medo pela morte do marido,<br />

como poderia se supor, mas toma to<strong>da</strong> a forma de mundo<br />

no espaço que a paciente habita. Temos aqui então a<br />

“atmosfera do terror”.<br />

Na “atmosfera do terror”, o modo como Suzanne espacializa<br />

não se ancora mais nas relações possíveis que<br />

lhe são <strong>da</strong><strong>da</strong>s; pelo contrário, ela cerceia seus modos de<br />

relação e as coisas trazem a sempre iminente possibili<strong>da</strong>de<br />

de seu aniquilamento. Daqui podemos deduzir o pânico,<br />

como modo de experiência de um terror atmosférico<br />

que ameaça o ser de fora, sem se mostrar em nenhum<br />

ente específico, mas no espaço como um todo. Daí que<br />

as crises de pânico quando muito recorrentes podem desenvolver<br />

o que em psiquiatria chama-se agorafobia, ou<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012<br />

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A r t i g o<br />

seja, em um pavor inespecífico a espaços amplos e vagos,<br />

como apontado por Pereira (1997).<br />

No caso Suzanne Urban, ao li<strong>da</strong>r com a experiência<br />

do Terror, ela passa a criar o que denomina “teatro<br />

do horror”: imagina forças demoníacas que lhe estão à<br />

espreita, fantasia perigos imaginários e sente-se constantemente<br />

ameaça<strong>da</strong> pelos outros. Ou seja, do pânico<br />

geral que ameaça seu ser como um todo e é inespecífico,<br />

passa a eleger os objetos do perigo, de onde<br />

Binswanger (1957/1988) conclui ser a base de evolução<br />

de seu delírio.<br />

Na experiência do Terror de Suzanne, não há possibili<strong>da</strong>de<br />

que se elabore qualquer discurso ou entendimento<br />

verbal sobre o que a atormenta. Ao criar o<br />

“Teatro do Horror”, ela já se familiariza com seus perseguidores,<br />

e na personificação do Terror fabula um<br />

mundo fantástico onde o perigo se personifica nas pessoas<br />

ao seu redor.<br />

Pereira (1997) considera o relato do caso Suzanne<br />

Urban como uma possibili<strong>da</strong>de de entendimento para<br />

a experiência do pânico; com a diferença de que no<br />

Transtorno do Pânico, o Dasein elege o corpo como lugar<br />

de anteparo ao terrífico <strong>da</strong> experiência do abismo.<br />

Segundo Pereira (1997, p. 239): “(...) no pânico, o terrível<br />

ancora-se de forma hipocondríaca no real do corpo. Dessa<br />

forma, o pânico não pode ser considerado como um inominável<br />

inteiramente experimentado como tal”. O corpo,<br />

assim como no “Teatro do Horror” de Suzanne Urban, serve<br />

frente ao abismo do inominável e do na<strong>da</strong>. Enquanto<br />

ain<strong>da</strong> se é possível uma querela sobre um modo de relação<br />

real, o indivíduo se mantém em algum chão, mesmo<br />

que à beira do precipício.<br />

Os sintomas do transtorno do pânico aparecem, em<br />

geral, como um pavor inespecífico, acompanhados ou<br />

não de uma sensação iminente de morte. O pavor, como<br />

dito, manifesta-se no corpo por alguns sintomas, segundo<br />

o DSM-IV (American Psychiatric Association, 1995):<br />

“1 - palpitações ou ritmo cardíaco acelerado; 2 - sudorese;<br />

3 - tremores ou abalos; 4 - sensações de falta de ar<br />

ou sufocamento; 5 - desconforto torácico; 6 - náusea ou<br />

desconforto abdominal” (p. 193). Os ataques se dão, em<br />

geral, quando o indivíduo encontra-se só ou em aglomerações,<br />

como congestionamentos e lugares públicos.<br />

A ocorrência de um ou dois ataques esparsos não significa,<br />

no entanto, que a pessoa desenvolveu o chamado<br />

transtorno do pânico. Para que esse se caracterize<br />

enquanto tal é necessário, segundo o DSM-IV, que o indivíduo<br />

apresente uma preocupação acerca <strong>da</strong>s consequências<br />

dos ataques de pânico: ideias de morte, medo<br />

de perder o controle, ficar louco ou morrer por para<strong>da</strong><br />

cardíaca são comuns.<br />

O transtorno surge como uma tentativa do indivíduo<br />

defender-se contra o abismo do na<strong>da</strong>, no corpo ou<br />

nas ideações que podem vir a se tornar delírio, como<br />

no caso Suzanne Urban. Assim compreendemos o motivo<br />

por que as ideações de morte, o medo de perder o<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012<br />

Gustavo A. O. Santos<br />

controle e ficar louco são comuns; o transtorno desvela<br />

um modo de espacializar que se rompeu, deixando<br />

vaga a distância que separa o ser de seu mundo, <strong>da</strong>í as<br />

idéias de aniquilamento, ou seja, <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de sua dimensão<br />

existencial.<br />

Vejamos como isso se deu em um caso clínico.<br />

3. Das Crises de pânico às passarelas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>: o Caso<br />

Lucas<br />

O atendimento que será relatado ocorreu em um<br />

Serviço de Psicologia vinculado a uma Facul<strong>da</strong>de de<br />

Psicologia. O contrato de atendimento, estipulado em um<br />

termo de consentimento assinado pelo paciente e seu responsável<br />

legal, previa que, por se tratar de um serviço de<br />

psicologia universitário, os casos ali atendidos poderiam<br />

ser utilizados para pesquisas, bem como material didático<br />

para o ensino de psicologia, garantindo o sigilo <strong>da</strong>s<br />

informações (em caso de relato), por meio de omissão de<br />

elementos que identifiquem o paciente e uso de nomes<br />

fictícios. O autor do artigo atendeu o caso, na quali<strong>da</strong>de<br />

de docente e pesquisador <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de, interessado<br />

por questões relativas aos transtornos de ansie<strong>da</strong>de.<br />

Chega-me para atendimento clínico um adolescente<br />

de 14 anos, encaminhado pela mãe e indicado por um<br />

cardiologista. A queixa principal, relata<strong>da</strong> pela responsável,<br />

era que Lucas (nome fictício) estava sofrendo, nos<br />

últimos meses, recorrentes crises de arritmia cardíaca,<br />

que, segundo o médico <strong>da</strong> família eram de fundo psicológico,<br />

não tendo sido encontrado nenhum problema orgânico<br />

que as justificasse.<br />

A mãe foi recebi<strong>da</strong> em particular antes de Lucas ser<br />

convi<strong>da</strong>do a ser atendido individualmente. Foi perguntado<br />

se ele consentia em participar de um processo psicoterápico.<br />

Ele consentiu, mas disse que necessitava do<br />

atendimento não pelo motivo exposto pela mãe, qual seja,<br />

a arritmia cardíaca. Desse sintoma, ele <strong>da</strong>ria conta, já não<br />

o sentia tanto quanto antes, mas o ver<strong>da</strong>deiro motivo seria<br />

conseguir se concentrar melhor nos estudos, <strong>da</strong><strong>da</strong> a<br />

necessi<strong>da</strong>de em ser aprovado em um concurso para estu<strong>da</strong>r<br />

em uma importante escola técnica federal.<br />

Assim começaram as entrevistas, e Lucas, a princípio,<br />

mostrava-se em uma postura distante, desconfiado,<br />

ora gaguejando, ora falando muito baixo. In<strong>da</strong>gava sempre<br />

por onde começar e, sentindo no terapeuta, alguém<br />

disposto a escutar o que tinha a dizer, foi aos poucos discorrendo<br />

sobre suas preocupações cotidianas, bastante<br />

típicas para um garoto de sua i<strong>da</strong>de. Vídeo games, computadores,<br />

patins, bicicleta, o futebol que praticava, eram<br />

temas recorrentes nas entrevistas iniciais. Aos poucos fui<br />

me aproximando dele, de seu linguajar próprio, de seus<br />

interesses, mostrei-me como parceiro e como quem comungava,<br />

na sua i<strong>da</strong>de, dos mesmos interesses.<br />

Lucas era o filho mais velho, tinha mais um irmão de<br />

13 anos, de uma pequena família de classe média. Seu<br />

200


A Espaciali<strong>da</strong>de na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial<br />

pai havia-se aposentado do serviço público, ficando boa<br />

parte do seu tempo livre, em casa, a mãe tinha o ensino<br />

médio e era dona de casa. Do pai se referia como um homem<br />

a quem devia muito sua formação e boa educação.<br />

Afinal, estu<strong>da</strong>va em um bom colégio e tinha privilégios<br />

como aulas de informática e futebol. Devia também a ele<br />

sua possível aprovação no concurso <strong>da</strong> escola técnica,<br />

coisa pela qual era sempre cobrado. O pai dizia que já<br />

na i<strong>da</strong>de de Lucas, ele trabalhava e nem podia se <strong>da</strong>r ao<br />

luxo de só estu<strong>da</strong>r, assim ser aprovado no concurso era<br />

na<strong>da</strong> mais que uma obrigação para o filho.<br />

O discurso do pai dominava as sessões. Lucas falava<br />

comumente sobre suas queixas: dizia que o pai o chamava<br />

de “vagabundo”, que ele não <strong>da</strong>ria em na<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong>, que<br />

nenhuma mulher o desejaria. Lucas demonstrava certa<br />

ambigui<strong>da</strong>de em relação a isso. Ora considerava essas cobranças<br />

pertinentes, o que o inferiorizava diante do pai;<br />

ora já se enfastiava de tantas obrigações por ele exigi<strong>da</strong>s,<br />

queixando a mim sobre a falta de tempo suficiente para<br />

o seu lazer e para ficar à toa como gostaria. Lucas via a<br />

mãe como quem apaziguava as cobranças paternas em<br />

relação a ele, tentando desviar sua atenção do fato dos<br />

adolescentes <strong>da</strong> casa não estarem atendendo às suas expectativas.<br />

O paciente, no entanto, insistia em ter seus<br />

momentos de lazer, o que irritava ain<strong>da</strong> mais o pai, tornando<br />

suas reclamações recorrentes.<br />

Com o quadro de sua situação já apresentado e os relatos<br />

se voltando a esses temas, ora ao lazer e aos jogos<br />

de futebol, ora aos estudos e a cobrança excessiva do<br />

pai, Lucas começou a dizer sobre sua preocupação com<br />

a morte. Quando in<strong>da</strong>gado se já tivera alguma per<strong>da</strong> significativa<br />

em sua vi<strong>da</strong>, de pronto se lembrou <strong>da</strong> morte<br />

repentina de seu avô, com quem tinha um vínculo muito<br />

significativo.<br />

Lucas descreve o avô em contraposição ao pai, como<br />

sendo mais relaxado e menos exigente, e que desbancava,<br />

sempre que tinha oportuni<strong>da</strong>de, a postura parcial e<br />

autoritária do seu genitor. O avô, segundo ele, dizia que<br />

seu pai não era na<strong>da</strong> disso que ele tentava se mostrar e<br />

que havia tido condições para estu<strong>da</strong>r, fazer seu curso<br />

superior e depois poder exercê-lo como funcionário público,<br />

sendo que suas exigências não faziam sentido, não<br />

era um exemplo sobre aquilo que ele próprio dizia. O avô<br />

também era alguém com quem se podia jogar sinuca, totó,<br />

xadrez; pessoa festiva e tranqüila, Lucas se assustou com<br />

sua morte. Ao falar desse fato, ocorrido há aproximados<br />

três anos, ele fez questão de salientar que não tinha relação<br />

com seus sintomas; aliás, os sintomas há muito não<br />

lhe incomo<strong>da</strong>vam, mas foram reaparecendo logo após a<br />

sessão em que se falou sobre essa morte.<br />

Os “sintomas”, como o próprio Lucas a eles se referia,<br />

apareciam como ponta<strong>da</strong>s no peito que sentia quando jogava<br />

bola, dormia ou devido a esforço físico razoável; sentia<br />

uma palpitação diferente no coração. Em algumas situações,<br />

chegou a pedir à família que contatasse o Serviço<br />

de Atendimento Municipal de Urgência (SAMU) que lhe<br />

201<br />

atendeu em pelo menos três ocasiões, em que sendo levado<br />

para o serviço de cardiologia do pronto-socorro, na<strong>da</strong><br />

se constatou de anormal.<br />

Fora os “sintomas”, eram recorrentes as ideias de morte<br />

e de ameaça constante. O prédio onde estu<strong>da</strong>va, por<br />

exemplo, podia desabar a qualquer momento. Segundo<br />

seu relato a engenharia ain<strong>da</strong> não atingira seu grau de<br />

perfeição, assim to<strong>da</strong>s as construções guar<strong>da</strong>vam uma<br />

ameaça latente de desabamento. As esca<strong>da</strong>s também<br />

guar<strong>da</strong>vam a morte em potencial, um deslize, um degrau<br />

a menos ou a mais no cambiar <strong>da</strong>s pernas, poderia lhe<br />

provocar uma que<strong>da</strong> súbita. A morte de um humorista<br />

famoso na televisão, repentina por um ataque cardíaco,<br />

foi um dos desencadeadores de um ataque: ora se era assim,<br />

como acontece a qualquer um, isso poderia ocorrer<br />

com ele também. Sabia <strong>da</strong> irracionali<strong>da</strong>de de seus medos,<br />

confiava em parte no diagnóstico dos médicos, mas não<br />

conseguia se livrar, segundo ele, dessa sensação iminente<br />

de morrer que lhe ron<strong>da</strong>va.<br />

Aos poucos foi se recolhendo mais em casa, e, embora<br />

as pressões do pai lhe incomo<strong>da</strong>ssem, sabia que ali, pelo<br />

menos, era um lugar razoavelmente seguro, sentindo-se<br />

um tanto livre <strong>da</strong>s ameaças constantes <strong>da</strong> rua. Nesse<br />

tempo largou o futebol e reduziu ao máximo suas ativi<strong>da</strong>des,<br />

inclusive faltou a várias sessões de psicoterapia.<br />

Ia à escola sempre acompanhado do irmão e sentia sempre<br />

as palpitações ao atravessar a rua, ou subir as esca<strong>da</strong>s.<br />

As queixas do pai se atenuaram e os recorrentes ataques<br />

passaram a ser tematizados em nossos encontros.<br />

Nesse tempo Lucas já estava há seis meses em psicoterapia,<br />

interrompidos por vinte dias de férias, quando outras<br />

crises mais severas haviam lhe acometido.<br />

Retornado <strong>da</strong>s férias apressou-se em <strong>da</strong>r seu diagnóstico:<br />

síndrome do pânico. E pedia incessantemente um<br />

encaminhamento a um psiquiatra ou que lhe propusesse<br />

uma técnica que o livrasse logo <strong>da</strong>quilo. Respondi que na<br />

nossa proposta deveríamos nos atentar ao significado que<br />

“os sintomas” tinham para ele, e não em simplesmente<br />

expulsá-lo <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>; que era algo que deveríamos descobrir<br />

juntos e que, com certeza fazia parte <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de<br />

de sua existência. Confiou. As sessões pareceram mais<br />

produtivas, principalmente em verbalizações e as crises<br />

foram-se reduzindo até o momento em que ele tratou do<br />

tema <strong>da</strong>s passarelas. As passarelas segundo ele, traziam<br />

um desafio ain<strong>da</strong> maior, pois se tratavam de construções,<br />

vulneráveis como quaisquer outras, mas que pairam nos<br />

abismos, rios e aveni<strong>da</strong>s movimenta<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Citou os diversos tipos de passarelas existentes, <strong>da</strong>s<br />

estreitas às mais largas, <strong>da</strong>s precárias de estrutura metálica<br />

construí<strong>da</strong>s às pressas sob interesses políticos, às<br />

antigas de cimento, já velhas e com pouca ou nenhuma<br />

inspeção de engenheiros. Sempre se debatera com elas,<br />

lembrou. Isso desde sua infância, seu pai uma vez o forçou<br />

a atravessar uma, puxando-o violentamente pelas<br />

mãos até ele ser arrastado, chorando e se debatendo, pavoroso.<br />

Na medi<strong>da</strong> em que os sintomas se acalmavam e<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

ele se interessava ca<strong>da</strong> vez mais pelas construções arquitetônicas,<br />

contou-me sobre um feito recente.<br />

Uma passarela suspeita, estreita, dessas antigas, havia<br />

o desafiado a uma travessia. Ele precisava atravessá-<br />

-la para verificar um possível estágio numa empresa especializa<strong>da</strong><br />

em recrutamento. O desafio o emocionou, a<br />

ponto de chorar; sentia, paradoxalmente, uma ânsia em<br />

chegar e certa vontade de ficar, enfim resolveu que iria<br />

enfrentar seu medo e atravessar a passarela. Essa era estreita,<br />

e para ele, <strong>da</strong>s mais temíveis, pois se angustiava<br />

mais com as estreitas e menos com as largas e ocupa<strong>da</strong>s<br />

por corrimões. Segundo imaginava, alguém em direção<br />

contrária poderia lhe empurrar para o fundo do rio sobre<br />

o qual a passarela passava. Fez-se de destemido (segundo<br />

suas próprias palavras). Passou tremendo e sentindo as<br />

mesmas palpitações, mas resolveu, no entanto, não prestar<br />

atenção a elas; seria um estado normal, mais fruto de<br />

seu psicológico do que de um real problema cardíaco.<br />

Quando findou a travessia, sentiu-se tomado de uma<br />

intensa alegria, como se houvesse reconciliado algo dentro<br />

de si que não suspeitava. Respondi que a sensação poderia<br />

ser análoga a ele ter passado no concurso, ele disse<br />

que sim. Constatou que suas dificul<strong>da</strong>des remeteram às<br />

passarelas que ele tinha que enfrentar e aos desafios que<br />

tinha ain<strong>da</strong> pela frente.<br />

Nos encontros seguintes Lucas passou a questionar<br />

a viabili<strong>da</strong>de do projeto do pai para que ele aprovasse<br />

no concurso. Justificava esse projeto como algo que poderia<br />

lhe garantir um emprego mais seguro já em sua<br />

i<strong>da</strong>de, podendo se tornar independente do pai e de suas<br />

frequentes cobranças. Indiquei-lhe outras possibili<strong>da</strong>des,<br />

investigando seus interesses na escola. Era bom aluno,<br />

obtinha as melhores notas, sobretudo em matemática,<br />

discutimos juntos outros projetos possíveis para sua<br />

vi<strong>da</strong> profissional.<br />

Pensou em estu<strong>da</strong>r Mecatrônica na universi<strong>da</strong>de e<br />

viu na escola técnica como uma via para o cumprimento<br />

dessa meta. A elaboração de outros possíveis foi-se <strong>da</strong>ndo<br />

sem muita angústia, mas já numa relação segura com<br />

o terapeuta. Várias possibili<strong>da</strong>des para seu futuro foram<br />

elabora<strong>da</strong>s e projeta<strong>da</strong>s. Nesse tempo – que durou aproxima<strong>da</strong>mente<br />

um mês e meio –, as crises não voltaram e<br />

ele percebeu que as alterações em seus batimentos cardíacos<br />

eram devi<strong>da</strong>s às suas ativi<strong>da</strong>des físicas; não voltou<br />

mais ao futebol, mas lhe apetecia ain<strong>da</strong> a prática de<br />

alguns exercícios. Começou a vir às sessões de bicicleta,<br />

e relatava um certo cansaço quando chegava, além de<br />

apontar alguns traços <strong>da</strong> arquitetura <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de que antes<br />

lhe passava despercebido, como o topo dos prédios e<br />

a elevação <strong>da</strong>s construções.<br />

As crises não voltaram, viu-se reconciliado com seus<br />

projetos e por decisão própria quis encerrar o tratamento.<br />

Sentia-se agora mais dono de si, segundo suas palavras,<br />

e gostaria de exercer uma independência maior em<br />

relação às suas próprias escolhas, o que o fazia se sentir,<br />

de alguma forma, preso às nossas sessões. Alertei-lhe<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012<br />

Gustavo A. O. Santos<br />

sobre a necessi<strong>da</strong>de em avaliarmos juntos alguns aspectos<br />

determinantes <strong>da</strong>s crises que sofrera e as vantagens<br />

de um tratamento que não se fin<strong>da</strong> apenas com o alívio<br />

dos sintomas.<br />

Disse-lhe que os sintomas eram apenas uma “ponta<br />

de um iceberg” que indicava que deveríamos aprofun<strong>da</strong>r<br />

mais em direção a seus problemas. No entanto, Lucas<br />

estava decidido; fin<strong>da</strong>s as crises e tendo-se reconciliado<br />

com o seu corpo, segundo o que disse, poderia caminhar<br />

sozinho. Na<strong>da</strong> valeu minha insistência e o paciente<br />

deu por encerrado o processo, agradecendo-me muito<br />

pela aju<strong>da</strong> e se dizendo totalmente curado do transtorno<br />

que sofria. Após três meses do fim de nossas consultas<br />

liguei-lhe para ter notícias; disse que se curara de vez<br />

dos sintomas e que havia sido aprovado no concurso e se<br />

preparava para o curso técnico; o que fosse fazer depois<br />

decidiria mais tarde.<br />

4. O Caso Lucas à vista <strong>da</strong> fenomenologia Existencial<br />

Lucas revela desde o primeiro encontro, uma postura<br />

distante, tími<strong>da</strong>. Falava por gaguejos e se corrigia constantemente.<br />

Os sintomas não são, a princípio, o que o<br />

abriria ao processo psicoterápico, antes fazem um apelo<br />

àquilo que o mantém enlaçado ao mundo: a necessi<strong>da</strong>de<br />

em atravessar a ponte que o ligaria a uma vi<strong>da</strong> profissional<br />

digna, tal qual fora a de seu pai. Aproximar-se <strong>da</strong>s<br />

palpitações, do descontrole, do medo iminente <strong>da</strong> morte<br />

é também se aproximar <strong>da</strong>s experiências advin<strong>da</strong>s disso,<br />

é estar com aquilo que é o núcleo de seu adoecimento.<br />

Prefere de início se relatar como de “fora” do processo,<br />

apresenta-se como quem cabe suplantar a dura missão<br />

de li<strong>da</strong>r com um estudo focado, concentrado, tal qual se<br />

apresentava no projeto do pai.<br />

O mundo exigente do pai apareceu-lhe como pré-determinado<br />

e ameaçador à sua existência. A solicitação<br />

de que era dele a responsabili<strong>da</strong>de por seu futuro e que<br />

esse estava atrelado à aprovação no concurso, cerceava<br />

suas possibili<strong>da</strong>des de ser, o que de certa forma o sufocava,<br />

ao mesmo tempo em que, ao não se posicionar sobre<br />

isso, não conseguia empreender-se nos estudos necessários<br />

à sua aprovação.<br />

O Terror do pânico se lhe revela quando as possibili<strong>da</strong>des<br />

de espacialização vão se reduzindo a ponto dele<br />

vislumbrar a possibili<strong>da</strong>de terrífica do abismo lhe invadir.<br />

Por um lado, temos que o núcleo do terror vivenciado<br />

por Lucas bem poderia se encontrar na morte do avô.<br />

O fato <strong>da</strong> sintomatologia do pânico ocorrer logo após o<br />

falar sobre essa morte, não garante que os ataques estejam<br />

simplesmente associados a essa. O que vale destacar<br />

na forma como Lucas compreende essa morte é que ela<br />

inaugura um abismo de continui<strong>da</strong>de, interferindo em<br />

seu modo de espacializar.<br />

O concurso aparece sempre como um inatingível<br />

idealizado, sua posição perante a ele, confunde-se como<br />

202


A Espaciali<strong>da</strong>de na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial<br />

uma posição diante ao pai. Posicionar-se, nesse sentido,<br />

requereria confrontar o seu projeto com o do Pai o do<br />

dele e se estabelecer em uma relação em que ele pudesse<br />

compor seu próprio futuro e seu modo de espacialização,<br />

mas isso não se deu.<br />

Lucas se retrai frente à ameaça paterna e o desconsolo<br />

do avô morto. O abismo o ameaça, pois lhe aponta a<br />

possibili<strong>da</strong>de iminente de fracasso no concurso que ele<br />

mesmo passa a traçar na atitude relapsa para o seu preparo.<br />

Passar ou não passar no concurso seria a afirmação<br />

do seu próprio ser, desafio esse que ele prefere não ter<br />

que suportar. Como fuga a esse possível aniquilamento,<br />

Lucas reduz seu modo de espacialização, a ponto de reduzir<br />

seu espaço a seu quarto e às pequenas caminha<strong>da</strong>s<br />

que fazia no trajeto entre sua casa e a escola. No entanto,<br />

o mundo de fora parecia invadi-lo, a ponto de o aniquilar.<br />

A sensação de morte iminente, comum nos ataques de<br />

pânico, desvela que o na<strong>da</strong> aparece como algo que vem<br />

de encontro ao mundo do indivíduo. Algo de fora, incontrolável,<br />

ameaça sua existência como um todo.<br />

As crises de pânico vão se tornando severas na medi<strong>da</strong><br />

em que a <strong>da</strong>ta do concurso vai se aproximando e<br />

Lucas vai se sentindo engalfinhado. Sua atenção, volta<strong>da</strong><br />

às construções, mostra-nos o caráter plenamente reificado<br />

do mundo que ele estava a habitar, sem se construir, elas<br />

o chamam ao desabamento, já que como elas, ele é apenas<br />

factici<strong>da</strong>de e a que<strong>da</strong> é iminente. Nesse se desmontar<br />

Lucas não se apropria do seu modo próprio e se percebe<br />

como um “ente-intramun<strong>da</strong>no” no meio dos outros.<br />

Interessante notar que a vivência do terror <strong>da</strong> morte<br />

vai aos poucos se atenuando após a experiência com a<br />

passarela; passarela esta que ele atravessou destemi<strong>da</strong>mente<br />

à procura de um estágio que lhe traria maior independência<br />

financeira em relação ao pai. Atravessar a<br />

passarela significa recuperar um modo de espacialização<br />

que fora rompido desde a morte do avô. Ao desafiá-<br />

-la, novas formas de relações existenciais lhe abriram.<br />

Lucas pode vislumbrar possibili<strong>da</strong>des que antes não lhe<br />

apareciam, posto que se afun<strong>da</strong>vam no abismo do terror<br />

<strong>da</strong> morte.<br />

A possibili<strong>da</strong>de de não passar no concurso foi a primeira<br />

menção que ele fez, já como posição frente ao projeto<br />

do pai sobre ele. A possibili<strong>da</strong>de de continuar estu<strong>da</strong>ndo<br />

no ensino médio sem a especialização técnica visando<br />

um melhor preparo para o vestibular foi outra. Existia<br />

ain<strong>da</strong> uma terceira forma de se posicionar como projeto,<br />

aprovar-se no concurso federal como meio de se realizar<br />

mais à frente um curso universitário de Mecatrônica, o<br />

que reuniria seus interesses aos do pai. Essa aproximação<br />

paulatina com seu projeto e seu modo de espacialização<br />

coincide com o fim <strong>da</strong>s sintomatologias e alívio para o<br />

seu sofrimento. O espaço de Lucas amplia-se de tal forma<br />

que ele passa a vir às sessões de bicicleta, e sempre<br />

me trazendo detalhes novos sobre as edificações entre as<br />

ruas que ele ain<strong>da</strong> não havia notado, pois estava cego às<br />

construções e suas possibili<strong>da</strong>des.<br />

203<br />

A arquitetura já não vista como um desabamento,<br />

mas como elos que se ligam em travessias possíveis por<br />

bicicleta. Os blocos dos prédios, as pontes, os viadutos<br />

que atravessava, denotavam já a possibili<strong>da</strong>de de ser aí<br />

como projeto para alguma coisa.<br />

Considerações finais<br />

Para o que nos interessa em uma análise existencial,<br />

o caso nos apresenta um exemplo de como uma categoria<br />

própria ao Dasein – a espaciali<strong>da</strong>de – aparece como<br />

elemento a ser compreendido dentro do quadro de uma<br />

sintomatologia específica. Não se trata aqui de símbolo<br />

ou metáfora de algo mais profundo que se encontraria no<br />

pano de fundo <strong>da</strong> visão e significação do paciente, mas<br />

do próprio modo como ele configura um mundo específico<br />

em seu modo de espacialização.<br />

As passarelas diziam de suas possibili<strong>da</strong>des de ser<br />

diante ao mundo, pois traziam à sua presença os desafios<br />

que lhe apareciam em sua existência. Algo que une<br />

um solo a outro, mas que paira no abismo faz relação de<br />

sentido com aquilo que Lucas vivenciava na dimensão<br />

profissional e afetiva. O Terror é esse elemento que o invadia<br />

no “entre os solos”, guar<strong>da</strong>ndo uma potência aniquiladora,<br />

pois o confrontava diretamente com a morte.<br />

Interessante notar que a morte aqui diz <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de<br />

de Lucas não existir como projeto em relação a algo.<br />

A morte no humano não é simples ausência de vi<strong>da</strong>, mas<br />

falta de sentido em relação a que se direcionar.<br />

Nesse trabalho, ao falarmos sobre o terror, resgatamos<br />

uma experiência comum nos quadros de psicoses<br />

e a entendemos no contexto específico do transtorno do<br />

pânico. A diferença diagnóstica entre essas patologias –<br />

devemos ter claro –, não está propriamente na experiência<br />

em si, mas na biografia do indivíduo e na história <strong>da</strong><br />

evolução de sua patologia.<br />

Lucas não desenvolve um processo psicótico por ter<br />

em sua biografia alguma base sobre a qual pudesse ain<strong>da</strong><br />

se manter. Essa base é chama<strong>da</strong> por Laing (1961/1972)<br />

de “segurança ontológica” e se dá na medi<strong>da</strong> em que o<br />

indivíduo sente, desde a infância, a confirmação de sua<br />

existência por parte de um outro significativo, podendo<br />

ser o pai, a mãe ou alguém com quem o indivíduo mantenha<br />

um vínculo especial e contínuo no processo de seu<br />

desenvolvimento.<br />

Na fase em que Binswanger (1960/1987) se dedica<br />

à obra de Husserl, utilizando-se <strong>da</strong> Fenomenologia<br />

Transcendental, o autor se refere à psicose como uma<br />

descontinui<strong>da</strong>de no plano <strong>da</strong> experiência. O sujeito perderia<br />

a possibili<strong>da</strong>de de se atualizar diante do fluxo de<br />

suas experiências existenciais. Assim, há por parte do<br />

psicótico, diante de determina<strong>da</strong> experiência, a predominância<br />

de um tema único em sua existência, do qual<br />

ele não pode escapar por sua própria vontade.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Assim, o fato de Lucas vivenciar a angústia, significá-<br />

-la em seu contexto existencial, e se abrir às novas possibili<strong>da</strong>des<br />

existenciais – graças, em parte, a um encontro<br />

significativo com seu terapeuta – demonstra que em seu<br />

caso o transtorno do pânico não foi prenúncio de uma<br />

experiência <strong>da</strong> qual ele se tornaria refém, como é o surto<br />

psicótico 6 . A relação de parceiro existencial vivencia<strong>da</strong><br />

no processo psicoterápico permitiu a Lucas uma abertura<br />

para o seu ser além do mundo, em termos binswangerianos,<br />

ou seja, a possibili<strong>da</strong>de de se projetar para além <strong>da</strong>quela<br />

situação imediata e desesperadora que vivenciara.<br />

A relação do desenvolvimento do transtorno associado<br />

à morte do avô e às pressões paternas para que ele fosse<br />

aprovado no concurso, desvela como a per<strong>da</strong> de um outro<br />

significativo repercutiu de forma drástica em sua existência<br />

como um todo. Ain<strong>da</strong> assim, a figura reparadora<br />

do terapeuta como alguém a quem pudesse confiar suas<br />

angústias e temores, bem como a participação dedica<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> mãe a quem confiava <strong>da</strong>va a ele algum subsídio para<br />

a realização de seus projetos. A per<strong>da</strong> de uma relação significativa<br />

como a que tinha com o avô, não significou a<br />

per<strong>da</strong> de sua própria existência, como no caso Suzanne<br />

Urban na relação com o diagnóstico do esposo, mas uma<br />

angústia intensa que lhe desvelou o na<strong>da</strong> de sua condição<br />

existencial e que possibilitou, concomitantemente, uma<br />

abertura a novas possibili<strong>da</strong>des e revisão de seu projeto.<br />

Binswanger (1960/1987) diz ain<strong>da</strong> que, na psicose, o<br />

binômio “angústia e confiança”, como modo de abertura<br />

do Da-sein, se desfaz. Assim, na neurose, angústia e confiança,<br />

embora possam estar comprometi<strong>da</strong>s em algum<br />

aspecto, aparecem interconecta<strong>da</strong>s na relação que o indivíduo<br />

tece com seu mundo. O mesmo não se dá na psicose,<br />

em que uma <strong>da</strong>s dimensões sobrepõe à outra. Ora o<br />

sujeito confia sem se angustiar, como nos casos <strong>da</strong> mania,<br />

ora se angustia sem exercer nenhuma confiança, como<br />

nos delírios persecutórios presentes na esquizofrenia.<br />

No caso Suzanne Urban, o na<strong>da</strong> se sobrepôs às suas<br />

possibili<strong>da</strong>des e sua existência se paralisou em um único<br />

tema, o mundo não lhe apareceu digno de confiança,<br />

haja vista que todos eram vistos por ela, como potências<br />

aniquiladoras de sua própria existência. Lucas foi capaz<br />

de confiar, mesmo que ain<strong>da</strong> angustiado, em uma relação<br />

significativa com seu terapeuta e nas suas próprias<br />

capaci<strong>da</strong>des e possibili<strong>da</strong>des de realização.<br />

O transtorno do pânico tem sido alvo de intensos debates<br />

entre psiquiatras, psicoterapeutas e psicanalistas,<br />

tanto do ponto de vista explicativo quanto nos modelos<br />

de tratamento. Este trabalho teve como intuito demonstrar<br />

como uma relação que se estabeleceu entre psicoterapeuta<br />

e cliente pode eluci<strong>da</strong>r alguns pontos presentes<br />

na patologia e promover alívio para os sintomas em um<br />

caso específico, pelo menos por um período de seis meses.<br />

Faltam-nos elementos para saber se os chamados<br />

“sintomas”, nos dizeres do paciente, reaparecerão ul-<br />

6 Cabe lembrar que os estados de pânico, tal como os vivenciados por<br />

Lucas, costumam prenunciar um surto psicótico.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012<br />

Gustavo A. O. Santos<br />

teriormente em uma nova situação, desencadeados por<br />

novos impasses nas relações interpessoais. A i<strong>da</strong>de com<br />

que eles apareceram e foram tratados, podem nos deixar<br />

otimistas quanto a isso; antes de Lucas se solidificar em<br />

um modo de fuga <strong>da</strong> angústia essa foi por ele enfrenta<strong>da</strong><br />

em uma situação específica, permitindo a abertura a<br />

possíveis dentro de sua estrutura existencial.<br />

A adolescência já é por si só um abismo a se transpor<br />

e essa ponte, muitas <strong>da</strong>s vezes, dá-se como um projeto<br />

profissional, algo com que Lucas se debateu prematuramente<br />

graças às exigências do pai. Não é comum que<br />

adolescentes de 15 anos sejam postos dessa forma diante<br />

<strong>da</strong> uma escolha de um futuro tão relevante para sua<br />

vi<strong>da</strong>, o que ameaçou, sem sombra de dúvi<strong>da</strong>, sua frágil<br />

estrutura existencial, ain<strong>da</strong> imatura para se posicionar<br />

diante de projetos desse tipo.<br />

O pai não foi chamado para as sessões, justamente<br />

pelo terapeuta prever que o mesmo poderia ameaçar o tratamento.<br />

A mãe confirmava a aversão que o mesmo tinha<br />

por psicólogos e “frescuras” do tipo. As exigências dele<br />

acabariam por reforçar a sintomatologia de Lucas que,<br />

quando em ataques agudos, assustava o pai que recuava<br />

diante <strong>da</strong>s exigências. Paradoxalmente, foram as próprias<br />

crises que o sensibilizaram, atenuando suas cobranças e<br />

possibilitando a Lucas um novo posicionamento.<br />

O caso se encerra por própria iniciativa do paciente,<br />

que se sentia agora mais seguro em relação a seus próprios<br />

caminhos e que via no terapeuta um apoio fútil<br />

para esse momento. A extravagância do ato pode também<br />

nos apontar de que modo Lucas traçava para si um<br />

modo de ser sobre o abismo que depois poderia não suportar.<br />

O seu retraimento em relação a seus sentimentos<br />

e anseios, desvelado na primeira sessão, aponta-nos para<br />

a possibili<strong>da</strong>de do paciente ter-se comprometido com os<br />

projetos do pai, como meio de respondê-lo sem, no entanto,<br />

estar consciente de sua própria base existencial<br />

para a realização desses.<br />

O cliente sai esperançoso na construção de um projeto<br />

próprio que lhe fosse viável e autônomo. E o texto<br />

aqui se cumpre ao mostrar, de uma perspectiva analítico-<br />

-existencial, de que forma podemos compreender e tratar<br />

o transtorno do pânico tendo como existenciário básico<br />

a espaciali<strong>da</strong>de.<br />

Referências<br />

American Psychiatric Association (1995). Manual Diagnóstico<br />

e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-IV. Porto Alegre:<br />

Artes Médicas.<br />

Binswanger, L. (1972) Tres formas de la existencia frustra<strong>da</strong>:<br />

exaltación, excentrici<strong>da</strong>d, manerismo. Buenos Aires:<br />

Amorrortu Editores (Original publicado em 1956).<br />

Binswanger, L. (1988). Le Cas Suzanne Urban – Étude sur la<br />

schizophrénie. Saint-Pierre-de-Salerme: Gérard Monfort<br />

(Original publicado em 1957).<br />

204


A Espaciali<strong>da</strong>de na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial<br />

Binswanger, L. (1987). Melancolie et manie. Études phénoménologiques.<br />

Paris: Presses Universitaires de France (Original<br />

publicado em 1960).<br />

Boss, M. (1977). O modo-de-ser esquizofrênico à luz de uma<br />

fenomenologia <strong>da</strong>seinsanalítica. <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Associação<br />

Brasileira de Daseinsanalyse, 3, 5-28.<br />

Chamond, J. (2011). Fenomenologia e psicopatologia do espaço<br />

vivido em Ludwig Binswanger: uma introdução. <strong>Revista</strong><br />

<strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>, 17(1), 3-7.<br />

Giovanetti, J. (1990). O existir humano na obra de Ludwig<br />

Binswanger. Síntese (Nova Fase), 50, p. 87-99.<br />

Heidegger, M. (1997). Ser e Tempo I. Petrópolis: Vozes (Original<br />

publicado em 1927).<br />

Laing, R. D. (1972). O eu e os outros. Petrópolis: Vozes (Original<br />

publicado em 1961).<br />

205<br />

Pereira, M. E. C. (1997). Pânico: contribuição à psicopatologia<br />

dos ataques de pânico. São Paulo: Lemos Editorial.<br />

Gustavo Alvarenga oliveira Santos - Psicólogo, Mestre em Psicologia<br />

Clínica pela Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Campinas e Docente<br />

na Universi<strong>da</strong>de Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Endereço<br />

Institucional: Rua Getúlio Guaritá, 159 (Bairro Nossa Senhora <strong>da</strong><br />

Abadia). CEP 38025-440. Uberaba/MG. Email: gustavo.alvarenga@<br />

psicologia.uftm.edu.br<br />

Recebido em 06.07.2012<br />

Primeira Decisão Editorial em 15.10.2012<br />

Aceito em 14.12.12<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

ANÁLISE DA NARRATIvA DE vIkTOR fRANkL<br />

ACERCA DA ExpERIêNCIA DOS pRISIONEIROS NOS<br />

CAMpOS DE CONCENTRAÇÃO<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012<br />

Thiago A. A. Aquino<br />

Analysis of Viktor Frankl’s Narrative on the Experience of Prisoners in Concentration Camps<br />

Análisis de la Narrativa de Viktor Frankl sobre la Experiencia de los Presos en Campos<br />

de Concentración<br />

tHiAGo Antonio AvellAr de Aquino<br />

Resumo: O objetivo do presente artigo foi identificar a estrutura lexical mais significativa na obra de Viktor Frankl Em busca de<br />

sentido: um psicólogo no campo de concentração. O corpus do texto foi analisado por meio do software ALCESTE (Análise Lexical<br />

Contextual de um Conjunto de Segmentos de Texto), um método computacional que se propõe a decompor um texto a fim de<br />

obter as estruturas mais significativas. Os significados encontrados foram divididos em três classes subdividi<strong>da</strong>s em dois eixos:<br />

Factici<strong>da</strong>de e Posicionamento Psicoexistencial dos Prisioneiros. Por meio dessa análise foi possível identificar as palavras mais<br />

características utiliza<strong>da</strong>s por Frankl na sua narrativa acerca <strong>da</strong> vivência do prisioneiro no campo de concentração. Os resultados<br />

foram discutidos com base nos direitos humanos e na logoterapia e análise existencial.<br />

Palavras-chave: Existencialismo; Prisioneiros; Historici<strong>da</strong>de; Léxico.<br />

Abstract: The aim of this paper was to identify the lexical structure more significant in the work of Viktor Frankl’s Man’s Search<br />

for Meaning. The text corpus was analyzed by the software ALCESTE (Lexical analysis by context of a set of text segments), a<br />

computational method that aims to decompose a text in order to obtain the most significant structures. The meanings found<br />

were divided into three classes subdivided into two axes: Facticity and Psycho-existential Positioning of Prisoners. By this analysis<br />

it was possible to identify the most typical words used by Frankl in his narrative about the experience of the prisoner in a<br />

concentration camp. The results were discussed based on human rights and logotherapy and existential analysis.<br />

Keywords: Existentialism; Prisoners; Historicity; Lexicon.<br />

Resumen: El objetivo de este trabajo fue identificar la estructura léxica más importante en la labor de búsque<strong>da</strong> de Viktor<br />

Frankl en busca de sentido: un psicólogo en el campo de concentración. La recopilación del texto fue analizado por el software<br />

