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O Crime Mais Cruel<br />
<strong>Miriam</strong> <strong>Mambrini</strong><br />
Maurício Silveira foi avisado do desaparecimento do filho durante um almoço<br />
de negócios. Ele e seus convidados – seu advogado, Dr Arruda, e dois espanhóis com quem<br />
negociava a representação de seus produtos – tinham terminado o prato principal e<br />
aguardavam a sobremesa quando o celular tocou. Atendeu, ouviu, disse à pessoa do outro<br />
lado da linha que ligaria de volta em poucos instantes e conseguiu evitar que os<br />
companheiros de mesa percebessem sua perturbação.<br />
– Senhores, vão ter que me desculpar, disse, se levantando. Infelizmente não<br />
posso acompanhá-los na sobremesa, acaba de surgir um imprevisto.<br />
Apertou as mãos dos estrangeiros e reafirmou o desejo de realizar o negócio.<br />
Marcaria nova reunião o mais breve possível. Fez um gesto tranqüilizador para o advogado,<br />
que o olhava apreensivo, passou no caixa, pagou a conta, e saiu com passo firme.<br />
Da rua, ainda na porta do restaurante, ligou para casa.<br />
– Que história é essa, Adelina? O Gui sumiu?<br />
Ouviu o relato nervoso e desordenado da cozinheira, e, como pano de fundo,<br />
uma ou outra palavra de Luzia, a babá, tentando complementar o que ela dizia.<br />
– E Ana? Ela não está?<br />
Ana tinha saído. Ligaram para o seu celular mas estava fora de área.<br />
– Já estou indo para casa.<br />
Onde teria se metido o filho? Tinha só quatro anos e não era uma criança<br />
levada. Se tivesse sido seqüestrado? Não, por que pensar logo no pior? Devia haver outra<br />
explicação. Em todo caso, era melhor considerar a hipótese e seguir a primeira das regras<br />
nas negociações delicadas: manter a maior discrição possível. Apressou-se em<br />
recomendar:<br />
a procurar o Gui.<br />
– Não contem a ninguém o que aconteceu, estão ouvindo? A ninguém.<br />
– A professora sabe, anunciou Adelina quase gritando. A da van. Ela até ajudou<br />
– Pois liguem para o colégio e digam que ele já foi encontrado. Que tinha se<br />
escondido ou qualquer coisa assim.<br />
1
O pensamento de que o filho tinha sido seqüestrado voltou enquanto caminhava<br />
para o estacionamento. Tentou tirar a idéia da cabeça. O Gui estava em algum lugar da casa<br />
ou nas vizinhanças, aquelas incompetentes é que não souberam procurar. Não havia porque<br />
seqüestrá-lo. Além disso, os seqüestros tinham saído de moda ou pelo menos das páginas<br />
dos jornais.<br />
Anos atrás, quando ainda eram freqüentes, chegou a pensar em contratar uma<br />
empresa de segurança para protegê-lo e à família. Não era exatamente um milionário, mas<br />
tinha uma bela casa e carros de luxo. Aparecia às vezes em colunas sociais, menos agora, é<br />
verdade, do que no tempo de Stella, sua primeira mulher. A Silk Star era muito conhecida,<br />
saíam anúncios em revistas e out-doors e era possível encontrar sutiãs, calcinhas, camisolas<br />
e outros artigos de sua fabricação em todas as grandes lojas do país. Acabou rejeitando a<br />
idéia, por achar que aquela era a via mais fácil para acabar na mão dos marginais.<br />
Seguranças, policiais e bandidos eram todos farinha do mesmo saco.<br />
Se o Gui tivesse sido seqüestrado, não sabia o que ia fazer. Pensou no filho<br />
sendo arrastado da porta de casa e transportado num carro por homens desconhecidos,<br />
chorando, assustado. Será que o colocariam na mala? Imaginou-se dobrado sobre si mesmo<br />
dentro da mala de um carro, uma mala pequena de um carro pequeno, ele, claustrofóbico,<br />
volumoso, com dores na coluna e transferiu o mal-estar para o menino. Teve que se apoiar<br />
numa árvore e retomar o fôlego antes de continuar andando até onde deixara o carro.<br />
O fluxo de trânsito, àquela hora, ainda não era dos mais pesados, mas demorou-<br />
se em vários sinais. Nos que custavam mais a abrir, havia meninos de short e peito nu, os<br />
ossos das costelas furando a pele, fazendo malabarismo com bolas de tênis. As bolas<br />
subiam rápidas, os olhos das crianças acompanhavam, nos rostos tensos havia um certo<br />
orgulho, eles não vendiam balas, nem limpavam vidros, eram artistas, tanto quanto as<br />
