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Desenvolvimento local sustentável e educação - fasb

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REVISTA MOSAICUM<br />

ISSN: 1808-589X<br />

FACULDADE DO SUL DA BAHIA / FASB<br />

Volume 1<br />

Número 3 Jan./ Jul. 2006


Revista<br />

Mosaicum<br />

FACULDADE DO SUL DA BAHIA / FASB<br />

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E<br />

EXTENSÃO - NUPPE<br />

REVISTA MOSAICUM<br />

Teixeira de<br />

Freitas, BA v. 1 n. 3 p. 1 - 100<br />

2006


FUNDAÇÃO FRANCISCO DE ASSIS<br />

Presidente: Lay Alves Ribeiro<br />

FACULDADE DO SUL DA BAHIA - FASB<br />

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO SUL DA BAHIA - ISESB<br />

Diretor-acadêmico: Valci Vieira dos Santos<br />

Diretor-administrativo: Fábio Zanon Dall’Orto<br />

COORDENAÇÃO DO NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO:<br />

Wilbett Rodrigues de Oliveira<br />

Whelligton Renan da Vitória Reis<br />

CONSELHO EDITORIAL:<br />

Sélcio de Souza Silva (UNEB/FASB)<br />

Valci Vieira dos Santos (UNEB/FASB)<br />

Wilbett Rodrigues de Oliveira (FASB)<br />

CONSELHO CIENTÍFICO:<br />

Enelita de Souza Freitas (UNEB)<br />

João Adorís Pandolf (Unilinhares)<br />

Lenice Amélia de Sá Martins (UNEB)<br />

Maria Bernardete Pereira Bezerra (UESC)<br />

Miguel Bahl (UFPR)<br />

Olga Suely S. de Souza (UNEB / CESESB)<br />

Sélcio de Souza Silva (UNEB/FASB)<br />

Valci Vieira dos Santos (UNEB/FASB)<br />

Wellington Renan da V. Reis (FASB/Unilinhares)<br />

CAPA:<br />

Wilbett Rodrigues de Oliveira<br />

PROJETO EDITORIAL / DIAGRAMAÇÂO<br />

Wilbett Oliveira / Caroline Duarte S. Zôrzo<br />

REVISTA MOSAICUM é uma publicação do Núcleo de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão<br />

da Faculdade do Sul da Bahia e do Instituto Superior de Educação do Sul da Bahia.<br />

Os artigos apresentados são de inteira responsabilidade de seus autores.<br />

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)<br />

(Biblioteca Santa Clara da Faculdade do Sul da Bahia, BA, Brasil)<br />

R454 Revista Mosaicum – Faculdade do Sul da Bahia<br />

Ano 2, n. 3 (jan./jul. 2006). – Teixeira de Freitas, BA.<br />

100p.<br />

Semestral<br />

ISSN: 1808-589X<br />

1. Cultura – Periódicos. I. Faculdade do Sul da Bahia.<br />

Revista Mosaicum<br />

Rua Graciliano Viana, 79 - Bela Vista -<br />

Teixeira de Freitas, BA - 45995-050<br />

(73) 3292 4820 - Fax (73) 3292 4819<br />

E-mail: nuppe@ffassis.edu.br<br />

CDD 050


APRESENTAÇÃO<br />

Mosaicum é uma revista transdisciplinar editada pelo Núcleo de Pós-<br />

Graduação, Pesquisa e Extensão da Faculdade do Sul da Bahia (Fasb) e tem como<br />

principal objetivo reunir, em um único veículo, uma síntese do que se produz de<br />

mais representativo no âmbito do ensino superior. Dessa forma, torna-se muito<br />

mais que um simples e tradicional periódico de divulgação científica, pois marca a<br />

posição da Faculdade do Sul da Bahia como instituição que já esboça seus traços<br />

de relevante produtividade e dinamismo.<br />

Em seu terceiro número, a Mosaicum traz amplas discussões com vistas<br />

a permitir uma leitura diversificada pelo nosso leitor: a primeira é sobre<br />

desenvolvimento <strong>local</strong> <strong>sustentável</strong> e <strong>educação</strong>: objetivo e fundamento do<br />

planejamento municipal eficaz. O seu autor discute desenvolvimento <strong>local</strong><br />

<strong>sustentável</strong>, tendo como sustentáculo e base a questão educacional como<br />

fundamento e oferece as premissas básicas para a elaboração de um planejamento<br />

municipal responsável, de longo prazo e que busque atender necessidades e não<br />

vontades. O planejamento estratégico se apresenta como a ferramenta ideal. Em<br />

seguida, no âmbito literário, a professora da UNEB (campus X), Enelita de Sousa<br />

Freitas, trata da ironia romântica na literatura portuguesa, tomando para análise o<br />

romance Outrora Agora, de Augusto Abelaira, em que considera a ironia como o<br />

jogo, a instauração do reino da dúvida. A literatura se faz presente novamente em<br />

O quixote: importância, utopia, personagens e o prazer de ler, texto de Ester<br />

Abreu Vieira de Oliveira (UFES). A autora faz um resumo da obra e da atuação do<br />

personagem principal, mostrando que a técnica da ironia predomina na obra.<br />

Apresenta ainda importância dos personagens, o seu valor simbólico e o relevo<br />

que dão às qualidades que ressaltam no personagem principal e discute a importância<br />

que a obra dá ao ato de ler e reescrever e salienta a ambigüidade da linguagem e o<br />

valor da leitura como estímulo criativo. A recuperação e preservação de nascentes<br />

na microbacia hidrográfica do rio Peruípe sul – região extremo sul da Bahia ganha<br />

enlevo no texto da professora Joana Farias dos Santos, que discute a recuperação<br />

e conservação de duas nascentes pertencentes à Microbacia Hidrográfica do Rio<br />

Peruípe Sul. O texto do professor Sélcio de Souza Silva versa sobre a filologia e a<br />

crítica textual e pretende mostrar a importância da interpretação e explicação de<br />

textos como atividades básicas aos estudos filológicos. Já a mestranda da UFES,<br />

Vanda Luiza de Souza Netto, destaca alguns aspectos do estudo onomástico em


Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, selecionando o nome<br />

da personagem Plácida e as possíveis implicações significativas percebidas na<br />

obra e nos múltiplos recursos utilizados na construção da personagem, dentre elas<br />

a escolha do nome. A discussão seguinte se volta para o contexto religioso em que<br />

o professor Sélcio de Souza Silva discorre sobre a forte influência do espírito<br />

merdadológico invadindo o espaço religioso. A professora Bernardina Leal faz<br />

uma imersão na obra O mestre ignorante, de Jacques Rancière. Para a professora<br />

Bernardina Leal, o mestre ignorante é “aquele que está sempre a procurar, aquele<br />

que emancipou-se e consegue reconhecer suas competências intelectuais e sabe<br />

aperfeiçoá-las. Este mestre emancipado pode emancipar outros, pois reconhece<br />

nas virtualidades intelectuais de todos inúmeras possibilidades de realizações. Ele<br />

auxilia o aluno a manter sua atenção dirigida aos atos intelectuais que descrevem<br />

caminhos a serem percorridos e que possibilitam avanços”. Em seguida, a<br />

professora Liliane Maria Fernandes Cordeiro Gomes resenha o texto O tempo<br />

vivo da memória: ensaios de psicologia social, de Ecléa Bosi, em que chama a<br />

atenção para a importância do estudo do passado recente e mostra que a memória<br />

oral é um precioso instrumento na constituição da crônica do cotidiano, à medida<br />

que pode funcionar como uma espécie de elo entre diferentes tempos. O poeta<br />

Waldo Motta resenha o livro Gemagem: poemas, de Marcos Tavares, que, “por<br />

força de sua consciência ética, de sua luta pela dignidade humana, MT aborda<br />

temas de interesse social, alguns recorrentes, tais como: violência, guerra,<br />

militarismo, arbítrio, destruição, morte, ecologia; negritude; religião; trabalho; vício;<br />

amor erótico e fraterno, incluindo poemas homoeróticos”. O professor Wilbett<br />

Oliveira encerra este número com a resenha do texto Paródia, paráfrase e Cia, de<br />

Afonso Romano Sant´Anna, cujo objetivo é ampliar o estudo da paródia e da<br />

paráfrase ao lado da estilização e da apropriação, o que permite ao leitor um<br />

esclarecimento do que é “literário” e um entendimento da formação ideológica por<br />

meio da linguagem.<br />

Reiteramos nossos agradecimentos a Fundação Francisco de Assis, pelo<br />

incentivo à produção acadêmica e o apoio incondicional para a publicação da<br />

Revista Mosaicum.<br />

Conselho editorial


ARTIGOS<br />

<strong>Desenvolvimento</strong> <strong>local</strong> <strong>sustentável</strong> e <strong>educação</strong>: objetivo e fundamento<br />

do planejamento municipal eficaz, 9<br />

Antonio Genilton Sant’Anna<br />

Artifícios da construção textual: a representação em Outrora Agora,<br />

de Augusto Abelaira, 23<br />

Enelita de Sousa Freitas<br />

O Quixote: importância, utopia, personagens e o prazer de ler, 31<br />

Ester Abreu Vieira de Oliveira<br />

Recuperação e preservação de nascentes na microbacia hidrográfica<br />

do Rio Peruípe Sul – região extremo sul da Bahia, 47<br />

Joana Farias dos Santos<br />

A filologia e a crítica textual: comentários de textos regionais, 59<br />

Sélcio de Souza Silva<br />

Uma personagem que deu o que falar, 67<br />

Vanda Luiza de Souza Netto<br />

ENSAIO<br />

Religião: uma visão mercadológica desfigurando a imagem verdadeira<br />

de Deus, 73<br />

Sélcio de Souza Silva<br />

RESENHAS<br />

SUMÁRIO<br />

Um saber que não se explica: notas sobre O Mestre Ignorante, de Jacques<br />

Rancière, 77<br />

Bernardina Leal<br />

O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social, 85<br />

Liliane Maria Fernandes Cordeiro Gomes<br />

Gemagem: poesia de alto quilate, 91<br />

Waldo Motta<br />

De paródia, paráfrase, estilização e apropriação: e intertextualidade, 97<br />

Wilbett Oliveira


DESENVOLVIMENTO LOCAL SUSTENTÁVEL E EDUCAÇÃO:<br />

OBJETIVO E FUNDAMENTO DO PLANEJAMENTO<br />

MUNICIPAL EFICAZ<br />

Introdução<br />

RESUMO<br />

Antonio Genilton Sant’Anna*<br />

O desenvolvimento <strong>local</strong> <strong>sustentável</strong>, tendo como sustentáculo<br />

e base a questão educacional, é o fundamento deste trabalho. O<br />

objetivo é oferecer as premissas básicas para a elaboração de um<br />

planejamento municipal responsável, de longo prazo e que busque<br />

atender necessidades e não vontades. Assim, o planejamento<br />

estratégico se apresenta como a ferramenta ideal. Além disso, o<br />

conceito de responsabilização é colocado como o balizador do<br />

processo, sendo apresentados os instrumentos legais que o<br />

respaldam.<br />

Palavras-chave: <strong>Desenvolvimento</strong> <strong>sustentável</strong>; planejamento<br />

estratégico.<br />

O administrador público, no exercício de suas funções, depara-se<br />

com freqüência com questões que envolvem decisões complexas. Tal fato<br />

fundamenta-se, principalmente, na premissa de que este profissional só pode<br />

fazer aquilo que a lei determina, ao contrário do administrador privado que tem<br />

a liberdade de fazer tudo o que a lei não proíbe. Assim, o administrador público<br />

comumente vê-se ante situações que envolvem o ideal, o necessário e o possível.<br />

Na busca de instrumentos auxiliares à tomada de decisões, em situações que<br />

envolvam tal grau de complexidade, este trabalho apresenta o planejamento<br />

estratégico como uma alternativa viável e fundamenta-se em temas ligados à<br />

administração, economia e <strong>educação</strong>. Alguns cuidados, porém, devem ser<br />

* Antônio Genilton Sant’Anna é especialista em Gestão Empresarial e Docência Superior.