ALCESTE (Análisis léxico por el contexto de un conjunto de segmentos de texto), un método computacional que tiene como objetivo<br />

descomponer un texto con el fin de obtener las estructuras más importantes. Los significados que se encuentran divididos<br />

en tres categorías, subdividi<strong>da</strong>s en dos ejes: factici<strong>da</strong>d y posicionamiento psico-existencial de los reclusos. Mediante este<br />

análisis se pudo identificar las palabras más típicas utiliza<strong>da</strong>s por Frankl en su relato sobre la experiencia de los prisioneros<br />

en un campo de concentración. Los resultados fueron discutidos con base en los derechos humanos y en la logoterapia y análisis<br />

existencial.<br />

Palabras-clave: Existencialismo; Reclusos; Historici<strong>da</strong>d; Lexico.<br />

“Nossa geração é realista porque chegamos a conhecer o<br />

ser humano como ele de fato é. Afinal, ele é aquele ser que<br />

inventou as câmaras de gás de Auschwitz; mas ele é também<br />

aquele ser que entrou naquelas câmaras de gás de cabeça<br />

ergui<strong>da</strong>, tendo nos lábios o Pai Nosso ou o Shemá Yisrael”<br />

(Frankl, 2010)<br />

Introdução<br />

Viktor Frankl (1905-1997) é considerado como o fun<strong>da</strong>dor<br />

<strong>da</strong> Logoterapia e Análise Existencial, abor<strong>da</strong>gem<br />

psicoterápica desenvolvi<strong>da</strong> em Viena, posterior à<br />

Psicanálise de Freud e à Psicologia Individual de Adler<br />

(Lukas, 1989). Por um lado, trata <strong>da</strong> busca de significado<br />

para a vi<strong>da</strong> como motivador primário do ser humano; por<br />

outro, as possibili<strong>da</strong>des de decaimento psíquico por ocasião<br />

<strong>da</strong> frustração existencial. Sua teoria foi constituí<strong>da</strong><br />

na primeira metade do século XX, com sóli<strong>da</strong>s bases filosóficas<br />

e mediante as experiências clínicas com jovem em<br />

situação de risco (Frankl, 2006). Mas, inequivocamente,<br />

suas ideias foram corrobora<strong>da</strong>s com suas vivências como<br />

prisioneiro comum em quatro campos de concentração<br />

nazistas durante a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial.<br />

Após a sua soltura, Frankl ditou em nove dias o livro<br />

Ein Psycholog erlebt <strong>da</strong>s Konzentrationslage (“Um psicólogo<br />

no campo de concentração”), que trata <strong>da</strong> sua vivência<br />

como prisioneiro comum, sob o número 119.104, e <strong>da</strong> des-<br />

206


Análise <strong>da</strong> Narrativa de Viktor Frankl acerca <strong>da</strong> Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração<br />

crição dos aspectos psicológicos e existenciais dos demais<br />

encarcerados. Esse livro foi considerado por Karl Jaspers<br />

como “um dos poucos grandes livros <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de”<br />

(Garcia Pintos, 2007). Gordon Allport, por ocasião do prefácio<br />

<strong>da</strong> edição americana do referido livro, concebe que<br />

“(...) é uma obra-prima de narrativa dramática focaliza<strong>da</strong><br />

nos mais profundos problemas humanos” (Frankl, 2010).<br />

Já Cal<strong>da</strong>s e Calheiros (2012), tecendo comentários sobre<br />

esse autor, afirmam que:<br />

207<br />

sua experiência como prisioneiro de campos de<br />

concentração serviria, assim, para comprovar que o<br />

ser humano é portador – além <strong>da</strong>s dimensões física<br />

e psíquica –, de uma dimensão mais abrangente que<br />

pode dotá-lo de uma surpreendente força de resistência<br />

(p. 93).<br />

Dessa forma, considerando a relevância desse livro<br />

no âmbito <strong>da</strong> psicologia humanista-existencial, o objetivo<br />

do presente artigo foi o de realizar uma análise lexical<br />

com o intuito de identificar as estruturas mais significativas<br />

desse texto. Antes de apresentar o material,<br />

que foi objeto de análise, torna-se relevante tecer alguns<br />

comentários acerca de alguns aspectos teóricos desenvolvidos<br />

pelo autor em foco, o que será apresentado no<br />

tópico que se segue.<br />

1. Logoterapia e Análise Existencial<br />

A Logoterapia é defini<strong>da</strong> como uma psicoterapia centra<strong>da</strong><br />

no sentido <strong>da</strong> existência, já que a palavra grega logos<br />

corresponde a sentido e direção e therapeía deriva-<br />

-se do verbo therapeúo, prestar cui<strong>da</strong>dos médicos, tratar<br />

(Liddell & Scott, 1983). Dessa forma, constitui-se em uma<br />

forma de tratar por meio do sentido. Essa primeira acepção<br />

refere-se a um sistema de cura, mas de forma geral<br />

sua fun<strong>da</strong>mentação constitui-se de três eixos básicos: a<br />

liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade, a vontade de sentido e o sentido<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> (Lukas, 1989). A liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade constitui o<br />

eixo antropológico, que pressupõe uma liber<strong>da</strong>de de escolha<br />

apesar dos condicionamentos externos e internos.<br />

Dessa maneira, o ser humano não seria livre dos condicionamentos,<br />

mas em última instância poderia decidir o que<br />

irá ser no próximo instante (Frankl, 1978, 1989a, 1989b).<br />

O segundo eixo corresponde à vontade de sentido.<br />

Segundo essa concepção teórica, o ser humano seria motivado<br />

por um desejo de configurar sentidos e valores<br />

em sua existência, isto é, em to<strong>da</strong>s as suas experiências<br />

no mundo. Para Frankl (1989a, 2010), essa motivação se<br />

constitui como um fenômeno primário e como o principal<br />

fator de proteção <strong>da</strong> saúde mental. Por fim, o terceiro<br />

eixo é aquele que corresponde ao sentido <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, ou<br />

seja, a visão filosófica do mundo. Para essa perspectiva,<br />

ao contrário <strong>da</strong> visão niilista, na vi<strong>da</strong> há sempre um sentido<br />

a ser desvelado, latente nas situações, e nessa busca<br />

a consciência intuitiva (Gewissen) seria o órgão que rastreia<br />

as possibili<strong>da</strong>des de sentido.<br />

A outra característica <strong>da</strong> teoria de Frankl (1989a, 1990)<br />

é a análise existencial, que se constitui como um método<br />

antropológico de pesquisa. Segundo o autor, não há nenhuma<br />

explicação ou síntese <strong>da</strong> existência, já que “(...) a<br />

pessoa também se explica a si mesma: se explica, se desdobra<br />

se desenvolve no transcurso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>” (Frankl, 1990,<br />

p. 63). Dessa maneira, o próprio ser humano em última<br />

instância lê na vi<strong>da</strong>, ou seja, explica-se a si mesmo, sendo<br />

o papel <strong>da</strong> análise existencial compreender a existência<br />

em suas possibili<strong>da</strong>des de ser no mundo bem como em<br />

seus desdobramentos.<br />

Destarte, a logoterapia como uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de<br />

análise existencial pode ser classifica<strong>da</strong> como uma<br />

Geisteswissenschaft, ou seja, uma ciência do espírito<br />

(Dilthey, 1989), por esse motivo preocupa-se com os fenômenos<br />

especificamente humanos. Nesse sentido, em sua<br />

ontologia dimensional, atém-se em compreender quem é<br />

o homem, advogando que o ser humano é muito mais do<br />

que a sua dimensão psicofísica, constituído também por<br />

uma dimensão dos fenômenos especificamente humanos,<br />

denomina<strong>da</strong> de noológica. Essa dimensão define a sua<br />

ver<strong>da</strong>deira humani<strong>da</strong>de, correspondendo à preocupação<br />

com valores (a ética e a estética), os atos intencionais, a<br />

criativi<strong>da</strong>de, o humor, o senso religioso, a preocupação<br />

com o sentido e todos os atos que diferenciam os homens<br />

dos animais (Lukas, 1989).<br />

Frankl (1989a) compreende que o principal fenômeno<br />

humano é a vontade de configurar um sentido para a<br />

vi<strong>da</strong>, que se constitui como um desejo de realizar valores<br />

durante a sua existência finita e limita<strong>da</strong> no tempo e<br />

no espaço, tornando-se responsável por algo ou alguém.<br />

Destarte, esse autor apregoa que o ser humano quando<br />

frustrado na sua busca de sentido, pode ocorrer uma sensação<br />

de vazio existencial, resultante <strong>da</strong> carência de valores<br />

existenciais. Essa sensação constitui-se como uma<br />

neurose coletiva nas socie<strong>da</strong>des industriais, por esse<br />

motivo, o homem atual necessita extrair sentido na sua<br />

relação com o mundo, posto que não receberia mais os<br />

valores por meio <strong>da</strong> tradição.<br />

Para a logoterapia o homem comum, por meio de sua<br />

“autocompreensão ontológica pré-reflexiva”, concebe três<br />

vias de encontro de sentido na vi<strong>da</strong>: os valores vivenciais,<br />

criativos e atitudinais. O primeiro é caracterizado como<br />

as vivências com a natureza e/ou com um tu, o segundo<br />

é a quali<strong>da</strong>de de criar algo para o mundo, como uma<br />

obra artística ou científica e está, em geral, relacionado<br />

com a capaci<strong>da</strong>de de trabalhar. O terceiro vincula-se à<br />

postura perante uma situação imutável, ou seja, aquela<br />

característica humana de transformar um sofrimento em<br />

uma realização ou conquista, que geralmente está associa<strong>da</strong><br />

com a capaci<strong>da</strong>de de suportar o sofrimento inevitável<br />

(Frankl, 1989a).<br />

Para esse autor o mundo é constituído por valores,<br />

sendo esses considerados como objetos dignos de inten-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

cionali<strong>da</strong>de, ou seja, os valores transcendem a própria<br />

esfera do ser humano. Por esse motivo, “a logoterapia se<br />

baseia em afirmações sobre valores tomados como fatos,<br />

não em julgamentos sobre fatos tomados como valores”<br />

(Frankl, 2011, p. 92). Nessa perspectiva, a realização<br />

dos valores decorre <strong>da</strong> concepção de que a pessoa é um<br />

ente aberto para o mundo, que é sempre um ser em relação<br />

a algo. A essa capaci<strong>da</strong>de de sair de sua própria<br />

esfera para se lançar para o mundo, Frankl denominou<br />

de autotranscendência, ou seja, aquela capaci<strong>da</strong>de<br />

de voltar-se para algo ou alguém além de si mesmo<br />

(Frankl, 1989a, 1978).<br />

Outra característica antropológica é o autodistanciamento<br />

que se constitui como uma capaci<strong>da</strong>de humana<br />

de se afastar dos condicionamentos internos ou externos.<br />

Segundo o próprio autor, “as autênticas facul<strong>da</strong>des<br />

humanas ancestrais <strong>da</strong> autotranscendência e do autodistânciamento,<br />

tal como afirmo nos últimos anos, foram verifica<strong>da</strong>s<br />

e convali<strong>da</strong><strong>da</strong>s de forma existencial no campo<br />

de concentração” (Frankl, 2006, p. 86).<br />

Frankl (2010) considera que suas concepções foram<br />

vali<strong>da</strong><strong>da</strong>s de forma vivencial durante a Segun<strong>da</strong> Guerra<br />

Mundial. Para tanto, utiliza-se <strong>da</strong> perspectiva fenomenológica<br />

a qual define <strong>da</strong> seguinte maneira:<br />

a fenomenologia é uma tentativa de descrição do modo<br />

como o ser humano entende a si próprio, do modo<br />

como ele próprio interpreta a própria existência, longe<br />

de padrões preconcebidos de explicação, tais como<br />

os forjados no seio <strong>da</strong>s hipóteses psicodinâmicas ou<br />

socioeconômicas (Frankl, 2011, p. 16).<br />

Destarte, o relato sobre suas vivências como prisioneiro<br />

nos campos de concentração constitui uma forma<br />

de vali<strong>da</strong>ção existencial <strong>da</strong>s suas próprias concepções<br />

acerca do ser humano. Torna-se pertinente nesse momento<br />

apresentar, de forma sucinta, o conteúdo do seu<br />

manuscrito autobiográfico, o que será descrito a seguir.<br />

2. O Campo de Concentração<br />

Viktor Frankl, por ser de origem ju<strong>da</strong>ica, foi deportado<br />

para o gueto de Theresienstadt junto com a sua família<br />

(os pais e sua esposa). Esse local era considerado a porta<br />

de entra<strong>da</strong> para os campos de extermínio e nele permaneceu<br />

durante vinte e cinco meses até ser transferido, em<br />

outubro de 1944, para Auschwitz-Birkenau na Polônia<br />

onde recebeu o número 119.104. O lema desse campo era:<br />

Arbeit macht frei, o trabalho liberta (Herrera, 2007), o que<br />

não se constituía apenas como uma medi<strong>da</strong> disciplinar,<br />

mas como uma tortura psicológica. Outros campos nos<br />

quais esse autor esteve interno foram as dependências de<br />

Dachau: Kaufering e Turkhein, onde permaneceu até o<br />

dia 27 de abril de 1945, quando foi libertado por ocasião<br />

do término <strong>da</strong> guerra (Garcia Pintos, 2007).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012<br />

Thiago A. A. Aquino<br />

Pode-se constatar que a narrativa de Viktor Frankl<br />

(2010) decorre <strong>da</strong> sua vivência nos campos de Auschwitz,<br />

Dachau e Theresienstadt como prisioneiro comum, já que<br />

o mesmo foi torturado e sobreviveu à custa do trabalho<br />

forçado em escavações e construções de ferrovias. O autor,<br />

em sua narrativa, propõe-se a responder à seguinte<br />

questão: “de que modo se refletia na mente do prisioneiro<br />

a vi<strong>da</strong> cotidiana no campo de concentração?” (Frankl,<br />

2010, p. 15). Dessa forma, objetivou compreender as atitudes<br />

dos cárceres mediante os fatos que causaram uma<br />

experiência psicológica (Frankl, 2010).<br />

Por ocasião <strong>da</strong> sua reclusão e por meio de uma autoobservação<br />

e <strong>da</strong> observação dos seus companheiros de<br />

reclusão, pôde identificar três fases distintas pelas quais<br />

os internos estruturaram suas experiências: Choque de<br />

entra<strong>da</strong>, fase de a<strong>da</strong>ptação e fase <strong>da</strong> soltura (Frankl, 1990,<br />

2010). A primeira fase, o choque <strong>da</strong> entra<strong>da</strong>, se caracteriza<br />

pelo contato intersubjetivo dos prisioneiros novatos<br />

com os antigos bem como com os guar<strong>da</strong>s e os coman<strong>da</strong>ntes<br />

do campo. A recepção não é amistosa e logo os<br />

prisioneiros abandonam possíveis ilusões, que no caso<br />

de Frankl seria o de conservar um manuscrito científico.<br />

Decorre <strong>da</strong>í que o prisioneiro mu<strong>da</strong> de sua situação existencial<br />

pregressa para se deparar com uma perspectiva<br />

caracteriza<strong>da</strong> como “sem saí<strong>da</strong>”, próximo <strong>da</strong> sua morte e<br />

<strong>da</strong> morte de outros companheiros. Entretanto, nesse estágio<br />

o prisioneiro não teme a morte e a câmara de gás,<br />

tornando o suicídio um ato desnecessário.<br />

Enquanto a primeira fase é caracteriza<strong>da</strong> pelo pânico,<br />

a segun<strong>da</strong> é marca<strong>da</strong> pela indiferença. Na fase de<br />

a<strong>da</strong>ptação, o prisioneiro se torna apático, os sentimentos<br />

tornam-se embutidos, como um mecanismo de defesa<br />

<strong>da</strong>quela situação de extremo sofrimento. Por essa razão,<br />

não chegam a manifestar emoções tais como amarguras,<br />

indignações e desesperanças.<br />

Nesta fase de a<strong>da</strong>ptação, a vi<strong>da</strong> afetiva vai se reduzindo<br />

e a aspiração primordial é a sobrevivência, regredindo<br />

à vi<strong>da</strong> instintiva mais primitiva. Além <strong>da</strong> apatia, o prisioneiro<br />

é acometido por uma irritabili<strong>da</strong>de expressa por<br />

certo nível de agressão, o que Frankl (2010) atribui não<br />

apenas a uma origem psicológica, mas também à ausência<br />

de cafeína e nicotina. Mediante a situação sociológica<br />

em que se encontravam, não era incomum o sentimento<br />

de inferiori<strong>da</strong>de nos prisioneiros comuns, aqueles que<br />

não tinham privilégios.<br />

Embora tenham regredido ao estágio <strong>da</strong> luta pela sobrevivência,<br />

duas áreas de interesse se sobressaíam: a<br />

política e a religião. A primeira temática está vincula<strong>da</strong><br />

à esperança do fim <strong>da</strong> guerra, que nem sempre era verossímil;<br />

já a segun<strong>da</strong> surpreendia os prisioneiros recémchegados<br />

pela vitali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s preces e orações em lugares<br />

improvisados.<br />

Gra<strong>da</strong>tivamente os internos progrediam para um tipo<br />

de experiência <strong>da</strong> existência provisória, pois “o fato de<br />

que não exista um término <strong>da</strong> forma de existir no campo<br />

de concentração conduz à experiência de um futuro ine-<br />

208


Análise <strong>da</strong> Narrativa de Viktor Frankl acerca <strong>da</strong> Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração<br />

xistente” (Frankl, 1990, p. 207). Ocorre, portanto, uma<br />

per<strong>da</strong> <strong>da</strong> estrutura temporal, levando o prisioneiro a uma<br />

experiência de um futuro inexistente, o que, por conseguinte,<br />

o conduz a viver no imediatismo.<br />

Herrera (2007), ao comentar o relato de Frankl, resume<br />

em três aspectos a vi<strong>da</strong> anímica do prisioneiro:<br />

209<br />

1. A vi<strong>da</strong> onírica, como expressão <strong>da</strong>s aspirações e<br />

desejos dos presos;<br />

2. O silêncio do impulso e desejo sexual;<br />

3. A depreciação de tudo aquilo que não serve para<br />

conservar a vi<strong>da</strong>, que se expressou na falta, quase<br />

absoluta, de sentimentali<strong>da</strong>de ou falta de reação<br />

emotiva (p. 43).<br />

Para o recluso que perde a noção dos fins e de uma<br />

meta em sua existência, sucumbe à própria apatia, ou<br />

seja, não se preocupam mais com a higiene e com a alimentação,<br />

recusando-se a encarar o trabalho forçado e<br />

suportando com indiferença o castigo imposto. Sobre isso<br />

Frankl (1990) observa que:<br />

(...) A orientação a um ‘fim’ e a uma meta posta no<br />

futuro representa aquele apoio espiritual que tanto<br />

necessita o detento no campo de concentração, porque<br />

apenas esse apoio espiritual é capaz de preservar o<br />

homem para que não caia em mãos dos poderes do<br />

entorno social que imprimem caráter e que formam<br />

tipos, ou seja, para que não se deixe cair (p. 208).<br />

Frankl (2010) observa que em última instância o prisioneiro<br />

decidia que tipo de pessoa gostaria de se tornar,<br />

um recluso típico ou tomar uma postura alternativa.<br />

A essa atitude espiritual denominou de força de obstinação<br />

do espírito. O autor narra exemplos de prisioneiros<br />

que conseguiram, apesar <strong>da</strong> irritabili<strong>da</strong>de e apatia, uma<br />

superação <strong>da</strong>s condições internas e externas e passavam<br />

pelos barracões proferindo algumas palavras de conforto<br />

e oferecendo um pe<strong>da</strong>ço de pão. Nesses casos, pode-se<br />

afirmar que alguns dos prisioneiros ain<strong>da</strong> permaneceram<br />

humanos apesar <strong>da</strong>s condições desumanas, embora<br />

esse fato tenha ocorrido de forma escassa. Entretanto,<br />

para aqueles que conseguiram se posicionar com uma<br />

atitude livre, os campos lhes proporcionaram uma progressão<br />

moral e religiosa (Frankl, 1990). Para esse tipo<br />

de prisioneiro “nunca tinha considerado a vi<strong>da</strong> no campo<br />

de concentração como um mero episódio – para eles era<br />

mais, e se converteu, no auge de sua existência” (Frankl,<br />

1990, pp. 211-212).<br />

Por fim a terceira fase foi o <strong>da</strong> soltura, nela os prisioneiros<br />

ain<strong>da</strong> estão tomados pelo sentimento de despersonalização<br />

e tudo lhes parece um sonho, um simulacro de<br />

liber<strong>da</strong>de. Eles passam de um estado de tensão eleva<strong>da</strong><br />

para o de distensão, ou seja, ocorre uma descompressão<br />

repentina, o que seria prejudicial para a saúde mental<br />

(Frankl, 2010). Dois sentimentos atormentam os recém-<br />

libertos: a amargura e a decepção. Quando retornam para<br />

os antigos ambientes, as pessoas, de forma geral, reagem<br />

de maneira vaga ou superficial com relação ao sofrimento<br />

que tinham vivenciado, o que leva o sobrevivente ao<br />

seguinte questionamento: “para que serviu tanto sofrimento?”.<br />

Já a decepção estava relaciona<strong>da</strong> à sensação de<br />

desamparo quando não mais encontra o ente querido que<br />

tanto esperava reencontrar quando estava nos campos de<br />

concentração e que lhe <strong>da</strong>va esperanças, como expressou<br />

o ex-recluso: “Ai <strong>da</strong>quele em quem não existe mais a razão<br />

de suas forças no campo de concentração” (Frankl, 2010,<br />

p. 118). Torna-se fun<strong>da</strong>mental um acompanhamento psicoterápico<br />

para os ex-detentos.<br />

Tendo em vista a narrativa do prisioneiro 119.104,<br />

torna-se relevante analisar essa obra de uma forma mais<br />

detalha<strong>da</strong>, tanto para a compreensão <strong>da</strong> experiência dos<br />

prisioneiros do campo de concentração, como para a compreensão<br />

dos aspectos teóricos <strong>da</strong> logoterapia e análise<br />

existencial. Sendo assim, o objetivo do presente trabalho<br />

foi identificar os campos lexicais ou contextos semânticos<br />

que organizam a narrativa de Viktor Frankl acerca<br />

de suas vivências e análises do prisioneiro nos Campos<br />

de Concentração Nazistas.<br />

2. Método<br />

2.1 Material<br />

O corpus analisado foi a primeira parte do livro<br />

Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração,<br />

extraído <strong>da</strong> vigésima nona edição <strong>da</strong> versão em<br />

português editado pela Sino<strong>da</strong>l e Vozes. Esse manuscrito<br />

foi produzido por Viktor Frankl após a guerra, além de se<br />

constituir como uma narrativa autobiográfica que descreve<br />

a psicologia do prisioneiro nos campos de concentração<br />

por ocasião <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial. Para efetuar<br />

a análise do corpus, este foi transcrito para um documento<br />

do Word for windows e salvo no formato texto-txt.<br />

2.2 Procedimentos<br />

Com o objetivo de realizar uma análise de <strong>da</strong>dos textuais<br />

do corpus escolhido, foi utilizado o programa computacional<br />

ALCESTE (Analyse de lexémes coocurrent <strong>da</strong>ns<br />

les ennoncés simples d’un texte), versão 4.7, que se constitui<br />

como uma via para uma análise textual, identificando<br />

as classes de palavras emergentes de um discurso<br />

(Reinert, 1990). Dentre outras finali<strong>da</strong>des, esse programa<br />

se presta também a analisar obras literárias em seus<br />

contextos semânticos. Para tanto, parte-se do princípio<br />

de que as pessoas se expressam por meio de um universo<br />

lexical que representa suas estruturas mentais.<br />

De forma específica, o programa agrupa as palavras<br />

por radicais calculando a sua frequência no corpus do<br />

texto para, em segui<strong>da</strong>, prover as uni<strong>da</strong>des de contex-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

to elementares (UCE). Dessa forma, “é a partir do pertencimento<br />

<strong>da</strong>s palavras de um texto a uma UCE, que o<br />

programa ALCESTE vai estabelecer as matrizes a partir<br />

<strong>da</strong>s quais será efetuado o trabalho de classificação”<br />

(Reinert, 1998, p. 17). Para tanto, o programa utiliza-se<br />

do cálculo do qui-quadrado para identificar tanto os vocábulos<br />

mais característicos que compõem uma classe<br />

com a força de associação entre as palavras e a classe.<br />

Nesse sentido, foi realiza<strong>da</strong> uma classificação hierárquica<br />

descendente.<br />

2.3 Resultados<br />

Segundo Kronberger e Wagner (2002), a análise com<br />

ALCESTE tem por objetivo distinguir classes de palavras<br />

que representam diferentes formas de pensar acerca de<br />

uma temática específica. No caso <strong>da</strong> presente pesquisa,<br />

a temática foi a narrativa de Viktor Frankl acerca <strong>da</strong> experiência<br />

dos prisioneiros nos campos de concentração.<br />

A análise dos resultados foi obti<strong>da</strong> por meio do corpus<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012<br />

Thiago A. A. Aquino<br />

de uma uni<strong>da</strong>de de contexto inicial (UCI), constituí<strong>da</strong><br />

pela vivência de Frankl descrita no livro Em busca<br />

de sentido. Quando processado pelo software ALCESTE<br />

apresentou uma divisão do corpus em 2101 uni<strong>da</strong>des<br />

de contexto elementar (UCE) contendo 8989 palavras,<br />

formas ou vocábulos distintos e 74% <strong>da</strong>s UCE foram<br />

analisa<strong>da</strong>s, o que se considera satisfatório visto que a<br />

solução aceitável requer no mínimo 70% (Kronberguer<br />

& Wagner, 2002). O ALCESTE organizou as ideias mais<br />

relevantes <strong>da</strong> obra analisa<strong>da</strong> em três classes, dispostas<br />

em dois eixos principais.<br />

A Figura 1 apresenta o Dendograma que representa<br />

as classes que emergiram após a análise lexical. Ele<br />

proporciona a visualização, de forma decrescente, <strong>da</strong>s<br />

palavras mais significativas em função <strong>da</strong>s classes, que<br />

são concebi<strong>da</strong>s como contextos semânticos. Tendo em<br />

vista que a força de associação entre o vocábulo e a classe<br />

é representa<strong>da</strong> por meio do cálculo do qui-quadrado,<br />

consideraram-se apenas as palavras que apresentaram<br />

χ2 ≥ 3,84 (p = 0,05).<br />

210


Análise <strong>da</strong> Narrativa de Viktor Frankl acerca <strong>da</strong> Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração<br />

Como se pode observar, o primeiro eixo é composto<br />

por 64,4 % do conteúdo analisado e está relacionado com<br />

a factici<strong>da</strong>de dos prisioneiros no campo de concentração,<br />

ou seja, as condições em que os prisioneiros se encontravam<br />

imersos e sem a participação <strong>da</strong> vontade dos mesmos.<br />

A classe 1, que compõe esse eixo, foi composta por palavras<br />

e radicais no intervalo de χ2 = 27 [barrac+(barraca,<br />

barracão, barracas, barracões)] a χ2 = 7,7 [pão; fri+(fria,<br />

frieza, frio)]. Pode-se atribuir a essa classe a denominação<br />

de destino, o que se constitui por condições externas e<br />

internas as quais não são passíveis de escolha por parte<br />

do prisioneiro. A seguir são apresenta<strong>da</strong>s algumas UCE<br />

representativas dessa classe:<br />

211<br />

(...) cansaço, o prato de sopa na mão, quando entrou<br />

um companheiro correndo (...) aconteceu? A passos<br />

lentos os companheiros se arrastam em direção ao<br />

(...) repente saio do barracão rumo à enfermaria para<br />

avisar o meu colega (...) frente ao pequeno fogão do<br />

barracão, cui<strong>da</strong>ndo do fogo naquelas horas (...) parar<br />

meu colega e amigo P. ele foi man<strong>da</strong>do para o outro<br />

lado? Sim (...) dia seguinte o capo me contrabandeou<br />

para outro comando de trabalho (...) fui acor<strong>da</strong>do pelo<br />

companheiro que dormia ao meu lado a gemer e (...)<br />

amontoavam cerca de cinquenta companheiros com<br />

febre alta, delirantes (...) galpão a me man<strong>da</strong>r para<br />

a enfermaria central a fim de receber (...) enfermos.<br />

Os destinados para o transporte, aqueles corpos consumidos<br />

(...) tentaria arranjar algum pe<strong>da</strong>ço de pão<br />

para comermos nos dias seguintes (...) dois doentes<br />

de tifo exantemático, dois enfermeiros, um medico. E<br />

já (...) pe<strong>da</strong>ço de pão no bolso <strong>da</strong> capa, com os dedos<br />

desprovidos de luvas e (...) no chão, enquanto os demais<br />

eram forçados a ficar de pá horas a fio (...) uma voz<br />

de comando: grupo de trabalho weingut, marchar! esquer<strong>da</strong>,<br />

2 (...) gola <strong>da</strong> capa o companheiro que marcha<br />

ao meu lado murmura de repente (...) quem trabalhei<br />

lado a lado, por semanas a fio, no local <strong>da</strong> construção<br />

(...) solta sua língua, e começa a contar coisas, horas e<br />

horas a fio (...) campos menores, sentados, acocorados<br />

ou de pé, no chão de terra (...)<br />

Já o segundo eixo foi composto por duas classes, que<br />

concentraram 35,3% do conteúdo, referindo-se ao posicionamento<br />

psico-existencial dos prisioneiros. Na classe 2<br />

predomina a referência às reações e posicionamentos dos<br />

prisioneiros e abarcou palavras no intervalo de χ2 = 96,5<br />

[sofri+(sofrimento, sofrimentos)] a χ2 =18,5 [fat+(fatais,<br />

fatal, fato, fator)]; já a classe 3 agrupa ideias sobre as reações<br />

psíquicas dos mesmos. Essa última abrange os vocábulos<br />

de χ2 = 169,7 [psicolog+(psicologia, psicológica,<br />

psicológicas, psicológico, psicológicos, psicólogo)] a χ2 =<br />

22,9 [higien+ (higiene, higiênicas); condic+(condição,<br />

condições)]. Para ilustrar o contexto do discurso referente<br />

à classe 2, são apresentados os seguintes fragmentos<br />

do texto analisado:<br />

(...) justamente uma situação exterior extremamente<br />

difícil que <strong>da</strong> à pessoa (...) somente uma vi<strong>da</strong> ativa<br />

tem sentido, em <strong>da</strong>ndo a pessoa a oportuni<strong>da</strong>de (...)<br />

uma chance de se realizar criativamente e em termos<br />

de experiência (...) falando em termos filosóficos, se<br />

poderia dizer que se trata de fazer (...) uma única resposta<br />

correta à pergunta conti<strong>da</strong> na situação concreta<br />

(...) gozo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, que permite à pessoa a realização<br />

na experiência do que (...) caracteriza ca<strong>da</strong> pessoa<br />

humana e dá sentido à existência do individuo (...)<br />

entorpece em semelhante situação interior e exterior?<br />

para não falar (...) espiritual dotado de liber<strong>da</strong>de interior<br />

e valor pessoal. Ela (...) concentração se pode<br />

privar a pessoa de tudo, menos <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de não se<br />

pode perder. Sem duvi<strong>da</strong>, elas poderiam dizer que<br />

foram dignas (...) e belo, na experiência <strong>da</strong> arte ou <strong>da</strong><br />

natureza. Também há sentido (...) como testemunho<br />

para o fato de que a pessoa interiormente pode ser<br />

(...) existência também não consegue viver em função<br />

de um alvo. ela também (...) esqueci<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong>des<br />

de influência criativa sobre a reali<strong>da</strong>de (...)<br />

que ele somente pode existir propriamente com uma<br />

perspectiva futura (...) exigência, e com ela o sentido<br />

<strong>da</strong> existência, altera-se de pessoa para (...) cumprir<br />

uma tarefa. Havia muito sofrimento esperando ser<br />

resgatado por (...) concentração foram de natureza<br />

individual e coletiva. As tentativas (...)<br />

Por sua vez a classe 3, Reações Psicológicas, pode<br />

ser ilustra<strong>da</strong> por meio dos seguintes extratos do texto de<br />

Viktor Frankl:<br />

(...) importa na medi<strong>da</strong> em que tem um número de<br />

prisioneiro, representando (...) novo a alegrar-se. Sob<br />

o ponto de vista psicológico, pode-se chamar de (...)<br />

segun<strong>da</strong> fase dentro <strong>da</strong>s reações anímicas do recluso<br />

no (...) terceira fase de reações anímicas do recluso, ou<br />

seja, a psicologia de (...) natural e, conforme ain<strong>da</strong> se<br />

mostrara, típica naquelas circunstancias (...) necessi<strong>da</strong>des<br />

mais primitivas fá-lo experimentar a satisfação<br />

<strong>da</strong>s (...) campo de concentração naturalmente apresentava<br />

muitos aspectos (...) seja, de enfrentar decisões.<br />

A apatia tem ain<strong>da</strong> outras causas e não (...) psicológica<br />

e explicação psicopatológica dos traços típicos com que<br />

a (...) sobre a capaci<strong>da</strong>de de resistência dos prisioneiros<br />

se manifestou (...) apatia dos outros, e mais ain<strong>da</strong> diante<br />

do perigo em que ela coloca a (...) queremos detalhar<br />

a seguir. A observação psicológica dos reclusos, no<br />

(...) ex-prisioneiro 119104 tenta descrever agora o que<br />

vivenciou como (...) nós, prisioneiros, já atingíramos<br />

este ponto no curso dos eventos (...) segundo estágio de<br />

suas reações psíquicas, não mais tenta ignorar a (...)<br />

quanti<strong>da</strong>des de calorias. O alivio psíquico e produzido<br />

por ilusões que (...) preponderância dos instintos primitivos<br />

e a peremptória necessi<strong>da</strong>de de (...) aquilo que<br />

não serve a este interesse exclusivo. Assim se explica<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

a (...) <strong>da</strong>s circunstâncias e a despeito de sua delica<strong>da</strong><br />

sensibili<strong>da</strong>de (...)<br />

Em síntese, <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> estrutura lexical <strong>da</strong> narrativa<br />

de Frankl emergiram dois polos: por um lado, a condição<br />

cotidiana que se configurou como o destino, e, por<br />

outro, as reações psíquicas e a mobilização <strong>da</strong> dimensão<br />

noológica dos prisioneiros.<br />

3. Discussão<br />

Viktor Frankl reconhece que a sua descrição como<br />

um observador participante poderia ter o viés subjetivo<br />

por se tratar de uma experiência pessoal (Frankl, 2010).<br />

Por esse motivo, faz a seguinte consideração: “(...) deixarei<br />

que outros destilem mais uma vez o que está sendo apresentado,<br />

tirando do estrato dessas experiências subjetivas<br />

suas conclusões impessoais em forma de teorias objetivas”<br />

(Frankl, 2010, p. 21). Seguindo essa recomen<strong>da</strong>ção, realizou-se<br />

uma análise textual do seu relato autobiográfico.<br />

Considerou-se que o objetivo foi atingido tendo em vista<br />

que, por meio de uma análise lexical, encontrou-se uma<br />

estrutura <strong>da</strong> narrativa desse autor.<br />

Diferentemente de outros autores como Levi (1990),<br />

que se preocuparam em descrever os horrores dos campos<br />

de concentração, Frankl coloca os acontecimentos<br />

nos campos como o pano de fundo para compreender<br />

o vivido dos cárceres, posto que o seu foco foi a experiência<br />

psicológica dos prisioneiros comuns. Para tanto,<br />

o autor utiliza-se de um método que supera a duali<strong>da</strong>de<br />

sujeito-objeto, ou seja, é o de um observador participante<br />

utilizando-se de uma postura fenomenológica ao<br />

analisar o vivido de sua própria consciência. Cabe agora<br />

analisar os eixos e as classes que emergiram; o que será<br />

desenvolvido a seguir.<br />

Eixo I - factici<strong>da</strong>de dos prisioneiros<br />

O eixo I foi composto por uma classe, a qual se constituiu<br />

como o maior poder explicativo desse dendograma<br />

(64,7% do total). As palavras de maior associação dessa<br />

classe referem-se ao destino sociológico dos prisioneiros,<br />

ou seja, o contexto ambiental que não é passível de<br />

mu<strong>da</strong>nça. A estrutura revela-se de forma coerente com<br />

a proposta do narrador do texto, em suas próprias palavras<br />

ele faz a seguinte consideração: “apresentaremos os<br />

fatos apenas na medi<strong>da</strong> em que eles desencadeavam uma<br />

experiência na própria pessoa (...)” (Frankl, 2010, p. 19).<br />

Os “fatos” representam no dendograma o primeiro eixo,<br />

ou seja, o cotidiano, que se associou com o segundo eixo<br />

Posicionamento Psicoexistencial dos Prisioneiros. Frankl<br />

(1989a) considerou que em última instância a liber<strong>da</strong>de<br />

seria a escolha <strong>da</strong>s potenciali<strong>da</strong>des do vir-a-ser, como<br />

por exemplo, uma atitude pessoal perante a conjuntura<br />

de condicionamentos. Assim, haveria duas possibili<strong>da</strong>des<br />

de posicionar-se perante a factici<strong>da</strong>de do campo de<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012<br />

Thiago A. A. Aquino<br />

concentração, uma é a de ser um prisioneiro típico e a<br />

outra é a de tomar uma atitude livre perante as condições<br />

impostas.<br />

Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos<br />

(ONU, 1948) tenha sido proclama<strong>da</strong> posterior à Segun<strong>da</strong><br />

Guerra, considera-se pertinente analisar o primeiro eixo<br />

<strong>da</strong> estrutura léxica, Factici<strong>da</strong>de dos Prisioneiros, a ótica<br />

dos artigos mais violados durante a permanência dos reclusos<br />

nos campos de concentração. Por exemplo, o Artigo<br />

I reza que “To<strong>da</strong>s as pessoas nascem livres e iguais em<br />

digni<strong>da</strong>de e direitos. São dota<strong>da</strong>s de razão e consciência<br />

e devem agir em relação umas às outras com espírito de<br />

fraterni<strong>da</strong>de”. O direito à liber<strong>da</strong>de foi cerceado tendo em<br />

vista que os prisioneiros se encontravam destituídos de<br />

escolha e se consideravam joguetes do próprio destino.<br />

Já o Artigo II prescreve que<br />

To<strong>da</strong> pessoa tem capaci<strong>da</strong>de para gozar os direitos<br />

e as liber<strong>da</strong>des estabelecidos nesta Declaração, sem<br />

distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo,<br />

língua, religião, opinião política ou de outra natureza,<br />

origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou<br />

qualquer outra condição.<br />

No campo de concentração as pessoas eram julga<strong>da</strong>s<br />

de acordo com a sua raça. A esse respeito Frankl (2010)<br />

concebeu que existem apenas duas raças, a <strong>da</strong>s pessoas<br />

decentes e a <strong>da</strong>s indecentes, independente do grupo em<br />

que as pessoas se encontrem. Apesar <strong>da</strong> perseguição étnico-religiosa<br />

os prisioneiros puderam expressar o sentimento<br />

religioso em lugares improvisados:<br />

O interesse religioso dos prisioneiros, na medi<strong>da</strong> em<br />

que surgia, era o mais ardente que se possa imaginar.<br />

Não era sem um certo abalo que os prisioneiros<br />

recém-chegados se surpreendiam pela vitali<strong>da</strong>de e<br />

profundi<strong>da</strong>de do sentimento religioso. O mais impressionante<br />

neste sentido devem ter sido as reações aos<br />

cultos improvisados, no canto de algum barracão ou<br />

num vagão de gado escuro e fechado, no qual éramos<br />

trazidos de volta após o trabalho em uma obra mais<br />

distante, cansados, famintos e passando frio em nossos<br />

trapos molhados (Frankl, 2010, p. 51).<br />

No Artigo III reza que “To<strong>da</strong> pessoa tem direito à vi<strong>da</strong>,<br />

à liber<strong>da</strong>de e à segurança pessoal.” Os prisioneiros que<br />

não serviam mais para o trabalho não tiveram direito a<br />

uma vi<strong>da</strong> digna, sendo encaminhados para a câmara de<br />

gás aqueles que não estavam aptos ao trabalho. Frankl<br />

(1989a) apregoa a digni<strong>da</strong>de e o valor incondicional <strong>da</strong><br />

pessoa humana e não os condicionam a sua capaci<strong>da</strong>de<br />

de produzir para a socie<strong>da</strong>de. O próprio Frankl (2006),<br />

por ocasião <strong>da</strong> autorização <strong>da</strong> eutanásia em pacientes<br />

psicóticos, alterou os laudos médicos com a intenção<br />

de salvar seus pacientes quando ain<strong>da</strong> podia atuar no<br />

Hospital Judeu.<br />

212


Análise <strong>da</strong> Narrativa de Viktor Frankl acerca <strong>da</strong> Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração<br />

