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Delírio do Verbo: O Jornalismo Gonzo e a realidade ... - Flanador

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ<br />

CENTRO DE HUMANIDADES<br />

DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL<br />

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO EM JORNALISMO<br />

DISCIPLINA: PROJETO EXPERIMENTAL<br />

DELirIo <strong>do</strong> <strong>Verbo</strong><br />

O <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> e a <strong>realidade</strong> alucinada<br />

Francisco Wesdley da Silva Vasconcelos<br />

FORTALEZA, MARÇO DE 2003


UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ<br />

CENTRO DE HUMANIDADES<br />

DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL<br />

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO EM JORNALISMO<br />

DISCIPLINA: PROJETO EXPERIMENTAL<br />

<strong>Delírio</strong> <strong>do</strong> <strong>Verbo</strong>: O <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> e a <strong>realidade</strong> alucinada<br />

Autor: Francisco Wesdley da Silva Vasconcelos<br />

Orienta<strong>do</strong>r: Prof. Dr. Antônio Wellington de Oliveira Jr.<br />

Monografia apresentada ao Departamento de<br />

Comunicação Social como requisito para a<br />

obtenção <strong>do</strong> grau de Bacharel em<br />

Comunicação Social.<br />

FORTALEZA, MARÇO DE 2003


Banca examina<strong>do</strong>ra composta por:<br />

_____________________________________________<br />

Prof. Dr. Wellington de Oliveira Jr. (orienta<strong>do</strong>r)<br />

_____________________________________________<br />

Prof. a Dr. a Gabriela Reinal<strong>do</strong><br />

_____________________________________________<br />

Prof. Ismael Furta<strong>do</strong>


No descomeço era o verbo.<br />

Só depois é que veio o delírio <strong>do</strong> verbo<br />

O delírio <strong>do</strong> verbo estava no começo, lá<br />

Onde a criança diz: Eu escuto a cor <strong>do</strong>s<br />

passarinhos.<br />

A criança não sabe que o verbo escutar não<br />

Funciona para cor, mas para som.<br />

Então se a criança muda a função de um<br />

verbo, ele delira.<br />

E pois.<br />

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz<br />

de fazer nascimentos –<br />

O verbo tem que pegar delírio.<br />

(Manoel de Barros)


SUMÁRIO<br />

Introdução............................................................................................................................. 1<br />

1. - <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong>.......................................................................................................... 3<br />

1.1 - Hunter Thompson: <strong>do</strong> nascimento ao gonzo........................................................... 3<br />

1.1.1 – A gênese <strong>do</strong> gonzo-jornalismo....................................................................... 5<br />

1.2 - Conceitos Básicos <strong>do</strong> <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong>................................................................ 7<br />

1.3 - <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> no Brasil.................................................................................. 13<br />

1.3.1 - Irmandade Raoul Duke................................................................................. 16<br />

2. - Pós-Reflexões................................................................................................................ 19<br />

2.1 – Sob as “luzes” da pós-modernidade...................................................................... 19<br />

2.2 – Internet, a mídia gonzo.......................................................................................... 24<br />

2.2.1 – Autoria: um entretexto................................................................................. 31<br />

2.2.2 - Ciberespaço: considerações essenciais......................................................... 33<br />

2.3 – Contracultura ........................................................................................................ 38<br />

3. – Quem és tu, <strong>Gonzo</strong>? ................................................................................................... 47<br />

3.1 – Anti-jornalismo, que jornalismo? ......................................................................... 48<br />

3.1.1 – A notícia como construção de pseu<strong>do</strong>-<strong>realidade</strong>s........................................ 52<br />

3.1.2 – <strong>Jornalismo</strong> em alta rotação .......................................................................... 59<br />

3.1.3 - Objetividade, uma reflexão subjetiva............................................................ 63<br />

3.2 – Algumas gotas de literatura .................................................................................. 69<br />

3.3 – Literatura jornalística ou jornalismo literário? ..................................................... 73<br />

3.4 – Ficção e verdade na Irmandade Raoul Duke......................................................... 78<br />

3.4.1 – <strong>Jornalismo</strong> alucina<strong>do</strong>: anfetaminas, futebol, chocolate e outras drogas....... 84<br />

4. – Conclusão..................................................................................................................... 90


AGRADECIMENTOS<br />

A meus pais e avós, pelo apoio silencioso de toda uma vida.<br />

A meu orienta<strong>do</strong>r, Wellington, por debruçar-se “alucinadamente” por sobre meus<br />

toscos escritos e por, ora controlar, ora estimular, meus “desvios” acadêmicos.<br />

Ao professor Ronal<strong>do</strong> Salga<strong>do</strong>, pelo rumo mais amplo que me fez dar a este<br />

trabalho e pela forma de encarar o jornalismo transcendente à simples prática.<br />

Parafrasean<strong>do</strong> o slogan <strong>do</strong> PT: “Ronal<strong>do</strong>, você pode até não saber, mas você também é um<br />

pouco gonzo”.<br />

Ao professor Ricar<strong>do</strong> Jorge, pelo apoio na bibliografia e pelo termo “jornalismo<br />

guenzo”, o qual não a<strong>do</strong>tei neste trabalho por mero pu<strong>do</strong>r academicista.<br />

A Janice, por ter si<strong>do</strong> meu refúgio, minha fortaleza, mesmo sem saber disso.<br />

E a meu grande amigo Oziel, pela lição de vida que me dá a cada dia, com sua<br />

força, serenidade e espírito eleva<strong>do</strong>.


INTRODUÇÃO<br />

“A redação da Arca recebeu a visita de um <strong>do</strong>s melhores trafí da city.<br />

Mió per que o bagulho quase sempre é da massa e per que o preço é<br />

camarada. Madureira, como ele gosta de ser chama<strong>do</strong>, conta que o<br />

baixo preço se deve per que ele mesmo é quem vai buscar na<br />

república Guarany. E, per causa disso, ele acaba repassan<strong>do</strong><br />

diretamente aos clientes sedentos por uma boa causa. (...) De acor<strong>do</strong><br />

com que nos conta, Madureira, como ele gosta de ser chama<strong>do</strong>, não<br />

molha a mão <strong>do</strong>s porcos que patrulham a up town. Ele parla que<br />

recebe ameaças <strong>do</strong>s porcos e que até seu fone já foi grampea<strong>do</strong>. Pero<br />

que los riscos que el hombre corre são maiores, arriégua! Seus<br />

concorrentes no milionário world of the traffic têm inveja de<br />

Madureira per que ele acaba lucran<strong>do</strong> muito.” - Jajá<br />

Qualquer leitor guia<strong>do</strong> pela curiosidade estará perguntan<strong>do</strong>-se qual a natureza de<br />

tal composição. Em que gênero, em que corrente literária, em que categoria <strong>do</strong> discurso<br />

enquadra-se tal tipo de produção? Decerto não estamos lidan<strong>do</strong> com um exemplar da<br />

literatura clássica, tampouco se suspeitaria que tais linhas fossem provenientes da matéria<br />

de capa de algum periódico de grande circulação. A linguagem assaz displicente e<br />

permeada por uma certa radicalidade ocasiona, antes de tu<strong>do</strong>, um estranhamento. A<br />

incorporação de gírias e o uso de expressões em idioma estrangeiro também subvertem a<br />

língua pregada pelos velhos alfarrábios.<br />

A cognição humana carece de rotulações, não prescinde de categorizar os<br />

elementos à sua volta, colocá-los numa estrutura lógica estabelecida sob parâmetros de<br />

similaridade ou congruência. Assim, como suprir essa carência e designar de uma vez por<br />

todas a classificação <strong>do</strong>s escritos da epígrafe acima? Sem a pretensão de responder a<br />

pergunta, mas com o intuito de dar um indício de uma possível resposta, elucidaremos uma<br />

primeira incógnita, que é a fonte da qual a composição foi transcrita. Aplacan<strong>do</strong> parte de<br />

vossa curiosidade, o texto acima foi extraí<strong>do</strong> da entrevista/artigo/matéria intitulada<br />

Madureira, como ele gosta de ser chama<strong>do</strong> [ver anexo1], publicada na edição 003, de<br />

1


agosto de 2002, <strong>do</strong> site 1 da Internet denomina<strong>do</strong> Irmandade Raoul Duke. O intrigante nesta<br />

informação é que esse site promulga-se como um realiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong>. Que<br />

jornalismo é esse que recebe um traficante em sua redação e narra tal fato com uma<br />

linguagem deveras peculiar? Isso é o que tentaremos descobrir – ou deixar pistas para que<br />

outros descubram – com este trabalho.<br />

Nosso intuito, basicamente, mais <strong>do</strong> que analisar os mecanismos <strong>do</strong> gonzo-<br />

jornalismo, é apresentá-lo à comunidade acadêmica e jornalística, não como modelo ideal<br />

de jornalismo, mas como fonte de reflexão acerca das contradições da atividade jornalística<br />

em vigência nos tempos hodiernos. Apesar de ter si<strong>do</strong> bastante influente nos Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s, nação onde nasceu, o <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> ainda não foi difundi<strong>do</strong> no Brasil. O<br />

conhecimento acerca <strong>do</strong> tema está restrito a um universo reduzi<strong>do</strong> de indivíduos. Mesmo no<br />

meio acadêmico, o assunto ainda não foi trata<strong>do</strong> com profundidade, tanto que ainda não<br />

existe bibliografia sobre o tema no País. E essa escassez de referências diretas permite a<br />

este trabalho uma perspectiva ensaísta, de experimentação, onde a observação empírica<br />

surge como uma das fontes de informação, sempre contraposta a um referencial teórico de<br />

abrangência mais ampla.<br />

Para compreender a prática jornalística em vigência na imprensa tradicional faz-se<br />

necessário conhecer as propostas divergentes da mesma, para que suas contradições e<br />

peculiaridades sejam evidenciadas. Numa época em que o papel da imprensa está sen<strong>do</strong><br />

posto em discussão na sociedade, com o crescente número de publicações e a dependência<br />

das verbas governamentais para o sustento financeiro <strong>do</strong>s meios de comunicação, os<br />

conceitos de objetividade e imparcialidade acabam por tornarem-se alvos de críticas quanto<br />

a suas existência e adequação. Estudar a prática <strong>do</strong> gonzo-jornalismo no Brasil é uma forma<br />

de questionar o modelo convencional de produção da notícia, suas relações intrínsecas,<br />

como necessidade de venda, subserviência a interesses comerciais, processos de mediação,<br />

e como isto é oculta<strong>do</strong> na busca da utopia da objetividade.<br />

O primeiro capítulo é inicia<strong>do</strong> com uma breve biografia <strong>do</strong> “inventor” <strong>do</strong><br />

<strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong>, o americano Hunter Thompson, desde o seu nascimento até a ocasião<br />

em que o gonzo foi concebi<strong>do</strong>. Depois disso, são descritos os conceitos básicos dessa<br />

1 Embora alguns autores considerem o uso da expressão site inadequada pelo fato de haver palavra similar na<br />

língua portuguesa (no caso, sítio), iremos utilizar o termo em língua inglesa por entendermos que se trata de<br />

uma expressão de uso convenciona<strong>do</strong> na Internet, meio de comunicação ao qual a palavra é relacionada.<br />

2


prática de produção textual e os caminhos percorri<strong>do</strong>s por ela até chegar a nosso objeto de<br />

estu<strong>do</strong>, a Irmandade Raoul Duke.<br />

No segun<strong>do</strong> capítulo, é teci<strong>do</strong> o pano de fun<strong>do</strong> para a análise <strong>do</strong> tema, basea<strong>do</strong> na<br />

tríade: Pós-modernidade, Internet e Contracultura. Trabalhar com o conceito de pós-<br />

modernidade permite-nos ampliar a noção acerca das produções textuais, ven<strong>do</strong>-as não<br />

como integrantes de categorias pré-determinadas, mas como discursos auto-reflexivos e<br />

passíveis de receber influências das mais diversas manifestações. Entender a Internet como<br />

meio que acarretou numa transfiguração no mo<strong>do</strong> de encarar a mensagem textual confere-<br />

nos subsídios para analisar de que maneira dá-se a relação entre a Irmandade Raoul Duke e<br />

o veículo que a abriga. Já a noção de contracultura é relevante no momento de estabelecer<br />

uma contraposição entre o gonzo e o jornalismo dito tradicional, por meio de uma<br />

perspectiva dialógica.<br />

O terceiro capítulo, por sua vez, condensa a essência de nosso trabalho. É neste<br />

ponto que é realizada a crítica da atividade jornalística vigente e são apontadas suas<br />

contradições fundamentais como a busca pela objetividade, o célere movimento de<br />

(re)atualização <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> jornalístico, e a linguagem como construtora de mun<strong>do</strong>s. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, para possibilitar a devida compreensão acerca <strong>do</strong> gonzo, foi realizada uma<br />

análise <strong>do</strong> jornalismo ten<strong>do</strong> em vista sua intersecção com o universo literário, utilizan<strong>do</strong>,<br />

para isso, a recorrência a fontes teóricas e ao próprio <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> pratica<strong>do</strong> pela<br />

Irmandade Raoul Duke.<br />

Em língua portuguesa, a palavra gonzo é utilizada para designar <strong>do</strong>bradiças,<br />

articulações que permitem a movimentação de portas, janelas etc. Não desprezan<strong>do</strong> tal<br />

concepção <strong>do</strong> termo e transportan<strong>do</strong>-o para o <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong>, pode-se mesmo dizer que<br />

o gonzo seja uma <strong>do</strong>bradiça, uma articulação entre o jornalismo e a literatura. Contu<strong>do</strong>, tal<br />

<strong>do</strong>bradiça não é livre de atrito. Ao contrário, esse gonzo (<strong>do</strong>bradiça) entre o jornalismo e a<br />

literatura não possui lubrificação alguma. Por isso, a cada vez que uma de suas partes se<br />

movimenta (e isso acontece constantemente) é produzi<strong>do</strong> um ruí<strong>do</strong> agu<strong>do</strong> e metálico.<br />

Algumas pessoas levam as mãos aos ouvi<strong>do</strong>s, enquanto outras escutam-no como música.<br />

3


1. <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong><br />

“A eclosão <strong>do</strong>s ímpetos explode para fora de nós. To<strong>do</strong> delírio é<br />

expansivo. Toda impulsão escapa à estereotipia”. - Isi<strong>do</strong>re Isi<strong>do</strong>u<br />

1.1 - Hunter Thompson: <strong>do</strong> nascimento ao gonzo<br />

Ao contrário da maioria das manifestações sócio-culturais, o <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong><br />

não é originário de uma escola, um movimento ou uma corrente de pensamento<br />

congregante. O gonzo é tão somente fruto de uma mente irrequieta, cujo <strong>do</strong>no chama-se<br />

Hunter Stockton Thompson, nasci<strong>do</strong> em Louisville, no esta<strong>do</strong> de Kentucky, Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s, no dia 18 de junho de 1939 2 , em meio à Depressão.<br />

Pelo caráter eminentemente autobiográfico da escrita de Thompson, é recorrente<br />

encontrar em seus textos relatos sobre seus temas preferi<strong>do</strong>s, que eram, assumidamente,<br />

esportes, violência, política, sexo e drogas. “Especialmente interessante é o fato de que<br />

esses mesmos temas criaram raízes em sua infância” (OTHITIS, 1994a).<br />

Uma criança hiperativa, “Hunter tendia a usar sua energia para propósitos<br />

violentos e destrutivos” (OTHITIS, 1994a). Seus pais, Virginia Davidson Ray e Jack<br />

Robert Thompson, eram ambos alcoólatras e, por causa <strong>do</strong> comportamento pouco exemplar<br />

<strong>do</strong> pequeno Thompson, sua família era mal-vista pela vizinhança. Jack, pai de Hunter, era<br />

um vende<strong>do</strong>r de seguros que acreditava na punição corporal como forma de repreensão e<br />

praticava-a constantemente em Hunter. Jack Thompson morreu subitamente aos 57 anos de<br />

uma embolia cerebral. Depois da morte <strong>do</strong> pai, Hunter, que tinha 15 anos, começou a beber<br />

e, segun<strong>do</strong> seus amigos, tornou-se mais “malicioso” devi<strong>do</strong> ao sofrimento.<br />

Para Rousseau, o homem é, senão, um produto <strong>do</strong> meio onde vive. Não entremos<br />

no mérito quanto à validade universal <strong>do</strong> preceito, mas no que se refere a Hunter<br />

Thompson, o pressuposto de Rousseau parece ser bastante pertinente. Louisville é famosa<br />

nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s por sua indústria de bebidas alcoólicas e cigarro, além da tradicional e<br />

violenta corrida de cavalos, Kentucky Derby, onde a farân<strong>do</strong>la costuma manter a polícia<br />

2 As biografias divergem quanto ao ano, registra<strong>do</strong> também como sen<strong>do</strong> 1937.<br />

4


ocupada com brigas, desmaios e outras ocorrências ligadas ao consumo excessivo de<br />

álcool.<br />

“Hunter is very Kentucky. Kentucky is a very violent place” (CARROL, 1993:<br />

24). Esta afirmação de Walter Kaegi Jr., um <strong>do</strong>s amigos de infância de Thompson, resume<br />

bem a atmosfera <strong>do</strong> lugar onde Hunter nasceu e como ela influenciou sua vida e sua<br />

personalidade. Aos 10 anos de idade, Kaegi fora o editor <strong>do</strong> Southern Star, o primeiro<br />

jornal onde Thompson, ora com 8 anos, começou a escrever. O Southern Star era um jornal<br />

mimeografa<strong>do</strong>, que custava três centavos de dólar, onde notícias locais, artigos de opinião e<br />

alguns anúncios aglutinavam-se nas duas páginas da publicação. Data desta época o<br />

primeiro registro de revolta atribuí<strong>do</strong> a Hunter Thompson: ele, alia<strong>do</strong> a um grupo de<br />

garotos, preconizou um ato de vandalismo pueril em um banheiro no Parque Cherokee,<br />

atiran<strong>do</strong> latas, pichan<strong>do</strong> paredes e espalhan<strong>do</strong> lixo pelo local. A polícia de Louisville<br />

prendeu o grupo, que foi leva<strong>do</strong> em seguida à delegacia, onde uma ocorrência chegou a ser<br />

preenchida.<br />

Tabaco, gin, bourbon, Kentucky Derby e Hunter Thompson. To<strong>do</strong>s são produtos<br />

bastante alegóricos de Louisville, e têm em sua configuração um viés entorpecente,<br />

altera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de consciência. É este espírito que iria marcar o estilo de vida e a escrita<br />

de Thompson dali em diante. Aos 17 anos de idade, <strong>do</strong>is anos após a ocasião na qual<br />

empurrou sua mãe escada a baixo – sem conseqüências mais graves: ela estava bêbada –,<br />

Hunter Thompson foi condena<strong>do</strong> por assalto e permaneceu sessenta dias deti<strong>do</strong>, passan<strong>do</strong><br />

seu aniversário de 18 anos na cadeia. Após atingir sua maioridade atrás das grades,<br />

Thompson foi manda<strong>do</strong> para a Força Aérea: como forma de redução da pena, o juiz que o<br />

condenara propôs a Thompson que ele se alistasse no serviço militar. Após cerca de um<br />

ano, Thompson obteve dispensa “com honras”, apesar das inúmeras queixas de<br />

desobediência aos oficiais e ao regulamento da base.<br />

Essa rebeldia de Thompson não figurava apenas em sua atitude diante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />

mas sedimentava-se mais fortemente em sua maneira de escrever. “Por causa de diferenças<br />

de personalidade, opinião e estilo, Thompson não permaneceu por muito tempo nos<br />

pequenos jornais para os quais trabalhou” (OTHITIS, 1994c). Em 1962, Hunter Thompson<br />

tornou-se correspondente na América <strong>do</strong> Sul para a revista National Observer, onde<br />

relatava os costumes e peculiaridades <strong>do</strong>s países que visitava. Em 1963, esteve no Brasil e<br />

5


escreveu a reportagem Brazilshooting [ver detalhes adiante], um <strong>do</strong>s primeiros trabalhos<br />

em que Thompson opina de mo<strong>do</strong> mais incisivo e aparece como parte da cena que<br />

descreve.<br />

Uma das empreitadas mais temerárias de Hunter Thompson foi quan<strong>do</strong> ele<br />

decidiu, em 1965, acompanhar o intimidativo grupo de motoqueiros denomina<strong>do</strong> Hell’s<br />

Angels. Naquela época, havia si<strong>do</strong> divulga<strong>do</strong> o Lynch Report, um relatório escrito por<br />

Thomas C. Lynch, então secretário de segurança <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> da Califórnia, que alimentou<br />

diversas matérias sensacionalistas na imprensa americana, relatan<strong>do</strong> casos de estupro,<br />

vandalismo e brigas provocadas pelos motoqueiros trajan<strong>do</strong> jaquetas de couro. Apesar da<br />

hostilidade inicial <strong>do</strong>s Angels, e ameaças de surra, Hunter Thompson conseguiu convencê-<br />

los de que pretendia mostrá-los sob uma abordagem diferente <strong>do</strong> que a imprensa vinha<br />

fazen<strong>do</strong> até então. Thompson seguiu os Hell’s Angels por nove meses e o resulta<strong>do</strong> foi<br />

publica<strong>do</strong> em 1967 sob o título de Hell’s Angels: A Strange and Terrible Saga. Nesta obra<br />

ocorreram as primeiras referências explícitas de Thompson a respeito <strong>do</strong> consumo de<br />

drogas pesadas:<br />

Os Angels insistem em dizer que não há vicia<strong>do</strong>s em drogas em seu clube, e, para to<strong>do</strong>s os<br />

efeitos legais e médicos, isso é verdade. Vicia<strong>do</strong>s são centra<strong>do</strong>s; sua necessidade física por<br />

qualquer que seja a droga em que estejam vicia<strong>do</strong>s os força a serem seletivos. Mas os<br />

Angels não têm foco algum. Eles devoram drogas como vítimas da fome soltas em um raro<br />

banquete. Eles usam qualquer coisa que esteja disponível e se o resulta<strong>do</strong> disso forem gritos<br />

e delírio, então que seja. (THOMPSON, 1967: 213)<br />

A escrita emblemática e carregada de subjetividade de Hunter Thompson começava a<br />

dar indícios de uma nova concepção da atividade jornalística. Este foi o preâmbulo daquilo<br />

que mais tarde iria ser chama<strong>do</strong> de <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong>.<br />

1.1.1 – A gênese <strong>do</strong> gonzo-jornalismo<br />

A intitulação de gonzo ao estilo preconiza<strong>do</strong> por Hunter Stockton Thompson não<br />

ocorreu de forma estudada, nem a partir de uma referência coerente. A versão “oficial” para<br />

a associação <strong>do</strong> nome gonzo ao estilo de Hunter Thompson remete a seu colega de trabalho,<br />

6


Bill Car<strong>do</strong>so, que ao ler o artigo The Kentucky Derby is Decadent and Depraved, publica<strong>do</strong><br />

na edição de junho de 1970 da revista esportiva Scanlan’s Monthly, teria afirma<strong>do</strong>: “Eu não<br />

sei o que você fez, mas você mu<strong>do</strong>u tu<strong>do</strong>. Está totalmente gonzo” (OTHITIS, 1994c).<br />

“The Kentucky Derby is Decadent and Depraved” não é sobre a corrida de cavalos<br />

realmente. Na verdade, a corrida propriamente dita constitui cerca de 1% <strong>do</strong> artigo (o<br />

vence<strong>do</strong>r da corrida nem chega a ser menciona<strong>do</strong>). A história é devotada ao encontro de<br />

Thompson com um fanfarrão em um bar, pessoas em Kentucky, o reencontro com o<br />

cartunista Ralph Steadman, e quan<strong>do</strong> ele leva Ralph para jantar com seu irmão e sua esposa.<br />

(idem).<br />

Segun<strong>do</strong> o próprio Bill Car<strong>do</strong>so, gonzo é uma corruptela da palavra “gonzeaux”,<br />

evocada nas regiões de língua francesa <strong>do</strong> Canadá com o senti<strong>do</strong> de “via iluminada”<br />

[shining path]. A partir de então, “gonzo journalism” passou a designar o estilo de Hunter<br />

Thompson, tanto que a autora Christine Othitis chega a afirmar que Thompson é “o único<br />

jornalista gonzo em atividade no mun<strong>do</strong>”. No entanto, o mérito desta última questão pode<br />

ser posto em contestação já que, apesar da inegável relação entre o gonzo e Thompson, o<br />

estilo preconiza<strong>do</strong> por este possui elementos passíveis de serem reproduzi<strong>do</strong>s em outros<br />

contextos e por outras pessoas.<br />

De lá para cá, Thompson escreveu 11 livros e publicou artigos em dezenas de<br />

publicações, onde mostra, a partir de sua experiência pessoal, as contradições da sociedade<br />

americana. “Em toda a sua obra, Thompson mostra o quanto os americanos são alucina<strong>do</strong>s<br />

em seu cotidiano, mesmo que toman<strong>do</strong> só água mineral. A ignorância, a corrida de cavalos,<br />

os jogos de futebol, as celebridades, as reuniões de policiais, toda sociedade americana<br />

aparece como numa constante trip 3 ” (FERNANDES, 2002a).<br />

Durante sua trajetória de desavenças nos meios político e jornalístico e de<br />

problemas com a polícia, Thompson realizou muitos de seus escritos sob os pseudônimos<br />

Sebastian Owl, F.X. Leach e Raoul Duke, este último o mais celebriza<strong>do</strong>.<br />

3 Termo em inglês, cuja tradução literal é viagem, mas que no referi<strong>do</strong> contexto significa o efeito provoca<strong>do</strong><br />

pelo uso de drogas.<br />

7


1.2 – Conceitos Básicos <strong>do</strong> <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong><br />

Embora Christine Othitis admita que o gonzo-jornalismo também possa ser<br />

chama<strong>do</strong> de “jornalismo fora-da-lei, jornalismo alternativo e cubismo literário” (OTHITIS,<br />

1994c), a<strong>do</strong>taremos as seguintes nomenclaturas: gonzo-jornalismo, <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong>, ou<br />

simplesmente gonzo. Estas serão as formas pelas quais o gênero cria<strong>do</strong> por Hunter<br />

Thompson será referi<strong>do</strong> neste trabalho.<br />

A natureza cataléctica e híbrida <strong>do</strong> gonzo permitiria uma infinidade de<br />

nomenclaturas. Por exemplo, “jornalismo porra-louca” também seria uma denominação<br />

conceitualmente plausível, mas a palavra gonzo e suas derivações serão a<strong>do</strong>tadas para fins<br />

de convenção e por sua representatividade estética, conceitual e histórica. Estética, porque a<br />

palavra gonzo remete a um universo simbólico singular, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de peculiaridades e<br />

referências ímpares no que concerne a forma e conteú<strong>do</strong>. Conceitual porque, advin<strong>do</strong> da<br />

concepção de gonzo atribuída ao estilo de Hunter Thompson, tal denominação transcendeu<br />

a si mesma e permeia outros campos da cultura e <strong>do</strong> conhecimento: termos como<br />

<strong>Gonzo</strong>logia (FERNANDES, 2002c) e Marketing <strong>Gonzo</strong> 4 já “contaminam” a esfera <strong>do</strong><br />

saber. E, finalmente, histórica, porque a atribuição da palavra gonzo ao estilo <strong>do</strong> “Dr.<br />

Thompson” foi realizada de uma maneira extremamente nonsense, sem referenciais<br />

etimológicos bem fundamenta<strong>do</strong>s, ou qualquer outro tipo de embasamento teórico mais<br />

aprofunda<strong>do</strong>, o que ocasionou uma ligação intrínseca e indissolúvel entre o gonzo e o estilo<br />

intrépi<strong>do</strong> de Hunter Thompson.<br />

Neste ponto, iremos analisar as características fundamentais identificadas nos<br />

escritos de Hunter Thompson. Nosso objetivo é construir o alicerce lingüístico que sirva de<br />

suporte para a definição clássica de <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong>. Antes de tu<strong>do</strong>, no entanto, é<br />

necessário salientar que, em essência, o gonzo-jornalismo caracteriza-se pela ausência de<br />

regras rígidas. Todavia, algumas diretrizes ajudam a delimitar o que pode ser enquadra<strong>do</strong><br />

dentro da definição de <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong>.<br />

4 Link para a bibliografia:<br />

LOCKE, Christopher. <strong>Gonzo</strong> Marketing: Winning Through Worst Practices. Perseus, 2001.<br />

Em português: LOCKE, Chistopher. Marketing Muito Maluco: Vencen<strong>do</strong> com as Práticas Menos<br />

Convencionais, São Paulo, Campus, 2002.<br />

8


A crítica fundamental de Thompson quanto ao jornalismo tradicional refere-se ao<br />

ideal de objetividade 5 . Para ele, o discurso calca<strong>do</strong> nos moldes da objetividade tem o intuito<br />

de gerar uma relação de confiança entre os meios de comunicação e o leitor, para convencê-<br />

lo de que suas informações são isentas, livres de ideologias e interesses <strong>do</strong> autor.<br />

No livro Teorias da Comunicação de Massa, de Melvin L. DeFleur e Sandra Ball-<br />

Rokeach, é traça<strong>do</strong> um breve panorama da situação midiática que dá margem à discussão<br />

(ou refutação) <strong>do</strong> conceito de objetividade:<br />

Os códigos éticos de jornalismo ressaltam dever ser “objetivo”, “justo”, “cuida<strong>do</strong>so” e<br />

“factual”. Mas isso é jogo perdi<strong>do</strong> antes de começar a partida. Seletividade e distorções são<br />

produtos de fatores fora <strong>do</strong> controle de repórteres, redatores, editores e diretores. As<br />

descrições <strong>do</strong> “mun<strong>do</strong> lá fora” apresentadas pela imprensa são conseqüências de condições<br />

anteriores, tais como recursos limita<strong>do</strong>s de que os jornalistas dispõem para estudar em<br />

primeira mão qualquer acontecimento. São também decorrência de constrangimentos no<br />

processo de preparar as notícias para se adequarem às exigências de um determina<strong>do</strong><br />

veículo. Espaço e tempo são caros, e to<strong>do</strong>s os relatos de notícias têm que ser sumários. Há<br />

uma inevitável perda de pormenores em qualquer relato que tente focalizar os fatos centrais<br />

e ignore outros. (DEFLEUR, 1993: 280)<br />

O jornalismo gonzo não nega o panorama explicita<strong>do</strong> acima. Pelo contrário, busca<br />

colocá-lo em evidência até o limite extremo. Por trás dessa atitude está a compreensão <strong>do</strong><br />

fato de que a pragmática <strong>do</strong> jornalismo é necessariamente perpassada por limitações, e que,<br />

portanto, torna-se obrigação <strong>do</strong> jornalista deixar isso claro para o leitor. Assim, é da<strong>do</strong> a<br />

este último um papel fundamental na depuração e na construção de significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> produto<br />

jornalístico.<br />

Os recursos <strong>do</strong>s quais o gonzo-jornalismo se utiliza com o intuito de ressaltar tal<br />

inexorabilidade da condição noticiosa são muitos. Os textos gonzo são escritos em primeira<br />

pessoa, para enaltecer a existência de um media<strong>do</strong>r entre o fato e o leitor, ao invés de<br />

esconder isso. Em artigo publica<strong>do</strong> na coletânea Ética, Imprensa e Cidadania, Mohammed<br />

Elhajji pressupõe que o discurso jornalístico convencional (em terceira pessoa) constrói<br />

condições para o cerceamento da amplitude de interpretação <strong>do</strong> leitor, impon<strong>do</strong>-lhe uma<br />

5 Link para o Capítulo 3, onde a questão da objetividade jornalística será tratada com mais detalhes.<br />

9


autoridade discursiva disposta a convencer o destinatário da “equivalência entre texto e<br />

mun<strong>do</strong>”.<br />

Se o discurso impessoal produz uma impressão de sério, de objetividade e de neutralidade,<br />

na verdade, é o quadro perfeito para a manifestação de to<strong>do</strong> tipo de ideário <strong>do</strong>utrinário e<br />

<strong>do</strong>gmático, pois, por seu mo<strong>do</strong> enunciativo frio e sistemático, ele limita as possibilidades<br />

interpretativas <strong>do</strong> leitor e lhe dita uma visão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> única e unidirecional. (Elhajji in<br />

PAIVA, 2002: 129)<br />

A concepção de Elhajji é de que a alternativa de empregar o discurso pessoal (na<br />

1ª pessoa) pode delimitar caminhos que levem à construção de um jornalismo auto-<br />

reflexivo, auto-hermenêutico (in PAIVA, 2002: 130). No entanto, a escolha de escrever em<br />

primeira pessoa pressupõe, no gonzo-jornalismo, um desejo de subversão, ironia e<br />

contraposição, tanto frente ao jornalismo dito tradicional, quanto perante a ordem das<br />

coisas. “<strong>Gonzo</strong> é uma espécie de Buñuel <strong>do</strong> jornalismo. Mais <strong>do</strong> que tirar fotos<br />

engraçadinhas e escrever textos pseu<strong>do</strong>-espirituosos, ele quer rir de si mesmo, da sua<br />

cultura, <strong>do</strong> próprio ato de rir. Assim como o cineasta espanhol, o gonzo quer mostrar a<br />

família defecan<strong>do</strong> na sala e almoçan<strong>do</strong> no banheiro” (FERNANDES, 2002b). Desta forma,<br />

o gonzo situa-se numa esfera autodelatora, denuncia a si mesmo para mostrar a fragilidade<br />

<strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> discursivo jornalístico, seja ele em primeira ou terceira pessoa.<br />

Um <strong>do</strong>s recursos largamente utiliza<strong>do</strong>s pelo <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> é a ironia. Por<br />

meio dela o gonzo flerta com o jornalismo tradicional, flerta com a sociedade e flerta<br />

consigo mesmo. Ironia, palavra à qual podem ser atribuí<strong>do</strong>s diversos significa<strong>do</strong>s, assume<br />

aqui um senti<strong>do</strong> bem específico, situan<strong>do</strong>-se como “discurso que pretende significar o<br />

contrário <strong>do</strong> que é dito literal ou explicitamente e que, nessa perspectiva, também está<br />

ligada à definição de ironia como antífrase" (BRAIT, 1996: 72-73). Mesma concepção<br />

a<strong>do</strong>tada por Sigmund Freud, que a definiu como categoria próxima ao chiste, ao dizer que<br />

“sua essência consiste em dizer o contrário <strong>do</strong> que se pretende comunicar a outra pessoa,<br />

mas poupan<strong>do</strong> a esta uma réplica contraditória fazen<strong>do</strong>-lhe entender - pelo tom de voz, por<br />

algum gesto simultâneo, ou (onde a escrita está envolvida) por algumas pequenas<br />

indicações estilísticas - que se quer dizer o contrário <strong>do</strong> que se diz” (FREUD, 1969: 199).<br />

10


Para Freud, portanto, a ironia é a figura de retórica que supõe uma certa posição <strong>do</strong> sujeito<br />

diante da verdade, forma invertida.<br />

A autora Beth Brait reforça o caráter de ruptura engendra<strong>do</strong> na própria concepção<br />

de ironia e na utilização desta pelas escolas literárias para contestar os estilos precedentes.<br />

Segun<strong>do</strong> Brait, a ironia – em seus diversos mecanismos - é a estratégia aplicada a fim de<br />

representar e revelar as formas esgotadas (BRAIT, 1996: 57).<br />

A dupla de autores, Rosenfeld & Guinsburg, tece uma análise de como a ironia se<br />

desenvolve e é aplicada no contexto específico da escola romântica européia, a qual, dentro<br />

desta análise, possui traços análogos aos observa<strong>do</strong>s na esfera da Irmandade Raoul Duke.<br />

Segun<strong>do</strong> eles, Rosenfeld & Guinsburg, a ironia é brandida por um homem marginaliza<strong>do</strong> e<br />

converte-se a priori para ferir os valores oficiais <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> burguês. “Trata-se, para o<br />

romantismo, de abalar os padrões filisteus e toda esta <strong>realidade</strong> aparentemente factícia em<br />

que o burguês se acha em casa. Mostrar que tu<strong>do</strong> isso é falso e ilusório constituiu-se numa<br />

importante meta de sua ironia" (ROSENFELD & GUINSBURG, 1978: 286). Mais que<br />

isso, este “homem marginaliza<strong>do</strong>” é situa<strong>do</strong> num contexto urbano, exposto a uma<br />

infinidade de estímulos, o que faz com que se torne insensível a to<strong>do</strong>s eles. E é esta<br />

situação de “tédio” que o literato busca transcender pelo uso da palavra.<br />

Uma forma de pensar muito sutil e específica que, no seu caráter oblíquo e cindi<strong>do</strong>, reflete<br />

as complexas circunvoluções mentais de gente extremamente crítica, sensível e refinada,<br />

individualista e anárquica, afeita ao trato diuturno <strong>do</strong> espírito e das letras, um gênero de<br />

pessoa que na Alemanha é chamada de Asfaltliterat, 'literato de asfalto'. São criaturas<br />

essencialmente urbanas, que vivem como plantas algo emurchecidas e lânguidas na<br />

atmosfera assaz sufocante da cidade grande. Em seu meio sempre surge aquele tedium vitae,<br />

o enjôo de viver tão característico <strong>do</strong> homem blasé, uma criatura que já experimentou de<br />

tu<strong>do</strong> e não mais sente prazer em nada, que precisamente por isso procura a satisfação no<br />

mais rústico e elementar, porque isso poderia representar uma fonte de restauração de seus<br />

senti<strong>do</strong>s estiola<strong>do</strong>s, um banho de juventude por assim dizer. (ROSENFELD &<br />

GUINSBURG, 1978: 282-283)<br />

Em sua argumentação, a autora Beth Brait cita um artigo publica<strong>do</strong> em 1941, na<br />

Révue de Métaphysique et de Merale (pp. 163-201), intitula<strong>do</strong> Le mécanisme de l'ironie<br />

dans sés rapports avec la dialectique, no qual René Schaerer não apenas compara a ironia a<br />

11


um jogo de luz e sombra, de claro e escuro, mas também acentua a idéia de que a<br />

ambigüidade irônica reside no fato de que o enuncia<strong>do</strong>r, ao mesmo tempo em que simula,<br />

aponta para essa dissimulação. A ironia, neste espectro, é compreendida como uma<br />

simulação ou uma dissimulação que é arquitetada deliberadamente para ser desmascarada.<br />

“Diferentemente da mentira, em que a simulação pretende se passar por verdade, o engano<br />

irônico se oferece para que o receptor o adivinhe ou perceba como engano. Nesse senti<strong>do</strong>, a<br />

dissimulação só se torna irônica, segun<strong>do</strong> Schaerer, no momento em que é denunciada ou<br />

percebida como tal” (BRAIT, 1996: 81).<br />

A diferença entre o ironista e o mentiroso reside no fato de que o primeiro sinaliza de<br />

alguma maneira a mensagem para que o enunciatário reconheça e participe ativamente de<br />

sua "não-sinceridade", de sua inversão semântica, enquanto o segun<strong>do</strong> procura apagar de<br />

sua fala to<strong>do</strong> traço de inversão, desqualifican<strong>do</strong> o enunciatário na medida em que tenta fazê-<br />

lo aceitar como verdade o que não é. (BRAIT, 1996: 50)<br />

A citação acima condensa um <strong>do</strong>s pressupostos fundamentais <strong>do</strong> <strong>Jornalismo</strong><br />

<strong>Gonzo</strong> e desfere (mesmo que involuntariamente) uma acusação cabal ao dito jornalismo<br />

convencional. Para exemplificar isto, tratemos de considerar os seguintes aspectos:<br />

enquanto o gonzo-jornalismo põe-se num patamar nivela<strong>do</strong> ao receptor, compartilhan<strong>do</strong><br />

com ele suas ambigüidades e deixan<strong>do</strong> clara sua incapacidade de absorver e transmitir a<br />

“verdade” em sua essência, o jornalismo dito objetivo e imparcial tece seu discurso sob o<br />

viés <strong>do</strong> aparente distanciamento, apagan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> traço de pessoalidade no texto, de forma a<br />

fazer sua escrita verossímil parecer verdadeira. Destarte, sob esta perspectiva, toman<strong>do</strong> o<br />

<strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> e o jornalismo tradicional, qual <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is é o ironista e qual é o<br />

mentiroso?<br />

Pelas suas características idiossincráticas, o <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> não comporta uma<br />

definição fechada de si mesmo. Segun<strong>do</strong> Othitis, a própria definição de Hunter Thompson<br />

sobre o que é <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> mu<strong>do</strong>u com o passar <strong>do</strong>s anos, mas o gonzo tem como um<br />

de seus pilares a idéia <strong>do</strong> autor William Faulkner de que “a melhor ficção é muito mais<br />

verdadeira <strong>do</strong> que qualquer tipo de jornalismo” (apud OTHITIS, 1994c). O gonzo-<br />

jornalismo tende a enfocar assuntos ignora<strong>do</strong>s ou pouco evidencia<strong>do</strong>s pela imprensa<br />

12


tradicional, como atividades da contracultura e drogas, por exemplo. O gonzo-jornalismo<br />

“não é anti-Governo, mas sim anti-jornalismo”, define Othitis (1994c).<br />

A autora Christine Othitis ressalta mais algumas características essenciais no<br />

gonzo-jornalismo, tais como a pre<strong>do</strong>minância <strong>do</strong>s temas sexo, violência, drogas, esporte e<br />

política; o uso de citações como epígrafe; tendência de desviar <strong>do</strong> assunto inicial;<br />

averiguação minuciosa das situações e o uso de sarcasmo e vulgaridade como recursos<br />

humorísticos (OTHITIS, 1994c). No entanto, a principal característica <strong>do</strong> gonzo-jornalismo<br />

é “a ênfase que dá à experiência pessoal direta. (...) Descrever-se descreven<strong>do</strong>, fazer parte<br />

da pauta, de alguma maneira” (FERNANDES, 2002a). Para isso, o gonzo usa o “eu” como<br />

ponto de partida: não basta transcrever em palavras os pormenores de um fato, é necessário<br />

participar de alguma maneira de tal situação, de mo<strong>do</strong> a nela interferir e, só então, tecer o<br />

relato de sua experiência individual. Dentre os vários personagens – ativos ou figurantes –<br />

dessa história, o narra<strong>do</strong>r é o personagem primeiro, o proto-personagem, que suga e filtra a<br />

to<strong>do</strong>s, a seu bel prazer. Por isso, não há uma fôrma, um modelo de jornalismo gonzo. Ele é<br />

a síntese das idiossincrasias, levadas ao extremo até o limite <strong>do</strong> absur<strong>do</strong>.<br />

Isto posto, nota-se que a contraposição <strong>do</strong> <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> frente ao jornalismo<br />

mainstream 6 dá-se sob um espectro multidirecional. A subversão <strong>do</strong> gonzo costuma ocorrer<br />

desde o momento da escolha das pautas até o mo<strong>do</strong> de tratamento <strong>do</strong> material jornalístico.<br />

Destarte, um jornalista gonzo não iria cobrir, por exemplo, uma solenidade governamental.<br />

Se o fizesse, todavia, tentaria interferir na cerimônia até interrompê-la, ou de lá ser expulso;<br />

ou, pelo menos, noticiá-la-ia sob um ponto de vista inusita<strong>do</strong>, como ressaltar (ou inventar)<br />

que o assessor de finanças <strong>do</strong> Governa<strong>do</strong>r estava com a braguilha aberta, fazer notar a<br />

apatia <strong>do</strong>s presentes, ou estipular uma possível ressaca <strong>do</strong> Governa<strong>do</strong>r como sen<strong>do</strong> o<br />

motivo de sua ausência em plena manhã de uma segunda-feira. O jornalista gonzo também<br />

poderia, antes mesmo de entrar na “solenidade”, parar para conversar com o porteiro e<br />

dividir com ele um litro de aguardente durante uma prosa onde os mais escatológicos<br />

detalhes da personalidade <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is ébrios seriam evidencia<strong>do</strong>s, o que seria minuciosamente<br />

relata<strong>do</strong> na matéria, a despeito da realização da solenidade.<br />

6 Termo referencia<strong>do</strong> a manifestações culturais e sociais de tendência <strong>do</strong>minante.<br />

13


1.3 - <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> no Brasil<br />

Antes de enumerar as experiências de alguns brasileiros que se deixaram<br />

influenciar pelo gonzo (intencionalmente ou não), iremos relatar o primeiro contato direto<br />

que este país teve com tal espécie de escritos. Tal ocasião data de 1963, ano em que aportou<br />

no Brasil o jornalista americano Hunter Thompson, então correspondente da revista<br />

National Observer. Naquela época, o gonzo-jornalismo ainda era embrionário, ainda não<br />

havia si<strong>do</strong> batiza<strong>do</strong> como tal. Remete-se, portanto, à sua permanência no Brasil, a<br />

concepção de um <strong>do</strong>s primeiros trabalhos de Thompson no qual ele articula-se de mo<strong>do</strong><br />

mais incisivo, áci<strong>do</strong>, e aparece como elemento integrante da cena que descreve.<br />

A reportagem em questão foi denominada Brazilshooting e consta <strong>do</strong> relato de um<br />

tiroteio na boate Domino, situada no bairro de Copacabana, cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro.<br />

Thompson construiu sua reportagem a partir da transcrição de uma conversa telefônica com<br />

um interlocutor anônimo. Nela, Thompson emite crítica direta ao exército e polícia<br />

brasileiros, questionan<strong>do</strong> até a própria necessidade da existência de ambos.<br />

A polícia brasileira tem a reputação de ser extremamente leniente, e diz-se que o exército<br />

brasileiro é um <strong>do</strong>s mais estáveis e inclina<strong>do</strong>s à democracia em toda a América latina, mas<br />

nas últimas semanas, a administração da “justiça” no Brasil adquiriu um novo perfil, e<br />

muitos começam a se perguntar para que existem a polícia e o exército. (THOMPSON,<br />

1979: 383)<br />

A título de curiosidade, convém ressaltar que o mesmo exército “inclina<strong>do</strong> à<br />

democracia” protagonizou no ano seguinte, 1964, o Golpe Militar, que deixou o Brasil por<br />

cerca de 20 anos sob uma sombra autocrática, que inegavelmente destoava <strong>do</strong>s ideais<br />

igualitários e democráticos. Divagações históricas à parte, notemos, no trecho a seguir, a<br />

abordagem crítica de Thompson perante a cobertura jornalística brasileira, encerran<strong>do</strong> sua<br />

matéria com forte carga de ironia:<br />

Depois <strong>do</strong> ataque ao Domino, o Jornal <strong>do</strong> Brasil deu uma suíte intitulada: “Exército não vê<br />

crime em sua ação”. Ou, como observou George Orwell, “em terra de cego, quem tem um<br />

olho é rei”. (THOMPSON, 1979: 386)<br />

14


Fechan<strong>do</strong> os parênteses, tratemos de fazer um breve intercurso com repórteres e<br />

publicações que incorporaram pelo menos alguns elementos da estética gonzo. O merca<strong>do</strong><br />

editorial brasileiro já foi permea<strong>do</strong> por algumas experiências gonzo, no senti<strong>do</strong> amplo da<br />

palavra. Exemplos escassos de experimentos catárticos de jornalismo, colhi<strong>do</strong>s por<br />

intermédio da observação empírica, serão enumera<strong>do</strong>s neste tópico para fins de<br />

contextualização. Nosso objetivo aqui é mostrar que, a despeito <strong>do</strong>s rótulos, nomenclaturas<br />

e classificações por gênero, o jornalismo brasileiro possui sua vertente contesta<strong>do</strong>ra já há<br />

algum tempo. Contestação aqui é dita, não somente no que tange a ideologias, mas no que<br />

concerne à própria práxis <strong>do</strong> jornalismo.<br />

O primeiro nome que vem à tona quan<strong>do</strong> o assunto é formas pouco usuais de<br />

jornalismo no Brasil é o de Arthur Veríssimo, da revista Trip. Sob o pseudônimo de Gian<br />

Danton, o professor Ivan Carlo afirma que “exemplos de jornalismo gonzo estão se<br />

tornan<strong>do</strong> cada vez mais freqüentes na imprensa brasileira. Arthur Veríssimo, da revista<br />

Trip, foi o primeiro a celebrizar esse estilo no Brasil” (DANTON, 2002). Veríssimo ganhou<br />

notoriedade ao realizar coberturas internacionais, nas quais mostrava culturas milenares sob<br />

um ponto de vista pouco orto<strong>do</strong>xo. O excerto abaixo foi extraí<strong>do</strong> da matéria Nirvana<br />