10 tomados no trato das questões aqui consideradas, conforme assegura Mishan<br />

(1976):<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Antonio Genilton Sant’Anna<br />

Sem dispor de seguros antecedentes sob a forma de princípios da<br />

disciplina, um autor fica obviamente mais exposto. Maior ainda é a sua<br />

tentação de retirar-se para a generalidade abstrata, em torno da qual há<br />

sempre alguma penumbra de ambigüidade e alguma liberdade de<br />

interpretação (MISHAN, 1976, p. 20).<br />

Na busca destes seguros antecedentes e tentando evitar a<br />

generalidade abstrata, buscou-se um forte respaldo na teoria, consagrada e<br />

em autores reconhecidos. Um grande número de citações é colocado de forma<br />

a não haver margem a nenhuma penumbra de ambigüidade. Assim, ao se<br />

considerar a <strong>educação</strong> como premissa para o desenvolvimento <strong>sustentável</strong>, há<br />

que se dar, cientificamente, respaldo a tal asserção. Raw (1996) fornece tal<br />

respaldo, conforme se pode constatar no texto a seguir:<br />

Ainda há quem encontre motivação para se guiar pelo racionalismo e<br />

pela ciência – e para mudar. E há muito que fazer. É preciso combater o<br />

irracionalismo e as mistificações, onde quer que eles se manifestem: na<br />

televisão, nos locais de trabalho, nas faculdades. Podemos começar<br />

pela <strong>educação</strong>. Hoje, as pessoas passam um terço da vida nas salas de<br />

aula sem aprender e ninguém se importa. Criamos robôs que nos permitem<br />

ter uma produção cada vez maior de bens, mas ficamos prisioneiros de<br />

uma sociedade cada vez menos justa. Numa sociedade em que a ciência<br />

expandiu a longevidade do homem, não oferecemos à maioria da<br />

população segurança física nem acesso ao que a medicina moderna<br />

pode oferecer – nem mesmo a garantia de teto e comida [...] Está na hora<br />

de quebrar a insensibilidade dos governos e das lideranças para tentar<br />

corrigir isso (RAW, 1996).<br />

Neste contexto, a temática do desenvolvimento municipal<br />

<strong>sustentável</strong>, calcado na <strong>educação</strong> e racionalmente planejado é o foco central<br />

desta discussão. Dentro deste quadro, e principalmente para o caso dos<br />

municípios brasileiros, a questão da desigualdade e da inserção social deve ser<br />

alçada para o centro do debate. Este trabalho se insere dentro deste contexto.<br />

Sua preocupação básica é discutir o desenvolvimento <strong>local</strong> <strong>sustentável</strong> com<br />

ênfase no município como unidade elementar de análise, apresentando uma<br />

proposta de utilização do planejamento estratégico como instrumento para se<br />

alcançar os objetivos idealizados. Só assim poderá, o administrador público<br />

responsável, decidir com ponderação e profissionalismo, entre um ideal<br />

almejado, uma necessidade premente e aquilo que efetivamente é possível de<br />

ser realizado.


<strong>Desenvolvimento</strong> <strong>local</strong> <strong>sustentável</strong> e <strong>educação</strong>: objetivo e fundamento do planejamento municipal eficaz<br />

<strong>Desenvolvimento</strong> <strong>local</strong><br />

A palavra desenvolvimento, por significar ampliação, progresso,<br />

comumente é associada a um processo de crescimento quantitativo puro e<br />

simples, sem se associar a ela, quando se referindo ao desenvolvimento<br />

econômico, as características qualitativas que, em seu fundamento, os<br />

beneficiários desse processo devem usufruir. Para Buarque (1999, p. 9),<br />

“<strong>Desenvolvimento</strong> <strong>local</strong> é um processo endógeno registrado em pequenas<br />

unidades territoriais e agrupamentos humanos capaz de promover o dinamismo<br />

econômico e a melhoria da qualidade de vida da população”. Para tanto, faz-se<br />

necessário que as bases econômicas e as de organização social, em nível <strong>local</strong>,<br />

sofram as adaptações necessárias para que se possa explorar as suas<br />

capacidades e potencialidades específicas. Assim, considerando-se esse prérequisito<br />

qualitativo, o planejamento do desenvolvimento <strong>local</strong> deve buscar<br />

viabilizar a competitividade da economia, visando primordialmente ao aumento<br />

da renda, tentando conservar, o máximo possível, os recursos naturais. Vale<br />

ressalvar, para o claro entendimento da questão, que renda está aqui sendo<br />

considerada conforme a seguinte definição:<br />

O conceito de renda tributável que obteve aceitação crescente entre os<br />

teoristas fiscais é o de acréscimo total. A renda é definida como igual ao<br />

consumo durante um dado período, mais o acréscimo em valor líquido.<br />

De acordo com este conceito, são incluídos todos os acréscimos à<br />

riqueza, qualquer que seja a forma com que sejam recebidos ou qualquer<br />

que seja sua proveniência (MUSGRAVE, 1974, p. 212).<br />

Busca-se, assim, aumentar as oportunidades, promovendo e<br />

ampliando o processo de inclusão social, de forma consistente e <strong>sustentável</strong>,<br />

ou seja, satisfazendo as necessidades do presente, sem, no entanto, comprometer<br />

a capacidade das gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades.<br />

Não se pode, porém, desconsiderar o fato de que a parcela da população atual<br />

que sofre os efeitos da pobreza ou mesmo da total exclusão social não possa<br />

ser sacrificada em função de um futuro imprevisível, imponderável e, aos seus<br />

olhos, impossível de ser alcançado em condições dignas por seus filhos e netos,<br />

assumindo um compromisso com as gerações futuras sem sequer ter esperança<br />

no presente.<br />

Educação e desenvolvimento <strong>local</strong><br />

Peter Drucker, em 1992, já chamava a atenção para o seguinte<br />

fato: a chave do sucesso empresarial não está mais no capital, nas matériasprimas<br />

ou na terra; agora o que realmente conta é o conhecimento. Assim, o<br />

conhecimento tem sido considerado um fator crucial para o desenvolvimento<br />

socioeconômico, pois<br />

11<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


12 No novo paradigma, as vantagens competitivas se deslocam da abundância<br />

de recursos naturais, dos baixos salários e das reduzidas exigências<br />

ambientais – predominantes no ciclo expansivo do Pós-guerra – para a<br />

liderança e domínio do conhecimento e da informação (tecnologia e<br />

recursos humanos) e para a qualidade e excelência dos produtos e serviços<br />

(PEREZ; PEREZ, 1984 apud BUARQUE, 1999, p. 12).<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

É por esta razão que se convencionou chamar a fase atual do<br />

desenvolvimento capitalista de economia do conhecimento ou de economia<br />

do aprendizado. A economia do conhecimento é caracterizada por um<br />

ambiente competitivo, globalizado produtiva e financeiramente, e liberalizado<br />

comercialmente. Entretanto, o conhecimento e os processos de aprendizagem<br />

e de construção de competências a eles relacionados, na medida em que são<br />

processos essencialmente interativos e incorporados em pessoas, organizações<br />

e relacionamentos, são influenciados pela disponibilidade de <strong>educação</strong> formal<br />

e pela proximidade geográfica.<br />

A <strong>educação</strong>, enquanto formadora de mão-de-obra qualificada e<br />

de empreendedores, exerce papel de fundamental importância para o<br />

desenvolvimento <strong>local</strong>. Na medida em que gera conhecimento e cria as bases<br />

do empreendedorismo, atua como fator primordial para o sucesso dos arranjos<br />

produtivos locais.<br />

Para Orlando Caliman,<br />

Antonio Genilton Sant’Anna<br />

[...] o conceito de arranjo produtivo pode ser considerado um instrumento<br />

metodológico adequado para a melhoria das condições de<br />

competitividade de regiões e municípios. A constatação de que os<br />

chamados fatores intangíveis adquirem maior importância na<br />

determinação da capacidade de competir de uma <strong>local</strong>idade, e, na medida<br />

em que esses fatores surgem com maior facilidade em ambientes<br />

representados por empresas com forte interação entre si, reforça a<br />

argumentação acima. Se de um lado, o poder público pode prover as<br />

<strong>local</strong>idades da infra-estrutura necessária para gerar o desenvolvimento,<br />

de outro, o setor privado, sobretudo organizado na forma de arranjo e<br />

com capacidade de liderança, faculta a formação dos chamados fatores<br />

intangíveis, como a capacidade de inovar, a cultura para os negócios e a<br />

propensão para a cooperação. Já a cooperação entre ambos pode<br />

promover a qualificação para a gestão de negócios e a capacitação para<br />

a pesquisa e desenvolvimento. Na verdade é o arranjo produtivo que dá<br />

a devida consistência material e de motivação para o crescimento de<br />

uma região (CALIMAN, 2005).<br />

A disponibilidade de <strong>educação</strong>, na forma de escolas e<br />

universidades, formando profissionais competentes, aptos a ingressarem no<br />

mercado de trabalho, favorece a atração de investimentos, além de manter o<br />

nível de emprego dentro de curvas ascendentes, favorecendo a empregabilidade<br />

de quem dela se favorece e o sucesso de quem empreende. Por isso, tem-se<br />

tornado uma busca constante de governos socialmente responsáveis e do setor


<strong>Desenvolvimento</strong> <strong>local</strong> <strong>sustentável</strong> e <strong>educação</strong>: objetivo e fundamento do planejamento municipal eficaz<br />

privado como mecanismo para elevação de emprego, renda e produto.<br />

Localmente, o desenvolvimento empresarial deve envolver um<br />

conjunto de atividades destinadas a estimular o espírito empreendedor em uma<br />

sociedade, favorecer a criação de novas empresas e oferecer condições de<br />

desenvolvimento e perpetuidade às já existentes. Para Cândido e Abreu (2000),<br />

as Pequenas e Médias Empresas (PME’s) são grandes geradoras de empregos<br />

e renda, consideradas o motor do desenvolvimento econômico de uma região.<br />

Os empreendedores têm um papel muito importante nesse<br />

processo, pois eles são capazes de perceber as janelas de oportunidades que<br />

surgem no mercado e para onde devem seguir. O desenvolvimento de uma<br />

região está muito associado ao sucesso dos seus empreendedores e a chamada<br />

virtualidade dos mercados, serve como fator de inserção desses empreendedores<br />

no mercado mundial, conforme apresentado por Buarque (1999) no texto abaixo:<br />