No que se refere ao Artigo IV, “Ninguém será mantido<br />

em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico<br />

de escravos serão proibidos em to<strong>da</strong>s as suas formas”, os<br />

prisioneiros foram tratados como escravos, já que eram<br />

obrigados a trabalhos forçados a fim de sobreviverem,<br />

restritos a uma alimentação com poucas calorias. Por<br />

fim, no Artigo V encontra-se escrito que “Ninguém será<br />

submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel,<br />

desumano ou degra<strong>da</strong>nte”. Segundo o relato de Frankl<br />

(2010), ao chegar ao campo os prisioneiros tinham todos<br />

os pertences subtraídos, raspado todo pelo do corpo e<br />

chicoteados sem nenhuma razão.<br />

Frankl (1990) compreendeu em sua análise existencial<br />

que o ser humano não é livre de condições. O autor<br />

em foco considera que o ser humano não está no vácuo,<br />

mas se encontra sempre em relação a algo que o condiciona.<br />

De fato, o homem como ser-no-mundo está enraizado<br />

na existência, sempre está em relação a algo ou alguém.<br />

Entretanto, a forma de se relacionar com o mundo<br />

no campo de concentração foi desumanizante, pois<br />

os prisioneiros eram tratados como coisas. O Eixo I, de<br />

forma geral, enfatiza a vivência cotidiana do prisioneiro<br />

comum ao ser inserido em um processo de despersonalização.<br />

Apesar <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de, os prisioneiros<br />

ain<strong>da</strong> se indignavam com as injustiças acometi<strong>da</strong>s sem<br />

nenhuma razão, o que remete ao segundo eixo.<br />

Eixo II - posicionamento psicoexistencial<br />

Esse eixo é composto por duas classes: atitude singular<br />

dos prisioneiros e reações psicológicas. Enquanto a<br />

segun<strong>da</strong> classe explicou 23,7% do total, a terceira apresentou<br />

o menor poder explicativo do dendograma (11,6%<br />

do total). Percebe-se que na classe 2 predominaram conteúdos<br />

concernentes à dimensão noológica, enquanto na<br />

classe 3 prevaleceram as palavras que referenciam o estado<br />

anímico dos prisioneiros. Frankl (2010) destaca, por<br />

um lado, algumas características psíquicas, tais como a<br />

per<strong>da</strong> <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de (embotamento afetivo), a irritabili<strong>da</strong>de<br />

e o sentimento de inferiori<strong>da</strong>de do prisioneiro. Além<br />

<strong>da</strong> apatia, foi observado também o temor em tomar decisões,<br />

pois as consequências poderiam ser imprevisíveis.<br />

Por outro lado, o referido autor concebeu que há uma<br />

estranha relação dialética entre existência e factici<strong>da</strong>de,<br />

advogando que são “(...) dois momentos que se interdependem<br />

e se exigem reciprocamente. Estão sempre incrustados<br />

um no outro, razão pela qual só a força é que se pode<br />

separá-los” (Frankl, 1990, p. 96). Essa perspectiva corrobora<strong>da</strong><br />

por meio do significado do termo Ex-sistir, ou seja,<br />

sair de si mesmo e confrontar-se (Frankl, 1990).<br />

Para comprender a narrativa de Frankl, torna-se necessário<br />

compreendê-la no conjunto de sua obra científica.<br />

Destarte, pode-se considerar que esse manuscrito<br />

seja complementar ao livro que Frankl publica em 1946:<br />

Ärztliche Seelsorge, cura médica de almas, o qual estava<br />

escrevendo antes <strong>da</strong> sua internação nos campos e<br />

tentou reconstruí-lo no final <strong>da</strong> guerra quando contraiu<br />

213<br />

tifo exantemático. Nesse livro, o autor trata <strong>da</strong>s grandes<br />

temáticas de sua análise existencial, dentre elas a do sofrimento<br />

humano e as possíveis posturas perante a sua<br />

factici<strong>da</strong>de.<br />

A narrativa de Frankl sobre os campos de concentração<br />

torna-se uma vali<strong>da</strong>ção dos pressupostos filosóficos<br />

<strong>da</strong> logoterapia onde demonstra a capaci<strong>da</strong>de do espírito<br />

humano em resistir ao sofrimento quando se depara com<br />

uma situação limite. Nessa perspectiva, Frankl (1989a)<br />

conclui que sofrimento destituído de sentido pode levar<br />

ao desespero. Destarte, o papel do médico e também do<br />

psicoterapeuta seria aquele de consolar o homo patiens, ou<br />

seja, seguir o imperativo colocado no portal do Hospital<br />

Geral de Viena por seu fun<strong>da</strong>dor, o imperador José II: “salus<br />

et solatio aegrorum”, ou seja, “não só a cura, mas também<br />

a consolação dos doentes” (Frankl, 1990).<br />

Nesse sentido, o projeto fun<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> análise existencial<br />

desse autor foi o de reumanizar a medicina e a psicoterapia,<br />

pois quando o profissional tornar-se um técnico,<br />

perde de vista o caráter especificamente humano do seu<br />

paciente. Dessa maneira, o psicólogo deveria confrontar<br />

a capaci<strong>da</strong>de do paciente de se posicionar perante o seu<br />

psicofísico (factici<strong>da</strong>de), instância na qual a pessoa não<br />

pode eleger ou realizar escolhas. Isso significa que quando<br />

o ser humano se encontra com um sofrimento inevitável,<br />

pode escolher uma atitude perante a sua própria<br />

dor, encontrando um sentido por meio dos “valores atitudinais”<br />

(Frankl, 1990).<br />

Para tanto, o autor em foco acentua a capaci<strong>da</strong>de<br />

prospectiva do ser humano no campo de concentração,<br />

pois a experiência de três anos em Auschwitz e Dachau<br />

lhe ensinou que o mais relevante para a sobrevivência<br />

naquela situação era estar orientado para o futuro, para<br />

uma pessoa a ser encontra<strong>da</strong> ou um sentido a realizar<br />

após a guerra (Frankl, 1989b). Nessa perspectiva, o segundo<br />

eixo <strong>da</strong> análise apresentou uma associação entre<br />

as reações psíquicas e a atitude singular do prisioneiro.<br />

Frankl (1989b) apresenta o seguinte exemplo do que<br />

ocorrera no gueto de Theresienstadt:<br />

Foi publica<strong>da</strong> uma lista de com o nome dos cerca de<br />

mil jovens que na manhã seguinte seriam retirados do<br />

gueto. Quando amanheceu o dia, era do conhecimento<br />

geral que a livraria do gueto fora esvazia<strong>da</strong>. Ca<strong>da</strong> um<br />

<strong>da</strong>queles rapazes – que estavam condenados a morrer<br />

no campo de concentração de Auschwitz – pegara um<br />

par de livros do poeta, do romancista ou pensador<br />

preferido e o escondera na mochila (p. 27).<br />

Nesse sentido, demonstra a capaci<strong>da</strong>de dos prisioneiros<br />

de se posicionarem perante as suas últimas áreas<br />

de liber<strong>da</strong>de até o encontro com a morte. Em outros<br />

momentos, os prisioneiros expressaram os valores vivenciais<br />

quando contemplam o pôr do sol ou uma música<br />

do violino (Frankl, 2010). Nessa perspectiva, a<br />

análise semântica <strong>da</strong>s palavras que se associaram em<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

torno <strong>da</strong> classe 2 sugere as posturas e atitudes singulares<br />

dos prisioneiros, o que se torna possível mediante<br />

a força de resistência do espírito humano. Sobre isso<br />

comenta Frankl (1989b): “as pessoas acentuavam suas<br />

diferenças individuais. Vinha à luz a natureza animal<br />

do homem, mas acontecia o mesmo para a santi<strong>da</strong>de.<br />

A fome era a mesma, mas as pessoas eram diferentes”<br />

(p. 42). Herrera (2007) salienta que essa liber<strong>da</strong>de interior<br />

do prisioneiro não era uma liber<strong>da</strong>de-de (livre dos<br />

condicionamentos), mas uma liber<strong>da</strong>de-para (toma<strong>da</strong><br />

de posição apesar dos condicionamentos). Destarte, ao<br />

descrever a existência desnu<strong>da</strong> dos prisioneiros, segundo<br />

a narrativa do autor, pôde-se contatar que eles<br />

não eram apenas um joguete do próprio destino, mas<br />

que foi possível naquela situação tomar uma postura<br />

pessoal perante o psicofísico do prisioneiro, o que na<br />

análise se constituiu como a classe 2.<br />

Considerações finais<br />

O objetivo do presente artigo foi identificar a estrutura<br />

lexical mais significativa do livro Em busca de sentido:<br />

um psicólogo no campo de concentração, o que foi<br />

considerado plenamente alcançado. No entanto, faz-se<br />

necessário nesse momento elencar algumas limitações do<br />

estudo. Inicialmente considera-se que a análise foi feita<br />

por meio de uma tradução do alemão para o português.<br />

Assim, questiona-se se o significado semântico pode ter<br />

sido modificado ou mesmo que a tradução tenha sido<br />

um viés no presente estudo. Dessa forma, recomen<strong>da</strong>-se<br />

fortemente que outros estudos, ao utilizarem dessa mesma<br />

metodologia, possam se ater ao texto original em sua<br />

versão germânica.<br />

Outra questão a ser ressalta<strong>da</strong> é que o autor <strong>da</strong> narrativa<br />

tanto foi observador quanto objeto de observação, já<br />

que o mesmo não poderia se distanciar do contexto em<br />

que estava inserido. Considera-se que ele foi um observador<br />

participante, narrando também as próprias vivências<br />

no campo. Entretanto, sabe-se que ele já vinha desenvolvendo<br />

a sua perspectiva teórica antes de ingressar<br />

como recluso nos campos de concentração. Dessa forma,<br />

a sua visão de homem e de mundo poderia ter facilitado<br />

na constatação dos fenômenos especificamente humanos.<br />

Embora tenha feito uma análise fenomenológica <strong>da</strong><br />

vivência do prisioneiro, não é possível saber até que ponto<br />

ele suspendeu o seu olhar teórico para realizar tal observação.<br />

Nesse caso, sugere-se que outros manuscritos,<br />

de outros autores que passaram por essa mesma experiência,<br />

possam ser analisados para efeito de comparação<br />

com a descrição de Viktor Frankl.<br />

Sobre a intenção de escrever o seu relato sobre a sua<br />

vivência nos campos, o próprio autor esclarece que “havia<br />

querido simplesmente transmitir ao leitor, através de<br />

um exemplo concreto, que a vi<strong>da</strong> tem um sentido potencial<br />

sob quaisquer circunstâncias, mesmo as mais miseráveis”<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012<br />

Thiago A. A. Aquino<br />

(Frankl, 2010, p. 10). Nesse sentido a obra poderia ter um<br />

efeito terapêutico ou biblioterapêutico sobre o leitor, entretanto<br />

não se conhecia até então a estrutura lexical que<br />

estaria latente ao manuscrito que pudesse mobilizar os<br />

recursos internos <strong>da</strong> pessoa humana.<br />

Outro ponto relevante <strong>da</strong> sua narrativa refere-se a<br />

questões éticas acerca <strong>da</strong>s posturas <strong>da</strong>s pessoas que sofrem<br />

injustiça. Apesar dos relatos dos pequenos atos heróicos<br />

dos prisioneiros, Frankl (1989b) considera que os<br />

‘homens humanos’ se constituem como minoria. Para<br />

esse autor, o prisioneiro que tomou uma postura ética<br />

ou humana, diante dos condicionamentos impostos nos<br />

campos, o fez de forma facultativa. A esse respeito ele<br />

tece o seguinte argumento: “contudo é exatamente esse<br />

fato que deve estimular a ca<strong>da</strong> um de nós a unir-se à minoria:<br />

as coisas vão mal, mas se não fizermos o melhor<br />

que pudermos para fazê-las progredir, tudo será ain<strong>da</strong><br />

pior” (Frankl, 1989b, p. 24). Nessa perspectiva, torna-se<br />

compreensível que ao sair <strong>da</strong> reclusão, Frankl (2010)<br />

apregoa que quem sofreu injustiça não teria o direito de<br />

cometer injustiça.<br />

Considera-se que tanto a vivência de Frankl (1989a)<br />

quanto a sua visão teórica são complementares, ou seja,<br />

constituem dois momentos distintos que resultam na<br />

visão de homem e de mundo. A Logoterapia e Análise<br />

Existencial se opõe a concepção reducionista, aquela em<br />

que o ser humano é completamente condicionado e sem<br />

qualquer possibili<strong>da</strong>de de escolha (pandeterminismo),<br />

pois não considera a pessoa como um joguete do destino.<br />

Como pode ser constatado por meio <strong>da</strong> análise <strong>da</strong><br />

narrativa de Frankl, a pessoa é compreendi<strong>da</strong> como um<br />

ser que responde às deman<strong>da</strong>s do mundo. Na totali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> obra de Frankl, o autor substitui a expressão “na<strong>da</strong><br />

mais que”, típica do reducionismo, por “mais que”, o<br />

que resulta em uma compreensão de homem como um<br />

ser que é sempre “mais que” as suas condições internas<br />

e externas.<br />

A esta<strong>da</strong> de Frankl nos campos de concentração proporcionou<br />

a vali<strong>da</strong>ção vivencial dos princípios que esse<br />

autor adota em sua visão antropológica, ressaltando, sobretudo,<br />

a “liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vontade” e a “vontade de sentido”.<br />

De forma geral, a técnica estatística textual aqui<br />

aplica<strong>da</strong> permitiu o mapeamento do mundo lexical <strong>da</strong><br />

primeira parte <strong>da</strong> obra Em busca de Sentido, o que permitiu<br />

revelar a estrutura <strong>da</strong> sua narrativa. Essa análise,<br />

realiza<strong>da</strong> por meio do ALCESTE, identificou três classes:<br />

por um lado, a classe 1, Factici<strong>da</strong>de dos prisioneiros, por<br />

outro as classes 2 e 3, Posicionamento psicoexistencial,<br />

corroborando a concepção desse autor segundo a qual o<br />

ser humano poderia se posicionar perante as condições<br />

psicossociais, escolhendo sua forma de ser-no-mundo<br />

por meio de sua dimensão noológica. Assim, considerou-<br />

-se relevante analisar esse corpus tendo em vista que o<br />

mesmo desvela a essência do pensamento originário do<br />

autor em tela, tornando tangíveis os conceitos teóricos e<br />

filosóficos dessa abor<strong>da</strong>gem.<br />

214


Análise <strong>da</strong> Narrativa de Viktor Frankl acerca <strong>da</strong> Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração<br />

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Toulouse: Societé IMAGE.<br />

Thiago Antonio Avellar de Aquino é Graduado em Psicologia pela<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Paraíba, Mestre e Doutor em Psicologia Social<br />

pela Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Paraíba (UFPB); Professor Adjunto <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Paraíba no Departamento de Ciências <strong>da</strong>s<br />

Religiões; Professor credenciado do Programa de Pós-Graduação em<br />

Ciências <strong>da</strong>s Religiões; é líder do grupo Nous: Espirituali<strong>da</strong>de & Sentido<br />

(CNPq). Endereço Institucional: Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>da</strong> Paraíba,<br />

Centro de Educação - Campus I. Ci<strong>da</strong>de Universitária. 58059-900 - João<br />

Pessoa, PB – Brasil. Email: logosvitae@ig.com.br<br />

Recebido em 15.10.12<br />

Primeira Decisão Editorial em 21.11.12<br />

Aceito em 21.12.12<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

Rafael A. A. Prado; Marcus T. Cal<strong>da</strong>s; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto<br />

LINGUAGEM pOÉTICA E CLÍNICA fENOMENOLÓGICA ExISTENCIAL:<br />

ApROxIMAÇõES A pARTIR DE GASTON bACHELARD*<br />

Poetic Language and Existential Phenomenological Clinic: Rapprochements with Gaston Bachelard<br />

El Lenguaje Poético y la Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximaciones a Partir de Gaston Bachelard<br />

rAFAel Auler de AlMeidA PrAdo<br />

MArcus tulio cAldAs<br />

KArl Heinz eFKen<br />

cArMeM lúciA brito tAvAres bArreto<br />

Resumo: A clínica fenomenológica existencial posiciona-se criticamente a uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de linguagem concebi<strong>da</strong> por critérios,<br />

categorias ou conceitos. Este artigo consiste numa reflexão teórica, com o objetivo de apresentar a imaginação poética como<br />

via de linguagem articula<strong>da</strong> com a dimensão compreensiva, própria desta abor<strong>da</strong>gem psicológica. Compreendemos a linguagem<br />

como gesto significador, de acordo com Merleau-Ponty e em oposição às concepções intelectualistas ou empiristas. A “imaginação<br />

criadora” de Bachelard distingue-se <strong>da</strong> referência usual de imaginação como subproduto <strong>da</strong> memória. A imaginação poética,<br />

segundo a concepção de Bachelard é uma possibili<strong>da</strong>de de linguagem por meio <strong>da</strong> qual se vive plenamente o sentido de algo<br />

que vem ao nosso encontro. Sua vivência permite que nós nos apropriemos de significados extremamente ricos e que dizem respeito<br />

ao mundo que está ao nosso redor.<br />

Palavras-chave: Linguagem; Significação; Imaginação poética; Clínica fenomenológica existencial.<br />

Resumen: La clínica fenomenológica existencial toma de modo crítico a una mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>d de lenguaje concebido por criterios,<br />

categorías o conceptos. Este artículo se propone una investigación teórica, con el objetivo de presentar la imaginación poética<br />

como una posibili<strong>da</strong>d de lenguaje articulado con la dimensión comprensiva, típico de este enfoque psicológico. Comprendemos<br />

el lenguaje como gesto significante de acuerdo con Merleau-Ponty y en oposición a los conceptos empiristas o intelectualistas.<br />

La “imaginación creativa” de Bachelard se distingue de la referencia corriente que considera a la imaginación como un subproducto<br />

de la memoria. La imaginación poética de acuerdo con la concepción de Bachelard es una posibili<strong>da</strong>d del lenguaje<br />

por el cual es posible vivir en plenitud el sentido de nuestra existencia con las cosas del mundo. En resumen la experiencia de<br />

la imaginación poética nos permite apoderarse de significados muy profundos que se relacionan con el mundo que nos rodea.<br />

Palabras-clave: Lenguaje; Significado; Imaginación poética; Clínica fenomenológica existencial.<br />

Abstract: Existential phenomenological psychology criticizes a conception of language defined by criterions, categories or concepts.<br />

This article consists of theoretical reflection, with the aim of presenting poetic imagination as a conception of language<br />

articulated to comprehension. We understand language as a signifier gesture, according to Merleau-Ponty and in opposition to<br />

empiricist or intellectualist conceptions. Bachelard´s “creative imagination” distinguishes itself from the imagination´s usual<br />

reference – memory´s byproduct. The poetic imagination, according to Bachelard’s conception, consists of a type of language by<br />

which we can fully experience the sense of something. This experience allows us to take hold of multiple meanings that relate<br />

to the world that surrounds us.<br />

Keywords: Language; Meaning; Poetic imagination; Phenomenological existential psychology.<br />

O presente artigo procura realizar uma aproximação<br />

entre a imaginação poética, entendi<strong>da</strong> como mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

de “imaginação criadora”, e expressão do sonhar, segundo<br />

o pensamento de Gaston Bachelard e a clínica fenomenológica<br />

existencial. Esta aproximação tentará mostrar que<br />

a reflexão filosófica sobre a imaginação poética feita por<br />

Bachelard pode abrir novas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de compreensão<br />

para uma prática clínica fenomenológica e existencial.<br />

A poética se apresenta como possibili<strong>da</strong>de para o ser humano<br />

estabelecer uma relação viva consigo e com os outros,<br />

a partir de sua linguagem própria, e de seu peculiar<br />

modo de se expressar. Merleau-Ponty (1945/1999) toma a<br />

linguagem de modo igualmente fun<strong>da</strong>mental, como gesto<br />

criador e significador de um mundo. Este tipo de relação,<br />

também almejado pela clínica fenomenológica existencial,<br />

só pode ser estabeleci<strong>da</strong> quando a linguagem deixa<br />

de ser “usa<strong>da</strong>” como meio de expressão ou “instrumento”<br />

e passa a manifestar e revelar nosso modo de ser situado<br />

no mundo com os outros. É nesse sentido de manifestação<br />

e revelação <strong>da</strong>quilo que mais propriamente nos diz<br />

respeito que a poética é compreendi<strong>da</strong> por Bachelard, o<br />

que justifica nosso interesse pelo tema em questão.<br />

A clínica fenomenológica existencial não se restringe<br />

a conceitos e categorias, construtos de uma linguagem<br />

216


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard<br />

categorial, mas se apresenta vincula<strong>da</strong> a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de<br />

compreensão humana. A psicoterapia não é apenas uma<br />

construção teórica, mas encontra a sua efetivação na prática<br />

clínica. Como prática, pode ser fecun<strong>da</strong><strong>da</strong> por uma<br />

determina<strong>da</strong> concepção filosófica. O psicólogo é o profissional<br />

cuja fala e escuta se prestam a uma compreensão.<br />

Em sua formação acadêmica, procura desenvolver e<br />

aperfeiçoar sua capaci<strong>da</strong>de de compreensão. É para atender<br />

essa necessi<strong>da</strong>de de qualificar seu compreender que<br />

fun<strong>da</strong>menta sua prática em uma teoria. O suporte teórico<br />

vigente fun<strong>da</strong>menta-se no método científico, concebido<br />

a partir de premissas filosóficas. Em consonância com<br />

tal fato, teorias psicológicas se desenvolveram a partir<br />

<strong>da</strong> preocupação de fornecer ao psicólogo uma melhor<br />

capaci<strong>da</strong>de de compreensão. É inquestionável que, com<br />

o desenvolvimento de teorias psicológicas, como a psicanálise,<br />

a psicologia comportamental e a psicossociologia,<br />

a prática do psicólogo tem se tornado mais qualifica<strong>da</strong>.<br />

Seria por isso uma exclusivi<strong>da</strong>de do método científico<br />

a possibili<strong>da</strong>de de fornecer referenciais que possam<br />

servir de guia para o psicólogo compreender o outro?<br />

Por que haveriam de ser menos váli<strong>da</strong>s para uma prática<br />

clínica as referências sobre o humano forneci<strong>da</strong>s<br />

pela poética e pela filosofia? Seriam desprezíveis? Não<br />

se pretende defender a fun<strong>da</strong>ção de uma nova proposta<br />

psicoterápica, muito menos desvalorizar aquelas fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s<br />

por métodos científicos, mas somente refletir<br />

sobre a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poética ser uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de<br />

linguagem útil para a prática psicoterápica fenomenológica<br />

existencial.<br />

Sá (2009) nos lembra que sempre haverá uma condição<br />

histórica fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em uma comuni<strong>da</strong>de humana que<br />

a partir de uma linguagem que pareceria natural, nos<br />

permite uma experiência do mundo cotidiano. Portanto,<br />

os procedimentos técnicos e científicos, ou mesmo qualquer<br />

teorização, por mais que alcance uma linguagem<br />

técnica altamente especializa<strong>da</strong>, depende desta determinação<br />

histórica. Esta reflexão nos indica o cui<strong>da</strong>do que<br />

devemos ter ao tomar a ver<strong>da</strong>de em seu caráter absoluto.<br />

A partir <strong>da</strong>í, acreditamos que a ver<strong>da</strong>de sempre será uma<br />

construção, não por isso menos ver<strong>da</strong>deira que qualquer<br />

ver<strong>da</strong>de técnico-científica.<br />

Para cumprir seus propósitos, este artigo iniciará<br />

com uma reflexão sobre o pensamento de Descartes, sua<br />

influência para a fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong>s ciências psicológicas<br />

e para uma determina<strong>da</strong> concepção de linguagem.<br />

Mostraremos como o método de conhecimento proposto<br />

por este filósofo foi, por um lado, de fun<strong>da</strong>mental importância<br />

para o desenvolvimento <strong>da</strong>s ciências; porém,<br />

por outro lado, caso utilizado como única forma de se<br />

atingir “a ver<strong>da</strong>de”, limita a compreensão do ser humano,<br />

que é fun<strong>da</strong>mental para a proposição de uma prática<br />

psicológica adequa<strong>da</strong>.<br />

Em segui<strong>da</strong>, apresentaremos a linguagem compreendi<strong>da</strong><br />

como gesto que significa e cria um mundo no pensamento<br />

de Merleau-Ponty; com o intuito de explicitar<br />

217<br />

essa importante noção. Escolhemos essa concepção por<br />

ela não entender a linguagem como um processo associativo<br />

ou representacional, mas como gesto significador.<br />

Esta compreensão de linguagem norteia nossa reflexão<br />

sobre a imaginação poética.<br />

Num terceiro momento, falaremos sobre a especifici<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> imaginação poética, aproximando considerações<br />

de Merleau-Ponty e de Bachelard. Procuraremos mostrar<br />

o que de específico tem a imaginação poética a partir <strong>da</strong><br />

concepção de linguagem adota<strong>da</strong>. A imaginação poética<br />

não é, para Bachelard, um processo de representação ou<br />

expressão de uma idéia. A poética é uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de<br />

linguagem pela qual significamos e criamos nosso mundo<br />

a partir de nossa capaci<strong>da</strong>de de sonhar.<br />

Dando continui<strong>da</strong>de às reflexões anteriores, apresentamos<br />

e discutimos algumas imagens poéticas trabalha<strong>da</strong>s<br />

por Bachelard. Concluímos o artigo pensando sobre<br />

possíveis contribuições <strong>da</strong> imaginação poética para a<br />

psicologia fenomenológica existencial.<br />

1. O pensamento de Descartes, Ciências psicológicas<br />

e Linguagem<br />

Partimos <strong>da</strong> ideia de que há uma limitação quanto<br />

à adoção metodológica de inspiração cartesiana, no que<br />

diz respeito à fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong>s ciências humanas, inclusive<br />

a psicologia. Embora o pensamento de Descartes<br />

seja de inestimável importância para a história <strong>da</strong> filosofia<br />

e tenha contribuído para o desenvolvimento <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s<br />

ciências naturais, a crítica aqui é dirigi<strong>da</strong> ao uso<br />

dogmático e acrítico do método cartesiano no campo do<br />

conhecimento sobre o ser humano.<br />

As concepções filosóficas que orientam as práticas<br />

psicológicas existentes são fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s numa tradição<br />

de conhecimento predominante, em que há uma divisão<br />

epistemológica fun<strong>da</strong>mental entre sujeito e objeto,<br />

que se desdobra nas dicotomias entre homem e mundo,<br />

e corpo e mente – ou psique – entre outras. Me<strong>da</strong>rd Boss<br />

ressalta que o termo psique deriva do grego antigo e tem<br />

o significado original de “(...) uma determina<strong>da</strong> maneira<br />

de existir, ou seja, aquele modo-de-ser que distingue os<br />

seres vivos” (Boss, 1972/1981, p. 53).<br />

Psique foi assumindo, no entanto, no pensamento europeu,<br />

o significado de “(...) uma coisa substancial, a qual<br />

se encontra em algum lugar no espaço” (Boss, 1972/1981,<br />

p. 53), colocando-se dessa forma em oposição à corporei<strong>da</strong>de.<br />

No pensamento de Descartes, psique assume o<br />

significado de Res Cogitans, entendi<strong>da</strong> como o espírito<br />

humano, o sub-iectum que “(...) quer dizer aquilo no que<br />

algo se baseia, que está como fun<strong>da</strong>mento de todo o restante.”<br />

(Boss, 1972/1981, p. 53). Por sub-iectum também<br />

se entende a base para que as reali<strong>da</strong>des do mundo existam,<br />

sendo toma<strong>da</strong>s por objetos. A psicologia assimilou<br />

o conceito de Res Cogitans como “aparelho psíquico” na<br />

teoria freudiana.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

No campo <strong>da</strong> psicoterapia, Boss considera indispensável<br />

ao terapeuta ter conhecimento <strong>da</strong> origem de sua<br />

fun<strong>da</strong>mentação filosófica. Como a maioria <strong>da</strong>s ciências<br />

atualmente se fun<strong>da</strong>mentam na filosofia de Descartes,<br />

inclusive as ciências humanas, ele alerta para a importância<br />

do psicólogo refletir sobre seus pressupostos teóricos<br />

examinando criticamente a filosofia cartesiana:<br />

“[É] (...) indispensável ao atual psicoterapeuta que – caso<br />

ele queira saber o que faz – que ele reflita, pelo menos um<br />

pouco, sobre o que aprontou a seu tempo, este matemático-filósofo,<br />

com o nosso mundo e com o mundo dos posteriores<br />

psicoterapeutas” (Boss, 1972/1981, p. 55). O autor<br />

chama a atenção para o fato de que, na filosofia cartesiana,<br />

ver<strong>da</strong>de e reali<strong>da</strong>de são entendi<strong>da</strong>s como o aquilo que<br />

é mensurável, calculável e exato. Essas características,<br />

por serem controláveis, foram eleitas para estabelecer o<br />

que é ver<strong>da</strong>de, permitindo que o homem exerça controle<br />

sobre a natureza.<br />

Nossa socie<strong>da</strong>de contemporânea é capitalista e consumista.<br />

O capitalismo, por um lado, se estrutura no<br />

controle de condições e no processo de produção industrial,<br />

o que estimula, por exemplo, pesquisas científicas<br />

para fabricação de novos produtos ou criação de novas<br />

máquinas que aceleram e intensificam a produção. Por<br />

outro lado, no controle de condições também se oferece<br />

a possibili<strong>da</strong>de de se manipular e de se ter poder.<br />

Nietzsche afirma (conforme citado por Boss,<br />

1972/1981, p. 54) que o “(...) século XIX não trouxe a vitória<br />

<strong>da</strong> ciência, mas a vitória do método (método de pensar<br />

científico) sobre a ciência”. Para Boss, a colocação de<br />

Nietzsche é váli<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> hoje. O método científico, que é<br />

um método de controle sobre o mundo, tornou-se o modo<br />

de pensar e de ser de uma socie<strong>da</strong>de. Com isso, as quali<strong>da</strong>des<br />

de mensurabili<strong>da</strong>de, calculabili<strong>da</strong>de e exatidão,<br />

exigidos para que a ciência estabeleça controle sobre o<br />

mundo, tornaram-se sinônimos de ver<strong>da</strong>de e reali<strong>da</strong>de<br />

no plano <strong>da</strong>s ideias.<br />

As práticas psicológicas, portanto, fun<strong>da</strong>mentam-se<br />

numa filosofia que tem como objetivo o controle <strong>da</strong> natureza<br />

e apresenta caráter possessivo. Boss (1972/1981)<br />

ressalta o risco que as psicoterapias correm de “(...) servir<br />

para um aumento de poder do sujeito em relação a<br />

todos os objetos do mundo externo – inclusive de seus semelhantes”<br />

(Boss, 1972/1981, p. 55). Segundo o autor, as<br />

psicoterapias atuais “(...) correm este perigo de serem elas<br />

também como to<strong>da</strong>s as ciências naturais que tentam obter<br />

o domínio sobre a natureza inanima<strong>da</strong>, filhas desta mentali<strong>da</strong>de<br />

extremamente possessiva, subjetivista <strong>da</strong> filosofia<br />

cartesiana” (Boss, 1972/1981, p. 55). O autor aponta<br />

ain<strong>da</strong> para a necessi<strong>da</strong>de de a proposta psicoterápica fenomenológica<br />

existencial estabelecer novos referenciais<br />

humanos não-conceituais ou categoriais, mas que possam<br />

servir para expressar melhor o domínio <strong>da</strong> compreensão.<br />

Merleau-Ponty (1945/1999), ao formular sua concepção<br />

de corpo, tenta superar a dicotomia entre sujeito e objeto<br />

proposta por Descartes. Para o autor, não existe a sepa-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

Rafael A. A. Prado; Marcus T. Cal<strong>da</strong>s; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto<br />

ração entre um corpo físico e uma alma ou mente, e nem<br />

o corpo é compreendido como ideia ou objeto. O “corpo-<br />

-próprio” para Merleau-Ponty é um “corpo sujeito”, um<br />

modo paradoxal desse sujeito “estar” no mundo, posto que<br />

o mundo o permeia de modo que o corpo é visível e se vê,<br />

é sensível e se sente, é tocável e se toca. O ser humano é<br />

seu próprio corpo e na<strong>da</strong> além, ou fora dele.<br />

O pensamento de Merleau-Ponty caracteriza-se por<br />

uma alternativa às limitações coloca<strong>da</strong>s pelo pensamento<br />

cartesiano e busca ir além dele, fazendo uma releitura<br />

<strong>da</strong> condição do ser humano, de modo que mundo e<br />

homem não são mais compreendidos como separados,<br />

mas o homem, através de sua corporei<strong>da</strong>de, é um ser no<br />

mundo, sendo o mundo o que o cerca e lhe diz respeito.<br />

Esta concepção devolve o homem ao seu pertencimento<br />

ao mundo, e permite que os fenômenos humanos sejam<br />

reinterpretados. A linguagem, a partir <strong>da</strong> corporei<strong>da</strong>de<br />

proposta por Merleau-Ponty é, desse modo, compreendi<strong>da</strong><br />

de uma outra forma.<br />

2. Linguagem como Gesto que Significa e Cria um<br />

Mundo<br />

A dicotomia sujeito-objeto, proposta pelo modelo cartesiano,<br />

deu origem a duas correntes de pensamento: o<br />

intelectualismo, que privilegia o subjetivismo, e o mecanicismo,<br />

que privilegia o objetivismo. No âmbito <strong>da</strong><br />

concepção <strong>da</strong> linguagem, ambas as correntes consideram<br />

uma separação entre pensamento e fala em que ou um é<br />

causa do outro, ou um representa o que outro expressa.<br />

Para Merleau-Ponty (1945/1999), a fala e o pensamento<br />

são dois momentos de um mesmo gesto, um gesto que só<br />

pode se <strong>da</strong>r através do corpo. É por isso que o autor afirma<br />

que “(...) para poder exprimi-lo em última análise o<br />

corpo precisa tornar-se o pensamento ou a intenção que<br />

ele nos significa. É ele que mostra, ele que fala.” (Merleau-<br />

Ponty, 1945/1999, p. 267).<br />

A linguagem – fenômeno do corpo – é uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

de gesto. Como todo gesto, a fala só acontece a partir<br />

<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des expressivas do corpo como vociferar<br />

e soltar ar silibante, e, ao mesmo tempo constitui um<br />

mundo de significados que expressam suas intenções e<br />

sua disposição emocional. Este mundo de significados é<br />

constituído pela fala e se refere a uma rede significativa<br />

“intersubjetiva” já adquiri<strong>da</strong>, a qual permite que a fala<br />

seja compreendi<strong>da</strong> pelo outro. No entanto, a fala não se<br />

relaciona a esta rede “intersubjetiva” a partir de um processo<br />

causal, nem por um acesso intelectual a representações<br />

mentais pré-existentes. A fala do outro habita meu<br />

corpo, há uma reciproci<strong>da</strong>de entre minhas intenções e<br />

desejos e a fala do outro e vice e versa e, só por isso, há<br />

fala. A rede intersubjetiva é apenas o meio (linguístico)<br />

possibilitador <strong>da</strong> fala.<br />

A fala não pressupõe o pensamento. Falar não é unir-<br />

-se ao objeto através de uma representação nem por uma<br />

218


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard<br />

intenção de conhecimento. A denominação dos objetos é<br />

seu próprio reconhecimento, e não anterior a ele.<br />

219<br />

(...) a fala não é o signo do pensamento, se entendemos<br />

por isso um fenômeno que anuncia outro, como a fumaça<br />

anuncia o fogo. A fala e o pensamento só admitiriam<br />

essa relação exterior se um e outro fossem tematicamente<br />

<strong>da</strong>dos; na reali<strong>da</strong>de, eles estão envolvidos um no outro,<br />

o sentido está enraizado na fala, e a fala é a essência<br />

exterior do sentido (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 247).<br />

Compreendemos para além do que pensamos espontaneamente.<br />

Isso mostra que o pensamento não se relaciona<br />

com a fala a partir de um processo associativo, como<br />

é defendido pelo intelectualismo. O sentido de uma obra<br />

literária, por exemplo, mais contribui para modificar o<br />

sentido comum <strong>da</strong>s palavras do que é por ele constituído.<br />

Há um “pensamento que fala” (Merleau-Ponty, 1945/1999)<br />

tanto no escutar e ler, como no falar e escrever. Isso é desconsiderado<br />

pelo intelectualismo.<br />

Pronunciar uma palavra é o único modo de representá-la<br />

para mim. Assim como outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

consciência corporal, a imagem verbal é uma <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des<br />

de gesticulação fonética. Fala e pensamento estão<br />

arraigados um ao outro e não são <strong>da</strong>dos separa<strong>da</strong>mente.<br />

A fala é a “essência exterior do sentido” que, por sua<br />

vez, está fun<strong>da</strong>do na fala. A duplicação e a vociferação<br />

que revestem o pensamento trazem e contêm em si o seu<br />

sentido. A fala tem uma “potência de significação” que<br />

lhe é própria. A operação expressiva realiza a significação<br />

<strong>da</strong> fala, ela não a traduz. A fala é um gesto, e como<br />

(todo) gesto contém seu sentido, o que permite a comunicação.<br />

A comunicação acontece de mim para um outro<br />

“sujeito falante”, que tem um determinado modo de ser<br />

e com “um mundo que ele visa”. Não nos comunicamos<br />

com pensamentos nem com representações, assim como<br />

é proposto pelo intelectualismo.<br />

A fala é um gesto cuja origem é o “silêncio primordial”.<br />

Ela é o gesto que rompe este silêncio. A significação<br />

<strong>da</strong> fala é um mundo. A comunicação acontece não<br />

através <strong>da</strong> apreensão de um sentido <strong>da</strong>do, mas pela compreensão<br />

do gesto do outro. A compreensão só é possível<br />

porque existe uma reciproci<strong>da</strong>de entre minhas intenções<br />

e os gestos dos outros. Assim, minhas intenções podem<br />

habitar o corpo do outro, assim como as intenções do outro<br />

podem habitar meu corpo.<br />

Tanto a compreensão do outro como a percepção <strong>da</strong>s<br />

coisas se dão pelo corpo. O sentido do gesto está na sua<br />

expressão e não é <strong>da</strong>do separa<strong>da</strong> ou anteriormente a ele<br />

numa representação. O sentido do gesto estrutura um<br />

mundo de significações. A gesticulação verbal se serve de<br />

significações já disponíveis, estabeleci<strong>da</strong>s por expressões<br />

anteriores, que são comuns aos falantes. O sentido <strong>da</strong> fala<br />

é o modo como ela articula essas significações adquiri<strong>da</strong>s.<br />

A fala é uma <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> “potência irracional”<br />

humana que cria significações e as comunica. Sua<br />

singulari<strong>da</strong>de entre as operações expressivas é a possibili<strong>da</strong>de<br />

de criar um “saber intersubjetivo” a partir de sua<br />

sedimentação. Por isso, só a metalinguagem – ou falar sobre<br />

a fala – é possível, e algo semelhante não é possível<br />

em outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des expressivas, como pintar sobre a<br />

pintura e cantar sobre a música. A “ativi<strong>da</strong>de categorial”<br />

ou nossa possibili<strong>da</strong>de de estabelecer categorias é apenas<br />

um modo de nos relacionarmos com, ou de estarmos<br />

no mundo, ou mesmo um modo de configurarmos nossa<br />

experiência. O pensamento cartesiano e as ciências que<br />

nele se fun<strong>da</strong>mentam elegem esta possibili<strong>da</strong>de como a<br />

mais ver<strong>da</strong>deira ou confiável e invali<strong>da</strong>m as outras.<br />

3. A Especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Linguagem poética - Aproximando<br />

Considerações de Merleau-ponty e de<br />

bachelard<br />

Em 1938, Gaston Bachelard, a convite do poeta<br />

Jean Lescure, escreve um artigo sobre poesia chamado<br />

“O instante poético e o instante metafísico”. Este texto<br />

marca profun<strong>da</strong>mente o rumo de suas reflexões filosóficas,<br />

antes mais preocupa<strong>da</strong>s com a epistemologia.<br />

Segundo Pessanha (1994),<br />

(...) o que Bachelard conquista a partir desta época<br />

para ele e para nós – são os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de<br />

do devaneio, os motivos que tornam o sonho<br />

imprescindível à arte e à vi<strong>da</strong>. Conquista o direito de<br />

sonhar. E, aqui também pe<strong>da</strong>gogo, ensina as riquezas<br />

e benefícios do devaneio (pp. 10-11).<br />

O devaneio é compreendido por Bachelard como uma<br />

função de um sonhar ativo, vivificador e não pelo seu<br />

sentido divagativo. A imaginação poética é uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

de devaneio que diz respeito à expressão poética<br />

sobre o que se sonha e vive.<br />

As concepções de imaginação e de devaneio poéticos<br />

estão fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s numa concepção de linguagem.<br />

Para compreender como Bachelard nos apresenta estes<br />

fenômenos humanos, vamos adotar como referência a<br />

concepção de linguagem de Merleau-Ponty. Ela nos oferece<br />

uma compreensão sobre este fenômeno que difere<br />

<strong>da</strong>s concepções tradicionais e que tem compatibili<strong>da</strong>de<br />

com as proposições bachelardianas. Merleau-Ponty defende<br />

que a linguagem é um gesto do corpo, que na sua<br />

expressão revela seu sentido. Não existe uma cisão entre<br />

um pensamento, em que as ideias estariam representa<strong>da</strong>s,<br />

e a fala que apenas expressaria ideias previamente <strong>da</strong><strong>da</strong>s,<br />

disponíveis para uma expressão. Ele acredita numa<br />

uni<strong>da</strong>de “ambígua” entre pensamento e fala, na qual a<br />

fala é o próprio pensamento consumado, <strong>da</strong>ndo-se junto<br />

com este e não de forma exterior. Isso rompe com noções<br />

mecanicistas e idealistas <strong>da</strong> linguagem que a veem como<br />

efeito de uma causa exterior ou como expressão de uma<br />

representação mental prévia.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Bachelard (1957/2000) afirma que para estu<strong>da</strong>r os problemas<br />

propostos pela imaginação poética, um filósofo<br />

que costuma fun<strong>da</strong>mentar seus estudos no racionalismo<br />

ativo deve romper com suas linhas de pensamento e<br />

seus hábitos de pesquisa. Essa posição converge para a<br />

de Merleau-Ponty, no sentido de não se limitar às noções<br />

causais e dicotômicas que configuram as correntes idealistas<br />

ou empiristas para se estu<strong>da</strong>r um fenômeno <strong>da</strong> ordem<br />

<strong>da</strong> linguagem como a imaginação poética.<br />

A proposição de Bachelard é convergente à concepção<br />

de linguagem para Merleau-Ponty. Quando o primeiro<br />

afirma que é: “(...) necessário estar presente, presente à<br />

imagem: se há uma filosofia <strong>da</strong> poesia ela deve nascer e<br />

renascer por ocasião de um verso dominante, na adesão total<br />

a uma imagem isola<strong>da</strong>, muito precisamente no próprio<br />

êxtase <strong>da</strong> novi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> imagem” (Bachelard, 1957/2000, p.<br />

1), o autor encontra um modo específico possível de falar<br />

que, de certa forma, contempla a posição de Merleau-<br />

Ponty sobre linguagem. Este afirma que: “O elo entre a<br />

palavra e seu sentido vivo não é um elo exterior de associação;<br />

o sentido habita a palavra, e a linguagem ‘não é<br />

um acompanhamento exterior dos processos intelectuais’”<br />

(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 262).<br />

A imaginação e o devaneio poético são modos privilegiados<br />

de conhecer uma dimensão humana ain<strong>da</strong><br />

pouco explora<strong>da</strong> pela psicologia: o potencial do imaginário<br />

compreendido como “imaginação criadora”, nossa<br />

capaci<strong>da</strong>de de sonhar com olhos abertos (que difere do<br />

sonhar noturno). Segundo o autor, a psicologia vem tradicionalmente<br />

tratando a imaginação como subproduto<br />

<strong>da</strong> memória, não lhe <strong>da</strong>ndo grande importância.<br />

