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Rudá de Andrade<br />

C e l a 3<br />

A grade agride<br />

prefácio:<br />

Olgária Matos


Memórias de <strong>um</strong> cárcere francês<br />

Um beijo gostoso, nem curto nem longo, medida exata de despedida,<br />

em que o amor não compete com o carinho nem deixa<br />

a sensualidade de fora, no qual os desejos de felicidade e bemestar<br />

são presentea<strong>do</strong>s no silêncio de <strong>um</strong>a pressão levemente<br />

maior, beijo que termina sem a palavra fim, porque deixa no ar e<br />

no último toque da separação <strong>do</strong>s lábios <strong>um</strong> “até breve”.<br />

Assim e sem mais palavras, deixei a suavidade da minha bela<br />

Pol<strong>aqui</strong>nha. Antes de entrar na ala internacional <strong>do</strong> aeroporto,<br />

olhei para trás. Lá estava ela, ainda ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> carro. Olhavame<br />

fixamente, com aqueles olhos castanhos e bem traça<strong>do</strong>s que<br />

encerram em seu corpo o discreto azula<strong>do</strong> da serenidade.<br />

Ao la<strong>do</strong>, o nosso filhote de seis anos dan<strong>do</strong> o adeus com o<br />

abano indiferente da mão. As mãos de nós três levantaram-se<br />

quase simultaneamente como o gesto de <strong>um</strong>a tribo unida que<br />

recomenda a paz para os dez dias de separação.<br />

Só muito depois, através de carta, fiquei saben<strong>do</strong> que naquele<br />

momento minha mulher teve o pressentimento de que não me<br />

veria por muito tempo. Quase me chamou para tentar impedir<br />

essa viagem, mas a razão a fez calar-se e engolir a angústia.<br />

Percursos em avião, esse distanciamento físico da terra trazme<br />

<strong>um</strong>a leveza, <strong>um</strong>a lucidez ideal para <strong>um</strong> reacerto no tempo e<br />

no espaço. É o momento oportuno para fazer o balanço prático e<br />

C e l a 3 17


sentimental das coisas deixadas, e <strong>um</strong>a previsão <strong>do</strong> que está para<br />

chegar. Sempre procuro liquidar essa questão logo no início, para<br />

depois usufruir descontraidamente a viagem.<br />

Fui logo dividin<strong>do</strong> as coisas entre a cabeça e o caderninho,<br />

procuran<strong>do</strong> sintetizar e simplificar os problemas. A tarefa era<br />

difícil, pois estava envolvi<strong>do</strong> em <strong>um</strong> trabalho complexo: a organização<br />

de <strong>um</strong> centro cultural múltiplo, o qual, na minha projeção<br />

mental, deveria representar força nova para as atividades culturais<br />

paulistanas e brasileiras.<br />

O centro estava na fase final das obras físicas, na inicial das<br />

instalações técnicas, da organização administrativa e da programação.<br />

Estava sain<strong>do</strong> apenas por uns dias, e deixei as coisas<br />

sob controle e em mãos capazes. Larguei em plena ação a<br />

nossa pequena estrutura administrativa e os técnicos, engenheiros<br />

e arquitetos, que trabalhavam com entusiasmo e espírito<br />

de colaboração. A responsabilidade ficou com o meu sócio no<br />

empreendimento. Rapaz muito jovem e sem experiência prática<br />

na área, mas pessoa de sensibilidade, vivacidade e vontade,<br />

que trazia o espírito da nova geração, importante para esse tipo<br />

de iniciativa.<br />

Deixei as coisas em seus caminhos. Agora, enquanto o avião<br />

deslizava, depois da rápida escala no Rio, eu procurava ligar o fio<br />

<strong>do</strong>s problemas a serem resolvi<strong>do</strong>s nesses próximos dias. Basicamente,<br />

acerto final e fechamento de compras de equipamentos,<br />

desenvolvimento de alguns itens da programação cultural e<br />

questões administrativas a serem resolvidas com o terceiro sócio.<br />

Este, há muitos anos residente em Paris, era o pai <strong>do</strong> jovem<br />

sócio, e financiava o projeto.<br />

Ten<strong>do</strong> anota<strong>do</strong> no caderninho e na cabeça o básico, iniciei<br />

a viagem propriamente dita, trocan<strong>do</strong> os pensamentos administrativos<br />

por <strong>um</strong>a latinha de cerveja <strong>do</strong> carrinho de aperitivos.<br />

