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As pedras não morrem - Miriam Mambrini

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<strong>As</strong> <strong>pedras</strong> <strong>não</strong> <strong>morrem</strong><br />

<strong>Miriam</strong> <strong>Mambrini</strong><br />

I<br />

O brechó da informática<br />

Não havia uma explicação lógica para a compra do velho XT, quase peça de museu.<br />

Fora um impulso, uma dessas decisões que se toma sem maiores reflexões. É bem verdade que o<br />

fato de Joca ter garantido que <strong>não</strong> era má escolha teve lá sua influência. Joca, de cara, lhe<br />

pareceu um sujeito confiável. Mas pode ser que, desde o primeiro momento, antes mesmo de<br />

saber da existência de Irene, ela já tivesse encontrado uma forma de influenciá-lo.<br />

O acaso foi tratando de conduzi-lo até ela. O acaso ou... Não, <strong>não</strong> ia entrar na de<br />

Irene. A verdade é que tudo tinha acontecido dentro do previsível, até mesmo do inevitável<br />

sendo ele quem era, um cara que <strong>não</strong> gostava de dar um passo maior do que as pernas nem de<br />

gastar mais do que tinha.<br />

Fazia tempo que desejava um computador. A princípio, quis um modelo de última<br />

geração, com os recursos mais modernos da informática. Depois, achou que bastava um<br />

computadorzinho modesto, como o de todo mundo, todo mundo significando gente da classe<br />

média <strong>não</strong> muito versada em informática, como ele. Impossível pedir ao pai, que já se via em<br />

dificuldade para pagar a sua faculdade e o pequeno apartamento que dividia com o primo.<br />

Tentou fazer um “fundo do computador”, guardando numa caixa o pouco que sobrava do<br />

dinheiro do estágio no fim do mês. Um dia, abriu a caixa, contou as notas e desistiu. Ia levar<br />

anos até juntar o necessário.<br />

Estava dividido entre investir as economias em roupas ou livros, quando viu o<br />

anúncio: “Brechó da Informática. Compram-se e vendem-se computadores usados. Rua do


Catete, nº 13.” Achou que podia ser a sua chance. Computador é igual a jornal, fica velho de um<br />

dia para o outro. Talvez um sujeito cheio da grana e fanático pelas novidades da informática<br />

quisesse se desfazer do seu a preço de banana. Se desse sorte, podia achar uma máquina<br />

relativamente moderna por um bom preço.<br />

O brechó ficava no apartamento térreo de um prédio residencial antigo. Entrou num<br />

hall escuro e mal conservado, onde a única porta tinha uma placa com o nome da loja de<br />

computadores usados. Tocou a campainha. Uma sirene inesperada anunciou um ataque aéreo da<br />

Segunda Guerra Mundial. Não demorou muito e a porta foi aberta por um jovem roliço, de barba<br />

e rabo-de-cavalo.<br />

Vai entrando, disse ele, abrindo um sorriso de dentes tortos.<br />

É você que vende computadores usados?<br />

Eu mesmo. Me chamo João Octávio, com C, mas pode me chamar de Joca.<br />

Sou Gabriel.<br />

E aí, Gabriel, o que posso fazer por você?<br />

Estou querendo comprar um micro.<br />

De que tipo?<br />

Qualquer coisa serve, desde que seja barato.<br />

Barato é comigo mesmo.<br />

A sala do apartamento era um depósito de monitores, CPUs, impressoras e teclados<br />

empilhados em cadeiras, mesas e pelo chão, alguns ainda com jeito de novo, outros aos pedaços,<br />

estripados, amputados de partes vitais. Mas <strong>não</strong> deixava de ser também uma sala, com seu velho<br />

sofá e sua mesa de jantar, onde ainda se via uma cesta de pão e um prato sujo, ao lado de peças<br />

de computadores.<br />

Joca abriu caminho em meio à bagunça.<br />

Aqui tem um, disse, parando diante de um 386 montado sobre uma bancada. Bom<br />

computador. Mudei a placa, de modo que ele ficou rápido. O disco rígido também é novo.<br />

poder pagar.<br />

Olhou para a máquina, interessado mas descrente. Aquele era bom demais, <strong>não</strong> ia<br />

Quanto?<br />

Seiscentos paus.