Bachelard elege a imaginação poética como forma de<br />

estu<strong>da</strong>r a imaginação. Esta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de se encontra no<br />

domínio <strong>da</strong> linguagem escrita, o que facilita a reflexão e<br />

permite ao leitor, através <strong>da</strong> leitura de imagens poéticas,<br />

servir-se de referenciais humanos sempre novos, contribuindo<br />

para ampliar seu mundo e suas significações.<br />

Estas, segundo Merleau-Ponty, são o meio pelo qual a linguagem<br />

humana se dá.<br />

Ela [a linguagem] apresenta, ou antes ela é toma<strong>da</strong> de<br />

posição do sujeito no mundo de suas significações.<br />

O termo ‘mundo’ não é aqui uma maneira de falar:<br />

ele significa que a vi<strong>da</strong> ‘mental’ ou cultural toma de<br />

empréstimo à vi<strong>da</strong> natural as suas estruturas, e que<br />

o sujeito pensante deve ser fun<strong>da</strong>do no sujeito encarnado<br />

(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 262).<br />

Para Merleau-Ponty, a linguagem categorial é apenas<br />

uma <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> linguagem, mas segundo<br />

uma perspectiva idealista é a única forma de se conseguir<br />

conhecimento ver<strong>da</strong>deiro ou absoluto. “Mas, se nos<br />

reportamos às descrições concretas, percebemos que a<br />

ativi<strong>da</strong>de categorial, antes de ser um pensamento ou um<br />

conhecimento, é uma certa maneira de relacionar-se ao<br />

mundo e, correlativamente, um estilo ou uma configura-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

Rafael A. A. Prado; Marcus T. Cal<strong>da</strong>s; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto<br />

ção <strong>da</strong> experiência” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 259).<br />

Para o autor, se a fala é autêntica, “faz nascer algo novo”<br />

(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 263). O estudo sobre a imaginação<br />

poética, realizado por Bachelard, visa justamente<br />

ao nascer desta novi<strong>da</strong>de, deste mundo de significações e<br />

sentidos singulares e únicos que as imagens nos trazem.<br />

A linguagem poética, segundo Bachelard (1957/2000),<br />

é a linguagem pela qual o ser humano expressa mais direta<br />

e niti<strong>da</strong>mente o modo como é tocado pelo mundo.<br />

O mundo, constructo permanente e mutável <strong>da</strong> plurali<strong>da</strong>de<br />

do ser humano, são as redes de significações que<br />

se estabelecem nas relações dos homens com as coisas.<br />

A poética é uma possibili<strong>da</strong>de do homem se reconhecer<br />

na sua singulari<strong>da</strong>de e de <strong>da</strong>r sentido à sua vi<strong>da</strong>.<br />

Na perspectiva coloca<strong>da</strong> por Bachelard, o imaginário,<br />

estu<strong>da</strong>do pelo autor, na forma de imaginação poética,<br />

tem um lugar central na existência humana no que diz<br />

respeito à relação do ser humano consigo mesmo, com<br />

os outros e na significação de seu mundo. Essa posição é<br />

consonante com a posição de Merleau-Ponty (1945/1999)<br />

sobre linguagem:<br />

A partir do momento que o homem faz uso <strong>da</strong> linguagem<br />

para estabelecer uma relação viva consigo mesmo<br />

ou com seus semelhantes, a linguagem não é mais um<br />

instrumento, não é mais um meio, ela é uma manifestação,<br />

uma revelação do ser íntimo e do elo psíquico<br />

que nos une ao mundo e aos nossos semelhantes<br />

(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 266) (Grifos do autor).<br />

A própria elaboração que a pessoa faz sobre si mesma<br />

é poética, no sentido de que é única e que fala dela, e<br />

porque busca o sentido do que se vive e não causas e explicações.<br />

Na prática psicoterápica podemos propor que<br />

o terapeuta promove, através de uma escuta cui<strong>da</strong>dosa<br />

e interessa<strong>da</strong>, o aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> elaboração poética<br />

que a própria pessoa faz a respeito de suas experiências<br />

vivi<strong>da</strong>s. O psicólogo, também, assume uma atitude poética<br />

em relação ao que o paciente lhe conta, quando ele<br />

se coloca em sua posição e encontra palavras que esclarecem<br />

o sentido que se apresenta na fala do paciente. Isso<br />

difere de uma postura em que o terapeuta atribui explicações<br />

e causas para as vivências relata<strong>da</strong>s pelo paciente,<br />

o que é próprio <strong>da</strong>s abor<strong>da</strong>gens teóricas psicológicas<br />

fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s no pensamento cartesiano.<br />

4. Algumas Imagens poéticas Trabalha<strong>da</strong>s por Gaston<br />

bachelard<br />

A título de ilustração, apresentaremos neste item<br />

a análise de três imagens poéticas trabalha<strong>da</strong>s por<br />

Bachelard, para que possamos ter uma ideia do tipo de<br />

contribuição que estas podem oferecer para a psicologia<br />

clínica fenomenológica existencial e foram escolhi<strong>da</strong>s<br />

com o propósito de mostrar um pouco <strong>da</strong> variabili<strong>da</strong>de<br />

220


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard<br />

dos temas e dimensões humanas que podem ser expressas<br />

através dessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de linguagem. A elaboração<br />

poética é linguística e, portanto, tem a função de <strong>da</strong>r<br />

sentido ao mundo. A primeira imagem apresenta<strong>da</strong> aqui é<br />

do domínio dos sentimentos; a segun<strong>da</strong> diz respeito a um<br />

devaneio em que o elemento terra é mais fortemente presente;<br />

e a terceira é uma imagem <strong>da</strong> “imensidão íntima”.<br />

Jules Supervielle (conforme citado por Bachelard,<br />

1957/2000, p. 206), na seguinte imagem poética, nos traz<br />

uma nuance do sentimento de tristeza que encontrou<br />

seu lugar, e de alguém que se permite triste pela própria<br />

necessi<strong>da</strong>de que a tristeza apresenta e não tenta evitá-la,<br />

não a sente de forma insuportável: “Conheço uma tristeza<br />

que tem cheiro de abacaxi. Sou menos triste, sou mais<br />

docemente triste”.<br />

A leitura de uma imagem poética, quando repercute<br />

no íntimo de uma pessoa, ‘empresta’ ao sentimento dela<br />

um meio de se expressar. Ele é, assim, reconhecido, não<br />

é mais estranho, mas familiar e pode ser incorporado.<br />

Sobre a imagem poética, acima cita<strong>da</strong>, o autor afirma:<br />

“Qualquer que seja a afetivi<strong>da</strong>de que matize um espaço,<br />

mesmo que seja triste ou pesa<strong>da</strong>, assim que é expressa,<br />

a tristeza se modera, o peso se alivia” (Bachelard,<br />

1957/2000, p. 206). As imagens poéticas não encerram o<br />

significado de uma vivência humana, mas detalham-no<br />

ao máximo, permitindo que na especifici<strong>da</strong>de de sua significação,<br />

falem algo genuíno e vivo, capaz de sensibilizar<br />

o leitor, que se reconhece na imagem.<br />

Bachelard dedica-se, num primeiro momento de suas<br />

obras a tratar <strong>da</strong>s imagens materiais. Ele escreve cinco<br />

obras, sendo ca<strong>da</strong> uma inspira<strong>da</strong> em um elemento <strong>da</strong><br />

natureza ou matiz material (fogo, ar, água e duas obras<br />

destina<strong>da</strong>s aos devaneios <strong>da</strong> terra). O autor diferencia a<br />

imaginação formal <strong>da</strong> imaginação material, situando no<br />

universo <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> suas obras sobre a poética e o devaneio.<br />

A primeira mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de imaginação, formadora<br />

de conceitos, é própria <strong>da</strong> oculari<strong>da</strong>de, própria de<br />

um filósofo “que vê o trabalhador trabalhar” (Bachelard<br />

conforme citado por Pessanha, 1994, p. 14). A imaginação<br />

material já é fruto <strong>da</strong> mão que trabalha a matéria, de<br />

uma experiência corporal de criação. Como exemplo do<br />

tipo de imaginação que Bachelard chama de imaginação<br />

“<strong>da</strong> mão feliz”, apresentamos a seguinte imagem: “’A matéria<br />

estava venci<strong>da</strong>, a natureza não era tão forte como<br />

ele’” (Phillipe conforme citado por Bachelard, 1948/2001,<br />

p. 49). Por meio do seu trabalho o trabalhador vence a<br />

matéria, unindo o seu devaneio à sua vontade de poder.<br />

Esta imagem se refere a um operário que termina um<br />

tamanco, mas fala de “(...) um sentimento de vitória consuma<strong>da</strong><br />

proporciona<strong>da</strong> pela matéria doma<strong>da</strong> no trabalho”<br />

(Bachelard, 1948/2001, p. 49). Ela também mostra<br />

que o devaneio está subjacente a qualquer ativi<strong>da</strong>de humana.<br />

Neste trabalho de fabricação manual do tamanco,<br />

o orgulho de realização acontece através do devaneio <strong>da</strong><br />

luta; a vitória <strong>da</strong> realização acontece através <strong>da</strong> vitória<br />

contra a adversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> matéria. Esta é a forma de traba-<br />

221<br />

lho que inspira a imagem poética. Não se trata nem de<br />

um trabalho sob sua contextualização capitalista, nem<br />

de um trabalho num cenário de luta de classes. É um<br />

trabalho corporal na sua corporei<strong>da</strong>de mais radical; um<br />

trabalho braçal que pouco inspiraria, à primeira vista,<br />

nossas forças devaneadoras. Mas o trabalho, nesta imagem,<br />

é apresentado como luta que nos fortalece como seres<br />

humanos felizes.<br />

A terceira imagem, de Bachelard, nos convi<strong>da</strong> para o<br />

interior <strong>da</strong> nossa floresta interna. Encaramo-nos com os<br />

mistérios de nossa origem. A floresta como um “antes-<br />

-de-nós” parece-nos testemunhar silenciosamente nossa<br />

ancestrali<strong>da</strong>de.<br />

A floresta é um antes-de-nós (...). Quando se abran<strong>da</strong><br />

a dialética do eu e do não-eu, sinto as pra<strong>da</strong>rias e os<br />

campos comigo, no comigo, no conosco. Mas a floresta<br />

reina no antecedente. Em determinado bosque<br />

que conheço meu avô se perdeu. Contaram-me isso,<br />

não o esqueci. Foi num outrora em que eu não vivia.<br />

Minhas lembranças mais antigas têm cem anos ou<br />

pouco mais. Essa é a minha floresta ancestral. Tudo<br />

o mais é literatura (Bachelard, 1957/2000, p. 194).<br />

Esta imagem expressa “nosso estarmos” limitados em<br />

relação à compreensão de nós mesmos e de nossa origem.<br />

Por meio dela, nos sentimos assistidos por um mundo que<br />

nos conhece mais que a nós mesmos. A floresta ancestral,<br />

ambiguamente, também mobiliza em nós um sentimento<br />

de familiari<strong>da</strong>de com o mundo.<br />

A imagem poética, conforme queremos sugerir, é uma<br />

forma de linguagem como significação de mundo, e como<br />

forma de estabelecer uma relação viva conosco mesmos e<br />

com o outro. Ela é direta na sua singulari<strong>da</strong>de. Ela é assim,<br />

o que há de mais sincero, de mais espontâneo. Ela é<br />

pura imediatici<strong>da</strong>de. A confiança passa aqui do que está<br />

mais atrás (como na adoção de causali<strong>da</strong>de como referência<br />

explicativa de um fenômeno), para o que vem mais à<br />

frente, o que se mostra, mais nítido, mais visível. Segundo<br />

Bachelard: “(...) a imagem em sua simplici<strong>da</strong>de, não precisa<br />

de um saber. É dádiva de uma consciência ingênua.<br />

Em sua expressão, é uma linguagem jovem. O poeta na<br />

novi<strong>da</strong>de de suas imagens é sempre origem de linguagem”<br />

(Bachelard conforme citado por Pessanha, 1994, p. 28).<br />

5. Aproximações entre Clínica fenomenológica e<br />

Imaginação poética<br />

Que contribuições a noção de imaginação poética –<br />

apresenta<strong>da</strong> através desta reflexão – pode trazer para a<br />

psicologia? A busca pela imaginação poética, <strong>da</strong> qual o<br />

devaneio é expressão, como fonte de referenciais humanos<br />

para a psicologia é uma busca por um modo alternativo<br />

aos estabelecidos segundo concepções cartesianas.<br />

O devaneio poético é uma possibili<strong>da</strong>de humana em que<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

se vive plenamente o sentido de algo que vem ao nosso<br />

encontro. Sua vivência permite que nós nos apropriemos<br />

de significados extremamente ricos e que dizem respeito<br />

ao mundo que está ao nosso redor. Por imaginação, neste<br />

estudo, entende-se “imaginação criadora” no sentido do<br />

termo atribuído por Bachelard, e não pelo que se costuma<br />

chamar de imaginação, segundo a referência usual<br />

que a considera um subproduto <strong>da</strong> memória.<br />

A imaginação e o devaneio poéticos permitem uma<br />

ampliação de novas considerações sobre a imaginação e o<br />

sonhar de forma geral. Grafado na forma de imagem poética,<br />

o devaneio é preservado e pode assim ser compartilhado<br />

por outras pessoas. A imagem poética tem sentido<br />

ontológico e é apreendi<strong>da</strong> pelo leitor acompanha<strong>da</strong> pelo<br />

sentimento de pertencimento. “Essa imagem que a leitura<br />

do poema nos oferece torna-se realmente nossa. Enraízase<br />

em nós mesmos. Nós a recebemos, mas sentimos a impressão<br />

de que teríamos podido criá-la, de que deveríamos<br />

tê-la criado” (Bachelard, 1957/2000, p. 7).<br />

A leitura de um poema se dá pelas dinâmicas de repercussão,<br />

entendi<strong>da</strong>s pelo modo como somos sensibilizados<br />

pela imagem poética e de ressonância, elaboração<br />

intelectual posterior que dá sentido ao poema. A ressonância<br />

é uma vivência superficial que contextualiza o poema.<br />

Na repercussão, o indivíduo se apropria do poema,<br />

sentindo que seus significados lhe dizem respeito. A repercussão<br />

serve para o leitor como desvelamento de sentido<br />

de sua própria existência, enquanto as ressonâncias,<br />

como próprias <strong>da</strong> intelectuali<strong>da</strong>de “(...) dispersam-se nos<br />

diferentes planos <strong>da</strong> nossa vi<strong>da</strong> no mundo” (Bachelard,<br />

1957/2000, p. 7) e produzem documentos psicológicos.<br />

Se considerarmos a fala escrita – na forma de imagem<br />

poética – como gesto do outro, poderemos aproximar o<br />

fenômeno <strong>da</strong> repercussão e <strong>da</strong> ressonância na compreensão<br />

de uma imagem poética <strong>da</strong> noção de Merleau-Ponty,<br />

o qual considera que a compreensão do gesto do outro<br />

acontece a partir <strong>da</strong> reciproci<strong>da</strong>de entre as intenções dos<br />

outros e as minhas. Segundo Merleau-Ponty:<br />

Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse<br />

meu corpo ou se minhas intenções habitassem o<br />

seu. O gesto que testemunho desenha em pontilhado<br />

um objeto intencional. Esse objeto torna-se atual e é<br />

plenamente compreendido quando os poderes de meu<br />

corpo se ajustam a ele e o recobrem (Merleau-Ponty,<br />

1945/1999, p. 251).<br />

Bachelard ressalta que a psicologia limita-se a estu<strong>da</strong>r<br />

a ressonância poética, buscando contextualizar o poema<br />

socioculturalmente e a partir <strong>da</strong> história de vi<strong>da</strong> do<br />

poeta. O autor defende que falta à psicologia um estudo<br />

sobre a repercussão poética e volta parte de sua obra às<br />

imagens poéticas que repercutem no leitor. Um estudo<br />

fenomenológico sobre a imaginação e sobre o devaneio<br />

poético é importante, pois o devaneio, através <strong>da</strong> vivência<br />

de repercussão de uma imagem, pode devolver o indiví-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

Rafael A. A. Prado; Marcus T. Cal<strong>da</strong>s; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto<br />

duo para si mesmo e fazer com que este se aproprie de seu<br />

próprio mundo, libertando-o do que não lhe diz respeito.<br />

De um modo mais geral, compreende-se também todo<br />

o interesse que há, acreditamos nós, em determinar<br />

uma fenomenologia do imaginário onde a imaginação<br />

é coloca<strong>da</strong> no seu lugar, como princípio de excitação<br />

direta do devir psíquico. A imaginação tenta um futuro.<br />

A princípio ela é um fator de imprudência que<br />

nos afasta <strong>da</strong>s pesa<strong>da</strong>s estabili<strong>da</strong>des. Veremos que<br />

certos devaneios poéticos são hipóteses de vi<strong>da</strong> que<br />

alargam nossa vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>ndo confiança no universo (...).<br />

Um mundo se forma no nosso devaneio, um mundo que<br />

é o nosso mundo. E esse mundo sonhado ensina-nos<br />

possibili<strong>da</strong>des de engrandecimento de nosso ser nesse<br />

universo que é o nosso. (Bachelard, 1960/1996, p. 8).<br />

Um estudo sobre a imaginação e o devaneio poéticos<br />

poderá contribuir para o modo de estar na relação com<br />

o cliente, acompanhando-o na apropriação de si mesmo,<br />

através <strong>da</strong> apropriação <strong>da</strong> sua capaci<strong>da</strong>de de sonhar.<br />

O interesse em refletir sobre a imaginação poética como<br />

referência para o sonhar e a imaginação criadora se deu<br />

também pelo fato de a poética ser uma linguagem possível<br />

na psicoterapia fenomenológica existencial, segundo<br />

Pompéia e Sapienza (2004). A reflexão sobre a imaginação<br />

poética apresenta<strong>da</strong> por Gaston Bachelard possibilita<br />

a compreensão teórica sobre a imaginação e o sonhar,<br />

e pode contribuir para ampliar a comunicação do psicólogo<br />

que, ao se familiarizar com a linguagem poética,<br />

familiariza-se com uma linguagem compreensiva, própria<br />

<strong>da</strong> psicoterapia.<br />

Na terapia, o que fazemos é reencontrar a expressão do<br />

nosso modo de sentir, o re-cor<strong>da</strong>do, principalmente <strong>da</strong>quelas<br />

coisas que já nos foram caras, que já foram coisas<br />

do coração, mas que perderam esse vínculo em função<br />

de dificul<strong>da</strong>des de comunicação, tornando-se desgasta<strong>da</strong>s.<br />

Foram esqueci<strong>da</strong>s, mas num esforço de procura<br />

através <strong>da</strong> linguagem poética, podemos reencontrá-las.<br />

Quando isto acontece, encontramos uma ver<strong>da</strong>de (Pompéia<br />

& Sapienza, 2004, p. 161) (Grifo do autor).<br />

Segundo apontamento de Pompéia e Sapienza (2004), a<br />

linguagem poética conduz o paciente a se encontrar consigo<br />

mesmo, a conseguir significar, vali<strong>da</strong>ndo e <strong>da</strong>ndo<br />

sentido à sua vi<strong>da</strong>. Boss ressalta que os pacientes libertos<br />

para si mesmos têm suas possibili<strong>da</strong>des de ser e sua liber<strong>da</strong>de<br />

recupera<strong>da</strong>s através do conhecimento de si mesmo,<br />

possibilitado e alimentado pela psicoterapia. As ver<strong>da</strong>des<br />

encontra<strong>da</strong>s durante a procura psicoterapêutica, que se<br />

dá através <strong>da</strong> linguagem poética, são compreensões libertadoras.<br />

O paciente esclarece e conta com novas possibili<strong>da</strong>des<br />

de ser e pode, a partir delas, fazer suas escolhas<br />

de modo mais apropriado. A libertação do paciente para<br />

suas próprias possibili<strong>da</strong>des de ser é a que a psicoterapia<br />

fenomenológica existencial se propõe, segundo Boss:<br />

222


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard<br />

223<br />

Como psicoterapeutas queremos, no fundo, libertar<br />

nossos pacientes para si mesmos (...). Por isso, com<br />

a libertação psicoterápica, queremos levar nossos<br />

pacientes ‘apenas’ a aceitar suas possibili<strong>da</strong>des de<br />

vi<strong>da</strong> como próprias e a dispor delas livremente e com<br />

responsabili<strong>da</strong>de. Isto quer dizer também, que nós<br />

queremos que eles criem coragem de levar a termo<br />

suas possibili<strong>da</strong>des de relacionamento co-humanos<br />

e sociais de acordo com sua consciência intrínseca<br />

e não como uma pseudo-consciência imposta por<br />

qualquer um (Boss, 1972/1981, p. 61).<br />

A imaginação poética pode contribuir para a prática<br />

psicológica por oferecer imagens de rico significado humano<br />

para o psicólogo, e por deixá-lo mais sensível para<br />

compreender e legitimar os devaneios de seus pacientes.<br />

Estes, embora não escrevam sobre seus devaneios tornando-os<br />

poemas escritos, devaneiam, por exemplo, ao lembrar<br />

de sua infância e revivê-la, ou mesmo ao se entregarem<br />

a um momento contemplativo ou terem um insight.<br />

No plano de contribuições para pensar uma clínica<br />

numa perspectiva fenomenológica existencial, as imagens<br />

poéticas podem ampliar as possibili<strong>da</strong>des compreensivas<br />

do discurso do cliente. A poética é a linguagem<br />

que mais possibilita e amplia a capaci<strong>da</strong>de de compreensão,<br />

e por isso, é uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de linguagem possível<br />

na clínica fenomenológica existencial. Boss (1972/1981)<br />

defende que as contribuições ver<strong>da</strong>deiramente importantes<br />

<strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem existencial para a prática clínica<br />

fun<strong>da</strong>mentam-se na compreensão mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

existência humana e não em técnicas psicoterápicas.<br />

As imagens poéticas, por serem do âmbito <strong>da</strong> compreensão,<br />

diferentemente dos conceitos que são do âmbito <strong>da</strong><br />

explicação, podem ser referências importantes para um<br />

terapeuta existencial.<br />

O gesto humano de se comunicar, de buscar significados<br />

de criar e alimentar seu mundo está plenamente<br />

contemplado pela leitura de uma imagem poética. Este<br />

modo de se relacionar com a linguagem – a imaginação<br />

poética – nos volta para o sentido fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> linguagem,<br />

que é criar e significar o mundo, estabelecendo<br />

uma relação viva consigo e com os outros. É prestando a<br />

esta finali<strong>da</strong>de que a linguagem deixa de ser objeto revelar-se<br />

como um modo de estar no mundo com os outros.<br />

Um estudo sobre a imagem poética nos provoca, no<br />

entanto, uma sensação de insegurança que atribuímos<br />

ao seu caráter de não encerrar questões em conceitos,<br />

não permitindo, por exemplo, o estabelecimento de saberes<br />

fun<strong>da</strong>mentais. Mas são os saberes infinitos sobre<br />

o ser humano e sua condição que são ditos pela imagem<br />

poética. É preciso aceitar a inesgotável possibili<strong>da</strong>de de<br />

saberes como condição humana de inconclusivi<strong>da</strong>de.<br />

O tipo de estudo que a imagem poética exige, apresenta<br />

contribuições para pensar uma clínica fenomenológica<br />

existencial que não se apoia em conceitos estabelecidos<br />

ou em categorias.<br />

* Agradecemos ao Fundo de Amparo à Ciência e à Tecnologia do Estado<br />

de Pernambuco (FACEPE) pela concessão de bolsa de Doutorado<br />

que nos permitiu a realização do presente artigo.<br />

Referências<br />

Bachelard, G. (1996). A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins<br />

Fontes (Original publicado em 1960).<br />

Bachelard, G. (2000). A Poética do Espaço. São Paulo: Martins<br />

Fontes (Original publicado em 1957).<br />

Bachelard, G. (2001). A Terra e os Devaneios <strong>da</strong> Vontade. São<br />

Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1948).<br />

Boss, M. (1981). Angústia, culpa e libertação (ensaios de psicanálise<br />

existencial). São Paulo: Livraria Duas Ci<strong>da</strong>des<br />

(Original publicado em 1972).<br />

Merleau-Ponty, M (1999). Fenomenologia <strong>da</strong> Percepção. São<br />

Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1945).<br />

Pessanha, J. A. M. (1994). Introdução à coletânea póstuma de<br />

artigos de Gaston Bachelard. Em G. Bachelard, O Direito de<br />

Sonhar (pp. 5-31). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.<br />

Pompéia, J. A., & Sapienza, B. T. (2004). Na Presença do Sentido.<br />

São Paulo: Paulus.<br />

Sá, R. N. (2009). Psicoterapia, cientifici<strong>da</strong>de e interdisciplinari<strong>da</strong>de:<br />

a propósito de uma discussão sobre a suposta necessi<strong>da</strong>de<br />

de uma regulamentação <strong>da</strong>s práticas psicológicas<br />

clínicas, Portal do Conselho Regional de Psicologia de<br />

São Paulo [online]. Disponível na World Wide Web: http://<br />

www.crpsp.org.br/psicoterapia/textos_6.aspx<br />

Rafael Auler de Almei<strong>da</strong> Prado - Mestre e Doutorando em Psicologia<br />

Clínica pela Universi<strong>da</strong>de Católica de Pernambuco (Unicap).<br />

Email: rafaelpradoauler@gmail.com<br />

Marcus Tulio Cal<strong>da</strong>s - Doutor em Psicologia pela Universi<strong>da</strong>de de<br />

Deusto-Espanha; Professor <strong>da</strong> Graduação e Pós-Graduação do Curso<br />

de Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Católica de Pernambuco (Unicap).<br />

Email: marcus_tulio@uol.com.br<br />

Karl Heinz Efken - Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universi<strong>da</strong>de<br />

Católica do Rio Grande do Sul; Professor e Coordenador do Curso<br />

de Filosofia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Católica de Pernambuco (Unicap).<br />

Email: khefken@hotmail.com<br />

Carmem lúcia Brito Tavares Barreto - Doutora em Psicologia Clínica<br />

pela Universi<strong>da</strong>de de São Paulo (USP). Professora e Coordenadora do<br />

Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />

Católica de Pernambuco (Unicap). Coordenadora do Laboratório em<br />

Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial- LACLIFE. Endereço<br />

Institucional: Universi<strong>da</strong>de Católica de Pernambuco, Centro de Ciências<br />

Biológicas e Saúde. Rua do Príncipe, 526 - Bloco B (Boa Vista).<br />

CEP 50050-410 - Recife/PE. Email: carmemluciabarreto@hotmail.com<br />

Recebido em 16.10.12<br />

Primeira Decisão Editorial em 07.12.12<br />

Aceito em 26.12.12<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

Rafael A. A. Prado; Marcus T. Cal<strong>da</strong>s; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto<br />

AS pSICOpATOLOGIAS COMO DISTÚRbIOS DAS<br />

fUNÇõES DO SELf: UMA CONSTRUÇÃO TEÓRICA<br />

NA AbORDAGEM GESTÁLTICA<br />

Psychopathologies as Disorders of the Self Functions:<br />

A Theoretical Construction in Gestalt Approach<br />

Las Psicopatologías como Disturbios de las Funciones del Self:<br />

Una Construcción Teorética en el Abor<strong>da</strong>je <strong>Gestáltica</strong><br />

cArlene MAriA diAs tenório<br />

Resumo: Com o objetivo de compreender as psicopatologias com base no DSM-IV e na teoria de F. Perls, o processo de estruturação<br />

dos padrões neuróticos, psicóticos e antissociais é descrito a partir dos impasses existenciais, introjeções tóxicas e conflito<br />

interno dominador-dominado, que favorecem os distúrbios <strong>da</strong>s fronteiras e funções do self responsáveis pelas dificul<strong>da</strong>des<br />

do sujeito para se diferenciar dos outros, fazer contato pleno com estes, discriminar as deman<strong>da</strong>s internas e externas e agir de<br />

modo adequado ao atendimento <strong>da</strong>s mesmas. Nesta perspectiva, supõe-se que, enquanto as psicoses são produzi<strong>da</strong>s pela falência<br />

total <strong>da</strong>s fronteiras e funções do self, as neuroses são gera<strong>da</strong>s pelo distúrbio dessas fronteiras e funções, caracterizado pela<br />

repetição crônica de interrupções do contato e comportamentos mal a<strong>da</strong>ptativos, que constituem os transtornos de personali<strong>da</strong>de<br />

descritos pelo DSM-IV. Como resultado <strong>da</strong> articulação entre conceitos, pressupostos, critérios diagnósticos e evidências clínicas<br />

são construí<strong>da</strong>s proposições teóricas nas quais os transtornos de personali<strong>da</strong>de, com exceção do transtorno antissocial,<br />

são entendidos como padrões neuróticos de funcionamento desencadeados por distorções primárias e secundárias, negativas e<br />

positivas <strong>da</strong> percepção de “si mesmo” e do “outro”, podendo evoluir para transtornos psicóticos em situações de extremo estresse<br />

e vulnerabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s fronteiras e funções do self.<br />

Palavras-chave: Psicopatologia; Distúrbio; Self; Abor<strong>da</strong>gem gestáltica.<br />

Abstract: In order to understand the psychopathology based on DSM-IV and the theory of F. Perls, the process of structuring<br />

neurotic, psychotic and antisocial patterns is described from the existential dilemmas, toxic introjections and a dominator/<br />

dominated internal conflict that favors boun<strong>da</strong>ries disturbances and the functions of the “self” responsible for the difficulties<br />

of the subject to differentiate itself from others; making full contact with them; discriminating between internal and external<br />

demands and acting appropriately to meet them. From this perspective, it is assumed that, while psychoses are produced by the<br />

total failure of boun<strong>da</strong>ries and functions of the “self’, the neuroses are generated by the disturbance of these boun<strong>da</strong>ries and<br />

“self” functions, characterized by the chronic repetition of interruptions of contact and mala<strong>da</strong>ptive behaviors, which constitute<br />

personality disorders described by DSM-IV. As a result of the articulation between concepts, premises, diagnostic criteria<br />

and clinical evidence, theoretical propositions are constructed in which personality disorders, except for the antisocial disorder,<br />

are perceived as neurotic patterns of functioning triggered by primary and secon<strong>da</strong>ry distortions, negative and positive of<br />

perception of the “self” and the “other”, sometimes progressing to psychotic disorders in situations of extreme stress and vulnerability<br />

of boun<strong>da</strong>ries and functions of the “self”.<br />

Keywords: Psychopathology; Disorder; Self; Gestalt approach.<br />

Resumen: Con el objetivo de comprender las psicopatologías con base en el DSM-IV y en la teoría de F. Perls, el proceso de estructuración<br />

de los padrones neuróticos, psicóticos y antisociales es descrito a partir de los impasses existenciales, introyecciones<br />

tóxicas y conflicto interno dominador/dominado, que favorecen los disturbios de las fronteras y funciones del self responsables<br />

por las dificultades del sujeto para diferenciarse de otros; hacer contacto pleno con estos; discriminar las deman<strong>da</strong>s<br />

internas y externas y actuar de modo adecuado al atendimiento de las mismas. En esta perspectiva, se supone que, mientras<br />

las psicosis son produci<strong>da</strong>s por la falencia total de las fronteras y funciones del self, las neurosis son genera<strong>da</strong>s por el disturbio<br />

de esas fronteras y funciones, caracterizado por la repetición crónica de interrupciones del contacto y comportamientos<br />

mal a<strong>da</strong>ptativos, que constituyen los trastornos de personali<strong>da</strong>d descritos por el DSM-IV. Como resultado de la articulación<br />

entre conceptos, presupuestos, criterios diagnósticos y evidencias clínicas son construi<strong>da</strong>s proposiciones teóricas en las cuales<br />

los trastornos de personali<strong>da</strong>d, con excepción del trastorno antisocial, son entendidos como padrones neuróticos de funcionamiento<br />

desencadenados por distorsiones primarias y secun<strong>da</strong>rias, negativas y positivas de la percepción de “sí mismo” y<br />

del “otro”, pudiendo evolucionar para trastornos psicóticos en situaciones de extremo estrés y vulnerabili<strong>da</strong>d de las fronteras<br />

y funciones del self.<br />

Palabras-claves: Psicopatología; Disturbio; Self; Abor<strong>da</strong>je gestáltica.<br />

224


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard<br />

Introdução<br />

Para Perls (1973/1981), to<strong>da</strong>s as neuroses surgem <strong>da</strong><br />

incapaci<strong>da</strong>de do indivíduo para encontrar e manter o<br />

equilíbrio adequado entre ele e o resto do mundo, e to<strong>da</strong>s<br />

têm em comum o sentimento de que os limites do meio<br />

se estendem demais sobre si mesmo. O neurótico é o indivíduo<br />

sobre quem a socie<strong>da</strong>de influi demasia<strong>da</strong>mente<br />

e suas interrupções de contato são manobras defensivas<br />

para protegê-lo contra a ameaça de ser barrado por um<br />

mundo esmagador; são estratégias cria<strong>da</strong>s para manter<br />

seu equilíbrio em situações nas quais se vê impotente e<br />

dominado pelo “outro”, acreditando que as probabili<strong>da</strong>des<br />

estão to<strong>da</strong>s contra ele.<br />

De acordo com o DSM-IV, os transtornos de personali<strong>da</strong>de<br />

se caracterizam por traços de personali<strong>da</strong>de inflexíveis<br />

e mal a<strong>da</strong>ptativos, que causam sofrimento subjetivo<br />

e prejuízo funcional significativo para o sujeito.<br />

O transtorno de personali<strong>da</strong>de antissocial é marcado<br />

pelo desrespeito e violação <strong>da</strong>s normas sociais e dos direitos<br />

alheios, sem sentimento de culpa ou remorso por<br />

parte do sujeito, por acreditar que não deve submeter-<br />

-se a ninguém, para não correr o risco de ser dominado.<br />

Nos transtornos psicóticos, os pacientes evidenciam confusão<br />

mental, pensamento e comportamento desorganizados,<br />

com prejuízo no teste de reali<strong>da</strong>de, manifestando<br />

delírios e alucinações.<br />

A hipótese que se defende neste trabalho é de que<br />

os sintomas neuróticos ou psicóticos referentes aos<br />

Transtornos Clínicos classificados no Eixo I do DSM-<br />

IV emergem como figura de um fundo constituído pelos<br />

transtornos de personali<strong>da</strong>de apresentados no Eixo II,<br />

caracterizados por padrões rígidos de comportamento<br />

mantidos pelos distúrbios <strong>da</strong>s funções do self.<br />

1. Conceituação e Constituição do Self e <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de<br />

Com base nas elaborações de Perls sobre self e personali<strong>da</strong>de,<br />

compreende-se que o desenvolvimento e o<br />

funcionamento saudável dos referidos sistemas dependem,<br />

essencialmente, <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> relação, do contato<br />

que se estabelece com o “outro”, desde os primórdios<br />

<strong>da</strong> existência do indivíduo, uma vez que, para esse teórico,<br />

self e personali<strong>da</strong>de se constituem na fronteira entre<br />

organismo e meio.<br />

Sobre isto, Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997)<br />

esclarecem que self é o sistema de contatos e de respostas<br />

em qualquer momento, diminuindo com o sono, quando<br />

há menos necessi<strong>da</strong>de de reagir. Sua ativi<strong>da</strong>de é formar<br />

figuras e fundos e fazer ajustamentos criativos. Sendo<br />

assim, onde há mais conflito, contato e figura/fundo, há<br />

mais self; onde há mais confluência, isolamento ou equilíbrio,<br />

há um self diminuído. Desse modo, o self não tem<br />

consciência de si próprio abstratamente, mas quando está<br />

225<br />

em contato com alguma coisa, uma vez que o mesmo é<br />

considerado como sendo a fronteira de contato organismo-meio<br />

em funcionamento.<br />

Nessa linha de raciocínio, pode-se dizer que o self se<br />

constitui na proporção em que existem diferenciação e<br />

interação de limites organismo-meio, sendo, portanto, o<br />

“si mesmo”, cuja vivência e manifestação se dão na fronteira<br />

de contato. Por isso, quanto maior e mais clara for<br />

a diferenciação e a delimitação de fronteiras entre o “eu”<br />

e o “outro”, que normalmente acontece em situações de<br />

tensão e conflito, mais claramente o self se fará presente,<br />

atuando no meio de forma mais consciente, determina<strong>da</strong><br />

e agressiva, no sentido de recuperar seu equilíbrio.<br />

Em síntese, na abor<strong>da</strong>gem de Perls, o self é o “si mesmo”,<br />

tal como é vivido e percebido pelo sujeito no contato<br />

com o “outro” e consigo mesmo, sendo, portanto,<br />

um “eu” relacional, processual e consciente, que se forma<br />

e se transforma por meio de ajustamentos criativos,<br />

enquanto pensa, sente e age na busca pela satisfação de<br />

suas necessi<strong>da</strong>des e atualização de suas potenciali<strong>da</strong>des<br />

no campo organismo–meio.<br />

O ajustamento criativo como função essencial do self,<br />

pode ser definido como sendo o processo pelo qual o self<br />

promove sua autorregulação, criando formas de satisfazer<br />

suas necessi<strong>da</strong>des de acordo com as condições do meio,<br />

ou transformando essas condições para adequá-las às<br />

próprias deman<strong>da</strong>s e capaci<strong>da</strong>des. “Da<strong>da</strong> a novi<strong>da</strong>de e a<br />

varie<strong>da</strong>de indefini<strong>da</strong> do ambiente, nenhum ajustamento<br />

seria possível somente por meio <strong>da</strong> autorregulação her<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

e conservativa; o contato tem de ser uma transformação<br />

criativa” (Perls et al., 1951/1997, p. 211).<br />

Considerando que a transformação criativa do campo<br />

só acontece se o contato entre organismo e meio for<br />

pleno, o ajustamento, quando é feito através de contatos<br />

interrompidos, deixa de ser criativo para se tornar conservativo,<br />

uma vez que, na interrupção do contato, as<br />

necessi<strong>da</strong>des do organismo não são plenamente satisfeitas,<br />

as condições do meio não são transforma<strong>da</strong>s, dificultando,<br />

assim, a autorrealização e o crescimento do<br />

self, embora a preservação de sua estrutura seja garanti<strong>da</strong>.<br />

Desse modo, o ajustamento conservativo acontece<br />

sempre que o self, na impossibili<strong>da</strong>de de transformar as<br />

circunstâncias do meio, no sentido de promover sua autorrealização,<br />

atua basicamente com o objetivo de garantir<br />

sua sobrevivência e manter seu equilíbrio no nível em<br />

que o ambiente permite, o que implica em abrir mão de<br />

seus ver<strong>da</strong>deiros objetivos e interesses, para adequar-se<br />

às exigências externas.<br />

Perls et al. (1951/1997) definem personali<strong>da</strong>de co-<br />

-mo sendo o sistema de atitudes adotado nas relações<br />

interpessoais:<br />

(...) é a admissão do que somos, que serve de fun<strong>da</strong>mento<br />

pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento,<br />

caso nos fosse pedi<strong>da</strong> uma explicação.<br />

Quando o comportamento interpessoal é neurótico, a<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

personali<strong>da</strong>de consiste em alguns conceitos errôneos<br />

a respeito de nós próprios, introjetos, ideais de ego,<br />

máscaras, etc. (...) a Personali<strong>da</strong>de é uma espécie de<br />

estrutura de atitudes por nós compreendi<strong>da</strong>s, que podem<br />

ser emprega<strong>da</strong>s em todo tipo de comportamento<br />

interpessoal (pp. 187-188).<br />

Sendo um sistema de atitudes adotado pelo sujeito,<br />

que fun<strong>da</strong>menta a explicação deste sobre o próprio comportamento,<br />

a personali<strong>da</strong>de corresponde à maneira particular<br />

de ca<strong>da</strong> um ser no mundo, influenciando e sendo<br />

influencia<strong>da</strong> pela percepção que se tem de “si mesmo”,<br />

que é construí<strong>da</strong> pela “função personali<strong>da</strong>de” do self,<br />

através <strong>da</strong> seleção e integração de experiências que se<br />

harmonizam com o autoconceito até então assumido pelo<br />

sujeito, fazendo com que as demais experiências sejam<br />

distorci<strong>da</strong>s, excluí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> consciência, ou coloca<strong>da</strong>s fora<br />

<strong>da</strong>s fronteiras do self.<br />

Além <strong>da</strong> “função personali<strong>da</strong>de”, Perls et al. (1951/<br />

1997) afirmam que o self possui outras duas funções, “id”<br />

e “ego” que, juntamente com a “personali<strong>da</strong>de”, correspondem<br />

às etapas do processo de ajustamento criativo:<br />

pré-contato, contato e pós-contato.<br />

Enquanto “id” e “ego” são funções de autorregulação,<br />

nas quais o self interage com o meio, em busca <strong>da</strong> satisfação<br />

de suas necessi<strong>da</strong>des, possibilitando uma consciência<br />

vivencia<strong>da</strong> de “si mesmo”, a “personali<strong>da</strong>de” é<br />

uma função de seleção, integração, organização e síntese<br />

de experiências vivencia<strong>da</strong>s na fronteira de contato,<br />

propiciando o desenvolvimento de uma consciência representa<strong>da</strong><br />

de self. É como se ca<strong>da</strong> experiência de contato<br />

– vivencia<strong>da</strong> em determina<strong>da</strong>s circunstâncias, nas<br />

quais o sujeito assume atitudes, enquanto desempenha<br />

um papel (pai, filho, chefe, subordinado, salvador, vítima,<br />

vilão, etc.) – fosse gera<strong>da</strong> e, ao mesmo tempo, gerasse<br />

uma representação de “si mesmo”, ou seja, um “eu parcial”,<br />

que após ser integrado aos demais, irá fazer parte<br />

de um “Eu total”, resultante <strong>da</strong> organização e síntese de<br />

vários “eus parciais”. É o “Eu total” que vai permanecer<br />

no fundo, influenciando e sendo influenciado pelas atitudes<br />

do sujeito em ca<strong>da</strong> situação e pelas representações<br />

parciais de “si mesmo”.<br />

Enquanto no funcionamento saudável, o “Eu total”<br />

está constantemente se reorganizando, a partir <strong>da</strong> integração<br />

de novos “eus parciais” referentes às novas experiências<br />

vivencia<strong>da</strong>s em circunstâncias diferentes,<br />

no funcionamento neurótico, onde acontece o distúrbio<br />

<strong>da</strong> “função personali<strong>da</strong>de”, o “Eu total” tende a permanecer<br />