Unplugged, publicada na 64ª edição da Trip, na qual relata sua passagem pela Índia.<br />

Percebamos que, mais <strong>do</strong> que descrever o local, Arthur Veríssimo relata sua própria<br />

experiência, de uma maneira fortuita e cômica:<br />

Milhares de pessoas bebiam, cagavam e cozinhavam por to<strong>do</strong>s os cantos. Para completar,<br />

fui dar umas braçadas no crowd <strong>do</strong> rio Ganges. Este mergulho entrou para a minha história<br />

pessoal por <strong>do</strong>is motivos: Primeiro, pelo detono que o contato com a água santa mas<br />

infectada <strong>do</strong> rio produziu. Na noite que se seguiu, meu estômago e intestino não fizeram<br />

parte <strong>do</strong> mesmo conjunto. Estavam completamente desentrosa<strong>do</strong>s. Com a barriga totalmente<br />

inchada corri para uma privada. Nem sinal de defecação. Trêmulo de tanto esforço no<br />

troninho, tentei praticar algumas mentalizações e meditações e, como que por milagre, uma<br />

energia divina descarregou to<strong>do</strong>s os gases <strong>do</strong> meu organismo.<br />

Outro nome freqüentemente associa<strong>do</strong> ao conceito de gonzo é Cláudio Tognolli,<br />

que tem no seu currículo passagem pelos jornais Folha de S. Paulo e O Esta<strong>do</strong> de S. Paulo,<br />

rádio CBN, revista Veja e Rede Globo. Na realização de suas reportagens, infiltrou-se em<br />

torcidas organizadas, teve de fumar crack, chegou a ser expulso de Cuba e já perdeu os<br />

15


dentes durante a feitura de uma matéria. Por conta da sua coragem em denunciar e expor<br />

seus pontos de vista, Tognolli sofreu mais de trinta processos judiciais. Hoje, Tognolli é<br />

repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor da ECA-USP e <strong>do</strong> Unifiam (SP); e<br />

também é consultor de jornalismo da Unesco, mestre em Psicanálise da Comunicação e<br />

<strong>do</strong>utor em Filosofia das Ciências.<br />

A escrita <strong>do</strong> jornalista Pepe Escobar também permite que seja feita uma<br />

comparação – mesmo que complacente – entre ele e Hunter Thompson. Escobar é<br />

conheci<strong>do</strong> por trabalhar em pautas inusitadas e fazer isso de mo<strong>do</strong> catártico, agressivo. No<br />

trecho abaixo podem ser vistas outras relações entre o trabalho de Escobar e o jornalismo<br />

gonzo: desde a latente opinião pessoal perpassan<strong>do</strong> cada linha <strong>do</strong> texto, a explícita<br />

refutação de conceitos pré-estabeleci<strong>do</strong>s e instituições tradicionais, até a referência ao uso<br />

de drogas ilícitas, uma das características mais emblemáticas <strong>do</strong> que se convencionou como<br />

gonzo.<br />

Aprendi que a marijuana e o LSD podiam ser úteis para muitas coisas. Eu só queria era<br />

chutar, chutar, chutar. Para acabar com a demência maternal quan<strong>do</strong> encontra os lençóis<br />

mancha<strong>do</strong>s de esperma; para acabar com as penitências sa<strong>do</strong>-ideológicas <strong>do</strong>s curas de to<strong>do</strong>s<br />

os peca<strong>do</strong>s; para acabar com os ensinamentos educativo-castra<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s mestres; para<br />

acabar com a legalidade repressora, a normalidade triunfante. 7<br />

No entanto, as experiências mais relevantes no que se refere ao jornalismo gonzo<br />

no Brasil não estão na mídia impressa, mas na mídia eletrônica. A Internet, em virtude de<br />

seu caráter libertário e da facilidade de publicação, tem si<strong>do</strong> o cerne onde o gonzo se<br />

desenvolveu mais fortemente 8 . É importante ressaltar que diversos sites (e até mesmo os<br />

weblogs 9 ) possuem características gonzo.<br />

Contu<strong>do</strong>, duas publicações na Internet lançadas no ano de 2002 são os principais<br />

expoentes <strong>do</strong> <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> pratica<strong>do</strong> no País. Uma delas é a Fraude 10 , cujo editor é o<br />

jornalista Eduar<strong>do</strong> Fernandes. A Fraude recebe colaborações de colunistas de alguns<br />

7 Link para a Internet: ESCOBAR, Pepe. Roubei um Carro e Desembarquei no Centro <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, in<br />

http://www.subcultura.net/letras/critica/beat_escobar.php<br />

8 Link para o Capítulo 2 deste trabalho, onde as particularidades da Internet que possibilitaram o<br />

desenvolvimento de práticas hetero<strong>do</strong>xas de produção textual serão abordadas.<br />

9 Espécies de “diários virtuais”, onde seus emula<strong>do</strong>res escrevem sem qualquer restrição estilística.<br />

10 Link para a Internet: http://www.fraude.org<br />

16


esta<strong>do</strong>s e de brasileiros residentes no Exterior, tratan<strong>do</strong> de diversos temas, como música,<br />

sexo, drogas, produção midiática e outros. A maioria de seus textos tem uma estética<br />

próxima à <strong>do</strong> gonzo-jornalismo, mas os textos essencialmente gonzo estão localiza<strong>do</strong>s em<br />

uma seção específica <strong>do</strong> site. A outra publicação é a Irmandade Raoul Duke. Esta última,<br />

no entanto, possui algumas características que a tornam mais relevante <strong>do</strong> ponto de vista<br />

científico, tanto por sua inovação, quanto por suas pretensões.<br />

1.3.1 - Irmandade Raoul Duke<br />

O site Irmandade Raoul Duke (IRD) é uma iniciativa sem precedentes no<br />

jornalismo brasileiro. O objetivo <strong>do</strong> projeto consiste em publicar artigos, reportagens e<br />

entrevistas no estilo gonzo, preconiza<strong>do</strong> inicialmente por Hunter Thompson, de mo<strong>do</strong><br />

periódico. A Irmandade Raoul Duke surgiu a partir de uma lista de discussão 11 sobre<br />

gonzo-jornalismo, a qual evoluiu para um projeto editorial palpável. O editor <strong>do</strong> site é o<br />

jornalista André "Car<strong>do</strong>so" Czarnobai. A alcunha “Car<strong>do</strong>so” é referente ao jornalista Bill<br />

Car<strong>do</strong>so, o mesmo que batizou o estilo de Hunter Thompson com o termo gonzo. A<br />

primeira edição da IRD foi atualizada em março de 2002, constan<strong>do</strong> de 12 textos cunha<strong>do</strong>s<br />

na estética gonzo. Depois disso, foram “ao ar” as edições de abril, com 8 textos, e julho,<br />

desta vez com 12 textos.<br />

O endereço eletrônico <strong>do</strong> servi<strong>do</strong>r onde está armazena<strong>do</strong> o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> site<br />

Irmandade Raoul Duke é http://planeta.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/home3.html .<br />

No entanto, com o intuito de facilitar a publicização e difusão <strong>do</strong> endereço <strong>do</strong> site, foi<br />

utiliza<strong>do</strong> um recurso chama<strong>do</strong> redirecionamento. Com este mecanismo, basta digitar o<br />

endereço http://raoulduke.cjb.net para que o internauta seja direciona<strong>do</strong> ao servi<strong>do</strong>r.<br />

Apesar da denominação Irmandade Raoul Duke de <strong>Gonzo</strong> <strong>Jornalismo</strong>, André<br />

Czarnobai afirma em seu site que a equipe editorial da IRD (formada por jornalistas,<br />

escritores e colabora<strong>do</strong>res de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande <strong>do</strong> Sul)<br />

não é de gonzo-jornalistas. Segun<strong>do</strong> ele, o único jornalista gonzo é o próprio Hunter<br />

11 Comunidade virtual que troca mensagens eletrônicas e arquivos a respeito de determina<strong>do</strong> tema de interesse<br />

comum.<br />

17


Thompson. No entanto, assume fazer “uma interpretação tosca <strong>do</strong> que seria gonzo” 12 e<br />

escrever seus relatos seguin<strong>do</strong> alguns de seus preceitos.<br />

Essa “interpretação” está condensada na Carta de Princípios da Irmandade Raoul<br />

Duke, onde estão enumera<strong>do</strong>s os requisitos para que determinada matéria seja publicada no<br />

site. É o “manual de redação” da IRD. Contém normas estilísticas e diretrizes conceituais<br />

que tentam conferir uma certa unidade ao caos <strong>do</strong> gonzo. Do ponto de vista acadêmico, a<br />

existência dessa Carta de Princípios é de suma relevância, pois permite-nos entender parte<br />

da lógica da produção de conteú<strong>do</strong> para o site.<br />

A primeira determinação da Carta, notadamente, visa a legitimar a aura jornalística<br />

atribuída ao gonzo. Com o intuito de evitar que o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> site seja toma<strong>do</strong> por um<br />

apanha<strong>do</strong> de contos ou outro gênero que esteja além da fronteira com a literatura 13 , a Carta<br />

é veemente ao afirmar que “o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong>s textos deve ser jornalístico, ou seja: um fato<br />

precisa estar acontecen<strong>do</strong>, necessariamente”.<br />

Na mesma Carta de Princípios, o site autodivide-se em três estilos distintos de<br />

produção textual: artigo, reportagem e entrevista. Ao articulista cabe comentar um fato<br />

noticioso a partir de uma análise gonzo, a qual define como “catártica, cáustica e caótica”.<br />

Já os repórteres “não precisam necessariamente ter objetos bizarros, basta que a maneira<br />

como a história é contada seja bizarra”. Quanto aos entrevista<strong>do</strong>res, a Carta recomenda que<br />

seus objetos sejam bizarros em si mesmos.<br />

As técnicas que preferencialmente devem ser empregadas na confecção de<br />

reportagens para a Irmandade Raoul Duke são a síntese <strong>do</strong>s conceitos <strong>do</strong> <strong>Jornalismo</strong><br />

<strong>Gonzo</strong>. É importante notar que a maioria das recomendações não acontece no âmbito <strong>do</strong><br />

estilo em senti<strong>do</strong> estrito, mas tratam de uma postura perante o fato noticioso e o processo<br />

de apuração e de depuração <strong>do</strong> mesmo.<br />

O repórter deve se envolver na história e alterar ao máximo os acontecimentos dentro da<br />

medida <strong>do</strong> impossível, de forma a transformá-la não em um mero relato <strong>do</strong> evento, mas sim<br />

uma história cáustica, para ser contada em rodas de maconha e mesas de bar.<br />

12 Na Internet, consultar: http://planeta.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/filo.html<br />

13 Clique aqui e siga para o Capítulo 3, no qual a tênue delimitação entre <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> e literatura é<br />

discutida.<br />

18


O site também alerta para a questão das drogas ilícitas, combustível recorrente nas<br />

intrépidas aventuras de Hunter Thompson. A IRD, por sua vez, coloca como facultativo o<br />

uso de substâncias entorpecentes ou alucinógenas, ressaltan<strong>do</strong> que sua utilização “ajuda na<br />

criação de situações extremas mas pode ser prejudicial para mentes sensíveis”. Outra<br />

recomendação é a de que os textos “devem ser escritos em uma sentada, sem intervalos.”<br />

Além disso, “os textos não devem ser revisa<strong>do</strong>s nem reescritos, sob pretexto algum”. Esta<br />

prerrogativa gera nos textos da IRD alguns lapsos de ortografia e gramática, como na<br />

matéria Hip Hop Lapa: Uma Visita ao Front, publicada na terceira edição <strong>do</strong> site, de onde<br />

foram extraí<strong>do</strong>s os seguintes excertos: "a grav<strong>do</strong>ra diz que não rola de de correr atrás desses<br />

direitos. (...) Um pico maneirissimo na Lapa, onde já asisti shows clássicos <strong>do</strong> Cabeça”<br />

[sic].<br />

A Irmandade Raoul Duke representa o jornalismo <strong>do</strong> lapso, da catarse, da<br />

alucinação (voluntária ou induzida), das conexões oníricas, <strong>do</strong> raciocínio ilógico, da ironia,<br />

<strong>do</strong> mergulho abissal <strong>do</strong> repórter na matéria, da contradição, da contravenção, da<br />

contraposição. Um jornalismo que anda na contra-mão, contra to<strong>do</strong>s e contra si mesmo.<br />

Anti-jornalismo, anti-literatura, anti-tu<strong>do</strong>.<br />

19


2. – Pós-Reflexões<br />

“A arte e toda a cultura contemporânea nada mais são <strong>do</strong> que a<br />

simbolização <strong>do</strong> absur<strong>do</strong> e <strong>do</strong> apocalipse final.”- Manfre<strong>do</strong> Oliveira<br />

2.1 – Sob as “luzes” da pós-modernidade<br />

Com o intuito de possibilitar a análise adequada de nosso objeto, pisemos, a partir<br />

de agora, num terreno movediço. A pós-modernidade é questão controversa nos estu<strong>do</strong>s da<br />

sociedade contemporânea. Há os que negam sua validade (HABERMAS, 1990: 151-152) e,<br />

entre os que a aceitam, não há consenso sobre suas particularidades, tampouco sobre suas<br />

questões mais fundamentais, como origem e reflexos nos campos da ciência e da cultura 14 .<br />

Ver-se-á adiante que tal controvérsia, tal multiplicidade de visões, não é senão pós-<br />

moderna, ou reflexo da própria pós-modernidade. Este cenário mostra-se encoraja<strong>do</strong>r para<br />

que entremos nesse caminho sem-volta, mas repleto de saídas.<br />

Tangen<strong>do</strong> a esfera lexical, observa-se certa alternância entre as nomenclaturas<br />

referentes à situação contemporânea: pós-modernidade, pós-modernismo e idade pós-<br />

moderna. Em contrapartida, pôde-se observar claramente um critério na utilização<br />

específica <strong>do</strong>s termos. Convém estabelecer que o termo “pós-modernidade” (OLIVEIRA,<br />

1995) pode ser ti<strong>do</strong> como equivalente a “idade pós-moderna” (LYOTARD, 2002: 3), visto<br />

que as duas expressões remetem ao fenômeno evidencia<strong>do</strong> a partir da segunda metade <strong>do</strong><br />

século XX que afetou a concepção de ciência, cultura e da sociedade em si. No que se<br />

refere ao uso da palavra “pós-modernismo” (HARVEY, 1992: 15), nota-se sua atribuição a<br />

condições específicas, como na literatura, na arquitetura, etc. Assim, o termo pós-<br />

modernismo costuma referir-se à situação de um campo determina<strong>do</strong> <strong>do</strong> conhecimento<br />

dentro <strong>do</strong> âmbito da pós-modernidade.<br />

A leitura primeira, a descoberta intuitiva, a decifração infantil da palavra pós-<br />

modernidade indica algo que vem depois da modernidade. Todavia, sem deixar de la<strong>do</strong> a<br />

14 Neste trabalho, o conceito de cultura é basicamente decorrente da teoria de Clifford Geerz, que a considera<br />

como sistemas simbólicos, ou seja, “não um complexo de comportamentos concretos, mas um conjunto de<br />

mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instruções (que os técnicos de computa<strong>do</strong>res chamam<br />

programa) para governar o comportamento” (apud LARAIA, 2000: 63).<br />

20


sabe<strong>do</strong>ria das crianças, notemos que, mais <strong>do</strong> que a questão da temporalidade, o principal<br />

fator a desvelar são as demais relações da modernidade com a pós, ou vice-versa. Que<br />

transformações provocaram o aparecimento da pós-modernidade? Ruptura ou<br />

continuidade? Antimodernidade ou supramodernidade?<br />

Seria inocência (maior ainda <strong>do</strong> que a das crianças) tratar da pós-modernidade sem<br />

perscrutar o que se convencionou chamar de modernidade. Afinal, em que consiste a<br />

modernidade? “O saber moderno é fundamentalmente marca<strong>do</strong> pela vontade da verdade”<br />

(OLIVEIRA, 1993: 81-82). Sucinto e abrangente, o cearense Manfre<strong>do</strong> Oliveira dá a deixa<br />

para a crítica <strong>do</strong> francês Jean-François Lyotard quanto aos metarrelatos, a representação<br />

materializada <strong>do</strong> pensamento moderno.<br />

Na medida em que [a ciência] não se limite a enunciar regularidades úteis e que busque o<br />

verdadeiro, deve legitimar suas regras de jogo. Assim, exerce sobre seu próprio estatuto um<br />

discurso de legitimação, chama<strong>do</strong> filosofia. Quan<strong>do</strong> este metadiscurso recorre<br />

explicitamente a algum grande relato, como a dialética <strong>do</strong> espírito, a hermenêutica <strong>do</strong><br />

senti<strong>do</strong>, a emancipação <strong>do</strong> sujeito racional ou trabalha<strong>do</strong>r, o desenvolvimento da riqueza,<br />

decide-se chamar “moderna” a ciência que a isto se refere para legitimar. (LYOTARD,<br />

2002: XV - observação minha)<br />

Desta forma, Lyotard deixa clara sua concepção acerca da intrínseca associação<br />

entre a modernidade e os grandes relatos metafísicos. Para Jean-François Lyotard, a<br />

condição pós-moderna é, portanto, a situação de incredulidade frente ao metadiscurso<br />

filosófico-metafísico e sua utopia universalizante, totalizante e atemporal.<br />

Em Condição Pós-Moderna, o norte-americano David Harvey cita a revista de<br />

arquitetura PRECIS para traçar uma contraposição entre o pós-modernismo e a<br />

modernidade. Para os editores da referida revista, o pós-moderno é visto como uma reação<br />

à visão de mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> modernismo universal, percebi<strong>do</strong> como “positivista, tecnocêntrico e<br />

racionalista”. Para eles, o modernismo pode ser caracteriza<strong>do</strong> como preconiza<strong>do</strong>r da<br />

“crença no progresso linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de ordens<br />

sociais ideais, e com a padronização <strong>do</strong> conhecimento e da produção”, enquanto o pós-<br />

moderno tende a dar ênfase a fatores como fragmentação, indeterminação e a intensa<br />

desconfiança de to<strong>do</strong>s os discursos universais ou “totalizantes” (apud HARVEY, 1992: 19).<br />

21


Para Lyotard, o conhecimento metafísico de ordem positivista, racionalista, ou<br />

“moderno”, é construí<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> que o “verdadeiro saber é sempre um saber indireto, feito<br />

de enuncia<strong>do</strong>s recolhi<strong>do</strong>s e incorpora<strong>do</strong>s ao metarrelato de um sujeito que assegura-lhe a<br />

legitimidade” (LYOTARD, 2002: 63). O grande relato teria perdi<strong>do</strong> sua credibilidade, tanto<br />

que Lyotard acaba por dizimar qualquer validade que tal relato poderia ter, ao afirmar que<br />

“o discurso denotativo que versa sobre um referente (...) não sabe na verdade o que ele<br />

acredita saber. A ciência positiva não é um saber. E a especulação nutre-se da sua<br />

supressão” (LYOTARD, 2002: 70).<br />

Ao abolir a idéia da validade <strong>do</strong>s metarrelatos, Lyotard questiona as perspectivas<br />

da produção de conhecimento inserida no âmbito da pós-modernidade: “A condição pós-<br />

moderna é, todavia, tão estranha ao desencanto como à positividade cega da<br />

deslegitimação. Após os metarrelatos, onde se poderá encontrar a legitimidade?”<br />

(LYOTARD, 2002: XVII). No entanto, Lyotard, ele mesmo, propõe uma saída baseada<br />

numa concepção fragmentária da linguagem, na qual a multiplicidade toma o lugar da<br />

unidade. “O princípio de uma metalinguagem universal é substituí<strong>do</strong> pelo da pluralidade de<br />

sistemas formais e axiomáticos capazes de argumentar enuncia<strong>do</strong>s denotativos, sen<strong>do</strong> estes<br />

sistemas descritos numa metalíngua universal [lógica] mas não consistente” (idem: 79).<br />

E foi a questão da linguagem a que mais atraiu Lyotard naquilo que ele chama de<br />

idade pós-moderna. Agora, não há (ou não existe a pretensão de que haja) uma linguagem<br />

única, universal, que explique tu<strong>do</strong> sem explicar a si mesma. O que existe, por sua vez, é<br />

uma polifonia de linguagens que desbanca a metalíngua e os metarrelatos. A nova ordem é<br />

a quebra de paradigmas cristaliza<strong>do</strong>s pelo tempo e pela razão moderna. Ao compor as peças<br />

<strong>do</strong> (incompleto) quebra-cabeça pós-moderno, Lyotard assume que a figura resultante de tais<br />

articulações desconexas permite que se enxergue com pessimismo e, ao realizar sua<br />

descrição “pessimista”, o faz de mo<strong>do</strong> niilista e catastrófico, segun<strong>do</strong> a qual, velhas<br />

instituições são superadas e substituídas por outras, incompletas, não resolutas, sem<br />

perspectivas...<br />

Novas linguagens vêm acrescentar-se às antigas (...). Pode-se acrescentar a isto as<br />

linguagens-máquinas, as matrizes de teoria <strong>do</strong>s jogos, as novas notações musicais, as<br />

notações das lógicas não denotativas (lógicas <strong>do</strong> tempo, lógicas deônticas, lógicas modais),<br />

a linguagem <strong>do</strong> código genético, os gráficos de estruturas fonológicas, etc. Pode-se retirar<br />

22


desta explosão uma impressão pessimista: ninguém fala todas essas línguas, elas não<br />

possuem uma metalíngua-universal, o projeto <strong>do</strong> sistema-sujeito é um fracasso, o da<br />

emancipação nada tem a ver com a ciência, está se mergulha<strong>do</strong> no positivismo de tal ou qual<br />

conhecimento particular, os sábios tornaram-se cientistas, as reduzidas tarefas de pesquisa<br />

tornaram-se tarefas fragmentárias que ninguém <strong>do</strong>mina; e, <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong>, a filosofia<br />

especulativa ou humanista nada mais tem a fazer senão romper com suas funções de<br />

legitimação. (LYOTARD, 2002: 73-74)<br />

Convém admitir, entretanto, que o panorama pós-moderno feito por Lyotard e,<br />

conseqüentemente, sua relação com a modernidade, embora preciso, carece de<br />

des<strong>do</strong>bramentos. Como toda obra seminal, A Condição Pós-Moderna fornece-nos bases<br />

para uma reflexão mais aprofundada, mas não a executa. Isto posto, cabe lançar alguma luz<br />

(não Luzes) na discussão acerca da passagem da modernidade para a pós-modernidade.<br />

Tal como afirmou Baudelaire no artigo O pintor da vida moderna, publica<strong>do</strong><br />

originalmente em 1863, a modernidade é composta de duas “metades”: uma comporta o<br />

“transitório, o fugidio, o contingente” e a outra “o eterno e o imutável” (BAUDELAIRE,<br />

1993: 21). Para David Harvey, a definição baudelairiana de modernidade tece o pano de<br />

fun<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> qual ele irá fazer a passagem à pós-modernidade. Tal passagem não é<br />

brusca e também não pressupõe uma ruptura com to<strong>do</strong>s os conceitos da modernidade.<br />

Começo com o que parece ser o fato mais espantoso sobre o pós-modernismo: sua total<br />

aceitação <strong>do</strong> efêmero, <strong>do</strong> fragmentário, <strong>do</strong> descontínuo e <strong>do</strong> caótico que formavam uma<br />

metade <strong>do</strong> conceito baudelairiano de modernidade. Mas o pós-modernismo responde a isso<br />

de uma maneira bem particular; ele não tenta transcendê-lo, opor-se a ele e sequer definir os<br />

elementos “eternos e imutáveis” que poderiam estar conti<strong>do</strong>s nele. O pós-modernismo nada,<br />

e até se espoja, nas fragmentárias e caóticas correntes da mudança, como se isso fosse tu<strong>do</strong><br />

o que existisse (HARVEY, 1992: 49).<br />

O pós-modernismo apega-se a uma “metade” da modernidade, enquanto aceita a<br />

impossibilidade de conceber a verdadeira dimensão da outra metade. Assume-se que o caos<br />

da vida contemporânea não pode ser compreendi<strong>do</strong> por uma linha de pensamento racional,<br />

pois aquela não obedece a leis estáveis, estanques. De certa forma, Fredric Jameson<br />

compactua com a visão de Harvey ao dizer que o moderno apenas mu<strong>do</strong>u de nome por não<br />

conseguir absorver a si mesmo.<br />

23


O “moderno” deve ser agora rebatiza<strong>do</strong> de pós-moderno (uma vez que aquilo que<br />

chamamos de moderno é conseqüência de uma modernização incompleta e deve,<br />

necessariamente, se definir em oposição a uma residualidade não-moderna que não mais se<br />

encontra na pós-modernidade enquanto tal – ou melhor, cuja ausência define esta última).<br />

(JAMESON, 1997: 34)<br />

Acrescentan<strong>do</strong> à trama um ingrediente apocalíptico, Manfre<strong>do</strong> Oliveira encara<br />

essa “passagem” como fruto da crise da modernidade, calcada nos moldes da razão, que se<br />

mostrou ineficaz e incapaz de concretizar o ideal civilizatório. Para o autor, tal<br />

incapacidade tem como conseqüências a recusa ontológica, o cinismo, a <strong>do</strong>minação e a<br />

auto-destruição.<br />

A palavra absur<strong>do</strong>, em nossa situação epocal, aponta para uma suspeita de perda de senti<strong>do</strong><br />

para a vida humana: a suspeita de que a pretensão originária que marca nosso processo<br />

civilizatório desde suas origens a uma civilização da razão mostra-se hoje uma ilusão, ou<br />

seja, nossa razão parece emergir como racionalidade perversa, <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>ra. A racionalidade<br />

ter-se-ia torna<strong>do</strong> cínica, pois por trás da máscara <strong>do</strong> esclarecimento e da liberdade, na<br />

verdade, o que caracteriza nossa epocalidade é a experiência de perda de senti<strong>do</strong> da vida,<br />

através da institucionalização e da concretização de uma razão que é antes desrazão<br />

perversa, instrumental, não só <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> a natureza e os homens, mas ameaçan<strong>do</strong> a própria<br />

vida humana.(OLIVEIRA, 1993: 68)<br />

A própria discussão sobre a pós-modernidade já tem, por si só, algumas<br />

características pós-modernas. Embora seus diversos conceitos não sejam, em sua totalidade,<br />

coerentes entre si, note-se que por sua natureza intrínseca, eles não são excludentes. A<br />

multiplicidade polifônica (embora soe tautológica) de definições acabou por pintar o<br />

cenário perfeito de uma condição que se diz pós-moderna. A pós-modernidade é como uma<br />

espiral: indica um movimento circular mas nunca se fecha...<br />

24


2.2 Internet, a Mídia <strong>Gonzo</strong><br />

“A página não pôde ser exibida”. Ruí<strong>do</strong>s de comunicação ecoam por entre os<br />

suspensos jardins da cibionta 15 . Alto fluxo de da<strong>do</strong>s, baixo índice de absorção e o mun<strong>do</strong><br />

tornan<strong>do</strong>-se cada vez maior enquanto recrudescemos paulatinamente à gênese:<br />

intermináveis seqüências de 0 e 1...<br />

A rapsódia pós-moderna canta sua diversidade em versos livres enquanto<br />

samplers e colagens conduzem um acompanhamento monocórdico, repetitivo e metaliza<strong>do</strong>.<br />

A letra da canção não diz nada ao dizer tu<strong>do</strong>, diz a to<strong>do</strong>s o que diz respeito a ninguém.<br />

Contu<strong>do</strong>, a estória anuncia um final feliz e a pós-modernidade encontra o seu par em meio<br />

ao caos. Ciberespaço é o seu nome. À noite traveste-se de Cibionta, mas você pode chamá-<br />

lo <strong>do</strong> que quiser...<br />

A pós-modernidade e o ciberespaço andam mesmo la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>? Ou estão<br />

dispostos numa frágil e coerente imbricação, como as telhas num telha<strong>do</strong> de vidro? “O<br />

cenário pós-moderno é essencialmente cibernético-informático e informacional”<br />

(LYOTARD, 2002: VIII). Destarte, para Jean-François Lyotard, o ciberespaço configura-se<br />

como a reificação <strong>do</strong>s melindres pós-modernos, sen<strong>do</strong> aquele uma síntese <strong>do</strong>s atributos<br />

desses.<br />

Mas o que é o ciberespaço? Este pode ser defini<strong>do</strong> como o “espaço de<br />

comunicação [ou meio de comunicação] aberto pela interconexão mundial <strong>do</strong>s<br />

computa<strong>do</strong>res e das memórias <strong>do</strong>s computa<strong>do</strong>res” (LÉVY, 2001: 92). Essa definição<br />

compreende, portanto, to<strong>do</strong> o conjunto de sistemas de comunicação eletrônicos que<br />

transmitem, codificam e/ou decodificam informações provenientes de fontes digitais ou<br />

destinadas ao processo de digitalização. A Internet, sen<strong>do</strong> a interconexão mundial <strong>do</strong>s<br />

computa<strong>do</strong>res, não constitui um sinônimo de ciberespaço, mas sua mais abrangente<br />

ramificação. Para Afonso da Silva Junior, o “ciberespaço (...) não se resume à Internet.<br />

Neste senti<strong>do</strong>, podemos afirmar que a rede mundial corresponde a uma parte constituinte <strong>do</strong><br />

ciberespaço” (in LEMOS & PALACIOS, 2001: 127). Pierre Lévy amplia ainda mais o raio<br />

de abrangência de sua definição ao afirmar que o termo ciberespaço “especifica não apenas<br />

a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de<br />

15 Ciberespaço.<br />

25


informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse<br />

universo” (LÉVY, 2001: 17). Vez por outra, no entanto, salientamos que os conceitos de<br />

ciberespaço e Internet parecerão interseciona<strong>do</strong>s, já que a última está inserida no primeiro,<br />

o que faz com que os <strong>do</strong>is possuam atributos semelhantes quan<strong>do</strong> analisa<strong>do</strong>s sob<br />

determina<strong>do</strong>s aspectos.<br />

Não esqueçamos, entretanto, que nosso objeto de estu<strong>do</strong> inicial, a Irmandade<br />

Raoul Duke, está conti<strong>do</strong> na Internet e, por conseguinte, no ciberespaço. Faz-se então<br />

necessário navegar pelos nós da cibionta em busca da compreensão deste cenário, de suas<br />

transformações estruturais e de suas implicações nas formas de produção de senti<strong>do</strong> e<br />

relações sócio-culturais. O autor Pierre Lévy relata – mesclan<strong>do</strong> denotação e metáfora – um<br />

breve panorama <strong>do</strong> que foi propicia<strong>do</strong> pela expansão das telecomunicações, cuja<br />

protagonista é a Internet, utilizan<strong>do</strong> a mesma analogia concebida pelo teórico Roy Ascott,<br />

que a comparou a um “segun<strong>do</strong> dilúvio”:<br />

As telecomunicações geram esse novo dilúvio por conta da natureza exponencial, explosiva<br />

e caótica de seu crescimento. A quantidade bruta de da<strong>do</strong>s disponíveis se multiplica e se<br />

acelera. A densidade <strong>do</strong>s links entre as informações aumenta vertiginosamente nos bancos<br />

de da<strong>do</strong>s, nos hipertextos e nas redes. Os contatos transversais entre os indivíduos<br />

proliferam de forma anárquica. É o transbordamento caótico das informações, a inundação<br />

de da<strong>do</strong>s, as águas tumultuosas e os turbilhões da comunicação, a cacofonia e o psitacismo<br />

ensurdece<strong>do</strong>r das mídias, a guerra das imagens, as propagandas e as contra-propagandas, a<br />

confusão <strong>do</strong>s espíritos (idem: 13).<br />

Como alternativa para evitar a submersão pelas torrentes <strong>do</strong> dilúvio<br />

informacional, Lévy inspira-se na figura bíblica de Noé, que protagonizou uma seleção<br />

daquilo que deveria ou não ser salvo segun<strong>do</strong> orientação (ou determinação) divina, e<br />

contraria-a, para propor-nos uma imensa regata, onde não há somente um suporte para<br />

permanecer à tona, mas sim diversas embarcações, cada uma carregan<strong>do</strong> pequenos mun<strong>do</strong>s<br />

a serem reconstruí<strong>do</strong>s.<br />

Devemos substituir a imagem da grande arca pela de uma frota de pequenas arcas, barcas ou<br />

sampanas, uma miríade de pequenas totalidades, diferentes, abertas e provisórias, secretadas<br />

por filtragem ativa, perpetuamente reconstruídas pelos coletivos inteligentes que se cruzam,<br />

26


se interpelam, se chocam ou se misturam sobre as grandes águas <strong>do</strong> dilúvio informacional<br />

(LÉVY, 2001: 161).<br />

Esse mosaico de totalidades interconectadas (e ao mesmo tempo desconexas) gera<br />

um efeito de saturação, uma over<strong>do</strong>se de mensagens, que resultam no para<strong>do</strong>xo: a<br />

informação gera desinformação. Para Leão Serva, esse conjunto de informações “provoca<br />

uma espécie de paroxismo da desinformação-informada e da deformação, no qual milhares<br />

de informações diariamente se sobrepõem umas às outras no suporte da comunicação, no<br />

meio em si e também ou mais gravemente na mente <strong>do</strong> receptor, em sua compreensão de<br />

mun<strong>do</strong>” (SERVA, 2001: 76). Pierre Lévy também constata essa evidência ao ressaltar que<br />

“o saber, destotaliza<strong>do</strong>, flutua. De onde resulta um sentimento violento de desorientação”<br />

(LÉVY, 2001: 166). Para ele, a causa da “desordem” é a interconexão em tempo real de<br />

to<strong>do</strong>s com to<strong>do</strong>s. Nessa “orgia” virtual, a troca de flui<strong>do</strong>s é constante e o entrelaçar de<br />

corpos é tão simbiótico, que não se sabe onde um começa e o outro termina.<br />

[A Internet] Trata-se de um novo tipo de organização sociotécnica que facilita a mobilidade<br />

no e <strong>do</strong> conhecimento, as trocas de saberes, a construção coletiva <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, em que a<br />

identidade sofre uma expansão <strong>do</strong> eu baseada na diluição da corporeidade, ou seja, o que se<br />

perde em corpo ganha-se em rapidez e capacidade de disseminar o eu no espaço-tempo.<br />

Assiste-se, assim, a uma aceleração <strong>do</strong> metabolismo social (Lídia Oliveira Silva in LEMOS<br />

& PALACIOS, 2001: 152- observação minha).<br />

E um <strong>do</strong>s principais fenômenos observa<strong>do</strong>s nessa nova concepção de sociedade é<br />

decerto sua velocidade de transformação. A <strong>realidade</strong> calei<strong>do</strong>scópica <strong>do</strong> ciberespaço é<br />

amorfa, fluida, mutante. A cada vez que se olha para ela, não se vê a mesma coisa, não se<br />

reconhece o objeto anterior. O ciberespaço é desprovi<strong>do</strong> de qualquer essência estável, de<br />

mo<strong>do</strong> que a velocidade de transformação configura-se como o único elemento constante de<br />

sua natureza, o que constitui um intrigante para<strong>do</strong>xo (LÉVY, 2001: 27).<br />

Mais que isso, a configuração <strong>do</strong> ciberespaço implica também numa aceleração <strong>do</strong><br />

ritmo da alteração tecno-social, fazen<strong>do</strong> com que a inclusão neste movimento torne-se<br />

“necessária”, caso contrário, a exclusão ocorreria de maneira ainda mais radical naqueles<br />

que não entraram no ciclo “positivo” da alteração, de sua compreensão e apropriação.<br />

27


A aceleração é tão forte e tão generalizada que até mesmo os mais “liga<strong>do</strong>s” encontram-se,<br />

em graus diversos, ultrapassa<strong>do</strong>s pela mudança, já que ninguém pode participar ativamente<br />

da criação das transformações <strong>do</strong> conjunto de especialidades técnicas, nem mesmo seguir<br />

essas transformações de perto (LÉVY, 2001: 28).<br />

Mais uma contradição: o próprio ciberespaço é encara<strong>do</strong> como o “salva<strong>do</strong>r” <strong>do</strong><br />

processo de exclusão tecno-científica, devi<strong>do</strong> a seu aspecto participativo, socializante,<br />

descompartimentalizante e emancipa<strong>do</strong>r, constituin<strong>do</strong> “um <strong>do</strong>s melhores remédios para o<br />

ritmo desestabilizante, por vezes excludente, da mutação técnica” (idem: 30). Esta última,<br />

inclusive, ocorrida em grande parte devi<strong>do</strong> ao ciberespaço ou, ao menos, parte integrante <strong>do</strong><br />

mesmo processo.<br />

Surge então a pergunta: Por que a Irmandade Raoul Duke, como produto cultural<br />

em si, não se “materializou” (virtualizou) em outro meio de comunicação que não a<br />

Internet? Por se tratar de uma produção na qual o componente textual é o principal meio de<br />

expressão, seria natural predizer que o suporte impresso configuraria a melhor gama de<br />

alternativas possíveis. A opção mais lógica seria pensar no formato revista. Entretanto, a<br />

escolha desse meio representaria problemas para a equipe editorial: a a<strong>do</strong>ção de um suporte<br />

tradicional, que não condiz com a proposta <strong>do</strong> gonzo-jornalismo, e que, além disso,<br />

pressupõe um determina<strong>do</strong> investimento financeiro para a absorção <strong>do</strong>s custos de produção,<br />

o que inevitavelmente, abriria espaço para a incorporação de alternativas comerciais para a<br />

manutenção da revista, como busca de patrocina<strong>do</strong>res e divulgação propagandística,<br />

desvirtuan<strong>do</strong> sua condição de veículo contracultural.<br />

Por sua vez, o meio impresso que mais se aproxima da estética gonzo é o fanzine.<br />

Produto artesanal, feito a partir de colagens e superposições caóticas de textos e figuras, e<br />

reproduzi<strong>do</strong> por meio de fotocopia<strong>do</strong>ras, o fanzine é um mo<strong>do</strong> de publicação com baixo<br />

custo e caráter ideológico condizente com expressões da contracultura como o <strong>Jornalismo</strong><br />

<strong>Gonzo</strong>. No entanto, a Irmandade Raoul Duke é formada por repórteres e colabora<strong>do</strong>res<br />

localiza<strong>do</strong>s em diversas cidades <strong>do</strong> País, o que no mínimo dificultaria a transposição <strong>do</strong>s<br />

textos para uma publicação desse tipo.<br />

E como quebrar essas barreiras espaciais de um mo<strong>do</strong> economicamente viável? O<br />

ciberespaço encoraja um estilo de relacionamento quase independente <strong>do</strong>s lugares<br />

geográficos – com o uso de telecomunicação, telepresença – e da coincidência <strong>do</strong>s tempos<br />

28


– por meio de comunicação assíncrona (LÉVY, 2001: 49). Por sua vez, a Internet reúne<br />

atributos que a caracterizam como o ambiente ideal para o florescimento de formas<br />

alternativas de comunicação que integrem pessoas apesar <strong>do</strong>s empecilhos naturais como<br />

distância e incompatibilidade de horários, por exemplo. Nas palavras de Pierre Lévy:<br />

Apenas as particularidades técnicas <strong>do</strong> ciberespaço permitem que os membros de um grupo<br />

humano (...) se coordenem, cooperem, alimentem e consultem uma memória comum, e isto<br />

quase em tempo real, apesar da distribuição geográfica e da diferença de horários. (...) Com<br />

a ajuda das ferramentas da cibercultura, tornam-se cada vez menos dependentes de lugares<br />

determina<strong>do</strong>s, de horários de trabalho fixos e de planejamentos a longo prazo (LÉVY, 2001:<br />

49).<br />

Portanto, “torna-se possível, então, que comunidades dispersas possam<br />

comunicar-se por meio <strong>do</strong> compartilhamento de uma telememória na qual cada membro lê<br />

e escreve, qualquer que seja sua posição” (idem: 94). Destarte, mesmo geograficamente<br />

separa<strong>do</strong>s, os integrantes da Irmandade Raoul Duke podem sugerir e discutir pautas, trocar<br />

informações, traçar diretrizes, estipular prazos (deadline) e, principalmente, enviar e<br />

publicar seus textos. É nesse aspecto que é ressaltada outra peculiaridade da Internet: o fato<br />

de que “a informação digitalizada pode ser processada automaticamente, com um grau de<br />

precisão quase absoluto, muito rapidamente e em grande escala quantitativa” (idem: 52). E,<br />

por trás dessa rapidez e facilidade de manipulação, está o fato de que as informações<br />

digitais estão codificadas como números, mais especificamente, matrizes em seqüências de<br />

0 e 1. “Os números estão sujeitos a cálculos, e computa<strong>do</strong>res calculam rápi<strong>do</strong>” (idem: 53).<br />

O binômio 0 e 1 é o suporte de toda a gama informacional <strong>do</strong> ciberespaço. Os<br />

velhos conhecimentos só poderão ser aproveita<strong>do</strong>s se puderem ser converti<strong>do</strong>s para esse<br />

“alfabeto” reduzi<strong>do</strong>, já que “o suporte digital (disquete, disco rígi<strong>do</strong>, disco ótico) não<br />

contém um texto legível por humanos mas uma série de códigos informáticos que serão<br />

eventualmente traduzi<strong>do</strong>s por um computa<strong>do</strong>r em sinais alfabéticos para um dispositivo de<br />

apresentação” (LÉVY, 1996: 39). Para Jean-François Lyotard só será considera<strong>do</strong><br />

“conhecimento científico” aquele conjunto de informações que puder ser traduzi<strong>do</strong> para a<br />

linguagem utilizada pelas máquinas informáticas, que “enxergam” textos, sons e imagens<br />

como bits de informação.<br />

29


É razoável pensar que a multiplicação das máquinas informacionais afeta e afetará a<br />

circulação <strong>do</strong>s conhecimentos. (...) Nessa transformação geral, a natureza <strong>do</strong> saber não<br />

permanece intacta. Ele não pode se submeter aos novos canais, e tornar-se operacional, a<br />

não ser que o conhecimento possa ser traduzi<strong>do</strong> em quantidades de informação. Pode-se<br />

então prever que tu<strong>do</strong> o que no saber constituí<strong>do</strong> não é traduzível será aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, e que a<br />

orientação das novas pesquisas se subordinará à condição de tradutibilidade <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s<br />

eventuais em linguagem de máquina (LYOTARD, 2002: 4).<br />

A natureza insólita da informação digitalizada (ou digitalizável) direciona-nos à<br />

análise de outro aspecto de sua constituição: a virtualidade. A informação, no esta<strong>do</strong> puro,<br />

perdeu suas propriedades físicas, palpáveis, palatáveis e passou a ser um avatar, que existe<br />

num “outro plano”, mas que só demonstra seus “poderes” quan<strong>do</strong> é devidamente invoca<strong>do</strong>.<br />

É certo, no entanto, que no centro das redes digitais, a informação situa-se fisicamente<br />

armazenada em um suporte, mas ela também está “virtualmente presente, ao mesmo tempo,<br />

em cada ponto da rede onde seja pedida” (LÉVY, 2001: 48). E aí está o caráter virtual da<br />

informação: estar em determina<strong>do</strong> lugar, poder estar em qualquer lugar e não estar<br />

realmente em lugar nenhum, pois, “é virtual toda entidade desterritorializada, capaz de<br />

gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determina<strong>do</strong>s, sem<br />

contu<strong>do</strong> estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular” (idem: 47). Não há<br />

dúvidas de que as transformações provocadas pelo advento e universalização <strong>do</strong><br />

ciberespaço são co-responsáveis pela aura de virtualidade agregada à informação:<br />

Ubiqüidade da informação, <strong>do</strong>cumentos interativos interconecta<strong>do</strong>s, telecomunicação<br />

recíproca e assíncrona em grupo e entre grupos: as características virtualizante e<br />

desterritorializante <strong>do</strong> ciberespaço fazem dele o vetor de um universo aberto.<br />

Simetricamente, a extensão de um novo espaço universal dilata o campo de ação <strong>do</strong>s<br />

processos de virtualização (idem: 49-50).<br />

E o texto, qual o seu papel nesse jogo de (re)interpretação? O texto linear e<br />

concatena<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anacrônicos alfarrábios empoeira<strong>do</strong>s; o texto literalmente manuseável; o<br />

texto da velha retórica; o texto sobre o papel... Aqui reside uma importante questão de<br />

atemporalidade: o texto, desde os primórdios da civilização da linguagem, já era e sempre<br />

30


foi uma entidade virtual, no senti<strong>do</strong> de que ele existe no inconsciente coletivo<br />

independentemente de sua evocação e “materializa-se” no ato de fala, nos jogos de<br />

linguagem e na escrita. O texto é, por si só, “um objeto virtual, abstrato, independente de<br />

um suporte específico” (LÉVY, 1996: 35). A problemática atual (recente) a respeito <strong>do</strong><br />

texto é que ele recebeu um prefixo que lhe transfigurou em forma e essência. Com a<br />

interconexão <strong>do</strong>s discursos possibilitada pelo processo de navegação através <strong>do</strong><br />

ciberespaço, o texto evoluiu, sofreu uma mutação, e transformou-se em hipertexto. Não por<br />

isso o “velho texto” tenha deixa<strong>do</strong> de existir. Ele ainda persiste, é a célula-mãe, um mero<br />

fragmento de um universo incomensurável de jogos de linguagem.<br />

Para cada uma das grandes modalidades <strong>do</strong> signo, texto alfabético, música ou imagem, a<br />

cibercultura faz emergir uma nova forma e maneira de agir. O texto <strong>do</strong>bra-se, re<strong>do</strong>bra-se,<br />

divide-se e volta a colar-se pelas pontas e fragmentos: transmuta-se em hipertexto, e os<br />

hipertextos conectam-se para formar o plano hipertextual indefinidamente aberto e móvel da<br />

Web (LÉVY, 2001: 149).<br />

“Um hipertexto é uma matriz de textos potenciais, sen<strong>do</strong> que alguns deles vão se<br />

realizar sob o efeito da interação com um usuário” (LÉVY, 1996: 40). A modalidade de<br />

texto como sen<strong>do</strong> o elemento-matriz de um hipertexto, que vai sen<strong>do</strong> construí<strong>do</strong> à medida<br />

que o leitor (internauta) o percorre, provocou um choque no conceito de autoria. Para Pierre<br />

Lévy, o navega<strong>do</strong>r participa da redação (ou pelo menos da edição) <strong>do</strong> texto que ele “lê”,<br />

uma vez que determina sua organização final.<br />

Se definirmos um hipertexto como um espaço de percurso para leituras possíveis, um texto<br />

aparece como uma leitura particular de um hipertexto. O navega<strong>do</strong>r participa, portanto, da<br />

redação <strong>do</strong> texto que lê. Tu<strong>do</strong> se dá como se o autor de um hipertexto constituísse uma<br />

matriz de textos potenciais, o papel <strong>do</strong>s navegantes sen<strong>do</strong> o de realizar alguns desses textos<br />

colocan<strong>do</strong> em jogo, cada qual à sua maneira, a combinatória entre os nós. O hipertexto<br />

opera a virtualização <strong>do</strong> texto (LÉVY, 2001: 57).<br />

Notemos, entretanto, que esse processo autoral é, no mínimo, relativo. É<br />

necessário perceber que essa construção dá-se num âmbito abstrato. O que ocorre<br />

efetivamente é a montagem, a estruturação <strong>do</strong> texto, a atualização (oposto de virtualização)<br />

31


de um hipertexto, como se fosse monta<strong>do</strong> um quebra-cabeça com um número infinito de<br />

soluções. No entanto, essa autoria pode ser legitimada conceitualmente de mo<strong>do</strong> mais pleno<br />

à medida em que o navega<strong>do</strong>r <strong>do</strong> ciberespaço passa a participar da estruturação <strong>do</strong><br />

hipertexto e não apenas percorre uma rede preestabelecida, fazen<strong>do</strong>-se desta forma, “autor<br />

de maneira mais profunda” (LÉVY, 1996: 45).<br />

2.2.1 – Autoria: um entretexto<br />

Desafian<strong>do</strong> a vertigem que nos desnorteia o labirinto, sigamos em queda livre<br />

rumo a uma outra esfera de pensamento. Se antes voávamos na altitude da exosfera da<br />

abstração, agora empreendemos um vôo rasante sobre o trivial, o corriqueiro, o pueril. Para<br />

tentar materializar ao máximo o pensamento <strong>do</strong> teórico Pierre Lévy, recorramos às<br />

recônditas alcovas da memória e de lá tiremos a lembrança <strong>do</strong> clássico quebra-cabeça<br />