As formas novas e baratas de comunicação e transporte – com destaque<br />

para a telemática – permitem que empresas dos países e regiões mais<br />

atrasados possam acessar mercados em larga escala e em todo o mundo,<br />

ampliando as oportunidades econômicas e comerciais. A virtualidade<br />

dos mercados criada pela telemática permite que pequenos negócios se<br />

integrem em grandes mercados, articulados pelo sistema de informação,<br />

de modo que podem acessar compradores nos mais distantes espaços,<br />

com baixo custo e volume de capital (BUARQUE, 1999, p. 14).<br />

As <strong>local</strong>idades terão que ser cada vez mais capazes de suprir as<br />

necessidades de mão-de-obra qualificada a fim de produzirem bens e serviços<br />

de alta qualidade, capazes de atender às necessidades de seus usuários e de<br />

serem ágeis no oferecimento de serviços menos padronizados, uma exigência<br />

do mercado atualmente, o que só se consegue com boa formação. Pode-se<br />

concluir que cada comunidade terá de encontrar soluções próprias para orientar<br />

o seu desenvolvimento e que estas soluções passem, necessariamente, pela<br />

questão educacional.<br />

<strong>Desenvolvimento</strong> municipal<br />

Trazido para o contexto das especificidades do município,<br />

circunscrição administrativa em que se exerce a jurisdição de uma vereação, o<br />

desenvolvimento deste pode ser considerado um caso particular de<br />

desenvolvimento <strong>local</strong>, inserido em um espaço delimitado pela sua circunscrição<br />

geográfica. Buarque (1999) fornece a seguinte proposição:<br />

As perspectivas e alternativas de desenvolvimento do território, nos<br />

mais diferenciados espaços, estarão, cada vez mais, dependentes das<br />

características dominantes na economia mundial, nos modelos<br />

produtivos e, principalmente, nos padrões de competitividade que devem<br />

13<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


14 prevalecer em escala mundial e nacional, diante das quais cada<br />

comunidade e cada município respondem com suas condições endógenas<br />

específicas, mediando e processando os impactos externos (BUARQUE,<br />

1999, p. 14).<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Para Porter (1993), a vantagem competitiva é criada e mantida<br />

por meio de um processo altamente <strong>local</strong>izado. Assim, a <strong>local</strong>ização das indústrias<br />

globais tem sido determinada mundialmente, de acordo com as condições de<br />

cada <strong>local</strong>, em função das suas diversidades e particularidades. “O global se<br />

alimenta do <strong>local</strong>, se nutre do específico” (CHESNAIS, 1996 apud BUARQUE,<br />

1999, p. 13) . O mesmo Buarque completa:<br />

As tendências futuras parecem apontar para uma intensificação do<br />

processo combinado e contraditório de descentralização políticoadministrativa<br />

– reforçando as responsabilidades dos municípios –,<br />

com uma reconcentração regional da economia. E, embora os dois<br />

processos tenham uma relativa autonomia, decorrentes de fatores<br />

diferentes, a descentralização e a municipalização da gestão pública<br />

podem levar a reforçar e potencializar a concentração econômica, caso<br />

seja acompanhada de uma redução dos instrumentos de reorientação do<br />

desenvolvimento macroespacial, de responsabilidade da União e seus<br />

organismos regionais (supramunicipais) (BUARQUE, 1999, p. 21).<br />

É certo, portanto, que para se ter uma experiência bem-sucedida<br />

de desenvolvimento municipal, necessário se faz que exista um ambiente político<br />

e social favorável, expresso por um plano de governo consistente, e,<br />

principalmente, de um planejamento bem elaborado, em que se priorizem<br />

orientações básicas de desenvolvimento, cujo cerne esteja calcado nos conceitos<br />

anteriormente discutidos.<br />

Pode-se considerar, portanto, que o desenvolvimento municipal<br />

<strong>sustentável</strong> é o resultado de um processo administrativo eficiente e solidamente<br />

planejado, que induz a um aumento continuo da qualidade de vida, baseado<br />

numa economia eficaz e competitiva, com relativa autonomia das finanças<br />

pública, e efetiva, uma vez que também tem que ser combinada com a<br />

conservação dos recursos naturais e do meio ambiente.<br />

Planejamento municipal<br />

Antonio Genilton Sant’Anna<br />

Ninguém planeja fracassar, mas fracassa por não planejar.<br />

Jim Rohn<br />

De tão importante, o planejamento foi lembrado pelos legisladores<br />

e colocado na lei maior da nação brasileira, a Constituição, conforme retrata o


<strong>Desenvolvimento</strong> <strong>local</strong> <strong>sustentável</strong> e <strong>educação</strong>: objetivo e fundamento do planejamento municipal eficaz<br />

artigo abaixo:<br />

Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado<br />

exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e<br />

planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo<br />

para o setor privado (BRASIL, 2003).<br />

Para tratar das especificidades do planejamento municipal, faz-se<br />

necessária uma abordagem teórica da função administrativa de planejamento,<br />

sem a qual o perfeito entendimento da questão pode ser comprometido.<br />

Assim, levando-se em conta os grandes níveis hierárquicos, três<br />

tipos de planejamento podem ser considerados: o estratégico, o tático e o<br />

operacional. A Figura abaixo mostra a associação dos tipos de planejamento<br />

aos níveis de decisão em uma pirâmide organizacional:<br />

NÍVEL<br />

ESTRATÉGICO<br />

NÍVEL<br />

TÁTICO<br />

NÍVEL<br />

OPERACIONAL<br />

EXECUÇÃO<br />

DECISÕES ES TRATÉGICAS<br />

DECISÕES TÁTICAS<br />

DECISÕES<br />

OPERACIONAIS<br />

Figura 1: Pirâmide organizacional X Tipos de planejamento<br />

Fonte: Buarque (1999)<br />

PLANEJAMENTO<br />

ES TRATÉGICO<br />

PLANEJAMENTO<br />

TÁTICO<br />

PLANEJAMENTO<br />

OPERACIONAL<br />

O planejamento municipal nada mais é do que a aplicação, para o<br />

município, da metodologia e das técnicas já consagradas na teoria e na prática<br />

do planejamento governamental. Deve-se, porém, adaptar e ajustar estes<br />

métodos e técnicas às concepções contemporâneas de planejamento e de<br />

desenvolvimento, incorporando a eles os postulados do planejamento estratégico,<br />

uma vez que este é o processo administrativo que oferece o ferramental<br />

metodológico utilizado para se estabelecer a melhor direção a ser seguida pelas<br />

instituições.<br />

De responsabilidade daqueles que ocupam os níveis hierárquicos<br />

mais altos, o planejamento estratégico deve cuidar da formulação dos objetivos<br />

e dos cursos de ação que devam ser seguidos para a consecução dos mesmos.<br />

O planejamento estratégico governamental é a maneira pela qual a sociedade,<br />

através de seus representantes, exerce o poder sobre o seu futuro, rejeitando o<br />

15<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


16 comodismo resignado e estabelecendo parâmetros e iniciativas que irão definir<br />

o seu destino. Para tanto, faz-se necessário que esses representantes detenham<br />

o conhecimento detalhado de uma metodologia de elaboração e implementação<br />

do planejamento estratégico, pois só esse embasamento teórico propicia a<br />

otimização da sua aplicação.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

De acordo com Urwick,<br />

Antonio Genilton Sant’Anna<br />

Nada podemos fazer sem a teoria. Ela sempre denotará a prática por uma<br />

simples razão: a prática é estática. Ela realiza bem o que conhece. Contudo,<br />

ela não tem nenhum princípio com que possa lidar no caso do que não<br />

conhece [...] A prática não está adaptada aos rápidos ajustamentos<br />

oriundos de mudanças no meio ambiente. A teoria é versátil. Ela<br />

adapta-se a mudanças de circunstâncias, descobre novas possibilidades<br />

e combinações, perscrutando o futuro (1952 apud OLIVEIRA, 2004, p. 65).<br />

No que concerne ao planejamento estratégico governamental,<br />

portanto, o administrador público deve ter o domínio, tanto da teoria quanto da<br />

prática, ou então ser assessorado por quem o tenha.<br />

Buarque (1999) deixa claro o caráter político, enquanto arte do<br />

possível, do planejamento governamental:<br />

De um modo geral, o planejamento governamental é o processo de<br />

construção de um projeto coletivo capaz de implementar as<br />

transformações necessárias na realidade que levem ao futuro desejado.<br />

Portanto, tem uma forte conotação política. E no que se refere ao<br />

desenvolvimento <strong>local</strong> e municipal, o planejamento é um instrumento<br />

para a construção de uma proposta convergente dos atores e agentes<br />

que organizam as ações na perspectiva do desenvolvimento <strong>sustentável</strong><br />

(BUARQUE, 1999, p. 36).<br />

O planejamento estratégico municipal não pode se deixar dominar<br />

pelo curto prazo, pelo urgente. Deve-se, isso sim, encadear as prioridades numa<br />

perspectiva de desenvolvimento a médio e longo prazo. Sem ignorar as<br />

necessidades e carências do município, deve-se estabelecer o vínculo entre<br />

estas e os fatores estruturais do desenvolvimento desejado, procurando evitar<br />

o imediatismo e a mera resolução dos problemas conjunturais. Castro (2005)<br />

fundamenta esta idéia:<br />

Nas sociedades desenvolvidas, o tempo é organizado de forma mais<br />

complexa. Mais ainda, tais sociedades estão sempre preocupadas com<br />

problemas e obstáculos que estão mais à frente no tempo. Em vez de<br />

resolver as crises do presente, resolvem-se as do futuro, para que não<br />

cheguem a ocorrer (CASTRO, 2005, p. 24 ).<br />

Na análise ambiental, elemento de fundamental importância no<br />

processo de planejamento, é necessário identificar os fatores e os componentes<br />

mais relevantes e determinantes das questões que condicionam o futuro.