<strong>da</strong> mesma forma, pois, muitas experiências, que<br />

não se harmonizam com sua configuração atual, são<br />

nega<strong>da</strong>s ou distorci<strong>da</strong>s, para que a integri<strong>da</strong>de de sua<br />

estrutura seja preserva<strong>da</strong>. Além disso, as representações<br />

parciais de self são construí<strong>da</strong>s, principalmente,<br />

a partir de mensagens bionegativas introjeta<strong>da</strong>s, como<br />

por exemplo: sou covarde e deveria ser mais corajoso;<br />

sou acomo<strong>da</strong>do e deveria ser mais esforçado, sou de-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

Rafael A. A. Prado; Marcus T. Cal<strong>da</strong>s; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto<br />

sastrado e deveria ser mais cui<strong>da</strong>doso, etc. (Tenório,<br />

2003a; 2005).<br />

Nestas condições, a personali<strong>da</strong>de se caracteriza por<br />

padrões rígidos de comportamento determinados por dois<br />

tipos de autoconceito, ambos introjetados e distorcidos,<br />

um deles referente a um “eu” vivenciado como real (covarde,<br />

acomo<strong>da</strong>do e desastrado) e o outro vinculado a<br />

um “eu” encarado como ideal (corajoso, esforçado e cui<strong>da</strong>doso).<br />

Por terem sido originados pela internalização do<br />

“outro dominador”, tanto o “eu real” quanto o “eu ideal”<br />

introjetados irão dominar e sabotar o “eu real” e o “eu<br />

ideal” não introjetados construídos a partir de experiências,<br />

cujas significações e representações se basearam em<br />

avaliações organísmicas. (Tenório, 2003b; 2005)<br />

A “função id”, mesmo em sua plena ativi<strong>da</strong>de, é caracteriza<strong>da</strong><br />

por uma percepção vaga do meio ambiente,<br />

prevalecendo as sensações proprioceptivas, que emergem<br />

como figura e produzem reações instantâneas, descomprometi<strong>da</strong>s<br />

com as deman<strong>da</strong>s externas. No pré-contato,<br />

onde o self funciona através do “id”, suas fronteiras ain<strong>da</strong><br />

não foram totalmente reconstruí<strong>da</strong>s, após serem dissolvi<strong>da</strong>s<br />

na experiência recente de pleno envolvimento<br />

e troca com o “outro”, na fase final do contato com este.<br />

Nestas circunstâncias, o self assume características de<br />

um “eu” frágil e incipiente, que se comporta de modo irracional<br />

e irresponsável, incapaz de fazer ajustamentos<br />

criativos, <strong>da</strong><strong>da</strong> a impossibili<strong>da</strong>de de perceber com clareza,<br />

avaliar, enfrentar e transformar delibera<strong>da</strong>mente seu<br />

campo existencial, semelhante ao que acontece no distúrbio<br />

<strong>da</strong> “função ego”.<br />

Com base nesse pressuposto, supõe-se que, nas neuroses,<br />

o “id” seja a função mais preserva<strong>da</strong>, garantindo<br />

a satisfação mínima <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des indispensáveis à<br />

sobrevivência do self, uma vez que, nessa função, a priori<strong>da</strong>de<br />

do self é garantir seu equilíbrio e sua integri<strong>da</strong>de,<br />

através de uma autorregulação her<strong>da</strong><strong>da</strong> e conservativa,<br />

manti<strong>da</strong> por comportamentos reativos, automáticos e impulsivos,<br />

nos quais é empregado o menor esforço possível,<br />

no sentido de reduzir as tensões vivencia<strong>da</strong>s no campo<br />

organismo-meio. No entanto, nas psicoses, a “função id”,<br />

como as demais funções do self, encontra-se totalmente<br />

anula<strong>da</strong>, pois, devido ao rompimento <strong>da</strong>s fronteiras, desintegração<br />

e fragmentação do “Eu total” em seus diversos<br />

“eus parciais”, fica impossível manter o equilíbrio<br />

mínimo no mundo interno e externo, como também minimizar<br />

o sofrimento causado pela desorganização, contradição<br />

e incoerência dos pensamentos, sentimentos e<br />

comportamentos.<br />

No exercício pleno <strong>da</strong> “função ego”, o self é vivenciado<br />

e se manifesta como um “eu” racional, ativo, determinado<br />

e consciente, com capaci<strong>da</strong>de para fazer ajustamentos<br />

criativos, na medi<strong>da</strong> em que estabelece claramente<br />

suas fronteiras, percebe as deman<strong>da</strong>s do campo, escolhe<br />

comportamentos mais apropriados para atendê-las, discriminando<br />

o que pertence a “si” e ao “outro”, o que é tóxico<br />

e nutritivo ao seu organismo, para, em segui<strong>da</strong>, abrir<br />

226


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard<br />

ou fechar suas fronteiras, aceitar (identificar) ou recusar<br />

(alienar) o que vem de fora, com o objetivo de promover<br />

seu equilíbrio, sua autorrealização e seu crescimento.<br />

Esse é o funcionamento saudável, caracterizado pelo fortalecimento<br />

<strong>da</strong>s fronteiras e <strong>da</strong> “função ego” do self, pelo<br />

ajustamento criativo, pelo contato não interrompido com<br />

o “outro” e consigo mesmo.<br />

Apesar <strong>da</strong> afirmação de Perls et al. (1951/1997) de que<br />

as neuroses resultam <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong> “função ego” do self, o<br />

que se pretende mostrar aqui é que tal per<strong>da</strong> gera as psicoses,<br />

enquanto o enfraquecimento ou o distúrbio dessa<br />

função gera as neuroses, embora estas, em determinados<br />

casos e circunstâncias, possam evoluir para as psicoses.<br />

Nesta perspectiva, supõe-se que os sintomas psicóticos<br />

podem ser desencadeados por intensos conflitos<br />

responsáveis pela completa falência <strong>da</strong>s fronteiras e <strong>da</strong>s<br />

funções do self, que já se encontravam debilita<strong>da</strong>s pelas<br />

introjeções tóxicas e consequente luta entre “eu dominador”<br />

e “eu dominado”. Sendo assim, todo psicótico seria,<br />

no fundo, um neurótico, mas nem todo neurótico seria<br />

um psicótico, uma vez que a passagem do primeiro para<br />

o segundo tipo de transtorno iria depender do nível de<br />

vulnerabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s funções e <strong>da</strong>s fronteiras do self, bem<br />

como <strong>da</strong> intensi<strong>da</strong>de dos conflitos vivenciados tanto no<br />

mundo interno quanto externo.<br />

No distúrbio <strong>da</strong> “função ego”, que acontece nas neuroses,<br />

e na per<strong>da</strong> dessa função, que se dá nas psicoses,<br />

as fronteiras do “eu” estão enfraqueci<strong>da</strong>s (neurose), ou<br />

rompi<strong>da</strong>s (psicose), desse modo, a consciência <strong>da</strong>s diferenças<br />

e a capaci<strong>da</strong>de para discriminar figura e fundo,<br />

“eu” e “outro” ficam diminuí<strong>da</strong>s (neurose) ou ausentes<br />

(psicose), dificultando (neurose) ou impossibilitando (psicose)<br />

a formação e destruição de novas figuras. Com isto,<br />

nas neuroses e nas psicoses, a mobilização do organismo<br />

é bloquea<strong>da</strong> ou desfoca<strong>da</strong>, a ação e a interação com<br />

o meio são inadequa<strong>da</strong>s ou obsoletas, e o contato final é<br />

abortado, impossibilitando a satisfação <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de,<br />

o fechamento <strong>da</strong> figura e a recuperação do equilíbrio no<br />

campo organismo-meio.<br />

Desse modo, as figuras que ficam em aberto contaminam<br />

o campo perceptivo e fazem com que a situação do<br />

momento seja avalia<strong>da</strong> de modo incoerente com a reali<strong>da</strong>de,<br />

uma vez que a significação <strong>da</strong> experiência vivi<strong>da</strong><br />

no aqui e agora é influencia<strong>da</strong> pelos impasses existenciais<br />

do passado, que permanecem mal resolvidos como<br />

“microcampos” introjetados. Essa é a explicação para a<br />

percepção <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de parcialmente distorci<strong>da</strong> nas neuroses,<br />

que favorece a repetição de mecanismos de interrupção<br />

do contato, a fixação <strong>da</strong>s fronteiras na abertura<br />

ou no fechamento e a manutenção de padrões rígidos de<br />

comportamentos, que caracterizam os Transtornos <strong>da</strong><br />

Personali<strong>da</strong>de. Também é a explicação para a percepção<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de totalmente distorci<strong>da</strong> nas psicoses, responsável<br />

pela formação dos delírios e alucinações, através<br />

<strong>da</strong> projeção no meio e nos outros dos introjetos tóxicos e<br />

dos aspectos alienados do self.<br />

227<br />

Com relação ao processo de desenvolvimento <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de,<br />

Perls (1947/2002) entende que suas bases se<br />

formam ao longo dos dois primeiros anos de vi<strong>da</strong>, através<br />

de estágios que se correlacionam com as etapas de<br />

nascimento dos dentes, uma vez que, para esse teórico, o<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de para morder, mastigar e<br />

digerir o alimento, ou seja, para desestruturar, transformar<br />

e assimilar o que é oferecido pelo meio, é de fun<strong>da</strong>mental<br />

importância para a constituição saudável do self<br />

e <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de.<br />

Quero dizer que o alimento psicológico que nos oferece<br />

o mundo externo – o alimento de fatos e atitudes<br />

sobre o qual se constroem as personali<strong>da</strong>des – tem que<br />

ser assimilado exatamente <strong>da</strong> mesma forma que nosso<br />

alimento real. Tem que ser desestruturado, analisado,<br />

separado e, de novo, reunido sob a forma que nos será<br />

mais valiosa. Se for meramente engolido inteiro não<br />

contribui para o desenvolvimento de nossas personali<strong>da</strong>des<br />

(Perls, 1973/1981, p. 47)<br />

Neste sentido, o self e a personali<strong>da</strong>de se desenvolvem<br />

no contato com o “outro”, através de processos de ajustamentos<br />

criativos, nos quais a criança assume, gra<strong>da</strong>tivamente,<br />

uma postura mais consciente, ativa e independente,<br />

na busca pela satisfação de suas necessi<strong>da</strong>des e<br />

recuperação de seu equilíbrio no campo organismo-meio.<br />

No entanto, para que isto aconteça, é imprescindível<br />

que os contatos mantidos com a criança sejam suficientemente<br />

saudáveis, para que ela possa se diferenciar do<br />

“outro”, percebendo-se como ser único, que tem características,<br />

necessi<strong>da</strong>des e limites próprios, com capaci<strong>da</strong>de<br />

para autorrealizar-se, transformando ou a<strong>da</strong>ptando-se às<br />

condições do ambiente que lhe cerca.<br />

O contato saudável é compreendido aqui como um<br />

contato pleno e dialógico, que proporciona ao sujeito a<br />

experiência de ser respeitado e valorizado pelo “outro”<br />

em sua singulari<strong>da</strong>de, semelhante ao que é descrito por<br />

Hycner (1995) como “diálogo genuíno” inspirado na filosofia<br />

de Buber. Do ponto de vista dialógico, todo “eu” é<br />

posterior à relação, pois é no diálogo com o “tu”, diferente<br />

e separado do “eu”, que se constrói a noção de “si mesmo”<br />

e do “outro”. Nesta perspectiva, a psicopatologia acontece<br />

quando o sujeito, em seus relacionamentos interpessoais,<br />

não vivenciou, de modo suficiente, a experiência de ser<br />

confirmado pelo “outro” em sua alteri<strong>da</strong>de.<br />

Na descrição de Perls (1947/2002) sobre o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de, fica implícita a necessi<strong>da</strong>de<br />

de se estabelecer contatos satisfatórios com a criança,<br />

para que as fronteiras e as funções do self se constituam<br />

de forma plena. Isto não quer dizer que a criança, para<br />

se desenvolver de forma saudável, deva crescer em um<br />

ambiente totalmente permissivo, no entanto, é necessário<br />

que, na relação com o “outro” mais significativo,<br />

prevaleça o contato pleno e dialógico, onde ambos se<br />

coloquem de forma inteira e espontânea, respeitando-se<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

mutuamente em suas diferenças, o que torna impossível<br />

uma relação sem renúncias, desafios, conflitos e ajustamentos<br />

criativos. Por outro lado, todo contato pressupõe<br />

diferenciação e troca entre “eu” e “não eu”, que implica<br />

numa consciência ampla de “si mesmo” e do “outro”,<br />

mobilização em busca <strong>da</strong> satisfação mútua, através <strong>da</strong><br />

criação de estratégias, pelas quais ambos se modificam,<br />

adequando-se um ao outro.<br />

(...) quando duas pessoas se encontram, inicia-se o<br />

jogo do encontro (...). Assim, elas estão à procura de<br />

um interesse comum, ou de um mundo em comum,<br />

onde passam repentinamente do eu e você para o nós.<br />

Desta forma, surge um novo fenômeno, o nós, que é<br />

diferente do eu e você. (...) E quando nos encontramos,<br />

então eu mudo e você mu<strong>da</strong>, através do processo de<br />

um encontro mútuo (Perls, 1969/1977, p. 21).<br />

Se a criança vivenciar, com frequência, a experiência<br />

de ser aceita e confirma<strong>da</strong> pelo “outro”, mais tarde<br />

ela poderá estabelecer um diálogo consigo mesma,<br />

mantendo contato com todos os aspectos do self, inclusive<br />

com aqueles que, aparentemente, são ameaçadores,<br />

favorecendo, assim, seu funcionamento saudável.<br />

Se ela tiver que ser como os “outros” desejam que ela<br />

seja, tendo que negar suas diferenças, para não entrar<br />

em conflito com eles, ao invés de uma diferenciação,<br />

haverá uma confluência com os mesmos, comprometendo<br />

a constituição plena <strong>da</strong>s fronteiras e <strong>da</strong>s funções<br />

do self. “Todo indivíduo, to<strong>da</strong> planta, todo animal tem<br />

apenas um objetivo inato – realizar-se naquilo que é”<br />

(Perls, 1969/1977, p. 52).<br />

2. Constituição e Caracterização <strong>da</strong>s psicopatologias<br />

O contato interrompido e não dialógico, ao contrário<br />

do contato pleno e dialógico, se caracteriza por um tipo de<br />

relação dominador-dominado, onde as pessoas assumem<br />

atitudes impositivas ou subservientes diante <strong>da</strong> outra.<br />

Nesse contexto, existe uma grande diferenciação e separação<br />

manti<strong>da</strong>s por fronteiras impermeáveis ou fecha<strong>da</strong>s<br />

do lado impositivo e dominante, e uma indiferenciação<br />

e confluência manti<strong>da</strong>s por fronteiras muito permeáveis<br />

ou abertas do lado subserviente e dominado, dificultando<br />

o encontro e a troca entre os dois e favorecendo o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong>s psicopatologias.<br />

Na relação entre pais e filhos é comum acontecer<br />

contatos interrompidos e não dialógicos, principalmente<br />

quando os pais são demasia<strong>da</strong>mente rígidos e autoritários.<br />

Nesses casos, os pais não conseguem perceber as<br />

reais capaci<strong>da</strong>des e necessi<strong>da</strong>des dos filhos, assumindo<br />

atitudes extremamente dominadoras, caracteriza<strong>da</strong>s<br />

pela imposição arbitrária de regras e limites, motivados<br />

pela necessi<strong>da</strong>de de criarem indivíduos perfeitos, como<br />

eles mesmos gostariam, mas não conseguiram ser. Isto<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

Rafael A. A. Prado; Marcus T. Cal<strong>da</strong>s; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto<br />

faz com que os filhos sejam excessivamente cobrados,<br />

controlados e tolhidos completamente em sua liber<strong>da</strong>de<br />

e individuali<strong>da</strong>de.<br />

No entanto, esses contatos interrompidos e não dialógicos<br />

também acontecem quando os pais são extremamente<br />

permissivos e indulgentes, com dificul<strong>da</strong>des<br />

para impor limites, submetendo-se aos filhos, por medo<br />

de frustrá-los e magoá-los. Nesse contexto, os filhos não<br />

conseguem crescer emocionalmente, permanecendo com<br />

baixa tolerância às frustrações e com medo de enfrentar<br />

as adversi<strong>da</strong>des do dia a dia. Esses pais, por serem extremamente<br />

imaturos ou problemáticos, não conseguem<br />

desempenhar suas funções adequa<strong>da</strong>mente, tornando-se<br />

reféns dos próprios filhos. A fragili<strong>da</strong>de e a submissão<br />

dos pais em relação aos filhos faz com que estes tenham<br />

uma visão deturpa<strong>da</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, interrompendo o contato<br />

com aspectos do self e do ambiente que entram em<br />

contradição com suas fantasias e idealizações a respeito<br />

de si e do mundo.<br />

No processo de crescimento existem duas escolhas.<br />

A criança pode crescer e aprender a superar frustrações,<br />

ou pode ser mima<strong>da</strong> de forma a receber tudo<br />

o que quiser, porque a criança deve ter tudo o que o<br />

papai nunca teve, ou porque os pais não sabem como<br />

frustrar os filhos. (...) Sem frustração não existe necessi<strong>da</strong>de,<br />

não existe razão para mobilizar os próprios<br />

recursos, para descobrir a própria capaci<strong>da</strong>de para<br />

fazer alguma coisa e, a fim de não se frustrar, que é<br />

uma experiência muito dolorosa, a criança aprende<br />

a manipular o ambiente. (Perls, 1969/1977, pp. 54-55)<br />

Nos relacionamentos em que os pais frustram, reprimem<br />

e controlam excessivamente os filhos, a vulnerabili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s fronteiras <strong>da</strong> criança, que ain<strong>da</strong> estão em<br />

formação, favorece a introjeção de mensagens nocivas e<br />

irrealistas a respeito de “si mesma”, responsável por uma<br />

distorção “negativa” <strong>da</strong> autoimagem, na qual ela passa a<br />

se perceber como culpa<strong>da</strong>, má e inadequa<strong>da</strong>. Essa distorção<br />

“negativa” também acontece quando a criança é extremamente<br />

protegi<strong>da</strong>. A superproteção dos pais reforça<br />

a fragili<strong>da</strong>de e a inferiori<strong>da</strong>de do filho, fazendo com que<br />

ele, apesar do avanço de sua i<strong>da</strong>de, continue se percebendo<br />

como incapaz de conduzir a própria vi<strong>da</strong>. É essa distorção<br />

“negativa” <strong>da</strong> autoimagem que vai gerar os sentimentos<br />

crônicos de impotência e menos valia típicos do<br />

funcionamento neurótico.<br />

No contexto familiar em que os filhos são supervalorizados,<br />

a imaturi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s fronteiras do self favorece<br />

a introjeção de mensagens de engrandecimento irreal,<br />

responsável por uma distorção “positiva” <strong>da</strong> autoimagem,<br />

na qual a criança passa a se perceber como alguém<br />

especial, dificultando suas relações interpessoais, uma<br />

vez que, como defesa, procura se manter fecha<strong>da</strong>, por<br />

medo de ser desmascara<strong>da</strong> pelo “outro” e confronta<strong>da</strong><br />

com as próprias limitações, ou por não ter interesse em<br />

228


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard<br />

aprofun<strong>da</strong>r a relação com esse “outro”, por considerá-lo<br />

desagradável, insignificante ou inferior.<br />

Diante <strong>da</strong>s reflexões feitas até o momento, percebe-<br />

-se que, enquanto o funcionamento saudável é promovido<br />

pela vivência de contatos plenos e dialógicos com o<br />

“outro”, o adoecimento psicológico tem como base a experiência<br />

intensa e frequente de contatos interrompidos<br />

e não dialógicos, nos quais são introjetados conceitos, valores,<br />

normas e exigências impostas arbitrariamente pelo<br />

“outro” de grande significação afetiva para o indivíduo,<br />

propiciando a internalização do conflito “dominador-dominado”,<br />

como explica Perls (1975/1977):<br />

229<br />

O potencial humano é diminuído tanto pelas ordens<br />

não apropria<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, como pelo conflito<br />

interno. A parábola de Freud sobre as duas serventes<br />

brigando, resultando em ineficiência é, na minha<br />

opinião, novamente uma meia ver<strong>da</strong>de. Realmente são<br />

os patrões que brigam. (...) Na minha linguagem, eu<br />

chamo os patrões que brigam de dominador (topdog)<br />

e dominado (underdog). A batalha entre os dois é<br />

tanto interna quanto externa. O dominador pode ser<br />

descrito como exigente, punitivo, autoritário e primitivo.<br />

(...) Integração e cura só podem ser consegui<strong>da</strong>s<br />

quando a necessi<strong>da</strong>de de controle entre dominador e<br />

dominado cessa (pp. 24-25).<br />

Conforme foi abor<strong>da</strong>do anteriormente, é no contexto<br />

familiar autoritário e controlador, que a criança vivencia<br />

o conflito “dominador–dominado”, que ao ser internalizado,<br />

irá produzir as neuroses. Esse conflito é, para<br />

criança, um ver<strong>da</strong>deiro impasse existencial, no qual ela<br />

vivencia uma situação que é, ao mesmo tempo, intolerável<br />

e inevitável. Sentindo-se totalmente dependente e impotente<br />

diante de seu “dominador”, a criança se vê obriga<strong>da</strong><br />

a fazer o que é exigido por este, embora seja incompatível<br />

com seus interesses, para evitar a possibili<strong>da</strong>de de ser puni<strong>da</strong>,<br />

ou abandona<strong>da</strong> por ele. Nesta situação, ela não encontra<br />

outra saí<strong>da</strong> a não ser submeter-se completamente<br />

às vontades do “dominador”, abrindo mão <strong>da</strong>quilo que é<br />

essencial à sua autorrealização, o que favorece a introjeção<br />

de mensagens bionegativas, tais como: eu não sou<br />

boa o suficiente; eu faço tudo errado; eu sou culpa<strong>da</strong> (real<br />

introjetado); “eu tenho que ser melhor, mais obediente,<br />

controla<strong>da</strong> e cui<strong>da</strong>dosa” (ideal introjetado), que irão favorecer<br />

o desenvolvimento <strong>da</strong>s neuroses caracteriza<strong>da</strong>s<br />

por comportamentos dependentes, tímidos, retraídos,<br />

exigentes, perfeccionistas e ansiosos.<br />

No contexto indulgente e permissivo, o conflito e o<br />

impasse existencial é vivenciado pela criança, na medi<strong>da</strong><br />

em que ela precisa ser protegi<strong>da</strong>, orienta<strong>da</strong> e conti<strong>da</strong><br />

pelo “outro”, mas percebe que esse “outro” não é forte,<br />

seguro, ou maduro o suficiente para lhe <strong>da</strong>r proteção e<br />

orientação, deixando de colocar os limites indispensáveis<br />

à sua segurança e crescimento. Ao se sentir totalmente<br />

insegura e desampara<strong>da</strong>, a criança introjeta as mensa-<br />

gens induzi<strong>da</strong>s pela fragili<strong>da</strong>de e impotência do adulto:<br />

eu tenho que ser forte; eu tenho que me controlar; eu não<br />

posso falhar; eu tenho que me virar sozinha (ideal introjetado,<br />

que vai funcionar como dominador no neurótico<br />

com traços obsessivo-compulsivos). Ela também pode introjetar<br />

mensagens como essas: eu sou especial; eu sou<br />

melhor que os outros; eu mereço ter tudo que quero (real<br />

introjetado, que vai atuar como dominador no neurótico<br />

com traços narcisistas).<br />

São esses “eus introjetados” (real e ideal) que irão<br />

funcionar como “eu dominador”. Na tentativa de minimizar<br />

o conflito interno gerado pelas incoerências entre<br />

as experiências vivi<strong>da</strong>s (“eu dominado”) e as representações<br />

deturpa<strong>da</strong>s de si mesmo (“eu dominador”), o<br />

neurótico interrompe o contato com o “outro” e consigo<br />

mesmo de forma crônica e obsoleta. Ao interromper<br />

o contato como o “outro”, ele perde a oportuni<strong>da</strong>de de<br />

assimilar o novo e transformar o campo, bloqueando,<br />

assim, sua autorrealização e seu crescimento. Na interrupção<br />

do contato consigo mesmo, o neurótico desconhece,<br />

nega ou distorce algumas de suas experiências<br />

e características que, embora sejam inerentes a “si mesmo”<br />

(eu dominado), são incompatíveis com os introjetos<br />

tóxicos (eu dominador).<br />

O “eu dominador” é um tirano implacável e exigente,<br />

cujas imposições, quase sempre, emergem como figura,<br />

sobrepondo-se às deman<strong>da</strong>s do “eu dominado”, as quais<br />

permanecem no fundo. No entanto, podem existir momentos<br />

de extrema tensão, em que as necessi<strong>da</strong>des do<br />

“eu dominado” se tornam urgentes e atingem o primeiro<br />

plano <strong>da</strong> consciência fazendo com que este se rebele<br />

contra seu “dominador” e, apesar de sua timidez e fragili<strong>da</strong>de,<br />

consiga assumir o poder, satisfazendo seus desejos,<br />

através de atitudes ousa<strong>da</strong>s, impulsivas e inconsequentes,<br />

que são, muitas vezes, incoerentes com os valores<br />

e normas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, como acontece com algumas<br />

pessoas que manifestam comportamentos extremamente<br />

descontrolados, imaturos, ou caracteristicamente antissociais.<br />

É assim que, no processo de autorregulação<br />

organísmica, a “função ego” enfraqueci<strong>da</strong> pelo conflito<br />

“dominador-dominado”, perde sua capaci<strong>da</strong>de de fazer<br />

ajustamentos criativos, cedendo espaço para a “função<br />

id”, que em casos de emergência assume, naturalmente,<br />

o controle <strong>da</strong> situação.<br />

No processo de constituição <strong>da</strong>s psicoses, como foi<br />

explicado antes, a extrema fragili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s fronteiras e<br />

<strong>da</strong> “função ego” do self, causa<strong>da</strong> pelo intenso conflito<br />

dominador-dominado vivenciado no mundo tanto externo,<br />

quanto interno, faz com que o “Eu total” perca sua<br />

uni<strong>da</strong>de, fragmentando-se em vários “eus” desconectados<br />

um do outro e em constante luta entre si, produzindo<br />

pensamentos e sentimentos opostos, que se alternam<br />

e mu<strong>da</strong>m rapi<strong>da</strong>mente. Isto faz com que as figuras, referentes<br />

às priori<strong>da</strong>des do self, não se destaquem inteiramente<br />

do fundo, nem permaneçam o tempo suficiente<br />

para que sejam completa<strong>da</strong>s. Sendo o fundo constituído<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

por figuras inacaba<strong>da</strong>s, conflitos mal resolvidos e introjetos<br />

tóxicos desintegrados <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de do self, as novas<br />

figuras são contamina<strong>da</strong>s pelas experiências vivencia<strong>da</strong>s<br />

anteriormente e pelas polari<strong>da</strong>des aliena<strong>da</strong>s de “si<br />

mesmo”, fazendo com que a percepção do campo atual<br />

seja completamente distorci<strong>da</strong>, desencadeando delírios<br />

e alucinações.<br />

Quanto ao processo de constituição <strong>da</strong>s neuroses, é<br />

importante enfatizar que o enfraquecimento <strong>da</strong>s fronteiras<br />

e <strong>da</strong> função “ego” do self faz com que as interrupções<br />

do contato se tornem padrões rígidos de funcionamento,<br />

ou ajustamentos conservativos, caracterizados pelas<br />

tendências para fixação <strong>da</strong>s fronteiras na abertura ou no<br />

fechamento. Nessas duas formas de fixação, os sentimentos<br />

de “menos valia” e impotência, sejam como figura ou<br />

fundo, favorecem a aproximação, confiança e aceitação<br />

do “outro”, ou o afastamento, desconfiança e rejeição<br />

deste. Sendo assim, enquanto no funcionamento fixado<br />

na abertura o “outro” é visto como sendo essencialmente<br />

bom e confiável, representando a possibili<strong>da</strong>de de equilíbrio,<br />

satisfação, vantagem e bem estar, no fechamento<br />

crônico <strong>da</strong>s fronteiras do self, o “outro” é encarado como<br />

sendo essencialmente mau e traiçoeiro, com grande probabili<strong>da</strong>de<br />

de lhe proporcionar desequilíbrio, frustração,<br />

desvantagem e mal estar.<br />

Os neuróticos com fixação de suas fronteiras na abertura,<br />

portanto, acreditam que podem ter uma vi<strong>da</strong> mais<br />

tranquila e prazerosa, na medi<strong>da</strong> em que conseguirem<br />

conquistar a confiança, o respeito e o apoio dos outros,<br />

procurando, compulsivamente, atender às expectativas<br />

destes. Devido ao sentimento de menos valia, fragili<strong>da</strong>de<br />

e impotência em relação à maioria <strong>da</strong>s pessoas, esse<br />

tipo de neurótico costuma desenvolver estratégias de<br />

sedução e manipulação, desempenhando papéis (bonzinho,<br />

coitadinho, certinho, etc.), que facilitem o reconhecimento<br />

e o acolhimento por parte <strong>da</strong>queles com os<br />

quais convive diariamente. Essas características neuróticas<br />

correspondem à descrição feita pelo DSM-IV dos<br />

Transtornos <strong>da</strong> Personali<strong>da</strong>de Dependente, Borderline<br />

e Histriônica.<br />

A característica essencial do Transtorno <strong>da</strong> Personali<strong>da</strong>de<br />

Dependente é uma necessi<strong>da</strong>de invasiva de<br />

ser cui<strong>da</strong>do, que leva a um comportamento submisso<br />

e aderente e ao medo <strong>da</strong> separação. (...) Os comportamentos<br />

dependentes e submissos visam a obter<br />

atenção e cui<strong>da</strong>dos e surgem de uma percepção de si<br />

mesmo como incapaz de funcionar adequa<strong>da</strong>mente<br />

sem o auxílio de outras pessoas. (...) Como temem<br />

perder o apoio ou aprovação, muitas vezes têm dificul<strong>da</strong>de<br />

em expressar discordância de outras pessoas,<br />

especialmente aquelas <strong>da</strong>s quais dependem. (...) Eles<br />

não ficam zangados, quando seria adequado, com as<br />

pessoas cujo apoio e atenção necessitam, por medo<br />

de afastá-las (American Psychiatric Association,<br />

1995, p. 627).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

Rafael A. A. Prado; Marcus T. Cal<strong>da</strong>s; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto<br />

Conforme descrição do DSM-IV, no Transtorno <strong>da</strong><br />

Personali<strong>da</strong>de Borderline também é marcante o sentimento<br />

de vazio crônico e de dependência em relação ao<br />

“outro”, produzido por uma percepção de “si mesmo”<br />

como alguém sem valor e incapaz de sobreviver por conta<br />

própria. A diferença é que no Borderline existe uma<br />

grande instabili<strong>da</strong>de e impulsivi<strong>da</strong>de emocional, na qual<br />

o sujeito valoriza e ama intensamente o “outro”, mas, de<br />

uma hora para outra, o despreza e o odeia com a mesma<br />

intensi<strong>da</strong>de. Essa instabili<strong>da</strong>de está relaciona<strong>da</strong> à alternância<br />

de fortes sentimentos de satisfação e frustração,<br />

acolhimento e abandono, vivenciados na relação com o<br />

“outro”, com quem mantém ligação afetiva. Outro aspecto<br />

desse tipo de transtorno é a automutilação recorrente,<br />

utiliza<strong>da</strong> como forma de manipulação, e a fragili<strong>da</strong>de<br />

acentua<strong>da</strong> do sentimento de self.<br />

Tanto no Transtorno Borderline quanto no Transtorno<br />

Dependente, o indivíduo manifesta medo do abandono,<br />

mas o “borderline” reage a esse abandono com raiva e exigências,<br />

ao passo que o “dependente” reage com crescente<br />

humil<strong>da</strong>de e submissão, buscando urgentemente um<br />

novo relacionamento que lhe dê a segurança e o apoio<br />

que ele tanto necessita. Os indivíduos com Transtorno<br />

<strong>da</strong> Personali<strong>da</strong>de Histriônica, como no Transtorno <strong>da</strong><br />

Personali<strong>da</strong>de Dependente têm uma forte necessi<strong>da</strong>de de<br />

amparo e aprovação, podendo parecer infantis e demasia<strong>da</strong>mente<br />

apegados. Entretanto, enquanto o “dependente”<br />

se caracteriza por uma autoanulação e comportamento<br />

dócil, o “histriônico” se caracteriza pela exuberância,<br />

com exigência ativa de atenção.<br />

Com relação aos padrões fixados no fechamento <strong>da</strong>s<br />

fronteiras do self, é necessário esclarecer que eles se caracterizam<br />

por três tipos de funcionamento gerados por<br />

três formas de distorção <strong>da</strong> autoimagem: negativa, positiva<br />

primária e positiva secundária, associa<strong>da</strong>s à percepção<br />

do “outro” como alguém que é potencialmente mau<br />

e traiçoeiro, ou essencialmente insignificante e culpado,<br />

por isso, merece sofrer.<br />

O primeiro tipo de fixação no fechamento se correlaciona<br />

com o Transtorno de Personali<strong>da</strong>de Esquiva e tem<br />

como base uma distorção “negativa” <strong>da</strong> autoimagem, na<br />

qual a pessoa se sente frágil, inferior e impotente em relação<br />

aos outros, os quais são percebidos como ameaçadores,<br />

precisando, portanto, se proteger ou evitar o contato<br />

com eles. O segundo tipo de fixação no fechamento <strong>da</strong>s<br />

fronteiras do self se desenvolve a partir de uma distorção<br />

“positiva primária” <strong>da</strong> autoimagem, correspondendo ao<br />

“padrão egotista” de comportamento, tal como é definido<br />

e descrito pela abor<strong>da</strong>gem gestáltica, que se correlaciona<br />

com os Transtornos <strong>da</strong> Personali<strong>da</strong>de Narcisista e<br />

Antissocial nos aspectos referentes à tendência do indivíduo<br />

para ser egocêntrico, volúvel, superficial, explorador,<br />

arrogante, prepotente, insensível e destituído de empatia.<br />

Segundo Dias (1994), o “egotista” tem uma autoconsciência<br />

exacerba<strong>da</strong>, isto é, ele costuma vigiar excessivamente<br />

suas fronteiras, selecionando criteriosamente tudo<br />

230


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard<br />

que entra e sai de seu sistema, com medo de se entregar<br />

afetivamente ao “outro” e ser dominado ou sufocado por<br />

este. Nestas circunstâncias, como forma de defesa, ele<br />

mantém suas fronteiras fixa<strong>da</strong>s no fechamento, interrompendo<br />

seus contatos, através de mecanismos como a<br />

retroflexão e a projeção, permanecendo emocionalmente<br />

isolado em relação à maioria <strong>da</strong>s pessoas, uma vez que<br />

sempre conta com a possibili<strong>da</strong>de de ser traído, invadido<br />

ou abusado em seus relacionamentos. Além disso, o<br />

“egotista” constrói e se mantém fixado a uma imagem<br />

idealiza<strong>da</strong> de “si mesmo”, alimentando um falso desprezo<br />

pelo “outro”, enquanto o “eu” é ilusoriamente enaltecido<br />

pela aquisição de características irreais de extremo<br />

valor, capaci<strong>da</strong>de e poder.<br />

Dessa maneira, tanto os “narcisistas”, quanto os “antissociais”<br />

podem ser considerados pessoas “egotistas”, na<br />

medi<strong>da</strong> em que funcionam como crianças egocêntricas,<br />

mima<strong>da</strong>s e sem limites, que só se preocupam com a satisfação<br />

de seus próprios desejos, sem levar em consideração<br />

as condições e as deman<strong>da</strong>s do meio. No Transtorno<br />

Narcisista <strong>da</strong> Personali<strong>da</strong>de, embora o sujeito depen<strong>da</strong><br />

do “outro” para ter a confirmação de seu próprio valor,<br />

promovendo, assim, sua satisfação e seu equilíbrio, essa<br />

dependência é frequentemente nega<strong>da</strong>. O narcisista, como<br />

todo neurótico, no fundo, se sente menor e menos capaz<br />

que o “outro”, mas, por conta <strong>da</strong> desconfiança, medo ou<br />

desprezo em relação a este, ele controla a aproximação e<br />

o envolvimento com a maioria <strong>da</strong>s pessoas, para não correr<br />

o risco de revelar e encarar suas próprias limitações,<br />

ameaçando seu “eu idealizado” construído por uma distorção<br />

“positiva primária” <strong>da</strong> autoimagem.<br />

No terceiro tipo de fixação no fechamento, desenvolvido<br />

através de uma distorção “positiva secundária” <strong>da</strong><br />

autoimagem, o indivíduo “egotista”, além de manifestar<br />

os traços que caracterizam o segundo tipo, que é essencialmente<br />

narcisista, sua personali<strong>da</strong>de também evidencia<br />

aspectos que, provavelmente, foram desencadeados<br />

pelas experiências de abuso e vitimização vivencia<strong>da</strong>s<br />

na infância ou adolescência, os quais correspondem aos<br />

critérios para o diagnóstico diferencial do Transtorno<br />

<strong>da</strong> Personali<strong>da</strong>de Antissocial em relação ao Transtorno<br />

Narcisista: dificul<strong>da</strong>de para adequar-se às normas sociais,<br />

propensão para enganar ou ludibriar os outros para<br />

obter vantagens pessoais, impulsivi<strong>da</strong>de, agressivi<strong>da</strong>de,<br />

irresponsabili<strong>da</strong>de consistente e ausência de remorso.<br />

Como se pode perceber, a personali<strong>da</strong>de antissocial,<br />

psicopata ou perversa, embora compartilhe alguns aspectos<br />

com a personali<strong>da</strong>de “narcisista”, o indivíduo<br />

“antissocial” se diferencia basicamente pela autoestima<br />

fortaleci<strong>da</strong>, pela raiva e agressivi<strong>da</strong>de, com necessi<strong>da</strong>de<br />

de controlar e dominar os outros, para não correr o risco<br />

de ser controlado e dominado por eles.<br />

231<br />

Os indivíduos com este transtorno não se conformam<br />

às normas pertinentes (...) (...) desrespeitam os desejos,<br />

direitos ou sentimentos alheios. (...) As decisões são<br />

toma<strong>da</strong>s ao sabor do momento, de maneira impensa<strong>da</strong>,<br />

sem considerar as consequências para si mesmos ou<br />

para outros. (...) tendem a ser irritáveis ou agressivos<br />

e podem repeti<strong>da</strong>mente entrar em lutas corporais ou<br />

cometer atos de agressão física (...) tendem a ser consistente<br />

e extremamente irresponsáveis. (...) demonstram<br />

pouco remorso pela consequência de seus atos. (...)<br />

podem acreditar que todo mundo está aí para “aju<strong>da</strong>r<br />

o número um” e que não se deve respeitar na<strong>da</strong> nem<br />

ninguém para não ser dominado (American Psychiatric<br />

Association, 1995, pp. 656-657).<br />

O medo de ser dominado confirma a hipótese de que<br />

o Transtorno Antissocial se constitui em um contexto<br />

familiar autoritário, controlador e frustrador, propiciando<br />

a distorção “positiva secundária” <strong>da</strong> autoimagem<br />

como forma de defesa contra os sentimentos de<br />

inferiori<strong>da</strong>de, vulnerabili<strong>da</strong>de e impotência produzidos<br />

por situações de impasses existenciais e de conflito<br />

“dominador-dominado”, que favorecem a introjeção<br />

de mensagens bionegativas e a fixação <strong>da</strong>s fronteiras<br />

do self na abertura.<br />

Embora em alguns casos, o “antissocial”, ou o “perverso”,<br />

no fundo, possa se sentir inferior, vulnerável e<br />

impotente, o que emerge como figura são sentimentos de<br />

superiori<strong>da</strong>de, força e poder gerados pela identificação<br />

com seu “dominador”. A suposição é de que, apesar desse<br />

indivíduo, durante uma parte de sua infância, ter alimentado<br />

a ilusão de que sua segurança e seu bem-estar<br />

poderiam ser alcançados através do contato afetivo com<br />

o “outro dominador”, a partir de uma determina<strong>da</strong> fase<br />

de sua vi<strong>da</strong>, devido às várias experiências de abuso e vitimização<br />

produzi<strong>da</strong>s por esse “outro”, ele desiste dessa<br />

ideia e começa a lutar pelo completo afastamento emocional<br />

em relação aos “outros” em geral, para não correr<br />

o risco de ser abusado novamente.<br />

Por esse motivo, é coerente dizer que o “antissocial”<br />

pode ser, no fundo, um neurótico que encontrou um jeito<br />

de não permanecer no papel humilhante e sofrido de<br />

“dominado”, identificando-se com seu “dominador” e<br />

reproduzindo o comportamento deste em suas relações<br />

interpessoais. Por outro lado, certos neuróticos, podem<br />

ser encarados como “perversos” disfarçados de “coitadinhos”,<br />

“bonzinhos” ou “certinhos”, pois, embora, muitas<br />

vezes, sinta inveja e raiva dos outros, não têm coragem<br />

suficiente para enfrentá-los, desenvolvendo formas indiretas<br />

e camufla<strong>da</strong>s de obter vantagens sobre eles.<br />

A distorção “positiva secundária” <strong>da</strong> autoimagem, no<br />

entanto, também pode ser responsável pelo desenvolvimento<br />

de outros padrões de funcionamento fixados no fechamento,<br />

como aqueles que evidenciam um sentimento<br />

de desconfiança e suspeita em relação aos outros, apontado<br />

como um dos critérios diagnósticos para o Transtorno<br />

<strong>da</strong> Personali<strong>da</strong>de Paranóide e aqueles que se caracterizam<br />

pela extrema necessi<strong>da</strong>de de controle e perfeição encontra<strong>da</strong><br />

no Transtorno Obsessivo-compulsivo.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

A r t i g o


A r t i g o<br />

Considerações finais<br />

Neste trabalho foi descrito o processo de formação <strong>da</strong>s<br />

psicopatologias numa perspectiva gestáltica, concluindo-<br />

-se que os funcionamentos neurótico, psicótico e antissocial<br />

se desenvolvem a partir <strong>da</strong> vulnerabili<strong>da</strong>de ou desintegração<br />

do “eu”, favoreci<strong>da</strong> pela vivência de impasses<br />

existenciais e pela internalização de mensagens bionegativas,<br />

que propiciam a distorção <strong>da</strong> percepção interna e<br />

externa, a utilização crônica de interrupções do contato<br />

e a fixação <strong>da</strong>s fronteiras na abertura ou no fechamento,<br />

como forma de ajustamento conservativo.<br />

Em síntese, nas psicoses, a grande tensão gera<strong>da</strong> pelo<br />

conflito “dominador-dominado” gera a desintegração do<br />

self, como consequência <strong>da</strong> falência total de suas fronteiras<br />

e funções, impossibilitando a diferenciação entre<br />

figura e fundo, fantasia e reali<strong>da</strong>de, “eu” e “tu”. No neurótico,<br />

essa tensão acontece em grau menor, produzindo<br />

o enfraquecimento <strong>da</strong>s fronteiras e o distúrbio <strong>da</strong>s funções<br />

do self, responsável pela criação e cristalização de<br />

interrupções de contato, na tentativa de minimizar o sofrimento<br />

imposto pelo “dominador” nos mundos interno<br />

e externo. No antissocial, a mesma tensão gera a explosão,<br />

ou a revanche do “dominado” contra seu “dominador”,<br />

na qual ele, enquanto vítima, se identifica com seu<br />

agressor, tornando os outros reféns de seu egoísmo, frieza,<br />

arrogância, prepotência e raiva.<br />

Referências<br />

American Psychiatric Association (1995). DSM-IV, Manual<br />

Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (4ª ed.<br />

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Universi<strong>da</strong>de de Brasília, Brasília.<br />

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São Paulo: Summus.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012<br />

Rafael A. A. Prado; Marcus T. Cal<strong>da</strong>s; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto<br />

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Universi<strong>da</strong>de de Brasília, Brasília.<br />

Tenório, C. M. D. (2003b). O Conceito de Neurose em Gestalt-<br />

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Tenório, C. M. D. (2005). O Self eu o Eu nos Transtornos<br />

Histriônico e Obsessivo-Compulsivo <strong>da</strong> Personali<strong>da</strong>de.<br />

Anais do XI Encontro Goiano <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>,<br />

pp. 187-199.<br />

Carlene Maria Dias Tenório - Psicóloga gradua<strong>da</strong> pela Universi<strong>da</strong>de<br />

Federal do Ceará (UFC), Especialista em Gestalt-Terapia, Mestre<br />

e Doutora em Psicologia Clínica pela Universi<strong>da</strong>de de Brasília<br />

(UnB), Professora do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB)<br />

e membro efetivo do corpo docente do Instituto de Gestalt-Terapia<br />

de Brasília (IGTB). Endereço Institucional: SEPN 707/907, Campus<br />

do UniCEUB, 70790-075, Brasília-DF - Fone: (61) 3340.1046 E-mail:<br />

carlenedtenorio@yahoo.com.br<br />

Recebido em 18.09.11<br />

Primeira Decisão Editorial em 03.01.12<br />

Segun<strong>da</strong> Decisão Editorial em 14.12.12<br />

232


textos clássicos ...............