Lego©, jogo forma<strong>do</strong> por peças encaixáveis, que possibilita a “criação” de cidades,<br />

pessoas, carros, aviões, casas... enfim, pequenos mun<strong>do</strong>s. Embora em algumas de suas<br />

modalidades sejam sugeridas montagens específicas, como uma casa holandesa, um pato ou<br />

avião, há no Lego uma certa liberdade de criação. Dentro de suas limitações, as peças estão<br />

“disponíveis” para que o brincante elabore as formas que sua imaginação permitir. Tal<br />

como no ciberespaço, as peças <strong>do</strong> Lego “estão lá” para serem ordenadas e montadas ao<br />

livre arbítrio <strong>do</strong> usuário. Tu, leitor, dirias a uma criança que o cachorrinho (que mais parece<br />

o grito da Floresta Amazônica retrata<strong>do</strong> pela arte abstrata) construí<strong>do</strong> por ela não é de sua<br />

autoria? Dirias tu que o “cachorrinho” não é dela? Dirias tu, ao menos, que o “cachorrinho”<br />

não é um cachorrinho?<br />

As peças <strong>do</strong> Lego são pré-fabricadas, ou seja, existem a despeito da interação com<br />

o sujeito brincante. Mas as formas, as relações entre cada peça individualmente e a maneira<br />

pela qual uma se encaixa à outra, são uma criação particular, única, singular... o que<br />

constitui, portanto, um processo autoral. O mesmo ocorre com a Internet: o conteú<strong>do</strong> “está<br />

lá”, mas à medida em que se acrescentam novos nós aos preexistentes e constrói-se uma<br />

estrutura hipertextual repleta de atalhos que ligam <strong>do</strong>cumentos, imagens, sons entre si,<br />

estamos diante de uma obra criacional, e, portanto, um novo texto. Para Lévy, portanto, o<br />

trabalho da leitura é rasgar, amarrotar, torcer, re-costurar um texto, a partir de uma<br />

32


linearidade ou platitude inicial, para abrir um meio vivo no qual possa se des<strong>do</strong>brar o<br />

senti<strong>do</strong>. Este, portanto, não preexiste à leitura, e por isso é necessário percorrê-lo,<br />

cartografá-lo, para que o fabriquemos, o atualizemos.<br />

Mas enquanto o <strong>do</strong>bramos sobre si mesmo, produzin<strong>do</strong> assim sua relação consigo próprio,<br />

sua vida autônoma, sua aura semântica, relacionamos também o texto a outros textos, a<br />

outros discursos, a imagens, a afetos, a toda a imensa reserva flutuante de desejos e de<br />

signos que nos constitui. Aqui, não é mais a unidade <strong>do</strong> texto que está em jogo, mas a<br />

construção de si, construção sempre a refazer, inacabada. Não é mais o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> texto que<br />

nos ocupa, mas a direção e a elaboração <strong>do</strong> nosso pensamento, a precisão de nossa imagem<br />

no mun<strong>do</strong>, a culminação de nossos projetos, o despertar de nossos prazeres, o fio de nossos<br />

sonhos (LÉVY, 1996: 36).<br />

Desta forma, a partir <strong>do</strong> hipertexto, “toda leitura tornou-se um ato de escrita”<br />

(idem: 46). Imerso no emaranhar de teias <strong>do</strong> ciberespaço, o texto assume a condição<br />

metonímica de pedaço, estilhaço de um to<strong>do</strong> incomensurável. É a interface que coloca<br />

nossos senti<strong>do</strong>s em contato com um universo <strong>do</strong> qual o texto não é mais <strong>do</strong> que uma mera<br />

partícula, restrito ao seu papel de interconectar-se com outros textos, desprezan<strong>do</strong> a idéia de<br />

totalidade em si mesmo. Em suma, seja qual for o texto, e em qual con-texto apresenta-se<br />

ou oculta-se, ele é senão “o fragmento talvez ignora<strong>do</strong> <strong>do</strong> hipertexto móvel que o envolve,<br />

o conecta a outros textos e serve como media<strong>do</strong>r ou meio para uma comunicação recíproca,<br />

interativa, interrompida” (LÉVY, 2001: 118). No entanto, a fronteira da autoria de um texto<br />

é por demais tênue, fugidia. Não existe mais como conceber um texto discernível e<br />

individualizável, “mas apenas texto, assim como não há uma água e uma areia, mas apenas<br />

água e areia” (LÉVY, 1996: 48). O texto passa agora para a categoria <strong>do</strong>s substantivos<br />

incontáveis...<br />

Ainda sobre a questão da autoria, Lévy brinca com o conceito de hipertexto,<br />

desvinculan<strong>do</strong>-o da obrigatoriedade de imbricação com a questão <strong>do</strong> ciberespaço e coloca-o<br />

numa esfera transcendente, quiçá divina, ao remeter-se à Bíblia, como o “experimento”<br />

pioneiro, desbrava<strong>do</strong>r, o bandeirante da floresta <strong>do</strong> hipertexto:<br />

A Bíblia é um outro caso exemplar de uma obra maior <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> espiritual e poético da<br />

humanidade, à qual, no entanto, não podemos atribuir um autor. Precursor <strong>do</strong> hipertexto, sua<br />

33


constituição resulta de uma seleção (de um sampling!) e de um amálgama tardio de um<br />

grande número de textos de gêneros heterogêneos redigi<strong>do</strong>s em diversas épocas” (LÉVY,<br />

2001: 152).<br />

2.2.2 – Ciberespaço: considerações essenciais<br />

Considere-se a digressão <strong>do</strong> entretexto apenas como o toque arremeti<strong>do</strong> das<br />

aeronaves que, na impossibilidade de realizar uma aterrissagem segura, retomam o vôo<br />

imediatamente após o toque no solo. Flutuemos novamente no plano da abstração e saiamos<br />

<strong>do</strong> refúgio da trivial materialização. Seguin<strong>do</strong> o caminho de volta, chegaremos na<br />

derradeira e essencial contradição <strong>do</strong> ciberespaço: o universal sem totalidade. Com o intuito<br />

de abarcar esta concepção de mo<strong>do</strong> adequa<strong>do</strong> e historiciza<strong>do</strong>, retrocedamos um pouco em<br />

direção ao momento “pré-ciberespacial”, de mensagens escritas e estáticas. Um texto<br />

escrito no século XIV ou uma mensagem escrita e enviada por alguém na Polinésia<br />

Francesa, invariavelmente, vêm carrega<strong>do</strong>s de significações inerentes ao contexto no qual<br />

foram produzi<strong>do</strong>s. Para suprir tais “ruí<strong>do</strong>s de comunicação”, foram concebidas mensagens<br />

com o intuito de preservarem o mesmo senti<strong>do</strong> pretendi<strong>do</strong> pelo autor independentemente <strong>do</strong><br />

contexto <strong>do</strong> destinatário. A estas mensagens é da<strong>do</strong> o atributo de “universais”, dentre as<br />

quais se incluem as religiões <strong>do</strong> livro (cristianismo, islamismo, judaísmo etc.), a ciência e<br />

os direitos <strong>do</strong> homem, por exemplo. Entretanto, tal universalidade só pode ser construída “à<br />

custa de uma certa redução ou fixação <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>” (LÉVY, 2001: 15), configuran<strong>do</strong> um<br />

“universal totalizante”. Portanto, “a existência de uma verdade universal, objetiva e crítica<br />

só pôde se impor numa ecologia cognitiva largamente estruturada pela escrita, ou, mais<br />

exatamente, pela escrita sobre suporte estático” (LÉVY, 1996: 38).<br />

Com o advento <strong>do</strong>s novos suportes tecnológicos de codificação e transmissão de<br />

informações, logrou-se um processo de superação <strong>do</strong> modelo anterior, pelo menos num<br />

universo determina<strong>do</strong>, que é o <strong>do</strong> ciberespaço. Instituiu-se uma “nova universalidade”, que<br />

renega a auto-suficiência <strong>do</strong>s textos e a fixação e independência das significações, sen<strong>do</strong>, a<br />

partir de então, construída e ampliada pela interconexão das mensagens, por meio de uma<br />

atribuição de senti<strong>do</strong>s vários, o que lhes coloca numa renovação permanente.<br />

34


Pois o texto contemporâneo, alimentan<strong>do</strong> correspondências on line e conferências<br />

eletrônicas, corren<strong>do</strong> em redes, flui<strong>do</strong>, desterritorializa<strong>do</strong>, mergulha<strong>do</strong> no meio oceânico <strong>do</strong><br />

ciberespaço, esse texto dinâmico reconstitui, mas de outro mo<strong>do</strong> e numa escala<br />

infinitamente superior, a co-presença da mensagem e se seu contexto vivo que caracteriza a<br />

comunicação oral (LÉVY, 1996: 39).<br />

Em suma, a universalidade ciberespacial não está alicerçada sobre as fundações da<br />

palavra, sobre as construções <strong>do</strong> discurso. Antes, tal universalidade é proporcional ao<br />

movimento empreendi<strong>do</strong> por determinada mensagem através <strong>do</strong>s labirintos da informação.<br />

O universal não mais utiliza o artifício <strong>do</strong> fechamento semântico para efetuar seu ritual<br />

totalizante. “Esse universal não totaliza mais pelo senti<strong>do</strong>, ele conecta pelo contato, pela<br />

interação geral” (LÉVY, 2001: 119).<br />

Essa impossibilidade de totalização gera o para<strong>do</strong>xo essencial da cibercultura:<br />

quanto mais universal (interconecta<strong>do</strong>, extenso, interativo), o ciberespaço torna-se menos<br />

totalizável, ou seja, cada vez menos suscetível de assimilação por meio <strong>do</strong> fechamento<br />

semântico, da unidade da razão. O ciberespaço realizou a façanha, portanto, de conseguir<br />

separar a universalidade e a totalização, que antes pareciam indissociáveis. “O principal<br />

evento cultural anuncia<strong>do</strong> pela emergência <strong>do</strong> ciberespaço é a desconexão desses <strong>do</strong>is<br />

opera<strong>do</strong>res sociais ou máquinas abstratas (muito mais <strong>do</strong> que conceitos!) que são a<br />

universalidade e a totalização” (idem: 118). O ciberespaço, como o cerne ideal para o<br />

florescimento de para<strong>do</strong>xos e antinomias, tende a tornar-se ainda mais universal,<br />

convergin<strong>do</strong> para si uma gama tão diversa de conceitos e informações, que será impossível<br />

traçar uma linha reta entre eles.<br />

Quanto mais o ciberespaço se amplia, mais ele se torna “universal”, e menos o mun<strong>do</strong><br />

informacional se torna totalizável. O universal da cibercultura não possui nem centro nem<br />

linha diretriz. É vazio, sem conteú<strong>do</strong> particular. Ou antes, ele os aceita to<strong>do</strong>s, pois se<br />

contenta em colocar em contato um ponto qualquer com qualquer outro, seja qual for a<br />

carga semântica das entidades relacionadas (idem: 111).<br />

O “sistema <strong>do</strong> caos”. É assim que Pierre Lévy passa a chamar o ciberespaço, esse<br />

meio de comunicação virtual, surreal, que se configura como a “encarnação máxima da<br />

transparência técnica”, acolhen<strong>do</strong> todas as opacidades <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, devi<strong>do</strong> a seu crescimento<br />

35


inconti<strong>do</strong>. “Labirinto” foi a metáfora escolhida pelo autor para definir essa estrutura móvel,<br />

enredada, em expansão, sem plano possível... labirintiforme. E conclui: “Essa<br />

universalidade desprovida de significa<strong>do</strong> central, esse sistema da desordem, essa<br />

transparência labiríntica, chamo-a de ‘universal sem totalidade’. Constitui a essência<br />

para<strong>do</strong>xal da cibercultura 16 ” (LÉVY, 2001: 111).<br />

Inevitavelmente, a discussão a respeito da totalização (ou da não-totalização)<br />

remete-nos de volta às argüições sobre a pós-modernidade. E é neste ponto, inclusive, onde<br />

residiria, talvez, o mais controverso aspecto da obra de Lévy. Seria natural ouvir que a<br />

Internet é um meio de comunicação moderno. Mas este “moderno” estaria referin<strong>do</strong>-se a<br />

sua recentidade, nos aspectos temporal e tecnológico. Pierre Lévy, entretanto, situa a<br />

Internet, o ciberespaço e a cibercultura, como o lega<strong>do</strong> da Era das Luzes para a posteridade,<br />

ou seja, uma síntese materializada <strong>do</strong>s pressupostos filosóficos da modernidade 17 . “Em<br />

contraste com a idéia pós-moderna <strong>do</strong> declínio das idéias das luzes, defen<strong>do</strong> que a<br />

cibercultura pode ser considerada como herdeira legítima (ainda que longínqua) <strong>do</strong> projeto<br />

progressista <strong>do</strong>s filósofos <strong>do</strong> século XVIII” (idem: 245).<br />

O autor francês, talvez por influência latente de alguma forma de patriotismo ou<br />

senti<strong>do</strong> histórico coletivo e compartilha<strong>do</strong>, baseia sua argumentação sobre um resgate <strong>do</strong>s<br />

ideais revolucionários e republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade, situan<strong>do</strong>-os<br />

como elementos presentes (e fundamentais) na estrutura social possibilitada pelo<br />

ciberespaço. Desse mo<strong>do</strong>, o ciberespaço não poderia ser pós-moderno se os ideais da<br />

modernidade estão tatua<strong>do</strong>s em sua essência. Em suma, o autor conclui que “longe de ser<br />

decididamente pós-moderno, o ciberespaço pode surgir como uma espécie de<br />

materialização técnica <strong>do</strong>s ideais modernos”. Para Lévy, a tríade libertária da Revolução<br />

Francesa, quan<strong>do</strong> inserida no âmbito <strong>do</strong> ciberespaço, configurar-se-ia da seguinte forma:<br />

Na era das mídias eletrônicas, a igualdade é realizada enquanto possibilidade para que cada<br />

um emita para to<strong>do</strong>s; a liberdade é objetivada por meio de programas de codificação e <strong>do</strong><br />

acesso transfronteiriço a diversas comunidades virtuais; a fraternidade, enfim, transparece<br />

na interconexão mundial (LÉVY, 2001: 245).<br />

16 O neologismo “cibercultura” especifica o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais) e de valores que se<br />

desenvolvem juntamente com o crescimento <strong>do</strong> ciberespaço.<br />

17 Link para a página 25, onde podemos constatar que uma definição semelhante de ciberespaço é atribuída à<br />

pós-modernidade.<br />

36


Não esqueçamos, entretanto, que o pós-modernismo não se trata de uma ruptura<br />

completa e radical <strong>do</strong> modernismo 18 . O pós-modernismo e a pós-modernidade são<br />

entendi<strong>do</strong>s como reações “dispersas e diversas” a alguns aspectos da modernidade.<br />

Essencialmente, a base daquilo que se convencionou chamar de pós-moderno está calcada<br />

na refutação “à ditadura da razão, à ambição totalitária e impossível das ‘grandes<br />

narrativas’ filosóficas e literárias e ao purismo asséptico, formalista e moralista, <strong>do</strong> tar<strong>do</strong>-<br />

modernismo, com o seu exacerba<strong>do</strong> ‘cânone de proibições’ e tabus” (BARRENTO, 2002).<br />

Não precisamos ir muito longe, portanto, para retomar nossa pressuposição inicial,<br />

vaticinada por Jean-François Lyotard, a lembrar: “O cenário pós-moderno é essencialmente<br />

cibernético-informático e informacional” (LYOTARD, 2002: VIII). Destarte, inverter a<br />

sentença, e afirmar que um cenário essencialmente cibernético-informático e informacional<br />

seja pós-moderno, não nos parece absur<strong>do</strong>. Até o próprio Pierre Lévy, que prega o<br />

ciberespaço como herança da modernidade, assume que as facetas fundamentais da<br />

cibercultura são amparadas na teoria pós-moderna.<br />

A filosofia pós-moderna descreveu bem o esfacelamento da totalização. A fábula <strong>do</strong><br />

progresso linear e garanti<strong>do</strong> não possui mais curso nem em arte, nem em política, nem em<br />

qualquer outro <strong>do</strong>mínio. (...) A multiplicidade e o entrelaçamento radical das épocas, <strong>do</strong>s<br />

pontos de vista e das legitimidades, traço distintivo <strong>do</strong> pós-moderno encontram-se<br />

nitidamente acentua<strong>do</strong>s e encoraja<strong>do</strong>s na cibercultura (LÉVY, 2001: 120).<br />

A Internet, e o ciberespaço como um to<strong>do</strong>, são pós-modernos por se tratarem de<br />

um universo indetermina<strong>do</strong>, que foge ao controle de si mesmo, bem como a controles<br />

externos. Mais ainda, é um universo que tende a manter e reforçar sua indeterminação à<br />

medida em que se desenvolve, se amplia, se fragmenta e, para<strong>do</strong>xalmente, se conecta, “pois<br />

cada novo nó da rede de redes em expansão constante pode tornar-se produtor ou emissor<br />

de novas informações, imprevisíveis, e reorganizar uma parte da conectividade global por<br />

sua própria conta” (LÉVY, 2001: 111).<br />

18 Link para a página 23, onde o pós-modernismo é visto como a exaltação de alguns aspectos da<br />

modernidade e a refutação de outros.<br />

37


Tal indeterminação <strong>do</strong> ciberespaço é o fator que permite estabelecer a diferença<br />

crucial entre a Internet e os meios de comunicação tradicionais, que engendram<br />

relacionamentos unilaterais. Enquanto as mídias de massa (imprensa, rádio, cinema,<br />

televisão), pelo menos em sua configuração clássica, dão continuidade à linguagem cultural<br />

<strong>do</strong> universal totalizante inicia<strong>do</strong> pela escrita, a Internet faz justamente o oposto,<br />

desconstruin<strong>do</strong> esse processo de totalização. “O movimento contínuo de interconexão rumo<br />

a uma comunicação interativa de to<strong>do</strong>s com to<strong>do</strong>s é em si mesmo um forte indício de que a<br />

totalização não ocorrerá, que as fontes serão sempre mais heterogêneas, que os dispositivos<br />

mutagênicos e as linhas de fuga irão multiplicar-se” (idem: 133). Mais que isso, enquanto<br />

as mídias de massa (relação um-to<strong>do</strong>s) instauraram uma distinção nítida entre emissores e<br />

receptores passivos e isola<strong>do</strong>s uns <strong>do</strong>s outros, “no ciberespaço, em troca, cada um é<br />

potencialmente emissor e receptor num espaço qualitativamente diferencia<strong>do</strong>, não fixo,<br />

disposto pelos participantes, explorável” (LÉVY, 1996: 113). O ciberespaço representa,<br />

portanto, o sepultamento da sociedade de massa, enquanto o hipertexto seria o epitáfio...<br />

Através desse caminho tortuoso, chegamos ao pressuposto de que “um <strong>do</strong>s<br />

principais significa<strong>do</strong>s da emergência <strong>do</strong> ciberespaço é o desenvolvimento de uma<br />

alternativa às mídias de massa” (LÉVY, 2001: 239). Essa é a brecha dada pelo ciberespaço<br />

para que a Irmandade Raoul Duke desempenhe e assuma seu verdadeiro papel, o de<br />

alternativa, de opção, aos meios de comunicação <strong>do</strong>minantes e, principalmente, às formas<br />

de comunicação <strong>do</strong>minantes, já que estas últimas também estão presentes em meios que<br />

não são considera<strong>do</strong>s “de massa”, como a Internet, por exemplo. A Internet promoveu uma<br />

revolução no conceito de comunicação midiática, de mo<strong>do</strong> que no ciberespaço não existem<br />

centros difusores que “despejam” informações sobre os receptores, mas sim espaços<br />

compartilha<strong>do</strong>s, os quais cada um pode ocupar ou investigar aquilo que porventura lhe<br />

despertar interesse, configuran<strong>do</strong> verdadeiros “merca<strong>do</strong>s da informação onde as pessoas se<br />

encontram e nos quais a iniciativa pertence ao demandante” (idem: ibid). O ciberespaço<br />

inaugurou efetivamente o conceito de interatividade, ao instaurar um modelo de<br />

comunicação não em uma ou duas vias, mas em múltiplas vias que se entrecruzam, se<br />

complementam, colidem frontalmente ou se unem em sinergia, o que abre caminhos para<br />

uma comunicação recíproca, comunitária e intercomunitária, desenhan<strong>do</strong> um “horizonte de<br />

38


mun<strong>do</strong> virtual vivo, heterogêneo e intotalizável no qual cada ser humano pode participar e<br />

contribuir” (LÉVY, 2001: 126).<br />

O aumento das máquinas eletrônicas (não mais mecânicas) faz nascer uma arte<br />

paranacional, extracontinental, graças aos novos meios de transmissão que nada nem<br />

ninguém poderá <strong>do</strong>ravante interromper. Assistimos pela primeira vez no mun<strong>do</strong> à<br />

personalização de cada voz (Henri Chopin in MENEZES, 1992: 60).<br />

A Internet metaforiza-se numa imensa folha de papel com incontáveis lacunas em<br />

branco, as quais podem ser preenchidas por qualquer um, com lápis e pincéis de cores e<br />

tamanhos varia<strong>do</strong>s. No ciberespaço, os pincéis estão a alcance de to<strong>do</strong>s, o que permite que<br />

se transforme o branco <strong>do</strong> papel naquilo que o “pintor” desejar. Qualquer espécie de<br />

conteú<strong>do</strong> (gráfico ou textual) pode ser publicada na Internet, de mo<strong>do</strong> relativamente<br />

instantâneo, e sem a necessidade de passar pelo crivo de alguma entidade regula<strong>do</strong>ra. E é<br />

neste ponto onde se situa nosso objeto de estu<strong>do</strong>, a Irmandade Raoul Duke, inserida num<br />

meio onde “qualquer um (grupo ou indivíduo) pode colocar em circulação obras ficcionais,<br />

produzir reportagens, propor suas sínteses e sua seleção de notícias sobre determina<strong>do</strong><br />

assunto” (LÉVY, 2001: 239-240). A Irmandade Raoul Duke, portanto, aproveita-se de um<br />

cenário onde (quase) tu<strong>do</strong> é permiti<strong>do</strong>, para promover um tipo de jornalismo (?) 19 destoante<br />

das formas tradicionais e usuais de transmitir notícias e, mesmo assim, estar dentro da<br />

“normalidade” pois, na Internet, transgredir é a norma.<br />

2.3 – Contracultura<br />

O autor Mark Dery, no livro Escape Velocity – Cyberculture at the end of the<br />

century 20 , estabelece um nó, uma ponte, entre a cibercultura e a contracultura. Durante os<br />

anos 90, a tônica contracultural é mais evidente na esfera da cibercultura denominada de<br />

cyberpunk, que se constitui no underground hi-tech, onde “grupos relativamente<br />

19<br />

Link para o Capítulo 3, onde a interrogação tentará ser eliminada...<br />

20<br />

Link para a bibliografia:<br />

DERY, Mark, Escape Velocity – Cyberculture at the end of the century, Nova Iorque, Grove Press, 1996.<br />

39


organiza<strong>do</strong>s que têm uma relação lúdica com o modus operandi <strong>do</strong> maquinário de ponta”<br />

procuram desmistificar o aparato tecnológico mais sofistica<strong>do</strong> trazen<strong>do</strong>-o para a <strong>realidade</strong><br />

mais cotidiana. Dery enfoca que os temas recorrentes nesse underground cyberpunk são:<br />

a convergência entre o homem e a máquina; o supercorte da experiência sensorial pela<br />

simulação digital; o emprego subcultural da alta tecnologia a serviço de sensibilidades<br />

perversas ou ideologias subversivas; e uma profunda ambivalência, advinda <strong>do</strong>s anos<br />

sessenta, que leva a computa<strong>do</strong>res como motores de liberação e ferramentas de controle<br />

social, refazen<strong>do</strong> o teci<strong>do</strong> social desfia<strong>do</strong> pelo modernismo industrial e por instrumentos de<br />

uma atomização cada vez maior (apud LEMOS & PALACIOS, 2001: 228).<br />

Afirma-se que a cibercultura <strong>do</strong>s anos 90 deve muito à contracultura <strong>do</strong>s anos 60.<br />

No entanto, há de ser notada uma diferença essencial entre os <strong>do</strong>is “movimentos”, residente<br />

naquilo que se refere à “aceitação e culto da tecnologia. Coisa impensável para os hippies,<br />

estes com tendência ao rural e de forte ligação naturalista” (in LEMOS & PALACIOS,<br />

2001: 227). Todavia, tanto na contracultura quanto na cibercultura, pode-se perceber uma<br />

atitude contesta<strong>do</strong>ra ao “sistema”, de alguma forma, sem contu<strong>do</strong> haver uma perspectiva<br />

explícita de tomada de poder. Mas, o que é contracultura? Contra qual cultura lutava a<br />

contracultura <strong>do</strong>s anos 60? Existe apenas uma contracultura? Antes de responder ao<br />

primeiro questionamento, tratemos de elucidar o segun<strong>do</strong>, traçan<strong>do</strong> um panorama <strong>do</strong> que<br />

foi o movimento contracultural da década de sessenta. A resposta ao terceiro virá<br />

naturalmente...<br />

A priori, o conceito de contracultura trata-se de uma etiqueta coletiva aplicada às<br />

subculturas alternativas ou “revolucionárias” de jovens politiza<strong>do</strong>s, principalmente da<br />

classe-média, na década de 60 e princípio <strong>do</strong>s anos 70. Para Maria José Ragué Arias, a<br />

contracultura teve data e local de nascimento: o ano de 1965, no bairro de Haight-Ashbury,<br />

na cidade de São Francisco, Esta<strong>do</strong> da Califórnia, Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Para Theo<strong>do</strong>re Roszak,<br />

no entanto, a contracultura caracterizou-se por sua indisciplina como movimento<br />

congregante, não comportan<strong>do</strong> uma determinação exata de seu surgimento, e comparou-a<br />

com uma cruzada medieval: “uma procissão variegada, constantemente em fluxo,<br />

adquirin<strong>do</strong> e perden<strong>do</strong> membros durante to<strong>do</strong> o percurso da marcha”. Nessa caravana<br />

obtusa, alguns são agrega<strong>do</strong>s por um curto momento, com o intuito de travar uma “luta<br />

40


óbvia e imediata”, como uma rebelião no campus, um protesto contra a guerra ou uma<br />

manifestação contra a injustiça racial e talvez não faça nada além de “brandir uma<br />

minúscula bandeira contra as desumanidades da tecnocracia” (ROSZAK, 1972: 60).<br />

E é justamente a dita tecnocracia que representa o papel de principal antagonista<br />

da contracultura <strong>do</strong>s anos sessenta e setenta. Roszak ressalta a existência de “perigos” no<br />

embate contra a tecnocracia, devi<strong>do</strong> à sua menor visibilidade perante os fenômenos sociais.<br />

A esse embate, ele denominou de “a luta suprema”. Mas quem é esse inimigo invisível? A<br />

tecnocracia é a “forma social na qual uma sociedade industrial atinge o ápice de sua<br />

integração organizacional” (idem: 19). É a aplicação prática <strong>do</strong>s conceitos de<br />

modernização, atualização, racionalização e planejamento. Para legitimar-se, a tecnocracia<br />

utiliza-se de “imperativos incontestáveis” como a procura de eficiência, a coordenação em<br />

grande escala de homens e recursos, a segurança social, níveis cada vez maiores de<br />

opulência e manifestações crescentes de força humana coletiva. Estabelecen<strong>do</strong> suas<br />

relações desta forma, ela age com o intuito de “eliminar as brechas e fissuras anacrônicas<br />

da sociedade industrial” (idem: 19).<br />

Sob o regime da tecnocracia, tu<strong>do</strong> tende a tornar-se eminentemente técnico e<br />

analisável apenas por especialistas autoriza<strong>do</strong>s, com o intuito de “eliminar os defeitos que<br />

sua determinação pessoal introduz no projeto perfeito da organização” (idem: 20). Destarte,<br />

o conceito de tecnocracia pode ser condensa<strong>do</strong> na “sociedade na qual os governantes<br />

justificam-se invocan<strong>do</strong> especialistas técnicos, que, por sua vez, justificam-se invocan<strong>do</strong><br />

formas científicas de conhecimento” (idem: 21). O “grande segre<strong>do</strong>” da tecnocracia está em<br />

sua capacidade de convencer a sociedade de algumas premissas. Por exemplo, ao afirmar<br />

que “as necessidades vitais <strong>do</strong> homem são de caráter puramente técnico”, to<strong>do</strong>s os<br />

requisitos da condição humana passam a submeter-se à análise formal, engendrada por<br />

especialistas, detentores de conhecimentos científicos, e por isso, impenetráveis. Conclui-se<br />

que, na tecnocracia, cabe ao especialista descobrir nossos desejos e necessidades e provê-<br />

los com prazeres e soluções. Mas, para isso, a tecnocracia precisa reduzir o “mun<strong>do</strong> real” a<br />

uma esfera que possa ser abraçada por ela. E é neste ponto que reside o seu principal<br />

artifício:<br />

A estratégia fundamental da tecnocracia: reduzir a vida àquele padrão de “normalidade”<br />

apropria<strong>do</strong> à gestão da especialização técnica, e depois, segun<strong>do</strong> aquele critério espúrio e<br />

41


exclusivista, reivindicar sobre nós uma intimidante onicompetência, justificada por seu<br />

monopólio <strong>do</strong>s especialistas (ROSZAK, 1972: 25).<br />

E é a máquina, materialização-mor <strong>do</strong> progresso técnico, a responsável por fincar<br />

as bases da tecnocracia na sociedade. Deste mo<strong>do</strong>, a máquina acaba por substituir o homem<br />

em todas as suas atividades, mas não porque realize tais atividades de mo<strong>do</strong> mais<br />

satisfatório ou eficiente, mas porque todas as coisas foram reduzidas àquilo de que a<br />

máquina é capaz. “Chegamos assim à ironia suprema: a máquina, que é uma criatura <strong>do</strong> ser<br />

humano, torna-se – de preferência na forma <strong>do</strong> processo de computerização – o ideal de seu<br />

cria<strong>do</strong>r” (idem: 232).<br />

Por outro la<strong>do</strong>, uma das principais características da tecnocracia é o seu caráter<br />

alienante, onde “a invenção e o embelezamento de traiçoeiras paródias de liberdade, alegria<br />

e realização tornam-se uma forma indispensável de controle social” (idem: 28). A<br />

tecnocracia, então, cria ideais para que ela própria satisfaça-os. Embora a contracultura<br />

tenha nasci<strong>do</strong> no cerne <strong>do</strong> capitalismo, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Theo<strong>do</strong>re Roszak ressalta a<br />

necessidade de se compreender que ela não é resulta<strong>do</strong> somente das “maquinações daquele<br />

demônio, o capitalismo”, já que, acima de tu<strong>do</strong>, os americanos vivem “numa sociedade que<br />

busca a sua autoridade na tecnologia, satisfaz-se na tecnologia e orienta-se pelas regras<br />

impostas pela tecnologia” (TEÓFILO, 1998). A tecnocracia é, sim, por sua vez, “o produto<br />

de um industrialismo maduro e em aceleração” (ROSZAK, 1972: 31). O autor argumenta<br />

com a hipótese de que mesmo se a busca de lucros fosse eliminada de nossa sociedade, a<br />

tecnocracia persistiria. Para ele, o problema fundamental da tecnocracia é “o paternalismo<br />

da especialização dentro de um sistema sócio-econômico tão bem organiza<strong>do</strong> que se acha<br />

inescapavelmente endivida<strong>do</strong> com a especialização” (idem: ibid). O movimento<br />

contracultural compreendeu essa diferenciação, essa desvinculação entre capitalismo e<br />

sociedade industrial, e bateu de frente com a tecnocracia, o que se pôde perceber no<br />

manifesto estudantil afixa<strong>do</strong> à entrada principal da Sorbonne, na significativa data de maio<br />

de 1968:<br />

A revolução que está começan<strong>do</strong> questionará não só a sociedade capitalista como também a<br />

sociedade industrial. A sociedade de consumo tem de morrer de morte violenta. A sociedade<br />

42


da alienação tem de desaparecer da História. Estamos inventan<strong>do</strong> um mun<strong>do</strong> novo e<br />

original. A imaginação está toman<strong>do</strong> o poder (apud ROSZAK, 1972: 33).<br />

O fato é que jovens americanos (uma minoria deles), na década de 60,<br />

empreenderam um conflito de gerações que transcendeu a mera remodelagem habitual da<br />

cultura herdada em aspectos secundários e superficiais. Ten<strong>do</strong> isso por base, o que torna<br />

especial a transição ocorrida nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s é a profundidade de antagonismo que ela<br />

revela. É aí onde, para ele, nasce o conceito de contracultura, no contexto específico<br />

americano <strong>do</strong>s anos 60, que reflete “uma cultura tão radicalmente dissociada <strong>do</strong>s<br />

pressupostos básicos de nossa sociedade que muitas pessoas nem sequer consideram uma<br />

cultura, e sim uma invasão bárbara de aspecto alarmante” (ROSZAK, 1972: 54). Para<br />

Maria José Arias, a contracultura era a “modelagem física” de um grupo de jovens<br />

insatisfeitos com os valores da sociedade, e que percebera o processo de alienação a que<br />

eram submeti<strong>do</strong>s e que os “envolviam numa engrenagem de que eles, como indivíduos,<br />

eram apenas uma peça a mais” (ARIAS, 1979: 114).<br />

E qual a alternativa proposta pelos preconiza<strong>do</strong>res da contracultura frente à<br />

<strong>do</strong>minação tecnocrática? Em suma, era uma vida baseada no “amor a todas as coisas” e<br />

calcada sobre o tempo presente, sem “hipotecas sobre o futuro”. As principais ocupações<br />

<strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s flower children eram os trabalhos manuais, o artesanato, agricultura,<br />

“apanhar sol”, música, literatura e a ingestão de substâncias que de alguma forma<br />

expandiam a consciência. Os hippies, por exemplo, chegaram a fundar diversas<br />

comunidades utópicas, afastadas <strong>do</strong>s centros urbanos, onde um novo mo<strong>do</strong> de vida pudesse<br />

desenvolver-se.<br />

A construção da Grande Sociedade não era vista, pelos movimentos da<br />

contracultura, como uma empreitada social, mas um processo que deve pairar sobre a esfera<br />

<strong>do</strong> psíquico, provocan<strong>do</strong> alterações na essência <strong>do</strong> homem. Por conseguinte, a “rebelião da<br />

juventude” da década de sessenta, mais <strong>do</strong> que um movimento político, era um fenômeno<br />

cultural, pelo “fato de passar por cima da ideologia, procuran<strong>do</strong> atingir o nível da<br />

consciência, buscan<strong>do</strong> transformar nosso senti<strong>do</strong> mais profun<strong>do</strong> <strong>do</strong> ego, <strong>do</strong> próximo, <strong>do</strong><br />

ambiente” (ROSZAK, 1972: 61). Para Roszak, as premissas tecnocráticas quanto à natureza<br />

<strong>do</strong> homem e da sociedade deformaram o homem, portanto:<br />

43


Para a extirpação dessas premissas deturpantes, é necessário nada menos <strong>do</strong> que a subversão<br />

da cosmovisão científica, com seu arraiga<strong>do</strong> compromisso para com a consciência cerebral e<br />

egocêntrica. Em seu lugar é preciso que surja uma nova cultura na qual as capacidades não-<br />

intelectivas da personalidade – aquelas capacidades acionadas pelo esplen<strong>do</strong>r visionário e<br />

pala experiência da comunhão humana – tornem-se os árbitros <strong>do</strong> bem, da verdade e da<br />

beleza (idem: 62).<br />

A contracultura se distanciou tanto da torrente cultural vigente em sua época, que<br />

quase não pode começar a manifestar-se sem parecer usar uma “língua estranha”. A<br />

contracultura nega que o verdadeiro eu seja condensável por meio da objetividade 21 <strong>do</strong>s<br />

especialistas. E o faz por meio da transcendência da mente pelas experiências místicas e o<br />

uso de alucinógenos 22 .<br />

É isso que faz a contracultura quan<strong>do</strong>, por meio de suas tendências místicas ou das drogas,<br />

agride a <strong>realidade</strong> <strong>do</strong> ego como uma unidade de identidade isolável, puramente cerebral. Ao<br />

fazê-lo, mais uma vez transcende a consciência da cultura <strong>do</strong>minante e arrisca-se a parecer<br />

um exercício ári<strong>do</strong> de absur<strong>do</strong> impertinente (idem: 65-66).<br />

As “tribos” que compunham o cenário da contracultura nos anos sessenta eram<br />

basicamente os pacifistas e místicos hippies e os boêmios beatniks, uma geração de poetas<br />

norte-americanos que se opunha ao sistema de vida da sociedade de consumo. É importante<br />

ressaltar que essas duas tribos pareciam possuir mais divergências <strong>do</strong> que semelhanças.<br />

Mas o que justificaria o fato de os <strong>do</strong>is estarem incluí<strong>do</strong>s num mesmo movimento, apesar<br />

da aparente incompatibilidade estética e cultural?<br />

A consciência de classe cede lugar, como princípio generativo, à... consciência da<br />

consciência. É aí que a Nova Esquerda e a orla boêmia dão-se as mãos. Pois até nas<br />

caricaturas mais hostis da orla boêmia de nossa cultura jovem torna-se evidente seu caráter<br />

distintivo, funda<strong>do</strong> num exame intensivo <strong>do</strong> eu, da esquecida riqueza de consciência<br />

pessoal. O estereótipo <strong>do</strong> beatnik ou <strong>do</strong> hippie, desinteressa<strong>do</strong> e introspectivo, mergulha<strong>do</strong><br />

em estupor narcótico ou perdi<strong>do</strong> em contemplação extasiada... (ROSZAK, 1972: 72)<br />

21 Impossível não estabelecer uma relação com a crítica da objetividade jornalística feita pelo gonzo.<br />

44


Desta forma, a unidade geral a que se sobrepõem os diversos grupos<br />

contraculturais – a boêmia beat e hippie – consiste na tentativa de elaborar a estrutura de<br />

personalidade e o estilo de vida total que se derivam da crítica social da Nova Esquerda,<br />

procuran<strong>do</strong> “descobrir novos tipos de comunidade, novos padrões familiares, novos<br />

costumes sexuais, novas maneiras de ganhar a vida, novas formas estéticas e novas<br />

identidades pessoais no la<strong>do</strong> oculto da política de poder, no lar burguês e na sociedade de<br />

consumo” (idem: 75). Em síntese, a meta fundamental da contracultura consiste em<br />

“proclamar um novo céu e uma nova terra, tão vastos, tão maravilhosos, que as pretensões<br />

descabidas da técnica tenham forçosamente de se retrair, diante de tamanho esplen<strong>do</strong>r, a<br />

uma posição subordinada e marginal na vida <strong>do</strong>s homens” (idem: 242).<br />

Theo<strong>do</strong>re Roszak, escreveu sua obra, A Contracultura, nos anos de 1968 e 1969,<br />

no pleno auge <strong>do</strong> movimento contracultural nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Aí reside a maior<br />

vantagem e, ao mesmo tempo, a maior desvantagem da obra. A vantagem está no fato de se<br />

enxergar nas linhas <strong>do</strong> autor reflexos diretos das transformações ocorridas naquela década,<br />

o que produziu um texto vivo, que suplantou os academicismos em nome de um ideal. A<br />

desvantagem, contu<strong>do</strong>, está na impossibilidade de um distanciamento temporal que o<br />

permitisse acompanhar o caminho que viria a ser percorri<strong>do</strong> pela contracultura. Entretanto,<br />

Roszak ainda teve tempo de perceber a derrocada <strong>do</strong> movimento e prever o seu fim, pelo<br />

menos em essência. Ele argüiu que “é a experimentação cultural <strong>do</strong>s jovens que<br />

freqüentemente corre o maior risco de infestação comercial – e, portanto, de dissipação da<br />

força de sua contestação” (idem: 79). Como um visionário, ou um astuto observa<strong>do</strong>r social,<br />

ele enxergou que a contracultura começava a aparentar, para<strong>do</strong>xalmente, “uma campanha<br />

publicitária em escala mundial”. O autor vaticinou, portanto, que a contracultura corria o<br />

risco de sucumbir à debilidade de seu relacionamento cultural com os desprivilegia<strong>do</strong>s e à<br />

vulnerabilidade perante a exploração como espetáculo diverti<strong>do</strong> para a “sociedade<br />

opulenta” (idem: 80-81). E foi justamente isso o que aconteceu...<br />

É fato que a contracultura derivou das circunstâncias políticas, sociais,<br />

econômicas e culturais na década de 60, que se resumia numa sociedade de massas baseada<br />

no consumo, transforman<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s em merca<strong>do</strong>ria para produção em série. E os<br />

22 Link para o Capítulo 3, onde a questão das drogas e as aventuras psicodélicas serão tratadas de maneira<br />

sóbria e casta.<br />

45


movimentos contraculturais (assim como to<strong>do</strong>s os outros elementos culturais que<br />

alcançaram certa evidência), com suas características exóticas e suas diferenças gritantes,<br />

foram naturalmente absorvi<strong>do</strong>s, incorpora<strong>do</strong>s pela cultura que tanto combatera. “A<br />

contracultura atacou de fora o sistema de consumo e (...) foi assimilada pelo próprio<br />

sistema” (ARIAS, 1979: 139). Philadelpho Menezes também traz à tona esse processo que,<br />

embora na citação abaixo esteja especificamente relaciona<strong>do</strong> aos movimentos de<br />

vanguarda, cabe perfeitamente uma adequação à contracultura, tanto pelo momento<br />

histórico, quanto pelo des<strong>do</strong>bramento encadea<strong>do</strong> pela questão.<br />

A falência <strong>do</strong> ideário de maio de 68, a mercantilização da contra-cultura norte-americana, a<br />

<strong>do</strong>mesticação museológica <strong>do</strong>s projetos construtivistas nas artes foram alguns <strong>do</strong>s elementos<br />

que contribuíram para o esvaziamento desse caráter [revolucionário] no experimentalismo<br />

contemporâneo. (...) Experimentar, nesse âmbito, é a norma e a expectativa e não mais o<br />

desvio e o estranhamento. (MENEZES, 1992: 15).<br />

Não se desconsideran<strong>do</strong> a contracultura <strong>do</strong>s anos sessenta, mas amplian<strong>do</strong> a<br />

abrangência <strong>do</strong> termo contracultura, recorremos a Teixeira Coelho que afirma que os<br />

movimentos contraculturais não são uma exclusividade <strong>do</strong> século XX. Para exemplificá-lo,<br />

o autor remete-se a mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XVI e resgata o maneirismo, que se desvencilhara<br />

das amarras religiosas, tanto no aspecto da iconografia como da ideografia, e humanizou-se<br />

com as noções de ilusão, <strong>do</strong> maquinismo, <strong>do</strong> desvio, <strong>do</strong> insólito e <strong>do</strong> extravagante. Ao<br />

maneirismo, Teixeira Coelho atribui o título de “se não o primeiro, pelo menos o<br />

[movimento contracultural] mais incisivo e <strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong> da história anterior” (TEIXEIRA<br />

COELHO, 1997: 99). Ao se vincular o conceito de contracultura a diversas manifestações<br />

independentemente da situação temporal e da posição geográfica, atingimos uma superação<br />

da idéia de que contracultura refere-se exclusivamente ao movimento que se voltou em<br />

direção a experiências comunitárias, drogas psicodélicas, misticismo oriental, psicanálise<br />

profunda e teorias sociais anarquistas nos anos 60 e 70. O termo contracultura passa a ser<br />

usa<strong>do</strong> para designar “diversos grupos e subculturas que não se integram ou que se opõem<br />

ao mainstream social, econômico e cultural” (SHUKER, 1999: 79).<br />

Contracultura, então, passa a assumir o papel de dêixis, uma palavra camaleônica,<br />

que assume a forma <strong>do</strong> contexto ao qual se refere. Por sua vez, os itens dêiticos clássicos<br />

46


são os pronomes pessoais (eu, você, nós etc.), que podem remeter a inúmeras possibilidades<br />

de indivíduos, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> emissor, <strong>do</strong> interlocutor e <strong>do</strong> contexto da mensagem. Da<br />

mesma forma acontece com a contracultura, que é dêitica a partir <strong>do</strong> momento em que seu<br />

senti<strong>do</strong> real não está conti<strong>do</strong> na palavra em si, mas está vinculada à cultura e/ou forma de<br />

expressão <strong>do</strong>minante e à sua respectiva anticultura, ou antilinguagem.<br />

E como enquadrar o <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> e a Irmandade Raoul Duke dentro deste<br />

novo amálgama da contracultura? Embora o <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> tenha “nasci<strong>do</strong>” nos<br />

Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, em 1970, não se pode dizer que essa expressão jornalística faça parte <strong>do</strong><br />

movimento da contracultura anteriormente descrito por Roszak. Mesmo consideran<strong>do</strong> o uso<br />

de drogas como altera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de consciência e a contraposição perante uma prática<br />

tecnocrática (o jornalismo dito tradicional), não é correto afirmar que Hunter Thompson e<br />

sua forma de fazer jornalismo tenha integra<strong>do</strong> o bojo <strong>do</strong> movimento encabeça<strong>do</strong> pelos<br />

beats e hippies, não desprezan<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, as possíveis influências, mesmo indiretas, que<br />

um movimento daquelas proporções teriam causa<strong>do</strong> no gonzo-jornalismo.<br />

No entanto, o <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> é contracultura sim, no senti<strong>do</strong> de que ele<br />

“combate” uma força antagônica e subverte valores estabeleci<strong>do</strong>s, enquadran<strong>do</strong>-se, então,<br />

na concepção de Teixeira Coelho. É importante ressaltar que contracultura, neste caso,<br />

refere-se ao conceito lato sensu, que abrange as formas de expressão cultural, social,<br />

artística e filosófica que se contrapõem aos pressupostos <strong>do</strong> mainstream, da cultura<br />

<strong>do</strong>minante. Desta forma, a prática de produção textual engendrada pelo site Irmandade<br />

Raoul Duke (IRD) também pode ser percebida como uma forma de contracultura, à medida<br />

que atua como crítico <strong>do</strong> jornalismo pratica<strong>do</strong> pela chamada Grande Imprensa,<br />

desconstruin<strong>do</strong> seus artifícios e desvelan<strong>do</strong> suas contradições. Todavia, apenas reforçan<strong>do</strong><br />

nosso caminho inicial, podemos claramente perceber que a forma de contracultura à qual<br />

pertence a Irmandade Raoul Duke muito difere daquela <strong>do</strong>s flower children, vista nos anos<br />

60 e 70, posto que os flower children abominavam a tecnocracia acima de tu<strong>do</strong>, e a IRD<br />

utiliza-se <strong>do</strong> maior vetor tecnológico de nosso tempo, a Internet. Obviamente, esta<br />

divergência fundamental impossibilita-nos de fazer uma ligação direta <strong>do</strong> <strong>Jornalismo</strong><br />

<strong>Gonzo</strong> da IRD com a contracultura praticada nos anos sessenta e setenta.<br />

47


3. - Quem és tu, <strong>Gonzo</strong>?<br />

"Pois decidi que foda-se. <strong>Gonzo</strong> jornalistas não precisam de fatos<br />

noticiáveis: eles são a própria notícia. Eles fazem com que as coisas<br />

aconteçam. Eles desceram <strong>do</strong>s pedestais da objetividade e se<br />

lançaram ferozmente às ruas para ver a vida de perto, para<br />

experimentar e poder contar o que eles experimentaram. O gonzo<br />

jornalista não tem de falar por uma instituição e também por isso não<br />

precisa usar centenas de artimanhas para tentar - inutilmente -<br />

esconder a sua parcialidade." - André "Car<strong>do</strong>so" Czarnobai.<br />