<strong>Desenvolvimento</strong> <strong>local</strong> <strong>sustentável</strong> e <strong>educação</strong>: objetivo e fundamento do planejamento municipal eficaz<br />

Geralmente as questões mais urgentes e indesejáveis não são as mais<br />

importantes e relevantes na determinação do que ocorre na realidade cotidiana.<br />

É de fundamental importância processar os dados da realidade, interpretar as<br />

informações decorrentes e, com o conhecimento adquirido, distinguir o urgente<br />

do importante – este sim, determinante do desenvolvimento <strong>sustentável</strong>. A<br />

Figura 2 procura expressar a distinção entre o urgente e o importante:<br />

I<br />

M<br />

P<br />

O<br />

R<br />

T<br />

A<br />

N<br />

T<br />

E<br />

I - Centrando<br />

no<br />

estratégico<br />

III - Atuando<br />

no<br />

supérfluo<br />

URGENTE<br />

Figura 2: Importância X Urgência<br />

Fonte: Buarque (1999), com adaptações<br />

II -<br />

Administrando<br />

crises<br />

IV - Correndo<br />

atrás<br />

do prejuízo<br />

Da análise da Figura acima, deduz-se o que segue: no quadrante<br />

I encontramos os problemas de grande importância e pouca urgência. São os<br />

que devem ser enfrentados com tranqüilidade, visando à sustentabilidade futura.<br />

Segundo Buarque (1999), as ações estratégicas devem ser concentradas nestes<br />

problemas, criando as bases para a reestruturação socioeconômica da realidade<br />

e evitando o acúmulo e a formação de novos problemas e urgências no futuro.<br />

Os problemas que se enquadram no quadrante II são também de<br />

muita importância, além de muito urgentes. Isto é o resultado da falta de<br />

planejamento, no passado, de problemas do quadrante I, que acabaram se<br />

tornaram mais graves e inadiáveis. Desta forma, as ações acabam se voltando<br />

para a administração de crises herdadas de um passado não planejado, exigindo,<br />

no presente, uma ação imediata e prioritária, para evitar o estrangulamento de<br />

curto prazo e os desdobramentos de médio e longo prazo. Neste ponto se faz<br />

presente o planejamento tático.<br />

Os problemas do quadrante III são de pouca importância e pouca<br />

urgência e podem ser ignorados quanto às prioridades de ação, não se gastando,<br />

portanto, energias, que atuam sobre o supérfluo.<br />

Quanto aos problemas do quadrante IV, estes têm pouca<br />

importância e muita urgência, representando fatores indesejáveis e graves da<br />

17<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


18 perspectiva da sociedade <strong>local</strong>, mas que não são estruturais e determinantes<br />

do desempenho futuro da realidade. Decorrem, em geral, de ações conjunturais<br />

e de distorções estruturais do modelo de desenvolvimento e do acúmulo de<br />

problemas formados pela ausência de ações estratégicas no passado, voltadas<br />

para o desenvolvimento <strong>sustentável</strong>. Estes problemas exigem iniciativas<br />

imediatas, de forma a se correr atrás do prejuízo, enquanto amadurecem as<br />

transformações resultantes da intervenção sobre os quadrantes I e II. É aqui<br />

que o planejamento operacional deve atuar.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Antonio Genilton Sant’Anna<br />

Cabe, porém, ressaltar o que segue: o princípio da legalidade, no<br />

Brasil, estabelece que a Administração pública nada pode fazer senão o que a<br />

lei determina. Ao contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a<br />

lei não proíbe, a administração pública só pode fazer o que a lei antecipadamente<br />

autorize. Donde, administrar o que é público significa prover aos interesses<br />

públicos, assim caracterizados em lei, fazendo-o na conformidade dos meios e<br />

formas nela estabelecidos ou particularizados segundo suas disposições. O<br />

princípio da legalidade é um dos sustentáculos do Estado Democrático de Direito,<br />

entendendo-se este como o princípio “da completa submissão da Administração<br />

pública às leis”. Esta deve tão-somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em<br />

prática. Pode-se inferir, portanto, que planejar, na administração pública, passa<br />

necessariamente pela elaboração de leis.<br />

O Plano Plurianual – PPA é o instrumento legal de planejamento<br />

que estabelece as diretrizes, objetivos e metas da administração pública,<br />

promovendo a identificação clara dos objetivos do governo, a integração do<br />

planejamento e do orçamento, a garantia da transparência, o estímulo às<br />

parcerias, a gestão empreendedora orientada para resultados e a organização<br />

das ações de governo em programas. Tais assertivas são claramente<br />

identificadas por Resende (2001) conforme texto a seguir:<br />

A Constituição Federal, em seu artigo 165, estabelece que a iniciativa<br />

das leis orçamentárias – Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), Lei<br />

Orçamentária Anual (LOA) e Plano Plurianual (PPA) – é de competência<br />

exclusiva do Poder Executivo. Há integração das três leis: o PPA<br />

estabelece o planejamento de médio prazo (quatro anos), a LDO faz a<br />

ligação entre o plano e o orçamento do ano e a LOA é o orçamento<br />

propriamente dito, com a previsão de todas as receitas e a fixação das<br />

despesas. A LDO deve ser compatível com o PPA e a LOA não pode<br />

divergir do PPA e da LDO (REZENDE, 2001, p. 99-100).<br />

Balizando esse complexo processo temos a Lei de<br />

Responsabilidade Fiscal - LRF (Lei Complementar n. 101, de 04 de maio de<br />

2000) - que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a<br />

responsabilidade na gestão fiscal, mediante ações em que se previnam riscos e<br />

corrijam os desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas,<br />

destacando-se a obrigatoriedade do planejamento, do controle, da transparência


<strong>Desenvolvimento</strong> <strong>local</strong> <strong>sustentável</strong> e <strong>educação</strong>: objetivo e fundamento do planejamento municipal eficaz<br />

e, principalmente, a responsabilização como premissas básicas.<br />

Os anglo-saxões, menos afeitos à burocracia e, conseqüentemente,<br />

às suas disfunções, incorporaram ao serviço público o conceito de<br />

accountability (responsabilização). Este conceito traz embutida a idéia de<br />

responsabilidade com autonomia. É um conceito que se dissemina entre os<br />

especialistas brasileiros em gestão pública empreendedora e a LRF é uma<br />

legitima expressão desse conceito. Assim, necessário se faz que os envolvidos<br />

no processo de planejamento municipal sejam profundos conhecedores do<br />

arcabouço legal que o rege, sob pena de se elaborar um planejamento em que<br />

se expresse o melhor da vontade, sem, no entanto, atender às reais necessidades<br />

e, pior, contrariando o princípio da legalidade, uma vez que nem sempre a boa<br />

intenção é a expressão da razão.<br />

Conclusão<br />

Quando se almeja o desenvolvimento <strong>local</strong>, especialmente o<br />

desenvolvimento municipal, <strong>sustentável</strong>, a <strong>educação</strong> aparece como fator<br />

primordial no processo. Isso porque, até mesmo o processo de planejamento<br />

desse desenvolvimento apresenta alto grau de complexidade, o que o torna<br />

impossível se o município não dispuser de pessoas formalmente qualificadas<br />

para a sua elaboração. Castro (2005) deixa isso claro:<br />

[...] tem maiores chances de se desenvolver economicamente quem lida<br />

melhor com a complexidade. Terão poucas chances aquelas sociedades<br />

em que cada um lida com poucos elementos. O desenvolvimento requer<br />

abraçar a complexidade, principalmente nas dimensões que afetam direta<br />

ou indiretamente o processo produtivo... Igualmente, nos países<br />

avançados as relações humanas se pautam por regras complexas,<br />

impessoais e estruturadas. Além disso, são regras diferentes para regular<br />

momentos e funções diferentes da vida, com claras distinções entre<br />

família, organizações e Estado (CASTRO, 2005, p. 24 ).<br />

Como decorrência dessa complexidade, aliada à forte regulação<br />

imposta pela LRF, temos que, aqueles candidatos incompetentes, ainda que<br />

hábeis em suas práticas personalistas, que ainda sobrevivem nos municípios do<br />

interior brasileiro, se eleitos, ficam, cada vez mais, vulneráveis e passíveis das<br />

sérias punições que esta lei estabelece. Isto já é um fato consumado, sendo<br />

inúmeros os exemplos neste sentido. Com o fortalecimento e aparelhamento<br />

cada vez maior das instituições, principalmente do Ministério Público, a elevação<br />

do nível educacional e a conseqüente conscientização político-eleitoral da<br />

população, esta classe política tende à extinção.<br />

Ações no campo educacional são, geralmente, ações de médio e<br />

19<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


20 longo prazo. Por envolver recursos que já chegam ao município como verba<br />

com destinação legal obrigatória – no caso da <strong>educação</strong> isso representa 25%<br />

(vinte e cinco por cento) das receitas - cabe ao gestor decidir, estrategicamente,<br />

a destinação desse dinheiro. Promover o acesso universal à <strong>educação</strong>, com<br />

eqüidade e, principalmente, qualidade, é fator de primordial importância no<br />

processo, devendo, portanto, ser uma premissa básica na elaboração do PPA.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

As questões relativas ao planejamento, apresentadas neste<br />

trabalho, concentram-se apenas na fase preliminar de elaboração dos planos.<br />