Edmund Husserl e os Fun<strong>da</strong>mentos de sua Filosofia (1940)<br />

235<br />

EDMUND HUSSERL E OS fUNDAMENTOS DE SUA fILOSOfIA 1<br />

Nenhum assunto na filosofia recente alcança a confiança<br />

suprema com a qual Husserl anunciou o começo<br />

triunfante de uma nova ciência <strong>da</strong> filosofia, uma disciplina<br />

“absoluta” alcança<strong>da</strong> através de um método cui<strong>da</strong>dosamente<br />

elaborado. Essa ciência era muito avança<strong>da</strong>, assim<br />

como os resultados realmente positivos dos esforços filosóficos<br />

<strong>da</strong> época. De fato, os filósofos que o antecederam<br />

foram classificados por Husserl como não correspondentes<br />

aos ideais <strong>da</strong> fenomenologia. Reside aí algo de admirável<br />

e heroico sobre o tom de Husserl e sua opinião não<br />

precipita<strong>da</strong>mente avança<strong>da</strong>. Mais de cinquenta anos de<br />

reflexões consecutivas e trabalho incessante, que resultaram<br />

em numerosos exemplos de análises descritivas,<br />

justificam a necessi<strong>da</strong>de de sau<strong>da</strong>r suas reivindicações,<br />

ouvindo com atenção seus argumentos. O pensamento<br />

e as contribuições de um dos mais argutos e completos<br />

filósofos do último século merecem uma atenção bem<br />

maior do que a que tem recebido. Considerar seu trabalho<br />

é necessário em razão <strong>da</strong> insistência de Husserl de que<br />

sua filosofia ain<strong>da</strong> é desconheci<strong>da</strong> 2 e de seus repetidos<br />

protestos por ser mal interpretado. O fato de que Husserl<br />

raramente responde seus críticos tem dificultado ain<strong>da</strong><br />

mais a compreensão do público filosófico em geral sobre<br />

a relevância de seu trabalho. Para muitos ele era firme<br />

demais, não importando críticas a favor ou contra, o que<br />

acabou gerando interpretações errôneas. Publicações importantes<br />

feitas nos últimos anos de sua vi<strong>da</strong> incluíram<br />

duas respostas a esses críticos, sendo que foram as únicas<br />

mais elabora<strong>da</strong>s desde sua resposta a Palagyi em 1903.<br />

Agora é possível analisar e apreciar a filosofia fenomenológica<br />

mesmo que muitos manuscritos nunca tenham<br />

sido publicados 3 . Estes textos contêm um material mui-<br />

1 Título original: “Edmund Husserl and the Background of his Philosophy”,<br />

publicado na revista Philosophy and Phenomenological<br />

Research, Vol. 1, Nr.1, p. 1-20 (1940), edita<strong>da</strong> pela International<br />

Phenomenological Society. As notas do autor foram aqui manti<strong>da</strong>s,<br />

na mesma ordem e numeração do texto original. As notas explicativas<br />

acresci<strong>da</strong>s pelo Editor estão em formato alfabético, para não<br />

interferir no texto original.<br />

2 Cf. E. Fink. “Was will die Phanomenologie Edmund Husserls?” Die<br />

Tatwelt, 1934, p. 15.<br />

3 É importante assinalar que, desde a publicação original desse texto,<br />

muitos manuscritos husserlianos foram publicados na coleção<br />

conheci<strong>da</strong> como Husserliana: Edmund Husserl Gesammelte Werke<br />

TExTOS CLÁSSICOS<br />

Marvin farber<br />

(1940)<br />

to valioso que, sem dúvi<strong>da</strong>, enriquecerá e modificará o<br />

entendimento sobre o método fenomenológico. Assim, a<br />

recente publicação de Husserl, Erfahrung und Urteil 4 tornou-se<br />

reveladora, acrescentando muito ao entendimento<br />

sobre a sua filosofia <strong>da</strong> lógica. Por essa razão, é correto<br />

afirmar que Husserl publicou o suficiente para favorecer<br />

uma justa apreciação de sua filosofia, estabelecendo um<br />

ponto de parti<strong>da</strong> para trabalhos futuros bastante frutíferos<br />

em conjunto com linhas fenomenológicas.<br />

Para tanto, é necessário analisar sua filosofia de maneira<br />

objetiva, sem um pensamento restrito ou vínculos<br />

teóricos pessoais. Isso significa que é preciso estar preparado<br />

para reconhecer avanços positivos feitos por Husserl<br />

na filosofia e em ciências distantes como a psicologia,<br />

além de empenhar-se para apurar se todos os elementos<br />

do seu pensamento são coerentes com seus preceitos declarados.<br />

Um interesse especial é a forma final do idealismo<br />

representado pelo último sistema de fenomenologia<br />

transcendental, o qual revela os limites, bem como os<br />

méritos, do modo subjetivo do procedimento filosófico.<br />

A atenção renova<strong>da</strong> ao método na filosofia torna a análise<br />

<strong>da</strong> fenomenologia bastante pertinente; sendo assim<br />

o grande desenvolvimento <strong>da</strong> teoria lógica é necessária<br />

para colocar a fenomenologia em conexão com esta, prevendo<br />

possíveis reações mútuas. Atenção especial deve<br />

ser <strong>da</strong><strong>da</strong> às contribuições lógicas de Husserl, por serem<br />

muito significativas considerando-se as dúvi<strong>da</strong>s e dificul<strong>da</strong>des<br />

análogas aos problemas existentes na época <strong>da</strong>s<br />

Investigações Lógicas 5 .<br />

ou simplesmente Husserliana, que contém a série principal de<br />

suas obras, manuscritos e inéditos, constantes na Husserl-Archives<br />

Leuven. Atualmente, a coleção conta com 41 volumes já editados<br />

(N. do. E.).<br />

4 Erfahrung und Urteil. Untersuchungen zur Genealogie der Logik, ou<br />

Experiência e Juízo. Estudos sobre a Genealogia <strong>da</strong> Lógica, inédita<br />

em português. A primeira impressão desse texto se deu logo após a<br />

morte de Husserl, em 1938, tendo sido edita<strong>da</strong> em Praga. Contudo,<br />

com a anexação <strong>da</strong> Tchecoslováquia à Alemanha Nazista, houve<br />

significativo prejuízo na divulgação dessa obra. Foi organiza<strong>da</strong><br />

finalmente em 1948, por Ludwig Landgrebe (Nota do Editor).<br />

5 Logische Untersuchungen. Zweite Teil: Untersuchungen zur Phänomenologie<br />

und Theorie der Erkenntnis, publicado originalmente em<br />

1901 (Primeiro Volume.). O segundo volume foi publicado posteriormente<br />

(Ver Nota 8 desse texto). No Brasil, a primeira tradução<br />

desse texto se deu em 1976, na forma <strong>da</strong> “Sexta Investigação”, e<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012<br />

T e x t o s C l á s s i c o s


T e x t o s C l á s s i c o s<br />

Assim como o enigma proposto pelo pensamento de<br />

Husserl, e que pode ser melhor solucionado aproximando-se<br />

do seu desenvolvimento, este artigo enfatiza algumas<br />

<strong>da</strong>s influências que antecederam seu pensamento<br />

e pontua as fases de seu trabalho. Não será possível fazer<br />

jus a to<strong>da</strong>s essas influências: Husserl deriva de uma<br />

história inteira <strong>da</strong> filosofia e, sem dúvi<strong>da</strong>, deve muito e<br />

indiretamente a todos os pensadores que nunca foram<br />

mencionados explicitamente em suas obras. Portanto,<br />

é suficiente para os nossos propósitos, chamar atenção<br />

para a controvérsia <strong>da</strong> qual Husserl é famoso – a questão<br />

<strong>da</strong> relação entre psicologia e filosofia (em especial a lógica)<br />

e indicar, mesmo que apenas mencionando nomes,<br />

as influências mais importantes sobre o seu pensamento<br />

conforme admitido pelo próprio Husserl.<br />

1. psicologismo e filosofia na Déca<strong>da</strong> de 1880<br />

Proeminente na filosofia do final do século XIX era<br />

um ponto de vista conhecido por “psicologismo”. A filosofia<br />

de uma época é sempre condiciona<strong>da</strong> e influencia<strong>da</strong><br />

pelas concepções científicas mais destaca<strong>da</strong>s, especialmente<br />

as novas; exemplo disso é o racionalismo, na filosofia<br />

moderna, que refletiu os avanços <strong>da</strong> matemática e<br />

<strong>da</strong> física. No período em questão a ciência emergente era<br />

a psicologia que detinha dupla importância para a filosofia<br />

alemã: sugeria um caminho seguro para a solução<br />

de problemas difíceis <strong>da</strong> lógica e <strong>da</strong> teoria do conhecimento,<br />

além de oferecer um substituto e um acréscimo<br />

para a perspectiva idealista em filosofia. O psicologismo<br />

já era relevante na filosofia inglesa, cujo representante<br />

maior foi J.S.Mill. Na Alemanha, Wundt e Lipps servem<br />

de exemplos. Natorp, Brentano, Stumpf e posteriormente<br />

Frege são de particular importância, por fornecerem<br />

significativa influência para Husserl. A reação contra o<br />

psicologismo foi claramente ilustra<strong>da</strong> nos primeiros escritos<br />

de Natorp; e Schuppe e Volkelt antecederam Husserl<br />

na teoria do conhecimento, embora não tenham exercido<br />

influência direta sobre ele. Isso, porém, não afeta a<br />

originali<strong>da</strong>de de Husserl, visto que o uso sistemático imposto<br />

por ele às mesmas causas, resultaram na sua radical<br />

reformulação.<br />

O Psicologismo foi uma perspectiva extrema<strong>da</strong>, e uma<br />

reação a isto era inevitável. A revisão de Natorp, do livro<br />

de Theodor Lipps Basic Facts of Mental Life 6 é uma indicação<br />

precoce de tal reação. Lipps considerava a psicologia<br />

como constitutiva <strong>da</strong> base filosófica, mas Natorp duvi<strong>da</strong>va<br />

<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de a psicologia “fun<strong>da</strong>mentar” a lógica<br />

e a teoria do conhecimento. Lipps, por outro lado, considerava<br />

esses temas como a base psicológica do princípio<br />

publica<strong>da</strong> na coleção Os Pensadores. Atualmente contamos com uma<br />

tradução portuguesa dos dois volumes (Universi<strong>da</strong>de de Lisboa) e<br />

uma brasileira do primeiro volume e do II Tomo (N.do E.)<br />

6 Cf. Paul Natorp, revisão <strong>da</strong> obra <strong>da</strong> obra de Lipps Grundthatsachen<br />

des Seelenlebens, Bonn, 1883, publicado no Göttingische gelehrte<br />

Anzeigen, 1885, pp. 190-232.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012<br />

Marvin Farber<br />

<strong>da</strong> contradição e função geral <strong>da</strong>s concepções sobre o conhecimento.<br />

De acordo com Lipps, a derivação genética<br />

<strong>da</strong>s leis básicas do conhecimento depreendi<strong>da</strong> dos fatos<br />

originais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> física eram idênticas às suas fun<strong>da</strong>ções<br />

“epistemológicas”, em outras palavras, a teoria do conhecimento<br />

seria uma ramificação <strong>da</strong> psicologia. Há que se<br />

reconhecer, assinala Natorp, que fatos psíquicos são representados<br />

nas leis do conhecimento, e esses fatos, por<br />

serem psíquicos, constituem também objeto de investigação<br />

para a psicologia; porém, não é uma questão de indiferença<br />

se são fatos psíquicos ou se a psicologia uma<br />

pressuposição <strong>da</strong> teoria do conhecimento. Conhecimento<br />

é admitido como sendo um processo psíquico apenas na<br />

forma de conceitos e teorias, ou de modo geral, como consciência.<br />

Mesmo a ver<strong>da</strong>de sobre o conhecimento, assim<br />

como a lei que rege essa ver<strong>da</strong>de como algo objetivamente<br />

válido, devem ser investiga<strong>da</strong>s através <strong>da</strong> consciência<br />

que seres pensantes possam ter sobre ela.<br />

Nesse sentido, conceitos e ver<strong>da</strong>des sobre a geometria<br />

seriam fatos psíquicos, e mesmo assim, os axiomas<br />

de Euclides não são considerados como sendo leis psicológicas<br />

por ninguém, nem se supõe que seu objetivo<br />

depende do entendimento psicológico de apresentações<br />

geométricas. Natorp, portanto, apenas ressaltou o fato de<br />

que a consciência <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de independe de to<strong>da</strong> explicação<br />

genética por meio de conexões psicológicas e chamou<br />

atenção para a independência <strong>da</strong> base objetiva dos princípios<br />

do conhecimento. Assim, para Natorp, a crítica e<br />

a psicologia do conhecimento se exigem e se condicionam<br />

uma a outra. Um indicativo de seu ponto de vista<br />

é <strong>da</strong>do por sua asserção que uma lei de conhecimento é<br />

a priori, assim como to<strong>da</strong> lei é a priori para aquilo que<br />

é sujeito à lei.<br />

As primeiras reações de Natorp contra o psicologismo<br />

estão expressas também num artigo sobre os fun<strong>da</strong>mentos<br />

objetivos e subjetivos do conhecimento 7 , no qual o autor<br />

argumenta que não existiria nenhuma lógica, ou ela deveria<br />

ser inteiramente construí<strong>da</strong> sobre suas próprias bases,<br />

sem a necessi<strong>da</strong>de de se fun<strong>da</strong>mentar em qualquer outra<br />

ciência. Aqueles que fazem <strong>da</strong> lógica uma ramificação <strong>da</strong><br />

psicologia afirmam que esta é a ciência de base e que a<br />

lógica é, na melhor <strong>da</strong>s hipóteses, apenas uma aplicação<br />

<strong>da</strong> psicologia. Natorp afirmou que não apenas o significado<br />

<strong>da</strong> lógica, mas também o significado de to<strong>da</strong> ciência<br />

objetiva é ignorado e quase pervertido em seu oposto,<br />

quando a ver<strong>da</strong>de objetiva do conhecimento se torna<br />

dependente de uma experiência subjetiva. Fun<strong>da</strong>mentar<br />

a lógica sobre bases subjetivas seria anulá-la como teoria<br />

independente <strong>da</strong> vali<strong>da</strong>de objetiva do conhecimento.<br />

Por essa razão, Natorp não estava somente defendendo os<br />

direitos <strong>da</strong> lógica no sentido comum do termo, mas também<br />

chamando atenção para a vali<strong>da</strong>de objetiva <strong>da</strong> qual<br />

7 P. Natorp, “Uber objektive und subjektive Begründung der Erkenntnis”<br />

(Erster Aufsatz), Philosophische Monatshefte, vol. XXIII, 1887,<br />

pp. 257-286. Husserl refere-se à página 265 f. desse artigo nas Investigações<br />

Lógicas como reforço para seu debate sobre o psicologismo.<br />

236


Edmund Husserl e os Fun<strong>da</strong>mentos de sua Filosofia (1940)<br />

é feita to<strong>da</strong> ciência, ao sustentar que a vali<strong>da</strong>de objetiva<br />

deve ser também sustenta<strong>da</strong> objetivamente. Como pressuposição<br />

<strong>da</strong> ciência objetiva, Natorp formulou o preceito<br />

de que o ver<strong>da</strong>deiro conhecimento científico somente<br />

pode depender de leis que gerem a certeza no âmago<br />

<strong>da</strong> ciência e que sejam desenvolvi<strong>da</strong>s de maneira lógica,<br />

independente de quaisquer pressuposições que possam<br />

ser vincula<strong>da</strong>s a elas. Assim, todo recurso ao sujeito cognoscente<br />

e sua capaci<strong>da</strong>de de ciência objetiva é marcado<br />

como algo estranho.<br />

Natorp foi muito claro ao afirmar que a objetivi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> ciência requer a superação <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de. Nesse<br />

sentido, sua concepção sobre a ver<strong>da</strong>de científica é compatível<br />

com o ideal posterior de Husserl de uma ciência<br />

rigorosa para a filosofia, mas não a ponto de sugerir a<br />

ideia de uma ciência universal ou de uma filosofia “cientificamente<br />

enraiza<strong>da</strong>”. O objeto <strong>da</strong> crítica de Natorp era,<br />

de fato, o psicologismo e ele foi bem-sucedido ao formular<br />

claramente essa questão. Natorp afirmou que a ver<strong>da</strong>de<br />

científica, conforme ilustra<strong>da</strong> na ciência natural<br />

matemática, torna-se uma certeza quando fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong><br />

em pressuposições objetivas, ressaltando sua autonomia<br />

como ciência. Logo, o matemático e o físico não<br />

deveriam buscar na psicologia a essência <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de de<br />

seus conhecimentos.<br />

A expressão “vali<strong>da</strong>de objetiva” foi, assim, utiliza<strong>da</strong><br />

para indicar a independência do aspecto subjetivo do saber.<br />

Seu significado positivo era bem menos claro para<br />

Natorp. A ideia de que existem objetos fora e independentes<br />

de to<strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de seria uma possível resposta,<br />

mas Natorp acreditava que o “ser em si mesmo” do objeto<br />

já era em si um enigma, em razão do seu kantismo não<br />

resolvido. Natorp argumentava que a independência do<br />

objeto <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de do saber somente poderia ser entendi<strong>da</strong><br />

por meio <strong>da</strong> abstração, visto que os objetos nos<br />

são <strong>da</strong>dos somente através do conhecimento de que temos<br />

deles. Sendo assim, seria necessário abstraí-los a partir do<br />

conteúdo <strong>da</strong> experiência subjetiva. De acordo com Natorp<br />

os ver<strong>da</strong>deiros princípios e bases do conhecimento são<br />

as uni<strong>da</strong>des objetivas finais. Na matemática, não são os<br />

fenômenos que são básicos, mas sim as abstrações fun<strong>da</strong>mentais<br />

que são expressões <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de de determinação<br />

de possíveis fenômenos tais como ponto, linha, retidão e<br />

igual<strong>da</strong>de de magnitude. Tudo isto envolve a função fun<strong>da</strong>mental<br />

de objetivação e a “uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> multiplicação”<br />

de Kant e Platão. Somente assim os “fenômenos” únicos<br />

<strong>da</strong> ciência se tornam possíveis. Natorp argumentou que<br />

deve haver uma função determinante e “firme”, a fim de<br />

tornar essa positivi<strong>da</strong>de uma reali<strong>da</strong>de possível. Numa<br />

discussão posterior 8 Natorp buscou verificar como o tipo<br />

de argumentação que tinha usado era objetivo, ou seja,<br />

8 Cf. P. Natorp, “Quantität und Qualität in Begriff, Urteil und gegenständlicher<br />

Erkenntnis”, Philosophiache Monatshefte, vol. XXVII,<br />

1891, pp. 1-32, 129-160. No seu Einleitung in die Psychologie nach<br />

kritischer Methode (Freiburg f. B., 1888), Natorp se colocou a tarefa<br />

de tornar seguras as bases <strong>da</strong> psicologia através de uma investigação<br />

preliminar do seu objeto de estudo e método.<br />

237<br />

buscou compreender qual procedimento matemático é<br />

objetivo, além de mostrar que a lógica formal deve ser<br />

fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na lógica do conhecimento objetivo ou<br />

na lógica transcendental.<br />

Outra ideia importante na época foi o ideal <strong>da</strong> ausência<br />

de pressuposições no procedimento filosófico. Esse<br />

ideal foi tomado por Husserl nas Investigações Lógicas<br />

como uma exigência óbvia a ser imposta sobre to<strong>da</strong> investigação<br />

epistemológica.<br />

Assim, é possível apontar as influências diretas sobre<br />

Husserl no início do seu percurso, deriva<strong>da</strong>s de algumas<br />

poucas fontes embora, posteriormente, abor<strong>da</strong>sse<br />

filósofos que, num primeiro momento, tinham sido negados<br />

ou rejeitados. Natorp, Volkelt, Schuppe e Rehmke<br />

podem ser considerados representantes únicos de uma<br />

geração emergente de idealistas, cujos trabalhos seriam<br />

relevantes na literatura filosófica <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s subsequentes.<br />

Suas publicações foram li<strong>da</strong>s, caso de Natorp, e também<br />

considera<strong>da</strong>s como trabalhos paralelos por Husserl.<br />

A orientação à filosofia de Kant, sempre proeminente<br />

na Alemanha viria a ser de grande significância para<br />

Husserl. Brentano, que não é facilmente classificado,<br />

combinou o escolasticismo e a filosofia de Aristóteles<br />

com o empirismo, inaugurando um período frutífero de<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> psicologia, tendo Stumpf como um<br />

dos seus primeiros discípulos mais produtivos. O desenvolvimento<br />

moderno <strong>da</strong> lógica simbólica, que teve seu<br />

início na Inglaterra através de Boole, foi conduzido na<br />

Alemanha por Schröder e Frege. Esses estudiosos podem<br />

ser citados como constituindo a cena filosófica em que<br />

Husserl entrou quando ele se juntou ao corpo docente <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de de Halle em 1887. Todos representam uma<br />

fase especial do contexto <strong>da</strong> filosofia Alemã na época.<br />

2. O Discípulo de brentano<br />

“Brentano, meu professor” era uma expressão frequentemente<br />

ouvi<strong>da</strong> nas aulas de Husserl. Sua dívi<strong>da</strong><br />

intelectual com Brentano era considerável no início de<br />

seus estudos, mas foi o elemento moral e o exemplo pessoal<br />

de Brentano que o levou a escolher a filosofia como<br />

objetivo de vi<strong>da</strong> e que constitui sua última influência.<br />

Husserl foi um aluno agradecido a Brentano acompanhando-o,<br />

juntamente com Stumpf, durante viagens de férias.<br />

Entretanto, Husserl não estava preparado na época para<br />

aproveitar esse contato. A eficácia de Brentano como professor<br />

é justifica<strong>da</strong> pelo número de teóricos notáveis que<br />

devem o começo de seus estudos a ele, tais como Stumpf,<br />

Husserl, Meinong, Höfler e Marty.<br />

Husserl deixou um tributo revelador a Brentano dedicando<br />

uma obra inteira ao mestre 9 . Husserl participou<br />

9 Cf. Husserl “Erinnerungen an Franz Brentano”, Supplement II, pp.<br />

153-167, no livro de Oskar Kraus, Franz Brentano, Zur Kenntnis<br />

seines Lebens und seiner Lehre (O Supplement I é de autoria de Carl<br />

Stumpf), München, 1919.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012<br />

T e x t o s C l á s s i c o s


T e x t o s C l á s s i c o s<br />

de seus cursos durante dois anos, de 1884 a 1886, depois<br />

de ter completado formalmente seus estudos universitários,<br />

nos quais a filosofia era um objeto menor. Brentano<br />

proferia conferências sobre a filosofia prática, lógica elementar<br />

e suas reformas necessárias e também falava sobre<br />

questões psicológicas e estéticas específicas. Husserl<br />

estava em dúvi<strong>da</strong>, então, se deveria dedicar-se à filosofia<br />

ou à matemática e foram as conferências de Brentano que<br />

o aju<strong>da</strong>ram a tecer sua escolha. Embora tenha sido constantemente<br />

advertido por seu amigo Masaryk a estu<strong>da</strong>r<br />

com Brentano, Husserl comenta que participou <strong>da</strong>s conferências<br />

apenas por curiosi<strong>da</strong>de, pois na época Brentano<br />

era muito discutido em Viena, sendo admirado por muitos<br />

e insultado por outros que o comparavam a um jesuíta<br />

disfarçado. Husserl ficara impressionado desde o início<br />

por seus gestos leves e seu rosto expressivo, com rugas<br />

que evidenciavam não apenas um mero trabalho mental,<br />

mas profun<strong>da</strong>s batalhas intelectuais. Brentano o impressionou<br />

como alguém que estava sempre consciente de ter<br />

uma grande missão. A linguagem de suas conferências<br />

era livre de to<strong>da</strong> artificiali<strong>da</strong>de, revelando sua perspicácia,<br />

uma inteligência viva através de um tom de voz bastante<br />

peculiar, velado, suave, acompanhado de gestos<br />

quase sacerdotais que faziam-no parecer um profeta de<br />

ver<strong>da</strong>des eternas e um locutor de outro mundo. Husserl<br />

comentou mais tarde que sucumbiu à força <strong>da</strong>quela personali<strong>da</strong>de,<br />

apesar de todos os seus preconceitos. E, foi a<br />

partir dessas conferências que ganhou convicção de que<br />

a filosofia é um campo de trabalho intenso, vigoroso e<br />

que pode ser tratado no âmago <strong>da</strong> ciência mais rigorosa, e<br />

isso o levou a tomar a filosofia como um projeto de vi<strong>da</strong>.<br />

Brentano era mais eficiente nos seus seminários, nos<br />

quais estudou os seguintes textos: Enquiry Concerning<br />

Human Understanding e Principles of Morals, de Hume;<br />

a fala de Helmholtz sobre “The Facts of Perception”, e de<br />

Du Bois-Reymond, “Limits of Natural Logic”. Na época,<br />

Brentano estava particularmente interessado em questões<br />

de psicologia descritiva, que discutiu com Husserl.<br />

Nas conferências sobre lógica elementar Brentano tratou<br />

a psicologia descritiva considerando o trabalho de<br />

Bolzano “Paradoxos do Infinito” além <strong>da</strong>s diferenças entre<br />

as ideias de “intuitivo e não-intuitivo”; “claro e obscuro”;<br />

“distinto e não distinto”; “real e irreal” e “concreto e<br />

abstrato”. Outros temas incluíram a investigação do julgamento<br />

e também problemas descritivos <strong>da</strong> fantasia. O<br />

alcance <strong>da</strong> influência de Brentano é demonstrado nos primeiros<br />

escritos de Husserl, bem como nas investigações<br />

subsequentes sobre a lógica e a teoria do conhecimento.<br />

Sua dívi<strong>da</strong> com Brentano foi reconheci<strong>da</strong> explicitamente<br />

e de bom grado por Husserl. É interessante notar que<br />

Brentano sentiu-se como o criador de uma philosophia<br />

pereniss, embora não tenha se fixado em suas perspectivas<br />

nem ficado parado no tempo. Brentano exigia clareza<br />

e a distinção de conceitos fun<strong>da</strong>mentais, considerando<br />

as ciências naturais exatas como representantes do ideal<br />

de uma ciência exata <strong>da</strong> filosofia. Este ideal se opunha à<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012<br />

Marvin Farber<br />

tradição do idealismo alemão que, na sua opinião, degeneravam<br />

a filosofia.<br />

Husserl trocou poucas correspondências com<br />

Brentano. Em resposta a uma carta, solicitando que<br />

aceitasse uma dedicatória feita a ele na obra Filosofia<br />

<strong>da</strong> Aritmética 10 , Brentano expressou cordiais agradecimentos,<br />

posicionando-se contra, temendo que Husserl<br />

angariasse a animosi<strong>da</strong>de de seus inimigos. Husserl, entretanto,<br />

não recebeu nenhuma resposta quando enviou<br />

a Brentano uma cópia dessa obra com sua dedicatória.<br />

Brentano só foi notar que o trabalho de Husserl tinha sido<br />

dedicado a ele quatorze anos depois tendo, então expresso<br />

calorosos agradecimentos. Husserl aceitou os agradecimentos<br />

e compreendeu seu mestre o suficiente para se<br />

sensibilizar com este incidente. O desenvolvimento independente<br />

desses dois teóricos deve-se a essa pequena<br />

quanti<strong>da</strong>de de cartas troca<strong>da</strong>s entre eles.<br />

Husserl viu Brentano em 1908 em Florença, quando<br />

o último estava quase cego. Novamente sentiu-se como<br />

um iniciante tímido, mais propenso a ouvir do que falar.<br />

Uma vez foi chamado a se manifestar e foi ouvido por<br />

Brentano sem interrupção. Seu relato acerca do significado<br />

do método fenomenológico de investigação, bem<br />

como do seu conflito anterior com o psicologismo, não<br />

os levaram a nenhum acordo. Husserl afirmou que talvez<br />

a culpa fosse parcialmente sua. Ele tinha ficado inibido<br />

pela sua íntima convicção de que Brentano, em razão<br />

de sua firme postura de conceitos e argumentos, já<br />

não era mais suficientemente a<strong>da</strong>ptável para entender a<br />

necessi<strong>da</strong>de de transformação de suas ideias fun<strong>da</strong>mentais,<br />

o que Husserl acreditava que ele estava compelido<br />

a fazer. Brentano vivia continuamente no seu mundo de<br />

ideias e na completude de sua filosofia que dizia tinha<br />

sido submeti<strong>da</strong> a um grande desenvolvimento ao longo<br />

de déca<strong>da</strong>s. Pairava sobre ele uma aura de transfiguração,<br />

embora ele não pertencesse mais a este mundo e vivesse<br />

metade de sua vi<strong>da</strong> naquele mundo maior no qual acreditava<br />

tão firmemente. Esta última imagem calou fundo<br />

na mente de Husserl.<br />

Este tributo de um grande pensador a outro revela o<br />

grau de influência exercido por Brentano sobre Husserl.<br />

A semelhança entre os dois é notável. O reconhecimento<br />

de que Brentano foi uma influência determinante para<br />

Husserl deve ser entendido literalmente, pois Husserl<br />

compartilhou no mais alto grau a serie<strong>da</strong>de dos modos<br />

suaves de Brentano, e também o desdém do humor e outras<br />

estratégias utiliza<strong>da</strong>s pelo mestre em suas conferências<br />

que tanto o impressionaram. Outra grande característica<br />

entre ambos era a crença declara<strong>da</strong> de Husserl de<br />

que tinha fun<strong>da</strong>do a única filosofia váli<strong>da</strong>. Ele também<br />

nunca ficou parado e acreditava que seus avanços, mesmo<br />

nos últimos anos de sua vi<strong>da</strong>, foram notáveis e profundos.<br />

O espírito de “escola”, no qual os discípulos do<br />

mestre seriam treinados mais tarde, foi ilustrado também<br />

10 No original, Philosophie der Arithmetik. Psychologische und logische<br />

Untersuchungen, publicado em 1891 (N.do E.).<br />

238


Edmund Husserl e os Fun<strong>da</strong>mentos de sua Filosofia (1940)<br />

no movimento fenomenológico, embora, para ser sincero,<br />

o método cui<strong>da</strong>dosamente elaborado por Husserl colocou-<br />

-o acima dos confinamentos de uma escola no sentido comum<br />

do termo. O retrato de Brentano é estranhamente<br />

familiar àqueles que conheceram Husserl pessoalmente;<br />

ao descrever seu professor, Husserl se auto revelou.<br />

3. O Julgamento final de brentano, por Husserl<br />

Brentanto é mais conhecido por sua obra Psychologie<br />

vom empirischen Standpunkt 11 (1874). As publicações recentes<br />

de seus trabalhos, feitas por Kraus e Kastil 12 , tem<br />

esclarecido melhor as razões <strong>da</strong> influência extraordinária<br />

exerci<strong>da</strong> sobre Husserl por Brentano. Husserl estava<br />

em débito com Brentano, pelo seu interesse no conceito<br />

de intencionali<strong>da</strong>de e pela investigação descritiva <strong>da</strong><br />

percepção interna, e sem dúvi<strong>da</strong>, aprendeu a se tornar<br />

um investigador filosófico ao ser exposto a exemplos concretos<br />

de análise descritiva e a como reconhecer problemas.<br />

Era inevitável que seu desenvolvimento acontecesse<br />

de forma paralela e se sobrepusesse a alguns esforços<br />

de Brentano. Embora também fosse fácil para Husserl se<br />

livrar <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong>de de dívi<strong>da</strong>s com Brentano, deve ser<br />

dito que o estudo dos principais elementos do pensamento<br />

do mestre é indispensável para a compreensão genética<br />

<strong>da</strong> fenomenologia.<br />

A crítica de Brentano sobre o trabalho de Husserl alguns<br />

anos depois <strong>da</strong> publicação <strong>da</strong>s Investigações Lógicas<br />

foi disponibiliza<strong>da</strong> através <strong>da</strong> publicação de duas cartas<br />

escritas para Husserl em 1905 13 , nas quais expressou<br />

suas objeções e receios em relação ao trabalho de Husserl.<br />

Brentano concor<strong>da</strong>va com as críticas ao psicologismo, o<br />

qual considerava essencialmente Protagoreano, isto é,<br />

perspectiva na qual o homem é a medi<strong>da</strong> de to<strong>da</strong>s as coisas.<br />

Enquanto admitia que o empreendimento de Husserl<br />

com a lógica pura não era suficientemente claro para ele<br />

[Brentano], julgava impossível congregar to<strong>da</strong>s as ver<strong>da</strong>des,<br />

caminhando intuitivamente do nível dos conceitos<br />

para uma ciência teórica <strong>da</strong> lógica; e ele não estava disposto<br />

a aprovar os esforços para delimitar uma ciência<br />

teórica <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des que excluísse quaisquer <strong>da</strong>dos empíricos.<br />

Os comentários de Brentano, embora interessantes<br />

em si mesmos, indicavam uma interpretação completamente<br />

equivoca<strong>da</strong> do objetivo e do trabalho de Husserl.<br />

Na opinião do editor, professor O. Kraus, Husserl<br />

falhou ao responder os “argumentos conclusivos” de<br />

Brentano, enquanto a esperança do mestre de afastá-lo<br />

dos erros era completamente ilusória. Kraus estava particularmente<br />

interessado em enfraquecer a reivindicação<br />

11 Psicologia do Ponto de Vista Empírico, inédita em português (N. do E.).<br />

12 Brentanos Gesammelte Philosophiche Schriften, edita<strong>da</strong> por O. Kraus<br />

e A. Kastil, Leipzig, 1922-1980, 10 volumes.<br />

13 Cf. Brentano, Wahrheit und Evidenz, editado por O. Kraus, Leipzig,<br />

1930. As cartas encontram-se no apêndice sob o título de: “Sobre a<br />

Generalização <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de e o Erro Fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> então chama<strong>da</strong><br />

Fenomenologia”.<br />

239<br />

de Husserl pela originali<strong>da</strong>de de seu trabalho. Desafiando<br />

a crença de que a refutação do psicologismo foi devido<br />

às Investigações Lógicas, Kraus referiu-se a evidências no<br />

artigo de Brentano, que teria incorporado no texto do volume<br />

sobre Ver<strong>da</strong>de e Evidência 14 . Brentano também se<br />

opôs à concepção de evidência como sentimento, um aspecto<br />

antipsicologista que tinha sido creditado a Husserl.<br />

Através de alguns trechos <strong>da</strong> obra de Brentano, The Origin<br />

of the Knowledge of Right and Wrong (Ursprung sittlicher<br />

Erkenntnis, 1889), Kraus tentou estabelecer a priori<strong>da</strong>de<br />

deste na oposição ao psicologismo. Os objetos ideais de<br />

Husserl e os “objetivos” de Meinong foram rastreados por<br />

ele na introdução de Brentano sobre as pressuposições dos<br />

“fatos” irreais (Sachverhalte, existentes e não existentes).<br />

Tudo isso prova que Brentano fora um pensador estimulante,<br />

que deu início a diversas ideias desenvolvi<strong>da</strong>s<br />

posteriormente por alunos muito talentosos. É possível<br />

rastrear numerosas ideias <strong>da</strong> fenomenologia inspira<strong>da</strong>s<br />

nas sugestões <strong>da</strong><strong>da</strong>s pelo pensamento de Brentano, mas<br />

seria um absurdo superestimar esse débito ao ponto de<br />

exigir a reivindicação de priori<strong>da</strong>de. Partindo <strong>da</strong> perspectiva<br />

de Kraus, a ideia de fatos irreais dificilmente é credita<strong>da</strong><br />

a Brentano, visto que este afirmava que somente<br />

as coisas concretas, realia, ou as essências reais podem<br />

ser pensa<strong>da</strong>s, enquanto as irrealia como o ser, o não-ser,<br />

fato e ver<strong>da</strong>de são meras ficções.<br />

Nas Investigações Lógicas, Husserl chamou atenção<br />

para os defeitos na teoria do conhecimento de Brentano<br />

enfatizando a ambigui<strong>da</strong>de de expressões como “em consciência”<br />

e “imanente na consciência” 15 . Não há dúvi<strong>da</strong>s<br />

sobre seu débito para com Brentano pelo conceito de intencionali<strong>da</strong>de<br />

e pelo campo <strong>da</strong> análise descritiva que se<br />

desvelou a partir disso, mas era de Husserl a crença de<br />

que, apesar disso, Brentano falhou ao buscar sua real natureza<br />

e colocá-la para uso filosófico. Como Husserl fez<br />

essa afirmação somente nos seus últimos anos de vi<strong>da</strong>,<br />

já era tarde para que pudesse caracterizar corretamente,<br />

e de forma cui<strong>da</strong>dosa, a radicali<strong>da</strong>de dos novos tipos de<br />

problemas que advinham <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de, descobertos<br />

nas Investigações Lógicas, no seu significado universal<br />

para uma psicologia genuína e uma filosofia transcendental.<br />

Husserl tinha finalmente alcançado a compreensão<br />

do que Brentano buscava: uma psicologia dos fenômenos<br />

<strong>da</strong> consciência (experiências intencionais) <strong>da</strong> qual não<br />

tinha noção sobre o significado real, nem tampouco do<br />

método que deveria utilizar para sua realização.<br />

As críticas de Kraus não impressionaram e nem detiveram<br />

Husserl. Voltando o olhar para o início de seus<br />

estudos, a partir <strong>da</strong> perspectiva de sua maturi<strong>da</strong>de, e<br />

em meio a um profundo sentimento de decepção difícil<br />

de entender, Husserl vangloriou-se de seu vínculo<br />

com Brentano por anos, acreditando ser um colaborador<br />

14 Aqui refere-se o autor à obra brentaniana Wahrheit und Evidenz,<br />

Hamburg, Felix Meiner, 1930 (N. do E.).<br />

15 Logische Untersuchungen, vol. II, parte 1, p. 375. Cf. L.Landgrebe,<br />

“Husserls Phänomenologie und die Motive zu ihrer Umbildung”,<br />

Revue Internationale de Philosophie, I, 2 (1939), pp. 280 ff.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012<br />

T e x t o s C l á s s i c o s


T e x t o s C l á s s i c o s<br />

de sua filosofia, especialmente de sua psicologia. Mas,<br />

como Husserl observou em seu primeiro trabalho (a tese<br />

de 1887, parte dela desenvolvi<strong>da</strong> em sua Filosofia <strong>da</strong><br />