18 Rudá de Andrade


Com essa escolha, percebi que tinha deixa<strong>do</strong> o centro cultural,<br />

mas ainda estava no bairro <strong>do</strong> Bexiga, e não na Swissair, onde<br />

serviam aperitivos mais adequa<strong>do</strong>s aos escargots que levava na<br />

mente, como <strong>um</strong> <strong>do</strong>s únicos objetivos parisienses fora <strong>do</strong> trabalho.<br />

Repararia esse erro no jantar de bor<strong>do</strong>, no qual a lagosta<br />

anunciada propiciar-me-ia o pretexto para <strong>um</strong> bom vinho branco<br />

que recuperaria a minha noção cultural.<br />

Cerveja na mão, dirigi-me ao solene e único companheiro<br />

de banco, certamente estrangeiro, pela conversa com a aeromoça<br />

no início da viagem.<br />

“Français?” “Oui, m’sieur.” “Est-ce que tu vas à Paris?” “Non,<br />

puisque ma grand-mère m’attend à Genève, parce que pendant<br />

les vacances...”<br />

Assim comecei a desenferrujar o meu francês, que sempre<br />

foi medíocre, e iniciei a amizade com Jean-Christophe, que ia<br />

passar as férias com os avós. Se me tirou <strong>um</strong> pouco a paz da viagem<br />

com a agitação <strong>do</strong>s seus dez anos, procurava presentear-me<br />

com as gentilezas que podia, entre as quais a de mandar ao meu<br />

garoto lembrancinhas <strong>do</strong> avião.<br />

Foi a primeira vez que senti <strong>um</strong>a pequena angústia por estar<br />

longe de meu filho. E o havia deixa<strong>do</strong> há horas, mas a distância<br />

fazia o efeito. Estava desabitua<strong>do</strong> a viagens. Há mais de oito<br />

anos não saía <strong>do</strong> Brasil e, mesmo lá, vinha viajan<strong>do</strong> pouquíssimo,<br />

levan<strong>do</strong> <strong>um</strong>a vida extremamente <strong>do</strong>méstica. “Tu<strong>do</strong> bem, dez dias<br />

passam logo, e a distância é <strong>um</strong>a brincadeira.”<br />

Percebi ter perdi<strong>do</strong> a desenvoltura <strong>do</strong> viajante. A ida para<br />

a França não me dava sentimento de volta a lugar conheci<strong>do</strong>.<br />

“Não vou me atrapalhar. O sócio de Paris dará a cobertura para<br />

o desempenho <strong>do</strong> meu programa.” A escala em Dacar confirmou<br />

essa desatualização. Nem ia sair <strong>do</strong> avião, pensan<strong>do</strong> no insípi<strong>do</strong><br />

aeroporto, mas não resisti à tentação de ver se encontrava <strong>um</strong><br />

C e l a 3 19


pufe para a minha casa. Não só achei o almofadão, como o novo<br />

aeroporto surpreendeu-me.<br />

Próximo da última escala, Genebra, vieram as despedidas e<br />

as brincadeiras com Jean-Christophe, que procurava enfiar-me o<br />

possível para levar ao meu menino: fósforos, papéis...<br />

Desci levan<strong>do</strong> as minhas coisas na mão, para a troca de<br />

avião, pensan<strong>do</strong> em saborear o aeroporto. Sempre gostei <strong>do</strong>s<br />

aeroportos suíços e já cheguei a marcar viagem com conexão em<br />

Zurique apenas para passar alg<strong>um</strong>as horas no aeroporto. Tomar<br />

banho, passear, repousar, e satisfazer <strong>um</strong> hábito idiota que tenho:<br />

comprar canivetinhos e tomar Ovomaltine. Os mesmos canivetinhos<br />

e Ovomaltines que se encontram em outros lugares. Mas<br />

como são suíços...<br />

Dessa vez fiquei meio decepciona<strong>do</strong>, pois mal entrava no<br />

aeroporto, já chamavam para <strong>um</strong>a ala de embarque, provida<br />

apenas de <strong>um</strong> pequeno balcão de bar e <strong>um</strong> ou <strong>do</strong>is estandes<br />