Não contempla metodologias referentes às etapas de execução e de<br />

acompanhamento, entendendo que a definição sobre a forma e os mecanismos<br />

a serem utilizados nestas duas fases constitui um dos produtos do planejamento<br />

e, portanto, cabe aos partícipes do processo estabelecê-las.<br />

No que concerne ao processo de planejamento acima abordado,<br />

especial atenção deve ser dada à LRF, principalmente aos artigos 12 a 17.<br />

Deve-se redobrar a atenção quanto a um importante detalhe destes: às DOCC<br />

(Despesas Obrigatórias de Caráter Continuado). Vale ressaltar que o não<br />

cumprimento do conteúdo explicitado nos referidos artigos, além das punições<br />

de caráter político-eleitoral – perda de mandato, inelegibilidade – implica,<br />

também, em punições de caráter penal, que variam de 1 (um) a 4 (quatro) anos<br />

de prisão. Recomenda-se aos interessados para que se busque o seu detalhado<br />

conhecimento.<br />

Referências<br />

Antonio Genilton Sant’Anna<br />

BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do<br />

Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2003.<br />

BRASIL. LEI COMPLEMENTAR Nº 101, DE 4 DE MAIO DE 2000.<br />

Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na<br />

gestão fiscal e dá outras providências. Disponível em: < http://<br />

siops.datasus.gov.br/Documentacao/lei_comp_101.pdf>. Acesso em: 04 set.<br />

2005.<br />

BUARQUE, Sérgio C. Metodologia de planejamento do desenvolvimento<br />

<strong>sustentável</strong>. IICA, Recife, 1995.<br />

______. Metodologia de planejamento do desenvolvimento <strong>local</strong> e<br />

municipal <strong>sustentável</strong>. PCT – INCRA/IICA, Brasília, 1999.<br />

CALIMAN, Orlando. Espírito Santo competitivo: uma estratégia de<br />

desenvolvimento com base em arranjos produtivos. Artigo disponível em: . Acesso em 18 fev.<br />

2005.<br />

CÂNDIDO, Gesinaldo Ataíde; ABREU, Aline França de. Aglomerados


<strong>Desenvolvimento</strong> <strong>local</strong> <strong>sustentável</strong> e <strong>educação</strong>: objetivo e fundamento do planejamento municipal eficaz<br />

industriais de pequenas e médias empresas como mecanismo para a<br />

promoção de desenvolvimento regional. REAd –Revista Eletrônica de<br />

Administração. Porto Alegre, 18. ed., n.6, v.6, dez. 2000.<br />

CASTRO, Cláudio de Moura. O desafio da complexidade. VEJA. ed. 1912, n.<br />

27, ano 38, 6 jul. 2005 (artigo).<br />

DRUCKER, Peter F. Uma era de descontinuidade, orientações para uma<br />

sociedade em mudança. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.<br />

______. Administrando para o futuro. São Paulo: Pioneira Thomson, 1992.<br />

MISHAN, E. J. Análise de custos-benefícios: uma introdução informal. Rio<br />

de Janeiro: Zahar, 1976.<br />

MUSGRAVE, Richard A. Teoria das finanças públicas: um estudo de<br />

economia governamental. São Paulo: Atlas, 1974.<br />

OLIVEIRA, Djalma de Pinho Rebouças. Planejamento estratégico:<br />

conceitos, metodologia e práticas. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2004<br />

PORTER, Michael E. A vantagem competitiva das nações. Rio de Janeiro,<br />

Campus, 1993.<br />

RAW, Isaias. Em defesa da razão. Disponível em: < http://www.str.com.br/<br />

Str/defesa.htm>. Acesso em 20 de julho de 2006.<br />

REZENDE, Fernando Antonio. Finanças públicas. 2. ed. São Paulo: Atlas,<br />

2001.<br />

21<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


ARTIFÍCIOS DA CONSTRUÇÃO TEXTUAL:<br />

A REPRESENTAÇÃO EM OUTRORA AGORA, DE AUGUSTO<br />

ABELAIRA<br />

Enelita de Sousa Freitas*<br />

[...] a literatura veicula a ironia não tanto por ser<br />

‘representação’, mas porque, nessa qualidade, é<br />

fortemente comunicativa.<br />

RESUMO<br />

Maria de Lourdes Ferraz<br />

O presente estudo trata da ironia romântica na literatura<br />

portuguesa, tomando para análise o romance Outrora Agora, de<br />

Augusto Abelaira. Considerando a ironia como o jogo, a<br />

instauração do reino da dúvida, é possível compreender que a<br />

presença desse artifício na construção textual propicia uma efetiva<br />

comunicação entre o texto e o leitor. A leitura aqui apresentada<br />

mostra que toda a obra se constrói e se afirma como representação,<br />

permitindo ao leitor um diálogo constante com o texto, buscando<br />

construir sentido(s) possíveis, a partir de pistas às vezes<br />

enganosas, as quais configuram um território textual escorregadio,<br />

o que significa não se poder falar de certezas em nenhuma obra<br />

literária.<br />

Palavras-chave: Ironia; literatura; dúvida; comunicação.<br />

Estudiosos da ironia, como André Bourgeois (1994) e Maria de<br />

Lourdes Ferraz (1987), mostram a complexidade existente na definição desse<br />

termo e afirmam que o discurso irônico vai além do “dizer o contrário do que<br />

pensamos”, caracterizando-se pela instauração do reino da dúvida, marcado<br />

pela ambigüidade.<br />

* Enelita de Sousa Freitas é mestre em Literaturas de Língua Portuguesa.


24 Guido Almansi (1978) explica a ironia chamando a atenção para o<br />

tongue-in-cheek, expressão ligada especificamente à língua inglesa e que<br />

significa “uma cerimônia secreta que se desenvolve em um compartimento<br />

muito privado da cavidade oral do locutor.” , imperceptível ao espectador. Na<br />

literatura, a sutileza do tongue-in-cheek supera a piscadela do autor, exigindo<br />

do leitor um grande esforço para detectá-lo, o que nem sempre é possível,<br />

limitando-se este apenas à busca, através de caminhos tortuosos com pistas<br />

enganosas. É nessa tentativa de se desfazer a ambigüidade que, segundo os<br />

três teóricos acima citados, reside a importância da ironia, como artifício que<br />

possibilita o texto literário se afirmar como tal, propiciando a efetivação do<br />

processo comunicativo. Para Maria de Lourdes Ferraz (1987, p. 7) a ironia se<br />

constitui como um “princípio necessário e inevitável da expressão estética.”<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Enelita de Sousa Freitas<br />

O jogo irônico, pelo não-dito, pela relação entre o ser e o parecer,<br />

provoca no leitor a busca de um sentido (im)possível na obra, estabelecendose,<br />

desse modo, uma relação dialógica entre o autor e o leitor, a qual só é<br />

possível devido à existência de um “eu” enunciador, representado pelo narrador<br />

implicado, e que, por sua vez, pede a presença de um “tu” receptor – o narratário<br />

– considerado por Maria de Lourdes Ferraz como complemento textual.<br />

O romance Outrora Agora, de Augusto Abelaira, através da<br />

representação desse “eu” enunciador evidencia a visão irônica que o Autor<br />

tem do mundo. Sem esconder os artifícios da representação, o narrador cria<br />

um ambiente teatral, como a dizer ao leitor que não se iluda. Desse modo,<br />

cumpre-se o que propôs Bertold Brecht para o teatro – Vida de Galileu: “[...]<br />

a decoração do palco não deve ser de molde a fazer o público julgar que se<br />

encontra num quarto da Itália Medieval ou do Vaticano. O público deve ser<br />

mantido na convicção de que se encontra num teatro” (1977, p. 48)<br />

A rejeição ao ilusionismo, defendida por Brecht, é visível em<br />

Outrora Agora. Toda a narrativa está centrada na representação. O espaço<br />

físico onde se desenrolam as ações transfigura-se num espaço teatral. Não<br />

parece aleatória a escolha do Algarve como ambiente, pois esta província, pelo<br />

seu relevo constituído de serras dispostas em arco, é comparada a um grande<br />

anfiteatro voltado para o Sul. Além desse aspecto físico, a região tem como<br />

principais indústrias modernas a hotelaria e o turismo . Vai-se ao Algarve para<br />

ver o Algarve, como se vai ao teatro para ver a peça teatral. É no palco do<br />

anfiteatro algarvio que Jerónimo, aos sessenta e tantos anos, encena a peça de<br />

sua vida.<br />

Impossível ler Outrora Agora sem considerar esse aspecto e,<br />

conseqüência disso, sem considerar a presença da ironia romântica. O narrador<br />

deixa clara a consciência da representação, seja descrevendo os gestos teatrais<br />

dos personagens (“Pula para a praia e cai-lhe cinematograficamente nos braços”<br />

– p. 84 e “E como as gelosias estão fechadas e acendeu a luz, pode ver –


Artifícios da construção textual: a representação em Outrora Agora, de Augusto Abelaira<br />

autêntico teatro de sombras chinesas – a sombra da Filomena projectada na<br />

parede do hall, seguir os movimentos dos braços ao tirar o vestido, o recorte<br />

súbito do corpo nu.”, p. 253); seja criando diálogo e situações reveladoras da<br />

mentira e do fingimento (“simpático, embora continuando a mentir” – p. 24 e<br />

“Escondeu-se sempre do pai” – p.68) ou discutindo a relação realidade-ficção<br />

(“A imaginação, isto é, a vida que não foi, a vida que gostaria de ter vivido ou<br />

de vir a viver. A vida vive-se, não dá jeito escrevê-la, é sempre desinteressante.”<br />

– p. 172) ou ainda dizendo que a vida é um teatro (“Embora a comédia faça<br />

parte da vida, seja metade da vida. Ou mais.” – p. 260) 1 .<br />

Em Outrora Agora nada se afirma definitivamente. Tudo se<br />

desdobra no disfarce, na representação, confirmando-se a todo instante o caráter<br />

fictício da obra. Não há nenhuma intenção por parte do narrador em afirmá-la<br />

como realidade.<br />

Esse jogo enganoso é possível graças à consciência de que o<br />

texto se elabora enquanto linguagem, que permite ao homem disfarçar, esconder<br />

a verdade, e que, ao mesmo tempo, seduz e encanta. Vivemos num mundo de<br />

metáforas e símbolos, onde se torna difícil perceber em que terreno estamos<br />

pisando, se no da verdade ou no da mentira. O signo lingüístico, em Outrora<br />

Agora, serve inclusive para explicar o caráter teatral da obra, evidenciando a<br />

possibilidade do jogo: “Representar pode ser uma forma de sinceridade, o<br />

modo de dizer as coisas, de torná-las mais vivas. Não é isso a arte? [...]<br />

Teatraliza o tom:”, (p. 96) “Tinha subido definitivamente no palco.” (p. 169 -<br />

grifos acrescentados)<br />

Além de expressões dessa natureza, o narrador faz uso de rubricas,<br />

que reforçam a característica dramática do romance. Aparecem, por exemplo,<br />

as expressões “Irônica:” (várias vezes) “Ousado” (p. 100) “Após uma pausa:”<br />