Não dá.<br />

Joca pensou um pouco.<br />

Quinhentos tá bom? Abro mão do lucro, mas vendo para você um ótimo<br />

computador. Duas de 250 – acrescentou ao ver Gabriel balançar a cabeça.<br />

Não tivera sorte. Nenhum maníaco pelas modernidades da informática deixara seu<br />

lixo naquele brechó para que ele o levasse bem baratinho.<br />

Acho melhor desistir.<br />

Joca levantou o ânimo do freguês:<br />

Que é isso? Desistir tão depressa? Nada disso. Não dá para baixar mais o preço<br />

desse aí se<strong>não</strong> fico no prejuízo, mas vamos ver outra coisa. Olha, esse é uma raridade. Um XT.<br />

Gabriel se abaixou para ver a caixa quadrada e grandona debaixo de um monitor que<br />

parecia uma televisão antiga, colocados no chão, ao lado do sofá.<br />

Não é velho demais?<br />

Se dividirmos a história dos computadores mais ou menos como dividimos a<br />

história da Terra, este bichinho aqui nasceu pouco depois da extinção dos dinossauros. Mas<br />

quase <strong>não</strong> foi usado e funciona maravilhosamente.<br />

Era o computador de Irene, que naquele momento <strong>não</strong> passava de um vago alguém<br />

que possuíra o XT e o usara pouco.<br />

Esse micro foi de uma moça, explicou Joca. Um dia, a mãe dessa moça me ligou,<br />

querendo vender. Parece que o XT estava sem uso há muitos anos.<br />

Por quê?<br />

Isso eu <strong>não</strong> sei. A mulher viu meu anúncio no jornal. Disse que se cansou de ter em<br />

casa aquele objeto inútil ocupando espaço. Fui até a casa dela, testei a máquina. Tinha poucos<br />

recursos, mas estava perfeita.<br />

Compramos afinal o computador. É um XT. Jaime, que entende dessas coisas,<br />

ajudou a escolher. O único problema é onde colocá-lo. Desconfio que é grande demais para a<br />

escrivaninha do meu quarto. Pensei no quarto de guardados, onde tem uma boa mesa de<br />

jacarandá. Já está na hora de aproveitar melhor aquele espaço.


Vender computadores velhos, para mim, é uma espécie de hobby, ou, se você<br />

preferir, um serviço social. Trabalho como consultor de informática e ganho o suficiente para me<br />

manter. Não custo muito caro, disse dando um risinho que mostrou os dentes trepados. Vendo<br />

essas máquinas pelo prazer de ver os velhinhos de volta à ativa. Claro, uns trocados a mais<br />

sempre caem bem, mas <strong>não</strong> é esse o motivo. Detesto o desperdício. Para mim, é um dos grandes<br />

problemas do Brasil. Fico revoltado quando leio notícias sobre alimentos jogados fora ou<br />

apodrecendo em armazéns precários, materiais de construção estragados pelo mau uso, essas<br />

coisas. A maior parte dos computadores que os donos aposentam ainda funciona perfeitamente<br />

bem e serve para usuários que <strong>não</strong> necessitem de um equipamento sofisticado, gente que está se<br />

iniciando na informática, por exemplo, ou que <strong>não</strong> tem grana para coisa melhor. Acho um<br />

absurdo esses micros ficarem jogados num canto, criando teias de aranha, por isso vou à caça<br />

deles, compro-os, faço um ou outro ajuste e revendo.<br />

Interrompeu o discurso ao perceber que Gabriel continuava examinando o XT:<br />

Está gostando? Eu também gosto. Deu um suspiro, e sacudiu a cabeça, balançando<br />

o rabo-de-cavalo. Até me emociono quando olho para ele. Meu primeiro computador foi um XT,<br />

sabia? Isso em 1988. Não pensei que fosse comprar um outro tanto tempo depois.<br />

Fez uma pausa e mudou de tom:<br />

– Olha, <strong>não</strong> quero que você compre esse micro só porque tive um e fico sentimental<br />

quando falo dele. Vamos aos fatos. Primeiro: O XT <strong>não</strong> dá acesso à internet. Segundo: Não<br />

aceita Windows. Concluindo: Só serve para quem quer usá-lo para escrever e fazer cálculos.<br />

É muito pouco.<br />

Verdade. Em compensação, é uma máquina simples, robusta, nunca deixa o dono<br />

na mão. E o melhor: baratíssima. Comprei por pouco, sabendo que era difícil encontrar alguém<br />

que se interessasse por ele. Vendo por quase nada.<br />

Seu desejo era ter um computador e <strong>não</strong> uma antiguidade, mas quanto mais olhava o<br />

XT, mais se sentia atraído por ele. Aquela era a última chance do micro obsoleto voltar a<br />

funcionar. Se <strong>não</strong> o levasse, ele ficaria por ali mais um tempo até que, mesmo Joca, tão<br />

consciente da necessidade de aproveitar objetos usados, perceberia que acabara o seu tempo.<br />

Seria vendido para um ferro-velho ou levado para algum lixão, onde se misturaria a outros<br />

restos. Fim indigno para alguém ainda apto. Se pifasse nas suas mãos era como se morresse<br />

numa batalha, como um velho e bravo soldado deve morrer.


