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1 Todo abuso é sexual O objetivo desse texto é debater o ... - conpdl

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Introdução<br />

<strong>Todo</strong> <strong>abuso</strong> <strong>é</strong> <strong>sexual</strong><br />

Todas as famílias felizes são parecidas entre si.<br />

As infelizes são infelizes cada uma a sua maneira.<br />

1<br />

Tolstói (2003 [1877]: 9)<br />

A famosa abertura de Ana Karenina merece atenção: as famílias felizes talvez sejam<br />

apenas uma abstração idealizada, um modelo que esconde a inevitável infelicidade – ou o malestar,<br />

como Freud preferiu nomeá-la – de viver junto. Essa mesma frase, no entanto, aponta<br />

para algo bastante caro à psicanálise: cada um <strong>é</strong> infeliz à sua maneira, cada família irá produzir<br />

um mal-estar específico, oriundo de interações amorosas muito particulares.<br />

O <strong>objetivo</strong> <strong>desse</strong> <strong>texto</strong> <strong>é</strong> <strong>debater</strong> o artigo “Responsabilidade e resposta no crime de<br />

<strong>abuso</strong> <strong>sexual</strong>”, de Maria Teresa de Melo Carvalho. Para fazer isso, gostaria de contrapor dois<br />

tipos de interação familiar: o <strong>abuso</strong> <strong>sexual</strong> infantil e a indiferença. Desejo mostrar que a teoria<br />

da sedução generalizada, proposta por Jean Laplanche, nos autoriza a pensar num continuum<br />

cujas fronteiras entre o <strong>abuso</strong> <strong>sexual</strong> e o <strong>sexual</strong> mortífero de interações marcadas pela<br />

indiferença ou outras formas de violência mais simbólicas são difíceis de demarcar. Para levar<br />

a cabo esse <strong>objetivo</strong>, analisarei o livro Cicatrizes, de David Small.<br />

1. Fúria silenciosa<br />

No seu artigo, Carvalho (2011) faz uma excelente leitura de uma passagem de Freud na<br />

qual ele diz que “qualquer um que tenha amor à vida fará a proibição [de não tocar nos cabos<br />

de alta tensão] para si mesmo; e qualquer um que deseja matar‐se dessa maneira não pedirá<br />

permissão” 1 . Para a autora, essa passagem mostra que o amor à vida depende de alguma<br />

interdição. Para que uma criança se perceba como um Eu, passível de ser amada, o adulto que<br />

cuida dela deve ser interditado de trata‐la como objeto de seu gozo. O amor à vida <strong>é</strong>, antes de<br />

tudo, o amor que algu<strong>é</strong>m teve por nossa vida. A autora ainda adverte:<br />

(...) a problemática <strong>é</strong>tica passa pelo modo como o adulto se coloca diante da criança em sua<br />

dupla função, isto <strong>é</strong>, tomando‐a como objeto de seu investimento libidinal, mas, ao mesmo<br />

tempo, pautando os limites de sua apropriação sobre o corpo da criança ao exercer um amor<br />

sublimatório, capaz de considerar a criança como um sujeito desejante. (Carvalho, 2011: 5)


Poderíamos pensar num continuum que vai da indiferença absoluta dos adultos com<br />

relação aos bebês at<strong>é</strong> o <strong>abuso</strong> <strong>sexual</strong> propriamente dito. Entre esses dois extremos os matizes<br />

são os mais variados possíveis. O “investimento libidinal” de cada família, para lembrar ainda<br />

uma vez Tolstói, será singular. O que me parece importante <strong>é</strong> destacar o caráter <strong>sexual</strong> e<br />

constitutivo <strong>desse</strong>s investimentos. Sexual porque sempre aportado por um outro que excita e<br />

apazigua o corpo do bebê. Constitutivo pois são esses investimentos que introduzem o<br />

narcisismo ali onde havia apenas corpo.<br />

Vejamos como David Small, atrav<strong>é</strong>s de sua narrativa autobiográfica, permite‐nos ver<br />

algo <strong>desse</strong> processo constitutivo e <strong>sexual</strong>. Na primeira parte de seu livro, Small (2010) lembra<br />

que sua mãe “tinha uma tosse chata”, “às vezes, chorava em silêncio às escondidas” e “batia<br />

as portas dos armários da cozinha”. Para o autor, essa era a “linguagem dela” (Small, 2010:<br />

17). Sua mãe permanecia em “retrações furiosas e silenciosas” durante dias, às vezes semanas.<br />

Nada era dito, nada era explicado. O pai e o irmão tamb<strong>é</strong>m não comunicavam muito: o<br />

primeiro boxeava um saco e o segundo treinava percussão em tambores. O próprio David<br />

arranjou uma forma de se expressar sem palavras: fica constantemente doente.<br />