moças que, à noite, naqueles mesmos sinais, faziam piruetas com bastões com fogo nas<br />
pontas. Artistas circenses, no picadeiro possível. Como aquilo tinha começado? Talvez um<br />
aluno da escola de circo tivesse feito sucesso num sinal qualquer e outros meninos,<br />
achando a coisa divertida e rentável, seguiram o exemplo. Podia também ser mais um<br />
modismo importado, a globalização chegando à mendicância.<br />
Enquanto os malabaristas improvisados distraíam o seu público, não haveria<br />
assaltantes circulando entre os carros, ameaçando os motoristas com facas ou revólveres?<br />
2
As ruas, a cidade, o mundo, que até então tinham lhe parecido lugares seguros, apesar das<br />
notícias dos jornais e do relato de tantos conhecidos vítimas de assaltos e violências, de<br />
repente revelaram-se sombrios e ameaçadores.<br />
Num cruzamento de sinal mais demorado, três meninos formaram uma pequena<br />
pirâmide. O de cima, se equilibrando mal sobre os ombros dos que ficavam no chão, jogava<br />
as bolas desajeitado, os olhos envesgando-se no esforço de acompanhar o movimento<br />
rápido de subida e descida. Era pouco maior do que o Gui, embora devesse ser bem mais<br />
velho. Sentiu uma súbita simpatia pelo moleque, movimento inicial de uma onda de amor<br />
pelo filho, que o empurrou para um fundo mergulho na preocupação e ansiedade.<br />
Se o Gui sofresse alguma violência sexual? Se uns pedófilos filhos da puta o<br />
tivessem levado? O coração se acelerou e a garganta se apertou num espasmo. Cortou o<br />
pensamento, antes de ser assombrado por alguma imagem hedionda, ainda mais<br />
assustadora do que a do Gui sufocando na mala de um carro.<br />
Tentou se acalmar. Respirou fundo, lentamente. Não devia se antecipar aos<br />
fatos. Por que não pensar em outras alternativas para o desaparecimento do filho? Ele<br />
poderia ter se enfiado em algum esconderijo onde adormecera, um dos armários embutidos<br />
do corredor, por exemplo. Ou ter se aborrecido com uma bronca, uma proibição qualquer e<br />
feito o que tantas crianças tinham feito antes dele: fugir. Mas para onde? A casa da avó?<br />
Não. Sua ligação com dona Alda não era das mais íntimas e ela morava muito longe. O<br />
apartamento de Próspero? Gui gostava do tio, sabia onde ele morava, bastava descer a rua.<br />
Era uma possibilidade, embora muito remota, Gui ainda era pequeno demais para fugas.<br />
Mas não custava dar um telefonema para o irmão.<br />
Deu dez reais ao menino das bolinhas, que havia pulado dos ombros dos<br />
companheiros para buscar o cachê. Outro garoto se aproximou correndo do carro, mas<br />
Maurício fechou o vidro.<br />
Em poucos instantes, estava na porta da casa moderna, cercada de belos jardins,<br />
que mandara construir quando o Gui nasceu. Abriu o portão da garagem com o controle<br />
remoto, enfiou o carro numa das duas vagas, saiu para o jardim e entrou pela porta da<br />
3
frente. As duas empregadas apareceram na sala, os olhos parecendo maiores do que o<br />
normal.<br />
– Ai doutor Maurício, o Gui!, o Guizinho!, exclamou Adelina, muito agitada.<br />
Seus brincos de ouro se balançavam, o buço escuro tremia sobre os lábios. Os<br />
cinqüenta anos recém-feitos tinham acentuado a feiúra de nascença, e gesticulando, ansiosa<br />
como estava, era uma figura patética.<br />
Maurício fez um gesto para que ela se calasse. Queria ouvir de Luzia, em<br />
detalhes, o que se passar naquela manhã.<br />
A babá também estava nervosa. Torcia as mãos e as esfregava na calça branca<br />
do uniforme, como se quisesse limpá-las antes de pegar alguma coisa delicada. Pouco<br />
acrescentou ao que a cozinheira contara pelo telefone. Às quinze para o meio-dia, tinha<br />
levado o Gui até a porta para esperar com ele a condução do colégio. Então, deu por falta<br />
da mochila, tinha esquecido na copa. Entrou para buscá-la. Não demorara nada, nada,<br />
Adelina viu. Mas, ao voltar, o menino não estava mais lá.<br />
– Vi ela entrar, doutor, até perguntei se o Gui já tinha ido. Não se deixa uma<br />
criança sozinha na rua assim!, revoltou-se a cozinheira. Até falei pra ela que ia contar pra<br />
Dona Ana.<br />
– Então quando você voltou o Gui não estava mais na porta, repetiu Maurício,<br />