de vendas. Ali, consegui c<strong>um</strong>prir parte <strong>do</strong> ritual: a compra <strong>do</strong>s<br />

canivetinhos. Um deles, pensan<strong>do</strong> em levar para minha filha a<br />

título de colaboração às suas esdrúxulas excursões <strong>do</strong> último<br />

ano de biologia.<br />

Na passagem para o saguão mostrei o passaporte e aproximeime<br />

da porta <strong>do</strong> campo com os demais passageiros. Admirava o<br />

piscar das luzes coloridas <strong>do</strong>s aviões, tentan<strong>do</strong> adivinhar, no início<br />

da noite, qual seria o nosso, quan<strong>do</strong> meu nome soou no alto-falante<br />

pedin<strong>do</strong> o comparecimento a alg<strong>um</strong> lugar. Verifiquei se estava<br />

com as coisas que levava nas mãos, pensan<strong>do</strong> na eventualidade de<br />

ter perdi<strong>do</strong> algo. Tu<strong>do</strong> lá, inclusive meu pufe vazio, meio dependura<strong>do</strong>.<br />

Retornan<strong>do</strong> à entrada <strong>do</strong> saguão, encontrei no caminho<br />

<strong>do</strong>is guardas pedin<strong>do</strong>-me gentilmente para acompanhá-los.<br />

Levan<strong>do</strong>-me a <strong>um</strong> local perto dali, mostraram a minha mala<br />

aberta e desarr<strong>um</strong>ada. Enquanto indagavam se era minha, excla-<br />

20 Rudá de Andrade


mei confirman<strong>do</strong> e perguntan<strong>do</strong>, preocupa<strong>do</strong>, se houvera alg<strong>um</strong><br />

acidente com a valise. Interromperam-me no meio da frase, para<br />

mostrar os pacotes de café dentro da mala, perguntan<strong>do</strong> se eram<br />

meus. Respondi afirmativamente, notan<strong>do</strong> estarem abertos, soltan<strong>do</strong><br />

café no plástico que os envolvia. Simultaneamente, mostravam-me<br />

<strong>um</strong> s<strong>aqui</strong>nho plástico.<br />

— E isto?<br />

Aproximei-me para ver melhor, dizen<strong>do</strong> que não sabia, quan<strong>do</strong><br />

a pessoa mostrou <strong>um</strong> conteú<strong>do</strong> branco, dizen<strong>do</strong> n<strong>um</strong> tom corriqueiro<br />

de quem falava “sabonete”:<br />

— Cocaína.<br />

Reparei na desarr<strong>um</strong>ação da mala, no desarranjo <strong>do</strong>s pacotes<br />

de café, e não consegui compreender o que se passava. Ainda<br />

com serenidade e pensan<strong>do</strong> que fosse problema a ser resolvi<strong>do</strong><br />

na hora, acompanhei-os a <strong>um</strong> compartimento próximo, perguntan<strong>do</strong><br />

o que acontecera na mala. Revistaram-me. Pessoas apareciam<br />

e s<strong>um</strong>iam e perguntavam coisas que não faziam senti<strong>do</strong>.<br />

Perceben<strong>do</strong> estar falan<strong>do</strong> com policiais franceses (no início pensei<br />

serem suíços), pedi para resolverem logo a questão, ou deixarem<br />

para resolver em Paris, senão eu acabaria perden<strong>do</strong> o avião.<br />

“Santa ingenuidade!” O Jean-Christophe teria ti<strong>do</strong> reação<br />

mais coerente com a situação. No mínimo, <strong>um</strong> enorme susto.<br />

Naquele instante eu ainda acreditava no tom “sabonete” e ainda<br />

era daqueles que acham que só a polícia da gente é ruim; a da<br />

velha e civilizada Europa é para ajudar, explicar onde fica tal rua<br />

e ensinar boas maneiras.<br />

Não levei susto. Entretanto, senti em seu lugar a angústia<br />

toman<strong>do</strong> conta paulatinamente. Estava entran<strong>do</strong> n<strong>um</strong> túnel de<br />

direção única e sem saída.<br />

No quartinho <strong>do</strong> aeroporto o absur<strong>do</strong> começava a tomar<br />

corpo. Tentava entender-me com alguém, alg<strong>um</strong>a autoridade. En-<br />