(p. 149), como se as personagens da narrativa fossem atores que devessem<br />

ser orientados para o modo como reagir na encenação da peça.<br />

Outrora Agora é uma obra por demais irônica. Como se não<br />

bastassem os artifícios usados para construir o texto, o narrador discute<br />

constantemente a questão do jogo irônico, apontando a ironia das personagens,<br />

como se pode notar no fragmento “[...]embora ficcionando para si própria a<br />

hesitação (a hesitação é irônica)” (p. 183). O narrador tanto mostra a presença<br />

da ironia como convida o leitor a descobri-la, estabelecendo-se, desse modo, a<br />

comunicação entre as duas instâncias narrativas: “Qual? Pensar nisto mais<br />

tarde. Talvez irônica, mas por que irônica? E onde está a ironia?” (p. 257).<br />

Sustentada na representação, a comunicação com o leitor se<br />

estabelece em toda a obra. Página após página, este é convidado a refletir<br />

1 Abelaira, 1996. – Todas as citações com indicação de página referem-se à obra em estudo<br />

25<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


26 sobre a leitura, a atribuir um sentido ao texto, enfim, a participar do ato criador.<br />

Várias interrogações são feitas ao narratário, como se o narrador estivesse<br />

sempre a pedir sua participação na construção textual. Diante dessas<br />

interrogações, a posição do leitor é instável, de acordo com os vários fatores<br />

que vão determinar sua condição de dialogar com a obra.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Enelita de Sousa Freitas<br />

Não só através de interrogações o narrador se dirige ao narratário.<br />

Em todo o texto se evidencia o processo comunicativo, que acontece também<br />

por meio dos monólogos interiores da personagem. O autor implícito alerta o<br />

leitor para a situação de comunicação neles instalada. É da boca da personagem<br />

que ouvimos sobre isso:<br />

Falar com o outro. Quando julgo falar comigo própria, quando julgo falar<br />

de mim para mim, com quem falo? Explico: quem é o meu interlocutor<br />

solitário? O ou os, posso ter vários. – Professoral: – Nunca é conosco<br />

que falamos, está dito e redito, o monólogo é uma ilusão, há sempre um<br />

diálogo. O diálogo que não temos no mundo real (p. 163).<br />

É, sem dúvida, mais pelos monólogos de Jerónimo que o leitor fica<br />

por dentro da sua história, facilitando-se, assim, a compreensão do texto. Além<br />

disso, sabendo-se ser a criação literária um ato solidário, ela não passa de um<br />

(suposto) monólogo que, vindo a público, transforma-se num diálogo com<br />

inúmeros receptores.<br />

O diálogo em Outrora Agora dá-se também, e em larga escala,<br />

com outras obras e com a história sócio-política de Portugal. O fenômeno da<br />

intertextualidade está presente em todo o texto de Augusto Abelaira e falar<br />

dele, fazendo as relações intertextuais, constitui objeto de estudo para outra<br />

análise. Entretanto, não podemos deixar de observar o diálogo existente com<br />

um poema de Fernando Pessoa, cuja última estrofe foi usada como epígrafe do<br />

romance. Segundo o próprio Abelaira, em entrevista a Márcio Serelle , esse<br />

poema causou-lhe profunda impressão, sobretudo pela expressão “outrora<br />

agora” que veio dar título à sua obra. Em ambos os textos as lembranças do<br />

passado vêm à tona, o que provoca, tanto no eu-poético (em Fernando Pessoa)<br />

como na personagem (em Abelaira), um desejo de revivê-lo. Sem nenhuma<br />

certeza de felicidade passada ou futura, os textos mergulham no espaço da<br />

dúvida, marcado em Outrora Agora pelo vasto teor de ambigüidade que<br />

percorre a narrativa, a começar pelo seu título.<br />

Além dos artifícios dos quais já falamos, Outrora Agora afirma<br />

seu caráter ficcional pela metaliteratura. A personagem Cristina está a escrever<br />

um livro, sobre o qual discute com Jerónimo. Em suas falas transparecem<br />

alguns mecanismos da criação, podendo o leitor ouvir, através desse jogo,<br />

novamente a voz do autor implícito que, como em outras obras de Abelaira,<br />

segundo Lélia Duarte, “mostra-se por trás das personagens, revelando o estatuto<br />

da metaliteratura de sua criação e alertando o leitor para que não se deixe


Artifícios da construção textual: a representação em Outrora Agora, de Augusto Abelaira<br />

enganar pelas manobras de personagens e narradores não confiáveis.” É o<br />

próprio narrador que, através dos monólogos de Jerónimo diz: “Os romancistas,<br />

a liberdade de dizer asneiras, disfarçando-se atrás das personagens.” (p. 47).<br />

É no plano do enunciado que acontecem essa manobras, as quais,<br />

vistas atentamente, revelam o jogo irônico montado pelo sujeito da enunciação.<br />

O leitor atento pode observar que no começo (p. 11) e no final (p. 270) da<br />

narrativa, Jerónimo mostra-se preocupado por ter-se esquecido de pagar a<br />

conta de telefone. É possível notar que ele revela tal preocupação no início, no<br />

Algarve e, no final, a caminho do Algarve, quando volta para encontrar Cristina.<br />

Afinal, Jerónimo tinha mesmo estado antes no Algarve e, ao voltar, assalta-o o<br />

mesmo pensamento? Ou não tinha estado? Situação ambígua. Na segunda<br />

hipótese, pode-se dizer que tudo não passou do desejo da personagem,<br />

reafirmando-se o caráter fictício da obra.<br />

O surgimento da mosca também no início e no final da narrativa<br />

desperta igual suspeita. Atentando para o discurso, vê-se que na página 45<br />

aparece a expressão “uma mosca” que passa a ser “A mosca” na página 278.<br />

A definitivização leva o leitor a perceber que se trata da mesma mosca,<br />

levantando-se a possibilidade de Jerónimo não ter vivido a história no Algarve,<br />

mas apenas abriu o baú de lembranças pessoais. A morte o surpreendeu quando<br />

a caminho da felicidade desejada.<br />

Uma leitura possível. Não se pode, porém, pensar em certeza em<br />

nenhuma obra literária, muito menos na que estamos analisando. Falar de<br />

Outrora Agora é falar de ambigüidade, presente no título da obra, na construção<br />

do narrador, nos sentimentos e ações das personagens, nos mecanismos da<br />

narração. Aquilo que é dito pelo narrador ou pensado pela personagem é, muitas<br />

vezes, posto em dúvida entre parênteses, revelando uma divisão do “eu” e<br />

introduzindo uma nova perspectiva do sujeito da enunciação através de um<br />

constante desdobramento desse sujeito. A narração é feita ora em 3ª pessoa,<br />

por um narrador onisciente, com diálogos diretos das personagens, ora em 1ª<br />

pessoa, passando pela intensa utilização do discurso indireto livre. Nesse jogo<br />

de foco narrativo, a fala da personagem confunde-se com a do narrador, como<br />

se pode observar no fragmento seguinte:<br />

[...] foi com uma moto que o Fernando teve o desastre – e aquilo que me<br />

prende às longínquas origens da vida desligou-me do futuro, deixou-me<br />

sozinho, vazio, diante do universo. Agora ele (ele, o Jerónimo) ali à<br />

varanda, trinta anos depois, a gozar o sol, os olhos no mar (p. 11).<br />

Esse modo de construção textual reitera o caráter enganoso da<br />

obra, mostrando que há outra voz atrás das falas do narrador e das personagens.<br />

Através do processo de comunicação instalado na narrativa via<br />

representação e ambigüidade, o Autor chama a atenção do leitor para o<br />

27<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


28 mecanismo da língua(gem) – esse organismo vivo – que, de forma oral ou<br />

escrita, transmite a história e a cultura de um povo a gerações futuras. Todo o<br />

esforço do autor em dialogar com o leitor, de várias maneiras, exprime o seu<br />

desejo de livrar da morte a linguagem.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Enelita de Sousa Freitas<br />

A produção literária de Augusto Abelaira, percorrendo os caminhos<br />

da ironia romântica, mostra um mundo fantasioso, onde nada se explica e tudo<br />

deve ser relativizado e onde as relações humanas podem não passar de uma<br />

representação. Cada homem é ator e espectador de sua própria história (cf.<br />

fala de Jerónimo, p. 204). Lélia Duarte (1994), em estudos sobre a construção<br />

irônica em As boas intenções, Bolor e O bosque harmonioso, deste mesmo<br />

autor, discute essa questão, afirmando:<br />

Com essa ironia revela a sua convicção de que o mundo é um vácuo<br />

(in)significante, onde se realiza a fusão do trágico e do cômico, e em que<br />

qualquer riso esboçado é logo suspenso, transformando-se na universal<br />

linguagem da ironia. [...] é impossível afirmar algo definitivamente, já<br />

que o homem, o mundo e a própria linguagem não existem de forma<br />

absoluta, mas são relativizados pela necessidade de estabelecimento de<br />

uma situação de comunicação (DUARTE, 1994, p. 73).<br />

Através da representação consolida-se o fazer literário em<br />

Outrora Agora. Abrem-se as cortinas do “teatro”, em prol de uma maior<br />

cumplicidade com o leitor, e tem início a comunicação. O leitor não pode perder<br />

nenhum gesto das personagens, tendo ainda que ficar atento aos ditos e nãoditos<br />

do narrador, pois neles pode aparecer a piscadela do autor implícito. As<br />

artimanhas da construção em Outrora Agora exigem, portanto, bastante<br />

perspicácia do leitor. Trata-se de uma obra que quebra as barreiras dos gêneros<br />

literários e a seu respeito, pergunta-se: romance ou teatro? Sem possibilidade<br />

de certezas.<br />

Fingimento, jogo de contrários, como em Blablalie . O mágico aqui<br />

se chama Augusto Abelaira. Ele, como todos os mágicos da linguagem, sabe<br />

construir sereia de papel que encanta e seduz o leitor para aprofundar-se nas<br />

águas do texto literário, cujo leito é escorregadio e movediço. Jogos enganosos<br />

levam-no (o leitor) para o fundo em busca de um terreno firme (o sentido), que<br />

pode ou não ser encontrado, pois também este é relativo. É preciso que o leitor<br />

seja um bom detetive e tenha cuidado com as muitas pistas falsas que estão<br />

pelo caminho. Enquanto ele investiga, invisivelmente, debaixo da língua do<br />

narrador, pode estar acontecendo o tongue-in-cheek.