Pós-modernidade, Cibercultura e Contracultura. Tríade que permitirá a apreensão<br />

das particularidades de um objeto que, se não é inova<strong>do</strong>r, é pelo menos novo. E já foi visto<br />

que não é possível tentar entender a contemporaneidade ten<strong>do</strong> como base os velhos<br />

paradigmas de apreensão <strong>do</strong> conhecimento. Não sejamos radicais; jogar toda a sapiência<br />

humana na lata <strong>do</strong> lixo não é o pretendi<strong>do</strong> aqui. O que se espera é poder enxergar os<br />

conceitos e práticas humanas de mo<strong>do</strong> a transparecer-lhes a essência e não só a epiderme. O<br />

triunvirato exposto no capítulo anterior será o nosso artifício para alcançar a devida<br />

compreensão da Irmandade Raoul Duke como prática jornalística, literária e, acima de<br />

tu<strong>do</strong>, social.<br />

Encarar nosso objeto como ator da pós-modernidade é trabalhar com uma noção<br />

que encara os gêneros (se de fato existem) não como unidades hermeticamente cerradas,<br />

mas como líqui<strong>do</strong>s multicolori<strong>do</strong>s, flui<strong>do</strong>s, que podem misturar-se uns aos outros e formar<br />

novas cores. Além disso, dentro de um ponto de vista que se diz pós-moderno, o processo<br />

investigativo perpassa o texto de mo<strong>do</strong> a realçar o seu próprio fazer, questionan<strong>do</strong> sua<br />

própria escritura e lugar. Por sua vez, estudar a cibercultura é não ignorar as transformações<br />

ocorridas, nos mais diversos âmbitos, com o advento e evolução da Internet como meio de<br />

comunicação. Se para McLuhan, o meio é a mensagem 23 , não podemos deixar de afirmar<br />

que o meio é, no mínimo, determinante de algumas das propriedades da referida mensagem,<br />

23 Link para bibliografia:<br />

MCLUHAN, Marshall. The Medium is the Message: An Inventory of Effects. Nova Iorque, Bantam Books,<br />

1967.<br />

48


mas principalmente, responsável pela amplitude de sua difusão. E, finalmente, a<br />

contracultura, que nos permite analisar os fenômenos sob uma perspectiva dialética, como<br />

preconiza<strong>do</strong>res de relações dialógicas, no senti<strong>do</strong> pleno da palavra, permitin<strong>do</strong> que se<br />

explorem suas contradições e potencialidades.<br />

A Irmandade Raoul Duke, como praticante <strong>do</strong> estilo/prática/gênero denomina<strong>do</strong><br />

<strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong>, estabelece uma relação intrínseca com o dito jornalismo tradicional, já<br />

que o gonzo critica sua estrutura e seus mecanismos. Mas o que é exatamente esse<br />

jornalismo “tradicional”? Como é sua estrutura e quais são esses tais mecanismos? Só<br />

compreenden<strong>do</strong> a antítese <strong>do</strong> gonzo-jornalismo é que iremos apreender sua verdadeira<br />

identidade, isto é, supon<strong>do</strong> que exista verdade, e ainda supon<strong>do</strong> que o gonzo tenha alguma<br />

identidade.<br />

3.1 - Anti-jornalismo, que jornalismo?<br />

“Vejo com verdadeira compaixão a grande quantidade<br />

de pessoas que, ao lerem os jornais, vivem e morrem<br />

acreditan<strong>do</strong> haver conheci<strong>do</strong> algo <strong>do</strong> que está<br />

acontecen<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> durante sua vida”. – Thomas<br />

Jefferson, 1807.<br />

O que é esse jornalismo que o gonzo tanto combate? Qual é a sua natureza? Um<br />

sem-número de autores já discutiu o conceito de jornalismo, e tu<strong>do</strong> o que efetivamente<br />

descobriu-se é que não há uma definição universal e abrangente <strong>do</strong> termo. E a grande<br />

dificuldade de sua definição reside no fato de que “o jornalismo não existe como fenómeno<br />

abstracto, fora de to<strong>do</strong> o contexto histórico, que não pode compreender-se fora das suas<br />

relações com uma sociedade concreta e da sua estrutura de classe num determina<strong>do</strong> nível de<br />

desenvolvimento” (HUDEC, 1980: 35). O jornalismo, durante o percurso da História, tem<br />

sofri<strong>do</strong> mudanças profundas na sua pragmática, assim como de seu papel ideológico e<br />

social. Por isso, tentemos, primeiramente, abordar os atributos essenciais <strong>do</strong> jornalismo,<br />

para depois atermo-nos a suas especificidades no que concerne ao momento atual.<br />

José Ortega Costalles é explícito ao dizer que “a missão <strong>do</strong> repórter é captar a<br />

<strong>realidade</strong> objetiva com a maior amplitude e precisão possíveis, narrá-la com fidelidade, de<br />

tal forma que o leitor receba a mais cabal informação sobre o fato” (apud MEDINA, 1988:<br />

49


20). Tal definição, embora simplista diante da diversidade da atividade jornalística como<br />

um to<strong>do</strong>, é condizente com a concepção de jornalismo como anti-gonzo. Em cada palavra<br />

dessa definição reside um aspecto importante <strong>do</strong> fazer jornalístico convencional, como<br />

objetividade, captação, <strong>realidade</strong>, difusão, recepção etc. Cada um a seu mo<strong>do</strong>, esses fatores<br />

(que não atuam isoladamente) são o motor da crise pela qual passa o jornalismo<br />

contemporâneo.<br />

Mas, antes de analisar a crise <strong>do</strong> jornalismo, temos que defini-lo enquanto objeto<br />

de estu<strong>do</strong>. Michael Kunczik encara o jornalismo, mais <strong>do</strong> que como uma prática ou<br />

discurso, como atividade profissional em si. Para ele, “o jornalismo é considera<strong>do</strong> a<br />

profissão principal ou suplementar das pessoas que reúnem, detectam, avaliam e difundem<br />

as notícias” (KUNCZIK, 2001: 16). Dessa definição, contu<strong>do</strong>, podemos tirar o único fator<br />

de convergência entre a maioria <strong>do</strong>s autores que analisam a questão jornalística: a notícia é<br />

a matéria-prima, o produto principal da atividade jornalística. A concepção <strong>do</strong> jornalismo<br />

intrinsecamente atrela<strong>do</strong> à notícia é tão forte que, para alguns, a própria acepção <strong>do</strong> termo<br />

acaba por reduzir-se ao ponto em que a atividade jornalística passe a ser tomada como o ato<br />

de “transformar os acontecimentos - ou, por vezes, simples informações - em notícias, pelo<br />

fato de as publicar" (GAILLARD, 1974: 23).<br />

Nilson Lage prefere considerar a notícia, no seu senti<strong>do</strong> mais amplo, e desde o<br />

tempo mais antigo, como o mo<strong>do</strong> corrente de transmissão da experiência, isto é, a<br />

articulação simbólica que transporta a consciência <strong>do</strong> fato a quem não o presenciou. Esta<br />

definição nos permite desvincular a notícia <strong>do</strong>s meios de comunicação de massa e trazê-la a<br />

uma infinidade de suportes. Basea<strong>do</strong> nesta concepção, talvez, o escritor Gabriel García<br />

Márquez deu a um de seus livros o nome Notícia de um seqüestro. Resulta<strong>do</strong> de intenso<br />

trabalho de apuração jornalística, a obra retrata as minúcias de dez seqüestros ocorri<strong>do</strong>s no<br />

início da década de 90. No entanto, o início da obra já nos dá pistas para atingirmos nosso<br />

principal foco: o relato como construção da <strong>realidade</strong>.<br />

Antes de entrar no automóvel olhou por cima <strong>do</strong> ombro para ter certeza de que ninguém a<br />

espreitava. Eram sete e cinco da noite em Bogotá. Havia escureci<strong>do</strong> uma hora antes, o<br />

Parque Nacional estava mal ilumina<strong>do</strong> e as árvores sem folhas tinham um perfil<br />

fantasmagórico contra o céu turvo e triste, mas não havia à vista nada a temer (GARCÍA<br />

MÁRQUEZ, 1996: 7)<br />

50


No próprio prefácio <strong>do</strong> livro, o autor colombiano revela sua incapacidade de<br />

traduzir toda a amplitude <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real, ao dizer que sua única frustração é saber que<br />

nenhum <strong>do</strong>s protagonistas <strong>do</strong> livro “encontrará no papel nada além de um páli<strong>do</strong> reflexo <strong>do</strong><br />

horror que padeceram na vida real” (idem: 6). E, neste mesmo prefácio, ele acaba por<br />

revelar o nome das duas reféns mortas, Marina Montoya e Diana Turbay, fazen<strong>do</strong> as vezes<br />

de uma espécie de lead. Por outro la<strong>do</strong>, ao restringir o conceito de notícia, Lage define-a<br />

como “o relato de uma série de fatos a partir <strong>do</strong> fato mais importante, e este, de seu aspecto<br />

mais importante” (LAGE, 1982: 36), definição esta que deixa clara a hierarquização como<br />

recurso da produção noticiosa. Já para Alsina, “notícia é uma representação social da<br />

<strong>realidade</strong> cotidiana, produzida institucionalmente e que se manifesta na construção de um<br />

mun<strong>do</strong> possível” (apud HENN, 1996: 34).<br />

As concepções de notícia acima, por si sós, dão abertura para críticas acerca da<br />

atividade jornalística, em aspectos como: construção da <strong>realidade</strong>, seleção, representação e<br />

mediação. Por outro la<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o relato jornalístico é posto dentro <strong>do</strong> contexto da<br />

Irmandade Raoul Duke, tais aspectos ficam ainda mais evidentes. O ambiente no qual o<br />

repórter redige a matéria, seu esta<strong>do</strong> mental e as edições feitas no texto são, então, trazi<strong>do</strong>s<br />

à tona, como em Inferno Sangrento em São Leopol<strong>do</strong>... 24 [ver anexo 2]:<br />

Coloquei pra tocar um pouco de jazz e tentei me concentrar um pouco mais. As freqüências<br />

<strong>do</strong> baixo de Charles Mingus foderam com a minha percepção por completo. Começou a se<br />

tornar virtualmente impossível digitar uma palavra que não contivesse ao menos <strong>do</strong>is erros<br />

estruturais graves. Minha cabeça oscilava sobre o tecla<strong>do</strong> como se eu estivesse tentan<strong>do</strong><br />

marcar o ritmo sincopa<strong>do</strong> da música. O resulta<strong>do</strong> foi um bloco de texto ininteligível que<br />

parecia ter si<strong>do</strong> escrito por um débil mental chapa<strong>do</strong> de benzina e que removi desta matéria<br />

em consideração às pessoas de compleição frágil que possam vir a lê-la. Em algum ponto,<br />

me deitei no sofá e fiquei olhan<strong>do</strong> para o teto e decidi que, embora nunca fosse revelar isso<br />

em público (ops), iria votar naquele cara que não tem to<strong>do</strong>s os de<strong>do</strong>s.<br />

Antes de escrutinar os detalhes <strong>do</strong> jornalismo tradicional, tratemos de “ouvir os<br />

<strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s” e conhecer o ponto de vista daqueles que fazem o jornalismo. Para tal,<br />

24 O título completo é Inferno Sangrento em São Leopol<strong>do</strong> / Quanto Vale um Attorney / Kill All Hippies / Via<br />

Expressa até o teu Crânio.<br />

51


escolhemos o veículo Folha de S. Paulo, que, ao longo <strong>do</strong>s anos, tem tenta<strong>do</strong> deixar clara a<br />

sua “opinião” sobre a atividade jornalística ideal, mesmo que essa opinião mude. Nos anos<br />

80, uma famosa peça publicitária da Folha ganhou prêmio internacional ao enfatizar a<br />

importância da correta interpretação <strong>do</strong>s fatos:<br />

Locutor (com uma voz grave em off, sobre a imagem de retículas ampliadas das quais não<br />

se distingue nada além de círculos pretos sobre fun<strong>do</strong> branco):<br />

Este homem pegou uma nação destruída. Recuperou sua economia e devolveu o orgulho ao<br />

seu povo. Em seus quatro primeiros anos de governo, o número de desemprega<strong>do</strong>s caiu de 6<br />

milhões para 900 mil pessoas. Este homem fez o Produto Interno Bruto crescer 102% e a<br />

renda per capita <strong>do</strong>brar. Aumentou os lucros das empresas de 175 milhões para 5 bilhões de<br />

marcos e reduziu a hiperinflação a no máximo 25% ao ano. Este homem a<strong>do</strong>rava música e<br />

pintura e quan<strong>do</strong> jovem imaginava seguir a carreira artística.<br />

Zoom fechan<strong>do</strong> close na imagem composta, relevan<strong>do</strong> o rosto de Hitler.<br />

Locutor (em off):<br />

É possível contar um monte de mentiras dizen<strong>do</strong> só a verdade.<br />

Por isso, é preciso tomar muito cuida<strong>do</strong> com a informação e o jornal que você recebe.<br />

Folha de São Paulo. O jornal que mais se compra. E que nunca se vende.<br />

O anúncio deixa transparecer a preocupação no tratamento da notícia, a<br />

possibilidade de veicular uma informação tendenciosa utilizan<strong>do</strong> um texto aparentemente<br />

objetivo, além de ressaltar a independência da instituição jornalística Folha de S. Paulo, o<br />

jornal que “nunca se vende”. No entanto, basta avançar um pouco mais de um decênio e<br />

chegar ao Projeto Editorial 97, publica<strong>do</strong> em duas páginas no caderno principal de 17 de<br />

agosto de 1997, no qual a Folha diz-se uma empresa praticante de um jornalismo<br />

“independente, submeti<strong>do</strong> apenas às forças de merca<strong>do</strong>” (apud MORETZSOHN, 2002:<br />

112-113 – grifo meu). Pôde-se notar uma considerável mudança de postura, a qual não<br />

iremos julgar, mas sim tentar entender. O que mu<strong>do</strong>u? A notícia, como principal produto<br />

jornalístico, modificou seu caráter de relato simplesmente e transformou-se em merca<strong>do</strong>ria,<br />

assim como atesta Jürgen Habermas, no artigo Do jornalismo literário aos meios de<br />

comunicação de massa, “a circulação de notícias desenvolve-se não somente em conexão<br />

com as necessidades da circulação de merca<strong>do</strong>rias, as próprias notícias tornam-se<br />

merca<strong>do</strong>rias” (apud idem: 41). Já no título <strong>do</strong> livro de Cremilda Medina, Notícia, um<br />

52


produto à venda, é notável a identificação da mensagem jornalística com atividades<br />

urbanas e industriais, plasmada no universo da comunicação de massa.<br />

O jornalismo como elemento merca<strong>do</strong>lógico é um <strong>do</strong>s principais alvos de críticas<br />

advindas da Irmandade Raoul Duke. No editorial da terceira edição, André Czarnobai<br />

discute a questão de mo<strong>do</strong> áci<strong>do</strong> e ressalta para o fato de que, já que a notícia virou<br />

merca<strong>do</strong>ria, está sujeita a manipulações de ordem apelativa, protagonizadas não por uma<br />

equipe editorial, mas por homens de marketing.<br />

O jornalismo transformou-se em grande parte em uma prostituta barata, que vende almas<br />

em troca <strong>do</strong> salário - risível - de frustra<strong>do</strong>s jornalistas obriga<strong>do</strong>s a cobrir pautas absurdas<br />

única e exclusivamente porque o jornalismo não mais é um serviço de utilidade pública.<br />

Agora é um negócio. Um filão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. Mais um instrumento nas mãos <strong>do</strong>s brilhantes<br />

gerentes de marketing que, pelo menos, andam toman<strong>do</strong> bonitaço nos seus ricos rabinhos.<br />

Definir a notícia como merca<strong>do</strong>ria, por outro la<strong>do</strong>, permitiu a Sylvia Moretzsohn a<br />

aplicação <strong>do</strong> conceito marxista de fetiche 25 em <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s. O primeiro é o aspecto mais<br />

visível, que se relaciona à idéia de que “os fatos falam por si”, tais como aparecem no<br />

jornal, ocultan<strong>do</strong> o processo de produção <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. Depois, o fetiche ocorre na relação<br />

que a imprensa estabelece com o público, “conferin<strong>do</strong> à notícia aparência de valor de uso,<br />

construída pelo impacto e pelo caráter explosivo associa<strong>do</strong> ao fato” (idem: 120). A<br />

compreensão da idéia de fetiche como a ocultação <strong>do</strong>s procedimentos que antecedem à<br />

difusão de uma notícia será valiosa ao se discutir o conceito de objetividade.<br />

25 Fetichismo da merca<strong>do</strong>ria, conceito formula<strong>do</strong> por Karl Marx, é o processo através <strong>do</strong> qual os bens<br />

produzi<strong>do</strong>s pelo homem, uma vez postos no merca<strong>do</strong>, parecem existir por si, como se ganhassem vida<br />

própria, esconden<strong>do</strong> a relação social que lhes deu origem.<br />

53


3.1.1 – A notícia como construção de pseu<strong>do</strong>-<strong>realidade</strong>s<br />

“Devemos começar descartan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os fatos...” – Rousseau<br />

A notícia, quan<strong>do</strong> "vira" merca<strong>do</strong>ria, fica passível de ser moldada segun<strong>do</strong><br />

padrões merca<strong>do</strong>lógicos, ou seja, será confeccionada de mo<strong>do</strong> atrair a atenção <strong>do</strong><br />

leitor/consumi<strong>do</strong>r, com to<strong>do</strong>s os seus apelos estéticos, emocionais e sensacionais. Nesse<br />

mun<strong>do</strong>-cão, vem novamente à tona o velho dita<strong>do</strong> jornalístico “Se um cachorro morde um<br />

homem, não há notícia. Se o homem morde o cachorro, isso é notícia”. Para Leão Serva, a<br />

práxis jornalística que é justificada e resumida através desse dita<strong>do</strong> é o de “destacar e<br />

noticiar o raro, o para<strong>do</strong>xo, o imprevisto – o caos, aparente ou verdadeiro. É isso que<br />

caracteriza a notícia, sua matéria-prima” (SERVA, 2001: 50). Esta noção de<br />

sensacionalismo é levada ao extremo na piada que circulou em um <strong>do</strong>s encontros da<br />

Organization of News Ombudsmen, relatada pela então ombudsman da Folha de S.Paulo,<br />

Júnia Nogueira de Sá, sobre a clássica definição <strong>do</strong> homem morden<strong>do</strong> o cachorro:<br />

Se um cachorro morde um homem, isso não é notícia. Se o homem morde o cachorro,<br />

também não é notícia. Se o homem estivesse pagan<strong>do</strong> ao cachorro por seus favores sexuais,<br />

aí sim seria notícia. Mas não seria uma notícia de primeira página. Para ser manchete, o<br />

cachorro tinha de ser menor de idade e o homem deveria ter um cargo importante no<br />

governo. Ou o cachorro e o homem deveriam ter, ambos, o mesmo sexo – a menos que<br />

trabalhassem no cinema, o que transformaria a manchete numa notinha da coluna de<br />

fofocas. Se o cachorro tivesse falsifica<strong>do</strong> o nome de alguém bastante conheci<strong>do</strong> num<br />

cheque, aí seria notícia de novo. Agora, se o cachorro fosse um grande anunciante, o caso<br />

teria muito menos interesse <strong>do</strong> que poderia parecer a princípio.<br />

O recurso ao sensacionalismo torna-se, então, uma das formas de esfacelamento<br />

da <strong>realidade</strong> pelos meios de comunicação. Aquele, que diz fazer o “puro registro <strong>do</strong>s fatos”,<br />

passa a assumir o papel de ficcionista, ten<strong>do</strong> em vista que os princípios clássicos <strong>do</strong><br />

jornalismo teoricamente baseiam-se na idéia de “esclarecer os cidadãos”, relacionada a<br />

critérios de objetividade que dizem respeito ao suposto poder de “verdade” conti<strong>do</strong> nos<br />

próprios fatos. “Em to<strong>do</strong> tipo de comunicação há a necessidade de atrair o receptor [...]<br />

através <strong>do</strong> uso da sensação, da emoção e <strong>do</strong> sentimento, como armadilhas para prender o<br />

54


leitor. A prisão emocional afasta o leitor da razão e da própria <strong>realidade</strong> a qual o jornalismo<br />

diz ser referencial” (SILVA, 1997: 122). Sob este aspecto, o jornalismo passa a ser um<br />

“produtor de mun<strong>do</strong>s” ao ampliar micro-<strong>realidade</strong>s, a despeito da esfera macro-social:<br />

O mun<strong>do</strong> fictício cria<strong>do</strong> pelos media coloca novos personagens em conflito, personagens<br />

esses que não têm enraizada no social nenhuma relevância, cujos conflitos são apenas<br />

discrepâncias forjadas. Diante da diluição, <strong>do</strong> enfraquecimento <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s no plano<br />

macro-social, o jornalismo para sobreviver apela para a indústria imaginária de notícias.<br />

Criam-se fatos, forjam-se notícias, estimulam-se polêmicas fictícias, constrói-se o conflito<br />

“em laboratório”. O estúdio de TV, a redação de jornal, deixam de ser meios de transmissão<br />

de fatos e tornam-se eles mesmos os produtores de mun<strong>do</strong>s (MARCONDES FILHO, 1993:<br />

63).<br />

Mas a questão é mais complexa <strong>do</strong> que parece. Visto dessa forma, o jornalismo<br />

apenas não cumpriria sua função-mor de captar a “<strong>realidade</strong> tal como ela é” devi<strong>do</strong> a um<br />

mau uso de suas potencialidades. Porém, a partir <strong>do</strong> momento em que a <strong>realidade</strong> é<br />

mediada pelo universo da linguagem, não se pode atingi-la diretamente. “A essência <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> não pode ser expressa pela linguagem” (SILVA, 1997: 130).<br />

Toda notícia, o acontecer jornalístico, é uma proposição gramatical. A proposição<br />

jornalística não tem mais uma relação alguma com os acontecimentos que diz se referir. A<br />

proposição jornalística trabalha com símbolos (signos) e a compreensão (usos) que o<br />

público faz deles. Só que os significa<strong>do</strong>s (usos) das palavras, conceitos, imagens, modelos,<br />

paradigmas são padroniza<strong>do</strong>s, unifica<strong>do</strong>s, dentro de uma uniformidade que nada mais diz ou<br />

mostra. Restam as sensações e com elas o enfeitiçamento da <strong>realidade</strong> (idem: 122).<br />

“Como a linguagem é o próprio ar que respiro, jamais poderei ter uma<br />

significação ou experiência pura e sem deformações” (EAGLETON, 1997: 179). Barthes<br />

corrobora com a concepção de que a fala, o verbo, é incapaz de conter a imensa<br />

significância <strong>do</strong> “mun<strong>do</strong> real”. Para ele, “a linguagem nunca pode dizer o mun<strong>do</strong>, pois ao<br />

dizê-lo está crian<strong>do</strong> um outro mun<strong>do</strong>, um mun<strong>do</strong> em segun<strong>do</strong> grau regi<strong>do</strong> por leis próprias<br />

que são as da própria linguagem” (BARTHES, 1982: 9). Desse mo<strong>do</strong>, o próprio ato de<br />

expressar-se por meio da linguagem já pressupõe a criação de um mun<strong>do</strong> “paralelo”, cujo<br />

maior atributo é não ser idêntico ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> qual ele deveria ser o espelho. “O relato<br />

55


jornalístico procura imitar a <strong>realidade</strong> e assim confundir o real com a simulação e o<br />

simulacro” (SILVA, 1997: 151). No caso <strong>do</strong> jornalismo, esse testemunho <strong>do</strong> testemunho,<br />

assim como em to<strong>do</strong> discurso realista, recorre àquilo que mais promove o efeito de<br />

<strong>realidade</strong>: a estratégia da referencialidade. Para Ciro Marcondes Filho, a práxis jornalística<br />

é efetuada de mo<strong>do</strong> a perseguir esse ideal de retratar a <strong>realidade</strong> de maneira fidedigna.<br />

Alimentava-se uma ficção de que a imprensa seria o retrato condensa<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em<br />

páginas de jornal e que se realizava uma certa produção reflexiva, no senti<strong>do</strong> de o jornal<br />

espelhar de forma miniaturizada as coisas que se passavam na sociedade. [...] <strong>Jornalismo</strong> é,<br />

ao contrário, essencialmente seleção, ordenação, atribuição ou negação de importância de<br />

acontecimentos <strong>do</strong>s mais diversos, que passam a funcionar como se fossem um espelho <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> (MARCONDES FILHO, 1993: 126-127).<br />

Para ocultar esse “testemunho <strong>do</strong> testemunho”, uma das estratégias recorrentes no<br />

jornalismo, assim como em to<strong>do</strong> discurso realista, é o uso da referencialidade como<br />

instrumento de retórica implícita, o que termina por promover o “efeito de real”, termo<br />

emprega<strong>do</strong> por Barthes para designar o resulta<strong>do</strong> das estratégias <strong>do</strong>s discursos realistas,<br />

aqueles que, na busca de testemunho para o seu testemunho, recorrem a uma <strong>realidade</strong> em<br />

cuja construção colaboram. É por esse motivo “que todas as matérias jornalísticas estarão<br />

sempre calcadas ora em citações, ora em entrevistas; sempre salpicadas ora pela fotografia,<br />

ora pelas tabelas de porcentagem. Trata-se <strong>do</strong> recurso aos sinais de marcação da remetência<br />

ao real” (GOMES, 2000: 24). Há uma “generalizada conspiração”: o aperfeiçoamento e<br />

elaboração de técnicas, obras e instituições com o intuito de satisfazer a eterna necessidade<br />

jornalística de autenticar o real. Tu<strong>do</strong> contribuin<strong>do</strong> para o exercício da referencialidade,<br />

remetência a uma <strong>realidade</strong> de suposta plenitude. Por outro la<strong>do</strong>, sabe-se que tanto a<br />

fotografia quanto a entrevista, a citação, os gráficos, as tabelas, as dramatizações e<br />

reconstituições, são recortes, submeti<strong>do</strong>s a escolhas. A principal contradição <strong>do</strong> uso desses<br />

artifícios é a pretensa metonímia empreendida pelo jornalismo:<br />

No fundamento <strong>do</strong> recorte há uma estrutura lacunar: algo está de fora, algo foi excluí<strong>do</strong>,<br />

pois trata-se de um viés e sempre de uma descontextualização”. Trata-se aqui <strong>do</strong> fragmento<br />

valen<strong>do</strong> por, sempre outra coisa que o referencia<strong>do</strong>. Impossível sustentar a tese de<br />

apresentação de um real tal qual nessas condições (idem: 30).<br />

56


Se o simples fato de utilizar a linguagem como media<strong>do</strong>ra já incapacita um relato<br />

de apreender a <strong>realidade</strong> em plenitude, to<strong>do</strong>s os escritos estão fada<strong>do</strong>s, portanto, a residir na<br />

esfera <strong>do</strong> não-real. A questão é que no jornalismo dito tradicional essa incapacidade é<br />

ocultada, enquanto que no gonzo-jornalismo ela é desvelada. Apesar de, no artigo Close Up<br />

Planet: Inferno total drugs kickin´in, Magistra<strong>do</strong>s e outras cacetadas, André “Car<strong>do</strong>so”<br />

utilizar-se da referencialidade para descrever o ambiente onde a cena de sua matéria<br />

desenrola-se, ele faz uso <strong>do</strong>s adjetivos, advérbios e substantivos adjetiva<strong>do</strong>s para explicitar<br />

o fato de que a descrição <strong>do</strong> cenário está sen<strong>do</strong> feita não “tal como ele é”, mas como um<br />

universo media<strong>do</strong>, que passa por idiossincrasias, edições mentais e textuais, e uma análise<br />

baseada nos senti<strong>do</strong>s:<br />

Em algumas horas estaremos em Registro para almoçar num mega-mini-mall-aberração no<br />

meio <strong>do</strong> nada, onde simplesmente TODAS as excursões de clubbers <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> país parariam<br />

ao mesmo tempo. Era mesmo uma visão muito impressionante naquela manhã de sába<strong>do</strong>:<br />

bichonas esquálidas e suas cigarretes de brim com a barra <strong>do</strong>brada pra fora, correntes,<br />

coturnos e union jacks rasgadas no peito, biscas multi-coloridas decoradas de vinil, colares,<br />

pulseiras e prende<strong>do</strong>res de cabelo infantis. Muitos entravam nos banheiros em seus trajes<br />

civis e saíam monta<strong>do</strong>s de parafernálias mil. Piercings em lugares estranhíssimos,<br />

aplicações pouco orto<strong>do</strong>xas da pelúcia, perfumes de bebê, pirulitos e outros bichos. [...]<br />

Para os habitantes de Registro, era como se o circo tivesse chega<strong>do</strong>. Agricultores de boné e<br />

mulheres em vesti<strong>do</strong>s-cortina com temas florais nos olhavam com me<strong>do</strong> e curiosidade.<br />

Nota-se também que a composição <strong>do</strong> texto e a mistura de tempos verbais dão a<br />

idéia de que ele vai sen<strong>do</strong> escrito à medida que os fatos vão ocorren<strong>do</strong>. Mesclan<strong>do</strong> futuro e<br />

passa<strong>do</strong> – “em algumas horas estaremos” e “era mesmo uma visão” – o texto caminha pela<br />

sua linha <strong>do</strong> tempo, tiran<strong>do</strong> a importância da veracidade <strong>do</strong>s fatos e transferin<strong>do</strong>-a para o<br />

fluxo <strong>do</strong>s acontecimentos. No entanto, tal recurso consiste apenas em uma estratégia<br />

narrativa pois, já no primeiro parágrafo da matéria, o autor revela que o fato havia ocorri<strong>do</strong><br />

alguns anos antes da referida redação. Fator este que desvela que o quesito atualidade, um<br />

<strong>do</strong>s fundamentos <strong>do</strong> jornalismo tradicional, perde importância no gonzo-jornalismo:<br />

57


Nem me lembro direito como tu<strong>do</strong> aconteceu. Lembro, sim, da tarde em que eu decidi que<br />

ia pro Close Up Planet, em São Paulo, naquele ano. Ano esse que pode ser 98 mas também<br />

pode ser 99 - não lembro, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que foi comigo também já esqueceu e a camiseta da<br />

excursão já desbotou totalmente há mais de muitas lavagens.<br />

Apesar da ressalva temporal, o autor continua a explorar a intercalação de passa<strong>do</strong><br />

e futuro na enunciação. Basea<strong>do</strong> nessa estratégia, chega a realizar um intrigante para<strong>do</strong>xo e<br />

efetua a “previsão” daquilo que já aconteceu: “Mistura EXPROSIVA em sampa: hip hop &<br />

eletronica. Manos & clubbers. Isso vai dar merda”. Alguns parágrafos à frente, a “merda”<br />

realmente acontece, e o vaticínio <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r é concretiza<strong>do</strong>:<br />

Manos & clubbers em Sampa. Barril de pólvora. Mesmo assim, prontamente escorraçamos<br />

os locais que tentaram nos alertar. Na confusão alguém disse que eles queriam nos aplicar<br />

um golpe e naquele momento tu<strong>do</strong> pareceu fazer muito senti<strong>do</strong>. Contu<strong>do</strong>, a chegada de<br />

helicópteros negros e viaturas da ROTA em grande quantidade (acompanha<strong>do</strong>s de gritos<br />

provenientes de um evidente TUMULTO na fila) nos fizeram crer na sinceridade paulistana.<br />

Corremos para um Quartel <strong>do</strong> Exército próximo enquanto víamos uma monstruosa avenida<br />

da não menos monstruosa São Paulo se transformar em um verdadeiro campo de batalha.<br />

Correria, cassetada, cachorro, capuz. Pânico e incerteza. No Quartel, os solda<strong>do</strong>s riam,<br />

brandin<strong>do</strong> seus fuzis. "Eles que tentem entrar aqui".<br />

Outro artifício largamente utiliza<strong>do</strong> na Irmandade Raoul Duke é o de revelar a<br />

incerteza <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r acerca de detalhes <strong>do</strong> fato relata<strong>do</strong>. Em vez de colocar o relato como<br />

substância estanque, arte-final, trabalho concluí<strong>do</strong> e destina<strong>do</strong> inerte à posteridade, o<br />

gonzo-jornalismo prefere situar-se como flui<strong>do</strong>, rascunho, com ênfase no caminho e não no<br />

fim. Na matéria Grama<strong>do</strong> 100% Free 26 [ver anexo 3], Giuseppe Zani perfaz em palavras os<br />

tortuosos caminhos de sua memória. Recorre a lembranças táteis, olfativas, auditivas e<br />

visuais para reconstruir o fato e, no entanto, é traí<strong>do</strong> pelos senti<strong>do</strong>s, ten<strong>do</strong> que efetuar<br />

inúmeras voltas narrativas:<br />

Já faz três anos desde então e, mesmo assim, tenho a sensação de estar recordan<strong>do</strong><br />

acontecimentos de uma noite de excessos. Uma noite que se repete e que demora ainda a<br />

26 O título completo é Grama<strong>do</strong> 100% Free ou Tiran<strong>do</strong> Proveito de um Assédio Homossexual.<br />

58


acabar. Primeiro vêm os vultos, como um hálito fresco a arder por dentro <strong>do</strong> nariz, um<br />

aroma que se insinua e logo escapa. Parecem destina<strong>do</strong>s ao esquecimento, até que irrompem<br />

novamente num turbilhão de imagens. Tenho que anotá-los, papel papel papel... É preciso<br />

precaver-se contra novo esquecimento. [...] Ele me pediu o cartão de novo e anotou o<br />

número e o quarto <strong>do</strong> hotel em que ele estava hospeda<strong>do</strong> e se despediu. Eu não consigo<br />

lembrar a cara que ele fez, mesmo por que eu não recor<strong>do</strong> um traço sequer de seu rosto. Eu<br />

ainda lembro <strong>do</strong> cartão, <strong>do</strong> carpaccio que ele pagou, da credencial verde, mas essas coisas<br />

todas surgem como adereços de uma sombra e eu não enten<strong>do</strong> como isso pôde se manter na<br />

minha cabeça senão pelas conseqüências que desencadeou. Ok, mas penso que me<br />

precipitei, e acabei num caminho sem saída. O jeito é voltar no labirinto <strong>do</strong>s acontecimentos<br />

e tomar outra direção.<br />

Como que insatisfeito pelo teor de seu próprio relato, o repórter recorre à co-<br />

autoria para desfazer os nós que o impedem de reproduzir o fato que ocorrera consigo. E,<br />

para isso, faz uso de uma transcrição na íntegra de uma mensagem eletrônica<br />

“encomendada” a um amigo-testemunha que tem a função de preencher as lacunas deixadas<br />

pelo repórter. No entanto, o que ocorre é uma matéria gonzo dentro da outra, já que, no fim<br />

das contas, o co-autor perde-se em suas divagações e acaba por relatar sua própria<br />

experiência:<br />

From: "Emiliano Urbim" (emiliano.urbim@eai.com.br)<br />

To: "Zani" (beppe.ez@terra.com.br)<br />

Sent: Friday, April 19, 2002 10:29 PM<br />

Subject: texto<br />

Tentei, mas não achei na minha agenda de 1999 - sou desses que carrega consigo uma<br />

agenda de 1999 - a data exata <strong>do</strong> Festival de Cinema de Grama<strong>do</strong> daquele ano. Podia<br />

procurar na Internet, claro, mas aí ia perder a graça. Vou chutar tu<strong>do</strong> aconteceu numa<br />

quarta-feira. Tu<strong>do</strong> desde que eu encontrei até desencontrar Giuseppe Zani. [...] Num desses<br />

passeios contra-produtivos e pró-vadiagem eu te encontrei. Aqui eu não sei se me refiro<br />

diretamente a ti, Giuseppe, ou se faço média com os outros leitores e escrevo: "encontrei o<br />

Giuseppe". Isso seria ferir meus princípios estéticos, minha integridade artística, me vender<br />

para o sistema. Encontrei o Giuseppe. [...] O drama <strong>do</strong> Giuseppe: tinha uma guria com quem<br />

ele tinha uma história, na real muito mais que uma história, ele era apaixona<strong>do</strong> por ela,<br />

apaixona<strong>do</strong> o suficiente para ir a Grama<strong>do</strong> sem bagagem sem dinheiro sem hospedagem e<br />

com muito frio, só para vê-la. Fim <strong>do</strong> drama <strong>do</strong> Giuseppe. [...] Aí apareceu sei lá de onde a<br />

59


apresenta<strong>do</strong>ra de um programa juvenil da repeti<strong>do</strong>ra da maior rede nacional e uma guria<br />

muito querida por quem eu me apaixonei na hora. Na hora, na horita, na horaça, no horêra.<br />

[...] Bebedeira, gritaria, cheiração, pute<strong>do</strong> e fuzarca, agnóstica e nababesca fuzarca. Larguei<br />

o Giuseppe de mão e fui investir no amor da minha vida. Não sei nem se dei tchau pra ele,<br />

só fui saber o que aconteceu com o cara depois.<br />

Emiliano Urbim<br />

Foi visto que o jornalismo vive numa indelével contradição: é alicerça<strong>do</strong> nas<br />

fluidas bases da linguagem e finge, por meio da própria linguagem, superar suas limitações.<br />

O que aconteceria, no entanto, se o já confuso processo jornalístico fosse acelera<strong>do</strong> de<br />

mo<strong>do</strong> exponencial? Que conseqüências isso traria para o fazer jornalístico e,<br />

principalmente, para o resulta<strong>do</strong> desse trabalho, a notícia?<br />

3.1.2 – <strong>Jornalismo</strong> em alta rotação<br />

"Vivemos num tempo maluco em que a informação é tão rápida que<br />

exige explicação instantânea e tão superficial que qualquer explicação<br />

serve" – Luiz Fernan<strong>do</strong> Veríssimo<br />

David Harvey ressalta que é da própria dinâmica <strong>do</strong> capitalismo, como sistema, a<br />

tendência à fragmentação e à efemeridade. E o jornalismo? Este que está assumidamente<br />

inseri<strong>do</strong> na dinâmica <strong>do</strong> efêmero, como seus processos e sua estrutura são altera<strong>do</strong>s pela<br />

aceleração <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> capitalista? O capitalismo está para o jornalismo assim como o<br />

acelera<strong>do</strong>r de partículas está para a física quântica, mas no caso <strong>do</strong> jornalismo, as partículas<br />

são as notícias. Para Sylvia Moretzsohn, que alcunha o momento atual <strong>do</strong> jornalismo como<br />

a “era <strong>do</strong> tempo real”, as inúmeras contradições <strong>do</strong> jornalismo tendem a se agravar com o<br />

célere movimento. No entanto, para que o ciclo apuração/ordenação/difusão/recepção<br />

mantenha-se intacto apesar <strong>do</strong> inimigo Tempo, o jornalismo busca “resolver” suas<br />

contradições pela eliminação de um <strong>do</strong>s termos (por sinal, o mais delica<strong>do</strong> e complica<strong>do</strong>r)<br />

<strong>do</strong> problema: a necessidade de veicular informações corretas e contextualizadas, pois,<br />

“qualquer explicação serve” para sustentar a notícia transmitida instantaneamente. Para<br />

60


Paul Virilio, na era <strong>do</strong> ciberespaço, “a informação só tem valor pela rapidez de sua difusão,<br />

ou melhor, a velocidade é a própria informação!” (apud MORETZSOHN, 2002: 125).<br />

Jürgen Wilke, que analisou a evolução histórica <strong>do</strong>s jornais com o auxílio da análise de<br />

conteú<strong>do</strong>, fala em mudança na consciência temporal:<br />

A história demonstra uma crescente sincronização entre a <strong>realidade</strong> editorial e a <strong>realidade</strong><br />

<strong>do</strong> acontecimento, o que resulta numa “atualização” da consciência temporal e, juntamente<br />

com uma periodicidade cada vez mais intensa e com uma crescente acumulação, na<br />

“agitação” ou não “fragmentação temporal” que se observam com freqüência nos dias de<br />

hoje (apud KUNCZIK, 2001: 220).<br />

Em sua pesquisa, Wilke constatou que “antes, os leitores <strong>do</strong> jornal se informavam<br />

menos, mas por outro la<strong>do</strong> se informavam de maneira mais contínua sobre cada evento.<br />

Depois, passou-se a informar mais, mas em geral a informação tornou-se menos contínua”<br />

(idem: 222). Esse aspecto de notícia como apenas fragmento, e não um entremear histórico,<br />

advém <strong>do</strong> desprezo da idéia de que “os fatos, embora separa<strong>do</strong>s no tempo cronológico,<br />

fazem parte de uma única cadeia, uma única ocorrência histórica da qual cada ‘notícia’ é<br />

apenas uma manifestação, como um fotograma de um filme de longa metragem” (SERVA,<br />

2001: 44). Em suma, para Leão Serva, a natureza acelerada <strong>do</strong> jornalismo gerou a<br />

consumação de um fato: “as notícias não deixam ver a história” (idem: 47).<br />

Receptor de mensagens aleatórias, o indivíduo percebe o mun<strong>do</strong> e a História como um<br />

espetáculo entrópico, fragmentário, sem totalidade e irracional, enquanto à sua volta a<br />

<strong>realidade</strong> se dissolve numa colagem de signos e simulacros cujos referentes são remotos ou<br />

se perderam. Nesse cosmos tendente ao caos, sem princípio unifica<strong>do</strong>r seja ele cristão ou<br />

newtoniano, o sujeito é quan<strong>do</strong> muito um átomo estatístico surfan<strong>do</strong> nas ondas <strong>do</strong> provável<br />

e <strong>do</strong> incongruente (Jair Ferreira <strong>do</strong>s Santos in OLIVEIRA, 1995: 60).<br />

Desvincular os acontecimentos jornalísticos de uma perspectiva histórica, tratan<strong>do</strong><br />

a notícia como um ser pleno e o fato como uma circunstância atomizada, acaba por<br />

distorcer a percepção <strong>do</strong> receptor. Assim, ao “apresentar retratos <strong>do</strong>s fatos de forma isolada<br />

e descontextualizada, os meios informativos simultaneamente negam ao seu consumi<strong>do</strong>r<br />

uma apreensão mais completa da notícia e produzem uma percepção alterada <strong>do</strong>s<br />

61


acontecimentos ao longo <strong>do</strong> tempo” (SERVA, 2001: 126). Para continuar com essa lógica<br />

de produção desenfreada de notícias, os meios acabam por “fazer o tempo andar mesmo<br />

que ele se recuse” (idem: 129), o que gera fatos sem “gravidez”, sem história, sem<br />

memória. O alemão Michael Kunczik propõe uma “abolição” da escravidão à atualidade, o<br />

que possibilitaria um jornalismo mais responsável e independente:<br />

Seria muito mais útil para a realização da autonomia profissional reduzir a importância da<br />

atualidade no trabalho jornalístico. Caso se considerem valiosas somente as notícias de<br />

atualidade, as notícias cuida<strong>do</strong>sas, complexas e bem-investigadas continuariam sen<strong>do</strong> a<br />

exceção. A escravidão à atualidade prejudica todas as outras normas jornalísticas, como a<br />

investigação cuida<strong>do</strong>sa, e aumenta a probabilidade da crítica leiga. A obsessão pela<br />

atualidade faz também com que os jornalistas sejam manipuláveis por meio de pseu<strong>do</strong>-<br />

eventos, forja<strong>do</strong>s com o propósito único de atrair a cobertura <strong>do</strong>s meios de comunicação<br />

(KUNCZIK, 2001: 52).<br />

Ignácio Ramonet, por sua vez, escavou a etimologia da palavra jornalista que,<br />

nesses termos, significa “analista de um dia”. O que ocorre é que a transmissão instantânea<br />

da informação e o volume diluviano de notícias encurtaram a periodicidade de “análise” <strong>do</strong><br />

jornalista, que passa a ser analista não mais de um dia, mas de um instante. Para ele, o<br />

jornalista deveria chamar-se um “instantaneísta” ou um “imediatista”. Todavia, essa análise<br />

<strong>do</strong> instante configura-se como uma tarefa impossível, pois:<br />

Com o momento imediato <strong>do</strong> evento, nenhuma distância – precisamente aquela distância<br />

indispensável à análise – é possível. Por ora, o jornalista tem afinal cada vez mais a<br />

tendência de tornar-se um simples vínculo. Ele é o fio que permite conectar o evento com<br />

sua difusão (RAMONET, 1999:74).<br />

O fato é que também a Irmandade Raoul Duke está passível de ser acometida por<br />

to<strong>do</strong>s os falibilismos <strong>do</strong> jornalismo tradicional. Portanto, o jornalismo gonzo não escapa às<br />

pressões <strong>do</strong> tempo, apesar <strong>do</strong> fato de que este fator incide na IRD de mo<strong>do</strong> mais oblíquo, já<br />

que a periodicidade média de atualização <strong>do</strong> site é superior a um mês. Na reportagem<br />

Inferno Sangrento em São Leopol<strong>do</strong>, o repórter identifica<strong>do</strong> apenas como Colabora<strong>do</strong>r 001<br />

revela: “O Car<strong>do</strong>so tinha me dito ‘fecho até dia 26/04 a próxima edição’. O prazo me<br />

62


acuava feito um maníaco de pau duro num beco, e minha verba de trabalho estava reduzida<br />

a 0r$ e 25centavos [sic]”. Tais condições de “trabalho” acabam por desencadear problemas<br />

como a impossibilidade de se estabelecer uma pauta adequada ou o atesta<strong>do</strong> de que a pauta<br />

escolhida não havia rendi<strong>do</strong> o resulta<strong>do</strong> espera<strong>do</strong>:<br />

Constatei na manhã seguinte que nada <strong>do</strong> que havia ocorri<strong>do</strong> lá se assemelhava, ainda que<br />

vagamente, a uma pauta gonzostyle (ou seja, nada que explodisse na sua cara, causasse<br />

fagulhas, fosse considera<strong>do</strong> contravenção, ou mesmo te obrigasse a bater em retirada sem<br />

pagar a conta). [...] Ninguém vomitou sangue no palco. Ninguém deu um soco na lata<br />

homofóbica <strong>do</strong> segurança. Ninguém fumou um basea<strong>do</strong> e acidentalmente pôs fogo no bar,<br />

inician<strong>do</strong> um tumulto que só encontraria paralelo com a invasão de Roma pelos bárbaros<br />

inician<strong>do</strong> a Baixa Idade Média.<br />

No excerto acima, é latente a tentativa de se deixar clara a concepção <strong>do</strong> repórter<br />

acerca <strong>do</strong> que seria uma pauta gonzo. No entanto, André Czarnobai, no já cita<strong>do</strong> editorial<br />

da terceira edição da IRD, afirma que “gonzo é um termo bastante flexível e pode ser<br />

associa<strong>do</strong> a uma grande variedade de manifestações: tu<strong>do</strong> que estiver totalmente fora <strong>do</strong>s<br />

padrões, for estranhamente chocante ou evidentemente bizarro é gonzo”. Essa<br />

indeterminação a respeito <strong>do</strong> conceito de gonzo-jornalismo permite à IRD abrigar uma<br />

diversidade de textos que divergem enormemente entre si, tanto no que tange às pautas, ao<br />

teor <strong>do</strong> “fato” jornalístico, quanto no que concerne à forma, ao tratamento da<strong>do</strong> à notícia.<br />

Isto pode ser percebi<strong>do</strong> na matéria FGTS: As Letras <strong>do</strong> Demônio 27 [ver anexo 4], de Paula<br />

Pó, que relata o processo de tentativa de resgate <strong>do</strong> benefício <strong>do</strong> Fun<strong>do</strong> de Garantia por<br />

Tempo de Serviço através de uma fabulação na qual a Caixa Econômica Federal é tida<br />

como um templo satânico que exige que o suplicante passe por sacrifícios e ritos de<br />

passagem antes de “vender sua alma” em troca de “consumo, sucesso e poder”.<br />

Eu achava que já sabia tu<strong>do</strong> sobre ocultismo até conhecer as assusta<strong>do</strong>ras letras: FGTS. São<br />

quatro inocentes sinais gráficos que ganham um poder demoníaco quan<strong>do</strong> juntos,<br />

comparável ao 666. [...] Só que enquanto o tal número da besta atrai as elites, eruditos,<br />

diretores de cinema e metaleiros, o FGTS manipula uma massa desdentada, quasímoda,<br />

sedenta por alguns centavos a mais nas suas contas bancárias. [...] Nossa peregrinação<br />

27 O título completo é FGTS: As Letras <strong>do</strong> Demônio ou Burocracia e Ocultismo de Pobre.<br />

63


começou às 10h00. Consegui andar cerca de 3 metros até as 14h00. Depois é que as coisas<br />

ficaram lentas. Só entrei no templo às 17h40: quase 4 horas para andar um metro. [...]<br />

Muitas pessoas não suportaram jejuar por to<strong>do</strong> esse tempo e desistiram. Outras tentaram<br />

encurtar o caminho. Mas, como disse Jesus, a porta é estreita. E tem detector de metais. [...]<br />

No portal de entrada <strong>do</strong> templo, tive de me desapegar de to<strong>do</strong>s os bens materiais: celular,<br />

óculos, chaves, moedas etc. Por mais que fizesse, não era aceito: sempre tinha que voltar e<br />

humildemente me submeter ao julgamento <strong>do</strong>s funcionários de batinas. [...] O mestre pegou<br />

minha carteira de identidade. Súbito, suas veias saltaram e sua voz ficou gutural: "não pode<br />

dar entrada no FGTS com este RG". [...] Meus <strong>do</strong>cumentos foram rejeita<strong>do</strong>s, minha<br />

iniciação fora recusada.<br />

O tratamento metaforiza<strong>do</strong> de um fato “real” remete-nos à máxima enunciada por<br />