Aritmética), todo o seu modo de pensar era inteiramente<br />

diferente <strong>da</strong>quele de Brentano. Formalmente falando,<br />

Brentano buscava uma psicologia cujo tema fossem “os<br />

fenômenos psíquicos” os quais, entre outras coisas, eram<br />

definidos como consciência “de” alguma coisa. Mesmo<br />

assim, sua psicologia não era na<strong>da</strong> além de uma ciência<br />

<strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de; os problemas reais <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de<br />

nunca foram revelados para ele; Brentano sequer<br />

notou que nenhuma experiência <strong>da</strong><strong>da</strong> de consciência<br />

deve ser descrita sem a afirmação do objeto intencional<br />

pertinente “como tal” (ex.: a percepção dessa mesa somente<br />

deve ser descrita, de modo exato, se eu a descrever<br />

como tal e tal como é percebi<strong>da</strong>). Ademais ele não<br />

fazia ideia sobre implicação intencional, modificações<br />

intencionais, problemas de evidência ou de constituição,<br />

etc. Embora Brentano tenha se empenhado para ir<br />

além do Neo-escolasticismo, ele não foi bem sucedido;<br />

seus escritos de i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong> foram tidos por Husserl<br />

como um “escolasticismo destilado”. Não era possível<br />

que Husserl pudesse “emprestar” ideias de uma fonte<br />

na qual não estavam presentes. Numa resposta simples<br />

a um Brentanista radical como Kraus, é possível aceitar<br />

como ver<strong>da</strong>deira ca<strong>da</strong> reivindicação significativa às priori<strong>da</strong>des<br />

de Brentano sem diminuir a estatura de Husserl.<br />

Uma controvérsia infeliz seria assim reduzi<strong>da</strong> a sua própria<br />

insignificância.<br />

4. O Desenvolvimento de Husserl<br />

A preparação inicial de Husserl incluiu as matemáticas<br />

e a psicologia. Sua tese de doutorado foi em matemática<br />

e seus estudos sob a tutela de Weierstrass conferiram-<br />

-lhe uma base sóli<strong>da</strong> para seus trabalhos posteriores com a<br />

lógica. Em psicologia, interessou-se preliminarmente por<br />

uma investigação puramente descritiva ou “empírica” no<br />

sentido de Brentano. A fusão dessas duas áreas aparentemente<br />

diversas determinou o cenário de sua carreira.<br />

As principais mu<strong>da</strong>nças no seu percurso são explica<strong>da</strong>s,<br />

em grande parte, pelas dificul<strong>da</strong>des encontra<strong>da</strong>s na tentativa<br />

de integrar esses dois elementos. Seus sentimentos<br />

mais íntimos de incerteza, muitas vezes de proporções<br />

lastimosas, refletiram o conflito existente entre um<br />

ponto de vista formal, “realista”, segundo o qual to<strong>da</strong>s<br />

as proposições lógicas são determina<strong>da</strong>s em si mesmas,<br />

e o método psicologista, que considerava formas lógicas<br />

e princípios por meio do processo <strong>da</strong> experiência. Pouco<br />

tempo antes de sua morte, Husserl comentou ter passado<br />

por um período de abatimento, semelhante às experiências<br />

vivi<strong>da</strong>s periodicamente nos primeiros anos de sua<br />

vi<strong>da</strong>, durante os quais foi incapaz de desenvolver qualquer<br />

estudo. Tais períodos foram seguidos por pesquisas<br />

e produtivi<strong>da</strong>de intensas.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012<br />

Marvin Farber<br />

É possível distinguir diferentes períodos no desenvolvimento<br />

do pensamento de Husserl no que diz respeito<br />

a determinar elementos nos primeiros estágios do<br />

seu treinamento. De modo geral, referem-se ao período<br />

do psicologismo, <strong>da</strong> simples fenomenologia descritiva<br />

(fenomenologia num sentido estrito) e a fenomenologia<br />

transcendental 16 . Do ponto de vista desta última,<br />

a fenomenologia transcendental, os dois primeiros<br />

são simplesmente estágios do processo em direção a<br />

um reino <strong>da</strong> filosofia, acessível somente através <strong>da</strong> redução<br />

fenomenológica. Sendo assim, as Investigações<br />

Lógicas foram caracteriza<strong>da</strong>s como um trabalho de<br />

“Durchbruch” 17 por Husserl. Por essa razão, pode-se<br />

dizer que os dois maiores períodos de sua carreira seriam<br />

o pré-transcendental e a filosofia transcendental.<br />

O grande progresso registrado nas Investigações Lógicas<br />

foi reconhecido logo após a publicação <strong>da</strong>quele trabalho,<br />

quando Husserl afirmou ser a fenomenologia uma<br />

disciplina autônoma. Estando plenamente consciente<br />

do progresso significativo que tinha feito, Husserl estava<br />

apto para conceber o passo seguinte a ser <strong>da</strong>do – a<br />

redução fenomenológica – que, sozinha, podia oferecer<br />

técnica apropria<strong>da</strong> para uma análise descritiva reflexiva<br />

exigi<strong>da</strong> para fins de uma teoria do conhecimento e<br />

<strong>da</strong> filosofia de um modo geral.<br />

O próprio Husserl acreditava que o seu desenvolvimento<br />

mostrava uma consistência interna apesar <strong>da</strong><br />

ocorrência de mu<strong>da</strong>nças provoca<strong>da</strong>s pelas épocas, o que<br />

gerou muita dificul<strong>da</strong>de para seus seguidores em vários<br />

momentos. Aqueles que falharam ao alcançar ou endossar<br />

essas mu<strong>da</strong>nças falharam ao participar desse “desenvolvimento”.<br />

As mu<strong>da</strong>nças ocorri<strong>da</strong>s relembram a filosofia<br />

de Schelling. A diferença entre os estágios iniciais e finais<br />

é surpreendente, mas mesmo assim Husserl ressaltou<br />

a uni<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong>mental na sua carreira. O período<br />

inicial viu o talento e experiência de um jovem teórico<br />

com uma predileção para os problemas mais elementares.<br />

A extensão do seu psicologismo pode ser questiona<strong>da</strong>,<br />

embora tenha de fato defendido a tese psicologista<br />

em relação aos conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> matemática e<br />

<strong>da</strong> lógica. Mas em lógica Husserl sabia muito bem como<br />

aplicar o método formal, como se observa no artigo sobre<br />

“Calculus of Inference” (1891). Embora tenha reagido<br />

contra sua posição inicial e mu<strong>da</strong>do contínua e periodicamente,<br />

os resultados importantes de ca<strong>da</strong> estágio fo-<br />

16 E.Fink, na sua introdução à obra, até agora, não publica<strong>da</strong> de Husserl,<br />

“Entwurf einer ‘Vorrede’ zu den ‘Logischen Untersuchungen’”<br />

(1913), Uit Tijdschrift Voor Philosophie, I, 1 (1939), p. 107. Fink divide<br />

o desenvolvimento <strong>da</strong> fenomenologia de Husserl – toma<strong>da</strong> externamente<br />

– em três fases, correspondendo aproxima<strong>da</strong>mente aos<br />

períodos em que Husserl lecionou em Halle, Göttingen, e Freiburg.<br />

De acordo com Fink, as Investigações Lógicas e as Ideias são os<br />

trabalhos centrais dos dois primeiros períodos. Essa classificação<br />

é útil para ressaltar as tendências de ca<strong>da</strong> período em direção às<br />

conquistas de um nível de análise mais geral e profundo. Olhando<br />

para trás, é possível discernir a uni<strong>da</strong>de interna de ca<strong>da</strong> fase.<br />

17 Durchbruch é “rompimento”, “ruptura”, referindo-se ao momento<br />

no qual se coloca sua publicação (Nota do Editor).<br />

240


Edmund Husserl e os Fun<strong>da</strong>mentos de sua Filosofia (1940)<br />

ram sempre retomados nos trabalhos subsequentes. Pode<br />

até ser que a perspectiva do seu desenvolvimento seja<br />

distorci<strong>da</strong>, de alguma maneira, pela ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong> sobre a<br />

questão do psicologismo ao ponto em que se subestime<br />

o elemento <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de. Deve-se notar, por exemplo,<br />

que as Investigações Lógicas utilizaram os “Psychological<br />

Studies of Elementary Logic”, pertencentes ao seu período<br />

inicial. Além disso, embora Frege tenha recebido<br />

os créditos pela derroca<strong>da</strong> <strong>da</strong> Filosofia <strong>da</strong> Aritmética e<br />

pelo fato de afastar Husserl de sua posição inicial, esse<br />

vínculo não pode ser sustentado pelos fatos. Frege foi de<br />

fato bem sucedido ao apontar as inadequações naquele<br />

trabalho, mas ele não provocou o seu descrédito; e o fato<br />

de a confiança de Husserl em seu trabalho não ter sido<br />

necessariamente abala<strong>da</strong>, pode ser comprova<strong>da</strong> pelas<br />

referências constantes a ele em escritos posteriores. De<br />

fato, um estudo pontual sobre a Filosofia <strong>da</strong> Aritmética<br />

ressalta alguns dos interesses descritivos fun<strong>da</strong>mentais<br />

de Husserl e apresenta, de maneira simples, tipos de problemas,<br />

revelados por algumas <strong>da</strong>s suas últimas técnicas<br />

descritivas mais desenvolvi<strong>da</strong>s, nas suas próprias complexi<strong>da</strong>des.<br />

Quando se lê to<strong>da</strong> a obra de Husserl consecutivamente,<br />

fica-se impressionado pela continui<strong>da</strong>de do<br />

seu desenvolvimento. Mas seria absurdo negligenciar as<br />

grandes mu<strong>da</strong>nças na sua perspectiva (assim, por exemplo,<br />

a “redução fenomenológica” foi apresenta<strong>da</strong> somente<br />

em 1913, na obra Ideias 18 , embora tenha sido elabora<strong>da</strong><br />

e formula<strong>da</strong> alguns anos antes), ou rebaixar suas repeti<strong>da</strong>s<br />

afirmações referentes às importantes mu<strong>da</strong>nças nas<br />

suas opiniões.<br />

Husserl teceu os seguintes comentários sobre seu período<br />

inicial: “Com respeito à conexão interna de todos<br />

os meus escritos, e consequentemente em relação ao meu<br />

desenvolvimento interno, a nova edição do Philosophen<br />

Lexikon trará a explicação correta, sob o meu nome, no<br />

caso do material preparado pelo Dr. Fink ser aceito sem<br />

alterações. ‘Influências’ externas não têm relevância.<br />

Como um teórico iniciante eu naturalmente leio muito,<br />

incluindo clássicos e literatura contemporânea <strong>da</strong>s déca<strong>da</strong>s<br />

de 1870 a 1890. Gostei muito do ponto de vista cético-crítico,<br />

visto que eu mesmo não vislumbrei nenhuma<br />

base sóli<strong>da</strong> em momento algum. Sempre me vi longe<br />

do idealismo Alemão e Kantiano. Somente Natorp me<br />

interessou, mais por razões pessoais, por isso li to<strong>da</strong> a<br />

primeira edição <strong>da</strong> sua obra Introduction to Psychology 19 ,<br />

mas não fiz o mesmo com a segun<strong>da</strong> edição. Li com entusiasmo<br />

(especialmente como aluno) a obra de Stuart Mill,<br />

Logic, e posteriormente a obra filosófica de Hamilton.<br />

Tenho continuamente estu<strong>da</strong>do os empiristas ingleses e<br />

as principais obras de Leibniz (ed. por J. E. Erdmann), es-<br />

18 Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen<br />

Philosophie, publicado em 1913, no Jahrbuch für Philosophie und<br />

phänomenologische Forschung, Halle. A primeira parte desta obra<br />

possui traduções para o português (N. do E.).<br />

19 Einleitung in die Psychologie nach kritischer Methode (“Introdução à<br />

Psicologia de acordo com o Método Crítico”), publicado em Freiburg,<br />

1888 (N. do E.).<br />

241<br />

pecialmente seus escritos matemático-filosóficos. Vim a<br />

conhecer Schuppe somente após as Investigações Lógicas<br />

(1900-1901), quando ele já não podia me oferecer na<strong>da</strong> de<br />

novo. Nunca estudei Rehmke seriamente. De fato, meu<br />

curso foi pontuado pela Filosofia <strong>da</strong> Aritmética (1891) e<br />

não pude fazer na<strong>da</strong> a não ser continuar a avançar”. Esta<br />

declaração não é de forma alguma completa, entretanto.<br />

Husserl frequentemente falava de James, cuja obra<br />

Principles of Psychology tinha um valor inestimável para<br />

ele. Lotze e Bolzano também tiveram grande importância<br />

para Husserl. Sua gratidão para Lotze foi por sua interpretação<br />

<strong>da</strong> teoria <strong>da</strong>s ideias de Platão, a qual determinou<br />

todos os seus estudos posteriores. Também foi grato<br />

a Bolzano pela obra Wissenschaftslehre, que lhe rendeu<br />

o primeiro rascunho <strong>da</strong> “lógica pura” num momento bastante<br />

crítico do seu desenvolvimento. Além disso, nenhuma<br />

explicação sobre suas relações intelectuais deve<br />

omitir Twardowski, Marty e outros Brentanistas, além<br />

de Avenarius e Dilthey.<br />

Olhando para seu desenvolvimento próximo de seus<br />

últimos dias de vi<strong>da</strong> 20 , Husserl enfatizou a importância<br />

do “modo de procedimento correlativo” ilustrado<br />

nas Investigações Lógicas. Isso ele rastreou na Filosofia<br />

<strong>da</strong> Aritmética, com sua “duplici<strong>da</strong>de peculiar de análises<br />

psicológicas e lógicas”, que agora eram vistas como<br />

tendo íntima relação. A uni<strong>da</strong>de dos Prolegomena e <strong>da</strong>s<br />

seis investigações, esqueci<strong>da</strong>s pelos críticos contemporâneos,<br />

resultou <strong>da</strong> realização <strong>da</strong> natureza correlativa<br />

<strong>da</strong> análise descritiva. Primeiramente, foi necessário defender<br />

a objetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s estruturas lógicas contra todos<br />

os esforços subjetivistas, antes de proceder à preparação<br />

epistemológica <strong>da</strong> ciência <strong>da</strong> lógica pura. Embora<br />

grandes avanços sobre a Filosofia <strong>da</strong> Aritmética tenham<br />

sido alcançados, a análise <strong>da</strong> consciência foi principalmente<br />

“noética”, o que significa que estava muito mais<br />

preocupa<strong>da</strong> com a vivência do que com os estratos de<br />

sentidos “noemáticos” pertencentes a ca<strong>da</strong> experiência.<br />

A necessi<strong>da</strong>de e técnica para uma análise profun<strong>da</strong> dos<br />

dois lados <strong>da</strong> consciência foi feita, pela primeira vez de<br />

forma clara, nas Idéias.<br />

A “fenomenologia” representa<strong>da</strong> nas Investigações<br />

Lógicas utiliza somente a intuição imanente, sem ir além<br />

<strong>da</strong> esfera <strong>da</strong> auto-doação intuitiva. Este é o significado<br />

do preceito “voltar às coisas mesmas”; em outras palavras,<br />

um apelo à própria doação intuitiva. O segundo<br />

volume <strong>da</strong> obra ilustra esse princípio metodológico por<br />

meio de uma extensa análise concreta. Todos os insights<br />

dessa obra são insigths apodíticos por essência. O reino<br />

<strong>da</strong>s ideias que é assim revelado é finalmente referido de<br />

volta à subjetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> consciência, entendi<strong>da</strong> como “o<br />

campo primeiro de todo a priori”. De importância determinante<br />

na investigação universal <strong>da</strong> consciência é<br />

a percepção de que a esfera imanente é governado por<br />

leis essenciais.<br />

20 Cf. Philosophen Lexikon, by E. Hauer, W. Ziegenfuss, and G. Jung,<br />

Berlin, 1937, pp. 447ff.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012<br />

T e x t o s C l á s s i c o s


T e x t o s C l á s s i c o s<br />

Até pode ser que nenhuma posição anteriormente<br />

sustenta<strong>da</strong> estivesse completamente erra<strong>da</strong>, tanto que<br />

os resultados “corretos” de suas investigações sempre<br />

encontraram seu lugar em ca<strong>da</strong> período sucessivo. A explicação<br />

genética do pensamento de Husserl é, portanto,<br />

o melhor caminho para explicar o papel <strong>da</strong>s várias divisões<br />

e aspectos de sua filosofia. Durante to<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong><br />

intelectual, os principais estímulos de sua filosofia podem<br />

ser verificados, até sua última fase, quando foi sustentado<br />

que somente o meio “difícil” <strong>da</strong> redução fenomenológica,<br />

agora intrinsecamente elaborado, poderia<br />

revelar as bases “desmotiva<strong>da</strong>s” e não condiciona<strong>da</strong>s de<br />

to<strong>da</strong> filosofia e ciência.<br />

Tendo em mente o elemento <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de, é útil<br />

distinguir diversos grupos de escritos, que irão descrever<br />

de modo mais exato os três maiores períodos já mencionados.<br />

A organização não é inteiramente cronológica, a<br />

fim de distinguir os escritos psicológico-epistemológicos<br />

do formal. O conteúdo e o método desses trabalhos<br />

estão em questão nesta classificação. Assim, embora<br />

Erfahrung und Urteil resulte de um período anterior, conforme<br />

mencionado por Landgrebe, também deriva de um<br />

período posterior, em questão. Por essa razão, pertence<br />

aos últimos escritos lógicos. (1) Temos a obra resultante<br />

do primeiro período de seu treinamento matemático, a<br />

dissertação sobre o cálculo <strong>da</strong>s variações, “Beiträge zur<br />

Variationsrechnung” 21 . (2) O esforço de estabelecer uma<br />

fun<strong>da</strong>ção psicológica para a lógica e a matemática podem<br />

ser entendi<strong>da</strong>s como estágios distintos no início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong><br />

de 1890, embora sejam paralelas às investigações<br />

de natureza estritamente lógica. Os estudos de Husserl,<br />

de 1886 a 1895, focaram preliminarmente no campo <strong>da</strong><br />

matemática e <strong>da</strong> lógica formal. Este foi o período dedicado<br />

ao psicologismo como uma posição metodológica.<br />

Husserl acreditava que a filosofia <strong>da</strong> matemática estava<br />

relaciona<strong>da</strong> com a origem psicológica dos conceitos fun<strong>da</strong>mentais<br />

<strong>da</strong> matemática. Ao longo <strong>da</strong> obra Filosofia <strong>da</strong><br />

Aritmética, Husserl dedicou atenção ao que chamou de<br />

fatores “quase-qualitativos” ou “figurativos” chamados<br />

de “quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Gestalt” por von Ehrenfels 22 . (3) As<br />

Investigações Lógicas consistem nos resultados mais significativos<br />

dos esforços intelectuais de Husserl nos anos<br />

1890. Suas várias partes foram escritas em épocas diferentes<br />

e, portanto, tiveram que ser revisa<strong>da</strong>s por inteiro<br />

21 Cp. Illemann, Husserls vor-phänomenologische Philosophie, p. 70.<br />

Illemann está correto ao ressaltar os três períodos em matemática<br />

pura, pré-fenomenologia e pura ou “fenomenologia <strong>da</strong> epoche”<br />

[“epochistic” phenomenology], embora fizesse mais sentido manter<br />

a própria terminologia de Husserl ao falar de fenomenologia em<br />

dois sentidos – o descritivo simples e o transcendental. Illemann<br />

comete o erro de apresentar o criticismo, do ponto de vista <strong>da</strong> escola<br />

de Driesch-Schingnitz, enquanto ao mesmo tempo reconhece a<br />

incompletude dos períodos anteriores. Cf. revisão de Becker sobre<br />

o livro de Illemann na Deutsche Literaturzeitung, Feb. 4, 1934, no<br />

qual Becker sugere o título de “fenomenologia perspectivista” para<br />

o quarto período.<br />

22 Refere-se à Gestaltquälitat ou “quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> forma”, proposta por<br />

Christian von Ehrenfels (N. do E.).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012<br />

Marvin Farber<br />

a fim de <strong>da</strong>r a elas uma certa coerência. A parte crítica<br />

do primeiro volume, que tem sido mais amplamente<br />

li<strong>da</strong>, consiste de uma crítica e repúdio ao psicologismo,<br />

já apresenta<strong>da</strong> em seus cursos no ano de 1895. O último<br />

capítulo deste volume, sobre “A Ideia de uma Lógica<br />

Pura” foi adicionado posteriormente; este resultou dos<br />

estudos matemático-lógicos precedentes conduzidos por<br />

Husserl, interrompidos depois de 1894, mas que avançaram<br />

na ideia de uma ontologia formal. É importante<br />

observar que as Investigações Lógicas registram um distintivo<br />

avanço na compreensão <strong>da</strong> ciência formal, bem<br />

como um marco no desenvolvimento de uma teoria do<br />

conhecimento, assunto que predomina em seu trabalho.<br />

Nesta, a fenomenologia é caracteriza<strong>da</strong> como uma psicologia<br />

descritiva estrutura<strong>da</strong> para oferecer os esclarecimentos<br />

<strong>da</strong>s ideias de base do pensamento formal. Isto<br />

foi especialmente infeliz na medi<strong>da</strong> em que foi um fator<br />

impeditivo para o correto entendimento <strong>da</strong>s investigações.<br />

Entretanto, ficou evidente ao leitor cui<strong>da</strong>doso que<br />

tais esclarecimentos apresentavam análises essenciais.<br />

Na correção subsequente a esse erro, Husserl enfatizou<br />

o fato de que to<strong>da</strong> apercepção psicológica é excluí<strong>da</strong>, de<br />

que experiências pertencentes a seres pensantes reais<br />

não estão em questão. Em outras palavras, a “psicologia<br />

descritiva” não foi feita para ser entendi<strong>da</strong> no seu sentido<br />

comum, mas como foi claramente apontado na primeira<br />

edição <strong>da</strong> sua obra, o método de investigação foi concebido<br />

para ser livre de todos os pressupostos <strong>da</strong> psicologia<br />

e <strong>da</strong> metafísica. (4) Os escritos publicados após a primeira<br />

edição <strong>da</strong>s Investigações Lógicas e até a publicação<br />

<strong>da</strong>s Ideias em 1913 podem ser incluídos em um grupo,<br />

abrangendo todos os escritos conhecidos até a primeira<br />

formulação publica<strong>da</strong> sobre a redução fenomenológica.<br />

A segun<strong>da</strong> obra “Logical Survey” (uma discussão crítica<br />

<strong>da</strong>s publicações alemãs sobre lógica no final do século)<br />

continha um grande material pertencente ao período<br />

precedente, além <strong>da</strong> correção <strong>da</strong> concepção de fenomenologia<br />

como uma psicologia descritiva. As Lectures on<br />

the Consciousness of Inner Time (1905-1910) 23 e o ensaio<br />

publicado na revista Logos, “Philosophy as a Rigorous<br />

Science” (1910) 24 ilustram, respectivamente, a natureza<br />

<strong>da</strong> descrição fenomenológica e o ideal programático <strong>da</strong><br />

fenomenologia como a mais rigorosa de to<strong>da</strong>s as ciências.<br />

Nesse período, a função esclarecedora <strong>da</strong> fenomenologia<br />

é atribuí<strong>da</strong> a uma disciplina autônoma que serve de prelúdio<br />

para todo o tipo de conhecimento. Embora a análise<br />

23 Vorlesungen zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins, ou as<br />

“Lições para uma Fenomenologia <strong>da</strong> Consciência Interna do Tempo”,<br />

cursos proferidos por Husserl entre 1905-1907, e compilados inicialmente<br />

por Edith Stein. Foram publica<strong>da</strong>s pela primeira vez em 1928,<br />

sob organização de Martin Heidegger, no Jahrbuch für Philosophie<br />

und phänomenologische Forschung, 9. Halle a.d.S: Max Niemeyer,<br />

1928, 367-498. Em 1966, tem nova edição, por Rudolf Boehm, e sua<br />

publicação em 1969, nas Husserliana 10. A edição para o português<br />

foi traduzi<strong>da</strong> por Pedro Alves, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Lisboa (N. do E.).<br />

24 Philosophie als strenge Wissenschaft, publicado na revista Logos 1.<br />

Tübingen. (1910-11), 289-341. A tradução portuguesa <strong>da</strong>ta de 1965,<br />

como A Filosofia como Ciência de Rigor (N. do. E.).<br />

242


Edmund Husserl e os Fun<strong>da</strong>mentos de sua Filosofia (1940)<br />

descritiva <strong>da</strong> consciência do tempo inclua elementos de<br />

um caráter genético e constitutivo, e expan<strong>da</strong> o campo<br />

de análise, a redução de todo o conhecimento à consciência<br />

pura não é defini<strong>da</strong> sistematicamente tanto na obra<br />

quanto no ensaio de Logos. A fenomenologia é agora, em<br />

resumo, uma região autônoma de investigação livre de<br />

to<strong>da</strong> pressuposição <strong>da</strong> psicologia, mantendo a exigência<br />

de uma filosofia livre de pressuposições. (5) As Ideias<br />

inauguram o período <strong>da</strong> fenomenologia transcendental,<br />

e o método <strong>da</strong> redução fenomenológica se torna o caminho<br />

para a filosofia. Este trabalho fornece a apresentação<br />

sistemática <strong>da</strong> nova fenomenologia. Neste contexto,<br />

o fenomenológico é distinguido <strong>da</strong> “atitude” natural. Esta<br />

pressupõe a existência do mundo, em conjunto com outras<br />

pressuposições normalmente feitas. A atitude fenomenológica<br />

exige a suspensão de to<strong>da</strong>s as pressuposições.<br />

A existência do mundo e de tudo que é “posto”, é coloca<strong>da</strong><br />

“entre parênteses”. Os fenômenos que permanecem são<br />

o assunto principal <strong>da</strong> fenomenologia, defini<strong>da</strong> como a<br />

ciência <strong>da</strong> consciência pura transcendental. A discussão<br />

sobre noesis e noema é particularmente importante para<br />

trazer à luz algumas estruturas fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> experiência<br />

e também por indicar um campo frutífero para<br />

pesquisas. A “redução” abre um campo universal para a<br />

investigação filosófica livre de quaisquer prejulgamentos<br />

e pressuposições, em razão <strong>da</strong> sua importância metodológica<br />

crucial. Husserl é cui<strong>da</strong>doso ao distinguir a redução<br />

eidética (procedente do fato para a essência) <strong>da</strong> redução<br />

transcendental, de acordo com a qual os fenômenos são<br />

caracterizados como sendo “irreais” e não são ordenados<br />

no “mundo atual”. O método <strong>da</strong> redução fenomenológica<br />

é aplicado a fim de alcançar o campo filosófico livre de<br />

pressuposições na consciência de um ego individual para<br />

começar, que envolve a suspensão de to<strong>da</strong>s as crenças nas<br />

reali<strong>da</strong>des transcendentes. A fenomenologia tornava-se<br />

agora a ciência mais fun<strong>da</strong>mental e a base absoluta de<br />

todo o conhecimento. O objetivo de Husserl ao trazer as<br />

Investigações Lógicas até o nível <strong>da</strong>s Ideias numa edição<br />

revisa<strong>da</strong> (1913-1921) não foi concretiza<strong>da</strong> plenamente,<br />

embora algumas partes dela tenham sido radicalmente<br />

altera<strong>da</strong>s em conformi<strong>da</strong>de com uma clareza maior<br />

que ele tinha desenvolvido. O termo “epoché” 25 nomeia<br />

apropria<strong>da</strong>mente esse período. Não existe necessi<strong>da</strong>de<br />

de ambigui<strong>da</strong>de no uso desse termo. Outros significados<br />

de “epoché” além <strong>da</strong>queles <strong>da</strong>s Idéias devem ser colocados<br />

explicitamente. Isso significa o caminho para a<br />

esfera transcendental e sua elaboração mais detalha<strong>da</strong> é<br />

ofereci<strong>da</strong> pelas Meditações Cartesianas 26 . Este trabalho<br />

25 No orginal, “epochistic”. Optamos por manter a palavra original<br />

epoche, utiliza<strong>da</strong> na fenomenologia, para não criar outro neologismo<br />

(N.d. E.).<br />

26 Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge, publicados nas<br />

Husserliana 1, sob edição de S.Strasser. Referem-se às conferências<br />

de Husserl em Paris (entre 23 e 24 de fevereiro de 1929), a convite<br />

do “Institut d’Études Germaniques” e <strong>da</strong> “Societé Française de<br />

Philosphie”, na Sorbonne. Em português esses textos foram traduzidos<br />

em dois volumes distintos: Conferências de Paris e Meditações<br />

Cartesianas (N. do E.).<br />

243<br />

trata do problema <strong>da</strong> vivência de outras mentes através<br />

<strong>da</strong> empatia e introduz o conceito de intersubjetivi<strong>da</strong>de<br />

transcendental, necessária para uma completa fenomenologia<br />

constitutiva. (6) Embora venham sob o título<br />

apropriado de fenomenologia transcendental, é desejável<br />

listar os últimos escritos lógicos separa<strong>da</strong>mente. A obra<br />

Formal and Transcendental Logic (1929) 27 é importante<br />

não somente em vista de sua notável excelência como um<br />

clássico <strong>da</strong> lógica, mas também porque é o ponto culminante<br />

<strong>da</strong>s linhas de desenvolvimento <strong>da</strong> fenomenologia<br />

lógica e transcendental. O termo “perspectivista” chama<br />

atenção para o esforço de uma síntese dos dois campos<br />

de interesse tradicionalmente divergentes com os quais<br />

a ativi<strong>da</strong>de filosófica de Husserl começou, ou seja, sua<br />

proposição-problema original, a qual envolvia a psicologia<br />

e a epistemologia bem como o pensamento formal.<br />

A análise detalha<strong>da</strong> desse trabalho permite ao leitor julgar<br />

o sucesso <strong>da</strong>quela síntese. Incluso nisto está uma reinterpretação<br />

e avaliação <strong>da</strong>s Investigações Lógicas como<br />

um nível avançado <strong>da</strong> fenomenologia transcendental.<br />

A preparação e a publicação dos últimos estudos lógicos<br />

de Husserl, chamados de Experience and Judgment<br />

(1939) 28 , finalmente permite a compreensão <strong>da</strong> base fenomenológica<br />

<strong>da</strong> lógica. Husserl apresenta grande parte<br />

do material necessário para a análise <strong>da</strong> experiência,<br />

acrescentando mais argumentos para suas investigações<br />

e resultados já alcançados. Isso se aplica particularmente<br />

à análise <strong>da</strong> “experiência pré-predicativa” e à “análise de<br />

origens” dos conceitos e lógicas <strong>da</strong> forma 29 . Assim como<br />

a Formal and Transcendental Logic, este é um trabalho<br />

de grande importância para a lógica, para a teoria do<br />

conhecimento e para a psicologia. É importante lembrar<br />

que a oposição de Husserl ao psicologismo jamais impli-<br />

27 No original, Formale and transzendentale Logik: Versuch einer Kritik<br />

der logischen Vernunft (N. do Ed.).<br />

28 No original, Erfahrung und Urteil. Untersuchungen zur Genealogie<br />

der Logik, organizado por Ludwig Landgrebe e publicado logo<br />

após o falecimento de Husserl. Permanece inédito em português<br />

(N. do E.).<br />

29 Cf. Erfahrung und Urteil, §§ 5, 11, e 12 para o significado do conceito<br />

de “origem” ou de “gênese” como concebido pelo método fenomenológico.<br />

A afirmação “genética” de Husserl sobre os problemas <strong>da</strong><br />

origem, como relacionados à lógica, não é psicológica no sentido<br />

comum. O termo “genético” refere-se à produção pelo qual surge o<br />

conhecimento na sua “forma originária” de auto-doação, um processo<br />

que repeti<strong>da</strong>mente requer uma mesma forma de cognição. O<br />

processo factual, histórico, dos significados que surgem a partir de<br />

uma subjetivi<strong>da</strong>de defini<strong>da</strong>mente histórica não está em questão.<br />

Nosso mundo se torna um exemplo para nós por meio dos quais<br />

estu<strong>da</strong>mos a estrutura e a origem de um mundo possível em geral.<br />

O esclarecimento <strong>da</strong> origem do julgamento predicativo é uma tarefa<br />

fun<strong>da</strong>mental para a genealogia <strong>da</strong> lógica num sentido transcendental.<br />

O objetivo é investigar as contribuições do conhecimento para<br />

a construção do mundo. A fim de se ater às experiências últimas<br />

e originais, é necessário voltar às uni<strong>da</strong>des simples e considerar<br />

o mundo como um mundo puramente perceptivo, de abstrações<br />

de tudo o que é existente. Desse modo, o reino <strong>da</strong> natureza como<br />

percebido por mim é alcançado primeiramente. Assim, podemos<br />

chegar à construção <strong>da</strong>s pedras mais primitivas <strong>da</strong> contribuição<br />

lógica, <strong>da</strong> qual o nosso mundo é construído. A linha sistemática<br />

<strong>da</strong>s interrogações “transcendentais” desses estudos lógicos ilustra<br />

tais “análises de origem”.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012<br />

T e x t o s C l á s s i c o s


T e x t o s C l á s s i c o s<br />

cou uma oposição à psicologia. Ao contrário, não menos<br />

importantes de suas contribuições foram feitas no campo<br />

<strong>da</strong> psicologia. (7) As últimas publicações a aparecer,<br />

uma antes de sua morte e outra póstuma, revelam seu<br />

interesse em expandir o método fenomenológico para um<br />

escopo ain<strong>da</strong> maior do que tinha sido alcançado, para<br />

incluir referência à história <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> filosofia, e<br />

para <strong>da</strong>r conta do problema <strong>da</strong> história confrontando esse<br />

método por meios do conceito de “história intencional”.<br />

Os sete grupos listados acima abrangem as seguintes<br />

publicações: (1) Matemática. Tese de doutorado,<br />

“Beiträge zur Variationsrechnung” que não foi publica<strong>da</strong>.<br />

(2) Psicologismo. Filosofia <strong>da</strong> Aritmética (1891),<br />

somente o volume I foi publicado; “Psychologische<br />

Studien zur elementaren Logik” (1894). A tese de habilitação<br />

submeti<strong>da</strong> à Universi<strong>da</strong>de de Halle para fins<br />

de qualificação docente, “Ueber den Begriff der Zahl”<br />

(1887) foi impressa, mas não coloca<strong>da</strong> à ven<strong>da</strong>. Foi incorpora<strong>da</strong><br />

na Filosofia <strong>da</strong> Aritmética. (3) Formal Logic<br />

and Phenomenology as Descriptive Psychology. Revisão<br />

do trabalho de Schröder intitulado “Vorlesungen über<br />

die Algebra der Logik” (1891); “Der Folgerungscalcül<br />

und die Inhaltslogik” (1891); controvérsia com Voigt<br />

(1893); a primeira pesquisa lógica, “Bericht über deutsche<br />

Schriften zur Logik aus dem Jahre 1894” (1897);<br />

Logische Untersuchungen, primeira edição (1900-1901).<br />

(4) Fenomenologia Pré-Transcendental. Segun<strong>da</strong> pesquisa<br />

lógica, “Bericht über deutsche Schriften zur Logik in den<br />

Jahren 1895-99” (1903-1904); revisão <strong>da</strong> obra de Palagyi<br />

Der Streit der Psychologisten und Formalisten in der modernen<br />

Logik (1903); conferências sobre consciência do<br />

tempo, Vorlesungen zur Phänomenologie des inneren<br />

Zeitbewusstseins (publica<strong>da</strong>s em 1928, mas escritas entre<br />

1905-1910); o ensaio publicado na revista Logos sobre a<br />

filosofia como ciência rigorosa, “Philosophie als strenge<br />

Wissenschaft” (1910). (5) Fenomenologia Transcendental.<br />

A edição revisa<strong>da</strong> <strong>da</strong>s Logische Untersuchungen, juntamente<br />

com o prefácio recentemente publicado de<br />

1913, no qual Husserl responde aos críticos (1913-<br />

1921); Ideen zu einer reinen Phänomenologie (1913); o<br />

prefácio do autor à tradução para o inglês <strong>da</strong>s “Ideen”<br />

(1931); o artigo sobre fenomenologia na Encyclopaedia<br />

Britannica, 14ª edição (1929); Méditations Cartésiennes<br />

(1931); o ensaio de Fink nos Kant-Studien, “Die phänomenologische<br />

Philosophie Edmund Husserls in der<br />

gegenwärtigen Kritik”, no qual Husserl endossava ao<br />

expressar suas próprias opiniões (1933). (6) Síntese<br />

<strong>da</strong> Logica Formal e <strong>da</strong> Fenomenologia Transcendental.<br />

Formale und Transzendentale Logik (1929); Erfahrung<br />

und Urteil (1939). Husserl afirmou que ele mesmo se<br />

deparou com dificul<strong>da</strong>des antigas, mas que esse foi<br />

sem dúvi<strong>da</strong> seu trabalho mais maduro, à parte a quinta<br />

edição <strong>da</strong>s Meditações Cartesianas. (7) Fenomenologia<br />

e História. Na época de seu falecimento ele estava trabalhando<br />

em seu último livro, “A Crise <strong>da</strong>s Ciências<br />

Européias e a Filosofia: Uma Introdução à Fenomenologia<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012<br />

Marvin Farber<br />

Transcendental”; a parte introdutória desse texto foi<br />

publica<strong>da</strong> no primeiro volume de Philosophia (1936) 30 .<br />

Este trabalho foi estruturado para apresentar ao aluno<br />

as “dimensões radicalmente novas do conhecimento”<br />

<strong>da</strong> fenomenologia transcendental. O manuscrito sobre a<br />

origem <strong>da</strong> geometria, “Die Frage nach dem Ursprung der<br />

Geometrie als intentional-historisches Problem”, foi publicado<br />

por Fink na Revue Internationale de Philosophie<br />

(1939). Os vestígios literários de Husserl incluem uma<br />

grande quanti<strong>da</strong>de de material descritivo sobre fenomenologia<br />

constitutiva e revela seus muitos interesses no<br />

campo <strong>da</strong> filosofia como um todo.<br />

5. Rumo ao futuro<br />

Husserl acreditava que estivesse fazendo grandes progressos<br />

até o final, e que tinha finalmente alcançado a<br />

clareza completa sobre a compreensão. Rebaixado pela<br />

Alemanha oficial e ignorado por muitos dos renomados<br />

teóricos “Arianos” na Alemanha, os quais tinha influenciado,<br />

Husserl encarou o futuro com um apelo para o julgamento<br />

<strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de, com a percepção serena de quem<br />

tinha alcançado muito do que é permanente. Ele escreveu:<br />

“E nós, velhas pessoas, permanecemos aqui. Uma<br />

vira<strong>da</strong> singular dos tempos: isso dá aos filósofos – se não<br />

nos tirar o fôlego – muito para pensar. Mas agora: cogito<br />

ergo sum, ou seja, submeto sub specie aeterni meu direito<br />

de viver. E isso, as aeternitas em geral, não podem ser<br />

toca<strong>da</strong>s por nenhuma força terrestre”.<br />

Para ser sincero, Husserl teve poucos “seguidores”<br />

no final de sua vi<strong>da</strong>, do ponto de vista <strong>da</strong> aceitação sem<br />

reservas dos seus últimos esforços filosóficos. Mas seria<br />

um erro restringir o número de representantes sinceros<br />

<strong>da</strong> filosofia fenomenológica a uns poucos seguidores.<br />

A alma do trabalho de Husserl era uma completude única;<br />

seus problemas tinham um horizonte sempre aberto.<br />

Se alguns poucos estu<strong>da</strong>ntes de filosofia podiam manter<br />

seu progresso atualizado, isso era devido à escassez<br />

de suas publicações em relação a sua produção completa.<br />

Mas não era só isso; deve-se se admitir que muitos<br />

alunos de filosofia não dedicaram o tempo necessário<br />

ao estudo <strong>da</strong> fenomenologia. Esta era plenamente compreendi<strong>da</strong><br />

por alguns poucos, embora fosse discuti<strong>da</strong><br />

por muitos. Husserl não poderia se sentir sozinho nessas<br />

circunstâncias e isto foi acentuado pelo seu status<br />

na nova Alemanha.<br />

O período do alcance internacional de Husserl em<br />

larga escala agora que começou, consoante o interesse<br />

sistematicamente organizado de estudiosos do mundo<br />

todo sobre o entendimento e desenvolvimento <strong>da</strong> sua filosofia.<br />

Husserl está destinado a ser objeto de discussão<br />

por um bom tempo. Esta é a intenção dos membros <strong>da</strong><br />

International Phenomenological Society, de fazer feno-<br />

30 “Die Krisis der europäischen Wissenchaften und die transzendentale<br />

Phanomenologie”.<br />

244


Edmund Husserl e os Fun<strong>da</strong>mentos de sua Filosofia (1940)<br />

menologia efetivamente para progressos fenomenológicos<br />

futuros.<br />

O método fenomenológico proíbe quaisquer prejulgamentos<br />

e dogmas. Seu ideal é a elaboração de uma<br />

filosofia descritiva através de um método radical, procedendo<br />

com a maior liber<strong>da</strong>de possível <strong>da</strong>s pressuposições.<br />

Essa é uma tendência científica na filosofia e<br />

seu programa construtivo prevê resultados muito positivos.<br />

Assim, o método fenomenológico tem se mostrado<br />

de aplicabili<strong>da</strong>de, através de muitas pesquisas, em<br />

diversas áreas do conhecimento como arte, matemáticas,<br />

direito, ciências sociais, psicologia e psiquiatria.<br />

É certo que apenas o início foi feito. Por outro lado, a<br />

adoção nominal e o uso inadequado do método fenomenológico<br />

já ilustraram os perigos de um misticismo, de<br />

uma descrição unilateral e distorci<strong>da</strong>, do dogmatismo<br />

e do agnosticismo. Um domínio crítico e competente<br />

deveria manter o método livre de tais erros, oferecendo<br />

uma base para todos os estudiosos interessados no<br />

programa construtivo <strong>da</strong> filosofia como ciência rigorosa.<br />

O novo periódico, Philosophy and Phenomenological<br />

Research, está dedicado à promoção desse ideal. O trabalho<br />

de Edmund Husserl constitui seu ponto de parti<strong>da</strong>.<br />

Olhando para o futuro, ele convi<strong>da</strong> a uma participação<br />

ativa de todos os estudiosos capazes de contribuir<br />

para a compreensão e desenvolvimento <strong>da</strong> fenomenologia<br />

no seu sentido clássico e com o futuro progresso<br />

245<br />

<strong>da</strong> filosofia em si mesma e em sua relação com outras<br />

áreas de aprendizagem.<br />

Nota Biográfica<br />

Marvin Farber (University of Buffalo)<br />

Marvin Farber (1901-1980) foi um filósofo americano (nascido em<br />

Buffalo, New York). Graduado summa cum laude em Filosofia pela<br />

Harvard University, estudou em Berlim, Freiburg e Heidelberg, entre<br />

1922-1924, período em que entrou em contato com Husserl. Em 1925,<br />

obteve seu Doutorado em Harvard com a tese Phenomenology as a<br />

Method and as a Philosophical Discipline. Ao lado de Dorion Cairns foi<br />

um dos pioneiros na introdução <strong>da</strong> Fenomenologia nos Estados Unidos.<br />

Professor Emérito na Universi<strong>da</strong>de de Buffalo, entre 1937-1961, fundou<br />

– em 1940 – a revista Philosophy and Phenomenological Research, um<br />

dos mais respeitados journals de sua área, sendo seu Editor até 1980.<br />

Anteriormente, em 1939, fundou a International Phenomenological<br />

Society. Publicou Phenomenology as a Method (1928), The Foun<strong>da</strong>tion<br />

of Phenomenology (1940), Naturalism and Subjectivism (1959) e The<br />

Search for an Alternative: Philosophical Perspectives of Subjectivism<br />

and Marxism (1984, póstuma).<br />

Tradução: Profa. Dra. Silvana Ayub Polchlopek<br />

(Universi<strong>da</strong>de Tecnológica Federal do Paraná)<br />

Revisão Técnica: Adriano Furtado Holan<strong>da</strong><br />

(Universi<strong>da</strong>de Federal do Paraná)<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012<br />

T e x t o s C l á s s i c o s


DissertAções e teses ..........