C e l a 3 21


tretanto, quan<strong>do</strong> esse alguém vinha, trazia na frente <strong>um</strong>a pergunta<br />

ou <strong>um</strong>a determinação inusitada, para logo desaparecer como<br />

fantasma, deixan<strong>do</strong>-me cada vez mais perplexo e sem ação.<br />

“Com alguém você conversou no avião? Com <strong>um</strong>a criança?<br />

Examinem-lhe os braços. Usa drogas? Quem viajava com você?<br />

Vista esta calças para ver se são suas mesmo...”<br />

Ainda não percebera o equívoco que dificultava o meu diálogo:<br />

não se dirigiam a quem sou, ou a <strong>um</strong> passageiro normal em<br />

viagem de trabalho. Consideravam-me traficante internacional,<br />

liga<strong>do</strong> a perigosas organizações. Não enten<strong>do</strong> disso, mas deviam<br />

estar tentan<strong>do</strong> caçar ali, no aeroporto, o fio da suposta quadrilha.<br />

Como profissionais, deviam ter hipóteses ou suas razões, como<br />

também as deveriam ter para indagar-me e procurarem tanto por<br />

<strong>do</strong>is brasileiros misteriosos que teriam s<strong>um</strong>i<strong>do</strong> no ato. O guarda<br />

junto à porta, que estava ali para guardar e não para falar, só deixou<br />

transparecer <strong>um</strong>a comunicação condescendente, quase de<br />

c<strong>um</strong>plicidade, deixan<strong>do</strong> claro que isso tu<strong>do</strong> era assim mesmo e<br />

nada havia a fazer.<br />

Assim, o meu avião partiu, levan<strong>do</strong> <strong>um</strong>a parte da minha<br />

ingenuidade e deixan<strong>do</strong> a perplexidade.<br />

Não me lembro de quantas e tantas vezes fui chama<strong>do</strong> de<br />

la<strong>do</strong> a outro, nem bem por onde andei. Quem sofreu interrogatório<br />

policial prolonga<strong>do</strong> conhece a dificuldade de reconstituí-lo,<br />

principalmente por não conseguir localizar a coerência <strong>do</strong>s policiais,<br />

que fazem voltas, passeios, pausas, revezamentos, desnortean<strong>do</strong><br />

o interroga<strong>do</strong>.<br />

Bastou atravessar <strong>um</strong> <strong>trecho</strong> ao ar livre até o carro, para sentir<br />

no corpo a noite <strong>do</strong> inverno já rigoroso nos últimos dias de<br />

novembro. Meu abrigo de couro não era suficiente, com as roupas<br />

leves que vestia. Ainda não me sentia preso. Sentia-me alivia<strong>do</strong>,<br />

convenci<strong>do</strong> de que me levavam a alg<strong>um</strong>a instância superior,<br />

22 Rudá de Andrade


capaz de resolver o caso. Entretanto, esse percurso era apenas o<br />

início <strong>do</strong>s passeios que pontuariam os interrogatórios.<br />

Meu espírito era o de colaboração e certa cautela. Cismavam<br />

com coisas ridículas, como <strong>um</strong> nome francês, Jean-Claude,<br />

anota<strong>do</strong> em minha caderneta de endereços. Pediam a relação<br />

de pessoas, minhas conhecidas, na França. Tomava cuida<strong>do</strong><br />

para não deixar essa confusão transbordar sobre os meus conheci<strong>do</strong>s.<br />

Desejava ajudar a polícia a resolver o problema, mas não<br />

via como.<br />

No primeiro interrogatório mais efetivo, quan<strong>do</strong> me tiraram<br />

os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entos, dinheiro, papéis, tu<strong>do</strong>, insistiam em saber o meu<br />

envolvimento com drogas. Meu desconhecimento no assunto era<br />

tal que a ingenuidade das minhas respostas os irritava. Só ali vim<br />

a saber que cocaína é <strong>um</strong> pó branco. E só vim a saber que a aspiravam<br />

pelas narinas, bem depois, na prisão, onde passava por<br />

competente profissional <strong>do</strong> crime e recebia piscadas de c<strong>um</strong>plicidade,<br />