Paulo Leminski: “Fatos não se explicam com fatos, fatos se explicam com fábulas 28 ”.<br />

3.1.3 - Objetividade, uma reflexão subjetiva<br />

Juiz: “Nome. Profissão”.<br />

Homem: “Philip Duncan. Cientista”.<br />

Juiz: “Que razões alega para ser contra<br />

a construção da bomba de hidrogênio?”<br />

Homem: “O respeito ao gênero humano”.<br />

Juiz: “Seja mais objetivo”.<br />

Trecho da peça A saída? Onde fica a saída?, de Antônio<br />

Carlos Fontoura, Arman<strong>do</strong> Costa e Ferreira Gullar.<br />

A partir deste momento, eu, Francisco Wesdley da Silva Vasconcelos, engendrarei<br />

uma breve análise a respeito <strong>do</strong> conceito de objetividade aplica<strong>do</strong> ao jornalismo. Mas, para<br />

isso, tiro a máscara que usei até então... A discussão de conceitos e idéias feita aqui (e isso<br />

vale para to<strong>do</strong> o resto deste trabalho) foi baseada na bibliografia devidamente citada e,<br />

acima de tu<strong>do</strong>, em minhas idiossincrasias e pré-concepções de análise. Muitas vezes,<br />

descartei citações pertinentes, mas que por acaso não convergiam para a linha meto<strong>do</strong>lógica<br />

a<strong>do</strong>tada. Ou, em outras vezes, a<strong>do</strong>tei determina<strong>do</strong> autor, mas, logo em seguida, refutei seus<br />

28 Link para a bibliografia:<br />

LEMINSKI, Paulo. Metamorfose – uma viagem pelo imaginário grego. São Paulo, Iluminuras, 1994.<br />

64


argumentos com um conceito antitético, mesmo saben<strong>do</strong> que, se tivesse escolhi<strong>do</strong> a ordem<br />

inversa, o resulta<strong>do</strong> teria si<strong>do</strong> diferente. E mais, quan<strong>do</strong> coloco meu pensamento por meio<br />

de citações de teóricos reconheci<strong>do</strong>s, apenas busco reforçar meu ponto de vista acerca <strong>do</strong><br />

tema e fazê-lo pre<strong>do</strong>minar sobre os demais...<br />

Tal como o exemplo anedótico da<strong>do</strong> por Neil Postman de <strong>do</strong>is padres que desejam<br />

saber se podem fumar e rezar ao mesmo tempo. Ambos redigem uma pergunta ao Papa,<br />

mas de uma forma diferente. Por isso obtiveram respostas contraditórias para a mesma<br />

dúvida. Um <strong>do</strong>s padres perguntou: “É permiti<strong>do</strong> fumar enquanto rezo?”, ao que o Papa<br />

respondeu: “Não, enquanto se ora deve estar-se completamente concentra<strong>do</strong> na oração”. O<br />

outro padre então perguntou: “É permiti<strong>do</strong> rezar enquanto fumo?”, e resposta <strong>do</strong> Papa não<br />

foi outra senão: “Claro que sim, pois to<strong>do</strong>s os momentos são apropria<strong>do</strong>s para rezar”.<br />

(TEÓFILO, 1998 – adaptação minha).<br />

A idéia deste desmascaramento é efetuar uma discussão que coloque em xeque o<br />

mito que envolve a produção textual acadêmica e, sobretu<strong>do</strong>, jornalística. O conceito de<br />

objetividade, ti<strong>do</strong> ainda como recurso de ordem nessas duas esferas, precisa, antes de<br />

qualquer coisa, ser revisto. No que concerne à atividade jornalística, a opção pela<br />

objetividade como estratégia de retórica é ainda mais grave, pois afeta a concepção de<br />

mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s receptores dessa mensagem, que, na maioria das vezes, ignoram o contexto no<br />

qual tal conteú<strong>do</strong> foi concebi<strong>do</strong>.<br />

Em suma, o conceito de objetividade está liga<strong>do</strong> à suposta relação existente entre<br />

as declarações jornalísticas e a <strong>realidade</strong>. Em teoria, a objetividade tende a mensurar o grau<br />

de identidade entre o fato e a sua descrição mediante a informação. Para efetuar a primeira<br />

crítica de minha reflexão subjetiva acerca da objetividade, recorramos ao conceito clássico<br />

de notícia que remete ao modelo de perguntas formula<strong>do</strong> há vinte séculos por Quintiliano:<br />

quis, quid, ubi, quibus auxilius, cur, quo-mo<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong>? Uma adaptação dessa lista (ou<br />

interrogatório) derivou no chama<strong>do</strong> lead jornalístico: “quem, o quê, onde, quan<strong>do</strong>, como,<br />

porquê?”. Para Gaillard, uma notícia é uma resposta a estas seis perguntas.<br />

Não há duvida de que a resposta às referidas perguntas ajudaria a transmitir um<br />

fato a um interlocutor. A dúvida reside na seguinte questão: de que mo<strong>do</strong> pode-se atribuir a<br />

um homem o <strong>do</strong>m divino de responder a estas perguntas de mo<strong>do</strong> exato e fidedigno, se ele<br />

é apenas um media<strong>do</strong>r (não-onisciente) entre o fato e o receptor? Sem falar no fato de que<br />

65


duas dessas perguntas – “como” e “porquê” – dão imensa margem à “contaminação” pela<br />

subjetividade <strong>do</strong> jornalista, pois comportam em si dúvidas que não podem ser esclarecidas<br />

de mo<strong>do</strong> estritamente objetivo. Assim, a objetividade configura não um méto<strong>do</strong> de busca à<br />

verdade, mas uma dissimulação <strong>do</strong> fato de que é impossível alcançar a verdade<br />

propriamente dita. Para Rogério Koff:<br />

A “objetividade” jornalística é um mecanismo ideológico proposto pelos meios de<br />

comunicação de massa, que pretendem mascarar a evidência de que a suposta verdade <strong>do</strong>s<br />

fatos é uma construção social. Desta forma, os meios de comunicação de massa não<br />

reproduzem a verdade objetiva ou pura sobre os fatos, mas versões intermediadas pela<br />

construção imaginária <strong>do</strong>s sujeitos envolvi<strong>do</strong>s no processo comunicativo (apud<br />

MORETZSOHN, 2002: 80).<br />

A inserção da objetividade como atributo essencial <strong>do</strong> jornalismo ocorreu com o<br />

surgimento <strong>do</strong> “jornalismo de precisão”, proposto por P. Meyer, o qual determina que, ao<br />

investigarem os temas de atualidade, “os jornalistas devem usar os méto<strong>do</strong>s científicos de<br />

pesquisa social para poder prestar declarações comprovadas sobre os temas sociais, ou seja,<br />

para poder relatá-los objetivamente” (KUNCZIK, 2001: 103). No entanto, sempre que se<br />

fala em objetividade, tem-se em mente apenas o texto, ignoran<strong>do</strong>-se “não apenas o processo<br />

de seleção das informações ali contidas mas o fato de que um jornal é um conjunto de<br />

elementos verbais e não-verbais que interagem na produção de senti<strong>do</strong>” (MORETZSOHN,<br />

2002: 80).<br />

O jornalista é considera<strong>do</strong> um agente neutralmente distancia<strong>do</strong> para poder<br />

transmitir a informação com objetividade e ética profissional. E, para efetuar essa<br />

transmissão nesses termos, ele utiliza-se de alguns artifícios. O principal deles é a estratégia<br />

da referencialidade, por meio <strong>do</strong> qual o jogo de eu (jornalista) a tu (receptor) é elimina<strong>do</strong><br />

“em prol de um efeito de real impoluto” (GOMES, 2000: 66). No jornalismo, os fatos são<br />

conta<strong>do</strong>s por meio <strong>do</strong> verbo na terceira pessoa. “Tu<strong>do</strong> se passa como se não houvesse<br />

nenhuma colocação de valores ou hierarquização” (idem: ibid). Na Irmandade Raoul Duke,<br />

por outro la<strong>do</strong>, a referencialidade é colocada de la<strong>do</strong> e o pronome eu é figura recorrente<br />

para desmascarar o processo de produção <strong>do</strong> relato, o que pode ser percebi<strong>do</strong> na matéria Eu<br />

só queria falar com a Malu:<br />

66


O filme "Bellini e a Esfinge" é pior <strong>do</strong> que o livro. Eu não li o livro, mas é difícil imaginar<br />

uma história mais mal-contada <strong>do</strong> que nesta adaptação. [...} Eu fiquei imaginan<strong>do</strong> como<br />

faria se tivesse que escrever uma matéria elogian<strong>do</strong> o filme no dia seguinte. Seria foda.<br />

Outro recurso largamente utiliza<strong>do</strong> no jornalismo tradicional é a recorrência às<br />

aspas – que são o lugar de garantia da fidelidade <strong>do</strong> texto – como “comprovação” de uma<br />

informação objetiva e, ao mesmo tempo, como forma de transferir à fonte a<br />

responsabilidade pela autoria <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong>. No entanto, para Barthes, o próprio ato de<br />

escrever pressupõe a transformação <strong>do</strong> Eu (da subjetividade) em fragmento de código, o<br />

que acarreta no para<strong>do</strong>xo de que a linguagem (independente <strong>do</strong> seu referente) passa a ser<br />

institucionalização da subjetividade (BARTHES, 1982: 39).<br />

O uso da terceira pessoa é um sinal de “distanciamento” <strong>do</strong> repórter perante a<br />

notícia, mas que, para<strong>do</strong>xalmente, aproxima o leitor <strong>do</strong> fato. A pretendida ausência de<br />

intermediários entre o acontecimento e o leitor, confeccionada pela linguagem objetiva, faz<br />

pensar “os fatos como contan<strong>do</strong>-se por si próprios. Este é o suposto da objetividade, em que<br />

jornalista, jornal, fontes, condições técnicas, discurso corrente (...) e, enfim, a própria<br />

língua, não interviriam jamais” (GOMES. 2000: 66). A postura “objetiva” e “imparcial” <strong>do</strong><br />

jornalista tem raízes nos preceitos da ciência e filosofia de cunho moderno:<br />

A consolidação deste, como <strong>do</strong>s outros mitos que alimentam o jornalismo, explica-se pelo<br />

entorno histórico da atividade. Ela transforma-se em produto da burguesia que tomou as<br />

rédeas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> no século passa<strong>do</strong> e que encontrava legitimidade na ciência moderna em<br />

seu auge. Desta forma, o jornalismo incorpora certos fundamentos da ciência de base<br />

positiva que acreditavam na objetividade, no distanciamento frio e imparcial <strong>do</strong> cientista e<br />

em uma razão absoluta. O repórter comporta-se como um cientista, aten<strong>do</strong>-se apenas aos<br />

fatos, tratan<strong>do</strong>-os distanciadamente, com critérios objetivos (HENN, 1996: 20).<br />

A noção daquilo que é “verdadeiro” evoca os termos pelos quais nossa<br />

contemporaneidade tem dimensiona<strong>do</strong> a si mesma ante a impotência das metanarrativas e à<br />

impossibilidade da “verdade”. “Trata-se da oscilação entre verificabilidade, efetividade ou<br />

sucesso visan<strong>do</strong> consenso. É por isso que para o jornalismo seu testemunho é verdadeiro,<br />

poden<strong>do</strong>, portanto, ser argumento pró-consenso” (GOMES, 2000: 53). Mas, o que dizer da<br />

67


validação de um critério basea<strong>do</strong> numa corrente de pensamento que se mostrou incapaz de<br />

explicar o mun<strong>do</strong>? A anacrônica sublimação da objetividade não leva em conta o cenário<br />

hodierno da esfera comunicacional. O leque de explicações totalizantes e positivistas, tal<br />

como é insuficiente para abordar questões de cunho filosófico-científico, também se mostra<br />

incapaz de abrigar o “caos” <strong>do</strong> universo jornalístico, cuja disseminação é apontada por Ciro<br />

Marcondes Filho como baluarte da fragmentação de “versões <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”:<br />

A expansão <strong>do</strong>s meios de comunicação, contribuin<strong>do</strong> para multiplicar ao infinito as versões<br />

sobre os fatos, as explicações, as “<strong>do</strong>tações de senti<strong>do</strong>”, decreta igualmente o fim da<br />

unidirecionalidade histórica. Com eles e as milhares de pulverizadas versões, o mun<strong>do</strong><br />

enche-se de mil histórias, mil interpretações, conflitantes, contraditórias, díspares,<br />

desconexas e não-lineares. Nessa situação, não há mais como sustentar a imposição<br />

(arbitrária) de uma única história (a ocidental, cristã, capitalista desenvolvida ou socialista).<br />

São todas ficções, tentativas vãs de “explicar” o caminhar sem destino da civilização<br />

(MARCONDES FILHO, 1993: 90).<br />

Percebe-se também que a defesa da objetividade, realizada no âmbito da<br />

abstração, desconhece o jornalismo “realmente existente”, de tal forma que, quan<strong>do</strong> diante<br />

da práxis <strong>do</strong> dia-a-dia, acabaria por desqualificá-la, consideran<strong>do</strong>-a como “não<br />

jornalística”. Colocan<strong>do</strong>-se como elemento media<strong>do</strong>r, o jornalista faz-se presente nas<br />

notícias que narra, “uma presença emblemática, que não se esgota na captação <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s e<br />

redação de um texto, mas atravessa to<strong>do</strong> o processo de construção da notícia” (HENN,<br />

1996: 109-110). Nesses termos, “o jornalismo não é nem neutro nem objetivo”<br />

(MARCONDES FILHO, 1993: 130). Ten<strong>do</strong> esse panorama como base, pode-se dizer que a<br />

objetividade jornalística não existe de fato ou, pelo menos, é uma “meta-mito” (SILVA,<br />

1997: 25). Nas palavras de Emil Dovifat:<br />

Um jornal não pode ser “objetivamente verdadeiro”, mas apenas “subjetivamente<br />

verdadeiro”. Imagine-se o que seria de um jornal puramente “objetivo”. Ele se assemelharia<br />

a uma construção de fórmulas matemáticas e aluiria com o primeiro erro de cálculo; mais<br />

ainda, ninguém o leria (apud KUNCZIK, 2001: 226).<br />

68


É imprescindível constatar que a Irmandade Raoul Duke não consta apenas de um<br />

modelo estilístico. Em seus textos ocorre uma mixórdia de referências e estruturas<br />

diegéticas. Um exemplo cabal deste aspecto é a matéria Nu artístico, que narra a<br />

experiência de um repórter durante a sessão de fotos <strong>do</strong> americano Spencer Tunick, que<br />

utilizou como modelos cerca de mil brasileiros nus em pleno Parque <strong>do</strong> Ibirapuera, em São<br />

Paulo. Na abertura da matéria, o repórter mescla elucubrações com tópicos informativos:<br />

O brasileiro é um pela<strong>do</strong> nato. Qualquer coisa é pretexto para a carga genética herdada <strong>do</strong>s<br />

índios vir à tona. Somos de uma nudez acrobática e carnavalesca. Pelo menos é o que se<br />

conclui da passagem de Spencer Tunick pelo Brasil. O fotógrafo americano viaja pelo<br />

mun<strong>do</strong> clican<strong>do</strong> pessoas nuas em espaços públicos. Polêmico, chegou a ser preso em Nova<br />

Iorque. Mas, em São Paulo, foi recebi<strong>do</strong> como um Rei Momo. Sua performance no Parque<br />

Ibirapuera atraiu cerca de 1100 pessoas, além de uma fauna de Nany Peoples, Otávio<br />

Mesquitas, Ratinhos, Ro<strong>do</strong>lfo e ETs. Nunca a flacidez <strong>do</strong> brasileiro foi tão noticiada.<br />

A ironia é recurso freqüente nos textos gonzo. A ironia é o que “eleva o sujeito<br />

acima de sua comunhão com o mun<strong>do</strong> deslocan<strong>do</strong>-o criticamente <strong>do</strong> real” (EAGLETON,<br />

1993: 131). Por outro la<strong>do</strong>, como a ironia não fornece ao leitor nenhuma verdade<br />

alternativa, acaban<strong>do</strong> deixan<strong>do</strong>-o “suspenso em vertigem entre o real e o ideal,<br />

simultaneamente dentro e fora <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O real é o elemento <strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r irônico, mas seu<br />

percurso através <strong>do</strong> real é oscilante e etéreo, pouco tocan<strong>do</strong> o chão” (idem: ibid).<br />

Corroboran<strong>do</strong> com a visão de Eagleton, nesta matéria a ironia é inserida dentro <strong>do</strong> viés da<br />

referencialidade. Esta junção de discursos confere à descrição, além <strong>do</strong> poder de fazer o<br />

leitor construir sua imagem mental <strong>do</strong> cenário, a propriedade de suscitar reflexões acerca de<br />

questões comportamentais e identificação de estereótipos. Todavia, o fator mais relevante<br />

<strong>do</strong> excerto abaixo é a utilização das aspas, recurso usual no jornalismo, como marca<strong>do</strong>r de<br />

uma citação. O gonzo constitui-se, portanto, numa fusão de linguagens:<br />

Teríamos de preencher um papel e ceder os direitos de imagem das nossas estrias, celulites<br />

e fimoses. [...] Éramos uma paisagem de gordinhos bancários, secretárias desempregadas,<br />

professores de ensino médio, sorveteiros, estudantes, fãs de Raul Seixas e meninas tatuadas<br />

com desenhos de vacas e peixes. Cada um tentan<strong>do</strong> provar algo a si mesmo. “Quero ver até<br />

69


onde eu posso ir. Tirar a roupa aqui é um passo enorme para mim”, disse uma senhora de 60<br />

anos.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, à medida que o relato desenrola-se, o repórter passa a deslocar o<br />

foco da reportagem para si mesmo, deixan<strong>do</strong> a diegese permear-se cada vez mais por<br />

elementos idiossincráticos, limitan<strong>do</strong> o universo aborda<strong>do</strong> na matéria, e passa a narrar a<br />

situação a partir de sua perspectiva:<br />

Ninguém ali estava preocupa<strong>do</strong> em expressar o desespero ou a depressão da vida<br />

contemporânea. Nossas genitálias eram de uma felicidade jamais vista. Em liberdade, fariam<br />

piruetas e acrobacias, como micos amestra<strong>do</strong>s. Finalmente, a catarse: Tunico pegou o<br />

megafone e man<strong>do</strong>u to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tirar a roupa. Gritos de aprovação. Camisetas e cuecas<br />

voaram e, pouco depois, ficamos completamente pela<strong>do</strong>s. Milhares de flashs explodiram nas<br />

nossas caras. Era a imprensa, num momento J. R. Duran. Em segun<strong>do</strong>s, descobri toda a<br />

verdade: ficar nu em público é a coisa mais cheia de pu<strong>do</strong>r que existe. Recomen<strong>do</strong> aos<br />

padres e às igrejas. Não houve olhares constrange<strong>do</strong>res, ninguém sequer se encostou em<br />

mim. Há menos respeito até no metrô. [...] Nossas peronites e espinhas na bunda se<br />

tornaram insuportavelmente coletivas, massificadas. Totalmente diferentes <strong>do</strong>s nus da<br />

Renascença, que eram individuais, tinham no máximo três ou quatro personagens.<br />

Admitiam até cenário. Para Tunico, nós éramos o cenário. [...] Debaixo da marquise<br />

deveríamos nos deixar cair, como se estivéssemos sem forças. Horror, horror, horror:<br />

ficamos literalmente amontoa<strong>do</strong>s, como entulho, e com as costas no chão frio. Minha cabeça<br />

ficou <strong>do</strong> la<strong>do</strong> da bunda mais peluda <strong>do</strong> universo. Deveria ser transgênica ou mutante, nunca<br />

humana. Quase vomitei.<br />

3.2 - Algumas gotas de literatura...<br />

“A literatura é a literatura”. – Roland Barthes<br />

Antes de colocar o jornalismo frente a frente com a literatura, é necessário que<br />

esta última tenha demarca<strong>do</strong> o seu lugar dentro <strong>do</strong> micro-universo de conceitos que<br />

permeiam este trabalho. Se encerrar uma discussão sobre o conceito de jornalismo já é uma<br />

tarefa difícil, mesmo este já ten<strong>do</strong> sua função básica (transmitir o relato de um fato)<br />

70


supostamente como um consenso, mais o é o de literatura, cuja concepção tem muda<strong>do</strong><br />

muito, mesmo a respeito de suas características fundamentais. Para Raul Castagnino, a<br />

literatura pode ser vista sob os seguintes prismas: sinfronismo, função lúdica, evasão,<br />

compromisso e ânsia de imortalidade. Para ele, a literatura pode assumir todas essas<br />

funções, mas nem sempre ao mesmo tempo. O próprio autor reconhece a fraqueza de sua<br />

delimitação, pois mesmo todas as funções juntas não comportariam a diversidade de fins e<br />

meios <strong>do</strong>s quais a literatura vale-se. No entanto, um breve passeio pela obra de Castagnino,<br />

embora não nos responda à pergunta que batiza o próprio livro (Que é literatura?), pode<br />

dar-nos alguma pista. A literatura como sinfronismo pressupõe a coincidência espiritual<br />

entre o homem de uma época e os de todas as épocas e estabelece uma cumplicidade entre<br />

autor e leitor no processo da atividade cria<strong>do</strong>ra. Em suma, cada vez que um homem diante<br />

de uma obra literária “consegue reviver em si os estremecimentos que comoveram o autor<br />

no instante de compô-la, opera-se o efeito <strong>do</strong> sinfronismo, flui a onda maravilhosa de<br />

sinfonia espiritual capaz de aproximar simpaticamente <strong>do</strong>is seres, por sobre o tempo e o<br />

espaço” (CASTAGNINO, 1969: 46). A literatura como função lúdica “baseia-se no trato<br />

com certas imagens, numa transformação da <strong>realidade</strong>. Daí que a linguagem, ao passar <strong>do</strong><br />

concreto para o abstrato, <strong>do</strong> material para o ideal, se valha <strong>do</strong> jogo” (idem: 75). Esta<br />

concepção converge para a idéia da linguagem como construtora de mun<strong>do</strong>s, pois atrás de<br />

cada expressão <strong>do</strong> abstrato há uma metáfora oculta num jogo de palavras. Deste mo<strong>do</strong>, o<br />

homem cria suas designações para o existente, ou seja, um segun<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inventa<strong>do</strong> “à<br />

margem da natureza”. Enfim, “quantidade e medida silábica, ritmo, rima no verso; a sintaxe<br />

própria, o senti<strong>do</strong> figura<strong>do</strong>, os senti<strong>do</strong>s de elevação e tensão, de alegria e distensão na<br />

composição literária em geral correspondem por si mesmos à esfera lúdica” (idem: 86-87).<br />

O termo literatura de evasão também pode atuar sob diversos focos: cura, catarse, refúgio,<br />

substituto ou compensação, aturdimento, esquecimento, alienação, transposição de<br />

personalidade, fuga, êxtase. Enquanto evasão, a literatura “opera assim como um asilo,<br />

como um refúgio no qual é possível abrigar-se fugin<strong>do</strong> à <strong>realidade</strong> circundante” (idem:<br />

109), o que pode ocorrer por meio da criação de personagens, de imagens-metáforas, da<br />

idealização etc. A literatura como compromisso está baseada na concepção de Jean Paul<br />

Sartre de que o homem serve-se das palavras como armas. “Escrever em prosa é uma<br />

empresa de combate porque o escritor tem uma ‘situação’ em sua época e cada palavra sua<br />

71


epercute” (idem: 151). E esse compromisso existencialista faz da literatura uma mensagem<br />

que busca a imposição, o envolvimento, a militância ativa. A última “forma” da literatura é,<br />

sem dúvida, a mais romântica. Encarar a literatura como ânsia de imortalidade é vê-la<br />

como um caminho de ser eterniza<strong>do</strong> por mérito de suas façanhas. A tal ânsia, “perfilam<br />

aqueles cria<strong>do</strong>res que, esqueci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> presente, entregam-se à obra como quem sobe num<br />

veículo que os conduzirá à glória, à mortal imortalidade” (idem: 169). Raul Castagnino, já<br />

no final de seu livro, recorre a Alfonso Reyes para desferir uma definição esquiva, mas, de<br />

certa forma, simbólica, sobre o obscuro ser da literatura:<br />

A literatura não é uma atividade de a<strong>do</strong>rno, mas a expressão mais completa <strong>do</strong> homem.<br />

Todas as demais expressões se referem ao homem enquanto especialista de alguma<br />

atividade singular. Só a literatura expressa o homem, sem distinção nem qualificação<br />

alguma (apud idem: 210).<br />

Terry Eagleton também trilha seus passos rumo a um conceito de literatura. A<br />

primeira idéia discutida por ele consiste na possível definição de literatura como “a escrita<br />

‘imaginativa’, no senti<strong>do</strong> de ficção – escrita que não é literalmente verídica” (EAGLETON,<br />

1997: 1). No entanto, o autor logo desvia desse caminho por julgar que a distinção entre<br />

“fato” e “ficção” é muitas vezes “questionável”. Nesse senti<strong>do</strong>, to<strong>do</strong> e qualquer escrito seria<br />

considera<strong>do</strong> literatura, pois, como vimos, o ato de escrever é media<strong>do</strong> pela linguagem, o<br />

que já impede a apreensão absoluta da <strong>realidade</strong>. Continuan<strong>do</strong> sua jornada, Eagleton<br />

imagina encontrar uma saída ao diferenciar a literatura <strong>do</strong>s outros escritos pelo fato de<br />

empregar a linguagem de maneira peculiar. Segun<strong>do</strong> essa teoria, a literatura é a escrita que<br />

representa uma “violência organizada contra a fala comum”, transforman<strong>do</strong> e<br />

intensifican<strong>do</strong> a linguagem costumeira, de mo<strong>do</strong> a afastar-se sistematicamente da fala<br />

cotidiana. Assim, a literatura seria uma forma de linguagem na qual a tessitura, o ritmo e a<br />

ressonância das palavras superam o seu significa<strong>do</strong>, chaman<strong>do</strong> atenção sobre si mesma e<br />

exibin<strong>do</strong> sua existência material. Segun<strong>do</strong> essa corrente, a especificidade da linguagem<br />

literária seria “o fato de ela ‘deformar’ a linguagem comum de várias maneiras. Sob a<br />

pressão <strong>do</strong>s artifícios literários, a linguagem comum era intensificada, condensada, torcida,<br />

reduzida, ampliada, invertida. Era uma linguagem que se tornara estranha” (idem: 5).<br />

Contu<strong>do</strong>, essa trilha mostrou-se inviável, pois a idéia de que existe uma única linguagem<br />

72


“normal”, usada igualmente por to<strong>do</strong>s os membros da sociedade, é uma ilusão. Para ele,<br />

“qualquer linguagem em uso consiste de uma variedade muito complexa de discursos,<br />

diferencia<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong> a classe, região, gênero, situação, etc., os quais de forma alguma<br />

podem ser simplesmente unifica<strong>do</strong>s em uma única comunidade lingüística homogênea”<br />

(idem: 6). O atalho utiliza<strong>do</strong> por Eagleton aponta em direção à função <strong>do</strong> escrito<br />

propriamente dito. Ele considera a literatura em si como um discurso “não-pragmático”,<br />

que não tem nenhuma finalidade prática imediata, referin<strong>do</strong>-se apenas a um “esta<strong>do</strong> geral<br />

de coisas”. E, para mostrar esse desprendimento, a literatura, às vezes, deixa isso claro por<br />

meio <strong>do</strong> uso de uma linguagem particular. Para o autor, esse caminho mostra-se revela<strong>do</strong>r,<br />

pois “esse enfoque na maneira de falar, e não na <strong>realidade</strong> daquilo que se fala, é por vezes<br />

considera<strong>do</strong> como uma indicação <strong>do</strong> que entendemos por literatura: uma espécie de<br />

linguagem autoreferencial, uma linguagem que fala de si mesma” (idem: 10-11). Só que,<br />

por outro la<strong>do</strong>, ele lembra que em grande parte daquilo que se classifica como literatura, “o<br />

valor verídico e a relevância prática <strong>do</strong> que é dito é considera<strong>do</strong> importante para o efeito<br />

geral” (idem: 11). E então, como resolver estas contradições e encontrar uma definição que<br />

possa abranger a literatura? A definição de literatura fica ancorada, então, sobre a “maneira<br />

pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é li<strong>do</strong>” (idem: ibid). Dessa<br />

forma, “qualquer coisa” pode ser literatura, e qualquer escrito que seja considera<strong>do</strong> como<br />

literatura, inalterável e inquestionavelmente, pode deixar de sê-lo. Por outro la<strong>do</strong>, Eagleton<br />

lembra que, na Inglaterra <strong>do</strong> séc. XVIII, o conceito de literatura não se limitava aos escritos<br />

“imaginativos” e não-pragmáticos. Abrangia to<strong>do</strong> o conjunto de obras valorizadas pela<br />

sociedade: filosofia, história, ensaios e cartas, bem como poemas. Não era o fato de ser<br />

ficção que tornava um texto “literário” e sim sua conformidade a certos padrões de “belas<br />

letras”. Em suma, da mesma forma que o jornalismo, a literatura não possui uma essência<br />

apreendida igualmente pelo homem através da História.<br />

Muito embora a impossibilidade de conceber uma idéia perene de literatura seja<br />

evidente, é necessário delimitar esse conceito de mo<strong>do</strong> a trabalhá-lo sem ambigüidades.<br />

Como o nosso trabalho lida com a relação entre a ficção e a <strong>realidade</strong>, e o uso da palavra<br />

para designar ou não uma referencialidade, convém-nos a<strong>do</strong>tar a concepção barthesiana de<br />

literatura, que concebe a linguagem literária como veículo propulsor que leva o texto em<br />

direção contrária ao “mun<strong>do</strong> concreto” e, o mais importante, deixa esse vôo fazer-se<br />

73


perceber por si mesmo. Embora julguemos essa perspectiva redutora para designar o termo<br />

literatura como um to<strong>do</strong>, ele é o mais adequa<strong>do</strong> para estabelecer uma analogia entre o<br />

jornalismo e a literatura, duas formas de discurso distintas em essência, mas inter-<br />

relacionadas por natureza. Destarte:<br />

A idéia de literatura não é a mensagem que você recebe; é um significa<strong>do</strong> que você acolhe a<br />

mais, marginalmente; você sente-o flutuar vagamente numa zona paróptica; o que você<br />

consome, são as unidades, as relações, em suma, as palavras e a sintaxe <strong>do</strong> primeiro sistema<br />

(que é a língua); e, no entanto, o ser desse discurso que você lê (o seu “real”), é mesmo a<br />

literatura, e não a ane<strong>do</strong>ta que ele lhe transmite (BARTHES, 1977: 361-362).<br />

Paul de Man segue no mesmo caminho de Barthes e define a “essência” da<br />

literatura no fato de que toda linguagem é inevitavelmente metafórica, operan<strong>do</strong> por tropos<br />

e figuras; e que seria um engano acreditar que qualquer linguagem é “literalmente literal”.<br />

Na literatura, o leitor se vê a flutuar no vácuo entre um significa<strong>do</strong> “literal” e outro,<br />

figurativo. Posto à gravidade zero, ele constata-se incapaz de efetuar uma escolha definitiva<br />

entre os <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s e acaba sen<strong>do</strong> “lança<strong>do</strong> a um abismo lingüístico sem fun<strong>do</strong> por um<br />

texto que se tornou ilegível” (EAGLETON, 1997: 200).<br />

3.3 – Literatura jornalística ou jornalismo literário?<br />

“O jornalista fere no peito o escritor. O escritor repele o jornalista,<br />

por esmagá-lo, por obrigá-lo a renascer quase sempre de um mesmo<br />

patamar. Feliz daquele que, nesse embate, consegue servir, e bem, aos<br />

<strong>do</strong>is senhores”. - Bernar<strong>do</strong> Ajzenberg<br />

Vimos que o <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> não pode, a princípio, ser enquadra<strong>do</strong> em<br />

nenhuma das definições tradicionais de jornalismo e literatura. Por ser permea<strong>do</strong> de<br />

elementos concernentes aos <strong>do</strong>is âmbitos, a análise <strong>do</strong> gonzo-jornalismo não pode ser<br />

realizada sem se realizar um estu<strong>do</strong> acerca das relações entre eles. Atribui-se ao poeta e<br />

ensaísta Salva<strong>do</strong>r Novo, a seguinte frase: “Não se pode alternar o santo ministério da<br />

74


maternidade que é a literatura com o exercício da prostituição que é o jornalismo” (apud<br />

CASTRO & GALENO, 2002: 17). Embora estereotipada, tal visão entende essas duas<br />

formas de expressão como detentoras de natureza e especificidades que as situam em<br />

esferas diferentes, intocáveis. Portanto, o primeiro passo para entender as relações entre<br />

jornalismo e literatura é tentar colocá-los como manifestações distintas, unidas por terem a<br />

palavra como objeto, mas separadas por terem segui<strong>do</strong> caminhos paralelos. “<strong>Jornalismo</strong> em<br />

si não é literatura” (JOBIM, 1992: 39). O catedrático Manuel Ángel Vázquez Medel tenta<br />

estabelecer essa diferenciação através da análise da referencialidade <strong>do</strong>s discursos:<br />

No caso <strong>do</strong> discurso jornalístico, deve ser <strong>do</strong>minante a função referencial, por ser a que<br />

articula sua funcionalidade informativa e sua vontade de construir discursos basea<strong>do</strong>s em<br />

fatos reais. No caso <strong>do</strong>s discursos literários, esteja ou não presente a função referencial,<br />

deve <strong>do</strong>minar a função poética ou estética, que reclama atenção sobre o próprio texto (in<br />

CASTRO & GALENO, 2002: 23-24).<br />

Em sua diferenciação deveras simplista, ele afirma que enquanto “os discursos<br />

factuais, próprios <strong>do</strong> jornalismo podem ser, mais ou menos, submeti<strong>do</strong>s à prova de<br />

veracidade ou falsidade, nos discursos literários esta conexão não é pertinente, já que o que<br />

o autor disse, estabelece sua própria referência” (idem: 24). Vimos, contu<strong>do</strong>, neste trabalho,<br />

que tampouco o jornalismo pode angariar tal prova de veracidade por ser, assim como a<br />

literatura, uma forma de expressão mediada pela palavra.<br />

No Brasil, Alceu Amoroso Lima é precursor nos estu<strong>do</strong>s a respeito da linha que<br />

supostamente dividiria os campos literário e jornalístico. Para ele, o jornalismo é um gênero<br />

inseri<strong>do</strong> dentro <strong>do</strong> espectro da literatura, assim como o romance e a poesia, e isso ocorre em<br />

virtude de alguns caracteres que lho atribuem uma aura literária, mas, por outro la<strong>do</strong>,<br />

constitui um gênero específico porque possui elementos que o distinguem das outras<br />

expressões ditas literárias.<br />

O próprio Amoroso Lima atribui à palavra, no jornalismo, a função de decodificar<br />

a <strong>realidade</strong>, mas estabelecen<strong>do</strong>-se critérios para que não deixe de ser “uma arte verbal em<br />

prosa; [...] uma prosa de apreciação; e uma apreciação de acontecimentos” (LIMA, 1969:<br />

41). Na concepção de Amoroso Lima, o jornalismo é um gênero da literatura pelo fato de<br />

constituir-se como “arte da palavra”, com ênfase nos meios de expressão, mas não<br />

75


excluin<strong>do</strong> os seus fins. Para estabelecer essa relação, o autor recorre ao conceito que<br />

enxerga o gênero como o conjunto de esquemas estéticos disponíveis para o escritor e<br />

inteligíveis pelo leitor de antemão. Tzvetan To<strong>do</strong>rov também não consegue desligar-se<br />

desse enraiza<strong>do</strong> conceito, chaman<strong>do</strong> o gênero de uma “codificação de propriedades<br />

discursivas” (TODOROV, 1980: 48). Para ele, apenas pode-se conceber a transgressão de<br />

uma obra que supera seus limites classificatórios, se pressupormos a existência de uma<br />

norma anterior: “só se detecta transgressão em função de uma regra preexistente”<br />

(TODOROV, 1980: 46). Tal concepção de gênero tem origens no pensamento moderno e,<br />

por isso, não leva em conta o fato de que o texto é um ato de fala constituí<strong>do</strong> de<br />

propriedades idiossincráticas. Destarte, tentar analisar tais propriedades na forma de<br />

gêneros daria lugar a “uma infinita possibilidade de discursos que não encontraria respal<strong>do</strong><br />

num ou em qualquer outro sistema classificatório” (RESENDE, 2002: 29). Portanto, faz-se<br />

necessário que a noção de gênero deva ser revista e ampliada, “de forma a possibilitar uma<br />

variedade tal de discursos que destrua a própria hierarquia imposta aos gêneros e admita<br />

serem eles suscetíveis, não só de misturarem-se, mas de romperem com suas próprias<br />

amarras” (idem: 29-30). A própria Clarice Lispector, que trilhou o híbri<strong>do</strong> caminho<br />

interposto entre os discursos jornalístico e literário, confessa em uma de suas crônicas:<br />

“gêneros já não me interessam” (LISPECTOR, 1992: 375).<br />

Sob tal perspectiva é que recorremos aos autores pós-modernos, pensa<strong>do</strong>res das<br />

teorias contemporâneas, que, por sua vez, repudiam modelos que categorizam gêneros e<br />

linguagens. “A invenção contínua de construções novas, de palavras e de senti<strong>do</strong>s que, no<br />

nível da palavra, é o que faz evoluir a língua” (LYOTARD, 2002: 17). Dessa forma,<br />

Lyotard acaba por contribuir para o atesta<strong>do</strong> de impossibilidade, nos tempos hodiernos, de<br />

estabelecer normas que classifiquem a produção de textos. “Continuar falan<strong>do</strong> em gêneros<br />

seria, ironicamente, generalizar e não entender a diversidade e a proliferação de vozes, hoje<br />

derivadas das várias instituições <strong>do</strong> saber e que ecoam nos diversos tipos de discurso”<br />

(RESENDE, 2002: 33). Desta forma, devemos:<br />

pensá-los enquanto manifestações da fala, enquanto discursos – nunca enquanto gênero<br />

jornalístico, de um la<strong>do</strong>, e gênero literário, de outro, que se fundem num só –, pensá-los<br />

enquanto manifestações detentoras de propriedades discursivas, por vezes, diferentes e<br />

particulares e, por outras, semelhantes (idem: 34).<br />

76


Bakhtin atenta para importância de se levar em conta o contexto no qual uma<br />

manifestação é erigida. Para ele “assim como, para observar o processo de combustão,<br />

convém colocar o corpo no meio atmosférico, da mesma forma, para observar o fenômeno<br />

da linguagem, é preciso situar os sujeitos – emissor e receptor <strong>do</strong> som –, assim como o<br />

próprio som, no meio social” (BAKHTIN, 1997: 70). Isto significa que não é possível<br />

abster-se de fazer remissão aos lugares de onde tais discursos advêm. A priori, os chama<strong>do</strong>s<br />

contextos factual e ficcional, são esses os lugares, <strong>do</strong> jornalismo e da literatura,<br />

respectivamente. No entanto, a delimitação desses “lugares” deve contribuir não para a<br />

classificação e hierarquização das práticas discursivas, mas para se chegar ao entendimento<br />

das “regras que, ainda, autoritariamente, regem sua enunciação na medida em que<br />

procuram defini-los” (RESENDE, 2002: 42). Ao pensar o discurso dentro <strong>do</strong> âmbito da<br />

pós-modernidade:<br />

Faz-se necessário considerar que componentes, tanto das águas literárias quanto<br />

jornalísticas, servem para que se estabeleça alguma diferenciação entre elas. Mas pensar que<br />

essa diferença impossibilita a interpenetração que se dá nesses <strong>do</strong>is campos é limitar o<br />

universo literário que se desenvolveu para um universo verbal mais abrangente. Sen<strong>do</strong><br />

assim, deve-se não exatamente definir os <strong>do</strong>is discursos, mas estabelecer variáveis que<br />

possibilitem sua aproximação (idem: 40).<br />

No entanto, não podemos limitar nossa discussão somente ao antagonismo entre<br />

factual e ficcional pois, “a rigor, não há propriamente jornalismo, mas jornalismos, com<br />

formas, méto<strong>do</strong>s e objetivos bem distintos entre si, de acor<strong>do</strong> com os propósitos de quem<br />

produz e <strong>do</strong> público a que se destina” (MORETZSOHN, 2002: 13). Através deste prisma, é<br />

possível enxergar que “o discurso jornalístico, como qualquer outro, não se faz de forma<br />

única, mas, ao contrário, de variações, de mo<strong>do</strong>s jornalísticos – notícias, reportagens,<br />

entrevistas, crônicas, artigos e outros – que se processam dentro <strong>do</strong> próprio fazer<br />

jornalístico” (RESENDE, 2002: 65). Assim, entendemos que acolher a classificação<br />

imposta ao discurso jornalístico, encaran<strong>do</strong>-o como expressão de constituição<br />

indelevelmente informativa, limita o seu campo de manifestação. Para Santaella:<br />

77


“Não podemos negar um evidente intercâmbio de recursos e migração de linguagens que<br />

extrapola a mera esfera da relação jornal e literatura. Um intercâmbio, aliás, que deve ser<br />

busca<strong>do</strong>, pois é na fenda entre <strong>do</strong>is sistemas de signos e nas brechas <strong>do</strong> sistema instituí<strong>do</strong><br />

que podem germinar novas estruturas de linguagem (o estereótipo <strong>do</strong> novo nasce sempre no<br />

interior de um mesmo sistema)” (SANTAELLA, 1996: 56).<br />

O jornalismo gonzo, como modelo de produção textual, vai e vem através dessas<br />

brechas, ten<strong>do</strong>, ora um pé no jornalismo, por que tem (ou diz ter) um referente externo, ora<br />

outro pé na literatura, pela subversão da linguagem, pelas figuras metafóricas, pelas<br />

descrições sensoriais, pelas elucubrações, pelos relatos de teor ficcional e pela inserção <strong>do</strong><br />

repórter na matéria, marcan<strong>do</strong> a destituição <strong>do</strong> uso da terceira pessoa, uma das<br />

características básicas <strong>do</strong> jornalismo no senti<strong>do</strong> estrito. Sobre este aspecto, Danton Jobim<br />

afirma que a experiência <strong>do</strong> jornalista e a <strong>do</strong> escritor “não são mun<strong>do</strong>s fecha<strong>do</strong>s;<br />

intercomunicam-se esses <strong>do</strong>is <strong>do</strong>mínios, entre os quais, separa<strong>do</strong>s que estão por uma linha<br />

fluida, haverá sempre uma passagem discreta” (JOBIM, 1992: 45). Desta forma, preceitos<br />

como verdade, <strong>realidade</strong>, atualidade e objetividade, nos textos gonzo, são<br />

“dessacraliza<strong>do</strong>s”, viabilizan<strong>do</strong> a interposição com o contexto ficcional. Assim, quan<strong>do</strong><br />

inserida dentro <strong>do</strong> jornalismo, caberia à literatura estabelecer um recorte da <strong>realidade</strong> de tal<br />

forma que opere como “uma explosão que abra uma <strong>realidade</strong> muito mais ampla” (in<br />

CASTRO & GALENO, 2002: 44-45). Para que o jornalismo transcenda sua atual função<br />

de acompanhar o factual e esvaecer-se junto com ele, torna-se necessário, portanto, recorrer<br />

à literatura, que terá o intuito de “desobstruir a imaginação jornalística e [...] evitar que ela<br />

se transforme em mero exercício retórico <strong>do</strong> cotidiano” (in idem: 107).<br />

O jornalismo gonzo está situa<strong>do</strong> num <strong>do</strong>s “enclaves de invenção” propostos por<br />

Santaella, que “rompem as barreiras entre as artes e entre os signos, subverten<strong>do</strong><br />

estereótipos estruturais e o conseqüente entorpecimento de nosso estar no mun<strong>do</strong>”<br />

(SANTAELLA, 1996: 56-57). Dentre os enclaves que resistem a “rótulos e<br />

engavetamentos”, que impossibilitam diluições imediatas, Santaella cita “poemas que se<br />

transformam em arquiteturas gráficas ou em móbiles táteis”, tal como “prosas que se<br />

recusam prosear” e, um último, que, mesmo sem intencionalidade, pode prover-nos uma<br />

definição provisória <strong>do</strong> que seja gonzo-jornalismo. Mais <strong>do</strong> que uma literatura jornalística<br />

ou alguma espécie de jornalismo literário, o <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> caracteriza-se por escritos<br />

78


que “fendem a barreira entre ilusão e <strong>realidade</strong> desvelan<strong>do</strong> um outro real nas dimensões<br />

intersticiais da palavra e da vida” (idem: 57).<br />

3.4 – Ficção e verdade na Irmandade Raoul Duke<br />

"SENTE MEU CORAÇÃO! O cara no bar! Atirou! No Arco Íris! Meu<br />

coração! Tá disparan<strong>do</strong>!" Ela tinha coloca<strong>do</strong> minha mão direita sobre<br />

seu seio esquer<strong>do</strong> e, no lugar de qualquer palpitação alterada, eu<br />

sentia só o mamilo e a carne em volta. Eu não duvidava <strong>do</strong> seu<br />

nervosismo, havia outros indícios de que ela estava realmente<br />

assustada: <strong>do</strong>is zoiões esbugalha<strong>do</strong>s, a fala corrida e desconexa, e o<br />

fato de que fez uma estranha segurar seu peito enquanto contava a<br />

história. Podia estar cheirada também, mas àquela altura não fazia<br />

diferença.- Cecilia Giannetti.<br />

Por mais estranhamento que isso possa causar, o texto da epígrafe acima trata-se<br />

de um trecho de uma matéria gonzo-jornalística. O relato de viés erótico e a sinestesia da<br />

repórter sobrepõem-se ao fato jornalístico que está por trás da cena. Em verdade, a causa <strong>do</strong><br />

nervosismo da “estranha” foi um tiroteio que ocorrera minutos antes num bar, no qual um<br />

homem fora balea<strong>do</strong>. A descrição <strong>do</strong> evento carece de minúcias, mas a repórter logo se<br />

justifica: “Eu não podia exigir detalhes sobre o ocorri<strong>do</strong>; um peitinho já era demais”. Dessa<br />

forma, a narra<strong>do</strong>ra esquiva-se da diegese linear da cena, buscan<strong>do</strong> recursos outros para<br />

transmitir um fato: a apreensão da transeunte e a própria percepção sensorial da repórter.<br />

Sob esse viés, o fato em si é o que menos importa. Na matéria A Noite é Longa e a Saia é<br />

Curta na Lapa... 29 ocorre um processo que é prática recorrente no gonzo-jornalismo: a<br />

ficcionalização <strong>do</strong> fato, por meio <strong>do</strong> qual são utiliza<strong>do</strong>s aspectos da ficção de mo<strong>do</strong> a fazer<br />

com que o “mun<strong>do</strong> real” seja recomposto. “O processo consiste, basicamente, em (re)criar<br />

mun<strong>do</strong>, (re)construir narrativas, quer sejam factuais ou ficcionais, de mo<strong>do</strong> a fazê-las se<br />

29 O título completo é A Noite é Longa e a Saia é Curta na Lapa mas o Mar Não Tá pra Piranha: A Lapa é o<br />

Rio em 2002.<br />

79


adequar, mais propriamente, ao universo daquele que as (re)constrói, daquele que está<br />

sempre (re)len<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>” (RESENDE, 2002: 111). Com isso, o repórter viabiliza o<br />

rompimento <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> factual que costumeiramente rege os processos de produção e<br />

recepção <strong>do</strong> jornalismo, guian<strong>do</strong> o leitor a um “outro mun<strong>do</strong>”, que beira a (e às vezes<br />

mergulha na) ficção, um mun<strong>do</strong> onde toda verdade se faz crível. O resulta<strong>do</strong> disto é a<br />

criação de “um texto que, por sinalizar fato e/ou ficção, peça um leitor que divague,<br />

fazen<strong>do</strong> com que a significação se dê em níveis outros, que não somente aqueles que se<br />

referenciam no real de um ou outro discurso, mas, também, no real desse que é o seu<br />

segun<strong>do</strong> produtor” (idem: 102), crian<strong>do</strong> a figura <strong>do</strong> leitor-investiga<strong>do</strong>r, ciente da não mais<br />

existência <strong>do</strong> pacto primeiro <strong>do</strong> jornalismo que pressupunha a verdade em suas afirmações.<br />