Quanto é?<br />

Oitenta merréis, tá bom?<br />

Oitenta, ele tinha. E ainda sobraria o suficiente para comprar um livro de Direito<br />

Comercial que estava lhe fazendo falta.<br />

Fechado.<br />

Joca prometeu arranjar uma boa impressora ainda mais barata. Se ele voltasse dentro<br />

de uma semana, dez dias, já teria alguma coisa. Resolveu também o problema do transporte. No<br />

final do dia, levaria no seu carro o computador para o novo dono.<br />

Quando Joca chegou à noite, suado, bufando, com a CPU, o monitor e o teclado em<br />

caixas de papelão, Gabriel já estava arrependido da compra. Agora <strong>não</strong> havia mais nada a fazer<br />

se<strong>não</strong> instalar o XT em algum lugar e aproveitar o pouco que tinha a oferecer.<br />

Depois que o vendedor de computadores se foi, arrumou as peças na mesa de estudo<br />

do seu quarto, ligou os cabos e pressionou o botão Power. A tela se iluminou.<br />

O bom do computador é que minha mãe jamais vai aprender a mexer nele. Ela <strong>não</strong><br />

sabe nem ligar o vídeo, me chama sempre que quer ver um filme. No computador ela <strong>não</strong> quer<br />

nem tocar. O que eu escrever nele, vai ficar só entre nós dois.<br />

Primeiro, era preciso saber se havia alguma coisa instalada no disco rígido. Pediu um<br />

diretório. No monitor, surgiu a listagem: um processador de textos, alguns jogos e um arquivo-<br />

texto.<br />

Se o início de tudo foi o momento em que se decidiu pelo XT, ou, quem sabe, o<br />

instante em que seus olhos bateram no anúncio do Brechó da Informática – é sempre difícil saber<br />

exatamente onde alguma coisa começa – o que o empurrou para o mergulho de cabeça na vida de<br />

Irene foi a leitura do nome do arquivo: Máscara. A palavra parecia deslocada e enigmática ali no<br />

monitor: Máscara.<br />

Ele se perguntou depois, algumas vezes, o que poderia existir nela para fasciná-lo<br />

tanto. A palavra o atraía, puxava-o para o mistério de suas múltiplas significações. Não saberia


dizer se, no momento em que a leu, fez ou <strong>não</strong> as associações que mais tarde lhe vieram à cabeça<br />

ou se as buscou, querendo achar uma justificativa para o estranho interesse que despertou nele.<br />

Batman, Capitão América, Homem-Aranha, os super-heróis das revistinhas e da<br />

televisão. O Máscara, vilão das mil caras. Máscaras usadas por ladrões e assassinos, o anonimato<br />

para o pecado e o crime. <strong>As</strong> máscaras da comédia e da tragédia, com suas bocas características.<br />

Máscaras no teatro, nas fantasias, nos bailes e no carnaval.<br />

Quando era bem pequeno, na sua cidade de Barra do Piraí, o avô levou-o junto com a<br />

irmã para comprarem máscaras de carnaval numa barraca de rua. Diabos, caveiras, bebês<br />

horrendos e caras de políticos conhecidos rodopiavam, penduradas em barbantes. A irmã<br />

escolheu logo uma cara de boneca e pediu de quebra uma imensa chupeta. Ele se assustou com<br />

aquelas figuras sinistras e <strong>não</strong> quis nada. O avô disse que ia levar a caveira para mexer com a<br />

empregada, que tinha medo de assombração.<br />

Pelo caminho de volta, o velho foi contando como era o carnaval do seu tempo.<br />

Havia os blocos de rua, os corsos, as pessoas jogavam confete, lança-perfume e serpentina umas<br />

nas outras. Muita gente se fantasiava, punha a máscara no rosto e ia pregar peças nos conhecidos.<br />

Era uma pândega. Não tinha esquecido a palavra: pândega. Só o avô dizia aquilo, mais ninguém.<br />