porque me calava para não deixar transparecer a minha<br />

ignorância infantil e evitar o papel de idiota. Nem o cinema, nem<br />

a literatura me tinham informa<strong>do</strong>, e é <strong>um</strong> tipo de coisa que nos<br />

jornais e revistas não passo <strong>do</strong> título.<br />

A conversa não caminhava. Solicitei entrar em contato com<br />

o consula<strong>do</strong> ou com a embaixada <strong>do</strong> Brasil, a fim de pedir orientação<br />

e apoio. Só permitiriam isso ou a orientação de <strong>um</strong> advoga<strong>do</strong><br />

ao final <strong>do</strong>s interrogatórios. Segui a regra <strong>do</strong> jogo, sem reclamar.<br />

Havia coisas que me desanimavam. Quan<strong>do</strong> respondi sobre<br />

minhas atividades, explican<strong>do</strong> ter leciona<strong>do</strong> dez anos na universidade,<br />

dirigi<strong>do</strong> <strong>um</strong> museu, que era cineasta, que organizava <strong>um</strong><br />

centro cultural, esperan<strong>do</strong> ser coloca<strong>do</strong> n<strong>um</strong> plano de consideração,<br />

<strong>um</strong> <strong>do</strong>s policiais deu <strong>um</strong> sorriso satisfeito, como se tivesse<br />

encontra<strong>do</strong> a verdade.<br />

— São sempre intelectuais.<br />

C e l a 3 23


Se dizia não ser rico, insinuavam que a pobreza me levara<br />

ao tráfico. Quan<strong>do</strong> falava ter <strong>um</strong>a vida razoável, não necessitan<strong>do</strong><br />

de dinheiro, era a vez <strong>do</strong>s ricos serem traficantes. Se não era<br />

isso, era mulher.<br />

— Sua amante mora em Paris? Onde, então?<br />

Esta última pergunta foi feita no tal interrogatório que pensava<br />

ser a instância superior salva<strong>do</strong>ra. Respondi com sonora<br />

batida de mão na mesa, exigin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s presentes respeito à minha<br />

esposa, fazen<strong>do</strong> o silêncio e a seriedade tombarem <strong>um</strong> pouco<br />

sobre o ambiente. Não o fiz por moralismo, ou outro motivo reflexivo:<br />

apenas tinha chega<strong>do</strong> à saturação e achei <strong>um</strong> bom momento<br />

para tentar mudar o tom. Veio a resposta <strong>do</strong> chefão, dan<strong>do</strong>me<br />

enorme pito, para dizer que lá quem dava as ordens era ele, e<br />

para complementar com tu<strong>do</strong> <strong>aqui</strong>lo que se pode imaginar.<br />

O pito serviu para colocar-me no devi<strong>do</strong> lugar. Qualquer<br />

tipo de rebelião só retardaria a questão. Sobrava resignar-me a<br />

agüentar até o fim, aceitan<strong>do</strong> qualquer caminho.<br />

A ladainha <strong>do</strong>s interrogatórios às vezes me distanciava: viame<br />

em casa, no trabalho, ainda no avião. N<strong>um</strong> <strong>do</strong>s intervalos,<br />

<strong>um</strong> guarda teve a gentileza de oferecer-me <strong>um</strong>a cerveja. Tomei<br />

duas, enquanto ele me consolava dizen<strong>do</strong> que eu não tinha ar<br />

de traficante.<br />

A situação se complicava por me achar no desconheci<strong>do</strong>. A<br />

França era algo muito distante. Minha estada em Paris era coisa<br />

<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e as outras passagens foram rápidas. Não conhecia a<br />

organização administrativa, os hábitos, nem o cidadão francês. A<br />

língua me atrapalhava. Além disso, só conhecia o mun<strong>do</strong> judiciário<br />

e <strong>do</strong> crime na ficção. Sentia-me perdi<strong>do</strong>.<br />

Na madrugada fria, tentava ver algo pela janela <strong>do</strong> carro<br />

para imaginar aonde me levavam. Só enxergava o escuro. Não<br />

tinha ânimo para perguntar. Depois de esperar n<strong>um</strong>a espécie de<br />