Um leitor que caminhará sobre a “saudável” (no senti<strong>do</strong> barthesiano 30 ) dúvida: será o<br />

jornalista o mensageiro da verdade factual ou da “verdade” ficcional? O caráter de<br />

“verdade” atribuí<strong>do</strong> à ficção não vem, contu<strong>do</strong>, de sua relação com o real. Ele é decorrente<br />

da consciência por parte <strong>do</strong> jornalista/literato acerca da condição irreal imanente à<br />

linguagem e, portanto, a to<strong>do</strong> ato nela basea<strong>do</strong>:<br />

A literatura mais “verdadeira” é aquela que se sabe a mais irreal, na medida em que ela se<br />

sabe essencialmente linguagem, é aquela procura de um esta<strong>do</strong> intermediário entre as coisas<br />

e as palavras, é aquela tensão de uma consciência que é ao mesmo tempo levada e limitada<br />

pelas palavras, que dispõe através delas de um poder ao mesmo tempo absoluto e<br />

improvável (BARTHES, 1982: 79).<br />

O fato ficcionaliza<strong>do</strong>, o jornalismo desapega<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ideais de objetividade e<br />

imparcialidade, o factual permea<strong>do</strong> por elementos literários são formas de discurso nas<br />

quais “se acredita sem se acreditar” (BARTHES, 1977: 362) , pois o leitor está em trânsito<br />

entre <strong>do</strong>is universos, cada um com leis diferentes para reger a palavra. “É ilusão e não<br />

simulacro, pois não finge ser o que não é” (MAN, 1996: 119). O discurso, posto nestas<br />

condições, torna-se mais verdadeiro pois não almeja à dissimulação presente no jornalismo.<br />

“A ficcionalização é um jogo de linguagem, neste aspecto em que desrealiza o real e exige<br />

30 O signo “saudável”, para Barthes, é aquele que chama a atenção para a sua própria arbitrariedade – aquele<br />

que não tenta fazer-se passar por “natural”, mas que, no momento mesmo de transmitir um significa<strong>do</strong>,<br />

comunica também alguma coisa de sua própria condição relativa e artificial.<br />

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um processo intersubjectivo para se produzir, exige a presença <strong>do</strong> outro, a sua aceitação das<br />

regras <strong>do</strong> jogo, e nisso se distancia <strong>do</strong> puro fantasma individual que assola o sujeito nos<br />

processos patológicos” (BABO, 1996).<br />

Na matéria Nem John Wayne matou tanto índio na Cidade Baixa, de André<br />

“Car<strong>do</strong>so” Czarnobai, mais um exemplo de ficcionalização, que desta vez é feita a partir da<br />

inserção da figura <strong>do</strong> repórter como protagonista da reportagem, manipulan<strong>do</strong> os fatos e<br />

determinan<strong>do</strong> o curso da história, não com palavras, mas com atos. “O próprio narra<strong>do</strong>r,<br />

presente na história; ele se constrói <strong>do</strong> fato e da ficção” (RESENDE, 2002: 92). Apesar (ou<br />

por causa) de soar eminentemente ficcional, de certa forma, o relato – valen<strong>do</strong>-se da<br />

condensação de percepções (ou da imaginação) <strong>do</strong> repórter-narra<strong>do</strong>r-personagem –<br />

constitui-se numa estrutura narrativa que tira da (existência ou não de) veracidade o seu<br />

atributo principal. A “verdade” desta cena designa “qualquer coisa como a genuinidade,<br />

sinceridade ou autenticidade; ou a verossimilhança, isto é, não adequação àquilo que<br />

aconteceu, mas aquilo que poderia ter aconteci<strong>do</strong>” (VILAS BOAS, 1996: 63):<br />

Um sujeito desprezível ia nesse Palio. Rádio a to<strong>do</strong> volume num desses funks, camisa, vidro<br />

fumê, mascan<strong>do</strong> chiclé de boca aberta. Virou a cabeça pro la<strong>do</strong> e viu que eu o estava<br />

olhan<strong>do</strong> fixamente. Um pouco surpreso começou a acelerar e me encarar. Eu não mexi o<br />

pescoço. Permaneci olhan<strong>do</strong> fixo pro motorista <strong>do</strong> Palio, que a essa altura começava a ficar<br />

nervoso, e olhava compulsivamente para os la<strong>do</strong>s. Abri o vidro e coloquei o corpo pra fora.<br />

Seus olhos arregalaram, ele congelou. Eu disse "Ô", ele olhou pro sinal de novo "eu vou te<br />

pegar", e voltei pra dentro <strong>do</strong> carro, rin<strong>do</strong>. Ele acelerou, sem esperar o sinal. Deixei ele<br />

correr. Quan<strong>do</strong> o sinal abriu, saí em disparada atrás <strong>do</strong> Palio. Gato e rato, um jogo clássico.<br />

Não tirei os olhos <strong>do</strong> seu retrovisor, onde só via o reflexo <strong>do</strong>s seus olhos apavora<strong>do</strong>s. Fiquei<br />

dan<strong>do</strong> sinais de luz a cada cinco ou dez segun<strong>do</strong>s. Ele tentou de todas as formas me<br />

despistar: dava sinal prum la<strong>do</strong> e entrava pro outro, desligava os faróis pra sumir nas ruas<br />

escuras, ficava ansioso quan<strong>do</strong> eu parava atrás dele nas sinaleiras. Isso foi até o último sinal<br />

antes da minha rua, quan<strong>do</strong> consegui parar ao la<strong>do</strong> dele, e um caminhão impediu que ele<br />

desrespeitasse o sinal. De novo me coloquei pra fora <strong>do</strong> carro e gritei: "Ô, amigo" Ele nem<br />

me olhou "o sinal vermelho é pra PARAR" Ainda tive tempo de vê-lo me fulminan<strong>do</strong> com<br />

um olhar um furioso, enquanto o sinal abria e eu subia as ladeiras da Medianeira.<br />

Talvez o mais emblemático exemplo publica<strong>do</strong> na IRD sobre a relação entre<br />

ficção e verdade seja a Entrevista com a Verdade, de autoria de Eduar<strong>do</strong> Fernandes,<br />

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heterônimo Eduf. Na surreal entrevista, Verdade é um transformista pernambucano, cujo<br />

pai, muito religioso, batizou os três filhos, respectivamente, de Verdade, Caminho e Vida,<br />

por admirar a passagem da Bíblia que diz: "Eu sou a verdade, o caminho e a vida".<br />

Não foi fácil, mas encontrei a Verdade. Segun<strong>do</strong> meu informante, ela faz ponto perto da<br />

Universidade de SP (USP). Reservada e desconfiada, só atende a um seleto grupo de<br />

clientes. Tu<strong>do</strong> estava combina<strong>do</strong>, eu pagaria caro, mas poderia entrevistá-la. Desde que não<br />

a filmasse e nem revelasse exatamente seu local de trabalho. A Verdade é alta, nordestina e<br />

tem silicone nos peitos, bochecha e glúteos. [...] Basta um olhar para entender: a Verdade é<br />

um transformista castiga<strong>do</strong> pela idade. [...] Cético, pedi para olhar sua carteira de<br />

identidade. Ela riu: "Nunca peça para um traveco mostrar o <strong>do</strong>cumento". Confirma<strong>do</strong>: seu<br />

nome é realmente Verdade. Verdade de Souza. [...] Sentamos e começamos a entrevista.<br />

O nome propício <strong>do</strong> entrevista<strong>do</strong> permite a enunciação de diversas frases de<br />

efeito, que, se consideradas em seu senti<strong>do</strong> literal, podem fazer remissão, mesmo que<br />

indiretamente, aos conflitos e aproximações <strong>do</strong> <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> e <strong>do</strong> dito jornalismo<br />

tradicional com o ideal de verdade.<br />

Verdade: Tem uns professores da faculdade aí em frente que toda sexta mexem comigo:<br />

dizem que vão foder a verdade. Mas eu não ligo. Tá cheio de gente que diz que me ofende e<br />

que me defende. Mas quero que neguinho me deixe em paz. [...]<br />

Eduf: Que tipo de coisa lhe dizem?<br />

Verdade: Que eu não existo. Dessa parte eu gosto. Acho que é elogio. Mas tem um sujeito<br />

que pede que eu o enrabe e diga que está, como é que ele diz?, “sen<strong>do</strong> subjuga<strong>do</strong> pela<br />

verdade”. Que diabo é isso?<br />

O desfecho da entrevista, por sua vez, é revela<strong>do</strong>r. Novamente utilizan<strong>do</strong> o nome<br />

<strong>do</strong> entrevista<strong>do</strong> como trampolim para frases de efeito, o repórter ao falar em “Verdade”,<br />

com inicial maiúscula, fá-lo com o senti<strong>do</strong> de verdade absoluta, universal.<br />

A Verdade teve de calar. Uma viatura se aproximava e, pelos faróis altos, não estava na<br />

folha de pagamento. "Eles sempre mandam carne nova para tirar grana da gente", disse o<br />

traveco, enquanto se levantava, apressa<strong>do</strong>. [...] Corremos uns três quarteirões e nos<br />

encostamos num muro. Baixei a cabeça, tentan<strong>do</strong> respirar. E, quan<strong>do</strong> dei por mim, a<br />

Verdade tinha sumi<strong>do</strong>. Como a minha bolsa, meu dinheiro e equipamentos. Sentei e olhei a<br />

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madrugada, me sentin<strong>do</strong> um idiota. Como poderia provar a alguém que, por alguns minutos,<br />

vi toda a Verdade?<br />

O rompimento das barreiras entre o factual e o ficcional e as conseqüências<br />

advindas desse fato remetem-nos a efetuar uma análise da produção textual dentro <strong>do</strong><br />

âmbito da pós-modernidade. O hibridismo, a ironia manifesta, a auto-reflexividade, a<br />

consciência sobre seu próprio fazer e a desconfiança acerca da verdade, são alguns <strong>do</strong>s<br />

fatores <strong>do</strong> gonzo-jornalismo que corroboram com a idéia de que, antes de tu<strong>do</strong>, o<br />

<strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> é um fenômeno da idade pós-moderna, não apenas temporalmente, mas<br />

por adequar-se (im)perfeitamente a seus conceitos.<br />

A obra de arte pós-moderna típica é arbitrária, eclética, híbrida, descentralizada, fluida e<br />

descontínua, lembra o pastiche. Fiel aos princípios da pós-modernidade, rejeita a<br />

profundidade metafísica em favor de uma espécie de superficialidade forjada, jocosidade e<br />

falta de afeto; é uma arte de prazeres, superfícies e identidades fugazes. Por desconfiar de<br />

todas as verdades e certezas estabelecidas, sua forma é irônica, e sua epistemologia<br />

relativista e cética. Por rejeitar toda tentativa de refletir uma <strong>realidade</strong> estável para além de<br />

si mesma, existe, de mo<strong>do</strong> autoconsciente, no nível da forma ou da linguagem. Por saber<br />

que suas próprias ficções são infundadas e gratuitas, pode atingir uma espécie de<br />

autenticidade negativa apenas ao alardear sua irônica consciência desse fato,<br />

pervertidamente chaman<strong>do</strong> atenção para seu próprio status de artifício construí<strong>do</strong>.<br />

Impaciente com toda identidade isolada, e desconfiada da noção de origens absolutas,<br />

chama atenção para sua própria natureza “intertextual”, sua reciclagem paródica de outras<br />

obras que, por sua vez, nada mais são que o resulta<strong>do</strong> de tal reciclagem (EAGLETON,<br />

1997: 318).<br />

A assumidamente inverossímil matéria Et de Vagina [ver anexo 5], de autoria de<br />

Paula Pó, percorre algumas das trilhas que passam pelo conceito de obra “literária” pós-<br />

moderna. pois “os valores associa<strong>do</strong>s com a ficção ou narrativa, a abertura, a extensão no<br />

tempo, a impureza genérica, passaram a ter o <strong>do</strong>mínio na teoria literária pós-moderna”<br />

(CONNOR, 1996: 103). Por outro la<strong>do</strong>, pode-se observar no excerto abaixo recursos como:<br />

descrição da condição psicológica (o que pode justificar a existência de certos elementos<br />

ultra-reais na matéria), análise sobre a própria atividade jornalística, ironia, influência de<br />

estandartes da cultura de massa como ficção científica e pornografia, indicações<br />

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pretensamente estatísticas, elucubrações e permutação de pessoas e pronomes narrativos de<br />

mo<strong>do</strong> a ficarmos “sem saber quem está narran<strong>do</strong>” (in OLIVEIRA, 1995: 64):<br />

Quase um mês sem sexo. O sol gritava lá fora. Estava vestin<strong>do</strong> rosa. E pra variar, sou<br />

jornalista. <strong>Jornalismo</strong> é uma daquelas profissões fantasiosas que enganam desde os<br />

primórdios da pena. [...] Eles me levaram e me possuíram. Quem? Eles são perigosos. O<br />

senhor está falan<strong>do</strong> de quem? Do coman<strong>do</strong> vermelho? Do homem <strong>do</strong> saco? Do FÊO, o<br />

pagodeiro fugitivo? Não. Dos ETs. Hã. Diga mais. Só pessoalmente. Fui na casa dele.<br />

Paredes azuis, alguns quadros de anjos, poucos livros, enya rolan<strong>do</strong>. Aceita um suco? Meu<br />

deus, é o inferno. Tomei um suco de morango com leite que fez meu fíga<strong>do</strong>,<br />

cuida<strong>do</strong>samente destruí<strong>do</strong> pelos anos de pinga se retorcer de <strong>do</strong>r. Maldito emprego. Isso aí<br />

começou com um <strong>do</strong>s e-mails mais bizarros da minha vida, mais que os da minha mãe.<br />

Entrarei em contato. Assim que eles permitirem. Tá. Em seguida um alfabeto supostamente<br />

alienígena numa planilha <strong>do</strong> Excel. Que merda de tecnologia avançada é essa que ainda usa<br />

o Win<strong>do</strong>ws? [...] Uma luz forte que clareou tu<strong>do</strong> em volta. Coloquei meus braços sobre o<br />

rosto para proteger meus olhos e quan<strong>do</strong> saí dessa posição havia se passa<strong>do</strong> cinco horas [...]<br />

Depois desse dia, passei a sonhar com uma etéia. Bonitinha até. Tinha longos cabelos loiros,<br />

alta e magra. Só tinha três de<strong>do</strong>s, que usava como ninguém. Vestia uma espécie de macacão<br />

espacial, com uns desenhos estranhos. Ao contrário daqueles cinzas, tinha lábios, nariz ou<br />

orelhas. E <strong>do</strong>is olhos imensos. Desde esse dia nunca <strong>do</strong>rmi em paz. Sempre a ouço dizer que<br />

queria um filho meu. [...] Mas então vi a prova. Concreta, firme e ereta. No prepúcio havia<br />

uma espécie de bolinha, como um grão de ervilha, que se mexia de acor<strong>do</strong> com o toque.<br />

Depois de três gozadas, digo, testes, me convenci da verdade. Iria publicar a matéria. [...] O<br />

interessante é que a América Latina, apesar da fama de seus homens, é uma das áreas com o<br />

menor índice de envolvimento sexual entre espécies. Os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s se encontram na<br />

liderança absoluta <strong>do</strong>s casos de sexo com alienígenas, inclusive com registros de crianças<br />

e/ou seres híbri<strong>do</strong>s. Isso explica muitas coisas, entre elas o Michael Jackson. Outro da<strong>do</strong><br />

interessante, é que das pessoas que tiveram contatos avança<strong>do</strong>s menos de 5% chega a saber<br />

o que aconteceu. Muito pior que amnésia alcoólica. [...] Abaixei pra amarrar meu tênis. Uma<br />

luz forte passava por debaixo da porta. Ia fican<strong>do</strong> cada vez mais forte. Meu coração não<br />

estava mais. Pus os braços no rosto numa tentativa desesperada de proteger os olhos.<br />

Quan<strong>do</strong> a luz não tinha mais o que invadir, a porta se abriu e eu gritei. Não era um alien,<br />

mas quase. Carvão, o uébi que vinha me mostrar sua geringonça nova de rave. Maldito<br />

emprego, malditos indies. Malditas raves. Elas fodem tu<strong>do</strong>.<br />

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3.4.1 – <strong>Jornalismo</strong> alucina<strong>do</strong>: anfetaminas, futebol, chocolate e outras drogas<br />

Assim como vejo araras de neon pairan<strong>do</strong> sob a minha cabeça e faço<br />

com que o balançar <strong>do</strong> meu de<strong>do</strong> produza uma intensa luz purpúrea,<br />

cavalos de fogo e elefantes de arame correm la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> com o<br />

ônibus. No horizonte, robôs imensos se levantam da terra e começam<br />

a pisotear as cidades próximas. Pessoas feitas de bola de gude se<br />

materializam e se dissolvem na minha frente. Vejo rostos conheci<strong>do</strong>s<br />

na penumbra, me encaran<strong>do</strong> com inexplicável raiva - "o que foi que eu<br />

fiz?". A morte viaja grudada no teto <strong>do</strong> bus mas, por algum motivo,<br />

não tenho me<strong>do</strong>. – André “Car<strong>do</strong>so”.<br />

A maioria <strong>do</strong>s aspectos <strong>do</strong> gonzo-jornalismo relata<strong>do</strong>s aqui, além da crítica<br />

conceitual ao jornalismo tradicional, situa-se no âmbito <strong>do</strong> uso da linguagem. Muitas das<br />

características <strong>do</strong> <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> vistas até então (inserção <strong>do</strong> repórter na matéria,<br />

linguagem subjetiva, lapsos ortográficos, subversão da linguagem padrão, confusão <strong>do</strong> real<br />

com o factual etc.) podem ser encontradas em outros tipos de escritos. No entanto, o<br />

principal diferencial <strong>do</strong> gonzo frente a outros estilos jornalísticos é sua estreita relação com<br />

o mun<strong>do</strong> das drogas e o seu uso como “combustível” na geração de pautas, apesar <strong>do</strong> fato<br />

de que, na literatura contemporânea, alguns nomes como o escritor beatnik Jack Kerouak e<br />

Charles Bukowski já beberam da fonte alucinógena e relataram isso em seus escritos.<br />

Na Irmandade Raoul Duke, a referência ao uso de drogas por parte <strong>do</strong> jornalista<br />

não é uma regra, mas é fator recorrente em seus textos. A menção às drogas na IRD faz-se<br />

de mo<strong>do</strong> multidirecional: é grande a variedade de substâncias relatadas nos escritos, assim<br />

como são várias as suas formas de combinação. Da mesma forma, os efeitos físicos,<br />

sensoriais, psicológicos e comportamentais geram produções textuais semi-míticas (ver<br />

epígrafe), fora o fato de constituírem parte considerável <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> das reportagens. Na<br />

matéria Close Up Planet..., o repórter submete-se como cobaia de uma experiência<br />

psicodélica:<br />

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Pra falar bem a verdade eu não planejava levar nenhuma droga, não tinha mesmo pensa<strong>do</strong><br />

nisso. Doug, por outro la<strong>do</strong>, tinha planos de rachar comigo uma cartela de Benflogin,<br />

conheci<strong>do</strong> remédio para <strong>do</strong>r de garganta que contém cloridrato de benzidamina, a popular<br />

ANFETAMINA. Segun<strong>do</strong> Presunto, que fez alguns semestres de farmácia antes de se<br />

aventurar pelo louco mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> jornalismo, a benzidamina e o álcool administra<strong>do</strong>s<br />

concomitantemente produzem resulta<strong>do</strong>s bastante me<strong>do</strong>nhos, como os RAIOZINHOS e o<br />

efeito BRUCE LEE, por exemplo. Conheceríamos os seus significa<strong>do</strong>s mais tarde. [...]<br />

Algumas horas mais tarde achei que o combo ceva-maconha-vinho-anfetamina não tinha<br />

surti<strong>do</strong> efeito algum. To<strong>do</strong>s <strong>do</strong>rmiam e eu lutava contra uma inoportuna insônia e um gosto<br />

meio esquisito na boca. Resolvi dar uma mijada. Um tanto bêba<strong>do</strong>, me equilibrei até o<br />

fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> ônibus, acendi a luz <strong>do</strong> banheiro e foi aí que bateu: TÓIM! - EFEITO BRUCE<br />

LEE. É o que acontece quan<strong>do</strong> os teus movimentos parecem deixar impressões efêmeras no<br />

ar: tu pode VER o movimento - vários braços que vão se forman<strong>do</strong> e desaparecen<strong>do</strong>,<br />

representan<strong>do</strong> o momento anterior da sua trajetória, como a famosa imagem de Bruce Lee<br />

antes de um duelo. E aí pra to<strong>do</strong> la<strong>do</strong> que tu olha as coisas estão assim: o mun<strong>do</strong> é Bruce<br />

Lee. Doug já tinha conta<strong>do</strong> pro pessoal da Unisinos o que havíamos toma<strong>do</strong> e logo<br />

descobrimos que alguns deles também compartilhavam da mesma alucinação. Gritavam "rá-<br />

io-zí-nhôs, rá-io-zí-nhôs", referin<strong>do</strong>-se a um efeito característico <strong>do</strong> começo da viagem,<br />

quan<strong>do</strong> raios de luz parecem cruzar a retina toda vez que se movimenta o globo ocular.<br />

Algumas reportagens, por sua vez, são exclusivamente dedicadas às peripécias<br />

lisérgicas. Um exemplo significativo é a matéria Raoul Duke Explica: Cogumelos<br />

Alucinógenos [ver anexo 6], que serve como um “guia” para o devi<strong>do</strong> uso <strong>do</strong>s fungos<br />

psicodélicos, desde sua correta identificação, até dicas para uma adequada assimilação da<br />

droga pelo organismo. O repórter salienta ainda que o cogumelo mais indica<strong>do</strong> para o<br />

referi<strong>do</strong> propósito é o “Stropharia cubensis que cresce nas bostas de vaca <strong>do</strong> Brasil”, por<br />

isso:<br />

Não tome cogumelos sem ter certeza de que são os que está procuran<strong>do</strong>. É evidentemente<br />

perigoso. Procurar cogumelos alucinógenos sem nunca ter visto um é besteira, mas pelos<br />

mesmos motivos de antes, aqui vão algumas dicas de como reconhecer o bicho. Crescem<br />

sobre as bostas de vaca, após uma chuva ou garoa. Os mais altos tem cerca de 10cm, com<br />

uma cabeça circular de até 5cm de diâmetro, de coloração branco-<strong>do</strong>urada. Às vezes, há um<br />

anel preto no caule branco. A consistência é carnosa e ele se despedaça com facilidade.<br />

Mais importante: ao entrar em contato com o ar, a parte interna <strong>do</strong> caule fica roxo-azulada.<br />

Abra o caule, para verificar, e espere alguns minutos. [...] Como em geral são a<strong>do</strong>lescentes<br />

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imbecis que usam drogas diferentes de cocaína ou maconha, é aconselhável que tomem os<br />

cogumelos ao menos acompanha<strong>do</strong>s de algum amigo sóbrio e, se possível, em casa, numa<br />

sala confortável, sem decoração agressiva, com música decente e calma tocan<strong>do</strong>. [...] Há<br />

várias formas de ingestão. A mais popular é a infusão. Basta ferver os cogumelos durante<br />

alguns minutos, poden<strong>do</strong>-se acrescentar vinho, cachaça, sucos, ervas, qualquer coisa. O<br />

gosto é tenebroso, em compensação bate mais rápi<strong>do</strong>. Minha forma preferida é lavar e<br />

comê-los dentro de um pão, cabeças e caule. Dá menos trabalho, a onda chega de forma<br />

mais suave, dura mais e é mais forte. Café ou cerveja ajudam a tirar o gosto ruim da boca. A<br />

<strong>do</strong>se, no caso de ingestão <strong>do</strong>s cogumelos inteiros, é de 4 ou 5 grandes por pessoa. Tenha em<br />

mente que a viagem é muito potente, e o risco de bad trip é alto. Quanto a riscos físicos,<br />

além <strong>do</strong>s possíveis acidentes (atropelamentos, quedas, etc.), há a possibilidade de um surto<br />

psicótico. Algumas pessoas jamais retornam dele. (adaptação minha)<br />

“Car<strong>do</strong>so” lembra que Hunter Thompson “dizia que demorou muito tempo pra se<br />

dar conta de que sem drogas dá pra ficar muito mais altera<strong>do</strong> <strong>do</strong> que com elas”. Portanto,<br />

não é somente a partir das drogas que os gonzo-jornalistas incorporam uma visão alucinada<br />

da <strong>realidade</strong>. Toda experiência pode ser encarada como um momento psicodélico, opiáceo.<br />

Na matéria Capitão, tu me vê um Natu aí, por gentileza? uma partida de futebol é o fator<br />

altera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de consciência. E, para “perceber com exatidão” os efeitos de tal<br />

situação sobre a torcida, o repórter prefere acompanhar a partida “livre de aditivos”. Nota-<br />

se, entretanto, que o fato de não estar sob o efeito de drogas (ou afirmá-lo) não impede o<br />

autor de apreender o caráter insano da circunstância.<br />

Faltam ainda alguns minutos para o começo <strong>do</strong> jogo quan<strong>do</strong> percebo, um tanto irrita<strong>do</strong>, que<br />

o o<strong>do</strong>r produzi<strong>do</strong> pela minha saburra lingual empesteia alguns pares de centímetros cúbicos<br />

em volta da minha cabeça. Não guardei muitas lembranças da última vez que estive em um<br />

estádio de futebol, edificação igualmente gigantesca e bizarra que abriga uma das maiores<br />

quantidades de vicia<strong>do</strong>s e fanáticos legalmente autoriza<strong>do</strong>s a cometerem as suas<br />

barbaridades. Sobre o futebol foi escrito o mesmo que sobre a religião: é o ópio das massas.<br />

Como o ópio por essas paragens permanece ilegal e de acesso praticamente impossível (a<br />

não ser em suas nojentas versões modernosas remixadas pela química), talvez o futebol seja<br />

o último fricote de massa capaz de produzir os efeitos estupefacientes deseja<strong>do</strong>s pelo grosso<br />

contingente que preenche boa parte das gerais e das cadeiras no Estádio Olímpico, lar <strong>do</strong><br />

glorioso Grêmio Futebol Porto Alegrense.<br />

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A jogatina também já foi relatada numa reportagem da IRD como um<br />

experimento narcótico. A matéria em questão é Nem John Wayne matou tanto índio na<br />

Cidade Baixa, onde “Car<strong>do</strong>so” e seu procura<strong>do</strong>r aventuram-se numa casa de bingo. O<br />

repórter considera o jogo como causa<strong>do</strong>r de uma espécie de vício químico da mesma<br />

natureza que o vício pelas drogas:<br />

Meu procura<strong>do</strong>r já havia encontra<strong>do</strong> uma mesa vaga e estava senta<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> finalmente o<br />

encontrei. "Caralho, olha só a cara dessas pessoas" ele disse "Um ban<strong>do</strong> de drogaditos". De<br />

fato. As feições de um joga<strong>do</strong>r invetera<strong>do</strong> diferem pouco das de um vicia<strong>do</strong> em drogas.<br />

Aqueles filtetes de suor silencioso, os olhos ricochetean<strong>do</strong>, o metodismo neurótico e a<br />

concentração canina diferenciam os veteranos <strong>do</strong>s novatos. Por alguns segun<strong>do</strong>s me senti<br />

num daqueles prédios aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s onde os vicia<strong>do</strong>s em crack se reunem pra fumar em<br />

filmes <strong>do</strong> Spike Lee. [...] Me sinto atento como nunca, mente totalmente vazia, sintonizada<br />

apenas nas luzes e em um único tom de voz. O silêncio entre os anúncios numéricos é<br />

imperceptível. Os instantes são picota<strong>do</strong>s e embaralha<strong>do</strong>s novamente numa anfetamínica<br />

linha de tempo. Cada número risca<strong>do</strong> no cartão causa um prazer quase masoquista.<br />

Já na matéria Grama<strong>do</strong> 100% Free... é ao chocolate que é atribuída a condição de<br />

droga, pelo comportamento compulsivo que provoca em seus degusta<strong>do</strong>res. Nesse caso,<br />

além da questão da adicção, outro atributo sensorial é conferi<strong>do</strong> ao chocolate: uma implícita<br />

apologia sensual.<br />

Os chocolates estavam num pequeno balaio de vime e cada vez que eu metia a mão ali,<br />

metia cinco envelopes daqueles no bolso - é de se notar que para essas coisas eu sou<br />

ambidestro. Assim que constituí um pequeno estoque, me dediquei à degustação. Nessas<br />

horas que a gente percebe que o chocolate é uma droga, e o sujeito ao consegui-lo tem<br />

momentos de consumo compulsivo. Principalmente se for desses chocolates de envelope.<br />

Eles são fininhos, <strong>do</strong> formato de uma hóstia, passam quase desapercebi<strong>do</strong>s pela boca, e aí é<br />

que está o perigo. Há também uma explicação semiótica, um certo apelo erótico nestes<br />

chocolates que reside principalmente na forma como estes se assemelham a certos atributos<br />

das camisinhas (ou seria o inverso?). Ambos possuem uma embalagem de envelope<br />

quadrada que deve ser rasgada para ser aberta. Os <strong>do</strong>is também utilizam-se de sabores<br />

similares, quan<strong>do</strong> não idênticos, em seus produtos como morango, abacaxi, laranja, menta<br />

etc., para torná-lo mais atrativo. E, por último, ambos remetem a um peca<strong>do</strong> capital (a gula<br />

ou a luxúria) ao mesmo tempo que se eximem dele: o chocolate, apesar de remeter à gula,<br />

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vem embala<strong>do</strong> numa porção tão ínfima que é considera<strong>do</strong> produto de degustação. O mesmo<br />

acontece com a camisinha, ela é efêmera, descartável, serve para uma transa só - e quem se<br />

satisfaz com uma foda só? - Por outro la<strong>do</strong>, uma transa apenas também não implica<br />

compromisso, assim como a amostra <strong>do</strong> <strong>do</strong>ce não implica na chocolatria.<br />

Na ausência de drogas mais fortes, os gonzo-jornalistas fazem das iguarias<br />

gastronômicas sua fonte de alucinação. Nesse caso, o narcômano repórter embrenha-se no<br />

oleoso conteú<strong>do</strong> de um sanduíche para receber uma alta <strong>do</strong>se de estimulação sensorial,<br />

pois, no gonzo-jornalismo, o esta<strong>do</strong> hígi<strong>do</strong> de consciência é, a priori, considera<strong>do</strong> negativo.<br />

A tônica nas matérias gonzo é, portanto, mergulhar o mais fun<strong>do</strong> possível em qualquer tipo<br />

de experimentação sensitiva:<br />

Depois de uma longa espera, eis que chega o espera<strong>do</strong> xis-coração. Quan<strong>do</strong> o magricelo<br />

olhou pra mim lá da cantina e começou a caminhar na minha direção eu não consegui<br />

identificar a extravagante massa escura como sen<strong>do</strong> um xis-coração. Pensei que - sei lá - era<br />

uma torta pra alguma outra mesa. Um empadão. Eu não sabia na hora, mas estava prestes a<br />

vivenciar a experiência gastronômica mais intensa de toda minha vida. Muito a contra-gosto<br />

quebrei a casca de pão torra<strong>do</strong> com o garfo, cortei um pedaço daquela monstruosidade e<br />

experimentei. Putz, e não é que é bom o negócio? Meu procura<strong>do</strong>r me olhava com uma certa<br />

temeridade, acompanhan<strong>do</strong> cada nova garfada com me<strong>do</strong> nos olhos, o que tornou a<br />

experiência ainda mais desconfortável. Certamente ele não acreditava que eu seria capaz de<br />

ir até o fim com aquele monumento à azia. Não tenho certeza, mas acredito que a iguaria<br />

vinha com nada menos que DOIS ovos e pelo menos umas cinqüenta gramas de coração e<br />

miú<strong>do</strong>s. O resto <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> que boiava em uma grossa camada de maionese ficou<br />

totalmente na subjetividade. Na verdade, foi melhor assim.<br />

Theo<strong>do</strong>re Roszak considera a experiência psicodélica como uma forma de “acesso<br />

controla<strong>do</strong> a formas transnormais de consciência” (ROSZAK, 1972: 164). No jornalismo<br />

gonzo, essa forma de consciência visa alertar de mo<strong>do</strong> brusco ao leitor que toda forma de<br />

percepção da <strong>realidade</strong> é alienada e que a droga apenas amplifica essa percepção. As drogas<br />

alucinógenas consistiriam numa “bomba psíquica de profundidade para abrir caminhos de<br />

percepção enormemente congestiona<strong>do</strong>s pelos arraiga<strong>do</strong>s hábitos cerebrais da ciência<br />

ocidental” (idem: ibid). O jornalismo alucina<strong>do</strong> da Irmandade Raoul Duke faz refletir<br />

acerca da fraqueza de nossos senti<strong>do</strong>s, que podem ser manipula<strong>do</strong>s sob o efeito de uma<br />

89


substância química, ou mesmo de uma situação extrema. É sabi<strong>do</strong>, entretanto, que a<br />

apuração jornalística inevitavelmente passa por intermédio <strong>do</strong>s atributos sensoriais <strong>do</strong><br />

repórter. Então, por que acreditar na “verdade” <strong>do</strong> jornalismo? O gonzo não se quer fazer<br />

verdadeiro. Ao exibir seus hiperbólicos atributos, o <strong>Jornalismo</strong> <strong>Gonzo</strong> implicitamente<br />

afirma que outras práticas (inclusive o jornalismo) são perpassadas pelos mesmos<br />

“defeitos”, em maior ou menor grau.<br />

A experiência psicodélica suscita uma questão intelectual importante sobre epistemologia:<br />

até que ponto nossos senti<strong>do</strong>s são uma forma razoável de conhecer o mun<strong>do</strong>? Tu<strong>do</strong> o que eu<br />

vi sob efeito da psilocibina EXISTIA. Quem poderia negar? Eu FALEI com o mar, eu VI a<br />

criação e a evolução. Se uma substância qualquer pode confundir assim os senti<strong>do</strong>s, por que<br />

uma variação normal em nosso cérebro não poderia nos fazer ver coisas que não existem o<br />

tempo inteiro? Pode-se confiar realmente na <strong>realidade</strong> que vemos? O equilíbrio químico <strong>do</strong><br />

cérebro é, afinal, delica<strong>do</strong>. Não seria tu<strong>do</strong> um grande embuste? 31<br />

31 Em Raoul Duke Explica: Cogumelos Alucinógenos, por Marcelo Träsel.<br />

90


4. – Conclusão<br />

A multiplicidade de vozes e tipos de discursos presentes no seio da Irmandade<br />

Raoul Duke impossibilita-nos de delimitar uma cercania que compreenda a essência de<br />

todas as suas manifestações. É, portanto, imprescindível ter a noção de que o <strong>Jornalismo</strong><br />

<strong>Gonzo</strong> pratica<strong>do</strong> por ela não constitui um gênero, quer seja literário ou jornalístico, com<br />

limites estabeleci<strong>do</strong>s ou normas que de alguma forma rejam sua enunciação, visto que a<br />

própria concepção de gênero revela-se anacrônica quan<strong>do</strong> situada dentro de um referencial<br />

teórico calca<strong>do</strong> no pensamento pós-moderno.<br />

Os escritos de Hunter Thompson são a fonte primeira de inspiração nos textos da<br />

IRD, mas, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> autor, pode ocorrer um distanciamento maior ou menor em<br />

relação ao estilo concebi<strong>do</strong> por Thompson. Esse fator não desvirtua de mo<strong>do</strong> algum o<br />

caráter fundamental <strong>do</strong> gonzo-jornalismo, já que este permite, ou melhor, pressupõe, a<br />

inoculação de elementos da constituição individual <strong>do</strong> repórter. É neste aspecto que reside o<br />

heterogêneo manancial de bra<strong>do</strong>s <strong>do</strong> gonzo. Como ele é condiciona<strong>do</strong> pela subjetividade,<br />

pode assumir camaleonicamente diversas formas, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> contexto de sua apuração,<br />

<strong>do</strong>s recursos lingüísticos à disposição <strong>do</strong> autor e <strong>do</strong> universo idiossincrático da mente <strong>do</strong><br />

repórter.<br />

O gonzo poderia ser denomina<strong>do</strong> jornalismo pelo seu aspecto pragmático, pelo<br />

fato de propor a si mesmo como jornalismo. Por outro la<strong>do</strong>, o gonzo também poderia ser<br />

situa<strong>do</strong> na esfera da literatura pelo uso que faz da linguagem ao assumidamente colocá-la<br />

numa esfera exterior à concretude <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. No entanto, o gonzo não é nenhum <strong>do</strong>is, nem<br />

literatura nem jornalismo. É, antes de tu<strong>do</strong>, discurso. Um discurso permea<strong>do</strong> por subsídios<br />

tanto da prática jornalística, como <strong>do</strong> fazer literário. <strong>Gonzo</strong> é discurso, palavra em curso,<br />

foz em delta, que recebe águas de inúmeras ramificações, embocadura de torrentes diversas<br />

de produção textual.<br />

Navegar pelas correntes <strong>do</strong> gonzo significa poder sair <strong>do</strong> lago de águas paradas <strong>do</strong><br />

jornalismo e adentrar num mar de incertezas, revolto, vivo. Desvencilhar-se da âncora<br />

imposta pela objetividade jornalística é o principal fator de autonomia <strong>do</strong> gonzo-jornalismo,<br />

que procura, não alcançar a <strong>realidade</strong>, mas mostrar que esta é uma utopia e, como meta<br />

utópica, deve ser perseguida, mas não pelos méto<strong>do</strong>s convencionais, funda<strong>do</strong>s sobre bases<br />

91


de cunho positivista e extemporâneo. A partir <strong>do</strong> gonzo, a “<strong>realidade</strong>” é formada de micro-<br />

<strong>realidade</strong>s, pequenos mun<strong>do</strong>s, vozes fragmentadas, que, juntas, dão idéia, mas apenas<br />

infimamente, de sua imensidão.<br />

A figura <strong>do</strong> repórter como foco principal <strong>do</strong> relato gonzo tem o intuito de<br />

desmistificar a construção <strong>do</strong> texto jornalístico, que é perpassa<strong>do</strong> por mediação,<br />

hierarquização, omissão. O jornalista, portanto, é um arquiteto de mun<strong>do</strong>s, que atua como<br />

um demiurgo, “organizan<strong>do</strong>” o caos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e colocan<strong>do</strong>-o numa disposição inteligível.<br />

O jornalista gonzo procura, com sua escrita muitas vezes inverossímil, gerar no leitor uma<br />

postura de descrença, não somente para com seus textos, mas para toda e qualquer espécie<br />

de escritos, principalmente as que se colocam como reprodutoras fidedignas <strong>do</strong> real. O<br />

gonzo corrobora com a idéia de que “ver a vida verdadeiramente é vê-la nem com certeza<br />

nem inteira” (EAGLETON, 1993: 135).<br />

Num mun<strong>do</strong> onde a ir<strong>realidade</strong> jornalística tipifica um crime, o gonzo é coloca<strong>do</strong><br />

na condição de bode expiatório: leva a culpa em nome de todas as outras formas<br />

discursivas, também incapazes de traduzir o real. Entretanto, a penitência <strong>do</strong> gonzo não é<br />

silenciosa. É, ao contrário, delatora, pois denuncia os falibilismos <strong>do</strong> jornalismo tradicional<br />

e de qualquer enunciação mediada pela linguagem. Desta forma, to<strong>do</strong>s – o <strong>Jornalismo</strong><br />

<strong>Gonzo</strong>, o jornalismo tradicional e os outros tipos de discursos – são presos atrás das grades<br />

da ir<strong>realidade</strong> e passam a enxergar o mun<strong>do</strong> através da janela da alucinação.<br />

92


5. - Bibliografia<br />

ARIAS, Maria José Ragué. Os Movimentos Pop, trad. C.V. e Ireneu Garcia, Rio<br />

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Janeiro, Jorge Zahar, 1993.<br />

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http://bocc.ubi.pt/pag/_texto.php3?html2=cunha-tito-car<strong>do</strong>so-silencio.html,<br />

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FERNANDES, Eduar<strong>do</strong>. Desaforismos <strong>Gonzo</strong>lógicos, in<br />

http://fraude.org/gonzo.php?Tid=37, 2002a


FERNANDES, Eduar<strong>do</strong>. Ensaios de gonzologia - A ilusão de escrever em<br />

primeira pessoa, in http://fraude.org/gonzo.php?Tid=36, 2002b<br />

FERNANDES, Eduar<strong>do</strong>. <strong>Gonzo</strong>logia - <strong>Gonzo</strong> pode dar mais ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> que<br />

somente jornalismo?, in http://fraude.org/gonzo.php?Tid=35, 2002c<br />

LAGE, Nilson. O jornalismo na era da razão delirante, in<br />

http://www.jornalismo.ufsc.br/bancodeda<strong>do</strong>s/lage-razao.html, 2002.<br />

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narra<strong>do</strong>r-jornalismo.html. 2002.<br />

LIMA, Marcus Assis. <strong>Jornalismo</strong> e construção de futuros, in<br />

http://bocc.ubi.pt/pag/_texto.php3?html2=lima-marcus-assis-jornalismo-<br />

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Postman, in http://bocc.ubi.pt/pag/_texto.php3?html2=teofilo-fernan<strong>do</strong>-<br />

Postman.html, 1998.<br />

5.3 - Monografias<br />

GIANNETTI, Cecilia. Técnicas Literárias em <strong>Jornalismo</strong> Cultural, Rio de<br />

Janeiro, UFRJ, 2002. Monografia de conclusão <strong>do</strong> curso de <strong>Jornalismo</strong> na<br />

Escola de Comunicação da UFRJ.


Índice:<br />

Anexo 1<br />

Madureira, como ele gosta de ser chama<strong>do</strong><br />

Anexo 2<br />

Inferno Sangrento em São Leopol<strong>do</strong><br />

Anexo 3<br />

ANEXOS<br />

Grama<strong>do</strong> 100% Free ou Tiran<strong>do</strong> Proveito de um Assédio Homossexual<br />

Anexo 4<br />

FGTS: As Letras <strong>do</strong> Demônio<br />

Anexo 5<br />

Et de Vagina<br />

Anexo 6<br />

Raoul Duke Explica: Cogumelos Alucinógenos


ANEXO 1<br />

MADUREIRA, COMO ELE GOSTA<br />

DE SER CHAMADO<br />

por Jajá com ilustrações de<br />

Nelson Azeve<strong>do</strong> e Luiz Monty Pellizzari<br />

A redação da Arca recebeu a visita de um <strong>do</strong>s melhores trafí da city. Mió per que o bagulho<br />

quase sempre é da massa e per que o preço é camarada. Madureira, como ele gosta de ser<br />

chama<strong>do</strong>, conta que o baixo preço se deve per que ele mesmo é quem vai buscar na república<br />

Guarany. E, per causa disso, ele acaba repassan<strong>do</strong> diretamente aos clientes sedentos por uma<br />

boa causa. Madureira, como ele gosta de ser chama<strong>do</strong>, explica que o preço é baixo não só per<br />

causa da ausência de intermediários, pero que sin és un hombre ousa<strong>do</strong>. De acor<strong>do</strong> com que nos<br />

conta, Madureira, como ele gosta de ser chama<strong>do</strong>, não molha a mão <strong>do</strong>s porcos que patrilham a<br />

up town. Ele parla que recebe ameaças <strong>do</strong>s porcos e que até seu fone já foi grampea<strong>do</strong>.<br />

Pero que los riscos que el hombre corre são maiores, arriégua! Seus concorrentes no milionário<br />

world of the traffic têm inveja de Madureira per que ele acaba lucran<strong>do</strong> muito. Óbzio, né: é a<br />

massa, não tem intermediários, não tem choro pros porco e o preço é super camarada. Mas a<br />

inveja tem seu preço también: Madureira, como ele gosta de ser chama<strong>do</strong>, lembra que um<br />

carro, com seis cabeça dentro, ficou rodean<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r de sua baia uma madrugada inteira. Deu<br />

um pavor no loco, tanto é que ele pegou os cria e sumiu per uno bom tempo: "achei que ia<br />

durmir de sapato e palitó! Sabe, assim de pezinho juntinho um com o outro, fera?"<br />

Madureira, como ele gosta de ser chama<strong>do</strong>, conta histórias incríveis da república Guarany: "Jajá,<br />

imagina essas imensas lavouras de mandioca. Sabe, eu tive numa lavoura lá no Guarany, mas<br />

era de baura. Cara, os pés eram de <strong>do</strong>is metros de altura. Eu fiquei perdi<strong>do</strong> naquela mata<br />

verdinha e cheirosa. 30 conto o quilo, imagina Jajá, imagina só." Seus olhos brilham quan<strong>do</strong><br />

lembra da enorme plantação de baura. Pergunto como foi trazer a bagulhada até São Pedro e<br />

ele me responde toda a falcatrua: "Bah, da fazenda até a divisa de Guarany com São Pedro<br />

passei por uns dez postos policiais guaranis. Em cada posto eu deixava uns 50 conto. Eles nem<br />

revistavam o caminhão." Na real, a miséria da república Guarany é tão grande que o achaque<br />

diário corresponde a muito mais <strong>do</strong> que ganha um policial por mês. "Não tem como não se<br />

corromper", afirma Madureira, como ele gosta de ser chama<strong>do</strong>.<br />

- MAS BAH!<br />

Fomos atrás de pessoas que consumiram a massa <strong>do</strong> Madureira. Titichong é um jovem que usou<br />

a dita cuja: "Ô meu, enrolei o lance numa borracha, tá loco, é o bicho, mesmo, hein! É o melhor<br />

béq de São Pedro", sorri Titichong de zoio vermeio. Outro jovem, o Sem Malandragem, relata<br />

como ficou após dar uns tapa no veneno: "Caramba, cremei uma baga e fui pra baia. Aí comecei<br />

a dançar, mas bem depois é que eu me dei conta que o som tava desliga<strong>do</strong>." A massinha acabou<br />

receben<strong>do</strong> vários apeli<strong>do</strong>s, tipo: genérico, semi skank, meu queri<strong>do</strong>, primo, da arca, american<br />

airlines, mas bah!