Pesquisa Fenomenológica na Justiça do Trabalho – Proposta de Conciliação Humanista (2010)<br />

Título: Pesquisa Fenomenológica na Justiça do Trabalho – Proposta de Conciliação Humanista<br />

Autor: Nayara Queiroz Mota de Sousa<br />

Instituição: Universi<strong>da</strong>de Católica de Pernambuco<br />

Programa: Mestrado em Direito<br />

Banca: Sergio Torres Teixeira (Orientador)<br />

Sandra Souza <strong>da</strong> Silva Chaves (UFPB) (Co-Orientadora)<br />

Virginia Colares Soares Figueiredo Alves (Unicap)<br />

Marcelo Labanca Correia de Araújo (Unicap)<br />

Luciana Grassano de Gouveia Melo (UFPE)<br />

Defesa: 17 de fevereiro de 2010<br />

249<br />

DISSERTAÇõES E TESES<br />

Resumo: O Poder Judiciário exerceu uma grande influência na formação do Estado brasileiro,<br />

o que ressaltou o papel <strong>da</strong> classe jurídica dentro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Como juristas, os<br />

magistrados tiveram uma grande influência na elaboração <strong>da</strong> estrutura e organização<br />

estatal o que lhes renderam um enorme prestígio e poder dentro do meio social. Esta<br />

característica associa<strong>da</strong> à luta pela independência e profissionalização <strong>da</strong> categoria gerou<br />

um distanciamento dos juízes com os ci<strong>da</strong>dãos, sendo que a formação <strong>da</strong> magistratura<br />

basea<strong>da</strong> no método cartesiano de fazer ciência, que não acompanhou as transformações<br />

sociais trazi<strong>da</strong>s pela moderni<strong>da</strong>de, aprofundou ain<strong>da</strong> mais este afastamento, gerando<br />

uma insatisfação com a atuação do Poder Judiciário, inclusive no ramo trabalhista.<br />

O aumento <strong>da</strong> conflituosi<strong>da</strong>de provocado pelas modificações implanta<strong>da</strong>s no mundo<br />

moderno exige respostas rápi<strong>da</strong>s e efetivas do Poder Judiciário, como pacificador<br />

social. Neste panorama, os meios de solução de conflitos devem ser privilegiados,<br />

que além de desafogarem a máquina judiciária, resolvem a conten<strong>da</strong> no seio social.<br />

A conciliação vem sendo estimula<strong>da</strong> como melhor e mais rápi<strong>da</strong> solução para as ações<br />

judiciais, portanto precisa ser aprimora<strong>da</strong>. A humanização <strong>da</strong> atuação jurisdicional se<br />

apresenta como alternativa para aproximar o Poder Judiciário do ci<strong>da</strong>dão e auxiliar na<br />

missão de pacificação dos conflitos, pois promete o aperfeiçoamento <strong>da</strong> pessoa para<br />

melhor conviver em socie<strong>da</strong>de, em um momento em que o isolamento e as contradições<br />

parecem atingir o homem moderno. O presente trabalho objetivou identificar o sentido<br />

<strong>da</strong> relação estabeleci<strong>da</strong> em audiência entre o magistrado e as partes, através de uma<br />

pesquisa fenomenológica existencial, utilizando como instrumento metodológico, a<br />

versão de sentido, para a coleta de <strong>da</strong>dos. Os resultados e discussão demonstram que<br />

<strong>da</strong>s falas dos magistrados e dos jurisdicionados emergiram eixos de significados que<br />

revelam o sentimento de ca<strong>da</strong> pesquisado, inclusive com tematizações específicas dos<br />

Juízes; eixos que se comunicavam nas vivências dos reclamantes e dos reclamados e<br />

outros que são peculiares a ca<strong>da</strong> parte em específico. Analisando estas uni<strong>da</strong>des de<br />

significações se podem traçar conexões com a revisão <strong>da</strong> literatura que evidenciaram a<br />

necessi<strong>da</strong>de de aperfeiçoar a ativi<strong>da</strong>de jurisdicional e promoveram uma reflexão sobre<br />

as posturas adota<strong>da</strong>s na atuação do Poder Judiciário Trabalhista <strong>da</strong> Paraíba. Concluise<br />

com a sugestão de uma nova perspectiva para humanizar a tentativa conciliatória,<br />

adotando os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa para qualificar este ato<br />

jurisdicional e implantar dentro <strong>da</strong> Justiça do Trabalho uma conciliação humanista.<br />

Palavras-chave: Conciliação Humanista. Justiça do Trabalho. Pesquisa Fenomenológica. Versão de<br />

Sentido. Abor<strong>da</strong>gem Centra<strong>da</strong> na Pessoa.<br />

Abstract: The Judiciary has exercised a great influence on the formation of the Brazilian state,<br />

which emphasized the role of the judicial profession in society. As jurists, the judges<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 249-250, jul-dez, 2012<br />

D i s s e r t a ç õ e s e T e s e s


D i s s e r t a ç õ e s e T e s e s<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 249-250, jul-dez, 2012<br />

Nayara Q. M. Sousa<br />

had a great influence in developing the structure and the state organization that<br />

earned them enormous prestige and power within the social environment. This feature<br />

associated with the struggle for independence and professionalism of the category<br />

generated a distance of judges with the public, and training for the judges based on<br />

the Cartesian method of doing science, which not accompanied the social changes<br />

brought by modernity, has enlarged this distance, generating a dissatisfaction with the<br />

performance of the Judiciary, including the labor sector. The increased conflictuality<br />

that caused by the changes implemented in the modern world requires rapid and<br />

effective responses of the judiciary, social as peacemaker. In this scenario, the means<br />

of conflict resolution should be privileged, that beyond the Judiciary of relief, resolve<br />

the dispute within society. Reconciliation has been promoted as the best and quickest<br />

solution to the lawsuits, so they need to be improved. Humanizing is an alternative<br />

approach to the judiciary of the citizen and helping in the mission of pacifying the<br />

conflict, for it promises the improvement of the person to cope better in society, in a time<br />

when the isolation and the contradictions seem to reach the modern man. This study<br />

aimed to identify the direction of the relationship between the judge and the parties,<br />

through an existential phenomenological research, using as a methodological tool, the<br />

version of meaning, to collect <strong>da</strong>ta. Results and discussion show that the speech of<br />

judges and parties of the axes of meanings emerged that reveal the feelings of each<br />

search, including specific thematizations Judges; axes that are communicated in the<br />

experiences of the parties and others axes which are peculiar to each part in particular.<br />

Analyzing these units of meaning they can trace connections to the literature review,<br />

highlighting the need to improve the judicial activity and promote a reflection on the<br />

postures adopted in the Judiciary of the Paraiba. This Search concluded by suggesting a<br />

new perspective to humanize the conciliatory attempt, taking the fun<strong>da</strong>mentals of the<br />

Person Centered Approach to qualify and deploy the conciliation within the Judiciary<br />

proposing the conciliation a humanist.<br />

Keywords: Reconciliation Humanist. Judiciary. Phenomenological Research. Version of Sense.<br />

Person Centered-Approach.<br />

Texto completo: http://www.unicap.br/tede/tde_arquivos/4/TDE-2011-06-07T155431Z-395/Publico/<br />

dissertacao_nayara_queiroz.pdf<br />

250


“A Crise <strong>da</strong>s Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental” de Edmund Husserl: uma apresentação (2011)<br />

Título: “A Crise <strong>da</strong>s Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental” de Edmund<br />

Husserl: uma apresentação<br />

Autor: Erico de Lima Azevedo<br />

Instituição: Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de São Paulo<br />

Programa: Mestrado em Filosofia<br />

Banca: Mário Ariel González Porta (Orientador)<br />

Defesa: 20 de maio de 2011<br />

251<br />

DISSERTAÇõES E TESES<br />

Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar uma <strong>da</strong>s mais importantes e intrica<strong>da</strong>s obras<br />

do filósofo alemão Edmund Husserl: “A crise <strong>da</strong>s ciências européias e a fenomenologia<br />

transcendental”, de 1936. Trata-se de uma obra significativa no desenvolvimento<br />

de Husserl por causa <strong>da</strong> elaboração do conceito de “mundo-<strong>da</strong>-vi<strong>da</strong>” (Lebenswelt),<br />

mas, além disso, o texto contém uma dimensão adicional, igualmente inovadora: é<br />

a primeira publicação na qual Husserl toma expressamente uma posição sobre a<br />

história e na qual trata o problema <strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> filosofia, empreendendo longas<br />

análises “histórico-teleológicas”. Porém, antes de compreender porque é possível falar<br />

de uma crise <strong>da</strong>s ciências, porque, para Husserl, a lógica, a matemática e a física ain<strong>da</strong><br />

precisassem de um fun<strong>da</strong>mento último, e, finalmente, porque, para ele, a filosofia<br />

seja a ciência capaz de prover este fun<strong>da</strong>mento, o primeiro passo é compreender a<br />

sua noção de “ciência”. As análises histórico-teleológicas ocupam uma posição de<br />

destaque na última grande obra de Husserl, correspondendo ao próximo passo “lógico”:<br />

demonstrar “como”, historicamente, tenham-se construído os equívocos <strong>da</strong> filosofia<br />

e <strong>da</strong> ciência. Husserl analisa a teleologia ínsita no percurso histórico <strong>da</strong> filosofia na<br />

busca de um fun<strong>da</strong>mento definitivo, o qual, não fora corretamente capturado pelas<br />

duas principais posições <strong>da</strong> filosofia moderna: o objetivismo fisicalista e o subjetivismo<br />

transcendental. Tal percurso conduz a filosofia à necessi<strong>da</strong>de de uma tarefa específica,<br />

que é a fenomenologia. Esta é chama<strong>da</strong> a realizar o empreendimento de uma análise<br />

intencional <strong>da</strong> consciência constitutiva do mundo, a qual desvelará pela primeira vez<br />

como tema filosófico o “mundo-<strong>da</strong>vi<strong>da</strong>”, o qual surge como fun<strong>da</strong>mento de to<strong>da</strong>s as<br />

ciências: filosofia, lógica, matemática, ciências naturais etc. O trabalho faz então uma<br />

revisão de parte <strong>da</strong> vasta literatura acerca <strong>da</strong> noção de “mundo-<strong>da</strong>-vi<strong>da</strong>”, seguindo as<br />

minuciosas considerações de alguns autores: segundo a perspectiva <strong>da</strong> evolução <strong>da</strong><br />

idéia de “mundo” na obra de Husserl, segundo a constituição intersubjetiva do mundo<br />

e o relativismo histórico, mas também segundo a consideração do problema filosófico<br />

do “mundo-<strong>da</strong>-vi<strong>da</strong>” enquanto um universo de ser e de ver<strong>da</strong>de, apresentando, por fim,<br />

uma análise segundo a perspectiva <strong>da</strong> totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> intencional. No que se refere<br />

ao problema <strong>da</strong>s “vias” para a redução fenomenológica transcendental, que ocupa a<br />

terceira parte <strong>da</strong> obra, analisamos apenas a via por meio <strong>da</strong> reconsideração do “mundo<strong>da</strong>-vi<strong>da</strong>”<br />

já <strong>da</strong>do, deixando a via <strong>da</strong> “psicologia” para uma investigação futura.<br />

Palavras-chave: Husserl. Mundo <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>. Crise <strong>da</strong>s Ciências. Fenomenologia Transcendental.<br />

Abstract: The present study aims to present one of the most important and difficult works of<br />

the German philosopher Edmund Husserl “The crisis of European sciences and<br />

transcendental phenomenology”, 1936. It is a significant work in Husserl’s development<br />

because he evolves the concept of “life-world” (Lebenswelt), but, besides, the text also<br />

reveals another novelty dimension: this is the first work in which Husserl takes expressly<br />

a position about history and deals with the problem of historicity of philosophy,<br />

doing long “historical-teleological” analysis. However, before understanding why it<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 251-252, jul-dez, 2012<br />

D i s s e r t a ç õ e s e T e s e s


D i s s e r t a ç õ e s e T e s e s<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 251-252, jul-dez, 2012<br />

Erico L. Azevedo<br />

is possible to declare a “crisis of sciences”, why, for Husserl, logic, mathematics and<br />

physics were still in need of a last grounding and, finally, why philosophy is the<br />

science capable of providing such grounding, it is necessary to pay special attention to<br />

his notion of science. The historical-teleological analysis play, indeed, an outstanding<br />

role in the last great work of Husserl, corresponding to the next logic step: to show<br />

“how”, historically, the mistakes of philosophy and science have been possible. Husserl<br />

analyses the intrinsic teleology of the history of philosophy in the search for its own<br />

grounding, which was not correctly captured by both of main positions of modern<br />

philosophy: physicalistic objectivism and transcendental subjectivism. Such path<br />

leads philosophy to the need of a specific task, which is phenomenology. This is called<br />

to accomplish an authentic and consistent intentional analysis of the consciousness<br />

that constitutes the world, revealing for the first time as a philosophical theme the<br />

“life-world”, which appears then as the grounding soil for all sciences: philosophy,<br />

logic, mathematics, natural sciences etc. The study then performs a revision of part of<br />

the literature regarding the concept of “life-world”, following detailed considerations<br />

of a few important critics: in the perspective of the evolution of the idea of “world”<br />

in Husserl’s texts, in the perspective of intersubjective constitution of the world and<br />

historical relativism, but also in the perspective of a “universum of being and truth”,<br />

and finally, in the perspective of the totality of intentional life. Regarding the problems<br />

of the “ways” into transcendental philosophy, corresponding to the third part of the<br />

text, we have analysed in this study only the way by inquiring back from the pregiven<br />

life-world, while the way from psychology was left for a future investigation<br />

Keywords: Husserl. Life-world. Crisis of sciences. Transcendental Phenomenology.<br />

Texto completo: http://www.ontopsicologia.org.br//arquivos/download/a_crise_<strong>da</strong>s_ciencias_eurpeias_<br />

e_a_fenomenologia_transcendental_de_edmund_husserl__uma_apresentacao.pdf<br />

252


NormAs pArA publicAção .....


Normas de Publicação <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

255<br />

NORMAS DE pUbLICAÇÃO DA REvISTA<br />

DA AbORDAGEM GESTÁLTICA<br />

A REVISTA DA ABoRDAGEM GESTÁlTICA, edita<strong>da</strong><br />

pelo Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestaltterapia<br />

de Goiânia (<strong>ITGT</strong>), foi cria<strong>da</strong> com o objetivo<br />

de ser um veículo de publicação preferencialmente <strong>da</strong><br />

Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>, bem como <strong>da</strong>quelas abor<strong>da</strong>gens<br />

que se fun<strong>da</strong>mentam em bases teórico-científicas e filosóficas<br />

dentro <strong>da</strong>s perspectivas humanistas e existenciais,<br />

além <strong>da</strong>s pauta<strong>da</strong>s na Fenomenologia. As suas diretrizes<br />

são defini<strong>da</strong>s pela Editoria e pelo Conselho Editorial, dos<br />

quais participam psicólogos, filósofos e profissionais <strong>da</strong>s<br />

áreas <strong>da</strong> saúde e educação.<br />

Assim, sua linha editorial procura privilegiar reflexões<br />

– numa perspectiva multiprofissional e interdisciplinar<br />

– em torno dos seguintes temas: a) Gestalt-terapia<br />

e Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>; b) Psicologia Humanista e<br />

Existencial; c) Psicologias e Psicoterapias de orientação<br />

Fenomenológica e Existencial; d) Fenomenologia pura e<br />

aplica<strong>da</strong>; e) Pesquisa Qualitativa e Fenomenológica.<br />

Serão aceitos para apreciação artigos centrados na<br />

pesquisa e na produção do conhecimento relativos às<br />

abor<strong>da</strong>gens cita<strong>da</strong>s, que remetam à reflexão crítica <strong>da</strong><br />

atuação do psicólogo ou de outros profissionais que as<br />

utilizam no seu exercício profissional. Poderão ser artigos<br />

teóricos ou empíricos, que envolvam temáticas relaciona<strong>da</strong>s<br />

à saúde, educação, humani<strong>da</strong>des, filosofia ou<br />

ciências sócio-antropológicas, refletindo assim a perspectiva<br />

holística <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem gestáltica.<br />

1. Informações Gerais<br />

Os manuscritos serão submetidos à apreciação do<br />

Conselho Editorial para realização de parecer técnico<br />

(em número mínimo de dois pareceres por proposta, ou<br />

mais, quando necessário). A editoria <strong>da</strong> revista lançará<br />

mão (caso necessário) de especialistas convi<strong>da</strong>dos – na<br />

quali<strong>da</strong>de de consultores ad hoc – que poderão sugerir<br />

modificações antes de sua publicação.<br />

A editoração <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> assegura<br />

o anonimato dos autores e dos consultores durante<br />

o processo de avaliação. Serão considera<strong>da</strong>s a atuali<strong>da</strong>de<br />

e a relevância do tema, bem como a originali<strong>da</strong>de, a consistência<br />

científica e o atendimento às normas éticas.<br />

Os trabalhos deverão ser originais, relacionados à<br />

psicologia, filosofia, educação, ciências <strong>da</strong> saúde e sócio-antropológicas,<br />

e se enquadrarem nas categorias que<br />

se seguem:<br />

Relato de pesquisa – relato de investigação concluí<strong>da</strong><br />

ou em an<strong>da</strong>mento, com uso de <strong>da</strong>dos empíricos, meto-<br />

dologia, resultados e discussão dos <strong>da</strong>dos. O manuscrito<br />

deve ter entre 12 e 20 lau<strong>da</strong>s.<br />

Estudo teórico – análise de fatos e idéias publicados sobre<br />

um determinado tema. Busca achados controvertidos<br />

para crítica e apresenta sua própria interpretação <strong>da</strong>s informações.<br />

O manuscrito deve ter entre 12 e 20 lau<strong>da</strong>s.<br />

Relato de experiência – estudo de caso, contendo<br />

análise de implicações conceituais ou descrição de procedimentos<br />

ou estratégias de intervenção, incluindo evidência<br />

metodologicamente apropria<strong>da</strong> de avaliação de eficácia,<br />

de interesse para a atuação de psicólogos em diferentes<br />

áreas. O manuscrito deve ter entre 12 e 20 lau<strong>da</strong>s.<br />

Estudo monográfico – apresenta trabalho desenvolvido<br />

em ativi<strong>da</strong>de acadêmica pelo autor, como especialização,<br />

mestrado ou doutorado. Limitado a 10 lau<strong>da</strong>s.<br />

Ensaio – interpretação original de algum tema que<br />

contribua criticamente para o aprofun<strong>da</strong>mento do conhecimento.<br />

Limitado a 5 lau<strong>da</strong>s.<br />

Resenha – análise de obra recentemente publica<strong>da</strong><br />

(no máximo há dois anos). Limita<strong>da</strong> a 5 lau<strong>da</strong>s.<br />

Resenha (textos clássicos) – análise de obra considera<strong>da</strong><br />

relevante para a abor<strong>da</strong>gem, publica<strong>da</strong> há mais de<br />

dez anos. Limita<strong>da</strong> a 5 lau<strong>da</strong>s.<br />

Ressonância – comentários e/ou réplicas de publicações<br />

de números anteriores deste periódico. Limita<strong>da</strong><br />

a 5 lau<strong>da</strong>s.<br />

Perfil – breve biografia de pessoa que tenha contribuído<br />

para o desenvolvimento <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem gestáltica,<br />

humanista, existencial ou fenomenológica. Limitado a<br />

5 lau<strong>da</strong>s.<br />

Notícias – registro de fatos ou eventos relacionados à<br />

comuni<strong>da</strong>de gestáltica. Limita<strong>da</strong> a 3 lau<strong>da</strong>s.<br />

Resumo de tese e dissertação – conforme apresentado<br />

na tese/dissertação defendi<strong>da</strong>. Limitado a uma<br />

lau<strong>da</strong>.<br />

2. Instruções para publicação<br />

Os manuscritos submetidos à publicação devem ser<br />

inéditos e destinarem-se exclusivamente a esta revista,<br />

não sendo permiti<strong>da</strong> a sua apresentação simultânea em<br />

outro periódico. Todos os trabalhos serão submetidos a<br />

uma avaliação “cega”, por – no mínimo – dois pareceristas,<br />

pares especialistas na temática proposta.<br />

Os manuscritos deverão ser enviados via e-mail (revista@itgt.com.br),<br />

conforme especificações disponíveis<br />

no site <strong>da</strong> revista (www.revistagestalt.com.br). Deverá ser<br />

encaminhado também um mini-currículo contendo as seguintes<br />

informações: nome completo do(s) autor(es), afi-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 255-259, jul-dez, 2012<br />

N o r m a s


N o r m a s<br />

liação institucional, títulos e/ou cargos atuais, endereço<br />

eletrônico e endereço para correspondência.<br />

Não serão admitidos acréscimos ou alterações após o<br />

envio dos manuscritos para o Conselho Editorial, salvo<br />

os sugeridos por este.<br />

As opiniões emiti<strong>da</strong>s nos trabalhos, bem como a exatidão<br />

e adequação <strong>da</strong>s Referências Bibliográficas são de<br />

exclusiva responsabili<strong>da</strong>de dos autores.<br />

A publicação dos trabalhos dependerá <strong>da</strong> observância<br />

<strong>da</strong>s normas <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> e<br />

<strong>da</strong> apreciação do Conselho Editorial, que dispõe de plena<br />

autori<strong>da</strong>de para decidir sobre a conveniência <strong>da</strong> sua<br />

aceitação, podendo, inclusive, apresentar sugestões aos<br />

autores para as alterações necessárias.<br />

Quando a investigação envolver sujeitos humanos, os<br />

autores deverão apresentar no corpo do trabalho uma declaração<br />

de que foi obtido o consentimento dos sujeitos<br />

por escrito (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido)<br />

e/ou <strong>da</strong> instituição em que o trabalho foi realizado<br />

(Comissão de Ética em Pesquisa). Trabalhos sem o cumprimento<br />

de tais exigências não serão publicados.<br />

Os autores serão notificados sobre a aceitação ou a recusa<br />

de seus artigos, os quais, mesmo quando não forem<br />

aproveitados, não serão devolvidos.<br />

3. formas de apresentação dos manuscritos<br />

A <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> adota normas<br />

de publicação basea<strong>da</strong>s no Publication Manual of the<br />

American Psychological Association (APA) – 5ª edição,<br />

2001.<br />

Os manuscritos deverão ser preferencialmente redigidos<br />

em português. A critério do Conselho Editorial,<br />

também serão aceitos manuscritos redigidos em inglês,<br />

francês ou espanhol.<br />

Os trabalhos deverão ser digitados em Programa<br />

Word for Windows, em letra Times New Roman, tamanho<br />

12, espaçamento interlinear de 1,5 e margens de<br />

2,5 cm, em papel formato A4, perfazendo o total máximo<br />

de lau<strong>da</strong>s, de acordo com o tipo de publicação deseja<strong>da</strong><br />

(ver Informações gerais), observa<strong>da</strong>s as seguintes<br />

especificações:<br />

a) Cabeçalho - é recomen<strong>da</strong>do que o título do artigo<br />

seja escrito em até doze palavras, refletindo as principais<br />

questões de que trata o manuscrito. O título deverá ser<br />

redigido em caixa alta, fonte 14, centralizado e em negrito.<br />

A seguir, devem vir, em itálico, centralizados e em<br />

fonte 12, os títulos em inglês e espanhol.<br />

b) Os nomes completos dos autores deverão aparecer<br />

abaixo do título, em fonte 12, letra versalete, com<br />

alinhamento à direita, indicando, após as Referências<br />

Bibliográficas, em nota explicativa, a titulação dos autores,<br />

local de ativi<strong>da</strong>de e e-mail (se houver).<br />

c) Epígrafe - deverá ser apresenta<strong>da</strong> em letra normal,<br />

em espaçamento interlinear simples, fonte 10, com ali-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 255-259, jul-dez, 2012<br />

Normas de Publicação <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

nhamento à direita. O nome do autor <strong>da</strong> epígrafe deverá<br />

aparecer em itálico, seguido <strong>da</strong> referência <strong>da</strong> obra.<br />

d) Resumo e Palavras-chave - deverão ser redigidos<br />

em português, inglês e espanhol, em parágrafo único,<br />

espaçamento interlinear simples, fonte 10, com até 200<br />

palavras. As palavras-chave (descritores), de três a cinco<br />

termos significativos, deverão remeter ao conteúdo fun<strong>da</strong>mental<br />

do trabalho. Para a sua determinação, consultar<br />

a lista de Descritores em Ciências <strong>da</strong> Saúde – elabora<strong>da</strong><br />

pela Bireme e/ou Medical subject heading – comprehensive<br />

medline. To<strong>da</strong>s as palavras deverão ser escritas com<br />

iniciais maiúsculas e separa<strong>da</strong>s por ponto e vírgula.<br />

Incluir também descritores em inglês (keywords) e espanhol<br />

(Palabras-clave).<br />

e) Estrutura do manuscrito - os trabalhos referentes<br />

a pesquisas e relatos de experiência deverão conter<br />

introdução, objetivos, metodologia, resultados e conclusão.<br />

O trabalho deverá ser redigido em linguagem clara<br />

e objetiva. As palavras estrangeiras e os grifos do autor<br />

deverão vir em itálico.<br />

f) Adotar a seguinte padronização de palavras<br />

- Gestalt-terapia ou Gestalt-terapia, gestalt-terapeuta,<br />

Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>, Psicologia <strong>da</strong> Gestalt ou<br />

Gestalt-Psychologie. Verificar excesso de espaço entre as<br />

palavras.<br />

g) Subtítulos - deverão ser colocados sempre no alinhamento<br />

<strong>da</strong> margem esquer<strong>da</strong> do manuscrito, em negrito,<br />

apenas com as letras iniciais de ca<strong>da</strong> palavra em<br />

maiúsculas.<br />

h) Ilustrações - figuras, quadros, tabelas, desenhos<br />

e gráficos deverão ser indicados em números arábicos,<br />

com legen<strong>da</strong> em letras maiúsculas, título em minúsculas,<br />

sem grifo.<br />

i) Nomenclaturas e Abreviaturas - usar somente as<br />

oficiais. O uso de abreviaturas e de siglas específicas ao<br />

conteúdo do manuscrito deverá ser feito com sua indicação<br />

entre parênteses na primeira vez em que aparecem<br />

no manuscrito, precedi<strong>da</strong> <strong>da</strong> forma por extenso.<br />

j) Notas de ro<strong>da</strong>pé - deverão ser numera<strong>da</strong>s em ordem<br />

crescente e restritas ao mínimo indispensável.<br />

l) Citações - deverão ser feitas de acordo com as normas<br />

<strong>da</strong> APA (5ª edição, 2001). Em caso de transcrição integral<br />

de um texto com número inferior a quarenta palavras,<br />

a citação deverá ser incorpora<strong>da</strong> ao texto entre aspas<br />

duplas, em itálico, com indicação, após o sobrenome do<br />

autor e a <strong>da</strong>ta, <strong>da</strong>(s) página(s) de onde foi retirado. Uma<br />

citação literal com quarenta ou mais palavras deverá ser<br />

destaca<strong>da</strong> em bloco próprio, começando em nova linha,<br />

sem aspas e sem itálico, com o recuo do parágrafo alinhado<br />

com a primeira linha do parágrafo normal. O tamanho<br />

<strong>da</strong> fonte deve ser 12, e o espaçamento interlinear<br />

1,5, como no restante do manuscrito. A citação destaca<strong>da</strong><br />

deve ser formata<strong>da</strong> de modo a deixar uma linha acima e<br />

outra abaixo <strong>da</strong> mesma<br />

m) Referências Bibliográficas - denominação a ser<br />

utiliza<strong>da</strong>. Não use Bibliografia. O subtítulo Referências<br />

256


Normas de Publicação <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

Bibliográficas deverá estar alinhado à esquer<strong>da</strong>. As referências<br />

deverão seguir normas <strong>da</strong> APA (5ª edição, 2001).<br />

A fonte deverá ser formata<strong>da</strong> em tamanho 12, espaçamento<br />

interlinear 1,5, sempre em ordem alfabética Deixe um<br />

espaço extra entre uma citação e a próxima. Utilize o recuo<br />

“deslocamento”. Verificar se to<strong>da</strong>s as citações feitas<br />

no corpo do manuscrito e nas notas de ro<strong>da</strong>pé aparecem<br />

nas Referências Bibliográficas e se o ano <strong>da</strong> citação no<br />

corpo do manuscrito confere com o indicado na lista<br />

final.<br />

n) Anexos - usados somente quando indispensáveis<br />

à compreensão do trabalho, devendo conter um mínimo<br />

de páginas (serão computa<strong>da</strong>s como parte do manuscrito)<br />

e localizados após Referências Bibliográficas.<br />

4. Tipos comuns de citação no manuscrito<br />

Citação de artigo de autoria múltipla<br />

a) dois autores<br />

O sobrenome dos autores é explicitado em to<strong>da</strong>s as<br />

citações, usando “e” ou “&” conforme a seguir: “O método<br />

proposto por Siqueland e Delucia (1969)” ou “o método foi<br />

inicialmente proposto para o estudo <strong>da</strong> visão (Siqueland<br />

& Delucia, 1969)”<br />

b) de três a cinco autores<br />

O sobrenome de todos os autores é explicitado na primeira<br />

citação: “Spielberger, Gorsuch e Lushene (1994)<br />

verificaram que”. Da segun<strong>da</strong> citação em diante, só o sobrenome<br />

do primeiro autor é explicitado, seguido de “et<br />

al.” e o ano: “Spielberger et al. (1994) verificaram que”. Se<br />

houver uma terceira citação no mesmo parágrafo, omita<br />

o ano: “Spielberg et al. verificaram”<br />

Caso as Referências e a forma abrevia<strong>da</strong> produzam<br />

aparente identi<strong>da</strong>de de dois trabalhos em que os co-autores<br />

diferem, esses são explicitados até que a ambigüi<strong>da</strong>de<br />

seja elimina<strong>da</strong>. Os trabalhos de Hayes, S. C., Brownstein,<br />

A. J., Haas, J. R. & Greenway, D. E. (1986) e Hayes, S. C.,<br />

Brownstein, A. J., Zettle, R. D., Rosenfarb, I. & Korn, Z.<br />

(1986) são assim citados: “Hayes, Brownstein, Haas et al.<br />

(1986) e Hayes, Brownstein, Zettle et al. (1986).<br />

Na seção de Referências Bibliográficas, os nomes de<br />

todos os autores devem ser relacionados.<br />

c) de seis ou mais autores<br />

Desde a primeira citação, só o sobrenome do primeiro<br />

autor é mencionado, seguido de “et al.”, exceto se esse<br />

formato gerar ambigui<strong>da</strong>de, caso em que a mesma solução<br />

indica<strong>da</strong> no item anterior deve ser utiliza<strong>da</strong>: “Rodrigues<br />

et al. (1988).”<br />

Mais uma vez, na seção de Referências Bibliográficas<br />

todos os nomes são relacionados.<br />

257<br />

Citações de trabalho discutido em uma fonte secundária<br />

Caso se utilize como fonte um trabalho discutido em<br />

outro, sem que o texto original tenha sido lido (por exemplo,<br />

um estudo de Flavell, citado por Shore, 1982), deverá<br />

ser usa<strong>da</strong> a seguinte citação: “Flavell (conforme citado por<br />

Shore, 1982) acrescenta que estes estu<strong>da</strong>ntes...”<br />

Na seção de Referências Bibliográficas, informar apenas<br />

a fonte secundária (no caso Shore, 1982), com o formato<br />

apropriado.<br />

Citações de obras antigas reedita<strong>da</strong>s<br />

a) Quando a <strong>da</strong>ta do trabalho é desconheci<strong>da</strong> ou muito<br />

antiga, citar o nome do autor seguido de “sem <strong>da</strong>ta”:<br />

“Piaget (sem <strong>da</strong>ta) mostrou que...” ou (Piaget, sem <strong>da</strong>ta).<br />

b) Em obra cuja <strong>da</strong>ta original é desconheci<strong>da</strong>, mas<br />

a <strong>da</strong>ta do trabalho lido é conheci<strong>da</strong>, citar o nome do autor<br />

seguido de “tradução” ou “versão” e <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> tradução<br />

ou <strong>da</strong> versão: “Conforme Aristóteles (tradução 1931)” ou<br />

(Aristóteles, versão 1931).<br />

c) Quando a <strong>da</strong>ta original e a consulta<strong>da</strong> são diferentes,<br />

mas conheci<strong>da</strong>s, citar autor, <strong>da</strong>ta do original e <strong>da</strong>ta<br />

<strong>da</strong> versão consulta<strong>da</strong>: “Já mostrava Pavlov (1904/1980)”<br />

ou (Pavlov, 1904/1980).<br />

Citação de comunicação pessoal<br />

Este tipo de citação deve ser evita<strong>da</strong>, por não oferecer<br />

informação recuperável por meios convencionais.<br />

Se inevitável, deverá aparecer no texto, mas não na seção<br />

de Referências Bibliográficas, com a indicação de<br />

“comunicação pessoal”, segui<strong>da</strong> de dia, mês e ano. Ex.:<br />

“C. M. Zannon (comunicação pessoal, 30 de outubro de<br />

1994).”<br />

5. Seção de Referências bibliográficas<br />

Organize por ordem alfabética dos sobrenomes dos<br />

autores. Em casos de referência a múltiplos estudos do<br />

mesmo autor, organize pela <strong>da</strong>ta de publicação, em ordem<br />

cronológica, ou seja, do estudo mais antigo ao mais recente.<br />

Referências com o mesmo primeiro autor, mas com diferentes<br />

segundos ou terceiros autores, devem ser organiza<strong>da</strong>s<br />

por ordem alfabética dos segundos ou terceiros autores<br />

(ou quartos ou quintos...). Os exemplos abaixo auxiliam<br />

na organização do manuscrito, mas certamente não<br />

esgotam as possibili<strong>da</strong>des de citação. Utilize o Publication<br />

Manual of the American Psychological Association (2001,<br />

5ª edição) para suprir possíveis lacunas.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 255-259, jul-dez, 2012<br />

N o r m a s


N o r m a s<br />

Exemplos de tipos comuns de referência<br />

Relatório técnico<br />

Birney, A. J. & Hall, M. M. (1981). Early identification of children<br />

with written language disabilities (relatório n. 81-1502).<br />

Washington, DC: National Education Association.<br />

Trabalho apresentado em congresso, mas não<br />

publicado<br />

Haidt, J., Dias, M. G. & Koller, S. (1991, fevereiro). Disgust, disrespect<br />

and culture: moral judgement of victimless violations<br />

in the USA and Brazil. Trabalho apresentado em Reunião<br />

Anual (Annual Meeting) <strong>da</strong> Society for Cross-Cultural<br />

Research, Isla Verde, Puerto Rico.<br />

Trabalho apresentado em congresso com resumo<br />

publicado em publicação seria<strong>da</strong> regular<br />

Tratar como publicação em periódico, acrescentando<br />

logo após o título a indicação de que se trata de<br />

resumo.<br />

Silva, A. A. & Engelmann, A. (1988). Teste de eficácia de um<br />

curso para melhorar a capaci<strong>da</strong>de de julgamentos corretos<br />

de expressões faciais de emoções [Resumo]. Ciência e<br />

Cultura, 40 (7, Suplemento), 927.<br />

Trabalho apresentado em congresso com resumo<br />

publicado em número especial<br />

Tratar como publicação em livro, informando sobre<br />

o evento de acordo com as informações disponíveis em<br />

capa.<br />

Todorov, J. C., Souza, D. G. & Bori, C. M. (1992). Escolha e decisão:<br />

A teoria <strong>da</strong> maximização momentânea [Resumo]. Em<br />

Socie<strong>da</strong>de Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de comunicações<br />

científicas, XXII Reunião Anual de Psicologia<br />

(p. 66). Ribeirão Preto: SBP.<br />

Teses ou dissertações não-publica<strong>da</strong>s<br />

Costa, L. (1989). A família descasa<strong>da</strong>: interação, competência<br />

e estilo. Estudo de caso. Dissertação de Mestrado,<br />

Universi<strong>da</strong>de de Brasília, Brasília.<br />

Livros<br />

a) primeira edição:<br />

Féres-Carneiro, T. (1983). Família: diagnóstico e terapia. Rio<br />

de Janeiro: Zahar.<br />

b) obra reedita<strong>da</strong>:<br />

Franco, F. de M. (1946). Tratado de educação física dos meninos.<br />

Rio de Janeiro: Agir (originalmente publicado em 1790).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 255-259, jul-dez, 2012<br />

Normas de Publicação <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

Vasconcelos, L. A. (1983). Brincando com histórias infantis:<br />

uma contribuição <strong>da</strong> Análise do Comportamento para o desenvolvimento<br />

de crianças e jovens (2ª ed.). Santo André:<br />

ESETec.<br />

Capítulo de livro<br />

Blough, D. S. & Blough, P. (1977). Animal psychophysics. Em W.<br />

K. Honig & J. E. Staddon (Orgs.), Handbook of operant behavior<br />

(p. 514-539). Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall.<br />

Livro traduzido em língua portuguesa<br />

Se a tradução em língua portuguesa de um trabalho em<br />

outra língua é usa<strong>da</strong> como fonte, citar a tradução em português<br />

e indicar ano de publicação do trabalho original.<br />

Salvador, C. C. (1994). Aprendizagem escolar e construção de conhecimento.<br />

(E. O. Dihel, Trad.) Porto Alegre: Artes Médicas<br />

(Trabalho original publicado em 1990).<br />

No texto, citar o ano <strong>da</strong> publicação original e o ano<br />

<strong>da</strong> tradução: (Salvador, 1990/1994).<br />

Artigo em periódico científico<br />

Informar volume do periódico, em segui<strong>da</strong>, o número<br />

entre parêntesis, sobretudo quando a paginação é reinicia<strong>da</strong><br />

a ca<strong>da</strong> número.<br />

Doise, W. (2003). Human rights: common meaning and differences<br />

in positioning. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 19(3),<br />

201-210.<br />

Obra no prelo<br />

Não deverão ser indicados ano, volume ou número de<br />

páginas até que o artigo esteja publicado. Respeita<strong>da</strong> a<br />

ordem de nomes, é a ultima referência do autor.<br />

Conceição, M. I. G. & Silva, M. C. R. (no prelo). Mitos sobre<br />

a sexuali<strong>da</strong>de do lesado medular. <strong>Revista</strong> Brasileira de<br />

Sexuali<strong>da</strong>de Humana.<br />

Autoria institucional<br />

American Psychiatric Association (1988). DSM-III-R,<br />

Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3a<br />

ed. revisa<strong>da</strong>). Washington, DC: Autor.<br />

Artigos consultados na mídia eletrônica<br />

Sanches, M. & Jorge, M.R. (2004). Transtorno Afetivo<br />

Bipolar: Um enfoque transcultural, <strong>Revista</strong> Brasileira<br />

de Psiquiatria [online]. Vol. 26, supl.3, p. 54-<br />

56. Acesso em 05 de julho de 2006, em http://www.<br />

scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-<br />

44462004000700013&lng=pt&nrm=iso.<br />

258


Normas de Publicação <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

6. Direitos autorais<br />

Artigos publicados na <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

Os direitos autorais dos artigos publicados pertencem<br />

à <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>. A reprodução total<br />

dos artigos dessa revista em outras publicações, ou para<br />

quaisquer outros fins, está condiciona<strong>da</strong> à autorização<br />

escrita do Editor <strong>da</strong> <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>.<br />

Pessoas interessa<strong>da</strong>s em reproduzir parcialmente os artigos<br />

por ela publicados (partes do texto que excederem<br />

500 palavras, tabelas, figuras e outras ilustrações) deverão<br />

obter permissão escrita dos autores.<br />

Reprodução parcial de outras publicações<br />

Manuscritos submetidos à apreciação que contiverem<br />

partes de texto extraí<strong>da</strong>s de outras publicações deverão<br />

obedecer aos limites especificados para garantir a originali<strong>da</strong>de<br />

do trabalho submetido. Recomen<strong>da</strong>-se evitar a<br />

reprodução de figuras, tabelas e desenhos extraídos de<br />

outras publicações.<br />

O manuscrito que contiver reprodução de uma ou<br />

mais figuras, tabelas e desenhos extraídos de outras<br />

publicações só será encaminhado para análise, se vier<br />

259<br />

acompanhado de permissão escrita do detentor do direito<br />

autoral do trabalho original, para reprodução especifica<strong>da</strong><br />

na <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong>. Tal permissão<br />

deve ser endereça<strong>da</strong> ao autor do trabalho submetido<br />

à apreciação.<br />

Em nenhuma circunstância, a <strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem<br />

<strong>Gestáltica</strong> e os autores dos trabalhos publicados poderão<br />

repassar a outrem os direitos assim obtidos.<br />

7. Endereço para encaminhamento<br />

To<strong>da</strong> correspondência para a revista deve ser endereça<strong>da</strong><br />

para:<br />

Editor<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong><br />

Instituto de Treinamento e Pesquisa<br />

em Gestalt-terapia de Goiânia (<strong>ITGT</strong>)<br />

Rua 1.128 nº 165 - St. Marista<br />

Goiânia-GO CEP: 74.175-130<br />

Comunicações rápi<strong>da</strong>s podem também ser efetua<strong>da</strong>s<br />

por telefone (62) 3941.9798 ou fax (62) 3942.9798 – ou pelo<br />

endereço eletrônico: revista@itgt.com.br. Outras informações<br />

podem ser obti<strong>da</strong>s no site: www.itgt.com.br<br />

<strong>Revista</strong> <strong>da</strong> Abor<strong>da</strong>gem <strong>Gestáltica</strong> – XVIII(2): 255-259, jul-dez, 2012<br />

N o r m a s

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