24 Rudá de Andrade


escritório <strong>um</strong>a meia hora, chegaram <strong>do</strong>is policiais, algemaramme<br />

e conduziram-me ao andar superior, onde me prenderam ao<br />

leito. Um <strong>do</strong>s guardas ajeitou-se, apoian<strong>do</strong> sua cadeira inclinada<br />

na parede, colocou os pés sobre a outra e apagou a luz. Entendi<br />

que era para <strong>do</strong>rmir.<br />

Sentia-me extremamente h<strong>um</strong>ilha<strong>do</strong>, impotente, e, agora<br />

sim, preso. Pensei na casa, na Pol<strong>aqui</strong>nha e nos meus filhos com<br />

profunda tristeza. A manhã chegou logo, quebran<strong>do</strong> as abstrações<br />

<strong>do</strong>s meus pensamentos. Conduzi<strong>do</strong> para fora, reparei estar<br />

n<strong>um</strong> posto de alfândega ro<strong>do</strong>viária. Nevava. Não longe, os Alpes<br />

mostravam imponência e <strong>um</strong>a beleza triste em suas montanhas<br />

brancas e cinza.<br />

O café f<strong>um</strong>egante <strong>do</strong>s guardas, na guarita de vidro onde<br />

estávamos, poderia me aquecer. Mas a minha boca não se abria<br />

para pedir.<br />

N<strong>um</strong> moderno, amplo e confortável escritório <strong>do</strong> aeroporto,<br />

chegaram os verdadeiros profissionais. Vestiam sobretu<strong>do</strong>s lin<strong>do</strong>s<br />

e traziam pastas tipo “executivo”. Derraman<strong>do</strong> simpatia, eles<br />

se apresentaram, dizen<strong>do</strong> ser <strong>do</strong> setor de entorpecentes da Polícia<br />

Judiciária, encarrega<strong>do</strong>s <strong>do</strong> meu caso, e coisas mais. Estes,<br />

sim: educa<strong>do</strong>s, elegantes, belos e encorpa<strong>do</strong>s como heróis de filmes.<br />

“Com eles estou salvo, poderei conversar, saberão que não<br />

sou bandi<strong>do</strong>”, pensei, enquanto se acomodavam. O h<strong>um</strong>or lembrou-me<br />

<strong>do</strong> guarda gentil das cervejas e me perguntei:<br />

“Teriam eles o aspecto de traficantes ricos e com amantes?”<br />

O chefe, com ar tolerante, de pessoa experiente, tinha bigodes<br />

grandes e bem cuida<strong>do</strong>s, <strong>um</strong> belo paletó esporte de lã e o indefectível<br />

cachimbo. O assistente, muito discreto, dava a impressão<br />

de estar à beira da promoção e tentava seguir o mesmo estilo<br />

e comportamento <strong>do</strong> chefe.<br />

Mas a conversa não vinha. Saíam, voltavam, abriam as male-<br />

C e l a 3 25


tas, iniciavam a datilografia de coisas. Fizeram-me <strong>um</strong>a ou duas<br />

perguntas formais e acabaram ce<strong>do</strong> com a minha ilusão quan<strong>do</strong>,<br />

seguin<strong>do</strong> a rotina, me encaminharam a <strong>um</strong> exame médico, e a<br />

tirar fotos e impressões digitais. A desilusão se confirmou com<br />

o interrogatório inicia<strong>do</strong> sem muita diferença <strong>do</strong>s demais e logo<br />

interrompi<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> fiquei preso n<strong>um</strong>a cela enquanto almoçavam.<br />

Repeti as coisas <strong>do</strong> dia anterior, os detalhes da viagem, da<br />

mala, a destinação <strong>do</strong>s pacotes de café, <strong>do</strong>ce de abóbora, catupiri<br />

e outras coisas. Consegui também explicar quem eu era, o<br />

que fazia, por que viajava, meus planos na Europa etc. Fornecen<strong>do</strong><br />

os da<strong>do</strong>s de que dispunha, discordei de alg<strong>um</strong>as hipóteses<br />

levantadas, entre as quais a de ter si<strong>do</strong> vítima da polícia brasileira<br />

por razões políticas. Levantamos as possibilidades que a viagem<br />

abria. Desconfiaram da minha descida em Dacar. Percorremos<br />

os caminhos <strong>do</strong> possível e <strong>do</strong> impossível.<br />

Os interrogatórios giravam monótonos e minha tensão era<br />

mantida com ameaças, sobretu<strong>do</strong> visan<strong>do</strong> ao meu destino. A previsão<br />

de <strong>do</strong>ze a vinte anos de prisão me soava como condenação à<br />

morte, levan<strong>do</strong> a divagações patéticas <strong>do</strong> adeus sem despedida.<br />