Artifícios da construção textual: a representação em Outrora Agora, de Augusto Abelaira<br />

Referências<br />

ABELAIRA, Augusto. Outrora Agora. Lisboa: Presença, 1996.<br />

ALMANSI, Guido. L’affaire mystérieuse de l’abominable tongue-in-cheek.<br />

Trad. Luiz Morando. Poétique. Paris, Seuil, n. 36, nov. 1978, p. 413-426.<br />

BOURGEOIS, André. L’ironie romantique. Grenoble: Presses Universitaires<br />

de Grenoble, 1974. Trad. Luiz Morando. In: Cadernos do NAPq, n. 22. Belo<br />

Horizonte: CESP/FALE/UFMG, p. 55-80, dez. 1994.<br />

BRECHT, Bertold. Vida de Galileu. São Paulo: Abril Cultural, 1977.<br />

CARA, Salete de Almeida. Fernando Pessoa: um detetive leitor e muitas<br />

pistas. São Paulo: Brasiliense, 1988.<br />

DUARTE, Lélia Maria P. De boas intenções... – a construção irônica de alguns<br />

romances de Augusto Abelaira. In: Quinto Império. – Revista da Cultura e<br />

Literaturas de Língua Portuguesa. Salvador: Centro de Estudos Portugueses,<br />

v. 1, p. 126-129, 1º Sem. 1996.<br />

DUARTE, Lélia Maria P. Ironia, humor e fingimento literário. In: Cadernos<br />

do NAPq. n.º 15. Belo Horizonte: FALE/UFMG, p. 54-78, fev. 1994.<br />

FERRAZ, Maria de Lourdes, Ironia. In: A ironia romântica. Lisboa: IN-CM,<br />

1987.<br />

NIESTZSHCE, F. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral. 1873.<br />

In: Obras Incompletas. Col. Os Pensadores, 2. ed. Trad. Rubens Rodrigues<br />

Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978.<br />

REIS, Carlos. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 1987.<br />

SANTOS, Jussara. O triunfo da morte ou o triunfo do tongue-in-cheek? In:<br />

Cadernos CESPUC de Pesquisa. Belo Horizonte: PUC MINAS, n. 3, p. 7-<br />

16, abr. 1998.<br />

SERELLE, Márcio. Entrevista a Augusto Abelaira. In: SCRIPTA – Revista do<br />

Programa de Pós-Graduação em Letras e do Centro de Estudos Luso-Afro-<br />

Brasileiros da PUC MINAS. Belo Horizonte, V. 1, n. 1, p. 283-287, 2º Sem.<br />

1997.<br />

29<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


O QUIXOTE: IMPORTÂNCIA, UTOPIA, PERSONAGENS E O<br />

PRAZER DE LER<br />

RESUMO<br />

Ester Abreu Vieira de Oliveira*<br />

Para falar da técnica narrativa de Cervantes, no Quixote, faz-se<br />

um resumo da obra e da atuação do personagem principal. Mostrase<br />

que a técnica da ironia predomina na obra. Apresenta-se a<br />

importância dos personagens, o seu valor simbólico e o relevo<br />

que dão às qualidades que ressaltam no personagem principal.<br />

Procura-se mostrar a importância que a obra dá ao ato de ler e<br />

reescrever e salienta-se a ambigüidade da linguagem e o valor da<br />

leitura como estímulo criativo.<br />

Palavras chaves: Quixote; utopia; personagens.<br />

O livro O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, de<br />

Miguel de Cervantes Saavedra, narra a história de um fidalgo, Alonso Quijano,<br />

de poucos recursos, que vivia em uma perdida aldeia da Mancha 1 e que saiu<br />

de sua casa mal equipado para uma batalha contra o mal, devido a seu grande<br />

e exagerado gosto pela leitura de livros de cavalaria, gênero cultivado na Idade<br />

Média, de aspecto idealista, em que um cavaleiro aventureiro, fiel amante de<br />

uma dama, fazia proezas guerreiras, não se preocupando muito com as coisas<br />

materiais e ajudando os necessitados, sobretudo se se tratasse de uma mulher.<br />

Assim, o desejo utópico de Alonso Quijano de modificar o mundo e o seu sonho<br />

de acreditar em uma vida melhor, não temendo ser ridicularizado e ser chamado<br />

*<br />

Ester Abreu Vieira de Oliveira é Pós-doutora de Teatro Espanhol Contemporâneo<br />

(UNED-Madrid), Doutora em Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas (UFRJ).<br />

1 Segundo os cervantistas, o Campo de Montiel, na Mancha, região de Castilha, é o<br />

indicado como “aquele lugar da Mancha de cujo nome não quero lembrar-me [...]”,<br />

frase que inicia a obra. Ali os turistas podem visitar o Campo de Criptana, onde ainda se<br />

encontram moinhos de vento, semelhantes aos que o fidalgo converteu em gigantes,<br />

ou, ainda, bem perto, os turistas podem visitar o Toboso, terra de origem da bela amada<br />

Dulcinéia.


32 de louco, fazem desse personagem o símbolo da fé e de seu nome a filosofia do<br />

quixotismo.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Ester Abreu Vieira de Oliveira<br />

Esse fidalgo, de quase 50 anos de idade, para manter a disparatada<br />

paixão pela leitura, vendia pedaços de terras cultivadas. De tanto ler livros de<br />

cavalaria, confundiu a fantasia, a ficção, com a realidade, colocou na cabeça a<br />

idéia de ser um cavaleiro andante e pôs o seu plano em ação. Segundo o<br />

narrador,<br />

[...] Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que acha nos livros, assim de<br />

encantamentos, amores, tormentos e disparates impossíveis; e assentouse-lhe<br />

de tal modo na imaginação que era verdade toda aquela máquina<br />

de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia outra história<br />

mais certa no mundo” (1981, p. 30).<br />

Para dar vida às aventuras das histórias que havia lido, antes de<br />

sair de casa, primeiro limpou as armas que tinham sido de seu bisavô, adotou o<br />

nome de Dom Quixote de la Mancha e, depois, deu a seu cavalo o nome de<br />

Rocinante e a uma jovem camponesa, dona de seu amor em pensamento, o<br />

nome de Dulcinéia del Toboso.<br />

Imaginando que suas enferrujadas armas eram invencíveis, armado<br />

cavaleiro em uma taberna pelo taberneiro a quem julgava ser um castelão,<br />

procurou, para ser o seu escudeiro, um rústico aldeão de sua terra, Sancho Panza,<br />

seduzindo-o com a promessa de que seria o governador de uma ilha que ele<br />

conquistaria. Pensando em um mundo, como narravam os livros que lia, povoado<br />

de feiticeiros, endemoniados, gigantes, malfeitores, donzelas sofredoras, e vendo<br />

a necessidade de ressuscitar a glória da imortal cavalaria para reparar injustiças,<br />

defender os fracos e lutar para que, no mundo, reinassem o heroísmo, a bondade,<br />

o amor e a justiça, saiu de sua casa. Porém seus nobres ideais só lhe deram<br />

desventuras, pois, pelos caminhos percorridos, veio a encontrar, a realidade de<br />

cada dia: muitas injustiças para reparar e, também, uma humanidade zombeteira<br />

e egoísta. Mas não desanimou, sustentou seus sonhos até o leito de morte, quando<br />

renegou o mundo de sua loucura.<br />

No Quixote, Cervantes aponta o triunfo da injustiça e da trapaça,<br />

transformando o fidalgo num modelo de aspiração a um ideal ético e estético de<br />

vida, idealizando-o como o cavaleiro andante Dom Quixote 2 , defensor da justiça.<br />

Molda-o em personagens literários da antiga cavalaria. Coloca-o aspirando a<br />

viver a vida como uma obra de arte, julgando a ficção com mais ou igual realidade<br />

que a própria vida. Em várias partes do livro comprova-se essa assertiva, por<br />

exemplo, no Cap. L, na 1ª parte, quando D. Q. fala sobre livros impresso de<br />

2 A partir daqui, ao referir-se ao personagem Dom Quixote se usará a sigla D. Q.


O Quixote: importância, utopia, personagens e o prazer de ler<br />

cavalaria, sobre o prazer de lê-los e sobre a beleza e a verossimilhança dos<br />

relatos, “em qualquer parte que se leia de qualquer história de cavaleiro andante<br />

há de causar gosto e maravilha a quem a ler” (1981, p. 291). Suas leituras<br />

“desterram a melancolia”. Assim, a leitura dá prazer e sabedoria ao herói,<br />

estimula-lhe a criação e conforma o seu caráter. No Cap. I, da 2ª parte, ele<br />

descreve a imagem dos heróis dos livros de cavalaria que depreende da leitura:<br />

[...] vi com meus próprios olhos Amadis de Gaula, que era um homem alto<br />

de corpo, branco de rosto, de barba formosa e negra, de olhar entre brando<br />

e rigoroso, curto de razões, tardio em irar, e pronto em depor a ira; e do<br />

modo que eu delineei Amadis, poderia, penso eu, pintar e descrever todos<br />

quantos cavaleiros andantes se encontram nas histórias do orbe, que pela<br />

idéia que tenho, formam como as suas crônicas narram. E pelas façanhas<br />

que praticavam, e condições que tiveram, se podem tirar por boa filosofia<br />

as suas feições, a sua cor e a sua estatura (1981, p. 318).<br />

Para dar realidade à ambição do protagonista, Cervantes vai utilizar,<br />

entre outros recursos, o da metaficção, isto é, uma ficção que serve para<br />

descrever uma ficção ou analisá-la. A função dessa marca narrativa é dar<br />

mais realidade e independência aos entes de ficção. Por exemplo, quando<br />

D. Q. discute sobre o personagem do livro apócrifo 3 de Avellaneda (LIX, II<br />

parte), ou quando, na gruta de Montesinos (Cap. XXII, II parte), põe em ridículo<br />

o mundo das novelas de cavalaria, ou quando lá na gruta vê famosos personagens<br />

de novelas de cavalaria como Berna, amada de Durandarte, um dos pares da<br />

França de hoste de Carlos Magno, Cervantes está utilizando essa técnica.<br />

Cervantes mostra o seu poder criador genial ao criar um<br />

protagonista louco, protótipo de amor e virtude. Porque é por meio da emoção<br />

estética que o homem de letras escreve uma verdade camuflada, forjando um<br />

novo objeto, fonte de um sentimento simulado para legá-lo ao leitor. O objeto<br />

estético, gerado do seu inconsciente, se valoriza quando quem o considera o vê<br />

como o receptáculo de uma mensagem a ele endereçada. Ele se instala no<br />

vazio (que corresponde ao apelo do olhar, da voz) onde faltam palavras. Quanto<br />

mais seu sentido permanece opaco, mais aumenta a interrogação daquele que<br />

lê ou ouve e, paradoxalmente, mais ele sente prazer. Segundo Roland Barthes,<br />

no momento em que o leitor experimenta prazer, ele é um contra-herói. Para<br />

Barthes, todo texto produzido com prazer proporciona o prazer. A fruição que<br />

nos oferece a obra de arte é motivada pela sua duplicidade de linguagem. E, no<br />