ignorando a intervenção de Adelina.<br />
– Não. Procurei por tudo. Fui até ver se ele tinha caído na piscina. Deus me<br />
livre, mas nessas horas a gente pensa em tudo. Aí a van da escola chegou. A professora me<br />
ajudou a procurar. As crianças dentro da van começaram a gritar: Gui, cadê você? Se ele<br />
estivesse querendo brincar, tinha aparecido. O senhor sabe como ele é. Adora os colegas.<br />
coisa fora do normal?<br />
– Você observou alguma coisa diferente na rua?, perguntou Maurício. Alguma<br />
– Fora do normal? Bom, tinha dois carros pretos parados que depois sumiram.<br />
– Depois de quê?<br />
– Depois que eu voltei com a mochila. Quando não encontrei o Gui.<br />
– Como é que eram esses carros?<br />
– Pretos. Um maior, outro menor.<br />
– Você viu as placas?<br />
4
– Não prestei atenção. Eram só dois carros parados. Como é que eu podia<br />
imaginar?, perguntou nervosa.<br />
Maurício estava impaciente.<br />
– E a marca? Pelo menos você reparou na marca?<br />
Luzia se atrapalhou:<br />
– O grande ... acho que ... não sei. O pequeno, parece que era um Gol, mas não<br />
tenho certeza. Desculpe, doutor Maurício, não entendo nada de carros.<br />
– Havia alguém dentro dos carros?<br />
Hesitou. Já tinha dado mancada ao falar dos carros. Se dissesse que vira uns<br />
homens dentro, o patrão ficaria ainda mais aborrecido. Já tinha recomendado cuidado<br />
quando visse gente estranha nas vizinhanças.<br />
mochila!<br />
junto.<br />
camarões.<br />
– Não. Pelo menos eu acho.<br />
Adelina caiu mais uma vez sobre ela como um cão sobre a caça abatida:<br />
– Sua tonta! Sua maluca! Então isso se faz? Deixar o menino sozinho na rua?<br />
– Foi só um instante, doutor!, justificou-se Luzia. Só o tempo de apanhar a<br />
Maurício a olhou com frieza:<br />
– Sua obrigação era ficar com ele. Se tinha que buscar a mochila, devia levá-lo<br />
– Não te disse, Luzia? Era isso que você devia ter feito, vociferou Adelina.<br />
Depois se voltou para o patrão:<br />
– Que é que a gente faz agora, Dr Maurício?<br />
– Nada. Vamos esperar.<br />
– O senhor não vai chamar a polícia?<br />
– Não. Pelo menos por enquanto.<br />
– E o jantar?, perguntou Adelina.<br />
– Que jantar?<br />
– O jantar que o senhor mandou preparar para umas visitas. Já limpei os<br />
Ele pensou naquela pequena alteração de seus planos como o início de uma<br />
sucessão de compromissos desfeitos, programas desmarcados, projetos adiados, prazeres<br />
5
esquecidos. Sua vida, a de Ana e a de várias pessoas ligadas à família estavam sendo<br />
desviadas para rumos ainda desconhecidos. De agora em diante, até o Gui voltar, nada<br />
existiria a não ser uma busca.<br />
– Esquece os camarões, disse. Não vai mais ter jantar. Agora, as duas, procurem<br />
de novo na casa e no jardim. Vejam em todos os lugares, dentro dos armários, no depósito<br />
de ferramentas. Mesmo onde parece que o Gui não cabe.<br />
Entrou na saleta cheia de estantes que funcionava como escritório e fechou a<br />
porta. Ligou para a secretária.<br />
–Sílvia, hoje não volto mais aí. Se alguém telefonar, você toma o recado.<br />
– Já houve alguns telefonemas, Dr Maurício. Dr Osório, o Antônio e Dona Ana.<br />
– Quando é que a Ana ligou?<br />
– Não faz nem dez minutos. Disse que o celular está com a bateria<br />
descarregada, mas se o senhor precisar falar com ela, está na casa de dona Alda. Disse para<br />
o senhor não se preocupar, voltará a tempo para o jantar com seu Benito e a esposa.<br />
ter que adiar o jantar.<br />
– Ligue para o Benito. Diz que sinto muito, mas surgiu um imprevisto e vamos<br />
– Mais alguma coisa?<br />
Pensou um pouco. Se Gui tivesse sido seqüestrado, poderia haver algum<br />
telefonema para o seu escritório. Não gostaria de levantar qualquer suspeita no pessoal que<br />
trabalhava lá, era melhor que o sigilo fosse total, mas Sílvia precisava ficar alerta, em caso<br />
de alguma ligação estranha.<br />
– Talvez me ligue uma pessoa que não conheço. Não sei se lhe deram meu<br />
telefone de casa ou o do escritório. Caso alguém peça o número da minha casa, dê o 2259...<br />
Como é mesmo? Sim, o que não tem extensão.<br />
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ESCOLA (PNBE)