Com algemas no pé, parti à noite para <strong>um</strong>a viagem de carro<br />

com os <strong>do</strong>is superinspetores. Fora <strong>do</strong>s interrogatórios, prosseguia<br />

silencioso e sem a menor iniciativa. Meu espírito acompanhava a<br />

estrada noturna, mistura de neve e lama, e o frio me fazia sofrer.<br />

O cansaço me fez cochilar, mas de tempo em tempo o inspetor<br />

se virava para trás a fim de pressionar-me com rabos de interrogatório<br />

ou de ameaças. O tom das minhas respostas balbuciadas<br />

implorava <strong>um</strong> pouco de paz. O vidro úmi<strong>do</strong> da janela <strong>do</strong> carro<br />

mostrava pontos de luz da cidade em que entrávamos. Já tarde<br />

da noite, me depositaram na polícia local.<br />

Automaticamente, me desfiz <strong>um</strong>a vez mais das coisas proibidas<br />

das roupas, como cinto ou cordões de sapato, para entrar<br />

26 Rudá de Andrade


na gaiola. Desta vez era <strong>um</strong>a cela de vidro blinda<strong>do</strong>, com <strong>um</strong>a<br />

plataforma para deitar e <strong>um</strong> cobertor. O cheiro se dividia entre<br />

a imundície e o inseticida. Não me animava a deitar na sujeira,<br />

pois isso me parecia capitulação. Senta<strong>do</strong>, com a cabeça apoiada<br />

nas mãos, senti desânimo e vontade de chorar. Porém, a distância<br />

enorme entre a alma e o corpo me deixava imóvel, com os<br />

olhos secos e fixos no chão.<br />

Quan<strong>do</strong> a razão me man<strong>do</strong>u deitar, ouvi passos. O inspetor<br />

assistente dava ordens para abrir. Com o ânimo que entrei, saí.<br />

Quan<strong>do</strong> me jogaram n<strong>um</strong> carro, entre <strong>do</strong>is brutamontes, sem<br />

nenh<strong>um</strong> c<strong>um</strong>primento, despertei. “Preocupar-me com quê? Vai,<br />

Rudá, vai firme, estão queren<strong>do</strong> brincar de te assustar na noite.<br />

Nesta altura <strong>do</strong>s acontecimentos, nada pior poderá te acontecer.<br />

Tortura <strong>aqui</strong> não existe e você não tem mais nada a dizer.<br />

Será que não existe mesmo?... Tu<strong>do</strong> isso é <strong>um</strong>a loucura... Fodase<br />

o mun<strong>do</strong>.”<br />

Os <strong>do</strong>is carros <strong>do</strong> cortejo pararam n<strong>um</strong>a praça completamente<br />

vazia. Apenas entrevi, mas percebi que era antiga, de<br />

alg<strong>um</strong>a cidade histórica. Seguimos por <strong>um</strong>a viela escura. Paramos<br />

diante de <strong>um</strong>a enorme porta antiga, de madeira e ferro, que<br />

continha <strong>um</strong>a portinhola. Entramos por ela e chegamos a belo<br />

pátio interno ladea<strong>do</strong> por escadas de grandes degraus. Apenas o<br />

geral era percebi<strong>do</strong> na pen<strong>um</strong>bra. Levaram-me a subir as escadas.<br />

“Olhe bem, admire, Rudá! Não é disso que você gosta? A<br />

arquitetura medieval sempre te atraiu, não é? Olhe bem, seu<br />

filho-da-puta, repare as grandes paredes, as arcadas. Olhe a harmonia<br />

<strong>do</strong> pátio interno visto d<strong>aqui</strong> de cima. Olhe como ele gira<br />

gracioso enquanto você sobe. Aproveite bem, seu merda, sinta<br />

esse clima medieval!”<br />

E assim subimos uns cinco altos lances de escada, na il<strong>um</strong>inação<br />

precária. Chegamos a <strong>um</strong> escritório acarpeta<strong>do</strong> e moder-<br />

C e l a 3 27

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