Nos desenhos que fez para retratar o tratamento que recebia por seu pai, que era<br />

m<strong>é</strong>dico, podemos perceber como se dá a implantação do <strong>sexual</strong> atrav<strong>é</strong>s dos cuidados básicos:<br />

Para Laplanche (1992), a implantação do <strong>sexual</strong> se distingue da intromissão justamente<br />

pelo seu caráter violento. O adulto pode investir o corpo do bebê de várias formas. Fazendo<br />

carinho, dando banho, carregando; mas tamb<strong>é</strong>m praticando esses cuidados que o pai de David<br />

faz. É importante destacar que temos uma diferença dessas cenas com relação àquelas do<br />

2


<strong>abuso</strong> <strong>sexual</strong>: o cuidado m<strong>é</strong>dico, mesmo que intrusivo e um tanto violento, tem um sentido,<br />

tem um con<strong>texto</strong> de cuidado. No caso do <strong>abuso</strong> o sentido <strong>é</strong> um só: o gozo do adulto e a<br />

exclusão da criança como sujeito de desejo.<br />

Os cuidados m<strong>é</strong>dicos do pai de David, no entanto não eram suficientes para contrapor<br />

a “fúria silenciosa” de sua mãe, representada como uma grande onda negra:<br />

Observem que a primeira resposta à fúria materna <strong>é</strong> traduzi‐la como uma onda negra.<br />

Essa tradução, como mostra o segundo desenho, não impede que seus efeitos sejam<br />

produzidos. Lembramos aqui das agonias primitivas descritas por Winnicott (1989), sendo uma<br />

delas o medo de cair para sempre. Essas agonias se devem à ausência de um holding materno<br />

suficientemente bom. É como se a mãe deixasse toda sua excitação para a criança metabolizar<br />

sozinha; sendo incapaz de fazê‐lo, pois precisaria tamb<strong>é</strong>m da ajuda da mãe que não serve para<br />

apaziguá‐la, ela vive essas excitações de uma maneira mortífera.<br />

Façamos uma breve interrupção para articular o que estamos trazendo com o tema<br />

<strong>desse</strong> Congresso. Quando Laplanche (1999) propõe o deslocamento da responsabilidade para<br />

a resposta, ele deseja apontar para o caráter singular da responsabilidade no campo do<br />

humano. A resposta <strong>é</strong> uma maneira singular de se responsabilizar por aquilo que me sucede.<br />

Ora, David se responsabiliza pelo que sua mãe faz com ele. Ele elabora a resposta que pode:<br />

seus desenhos, suas metáforas, suas sensações. Numa cena (Small, 2010: 58‐60), ele coloca<br />

uma toalha amarela sobre a cabeça imitando os cabelos loiros de Alice e tenta viver um mundo<br />

à parte como a personagem de Carroll fizera. A fantasia da criança <strong>é</strong> uma primeira resposta<br />

aos “<strong>abuso</strong>s” dos adultos. Evidentemente, essas elaborações dependem e muito de como<br />

chega o <strong>sexual</strong> do adulto at<strong>é</strong> a criança: se há muita violência, podemos imaginar que a<br />

capacidade criativa da criança tamb<strong>é</strong>m fica comprometida, pois <strong>é</strong> com o material narcísico<br />

tamb<strong>é</strong>m aportado pelo adulto que a criança lida com essa <strong>sexual</strong>idade depositada nela.<br />

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2. O sonho como modo de resposta<br />

Em seu artigo, Maria Teresa, traz dois casos clínicos. Duas meninas são abusadas<br />

<strong>sexual</strong>mente – uma pelo padrasto e outra pelo avô. A descrição dos dois casos deixa bastante<br />

claro que cada uma responde à violência de uma forma singular. Essa <strong>é</strong> a primeira resposta<br />

que damos à questão levantada pela autora: “(...) como poderá a criança confrontar‐se com<br />

essa quebra da responsabilidade do adulto por ela, pelo seu devir como sujeito <strong>é</strong>tico?”<br />

(Carvalho, 2011: ). Em primeiro lugar, portanto, <strong>é</strong> preciso insistir, a criança confronta‐se com<br />

essa quebra do pacto <strong>é</strong>tico de forma singular: cada uma com as condições que tem, com as<br />

possibilidades que consegue inventar. Essa <strong>é</strong> a grande lição da psicanálise sobre a<br />

responsabilidade: não há uma regra universal a partir da qual algu<strong>é</strong>m possa tomar uma<br />

decisão de como se portar diante do outro. É esse o sentido da conclusão do <strong>texto</strong> de<br />