ANEXO 2<br />

INFERNO SANGRENTO EM SÃO LEOPOLDO / QUANTO VALE<br />

UM ATTORNEY / KILL ALL HIPPIES / VIA EXPRESSA ATÉ O<br />

TEU CRÂNIO<br />

por Colabora<strong>do</strong>r 001 com ilustrações de<br />

Nelson Azeve<strong>do</strong> e Luiz Monty Pellizzari<br />

ATENÇÃO: Este texto é uma colaboração. O seu autor não faz parte da IRD.<br />

Se você também quer colaborar, leia antes a nossa Carta de Princípios<br />

"Para algumas pessoas, a idéia de que a vida é desprovida de senti<strong>do</strong> é simplesmente<br />

apavorante." -- David Lynch<br />

Na <strong>realidade</strong>, é bastante simples: de algum mo<strong>do</strong>, eu sabia que, se não vomitasse, eu não<br />

tomaria um tiro, e se não tomasse um tiro, tu<strong>do</strong> ficaria bem.<br />

O Car<strong>do</strong>so tinha me dito "fecho até dia 26/04 a próxima edição". O prazo me acuava feito um<br />

maníaco de pau duro num beco, e minha verba de trabalho estava reduzida a 0r$ e 25centavos.<br />

Na noite anterior, tinha gasto preciosos dez reais num malfada<strong>do</strong> show da Walverdes. Problemas<br />

detectáveis: minha attorney era sóbria. Péssima, PÉSSIMA estratégia. Tentei uma abordagem<br />

circundante, tentan<strong>do</strong> iniciar um rápi<strong>do</strong> e pouco gradual processo de entorpecimento em casa<br />

mesmo, à base de vodka Walesa (Wahlehsahhh), embora fontes seguras tenham me informa<strong>do</strong><br />

que essa marca não chegue nem aos pés <strong>do</strong> joelhaço que é a famigerada vodka Popokelvis. A<br />

coisa não frutificou muito. Ela (minha attorney) meio que vampirizava meu espírito-de-porco<br />

latente repon<strong>do</strong> isso com bondade - e sou grato a ela por isso, pois <strong>do</strong> contrário não sei o que<br />

poderia ter si<strong>do</strong> de mim. De qualquer forma, nunca, NUNCA considere a possibilidade de<br />

transformar sua namorada na sua attorney, com a possível exceção de ela ter si<strong>do</strong> roadie <strong>do</strong>s<br />

Cascaveletes nos anos 80. Via de regra, sua namorada é sua namorada, e SOMENTE sua<br />

namorada, mesmo que tu a ame até o último fio de cabelo e ainda assim ela insista em ser uma<br />

COMUNISTA como a minha.<br />

Ok. Após duas rodadas de ceva (desprezo ceva -- mas tomei --, e aquilo desceu feito soda), o<br />

show transcorreu legal (comigo já bem zureta), mas constatei na manhã seguinte que nada <strong>do</strong><br />

que havia ocorri<strong>do</strong> lá se assemelhava, ainda que vagamente, a uma pauta gonzostyle (ou seja,<br />

nada que explodisse na sua cara, causasse fagulhas, fosse considera<strong>do</strong> contravenção, ou mesmo<br />

te obrigasse a bater em retirada sem pagar a conta). O lugar estava infesta<strong>do</strong> com uma<br />

deplorável fauna de universitários hippies ornamentais e nerds (lembra <strong>do</strong> termo?) além de<br />

qualquer redenção. Havia um número considerável de gente que havia saí<strong>do</strong> de casa NAQUELA<br />

NOITE unicamente preocupada em mostrar suas camisetas (vermelhas) com SIGLAS <strong>do</strong> EZLN e<br />

<strong>do</strong> MST para deixar bem claro que,<br />

a) sim, tinham i<strong>do</strong> ao Fórum Social Mundial e,<br />

b) eram politiza<strong>do</strong>s pra caralho, embora muito provavelmente não tivessem idéia <strong>do</strong> que<br />

significa OUTRAS siglas, como WTO, NAFTA e até mesmo CPMF. Tinha um velhusco com cara de<br />

cotovelo remanescente <strong>do</strong> verão <strong>do</strong> amor, completamente trinca<strong>do</strong> e usan<strong>do</strong> uma jaqueta de<br />

couro, que, aposto, tinha os bolsos cheios de artesanato de durepóxi aguardan<strong>do</strong> uma<br />

oportunidade, SÓ UMA.<br />

Ninguém vomitou sangue no palco. Ninguém deu um soco na lata homofóbica <strong>do</strong> segurança.<br />

Ninguém fumou um basea<strong>do</strong> e acidentalmente pôs fogo no bar, inician<strong>do</strong> um tumulto que só<br />

encontraria paralelo com a invasão de Roma pelos bárbaros inician<strong>do</strong> a Baixa Idade Média. E<br />

esse, meus caros, é justamente o problema com o povinho indie: PUNHETEIROS NATOS.


(Procedimento rápi<strong>do</strong> e à prova de falhas para se detectar um indivíduo ‘indie’:<br />

1) Ao mencionar a expressão ‘cultura pop’, um breve brilho vai trespassar os olhos<br />

habitualmente opacos <strong>do</strong> sujeito;<br />

2) Se for homem, usa alguma peça de pelugem facial remanescente <strong>do</strong> senso estético vigente<br />

no princípio da década passada (cavanhaque, barbicha/goatee ou barba aparada em formatos<br />

que parecem um acidente geográfico), se for mulher, usa um pentea<strong>do</strong> que se assemelha um<br />

boca<strong>do</strong> a <strong>do</strong>is pretzels mais ou menos mastiga<strong>do</strong>s;<br />

3) Roupas de brechó que parecem ter si<strong>do</strong> usadas por um interno de manicômio judiciário;<br />

4) Camiseta <strong>do</strong> Weezer (opção: com ou sem camisa de flanela sobreposta);<br />

5) Encontram-se perpetuamente em uma espiral descendente de piedade e auto-repulsa loser<br />

arduamente ensaiada frente ao espelho;<br />

6) De maneira geral, apoiam as drogas e sua subseqüente descriminalização - basicamente,<br />

porque isso é razoável e descola<strong>do</strong> - mas, se tu oferecer um basea<strong>do</strong> a um espécime 100%<br />

LEGÍTIMO de indie, é provável que ele comece a chorar e em seguida chame a Brigada;<br />

7) Apresentam uma incômoda incapacidade de distinguir ‘indie’ de ‘alt’ (indie deriva de<br />

INDEPENDENTE, obviamente, enquanto que o que realmente querem incutir com essa palavra é<br />

ALTERNATIVO, o sujeito que ostenta uma aura excêntrica e que por isso tem o direito de se<br />

sentir excluí<strong>do</strong> e de emitir comentários pseu<strong>do</strong>-irônicos, mas na verdade, de INDEPENDENTE<br />

eles não possuem PORRA nenhuma -- alguns indies de fato ainda dependem da mãe para se<br />

limpar quan<strong>do</strong> vão ao banheiro);<br />

8) Parecem râmsters, só que com piercings;<br />

9) De maneira geral, se cagam de me<strong>do</strong> de skatistas e b-boys;<br />

10) Não são vistos à luz <strong>do</strong> dia, não por estarem fazen<strong>do</strong> algo digno de nota, como uma festa<br />

psicotrópica caseira com a mulherada, ou mesmo escreven<strong>do</strong> um livro, mas, essencialmente,<br />

porque DORMEM a maior parte <strong>do</strong> dia.)<br />

Isto posto, um leve desespero se abateu sobre minha espúria alma. Despenquei na cama por<br />

volta das três da matina, acordei ao meio-dia com a regulamentar cara engessada, a audição<br />

levemente prejudicada e disposto a testar o famoso ‘Capítulo 2’ da abordagem gonzojornalística:<br />

MUNIDO DE ALGUMA SUBSTÂNCIA ESTUPEFACIANTE, CRIE VOCÊ MESMO SUA<br />

PAUTA. Liguei para meu attorney oficial, o homem conheci<strong>do</strong> como Mr. Bigas.<br />

Bigas mede 1m65, tem a aparência de um porto-riquenho desbota<strong>do</strong> (imagine uma bizarra<br />

interseção entre Harvey Keitel e o Latino) e as boas intenções de um servo de Buda -- mas,<br />

estranhamente, desvios de conduta pavorosos se manifestam na superfície de sua alma mais<br />

rápi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que tu é capaz de dizer Francisco-de-Assis-Pereira. Bigas cultiva hobbies que beiram a<br />

bizarria completa, como fazer longas chamadas telefônicas interestaduais em meio à noite (RS-<br />

ES, por exemplo) e iniciar brigas de canivete na Av. Independência numa sexta ao entardecer.<br />

Bigas nunca botou um beck na boca, mas, em compensação vai à missa TODO DOMINGO, e nas<br />

poucas ocasiões em que bebe, torna-se uma mala tão pesada e execrável que chega ao ponto<br />

de ameaçar mijar no banco traseiro <strong>do</strong> teu carro. Bigas diz já ter me livra<strong>do</strong> a cara em uma ou<br />

duas ocasiões das quais particularmente não me lembro -- estava bêba<strong>do</strong>. Quanto perguntei a<br />

ele que situações foram essas, ele disse "Esquece, nem vale a pena falar". Pensan<strong>do</strong> bem, foi<br />

justamente numa dessas ocasiões que to<strong>do</strong> meu dinheiro sumiu. De qualquer forma, o melhor<br />

de tu<strong>do</strong> é que, se Bigas puder ser classifica<strong>do</strong> como indie, uma preá também pode, e isso é o<br />

que importa.<br />

Estávamos caminhan<strong>do</strong> em direção ao centro de São Leopol<strong>do</strong> no <strong>do</strong>mingo de feria<strong>do</strong>. Explicava<br />

a ele o que teríamos de fazer, quan<strong>do</strong> passamos por <strong>do</strong>is vira-latas trepan<strong>do</strong>, e falei:


"Faz muito tempo que não faço isso."<br />

"O quê? Trepar?", perguntou.<br />

"Não, fuder um cachorro."<br />

Expliquei a Bigas, em linhas gerais, o que teríamos de fazer (ressaltan<strong>do</strong> o trecho concernente à<br />

quantidade industrial de álcool que teríamos de ingerir - Bigas é caretaço), e ele disse:<br />

"Sem problemas."<br />

De qualquer forma, fomos até o caixa eletrônico (sem merchandising pra esses putos), onde<br />

saquei dez contos e me aprofundei na zona negativa. O Mack estava fecha<strong>do</strong> (1,50r$ a garrafa<br />

de Schincariol; depois que a gente se acostuma com as pulgas, até que vale a pena), o que nos<br />

conduziu a um bar-restaurante freqüenta<strong>do</strong> por uns tiozinhos bem suspeitos (dica: não vá ao<br />

banheiro se não quiser ser curra<strong>do</strong> e enforca<strong>do</strong> com os próprios cadarços). Tanto eu como Bigas<br />

estávamos com a pança cheia de carne vermelha, e a ceva simplesmente não estava<br />

desempenhan<strong>do</strong> seu papel adequadamente. O <strong>do</strong>no <strong>do</strong> bar começou a ajeitar uns pacotes de<br />

salgadinho na estante, e o barulho <strong>do</strong>s saquinhos era um CRIQUE FLAPT FLOPT CRIQUE CRIQUE<br />

<strong>do</strong> caralho, não era possível ouvir o que Bigas me contava sobre sua balada na noite anterior, e<br />

eu estava curioso, e o cara lá CRIQUE FLAPT FLOPT CRIQUE CRIQUE e comecei a olhar pra ele.<br />

Era um gor<strong>do</strong>, um desses gor<strong>do</strong>s que usam pochete. Quanto à pochete, podemos aí atribuir uma<br />

certa culpa ao Alexandre Frota, que faz aquilo parecer TÃO DESCOLADO. E, em geral, é um<br />

gor<strong>do</strong>. O cara é <strong>do</strong>no de três ou quatro salas comerciais na Independência, mas isso não dá ao<br />

sujeito o direito de usar uma POCHETE, ser GORDO e fazer CRIQUE FLAPT FLOPT CRIQUE<br />

CRIQUE -- enquanto Bigas, que tem um trampo noturno deplorável e sua seu suor portoriquenho<br />

miserável por uma grande corporação cujo ponto culminante é um sujeito que fuma<br />

charuto, joga golf e vendeu a alma ao demônio -- enquanto Bigas tentava me explicar como<br />

tinha consegui<strong>do</strong> terminar a noite na seca ten<strong>do</strong> basicamente coberto o circuito Portão-Bom<br />

Princípio de putaria por completo. Continuei olhan<strong>do</strong> pro cara. Até que uma hora ele<br />

simplesmente se deu conta e parou de pé a me olhar de volta. Lançou um olhar rápi<strong>do</strong> e<br />

telepático para os <strong>do</strong>is atendentes (caras recruta<strong>do</strong>s através <strong>do</strong>s classifica<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Presídio<br />

Municipal - "Ex-pederasta que embalsamou a própria avó para se masturbar procura emprego<br />

de garçom, turno integral, ótimos antecedentes"), como se dissesse "Certo. Certo. Parece que<br />

temos <strong>do</strong>is merda (sic) por aqui."<br />

Bigas ainda estava em seu esta<strong>do</strong> de vigília benevolente - a distinção de quem nasceu nas<br />

quebradas. Tomamos mais duas ou três, mesmo com os olhares perniciosos daqueles putos<br />

chamuscan<strong>do</strong> os pêlos <strong>do</strong> meu nariz. De algum mo<strong>do</strong>, as coisas não tomavam um rumo<br />

disfuncional o suficiente. Confesso que achei que seria bem mais fácil. Concluímos que a ceva<br />

seria inútil - era provável que o dinheiro acabasse antes de sentirmos a mais leve vertigem. E foi<br />

isso, basicamente. Não conseguimos incitar qualquer rudimento de desordem no local, não havia<br />

nada que pudesse ser feito, porque nada mudaria.<br />

São Leopol<strong>do</strong> é entropia. É um apêndice de Porto Alegre. É mais ou menos um parque de<br />

diversões, só que imagine um parque de diversões onde substituíram os brinque<strong>do</strong>s por<br />

traficantes, ladrões de bicicleta e travestis, e o algodão <strong>do</strong>ce e as maçãs-<strong>do</strong>-amor por maconha<br />

e fluí<strong>do</strong> de isqueiro, e as crianças por cachorros sarnentos. Ah, e os palhaços por hippies que<br />

bebem vinho de caixinha. De algum mo<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> gravita em torno de Poa -- e Novo Hamburgo, a<br />

cidade co-irmã, é um lixo ainda mais escroto, porque lá as pessoas de fato TÊM um certo poder<br />

aquisitivo e isso não resulta em nada melhor <strong>do</strong> que São Leopol<strong>do</strong>.<br />

Passamos no McDonald’s, que muito provavelmente é o lugar mais deprimente e rechea<strong>do</strong> de<br />

maldade ectoplasmática da terra num <strong>do</strong>mingo à tarde. Tinha uma gorda sentada na parte<br />

externa da lanchonete, me olhan<strong>do</strong> de forma levemente insinuante (Anotação mental 1: NEM<br />

FUDENDO). O McDonald’s é o lugar mais propício da terra para se ter um impulso suicida inicial<br />

AUTÊNTICO. Bigas, no entanto, é um fdp frio e vicioso que simplesmente parece imune a esse


tipo de consideração (Anotação mental 2: "O capitalismo é, basicamente, um Teletubbie fazen<strong>do</strong><br />

sexo anal com Ronnie McDonald, os <strong>do</strong>is fuman<strong>do</strong> crack.") O sol parecia estar escorren<strong>do</strong> pelo<br />

céu em direção à linha <strong>do</strong> horizonte, então foi quan<strong>do</strong> finalmente me dei conta de que, EI!,<br />

aquela ceva tinha bati<strong>do</strong> de um jeito estranho.<br />

Comecei a divagar com Bigas a respeito de nada muito específico. Analisan<strong>do</strong> em retrocesso,<br />

vejo que estava falan<strong>do</strong> um pouco alto demais, tipo, quase berran<strong>do</strong>. Mas que diabos, essa<br />

franquia não é mais território neutro ou O QUÊ? CADÊ A FINESSE DESSES PUTOS? Fui ao<br />

banheiro, e me observei no espelho: aquela imagem não me passava a impressão de ser<br />

socialmente bem aceita, uma vez que meu cabelo no momento se assemelhava bastante a uma<br />

dessas bolas de pêlos que volta e meia os gatos vomitam. Voltei pra mesa, e, aos poucos, me<br />

concientizei de que não conseguia mais meter as batatas fritas com catchup na boca sem me<br />

lambuzar to<strong>do</strong>. Bigas persistia inaltera<strong>do</strong> -- a distinção de quem se criou nas quebradas. O<br />

relógio digital da João Correia acusava 17:53. Considerei a possibilidade de ir à missa, aderin<strong>do</strong><br />

ao hábito bizarro de Bigas de ter sua conduta social moldada por um sacer<strong>do</strong>te hipócrita que<br />

fatura a escriturária da paróquia. Descartei a hipótese sem nem ao menos pestanejar, porque,<br />

particularmente, preferiria ser devora<strong>do</strong> vivo por uma colônia de saúvas.<br />

Bigas se despediu solenemente, e cheguei à conclusão que o que os leopoldenses sentem em<br />

relação a Porto Alegre deve ser mais ou menos o que os escoceses sentem em relação à<br />

Inglaterra (Anotação Mental 3: Tatuar no braço "SCOTTISH MOTHERFUCKER HIGH ON DOPE").<br />

Senti falta da minha namorada - fui até a casa dela e desejei um bom dia de trabalho e disse<br />

mais uma vez que a amava, porque isso é importante e é real - de fato, quero que a ela meu<br />

amor pareça tão sutil quanto um piano despencan<strong>do</strong> calçada abaixo, quero que seja o suficiente<br />

para que ela sorria sem se preocupar -- e sei que às vezes minha conduta paranóide dá ampla<br />

margem a dúvidas.<br />

Aí passei na casa de um velho amigo coopta<strong>do</strong> pela namorada. Tinha esperanças de conseguir<br />

uma ponta de beck que fosse, para engordar um pouco essa pauta freak. Toquei a campainha e<br />

nada. Acontece que a porta da casa <strong>do</strong> cara fica perpetuamente destrancada, só com uma grade<br />

REALMENTE bem chaveada na frente, e dei um empurrãozinho e uma espiada. Penumbra. Só<br />

isso. Olhei aquilo, toda aquela escuridão e desolação <strong>do</strong>minical, e vi que aquilo tu<strong>do</strong> estava<br />

adquirin<strong>do</strong> um significa<strong>do</strong> metafórico DEMAIS, e concluí que precisava de um trago, o que me<br />

impeliu a voltar pra casa fazen<strong>do</strong> as curvas em duas rodas. Já em casa, me aprontei, ensaian<strong>do</strong><br />

um aceno distante para o meu cérebro. Abri a geladeira e havia ainda meia garrafa de vodca e<br />

meia garrafa de Coca. Rumo à ilha <strong>do</strong> Dr. Fidel. Era o momento de descer e metralhar as teclas.<br />

Minha gata siamesa parecia estar agin<strong>do</strong> de maneira deliberadamente irrascível comigo, e perdi<br />

as contas <strong>do</strong> número de vezes que me atacou enquanto digitava o começo desse texto, até que<br />

uma hora ela me arranhou o braço to<strong>do</strong> e finalmente atirei ela numa pilha de caixas vazias.<br />

Percebi que na verdade havia trazi<strong>do</strong> para casa resquícios <strong>do</strong>s eflúvios McEctoplasmáticos-<br />

Felizes. Magia urbana -- essas coisas de gibi. Comecei a misturar em proporções claramente<br />

equivocadas a Coca e a vodka. À medida que o texto ia surgin<strong>do</strong>, eu ia gostan<strong>do</strong> mais da coisa.<br />

Coloquei pra tocar um pouco de jazz e tentei me concentrar um pouco mais. As freqüências <strong>do</strong><br />

baixo de Charles Mingus foderam com a minha percepção por completo. Começou a se tornar<br />

virtualmente impossível digitar uma palavra que não contivesse ao menos <strong>do</strong>is erros estruturais<br />

graves. Minha cabeça oscilava sobre o tecla<strong>do</strong> como se eu estivesse tentan<strong>do</strong> marcar o ritmo<br />

sincopa<strong>do</strong> da música. O resulta<strong>do</strong> foi um bloco de texto ininteligível que parecia ter si<strong>do</strong> escrito<br />

por um débil mental chapa<strong>do</strong> de benzina e que removi desta matéria em consideração às<br />

pessoas de compleição frágil que possam vir a lê-la. Em algum ponto, me deitei no sofá e fiquei<br />

olhan<strong>do</strong> para o teto e decidi que, embora nunca fosse revelar isso em público (ops), iria votar<br />

naquele cara que não tem to<strong>do</strong>s os de<strong>do</strong>s.<br />

Aí ouvi uma algazarra incrível de sirenes e motores roncan<strong>do</strong> alto através de toda a avenida (No<br />

outro dia, o jornal entregou a mesma nota batida de sempre: "Empresário rendi<strong>do</strong> ao entrar em<br />

casa por homens arma<strong>do</strong>s ..."). Foi aí que eu saquei que tinha que ter alguma coisa<br />

acontecen<strong>do</strong>, ainda que de mo<strong>do</strong> subjacente, em São Leopol<strong>do</strong>. De mo<strong>do</strong> que meti a garrafa de<br />

vodka por baixo <strong>do</strong> casaco e saí pela porta da garagem em direção a nenhum lugar muito


específico, João Correia acima. Fui andan<strong>do</strong>, e me sentia atroz. O mun<strong>do</strong> parecia não ser mais<br />

<strong>do</strong> que uma bolha de glicerina fácil de ser compreendida, mesmo à 01:17 da manhã. Quan<strong>do</strong><br />

passei em frente ao Fórum, cumprimentei o brigadiano que passa o turno da noite por ali desde<br />

que jogaram uma bomba incendiária no térreo (Espírito de Seattle, BOTA PRA FUDER!).<br />

"Aeh", falei.<br />

Ficou me olhan<strong>do</strong>, provavelmente pensan<strong>do</strong> alguma palavra de duas sílabas (‘via<strong>do</strong>’, todavia,<br />

tem três - pode contar).<br />

Quan<strong>do</strong> estava mais ou menos na altura <strong>do</strong> prédio da Justiça <strong>do</strong> Trabalho (uma vianda oxidada<br />

gigante), saquei que, conforme eu andava, a garrafa ia pra frente e para trás (o bocal da garrafa<br />

apontava para os meus bagos), causan<strong>do</strong> uma saliência no meu peito que poderia ser tanto<br />

provocada por uma garrafa de vodca quanto por uma <strong>do</strong>ze cano cerra<strong>do</strong> enfiada no cinto. Alguns<br />

taxistas começaram a rir de alguma coisa engraçada que me escapou por completo. Passou um<br />

Gol da Brigada, devagarinho, CHEIO de meganhas. Me lembrei de Thomas Engel, o tenista que<br />

tomou um tiro no lombo e se fudeu sem nem ao menos entender o por quê <strong>do</strong>s brigadiano<br />

fazerem aquilo. Mas a porcada não tomou conhecimento de mim -- basicamente porque eu não<br />

aparentava ter dinheiro pelos bolsos e porque aquilo não era mais hora de se prender alguém,<br />

onde já se viu, porra? De mo<strong>do</strong> que cheguei à casa <strong>do</strong> meu camarada novamente, constatan<strong>do</strong><br />

que AGORA SIM eu precisava de um beck. Quem me recebeu foi o irmão dele, um ex-hippie<br />

cujos hábitos fazem Bigas parecer uma irmã carmelita, e cujo hobbie atual envolve cristais de<br />

lítio. Não me lembro muito bem <strong>do</strong> que aconteceu a partir daí. Tinha uma cama no chão da sala,<br />

e me lembro dele ter dito que precisava trampar no outro dia. Eu estava a ponto de me deitar<br />

pela calçada mesmo.<br />

"O Tiago não tá por aí?", perguntei.<br />

" Não, foi pra Candiota. Vou confiar em ti, Diego", ele disse. "Mira reto. Vai pra CASA, vai RETO,<br />

não fala com NINGUÉM, entendeu?"<br />

Fui embora <strong>do</strong> mesmo jeito que cheguei, e saquei, MAIS OU MENOS, que estava perdi<strong>do</strong> na<br />

jogada, e que isso era algo inacreditavelmente BOM. Ao menos tinha arranha<strong>do</strong> a superfície de...<br />

alguma coisa. Flertan<strong>do</strong> com o desastre, pode-se chegar ao cerne <strong>do</strong> lirismo - ou pelo menos<br />

TOMAR NO CU de maneira irreversível. Quan<strong>do</strong> cheguei em frente ao Fórum de novo, a suspeita<br />

gentil tinha sumi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s olhos nazistas <strong>do</strong> brigadiano. Alguém tinha picha<strong>do</strong> uma frase na<br />

fachada <strong>do</strong> Fórum: ‘O GRUPO VAI VOLTAR’ - muito embora eu possa estar engana<strong>do</strong>, sabe como<br />

é. O que fiz foi sentar pelas escadas e sacar a garrafa para dar um trago.<br />

"Tu tá toman<strong>do</strong> isso PURO, cara?"<br />

"Vou tocar isso fora."<br />

Derramei a garrafa toda <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de um orelhão e toquei a garrafa longe.<br />

"Vou pra minha casal", falei. Ia dizer "Vou pra casa, tira", mas, MESMO naquelas condições,<br />

percebi que podia ser caga<strong>do</strong> a pau. (Agora sim: ‘Via<strong>do</strong>’.)<br />

Não tomei um tiro nas costas, nem tampouco fui preso.<br />

Já o resto não sei dizer. Acordei e era segunda, e minha mãe me deu o toque de que o rádiorelógio<br />

estava tocan<strong>do</strong> haviam quinze minutos. A sensação era indescritível - parecia que, ao<br />

manusear uma arma de fogo, algo havia saí<strong>do</strong> pela culatra e destruí<strong>do</strong> minha cara, e uma<br />

colônia de abelhas tinha aproveita<strong>do</strong> o buraco remanescente para se instalar por lá. Minha<br />

cabeça parecia cheia de água suja e to<strong>do</strong> meu torso, <strong>do</strong> peito ao baixo-ventre, haviam se<br />

transforma<strong>do</strong> numa massa disforme. Morga<strong>do</strong>, consegui pegar o ônibus e capotar no último<br />

banco. Acordava de vez em quan<strong>do</strong>, flashes rápi<strong>do</strong>s de placas pela estrada ("VENDE-SE<br />

LEITÃO"), aparentemente desconexos. Acordei em Gravataí já com o sol baten<strong>do</strong> na cara e era<br />

HORA DE TRABALHAR. O senso de ultraje em se chegar ao serviço levemente embriaga<strong>do</strong> é um


néctar raro, e qualquer ser humano deveria experimentar isso, mas, PUTA MERDA, uma vez, NO<br />

MÁXIMO. Pensan<strong>do</strong> bem, acho que dá pra passar sem. É. Dá pra passar sem - tranqüilo. Mas<br />

ainda assim eu recomen<strong>do</strong>. Recomen<strong>do</strong> agir de maneira idiota por algum tempo - não muito.<br />

Vinte anos, no máximo. Como disse Burroughs, é necessário se fazer ver para se tornar<br />

invisível.<br />

Doía, e não só <strong>do</strong>ía, como DOÍA FEITO O DIABO. Passei a maior parte da manhã <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> pelos<br />

vestiários, e, heroicamente, não vomitei.<br />

Aí me ocorreu que QUEM DIABOS POSSIVELMENTE PRECISARIA DE UM LEITÃO? (Anotação<br />

Mental Final: a existência é amplamente aleatória. Vou <strong>do</strong>rmir.)


ANEXO 3<br />

GRAMADO 100% FREE OU TIRANDO PROVEITO DE UM<br />

ASSÉDIO HOMOSSEXUAL - I<br />

por Giuseppe Zani e Emiliano Urbim com ilustrações de Nelson Azeve<strong>do</strong><br />

e Luiz Monty Pellizzari<br />

Já faz três anos desde então e, mesmo assim, tenho a sensação de estar recordan<strong>do</strong><br />

acontecimentos de uma noite de excessos. Uma noite que se repete e que demora ainda a<br />

acabar. Primeiro vêm os vultos, como um hálito fresco a arder por dentro <strong>do</strong> nariz, um aroma<br />

que se insinua e logo escapa. Parecem destina<strong>do</strong>s ao esquecimento, até que irrompem<br />

novamente num turbilhão de imagens. Tenho que anotá-los, papel papel papel... É preciso<br />

precaver-se contra novo esquecimento:<br />

a. o amigo equatoriano;<br />

b. eu mais urbim no tapete vermelho;<br />

c. eu mais emiliano mais Lucélia Santos - onde eu não lembro, o que me excita e apavora ao<br />

mesmo tempo: esse tipo de lembranças por vezes se deturpam, e não raro eu confun<strong>do</strong><br />

lembrança de sonhos com fatos reais e, se tratan<strong>do</strong> de um Festival de Cinema, a hipótese da<br />

Lucélia pode ser a única parte fantasiosa <strong>do</strong> relato.<br />

Ainda há d. dinheiro. Ou melhor, não houve. Lembro de descer na ro<strong>do</strong>viária de Grama<strong>do</strong> contar<br />

R$ 30,00 e guardá-los no bolso da calça. Por outro la<strong>do</strong>, lembro de estar acordan<strong>do</strong> em Porto<br />

Alegre com os mesmos trinta intactos, as notas <strong>do</strong>bradas daquela forma peculiar: com os <strong>do</strong>is<br />

la<strong>do</strong>s mais curtos <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>s em direção ao centro da cédula, e no mesmo bolso. Como explicar<br />

então o carpaccio, o ingresso no Palácio <strong>do</strong>s Festivais, a festa, o vinho...<br />

A história está escapan<strong>do</strong> novamente. Costumo manter arquivo das matérias, porém como já faz<br />

tempo, provavelmente não tenho texto algum, mas a minha caderneta de notas ainda deve ter<br />

lá alguma coisa apontada. Procuro pelo Festival: "Quarta-feira; Festival de Grama<strong>do</strong>; Mostra de<br />

Super-8; Assédio; A Vingança <strong>do</strong> Dr. Kali Gara; Emiliano; Bonitinha mas Ordinária" e na página<br />

ao la<strong>do</strong> o ingresso para o Festival, assento F-14.<br />

Ok, primeira providência: escrever ao Emiliano pedin<strong>do</strong> explicações. Ele com certeza está<br />

envolvi<strong>do</strong>, seja comigo ou com a Lucélia. Agora deixa eu ver o que dá para reconstituir. O<br />

motivo deve ser essa Mostra de S-8, parece plausível. E, realmente, me recor<strong>do</strong> de ter assisti<strong>do</strong><br />

a vários curtas numa projeção minúscula sobre uma tela de 35mm, da sensação de fastio com<br />

tantos resulta<strong>do</strong>s semelhantes, to<strong>do</strong>s pretensamente experimentais. Um evento até então<br />

marginal e paralelo à premiação oficial, mas que teve premiação especial. Tu<strong>do</strong> isso é bem<br />

níti<strong>do</strong>: Gabriel Moojen anuncian<strong>do</strong> uma parceria da RBS com os superoitistas para exibição na<br />

TV, uma certa euforia entre os produtores e, não muito tempo depois, o fim <strong>do</strong> projeto<br />

Cinemean<strong>do</strong> no Garagem. Título de uma película, inclusive, que ganhou menção honrosa no<br />

Festival. Aliás, foram muitas as menções honrosas, porque A Vingança <strong>do</strong> Dr. Kali Gara<br />

arrebanhou praticamente to<strong>do</strong>s os prêmios da categoria. Está lá no site da APTC: melhor filme,<br />

júri popular, direção, direção de arte e trilha sonora. Recor<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s comentan<strong>do</strong> acerca da<br />

qualidade <strong>do</strong> filme. Era mu<strong>do</strong>, o que já driblava o problema que é trabalhar com som em S-8.<br />

Também falava-se <strong>do</strong> clima noir e das referências expressionistas, mas o que me conquistou a<br />

simpatia foi a trilha sonora executada ao vivo no piano.<br />

Lembro agora que o filme que eu fui ver acabou não passan<strong>do</strong> e que esse filme era da turma <strong>do</strong><br />

Alex, esse meu amigo equatoriano, que não estava lá, mas apareceu mais tarde, na festa. Na<br />

exibição tinha também esse cara que gru<strong>do</strong>u em mim; era de São Paulo, lembro <strong>do</strong>s prefixos 11<br />

antes <strong>do</strong>s números de telefone que tinha no cartão, lembro inclusive que ele era Produtor<br />

Comercial de um filme <strong>do</strong> Alain Fresnot. Eu conheci o Alain Fresnot, mas só soube que era ele<br />

depois dele ir embora. Foi o produtor quem me disse e eu não tinha por que duvidar, afinal ele


tinha o cartão e a credencial colorida. Lembro que havia toda uma pantone de credenciais,<br />

restringin<strong>do</strong> ou liberan<strong>do</strong> acessos e que a dele era verde. Um verde sinaleira, desses que fazem<br />

sinal para abrir caminho. Ele queria que eu fosse com ele assistir a uma sessão fechada de uns<br />

longas latinos, e eu me senti constrangi<strong>do</strong> em dizer não. O sujeito já estava comigo há mais de<br />

duas horas, havia me paga<strong>do</strong> almoço, cerveja. Lembro de ter menciona<strong>do</strong> algo sobre<br />

acompanhar a exibição <strong>do</strong>s filmes à noite no Palácio <strong>do</strong>s Festivais. Eu não tinha a mínima noção<br />

de como faria para entrar lá. (Foi a primeira vez que eu notei a sua credencial.)<br />

Ele foi quem tomou a iniciativa. Fomos até a organização, eu ainda sem entender nada, foi então<br />

que ele pediu um ingresso da cota que ele tinha como cortesia de convida<strong>do</strong> <strong>do</strong> evento. Assim,<br />

em questão de minutos, ele tinha modifica<strong>do</strong> toda a minha viagem. No entanto, mesmo me<br />

sentin<strong>do</strong> o ingrato por aban<strong>do</strong>nar o amigo, resolvi ficar até o fim da Mostra de S-8. Ainda lembro<br />

dele rin<strong>do</strong> e balançan<strong>do</strong> a cabeça de um la<strong>do</strong> para o outro na penumbra <strong>do</strong> cinema, enquanto eu<br />

tentava explicar que não se tratava de uma questão estética, mas de solidariedade com amigos<br />

meus - cujo filme eu ainda não sabia que não seria exibi<strong>do</strong> - que não estavam lá. Ele me pediu o<br />

cartão de novo e anotou o número e o quarto <strong>do</strong> hotel em que ele estava hospeda<strong>do</strong> e se<br />

despediu. Eu não consigo lembrar a cara que ele fez, mesmo por que eu não recor<strong>do</strong> um traço<br />

sequer de seu rosto. Eu ainda lembro <strong>do</strong> cartão, <strong>do</strong> carpaccio que ele pagou, da credencial<br />

verde, mas essas coisas todas surgem como adereços de uma sombra e eu não enten<strong>do</strong> como<br />

isso pôde se manter na minha cabeça senão pelas conseqüências que desencadeou.<br />

Ok, mas penso que me precipitei, e acabei num caminho sem saída. O jeito é voltar no labirinto<br />

<strong>do</strong>s acontecimentos e tomar outra direção: o saguão <strong>do</strong> centro de eventos <strong>do</strong> Hotel Serrano, o<br />

entroncamento mor da história. Foi ali que eu conheci o produtor paulista, ali aconteceria o<br />

coquetel, mas antes de tu<strong>do</strong> foi ali que encontrei o Furasté. Lembro que achei muita graça ao<br />

encontrá-lo no quiosque de informações <strong>do</strong> Governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Afinal, percorrer cerca de 116<br />

quilômetros, para então encontrar um conterrâneo, praticamente um vizinho e além de tu<strong>do</strong><br />

colega de faculdade. No entanto, agora que as recordações vão se encadean<strong>do</strong> e toman<strong>do</strong><br />

senti<strong>do</strong>, preciso fazer um breve parêntese (a partir de agora só irei me referir ao amigo como<br />

Acácio. Não para lhe preservar a identidade, que para isso já é tarde. Mas por que essa é a sua<br />

função na história).<br />

Sem que eu tivesse lhe conta<strong>do</strong> nada, Acácio percebeu a minha situação.<br />

Provavelmente foi a mochila que me denunciou. Ele quis ser solidário e, como já era meio-dia e<br />

não havia muitas pessoas no Serrano, abriu a guarda de sobre o café e os chocolates. Os<br />

chocolates estavam num pequeno balaio de vime e cada vez que eu metia a mão ali, metia cinco<br />

envelopes daqueles no bolso - é de se notar que para essas coisas eu sou ambidestro. Assim<br />

que constituí um pequeno estoque, me dediquei à degustação. Nessas horas que a gente<br />

percebe que o chocolate é uma droga, e o sujeito ao consegui-lo tem momentos de consumo<br />

compulsivo. Principalmente se for desses chocolates de envelope. Eles são fininhos, <strong>do</strong> formato<br />

de uma hóstia, passam quase desapercebi<strong>do</strong>s pela boca, e aí é que está o perigo.<br />

Há também uma explicação semiótica, um certo apelo erótico nestes chocolates que reside<br />

principalmente na forma como estes se assemelham a certos atributos das camisinhas (ou seria<br />

o inverso?). Ambos possuem uma embalagem de envelope quadrada que deve ser rasgada para<br />

ser aberta. Os <strong>do</strong>is também utilizam-se de sabores similares, quan<strong>do</strong> não idênticos, em seus<br />

produtos como morango, abacaxi, laranja, menta etc., para torná-lo mais atrativo. E, por último,<br />

ambos remetem a um peca<strong>do</strong> capital (a gula ou a luxúria) ao mesmo tempo que se eximem<br />

dele: o chocolate, apesar de remeter à gula, vem embala<strong>do</strong> numa porção tão ínfima que é<br />

considera<strong>do</strong> produto de degustação. O mesmo acontece com a camisinha, ela é efêmera,<br />

descartável, serve para uma transa só - e quem se satisfaz com uma foda só? - Por outro la<strong>do</strong>,<br />

uma transa apenas também não implica compromisso, assim como a amostra <strong>do</strong> <strong>do</strong>ce não<br />

implica na chocolatria.<br />

Mas eu só fui pensar nisso mais tarde, quan<strong>do</strong> achei em meio ao coquetel a última das hóstias<br />

de chocolate no meu bolso. É verdade, havia um coquetel. E a exibição <strong>do</strong>s S-8 havia encerra<strong>do</strong><br />

bem no seu início. Lembro a cena: uma turba de superoitistas jorran<strong>do</strong> da saída da sala de<br />

projeção, sedenta por estímulos de uma ordem diversa daquele plano visual. O vinho calhou-nos


em e, na minha paranóia, emborquei quatro cálices em seqüência antes de tocar meu plano<br />

adiante. Sim, agora havia um plano, depois da revelação que Acácio me fizera no cinema. A bem<br />

da verdade, não chega a ser bem uma revelação, porque se trata <strong>do</strong> óbvio, apesar de que,<br />

segun<strong>do</strong> Nelson Rodrigues, apenas os profetas enxergam o óbvio.<br />

Buenas, Acácio naquele momento foi o profeta e como profeta pôde fazer a revelação. A<br />

revelação: aconteceu na sala de projeção, logo após a saída <strong>do</strong> produtor, eu com um travo de<br />

remorso ainda na língua, quan<strong>do</strong> Acácio aproximou-se perguntan<strong>do</strong> quem era o sujeito.<br />

Expliquei-lhe a situação, o meu constrangimento e pedi seu conselho. Foi a resposta de Acácio<br />

que me surpreendeu: "Ele quer te comer". Acácio não conseguia segurar o riso, mas<br />

aconselhou-me: "Eu, se fosse tu, dava um jeito de pegar o ingresso e cair fora". Disse isso e me<br />

aban<strong>do</strong>nou com o dilema - não havia o que pensar, segun<strong>do</strong> ele. Disto eu sabia, desde o<br />

momento da revelação, eu já sabia o que fazer. Mas antes tentei me colocar no lugar <strong>do</strong> sujeito<br />

e cheguei mesmo a sentir uma espécie de remorso por abusar <strong>do</strong>s sentimentos de um putinho<br />

apaixona<strong>do</strong>. Agora, no entanto, ao escrever isso eu não consigo deixar de rir. Há! e com certo<br />

escárnio, porque nessa bundinha que mamãe limpou, marmanjo nenhum toca, meu amigo.<br />

Dei umas três voltas no salão <strong>do</strong> centro de eventos até o produtor paulista me perder de vista e<br />

me encaminhei para o setor da organização. Boa parte daquela massa de superoitistas já estava<br />

bêbada e formava uma barricada ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> quiosque da organização responsável por distribuir<br />

os ingressos. Não havia como chegar até o balcão e, de acor<strong>do</strong> com a informação que o<br />

burburinho transmitia, o número de cortesias programadas para os superoitistas havia si<strong>do</strong><br />

significativamente reduzi<strong>do</strong> e muita gente ia ficar de fora bem na noite da premiação <strong>do</strong> S-8. E<br />

cada vez que chegava um cineasta alternativo, a indignação era a mesma, inclusive na afetação<br />

acentuada pelo vinho.<br />

A cena era comovente: quinze, vinte pessoas com pose de movimento social protestan<strong>do</strong> em<br />

frente a um quiosque no local mais obscuro de to<strong>do</strong> o festival, na companhia apenas <strong>do</strong> pessoal<br />

da organização e da assessoria de imprensa. E dirigiam suas queixas para uma funcionária que,<br />

pela falta de respostas, devia ser a subordinada da subordinada da subordinada: uma<br />

subordinada ao cubo; só faltava distribuírem formulários padrões para recurso. Mesmo sem<br />

muitas esperanças, resolvi atacar uma das assessoras <strong>do</strong> evento. Perguntei pelos ingressos e ela<br />

respondeu que a quota <strong>do</strong> S-8 estava esgotada. Já se virava para ir embora quan<strong>do</strong> eu<br />

resmunguei algo <strong>do</strong> gênero: "fodam-se os superoitistas, eu não sou superoitista". Ela revelou<br />

então que havia uma lista paralela, <strong>do</strong>s "outros convida<strong>do</strong>s". Percebi que os superoitistas não<br />

eram tão convida<strong>do</strong>s quanto os "outros convida<strong>do</strong>s" e lhe pedi que procurasse o meu nome.<br />

Estava eufórico com o ingresso na mão e...<br />

Enfim, acho que foi aí que eu encontrei o Emiliano pela primeira vez. E um amigo que se<br />

encontra em viagem é sempre um refúgio. A minha paranóia apazigou-se um pouco. Se o puto<br />

viesse para cima de mim, o Urbim fazia às vezes de meu namora<strong>do</strong>. Lembro de quan<strong>do</strong> eu o<br />

encontrei: ele estava disfarça<strong>do</strong> de assessor de imprensa, não suspeitava que eu fosse usá-lo<br />

como matéria de memória tanto tempo depois.<br />

From: "Emiliano Urbim" (emiliano.urbim@eai.com.br)<br />

To: "Zani" (beppe.ez@terra.com.br)<br />

Sent: Friday, April 19, 2002 10:29 PM<br />

Subject: texto<br />

Tentei, mas não achei na minha agenda de 1999 - sou desses que carrega consigo uma agenda<br />

de 1999 - a data exata <strong>do</strong> Festival de Cinema de Grama<strong>do</strong> daquele ano. Podia procurar na<br />

Internet, claro, mas aí ia perder a graça. Vou chutar tu<strong>do</strong> aconteceu numa quarta-feira. Tu<strong>do</strong><br />

desde que eu encontrei até desencontrar Giuseppe Zani.<br />

Eu, na esplen<strong>do</strong>rosa forma <strong>do</strong>s meus 20 anos e meio, estava na cidade serrana trabalhan<strong>do</strong><br />

como assessor de imprensa <strong>do</strong> festival. Eu tinha de redigir o boletim informativo para os


jornalistas e quem mais aparecesse, além de passar o dia penduran<strong>do</strong> cartazes, corren<strong>do</strong> atrás<br />

de gente, trazen<strong>do</strong> café, resolven<strong>do</strong> diversos problemas e ouvin<strong>do</strong> piadas imbecis sobre o fim <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>, que algum imbecil havia dito (cara, eu acho que era o Paco Rabane!) seria naquela<br />

semana. Na real sempre tinha uma hora de tarde em que eu dava umas passeadas, ficava<br />

dan<strong>do</strong> uma banda pelo Centro de Informações, que funcionava <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Hotel Serrano - hoje é<br />

lá embaixo, na rua <strong>do</strong> Palácio <strong>do</strong>s Festivais mesmo.<br />

Num desses passeios contra-produtivos e pró-vadiagem eu te encontrei. Aqui eu não sei se me<br />

refiro diretamente a ti, Giuseppe, ou se faço média com os outros leitores e escrevo: "encontrei<br />

o Giuseppe". Isso seria ferir meus princípios estéticos, minha integridade artística, me vender<br />

para o sistema. Encontrei o Giuseppe. Numa sala de cinema onde acontecia a mostra de filmes<br />

gaúchos ou se fora dela, ele estava lá, mas não sozinho. Acompanhava meu colega de faculdade<br />

de jornalismo um magrão alto de sotaque carioca. Eu, que não conhecia o Giuseppe direito,<br />

pensei: viadagem. E era quase: o Giuseppe tinha encontra<strong>do</strong> o cara horas antes, e havia ganho<br />

ingressos, almoço, hospedagem, papo, tu<strong>do</strong> porque havia conta<strong>do</strong> o seu drama.<br />

O drama <strong>do</strong> Giuseppe: tinha uma guria com quem ele tinha uma história, na real muito mais que<br />

uma história, ele era apaixona<strong>do</strong> por ela, apaixona<strong>do</strong> o suficiente para ir a Grama<strong>do</strong> sem<br />

bagagem sem dinheiro sem hospedagem e com muito frio, só para vê-la. Fim <strong>do</strong> drama <strong>do</strong><br />

Giuseppe.<br />

Apagam-se as lâmpadas começaram os filmes, uns bons, uns ruins - lembro de um<br />

<strong>do</strong>cumentário em 16mm particularmente pavoroso sobre um rio, uma floresta, umas árvores<br />

cain<strong>do</strong>, ah! que nojo. Aí eu não lembro direito <strong>do</strong> que aconteceu depois: tive de sair <strong>do</strong> cinema<br />

para voltar ao trabalho e acho que combinei alguma coisa com ele, de se encontrar na frente <strong>do</strong><br />

Pavilhão de Mídia (cada hora eu vou chamar o lugar de um jeito) para irmos ao cinema.<br />

Corta para eu e o Giuseppe de noite na frente <strong>do</strong> Fórum Cinematográfico, é noite, venta e tem<br />

muita gente buscan<strong>do</strong> entrar em uma das vans (se você vier a estar precisan<strong>do</strong>, pode chamar<br />

de peruas) que levavam para o Palácio <strong>do</strong>s Festivais, lá embaixo. Acho que nessa espera por<br />

transporte que nós conversamos, não foi Zani?, que eu te contei de como estava sen<strong>do</strong> e tu me<br />

contou da guria, da viagem, <strong>do</strong> carioca, <strong>do</strong> drama. Pra ser sincero, nem prestei muita atenção<br />

na hora em que ele me contou, fui compor um quadro coerente ao longo <strong>do</strong>s anos - já foram<br />

três, gurizada - depois de muito ouvir a mesma história da boca dele para os ouvi<strong>do</strong>s de outros.<br />

Depois de alguma espera embarcamos em uma camioneta junto com um ban<strong>do</strong> de hispanohablantes.<br />

O Giuseppe nem poderia estar ali dentro, clandestino que era, mas eu andava muito<br />

cheio de mim naqueles dias e disse autoritariamente "entra!", queren<strong>do</strong> dizer "tá comigo tá com<br />

Deus!" ou "malandro é o gato, que já nasce de bigode". Foi uma decida curiosa, nós <strong>do</strong>is<br />

tentan<strong>do</strong> prestar atenção na conversa <strong>do</strong>s companheiros de viagem, sem entender muita coisa.<br />

Se tinha alguém naquela van que fez alguma coisa no filme espanhol que assistiríamos mais<br />

além, meus parabéns pelo bom trabalho, se não, desculpe pelos gases incessantes - "eu andava<br />

muito cheio de mim" pode ser interpreta<strong>do</strong> de várias maneiras.<br />

Descemos de kombi na frente <strong>do</strong> Palácio, gente nas arquibancadas, burburinho. Tentação.<br />

Abanamos e recebemos gritos e flashes de quem conseguimos enganar com nossa pose de galã.<br />

Posso estar lembran<strong>do</strong> erra<strong>do</strong>, mas acho que o meu ingresso e o <strong>do</strong> Giuseppe não eram para a<br />

mesma parte <strong>do</strong> cinema, obstáculo dribla<strong>do</strong> através de uma conversinha com uma das gurias<br />

que cuidavam <strong>do</strong>s corre<strong>do</strong>res, irmã da Mônica.<br />

Ah, a Mônica. Trabalhava comigo na assessoria, já haviamos trabalho uma ou duas semanas<br />

juntos em Porto Alegre. Ela e a irmã tinham os olhos verdes e eram muito, muito gatas. Com a<br />

minha sorte, devem estar casadas e com filhos, já.<br />

Tatean<strong>do</strong> lugar, procuramos um ali pela intermediária, aquela linha imaginária que divide a<br />

frente e os fun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> cinema. Não estava nem cheio nem vazio. Não lembro se foram exibi<strong>do</strong>s<br />

curtas naquela noite, se foram não me causaram nenhuma impressão. O primeiro longa era o<br />

<strong>do</strong>cumentário Santo Forte, de Eduar<strong>do</strong> Coutinho. Muito afudê, uma das melhores coisas que eu<br />

já havia assisti<strong>do</strong> até então - mostrava como os mora<strong>do</strong>res de uma comunidade pobre <strong>do</strong> Rio de


Janeiro lidavam com a religião, com depoimentos surpreendentes, e uma edição por vezes até<br />

meio irônica. Bom, se quiserem ler sobre o filme o Merten deve ter escrito qualquer coisa muito<br />

boa no Estadão.<br />

O interessante foi que no meio <strong>do</strong> filme uma guria que estava <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Giuseppe começou a<br />

cutucá-lo, e comentava algumas coisas. No terceiro comentário ela já estava falan<strong>do</strong> comigo<br />

também, "bárbaro!" "que maravilha!", ou só umas risadas altas e desajeitadas acompanhadas<br />

de olhares buscan<strong>do</strong> a nossa aprovação. Em um desses olhares eu me dei conta de quem era a<br />

tal guria. Cutuquei o Zani:<br />

"Tu viu quem tá <strong>do</strong> teu la<strong>do</strong>?"<br />

"Não é uma guria da Fabico?"<br />

Eu rin<strong>do</strong>: "Não!"<br />

"Quem é?"<br />

"É A LUCÉLIA SANTOS!"<br />

E ela batia palma, ria, pegava no braço <strong>do</strong> Giuseppe, grande companhia. Terminou o filme nós<br />