Conheceu a mulher num baile de terça-feira gorda. Ela usava uma máscara de seda preta que<br />

escondia todo o rosto, pois, por baixo da parte que contornava os olhos, havia uma espécie de<br />

cortininha de renda que tapava o nariz e a boca. Ao contar isso, o avô sacudiu a barriga numa<br />

daquelas risadas inesquecíveis e disse que <strong>não</strong> sabia se tinha se apaixonado pela mulher ou pela<br />

máscara.<br />

Quando chegaram em casa, já perdera o medo da caveira e botou a máscara.<br />

Entraram, ele e a irmã, com aquelas coisas no rosto. A mãe e a empregada fingiram <strong>não</strong><br />

reconhecê-los. Os monstrinhos fizeram uh, ergueram garras de mentira e foi aquela correria pela<br />

casa, a mãe e a empregada soltando gritinhos, o avô rindo. Uma pândega.<br />

Custou até descobrir como é que se abria o arquivo no processador de texto<br />

complicado e obsoleto. Que velharia! Enfim, oitenta reais... Depois de algumas tentativas<br />

frustradas, finalmente conseguiu. Na tela, as letras apareceram de repente.<br />

18 de junho de 1990


Daqui para a frente é a você, micro, que vou contar minhas coisas. Aquele caderno<br />

de duzentas folhas, quase todas preenchidas, vai ficar trancado a sete chaves (que infelizmente<br />

são uma só) na gaveta da minha escrivaninha. Espero que mamãe <strong>não</strong> o encontre. Parece que<br />

ela ainda <strong>não</strong> entendeu que cresci e sou dona da minha vida... Se achar meu diário...<br />

Lembrou-se do que Joca dissera: o XT pertencera a uma moça. Que, descobria agora,<br />

fazia um diário. Por obra e graça do velhinho, lá estava ele prestes a desvendar os segredos de<br />

uma adolescente. De que falaria no diário? Com certeza das fofocas da turma, dos namoros, da<br />

mãe intrometida, das broncas do pai. Talvez houvesse um ou outro pensamento copiado de<br />

revista, um versinho... Será que a garota contava suas experiências sexuais? A primeira transa.<br />

<strong>As</strong> descobertas, as sensações, o corpo estremecendo ao carinho de mãos talvez inexperientes...<br />

Não, <strong>não</strong> queria saber como tinha sido a iniciação sexual da garota, se é que ela ia<br />

falar disso. Já se preparava para deletar o arquivo, quando a curiosidade o espicaçou de novo.<br />

Por que diabo ela dera ao arquivo o nome de máscara? Por que <strong>não</strong> o chamara simplesmente<br />

diário?<br />

Deu um page down, números e letras correram tela abaixo, organizados, um diário<br />

como só é possível no computador, sem rasuras nem correções aparentes, apenas alguns negritos,<br />

uma ou outra palavra em caixa-alta, espaços maiores e menores. Acompanhou o texto em seu<br />

passeio pela tela, pescando aqui e ali, ao acaso, um nome, uma frase, uma data. De vez em<br />

quando a palavra máscara passava velozmente no monitor.<br />

Rolou o arquivo até o final. A última anotação datava de 13 de setembro de 1990.<br />

Leu: Me sinto tão bem! Ah, como é bom estar viva! Ótimo, a garota estava feliz. Melhor para ela.<br />

Pena que <strong>não</strong> pudesse dizer o mesmo. Nada de errado, objetivamente. Boa relação com a família,<br />

estudos indo razoavelmente bem, o pouco dinheiro suficiente para as poucas necessidades. Mas<br />

havia a morte do Rildo ainda muito presente na memória. E, surgido <strong>não</strong> sabia por quê, aquele<br />

sentimento de vaga decepção. A vida <strong>não</strong> podia ser só aquela sucessão de dias quase iguais, tinha<br />

que ser outra coisa, mais emocionante, mais intensa, que ele estava perdendo.<br />

Deu um page up e viu passarem outras datas: 9 de setembro, 5 de setembro, 31 de<br />

agosto. De repente esbarrou em anotações de um deslocado 22 de outubro de 1931. O que seria<br />

aquilo? Erro de digitação?


Subiu rapidamente o texto e foi descendo mais devagar. Viu a seqüência cronológica<br />

das anotações: junho, julho, agosto de 1990 e de novo, fugindo totalmente à cronologia, dia 20<br />

de outubro de 1931.<br />

Deteve-se nessa anotação. Estou desembarcando do trem em Dresden com Afonso.<br />

Dresden? Não era uma cidade da Alemanha? De repente, me vem uma saudade enorme do meu<br />

filho. Filho? Talvez o arquivo <strong>não</strong> fosse exatamente o que pensara. “Ei, garota, vou ler seu<br />

diário”, avisou. “Vou saber tudo sobre você. Se você fazia tanta questão de preservar sua<br />

privacidade devia ter apagado o arquivo antes de vender o computador.”

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