Laplanche (1999) e de Carvalho (2011): não se trata de fazer uma <strong>é</strong>tica da psicanálise, mas de<br />

oferecer ao sujeito a possibilidade de “reelaborar sua resposta, à estrangeriedade do <strong>sexual</strong>,<br />

nele em primeiro lugar, fora dele talvez” (Laplanche, 1999: 172).<br />

No caso de David, podemos verificar que ele produz um sonho importante aos 14<br />

anos, logo após uma cirurgia para remover um tumor cancerígeno no pescoço. Por essa <strong>é</strong>poca,<br />

fica claro, David já nutria um profundo ódio por sua mãe e por seu pai. A mãe era indiferente<br />

ao seu sofrimento. O pai tamb<strong>é</strong>m silenciava o sentido da cirurgia – David só veio a saber que<br />

teve câncer porque leu por acaso uma carta do pai endereçada a uma tia sobre sua doença.<br />

Pois bem, logo após ver sua longa cicatriz, David tem um sonho:<br />

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Nesse sonho, David aparece como um pequeno morcego na chuva. Sua mãe aparece<br />

como um guarda‐chuva. Como vemos, ela <strong>é</strong> incapaz de protegê‐lo da tempestade. Lembremos<br />

que Laplanche começa o <strong>texto</strong> “Responsabilidade e reposta” retomando a passagem de Freud<br />

na qual ele afirma se devemos ser ou não responsáveis por nossos sonhos. Proponho um<br />

deslocamento nessa questão: o sonho já <strong>é</strong> uma forma de se responsabilizar por nossos<br />

desejos. Forma singular de resposta ao desejo do outro. O sonho de David ainda guarda o<br />

desejo infantil de ser protegido pela mãe. Trata‐se de um sonho traumático, pura repetição do<br />

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estado de desamparo sentido diversas vezes pela criança diante de um adulto frio como a<br />

tempestade. Mais uma vez <strong>é</strong> o elemento líquido – a onda, a tempestade – que vem traduzir<br />

esses afetos maternos de difícil retenção.<br />

David então começa a manifestar seu ódio aos 15 anos. Rouba o carro, responde os<br />

pais: <strong>é</strong> agressivo, bate as portas, não conversa. Isso faz com que ele seja levado ao psicanalista.<br />

David o representa como o coelho de Alice, sempre com um relógio na mão. Numa cena, o<br />

analista lhe diz: “você tem vivido num incrível mundo de besteiras, David. Ningu<strong>é</strong>m fala a<br />

verdade para você. Mas eu vou falar a verdade. Está preparado? Sua mãe não ama você. Me<br />

desculpe, David. É a verdade. Ela não ama você.” (Small, 2010: 255‐7). As páginas que se<br />

seguem mostram paisagens chuvosas (ibid.: 262‐267) at<strong>é</strong> que a chuva vai serenando e apenas<br />

sobram as marcas da chuva sobre o chão. David vivencia sua análise de forma muito positiva.<br />

Ele reconhece que seu analista preocupa‐se com ele e que o tratava como “um filho<br />

predileto”. Ao longo de sua análise, David ia se encontrando e sua família “parecia se esfacelar<br />

rapidamente” (ibid.: 272).<br />

O que uma análise produz do ponto de vista da responsabilidade? Não se trata de dizer<br />

que uma análise faz o sujeito assumir a responsabilidade pelos seus atos. Se assim fosse, ela<br />

não iria ser diferente de algum tratamento moral ou religioso. Trata‐se, antes, de fazê‐lo<br />

pensar em como tem respondido aos desejos dos outros e aos seus próprios. Respostas que<br />

são uma maneira de “submeter‐se a uma <strong>é</strong>tica que está para al<strong>é</strong>m da psicanálise ou <strong>é</strong> anterior<br />

a ela” (Carvalho, 2011), de compor com o outro e consigo mesmo melhores pactos de<br />

convivência. “Melhores” quer dizer, nesse con<strong>texto</strong>, pactos menos comprometidos com o<br />

recalcamento, acordos onde o papel de cada um fique mais claro e regras de convivência mais<br />

abertas ao reconhecimento do desejo como algo singular (isto <strong>é</strong>, cada um reconhecendo o<br />

outro como outro mesmo e não como um outro eu obrigado a seguir aquilo que eu desejo para<br />

ele).<br />

David, ao compreender que sua mãe não o amava, pode elaborar uma resposta mais<br />

interessante do que o pacto de silêncio e ódio que o mantinha unido a ela. Num último sonho<br />

relatado, ele sonha que está dentro de uma casa e seu carrinho de controle remoto fica preso<br />

lá fora. Ele vê sua mãe varrendo um caminho que leva at<strong>é</strong> o asilo no qual sua vó materna está<br />

internada. Sua mãe o convida para ir at<strong>é</strong> o asilo. Ele não vai. Observem que o menino de 6<br />

anos que perde o carrinho de controle remoto ainda está na cena, mas agora ele consegue<br />

responder ao chamado da mãe – de repetir a loucura materna – com uma recusa sem angústia<br />

e sem violência.<br />

“Não fui” (Small, 2010: 327): <strong>é</strong> com essa frase que David termina seu relato. Talvez<br />

algu<strong>é</strong>m possa dizer que a resposta marcada pela negativa seja uma resposta menor, ainda<br />