<strong>do</strong>is saímos pelo corre<strong>do</strong>r rin<strong>do</strong> e comentan<strong>do</strong> o aconteci<strong>do</strong>, a viagem, a Lucélia Santos em<br />

Santo Forte. Aí tem aquele intervalinho, fica to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> feliz de estar lá dentro no quentinho <strong>do</strong><br />

cinema e não lá fora naquele frio (acho que foi o último inverno digno <strong>do</strong> nome, depois só El<br />

Niño e La Niña empatan<strong>do</strong> a foda). Encontramos uma amiga, a Gaby, que estava com umas<br />

amigas, e agora eu confesso que não sei se entre esses estava a guria que o Giuseppe havia<br />

viaja<strong>do</strong> para ver. Talvez sim. Então tá, sim, vamos por molho nessa história.<br />

De volta ao cinema, agora com mais gente, nos sentamos em um canto esquer<strong>do</strong>, onde estava<br />

to<strong>do</strong> o pessoal <strong>do</strong> SUPER-8, aguardan<strong>do</strong> a premiação da categoria. Foi o ano em que A Vingança<br />

de Kali Gara levou tu<strong>do</strong>, sobran<strong>do</strong> lá uns prêmios de consolação pro Spoli<strong>do</strong>ro e um pessoal da<br />

PUC. Um troço que me chamou muita atenção é que logo depois que acabou a cerimônia toda a<br />

tribo superoitista deban<strong>do</strong>u. Tu<strong>do</strong> bem, a gurizada queria mais era comemorar e chamar toda a<br />

organização de velhos, caretas e pá e coisa, mas pegou mal. Pude entreouvir Lucélia sussurar<br />

uma admoestação.<br />

O filme era <strong>do</strong> caralho. Du-ca-ra-lho. Os Amantes <strong>do</strong> Círculo Polar, sei lá de quem, <strong>do</strong> caralho<br />

talvez. Uma história de amor, e tu<strong>do</strong> o que eu queria naquela, noite, naquela semana, naquela<br />

estação, nessa vida, era uma história de amor. Bah, me emocionei, mesmo, de trincar as<br />

batatas. E acho que Giuseppe também, porque uns <strong>do</strong>is anos depois, responden<strong>do</strong> um<br />

questionário por e-mail, uma brincadeira que an<strong>do</strong>u circulan<strong>do</strong> entre amigos, ele falou desse<br />

como sen<strong>do</strong> o filme que marcou sua vida.<br />

Depois, nova saída <strong>do</strong> cinema, novo bate-papo, agora com vias a já saber o que fazer na noite -<br />

eu tinha que trabalhar to<strong>do</strong>s os dias de manhã bem ce<strong>do</strong>, o que não me impedia de me acabar<br />

até bem tarde. Uma fuzarca, uma legítima e recalcitrante fuzarca. Montes de gente foram<br />

embora, mas não sei porque cargas d'água achamos que seria uma boa ver um filme que vinha<br />

a seguir. O filme, chama<strong>do</strong> O Cu-de-Ostra <strong>do</strong>s Abustres no meu mun<strong>do</strong>, era assim uma coisa<br />

indescritível de tão chato. O público que havia se decidi<strong>do</strong> a ficar foi in<strong>do</strong> embora aos poucos.<br />

Depois de uns vinte minutos eu a Gaby e o Giuseppe nos olhamos e também fomos embora <strong>do</strong><br />

cinema quase vazio. Porque essas coisas são assim, foi o vence<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Festival.<br />

De novo lá fora, uma proposta real e concreta de noite: um bar chama<strong>do</strong> Casino, onde o pessoal<br />

<strong>do</strong> Super-8 estava fazen<strong>do</strong> sua festa. Aí apareceu sei lá de onde a apresenta<strong>do</strong>ra de um<br />

programa juvenil da repeti<strong>do</strong>ra da maior rede nacional e uma guria muito querida por quem eu<br />

me apaixonei na hora. Na hora, na horita, na horaça, no horêra. De supetão. Também não<br />

lembro porquê, mas logo estávamos eu, minha amada, a apresenta<strong>do</strong>ra e o Giuseppe em um<br />

carro, in<strong>do</strong> para não sei onde. Demos umas bandas até chegar no bar - aí eu lembro de bater


com a cabeça no teto depois que a motorista ignorou um quebra-mola, fato que ocorreria um<br />

ano depois de dia no caminho de Canela para Grama<strong>do</strong>, com o Zani na direção, e teria<br />

consequências desastrosas para minha lata de fitas.<br />

Por caminhos muito tortos, chegamos no Casino. Bebedeira, gritaria, cheiração, pute<strong>do</strong> e<br />

fuzarca, agnóstica e nababesca fuzarca. Larguei o Giuseppe de mão e fui investir no amor da<br />

minha vida. Não sei nem se dei tchau pra ele, só fui saber o que aconteceu com o cara depois.<br />

Mas, bah, foi uma senhora noite, para mim, que não interessa, e para ele, o que ele conta<br />

melhor. E aqui acaba o meu relato programa<strong>do</strong> para hoje, desde a hora em que encontrei o<br />

Giuseppe até me perder dele, conforme tu pediu, Zani. Por hoje é só pessoal. Não deixem de<br />

escrever. Vamos manter contato. Vocês são dez! Vocês é que fazem isso aqui acontecer! Senta e<br />

ro<strong>do</strong>pia! Olha a curra! Pisão no pescoço e canela nas paleta! Fui.<br />

Emiliano Urbim<br />

Ah, então havia uma garota...<br />

Agora muita coisa ficou clara. Conhecen<strong>do</strong> a mim mesmo, posso até dizer que esta é uma<br />

hipótese sustentável. De qualquer forma, a única guria de quem eu me lembro surgiu no Casino<br />

junto com o Alex: a Deise. Lembro também que depois <strong>do</strong> Palácio <strong>do</strong>s Festivais, a quantidade de<br />

conheci<strong>do</strong>s que aportaram na cidade foi gigantesca. Acho que tinha muita gente envolvida com a<br />

produção de curtas e S-8; um fenômeno cultural quantitativo ainda a ser aborda<strong>do</strong>. Como<br />

conseqüência imediata, to<strong>do</strong>s acabaram in<strong>do</strong> para o mesmo bar, crian<strong>do</strong> um gueto portoalegrense<br />

em Grama<strong>do</strong> com praticamente todas as mesmas pessoas que freqüentavam naquela<br />

época o Garagem Hermética, à exceção de uns poucos como o ator Caio Blat, que fracassou na<br />

tentativa de integrar-se ao pessoal <strong>do</strong> cinema alternativo e passou a noite jururu num canto,<br />

ten<strong>do</strong> crises de estrela anã.<br />

Quanto a mim, cada conheci<strong>do</strong> que encontrava, era uma cerveja ganha. No entanto, eu ainda<br />

não sabia como voltar para Porto Alegre. Não havia mais ônibus, a ro<strong>do</strong>viária estava fechada, e<br />

o frio na rua o Urbim já descreveu. A minha sorte foi que a Deise tinha que trabalhar no dia<br />

seguinte e sairia no meio da madrugada. Ela me ofereceu carona: tinha me<strong>do</strong> de <strong>do</strong>rmir na<br />

direção. Queria que eu lhe fizesse companhia, eu topei mas apaguei antes mesmo <strong>do</strong> primeiro<br />

pedágio e só fui acordar em Porto Alegre com outras duas gurias que eu nunca tinha visto antes<br />

no banco de trás.


ANEXO 4<br />

FGTS: AS LETRAS DO DEMÔNIO ou BUROCRACIA É OCULTISMO<br />

DE POBRE<br />

por Paula Pó com ilustrações de Eduf e Nelson Azeve<strong>do</strong><br />

Eu achava que já sabia tu<strong>do</strong> sobre ocultismo até conhecer as assusta<strong>do</strong>ras letras: FGTS. São<br />

quatro inocentes sinais gráficos que ganham um poder demoníaco quan<strong>do</strong> juntos, comparável ao<br />

666.<br />

Só que enquanto o tal número da besta atrai as elites, eruditos, diretores de cinema e<br />

metaleiros, o FGTS manipula uma massa desdentada, quasímoda, sedenta por alguns centavos a<br />

mais nas suas contas bancárias.<br />

A iniciação<br />

Segun<strong>do</strong> a imprensa, eu teria uma grana a receber <strong>do</strong> governo. Desde que participasse de<br />

alguns rituais estranhos. Seduzi<strong>do</strong> pelas promessas de consumo, sucesso e poder, resolvi<br />

encarar.<br />

Preenchi alguns papeis que são forneci<strong>do</strong>s descaradamente pelos Correios. Pelo jeito, as<br />

autoridades são coniventes com a burocracia-negra.<br />

Estranhei as palavras de ordem, os sinais esotéricos <strong>do</strong>s formulários e, principalmente, o ar<br />

sombrio das autoridades daquela estranha seita, chama<strong>do</strong>s de "funcionários". Mas estava<br />

disposto a vender minha alma. Nem que fosse fia<strong>do</strong>.<br />

Disseram que eu deveria ir a um templo conheci<strong>do</strong> como Caixa Econômica e aguardar mais<br />

instruções. A expectativa me deixava mais vivo e forte: segui imediatamente para o local.<br />

O templo da perdição<br />

A aparência <strong>do</strong> templo era impressionante: gigante, to<strong>do</strong> de vidro, cerca<strong>do</strong> de pessoas com<br />

roupas cerimoniais. Aproximei-me com cuida<strong>do</strong> e evitei encarar as pessoas.<br />

Esperava que alguém gritasse "Tulsa Doom" e denunciasse que eu era um estranho ali. Mas<br />

parece que não havia inicia<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s estávamos apenas no primeiro passo da aquisição da<br />

(des)graça.<br />

Revolucionários de fila<br />

Logo na entrada <strong>do</strong> templo, anões, mulheres barbadas, gor<strong>do</strong>s, faquires, cegos, mulheres da<br />

República das Raízes Pretas, to<strong>do</strong> tipo de gente formava uma imensa fila. Posicionei-me e fiquei<br />

em silêncio.<br />

Um <strong>do</strong>s rituais de iniciação era reclamar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Havia dezenas de ora<strong>do</strong>res de fila: to<strong>do</strong>s<br />

revolucionários, conscientes <strong>do</strong>s problemas <strong>do</strong> país, críticos, eloqüentes. Exalavam litros de<br />

perdigotos.<br />

Perguntava-me porque, afinal, Lênin começou a revolução na Rússia. Fidel Castro então foi de<br />

uma obtusidade bushiana: com a ajuda de uma fila brasileira sua revolução seria uma<br />

quermesse de vila. Nossas fileiras são mais revolucionárias <strong>do</strong> que as <strong>do</strong> Império Romano.<br />

Peregrinação<br />

Nossa peregrinação começou às 10h00. Consegui andar cerca de 3 metros até as 14h00. Depois<br />

é que as coisas ficaram lentas. Só entrei no templo às 17h40: quase 4 horas para andar um


metro.<br />

Muitas pessoas não suportaram jejuar por to<strong>do</strong> esse tempo e desistiram. Outras tentaram<br />

encurtar o caminho. Mas, como disse Jesus, a porta é estreita. E tem detector de metais.<br />

Sacrifícios<br />

O sacrifício físico não era o único obstáculo a ser venci<strong>do</strong>. Ao meu la<strong>do</strong>, uma garota era<br />

evidentemente testada em sua capacidade de calar a boca.<br />

Olhava desesperadamente para os la<strong>do</strong>s, tentava conversar. Mas, surpreendentemente, to<strong>do</strong>s a<br />

ignoravam. Em to<strong>do</strong>s os pontos da fila as pessoas gritavam, reclamavam, já estavam íntimas.<br />

A solidão parecia lhe pesar tanto que começou a bufar, grunhir, soltar sons estranhos (por sorte,<br />

não havia cheiros). Mexia-se com nervosismo e passava as mãos no rosto.<br />

Eu estava prepara<strong>do</strong> para lhe aplicar uma injeção no peito, como um gangster de filme <strong>do</strong><br />

Tarantino. Ou talvez conversar. Mas quem sou eu para atrapalhar a iluminação de alguém?<br />

O Último Portal<br />

No portal de entrada <strong>do</strong> templo, tive de me desapegar de to<strong>do</strong>s os bens materiais: celular,<br />

óculos, chaves, moedas etc. Por mais que fizesse, não era aceito: sempre tinha que voltar e<br />

humildemente me submeter ao julgamento <strong>do</strong>s funcionários de batinas.<br />

Este é o momento mais difícil <strong>do</strong> processo de eliminação <strong>do</strong> ego: você está a poucos passos <strong>do</strong><br />

objetivo, mas tem que se controlar e demonstrar várias vezes que é confiável, dócil, persistente.<br />

Porém, sou forte: consegui entrar no templo.<br />

Mestres yogues<br />

Por dentro, o templo também é de uma beleza quase indescritível: branco, com tons de cinza e<br />

azul calcinha. Funcionárias lindas, com maquiagens carregadas, peitos murchos, sardas e óculos<br />

de lentes grossas.<br />

Esperaríamos mais algumas horas em confortáveis poltronas, contemplan<strong>do</strong> o equilíbrio das<br />

sinalizações e os anúncios das maravilhas que se obtém ao participar daquela instituição.<br />

Teríamos consultas individuais com mestres yogues. Eles atendiam com movimentos lentos e<br />

estuda<strong>do</strong>s: demoravam uma eternidade para completar cada ação. Nada ali tinha a pressa e o<br />

desespero da vida cotidiana.<br />

A cara <strong>do</strong> Demo<br />

Estava em profunda meditação quan<strong>do</strong> chegou a minha vez. Levantei-me e, um pouco nervoso,<br />

espalhei os <strong>do</strong>cumentos na mesa <strong>do</strong> mestre. Ele me olhou com um ar ameaça<strong>do</strong>r, de quem julga<br />

os vivos e os mortos.<br />

Só então me lembrei de que estava num ritual satânico. O cristianismo me ensinou a associar o<br />

branco, a leveza e os peitos murchos ao paraíso. E eu precisava entender que o diabo sempre<br />

aparece em dez vias carbonadas e protocoladas.<br />

Crise de identidade<br />

O mestre pegou minha carteira de identidade. Súbito, suas veias saltaram e sua voz ficou<br />

gutural: "não pode dar entrada no FGTS com este RG".<br />

Tentei convence-lo de que aquele era um RG à David Carson, desconstrucionista. Mas a<br />

temperatura subiu e a pele <strong>do</strong> mestre ficou vermelha e escamosa: "você tem um problema de


identidade. Ela está manchada, castigada pela idade. Você precisa renova-la, livra-la <strong>do</strong>s<br />

buracos e rasgos <strong>do</strong> tempo".<br />

Quase pulei no seu colo e o chamei de psicanalista. Mas ali estava a personificação <strong>do</strong> demônio.<br />

Quer dizer: teria de chamá-lo de psiquiatra.<br />

O problema é que não haveria tempo para gentilezas: meus <strong>do</strong>cumentos foram rejeita<strong>do</strong>s,<br />

minha iniciação fora recusada.<br />

Alma à venda<br />

To<strong>do</strong> sonho de poder e consumo desmantela<strong>do</strong>. De nada adiantaram as 10 horas de fila. Eu teria<br />

de ir além e passar pelos umbrais de um lugar chama<strong>do</strong> Poupa Tempo.<br />

Recuperar a prova <strong>do</strong> meu nascimento, imprimir minhas digitais, enfrentar novas filas e gurus.<br />

Decifrar novos caminhos para guichês ainda mais distantes, pagar novas taxas e,<br />

principalmente, testar minha persistência.<br />

Chego em casa, olho para o espelho e me pergunto: será que minha alma vale to<strong>do</strong> esse<br />

esforço? Não seria mais fácil anuncia-la no Shop Tour? Aí está a saída: vou vende-la ao Grupo<br />

Imagem. Quem sabe eu ganho um Ambervision debrinde?


ANEXO 5<br />

O ET DE VAGINA<br />

por Paula Pó com ilustrações de<br />

Nelson Azeve<strong>do</strong> e Luiz Monty Pellizzari<br />

Quase um mês sem sexo. O sol gritava lá fora. Estava vestin<strong>do</strong> rosa. E pra variar, sou jornalista.<br />

<strong>Jornalismo</strong> é uma daquelas profissões fantasiosas que enganam desde os primórdios da pena.<br />

No curso entre um basea<strong>do</strong> e outros, entendi que matérias como Política de Comunicação,<br />

Interfaces de Programação Visual e Novas Tecnologias de Comunicação têm o mesmo fim, o<br />

abismo profun<strong>do</strong> e inacaba<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu cérebro, caíram há muitos anos e ainda não fizeram o<br />

barulho sur<strong>do</strong> de quem cai no chão. E pra quê? Pra atender o telefone e ouvir isso.<br />

Eles me levaram e me possuíram. Quem? Eles são perigosos. O senhor está falan<strong>do</strong> de quem?<br />

Do coman<strong>do</strong> vermelho? Do homem <strong>do</strong> saco? Do FÊO, o pagodeiro fugitivo? Não. Dos ETs. Hã.<br />

Diga mais. Só pessoalmente. Fui na casa dele. Paredes azuis, alguns quadros de anjos, poucos<br />

livros, enya rolan<strong>do</strong>. Aceita um suco? Meu deus, é o inferno. Tomei um suco de morango com<br />

leite que fez meu fíga<strong>do</strong>, cuida<strong>do</strong>samente destruí<strong>do</strong> pelos anos de pinga se retorcer de <strong>do</strong>r.<br />

Maldito emprego.<br />

Isso aí começou com um <strong>do</strong>s e-mails mais bizarros da minha vida, mais que os da minha mãe.<br />

Entrarei em contato. Assim que eles permitirem. Tá. Em seguida um alfabeto supostamente<br />

alienígena numa planilha <strong>do</strong> Excel. Que merda de tecnologia avançada é essa que ainda usa o<br />

Win<strong>do</strong>ws? Então ele vomitou sua experiência. Entre uma lágrima, um soluço e uma gorfada me<br />

contou que estava na estrada, voltan<strong>do</strong> para casa depois de uma festinha. O senhor bebeu<br />

quanto? Ah, não? Desde quan<strong>do</strong>? NUNCA? Ah, EU SINTO MUITO, quer dizer, continue por favor.<br />

Bem, eu estava dirigin<strong>do</strong> de volta pra casa, quan<strong>do</strong> meu carro começou a falhar. Verifiquei as<br />

horas, três da manhã. Minha vó ficaria preocupa<strong>do</strong> comigo. Primeiro parou o motor, em seguida<br />

o som e finalmente os faróis e enfim veio a luz. Uma luz forte que clareou tu<strong>do</strong> em volta.<br />

Coloquei meus braços sobre o rosto para proteger meus olhos e quan<strong>do</strong> saí dessa posição havia<br />

se passa<strong>do</strong> cinco horas.<br />

* suspiro * E?...<br />

Depois desse dia, passei a sonhar com uma etéia. Bonitinha até. Tinha longos cabelos loiros, alta<br />

e magra. Só tinha três de<strong>do</strong>s, que usava como ninguém. Vestia uma espécie de macacão<br />

espacial, com uns desenhos estranhos. Ao contrário daqueles cinzas, tinha lábios, nariz ou<br />

orelhas. E <strong>do</strong>is olhos imensos. Desde esse dia nunca <strong>do</strong>rmi em paz. Sempre a ouço dizer que<br />

queria um filho meu. Procurei o jornal pra ver se vocês me ajudam com o DNA.<br />

- * silêncio *<br />

Esse é o problema de ser um tablóide. Não é porque publicamos corpos e resenhas de música na<br />

primeira página que se pode zombar assim. Mas então vi a prova. Concreta, firme e ereta. No<br />

prepúcio havia uma espécie de bolinha, como um grão de ervilha, que se mexia de acor<strong>do</strong> com o<br />

toque. Depois de três gozadas, digo, testes, me convenci da verdade. Iria publicar a matéria.<br />

Corri pra redação e fui procurar por embasamento, informações ou o recheio da lingüiça. O que<br />

achei me preocupou e muito. Em 1950 começou o que se pode chamar de era moderna da<br />

Ufologia. Depois que um piloto avistou nove sondas de uma única vez. Sondas podem ser<br />

compara<strong>do</strong>s como carrinhos de controle remoto, pequenas naves não tripuladas que fazem o<br />

serviço sujo da nave mãe, reconhecen<strong>do</strong> e filman<strong>do</strong> pessoas e lugares. São aquelas luzes que as<br />

pessoas afirmam ver ro<strong>do</strong>pian<strong>do</strong> pelo céu. Depois disso houve o famosos caso Roswell que deu<br />

origem à área 51, muito mais popular que a própria Ufologia. Um similar brasileiro seria o caso<br />

<strong>do</strong> ET de Varginha, reconheci<strong>do</strong> mundialmente como uns <strong>do</strong>s mais importantes dessa era.


O interessante é que a América Latina, apesar da fama de seus homens, é uma das áreas com o<br />

menor índice de envolvimento sexual entre espécies. Os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s se encontram na<br />

liderança absoluta <strong>do</strong>s casos de sexo com alienígenas, inclusive com registros de crianças e/ou<br />

seres híbri<strong>do</strong>s. Isso explica muitas coisas, entre elas o Michael Jackson. Outro da<strong>do</strong> interessante,<br />

é que das pessoas que tiveram contatos avança<strong>do</strong>s menos de 5% chega a saber o que<br />

aconteceu. Muito pior que amnésia alcoólica.<br />

Me espantei ao saber que a pequena ervilha erótica é um implante. Esses pequenos objetos são<br />

considera<strong>do</strong>s a prova física e incontestável da presença alienígena. Indivíduos implanta<strong>do</strong>s são<br />

as cobaias registradas. E sempre voltam para a continuidade da experiência.<br />

Liguei para minha melhor matéria nos últimos anos de redação. Ele não estava. Tinha sumi<strong>do</strong>.<br />

Corri até sua casa e o encontrei joga<strong>do</strong> na lama, desmaia<strong>do</strong>.<br />

Depois de muito tempo me contou que tinha si<strong>do</strong> seqüestra<strong>do</strong> novamente. Desta vez não houve<br />

nenhum contato sexual, apenas foi leva<strong>do</strong> para que conhecesse sua filha. A aparência era de<br />

uma garota de dez anos. Segun<strong>do</strong> os alienígenas o desenvolvimento deles é bem mais<br />

avança<strong>do</strong>, justifican<strong>do</strong> a idade daquela criança de seis meses. Minha cara. Os olhos são da mãe,<br />

mas é a minha cara. Conversamos sobre tu<strong>do</strong> o que envolvia a experiencia.<br />

A nave era um lugar frio. Não havia cores ou som, qualquer coisa que desse algum amparo<br />

emocional. As paredes pareciam de ferro. Não havia indícios de quartos ou salas. Apenas uma<br />

maca de ferro com restos de sangue e um cilindro com um recém-nasci<strong>do</strong>. Indícios de que<br />

houve um parto humano há pouco tempo. Não quis falar sobre a filha ou a mãe da garota. Não<br />

nos beijamos. Nem da outra, sabe. Agora me fizeram gozar num potinho e levaram embora.<br />

Acho que vou ser pai. Tomara que seja menino. Meu deus, preciso de um pega.<br />

Corri pra redação e fiz a matéria. Expliquei tu<strong>do</strong> pro editor. Cortes, cicatrizes e brancos podem<br />

ser sintomas de uma abdução. Perdi tempo com aquela besta de suéter que vetou minha<br />

matéria. Disse que ninguém acreditaria num homem de quase quarenta anos e <strong>do</strong>is metros de<br />

altura tenha sofri<strong>do</strong> algum tipo de violência sexual de uma criatura cinza de 1,20. Mas ela<br />

parecia a Fernanda Lima. Ninguém. Essa incredulidade é que mata. Se os indies existem, porque<br />

não alienígenas?<br />

Voltei pra minha sala e olhei para o relógio. Dez pra cinco. Resolvi sair dez minutos mais ce<strong>do</strong>.<br />

Antes conferi o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> teste que peguei na Internet. 80% de chance de ser abduzida.<br />

Imagina. Abaixei pra amarrar meu tênis. Uma luz forte passava por debaixo da porta. Ia fican<strong>do</strong><br />

cada vez mais forte. Meu coração não estava mais. Pus os braços no rosto numa tentativa<br />

desesperada de proteger os olhos. Quan<strong>do</strong> a luz não tinha mais o que invadir, a porta se abriu e<br />

eu gritei.<br />

Não era um alien, mas quase. Carvão, o uébi que vinha me mostrar sua geringonça nova de<br />

rave. Maldito emprego, malditos indies. Malditas raves.<br />

Elas fodem tu<strong>do</strong>.


ANEXO 6<br />

RAOUL DUKE EXPLICA: COGUMELOS<br />

ALUCINÓGENOS<br />

por Marcelo Träsel<br />

com ilustrações de Nelson Azeve<strong>do</strong>,<br />

Luiz Monty Pellizzari e Car<strong>do</strong>so<br />

Num serviço de utilidade pública, um intrépi<strong>do</strong> membro da indômita comunidade Raoul Duke<br />

submeteu-se a um ousa<strong>do</strong> experimento com cogumelos. Caso alguém já queira processá-lo no<br />

primeiro parágrafo, é bom lembrar que cogumelos não são drogas ilegais. Até porque nascem<br />

nos pastos e seria preciso encarcerar todas as vacas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para dar cabo deles.<br />

Antes de mais nada, qualquer interessa<strong>do</strong> em usar o cogumelo semelhante ao Stropharia<br />

cubensis que cresce nas bostas de vaca <strong>do</strong> Brasil deveria preencher os seguintes requisitos:<br />

1. Bom conhecimento em filosofia<br />

2. Mente saudável<br />

3. Conhecer algo da história da psicodelia, em especial a biografia de Timothy Leary, Flashbacks.<br />

Como em geral são a<strong>do</strong>lescentes imbecis que usam drogas diferentes de cocaína ou maconha, é<br />

aconselhável que tomem os cogumelos ao menos acompanha<strong>do</strong>s de algum amigo sóbrio e, se<br />

possível, em casa, numa sala confortável, sem decoração agressiva, com música decente e<br />

calma tocan<strong>do</strong>. Uma boa opção de ambiente é um monte de almofadas no chão, meia-luz e<br />

mogwai na vitrola.<br />

NÃO TOME COGUMELOS SEM TER CERTEZA DE QUE SÃO OS QUE ESTÁ PROCURANDO.<br />

É evidentemente perigoso. Procurar cogumelos alucinógenos sem nunca ter visto um é besteira,<br />

mas pelos mesmos motivos de antes, aqui vão algumas dicas de como reconhecer o bicho:<br />

1. Crescem sobre as bostas de vaca, após uma chuva ou garoa.<br />

2. Os mais altos tem cerca de 10cm, com uma cabeça circular de até 5cm de diâmetro, de<br />

coloração branco-<strong>do</strong>urada. Às vezes, há um anel preto no caule branco. A consistência é carnosa<br />

e ele se despedaça com facilidade.<br />

3. Mais importante: ao entrar em contato com o ar, a parte interna <strong>do</strong> caule fica roxo-azulada.<br />

Abra o caule, para verificar, e espere alguns minutos.<br />

Há várias formas de ingestão. A mais popular é a infusão. Basta ferver os cogumelos durante<br />

alguns minutos, poden<strong>do</strong>-se acrescentar vinho, cachaça, sucos, ervas, qualquer coisa. O gosto é<br />

tenebroso, em compensação bate mais rápi<strong>do</strong>. Minha forma preferida é lavar e comê-los dentro<br />

de um pão, cabeças e caule. Dá menos trabalho, a onda chega de forma mais suave, dura mais<br />

e é mais forte. Café ou cerveja ajudam a tirar o gosto ruim da boca.<br />

A <strong>do</strong>se, no caso de ingestão <strong>do</strong>s cogumelos inteiros, é de 4 ou 5 grandes por pessoa. Tenha em<br />

mente que a viagem é muito potente, e o risco de bad trip é alto. Quanto a riscos físicos, além<br />

<strong>do</strong>s possíveis acidentes (atropelamentos, quedas, etc.), há a possibilidade de um surto psicótico.<br />

Algumas pessoas jamais retornam dele. O motivo para isso é simples: a psilocibina e seus<br />

parentes ativam a psicose básica <strong>do</strong> sujeito. Ou seja, se você tiver delírios paranóicos, é porque<br />

vai ser paranóico se um dia enlouquecer. Se já for um tanto desequilibra<strong>do</strong> e faltar apenas um<br />

estalo para surtar, não é difícil que o uso de cogumelos provoque o surto.<br />

23:00, dia 15.02.2002 - Comi cerca de 5 cogumelos grandes, dentro de um pão, e saí de casa


junto com duas amigas que também haviam comi<strong>do</strong> os <strong>do</strong>cinhos. Íamos até a praça central de<br />

Garopaba/SC, pegar um ônibus para a ferrugem, um tipo de shopping etílico a céu aberto,<br />

freqüenta<strong>do</strong> por mauricinhos e surfistas a<strong>do</strong>lescentes da pior espécie. Má escolha, como<br />

verificaríamos mais tarde.<br />

23:30 - Ao contrário de minhas expectativas, a onda chegou em apenas meia hora. Começou<br />

com uma sensação de anestesia pelo corpo, em especial nas pernas. A pessoa sente-se<br />

flutuan<strong>do</strong>. Não sente cansaço, por mais que caminhe, corra ou pule - o que não siginifica que<br />

não vai sentir <strong>do</strong>res musculares no dia seguinte. Penso que esta característica da psilocibina era<br />

responsável pelos aparentes superpoderes <strong>do</strong> xamã. Ele poderia dançar a noite inteira, sem<br />

cansar. Correr, levar porrada. Segue-se à anestesia uma sensação de euforia. Rimos por nada.<br />

24:00 - Esperan<strong>do</strong> pelo ônibus, sinto os primeiros efeitos visuais. As sombras de algumas<br />

árvores se movem pela grama, e uma das casuarinas parece-se demais com uma lula gigante.<br />

Algum desconforto no estômago. Minhas amigas não param de fazer piadas, estou muito<br />

ocupa<strong>do</strong> com os efeitos visuais, mas não consigo conter um sorriso permanente. Nas pernas,<br />

sinto como se mosquitos estivessem me pican<strong>do</strong>, ou formigas caminhan<strong>do</strong> por elas. Não estão.<br />

24:30 - É difícil descobrir quanto custa o ônibus e também contar o dinheiro. As moedas todas<br />

se parecem. Não reconheço mais a estrada. Quan<strong>do</strong> estou 100m adiante, vejo à minha frente os<br />

100m anteriores da estrada. Difícil descobrir onde estou. A luz de um carro bate no pára-brisa,<br />

explode e meu campo de visão fica cheio de pedrinhas de luz. Desço <strong>do</strong> ônibus com certa<br />

dificuldade.<br />

Tenho me<strong>do</strong> de atravessar a estrada, porque estou ten<strong>do</strong> alucinações e posso não ver um carro.<br />

Atravesso. Olhan<strong>do</strong> para o céu, fico surpreso com o tamanho dele. As estrelas ficam mais<br />

brilhantes, e a cor é esquisita. Ao caminhar, sinto como se estivesse chapinhan<strong>do</strong> num charco.<br />

Um sujeito nos manda subir na caçamba de sua caminhonete, ganhamos uma carona. No<br />

caminho, muita poeira. Fico em dúvida se estou alucinan<strong>do</strong> algumas nuvens de poeira, se estou<br />

mesmo coberto de areia. É cada vez mais complica<strong>do</strong> dialogar.<br />

1:00 - Chegamos ao lugar. Meu corpo parece mais alto e magro enquanto caminho. Alguém fala<br />

sobre uma rave, bem no momento em que passamos por um estacionamento. Abisma<strong>do</strong> com a<br />

qualidade da luz e <strong>do</strong> espaço, digo que a rave deveria ser ali. Parece muito apropria<strong>do</strong>. A<br />

sensação de anestesia agora dá lugar ao que poderia-se definir como separação <strong>do</strong> corpo. Os<br />

senti<strong>do</strong>s não necessariamente comunicam mais o que está se passan<strong>do</strong>, ou fazem isto de forma<br />

confusa. Por causa disso mesmo, os movimentos exigem cada vez maior concentração.<br />

A luminosidade e as cores da avenida de terra cercada por bares é interessante. Pareço estar<br />

dentro <strong>do</strong> filme Delicatessen. Jeunet é, com certeza, o diretor de arte das viagens de cogumelo.<br />

Um guindaste de bungee-jump chama minha atenção. Tu<strong>do</strong> é novo, imenso. E tu<strong>do</strong> parece se<br />

encaixar no seu exato lugar, tu<strong>do</strong> parece apropria<strong>do</strong> e conveniente. Sentamos em um bar, mesa<br />

da rua. Não calamos a boca. Rimos. Enrolamos a língua. Toca um axé. Procuro um banheiro, e<br />

ao fazer isso, cruzo por caixas de som tocan<strong>do</strong> Metallica. A trilha sonora parece muito adequada<br />

ao local em volta, escuro. Está fecha<strong>do</strong>, então volto para a mesa e digo, rin<strong>do</strong>, que não consegui<br />

mijar. Indicam um banheiro e vou até ele, no setor em que toca Enter Sandman. O banheiro é<br />

infecto, mas acho ele bastante bonito, as cores da merda e <strong>do</strong> barro e as paredes sujas. A<br />

adequação da música ao local me deixa alegre, sinto-me seguro no universo.<br />

Saio dali e compro uma cerveja. Kaiser Summer. No momento em que retiro o dinheiro <strong>do</strong> bolso<br />

para pagar, desço à terra e tomo consciência de como estão meus movimentos. Tiro o dinheiro<br />

<strong>do</strong> bolso como um mendigo o faria. Devagar, levantan<strong>do</strong> a camiseta para expor o bolso - e a<br />

barriga por tabela. Fico preocupa<strong>do</strong>, pensan<strong>do</strong> que as pessoas devem estranhar isso. Volto para<br />

a mesa e converso com as meninas. Não é preciso terminar as frases para entendê-las. A<br />

cerveja brilha amarela, radioativa. Estou muito, muito feliz. Nunca estive tão feliz. Qualquer<br />

movimento dá prazer, por isso passo a língua pelos lábios e mexo os de<strong>do</strong>s. Penso em tomar<br />

cogumelos to<strong>do</strong>s os dias da minha vida. Minhas amigas concordam. Uma delas jura não estar<br />

sentin<strong>do</strong> nada, mas nota-se a euforia dela. A outra me acompanha em uma discussão sobre os<br />

efeitos intelectuais <strong>do</strong> cogumelo. Digo que agora enten<strong>do</strong> <strong>do</strong> que as letras <strong>do</strong>s Doors falavam, a


estética psicodélica toda. Segue-se o seguinte diálogo:<br />

EU: Quan<strong>do</strong> tomei áci<strong>do</strong>, olhei para uma concha e compreendi como funcionava a acústica dela,<br />

porque fazia aquele barulho.<br />

ELA: E como funciona? Lembrou agora, com os cogumelos?<br />

EU: Não. Eu teria de olhar para a concha, para compreendê-la. (Pego a garrafa na mão) No<br />

máximo, posso compreender o princípio da acústica das garrafas, porque tenho esta garrafa<br />

aqui.<br />

Escrevo isto num caderninho da guria. A letra é uma mistura da minha letra atual com letras<br />

emendadas <strong>do</strong>s meus tempos de alfabetização no colégio. Um <strong>do</strong>s efeitos <strong>do</strong> cogumelo é a<br />

impossibilidade de entender letras e símbolos gráficos. Talvez seja conseqüência das alterações<br />

visuais. Cuida<strong>do</strong> com seu dinheiro.<br />

A euforia torna difícil ficar para<strong>do</strong>. Tenho vontade de ir à praia. Uma das meninas - a que diz<br />

não sentir nada de mais - sai para ir ao banheiro. Não volta mais. Convi<strong>do</strong> a outra para ir à<br />

praia, mas ela não quer. Sinto a mente cada vez mais descolada <strong>do</strong> corpo, e lembro de pensar<br />

algo como "estou me tornan<strong>do</strong> totalmente simbólico". Talvez por ter li<strong>do</strong> recentemente "A<br />

Negação da Morte", em que Ernest Becker divide o ser humano em animal e simbólico. Enfim,<br />

quan<strong>do</strong> respiro fun<strong>do</strong>, consigo "descer" para o corpo e manter um pouco a linha. Estou<br />

realmente preocupa<strong>do</strong> com o que os outros estão pensan<strong>do</strong> a meu respeito, porque tenho a<br />

impressão de estar falan<strong>do</strong> muito alto e agin<strong>do</strong> de forma muito teatral. Minha amiga concorda.<br />

Um sujeito, que veio de carona na mesma caminhonete e sentou na mesa conosco, diz que<br />

parecemos alegres, mas normais.<br />

Começa a chover. Forte. To<strong>do</strong>s se levantam, somos os únicos <strong>do</strong>is senta<strong>do</strong>s em uma mesa na<br />

rua. Não sinto a chuva, mas começo a me sentir ridículo e comento que "somos aqueles caras<br />

no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> bar, podres de bêba<strong>do</strong>s, que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> fica critican<strong>do</strong> e desprezan<strong>do</strong>". Estou,<br />

evidentemente, fican<strong>do</strong> paranóico. Decidimos caminhar, porque não conseguimos mais ficar<br />

senta<strong>do</strong>s. Na primeira esquina, deci<strong>do</strong> que PRECISO ir à praia, ver o mar, porque ele tem algo a<br />

me dizer. Minha amiga vai para outro la<strong>do</strong>.<br />

A chuva engrossa, mas não me importo. Sinto-me orgulhoso de não ter me<strong>do</strong> da natureza, de<br />

andar em comunhão com ela. Ao chegar na trilha que dá na praia, o caminho muda<br />

constantemente. Parece muito mais longo. Receio me perder. Ao chegar na areia, os morros<br />

parecem enormes, bem mais altos <strong>do</strong> que são na <strong>realidade</strong>. O mar nasce das brumas escuras no<br />

horizonte. Há luzes em alguns locais sem casas. A água não avança para a areia, faz o<br />

movimento contrário e parece se des<strong>do</strong>brar sobre si mesma. Estou realmente abisma<strong>do</strong>. O<br />

mun<strong>do</strong> é imenso, infinito. Não há nada nem ninguém por perto. As pessoas <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>, na rua, não existem. A praia é um mun<strong>do</strong> separa<strong>do</strong>, é algo além, a fonte de toda<br />

criação. Aquela praia. Resolvo caminha um pouco, e quan<strong>do</strong> me viro, posso vislumbrar o mar<br />

baten<strong>do</strong> na areia, um morro atrás, uma floresta escura e então a rua, iluminada como uma<br />

disneylândia. Parece um cenário <strong>do</strong> jogo The Secret of the Monkey Island nas cores e formas das<br />

casas e paisagem. Ao longe, um dinossauro forma-se das brumas. Então, compreen<strong>do</strong> TUDO.<br />

Sim, agora eu sei porque estou aqui. O mar está me dizen<strong>do</strong> que sim, a vida tem um senti<strong>do</strong>, a<br />

seqüência mar, areia, floresta e cidade é um resumo da evolução. E eu estou pairan<strong>do</strong> sobre ela.<br />

Eu sou deus.<br />

Não, eu não sou deus. Sou parte dele e ele é parte de mim. Sou o mar, o vento, as montanhas,<br />

a floresta e a cidade. Tu<strong>do</strong> está em seu lugar, tu<strong>do</strong> tem um porquê, tu<strong>do</strong> é adequa<strong>do</strong> e<br />

necessário. Amo tu<strong>do</strong>. Não sei o que fazer com tanta alegria. Quase choro. Minha vida está<br />

justificada, não há mais lugar para angústias existenciais.<br />

Neste momento, lembro que estou NO MEIO DA PRAIA, DURANTE UMA CHUVARADA. A<br />

existência pode me amar, mas também pode mandar um raio na minha cabeça. Corro. Quan<strong>do</strong><br />

estou sain<strong>do</strong> da praia, caio na trilha para um bar onde tomei meu primeiro áci<strong>do</strong>. É de uns<br />

uruguaios, é meio hippie, tem redes e sofás. Resolvo ir pra lá. Fica dentro da floresta escura,


mas não tenho me<strong>do</strong>. Sou um xamã, a floresta é minha amiga.<br />

Na porta <strong>do</strong> bar, me <strong>do</strong>u conta de que sou um magrão encharca<strong>do</strong> e com os pés cheios de areia.<br />

Lavo os tênis na água que cai <strong>do</strong> telha<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> piso dentro <strong>do</strong> lugar, um cachorro late. Um<br />

pastor preto. É mescalito. Não, não é. Mas os cachorros, uns 3, me olham de maneira esquisita,<br />

cheiram. O bar brilha com luz intensa. Peço uma cerveja. Custa R$ 3,00, eu <strong>do</strong>u duas notas de<br />

10, mas o sujeito <strong>do</strong> bar é legal e me devolve direitinho. Percebo que é muito fácil me<br />

roubarem. Fico meio desconfia<strong>do</strong> <strong>do</strong> sujeito ao la<strong>do</strong>. Puxa papo, diz que é de Porto Alegre e está<br />

em Ibiraquera. Suspeito que seja um foragi<strong>do</strong> da polícia. Do outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> balcão, há uns<br />

hippies. Mas, na verdade, são piratas. O chefe deles é ruivo e tem feições norueguesas. Fala<br />

algumas frases de efeito e me manda ficar à vontade. Estou satisfeito. Feliz. As pessoas <strong>do</strong> bar<br />

cuidam de mim.<br />

Demoro para tomar a cerveja, ou acho que demoro. O tempo se alarga muito sob efeito <strong>do</strong>s<br />

cogumelos. Não tenho idéia de que horas sejam, parece ser umas 3 e meia. De repente, a deusa<br />

indiana Kali aparece perguntan<strong>do</strong> se a cerveja é minha. Hesitante, respon<strong>do</strong> que sim. Kali é má.<br />

Ela quer abusar de mim. To<strong>do</strong>s querem. Quero sair corren<strong>do</strong>, mas começo a me achar imbecil e<br />

tomo o resto da cerveja. Até porque, o foragi<strong>do</strong> pode desconfiar. Quero esperar ele ir embora.<br />

Não vai, então vou logo embora, deixan<strong>do</strong> Kali por lá.<br />

Andan<strong>do</strong> na rua, to<strong>do</strong>s olham para meu esta<strong>do</strong> deplorável. Olham mesmo? Não tenho como<br />

saber, mas isto me incomoda muito. Quase esbarro em mesas e carros. As pessoas naquele<br />

lugar são malditos mauricinhos horríveis. Não conseguem perceber, como eu, a existência, o<br />

senti<strong>do</strong> da criação, enfim, tu<strong>do</strong>. Vivem inconscientemente. Penso em matá-los, mas resolvo me<br />

refugiar na praia, onde não posso fazer mal a ninguém e ninguém pode me alcançar. O mar é<br />

meu amigo. A floresta também. Eu sou um xamã. Mas desta vez, a praia e to<strong>do</strong> o universo<br />

parecem imensos demais. Sinto frio. Alguns arbustos parecem guerreiros indígenas.<br />

O fato de os arbustos parecerem guerreiros explicaria as tais conversas <strong>do</strong>s xamãs com espíritos<br />

e animais míticos? Não admira que índios e acadêmicos de harvard tenham endeusa<strong>do</strong> os<br />

cogumelos, a experiência psicodélica. A psilocibina dá a impressão de ARROMBAR os filtros que o<br />

cérebro usa para não submergir em uma profusão de estímulos e sensações. O sujeito pensa<br />

mais rápi<strong>do</strong>, e não por lógica, mas intuição. Não sente cansaço. Compreende coisas apenas<br />

olhan<strong>do</strong> para elas. Tem respostas. É mágico, é poderoso. O que mais poderiam pensar índios<br />

sem nenhum refinamento acadêmico, além de que haviam passa<strong>do</strong> para outro mun<strong>do</strong>, o mun<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>s espíritos e guerreiros ancestrais? Um mun<strong>do</strong> terrível, mas imenso, mas ao mesmo tempo<br />

familiar, aconchegante?<br />

A experiência psicodélica suscita uma questão intelectual importante sobre epistemologia: até<br />

que ponto nossos senti<strong>do</strong>s são uma forma razoável de conhecer o mun<strong>do</strong>? Tu<strong>do</strong> o que eu vi sob<br />

efeito da psilocibina EXISTIA. Quem poderia negar? Eu FALEI com o mar, eu VI a criação e a<br />

evolução. Se uma substância qualquer pode confundir assim os senti<strong>do</strong>s, por que uma variação<br />

normal em nosso cérebro não poderia nos fazer ver coisas que não existem o tempo inteiro?<br />

Pode-se confiar realmente na <strong>realidade</strong> que vemos? O equilíbrio químico <strong>do</strong> cérebro é, afinal,<br />

delica<strong>do</strong>. Não seria tu<strong>do</strong> um grande embuste?<br />

Neste instante, percebo o quanto a civilização é imbecil, como ideologias e culturas inteiras<br />

podem ser baseadas em erros de interpretação da <strong>realidade</strong> ou de <strong>realidade</strong>s induzidas por<br />

drogas. Há alguma certeza? Há?<br />

E to<strong>do</strong> caso, o mar ruge ameaça<strong>do</strong>r, como o vento e a chuva, eu estou perdi<strong>do</strong> dentro deste<br />

meu novo mun<strong>do</strong> de símbolos e começo a temer ter surta<strong>do</strong> com uma <strong>do</strong>se excessiva. A idéia de<br />

ficar com os senti<strong>do</strong>s confusos o resto da vida me inspira um terror verdadeiro. Deci<strong>do</strong> ficar<br />

senta<strong>do</strong> e não fazer nenhum movimento, esperar até de manhã, para o efeito passar. Quero,<br />

mais <strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> na vida, sair da viagem. Quero voltar ao meu corpo, ao mun<strong>do</strong> real. O me<strong>do</strong> é<br />

avassala<strong>do</strong>r. Além de qualquer explicação. Tenho me<strong>do</strong> que meu ego se dissolva em símbolos e<br />

eu nunca mais volte. Sinto culpa, prometo nunca mais usar drogas e expiar to<strong>do</strong>s os meus<br />

peca<strong>do</strong>s e contar tu<strong>do</strong> para a minha mãe, quan<strong>do</strong> voltar a mim.


No fim, algumas racionalizações me convencem que é melhor ir para casa, onde ao menos<br />

minha mãe pode me encontrar e cuidar de mim. Resoluto, começo a caminhar os 10km que me<br />

separam de casa, debaixo de chuva e cheio de areia. Num boteco de quinta categoria, encontro<br />

as duas amigas perdidas. Fico feliz, porque falar com outras pessoas me prende ao corpo e<br />

impede meu ego de se dissipar. Mas elas estão entornan<strong>do</strong> cachaça e gritam e riem e parecem<br />

realmente sensuais. A galera que joga sinuca delira, e pelo jeito elas estão fazen<strong>do</strong> a alegria<br />

deles há um bom tempo. Só consigo balbuciar "que bom que eu voltei".<br />

Uma delas havia tira<strong>do</strong> a blusa em público, mas neste momento estava vestida. Tomava chuva<br />

de propósito, e o <strong>do</strong>no <strong>do</strong> bar olhava para elas com pena. Comecei a me preocupar com a<br />

atitude feminina agressiva delas em meio a uns estiva<strong>do</strong>res, e também queria ir embora. Num<br />

rasgo de lucidez, peguei o número de telefone de uma das duas e fui embora, dizen<strong>do</strong><br />

"desculpem, meninas, mas eu não posso cuidar de vocês". Senti-me um xamã fracassa<strong>do</strong> por<br />

isso. E, na verdade, precisava eu mesmo de tanto cuida<strong>do</strong> quanto elas. Andei um ou <strong>do</strong>is<br />

quilômetros e comecei a sentir frio. Saí da chuva, tremen<strong>do</strong>, mas dei graças a deus por ter<br />

volta<strong>do</strong> da viagem. Depois de algum tempo, voltei para procurar elas, bastante preocupa<strong>do</strong>.<br />

Estavam melhores <strong>do</strong> que eu. Fomos embora. Pensei que fossem umas cinco da matina, mas<br />

eram apenas 3:00.

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