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comprometida com o desejo recusado. Não concordaria com essa visão. No caso de David,<br />

dizer não ao <strong>abuso</strong> silencioso da mãe <strong>é</strong> uma resposta interessante. Lembremos ainda que<br />

David, certo dia, surpreende a mãe numa relação com uma outra mulher (cf. Small, 2010: 274).<br />

Essa cena <strong>é</strong> importante, pois ela permite que David possa responsabilizar a própria mãe pelo<br />

modo infeliz de levar a vida. Não <strong>é</strong> David o responsável pela tristeza materna, mas <strong>é</strong> a própria<br />

mãe por não ter coragem de assumir uma parte importante de sua vida <strong>sexual</strong>.<br />

Conclusão<br />

Para concluir, gostaria de comentar a imagem que David faz de sua cicatriz:<br />

Tamb<strong>é</strong>m fica claro, ao longo da história, que David atribui a responsabilidade a seu pai<br />

pelo câncer. Afinal, foi o tratamento m<strong>é</strong>dico do pai, que usava raios‐x para curá‐lo de sinusite,<br />

que provocou sua doença.<br />

O que me parece importante nessa imagem, entretanto, <strong>é</strong> apontar para o caráter<br />

intrusivo do <strong>abuso</strong>. A abertura, os pontos muito visíveis, o horror de ter sido “aberto”, cortado,<br />

mutilado. A cicatriz funciona aqui como uma marca da intervenção do outro no seu corpo. Ela<br />

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parece metaforizar bem como essas intervenções nos marcam. Por outro lado, mostram<br />

tamb<strong>é</strong>m nossa capacidade de regenerar, de recompor o que foi cortado pelo outro.<br />

O <strong>texto</strong> de Maria Teresa deixa bem claro que o <strong>abuso</strong> <strong>sexual</strong> impede a criança de<br />

constituir as tópicas psíquicas, as fronteiras que vão permitir vivências satisfatórias. A criança<br />

ficará entregue a uma excitação sem nome. O trauma exigirá repetição e a dor dificilmente irá<br />

cessar sem a ajuda de um analista. Meu comentário vai no sentido de chamar a atenção para o<br />

caráter ainda mais amplo do <strong>abuso</strong>. É importante ressaltar, no entanto, que não estou<br />

defendendo que o <strong>abuso</strong> <strong>sexual</strong> tem o mesmo peso e os mesmos efeitos que o <strong>abuso</strong><br />

provocado por uma mãe deprimida ou um pai simbolicamente violento. Só desejo insistir no<br />

fato de que esses outros <strong>abuso</strong>s não diretamente genitais são tão sexuais como os crimes de<br />

pedofilia. É para esse <strong>sexual</strong> que devemos, enquanto psicanalistas, estar atentos. É com<br />

relação a ele que o sujeito deve se responsabilizar, construindo suas respostas, cada vez mais<br />

singulares, em permanente diálogo com a moral sob a qual vive.<br />

Carvalho, Maria Teresa de Melo. Responsabilidade e resposta no crime de <strong>abuso</strong> <strong>sexual</strong>.<br />

Laplanche, Jean. Implantation, intromission. In ____. La r<strong>é</strong>volution copernicienne inachev<strong>é</strong>e.<br />

Paris: Aubier, 1992, pp. 355‐8.<br />

Laplanche, Jean. Responsabilit<strong>é</strong> et r<strong>é</strong>ponse. In _____. Entre s<strong>é</strong>duction et inspiration: l’homme.<br />

Paris: PUF / Quadrige, 1999, pp. 143‐172.<br />

Small, David. Cicatrizes. Trad. Cassius Medauar. São Paulo: Leya, 2010.<br />

Tolstói, L. Ana Karênina. Trad. Mirtes Ugeda. São Paulo: Nova Cultural, 2003 [1877].<br />

Winnicott, D. W. Fear of breakdown. In _____. Psychoanalytic explorations. Cambridge:<br />

Harvard University Press, 1989, pp. 87‐95.<br />

1 O <strong>texto</strong> de Freud <strong>é</strong> “A questão da análise leiga”, de 1926.<br />

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