3 Há um Quixote, o não autêntico, publicado em 1614, que aparece designado como<br />

autor Alonso Fernández de Avellaneda e editado em Tarragona com o título de Segundo<br />

tomo del Ingenioso Hidalgo don Quixote de la Mancha, em cujo prólogo havia um<br />

ataque a Cervantes. Essa obra fez com que saísse rapidamente o segundo tomo do<br />

Quixote, em 1615.<br />

33<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


34 artifício de linguagem dupla, aparece quem vai dar unidade à obra. Se se adentra<br />

ao centro da esfera artística e se permanece dentro da obra de arte, logo nas<br />

primeiras linhas, se deparará, com o nascer de um herói que surpreenderá pela<br />

instabilidade do nome: Quijada, Quesada o Alonso Quijano? Depois de batizado<br />

o herói, ainda, continuam as variações onomásticas: Don Quixote de la Mancha;<br />

Cavaleiro da Triste Figura; Cavaleiro dos Leões e Alonso, Alonso, O Bom.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Ester Abreu Vieira de Oliveira<br />

A loucura de D. Q. não afetava o seu saber, observado por vários<br />

personagens e, até, por seu escudeiro Sancho, que lhe disse: “mais de predicador<br />

era ele que de cavaleiro”, pois só a sua interpretação de leitura era uma fuga<br />

da realidade, já que acreditava que eram verdades as disparatadas invenções<br />

dos livros de cavalaria.<br />

À medida que as aventuras de D. Q. vão se sucedendo, ele é<br />

vítima de agressões físicas e de zombarias. No desenrolar da narrativa, pela<br />

imaginação do protagonista, Cervantes consegue transformar as mais baixas<br />

manifestações da vida em seres do mundo ideal: as prostitutas se transformam<br />

em princesas, o pícaro, em homem leal, o taberneiro, em nobre senhor dono de<br />

um lindo castelo, os moinhos, em gigantes, os criminosos, em vítimas inocentes<br />

da autoridade, a bacia de um rústico barbeiro, no elmo de Mambrino, rebanhos,<br />

em exército, a lavradora Aldonza Lorenzo, em Dulcinéia del Toboso, a imagem<br />

do amor perfeito, da glória e da imortalidade, logo, o ideal de perfeição, a busca<br />

de todos os homens.<br />

Cervantes foi um escritor de pouco sucesso em sua época,<br />

comparado com o destaque que tiveram os seus contemporâneos: Lope de<br />

Vega e Calderón de la Barca. Foi, também, um homem de poucos estudos<br />

universitários, apesar de ter um grande conhecimento humanístico, adquirido<br />

muito mais como autodidata que como freqüentador de cátedras universitárias,<br />

devido às precárias finanças paternas. Contudo, aos 57 anos, ofereceu à<br />

humanidade o Quixote (o de 1605, a primeira parte) que, ao ser lançado, já lhe<br />

deu a maior fama e, posteriormente, com a publicação da segunda parte em<br />

1615, obteve a imortalidade.<br />

No Quixote, o autor separa o romance da esfera do ideal e do<br />

real, mostra a disparidade entre o mundo livresco dos cavaleiros andantes –<br />

com os seus valores – e o mundo da realidade quotidiana, a dos personagens (e<br />

a dos leitores) e mostra, ainda, um mundo real cruel com um sonhador.<br />

Essa obra marcou o início do romance moderno e, segundo a<br />

UNESCO, é a obra mais traduzida no mundo depois da Bíblia e das obras<br />

completas de Lenin. Com base em sua narrativa, já se fizeram filmes e peças<br />

teatrais, já se conceberam danças, e concertos musicais, exposições, pinturas,<br />

gravuras, ilustrações, conferências, seminários, teses doutorais, poesias e<br />

romances. É um livro escrito com técnica irônica. Por essa razão, Cervantes<br />

não conclui nada, mas somente propõe, insinua, para que o leitor tire, por si


O Quixote: importância, utopia, personagens e o prazer de ler<br />

mesmo, toda espécie de conclusão. A obra torna-se lúdica e o jogo entre ficção<br />

e realidade alimenta-a. Esse jogo permite fazê-la uma teoria do romance. Em<br />

todo o texto estão difundidas as idéias estéticas do autor e, também, as<br />

filosóficas. Só uma análise e uma leitura atenta deixam entrever o pensamento<br />

cervantino.<br />

Cervantes apresenta um panorama, ao mesmo tempo, satírico e<br />

burlesco da vida privada, política e social de seu tempo, porque seria sumamente<br />

arriscado atacar uma nobreza arrogante, clérigos doutrinários e, inclusive,<br />

a pessoa do rei. Por isso, ele se serve de duas manhas geniais com respeito a<br />

seus ataques ao rei, não recorrendo ao sentido literal, mas empregando<br />

o alegórico, para que, em caso de vir a ser julgado, pudesse negar as acusações<br />

mediante o papel de um néscio inocente. Quanto a tratar os assuntos sérios e<br />

arriscados, como os referentes à nobreza e ao clero, Cervantes procura mesclar<br />

elementos burlescos. Porém, o fascínio que teve o seu personagem dominante,<br />

D. Q., atraiu tanto a atenção para si que encobriu os aspectos mordazes sobre<br />

a Espanha.<br />

Aproximadamente 700 personagens aparecem nessa obra de um<br />

complexo mundo social. Mas D. Q. e Sancho Pança, a princípio personagens<br />

não acabados, são os que vão se transformando à medida que avança a obra;<br />

inclusive a loucura do protagonista acaba no final da obra. Ele é uma das<br />

figuras mais conhecidas da literatura. Junto com Sancho e Dulcinéia, é um<br />

mito hispânico.<br />

Dulcinéia é o centro do mundo imaginário, o símbolo do amor,<br />

força grandiosa que transforma o homem em outro. E, para a literatura de<br />

cavalaria, a mulher é uma fonte de abnegação e sacrifício, de renovação moral<br />

do herói, figura importante das convenções utópicas do mundo pastoril. Como<br />

o amor faz o amante perder a razão, ele é um grande instrumento para a<br />

renovação do homem e faz o amante refletir-se na amada. É por isso que diz<br />

de Dulcinéia: “Ela luta em mim e vence em mim e eu vivo e respiro nela e<br />

tenho vida e ser” (Cap. XXIII, II parte). É este novo ser, mantido pelo amor,<br />

que tem a força para o herói afrontar os perigosos serviços do bem, em ajuda<br />

dos fracos e necessitados e para se lançar nas mais audaciosas façanhas. É<br />

por isso que recorre a Dulcinéia quando se vê em apuros. Assim, se pede o<br />

socorro de sua dama, não é por real e externo auxílio, mas porque com a sua<br />

lembrança, as suas energias se renovam. O seu amor por Dulcinéia, iguala-o<br />

aos heróis dos romances que deseja imitar e o código da cavalaria faz com que<br />

se mantenha à distância de Dulcinéia: “Ó Princesa Dulcinéia”, ele exclama no<br />

começo do romance, “senhora deste cativo coração, muito agravo me fizestes<br />

em despedir-me e vedar-me com tão cruel rigor que aparecesse em vossa<br />

presença.”. (Cap. II, 1ª parte).<br />

Afastamento, ordem e ofensa, puramente, imaginários. O que<br />

35<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


36 D. Q. temia era o contato feminino e se protegia no nome de Dulcinéia. Essa<br />

é a razão de ter dito, quando se deparou com Maritornes, na penumbra do<br />

dormitório da venda - a primeira tentação de D. Q. -, que só a Dulcinéia serviria.<br />

Ali explicou que fora demasiadamente golpeado e estava envergonhado de<br />

tantas pauladas recebidas para render-lhe uma homenagem condigna. E disse,<br />

ainda mais, que tinha feito uma promessa de fidelidade à sem “par Dulcinéia<br />

del Toboso, a única senhora de [seus] mais ocultos pensamentos.”: “A não se<br />

me pôr isto diante, não seria eu cavaleiro tão sandeu, que deixasse fugir a<br />

venturosa ocasião que a vossa grande bondade me faculta”(Cap. XVI. 1ª parte).<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Ester Abreu Vieira de Oliveira<br />

Outro exemplo de terror ao feminino e de declaração de sua<br />

“virgindade”, aparece no Cap. XLIII, 1ª parte, quando Maritornes, acompanhada<br />

da filha da taberneira, amarrou as mãos do leal cavaleiro em um cabresto para<br />

dele zombar. Quando ela lhe solicitou que pusesse as mãos na janela para que<br />

a princesa daquele palácio pudesse admirá-las, D. Q. disse:<br />

Tomai, senhora, essa mão, ou, para melhor dizer, esse verdugo dos<br />

malfeitores do mundo; tomai senhora, essa mão, em que não tocou mão<br />

de mulher alguma, nem a daquela que tem inteira posse de todo o meu<br />

corpo. Não vo-la dou para que a beijeis, mas para que lhe mireis a<br />

contextura dos nervos, a travação dos músculos, a grossura e espaçado<br />

das suas veias, por onde vereis que tal será a força do braço que uma tal<br />

mão possui (1981, p. ).<br />

Maritornes é todo o contrário da Dulcinéia imaginada por (castelã,<br />

bonita, de classe social elevada), é uma empregada de uma taberna, baixa,<br />

corcunda, de cara comprida, cangote curto, imensas narinas e olho torto. Figura<br />

esperpêntica, trágico-cômica, que se entregava aos hóspedes arrieiros, por<br />

“compaixão”, segundo o narrador, e se contrapõe, por tanto, às virtudes de<br />

honestidade e formosura de Dulcinéia, mas serve para reforçá-las. Se Dulcinéia<br />

representa o lado espiritual feminino, a beleza unida à virtude e à elevada<br />

posição social, qualidades que condizem com a da ideologia renascentista,<br />

Maritornes, por outro lado, representa o lado feminino do instinto carnal. Unidas<br />

às qualidades dessas personagens, teremos a dualidade própria do barroco, o<br />

feio junto com o bonito, e, ainda, o jogo dos opostos, característico dessa obra<br />

cervantina e de sua técnica ilusivo-extremista, colocando uma em um extremo<br />

de perfeição e outra no da imperfeição e do grotesco. Com esse recurso<br />

Cervantes aproxima a sua obra a dois estilos e gêneros: o do medieval idealismo<br />

dos romances de cavalaria e o da cruel realidade dos romances picarescos do<br />

renascentista-barroco.<br />

A atitude de D. Q. ver o mundo, interpretando-o, é muito própria<br />

do ser humano, mas o valor literário de Cervantes está em converter a realidade<br />

em um livro de cavalaria e tornar o personagem um ser ativo que interpreta o<br />

que vê. O seu ver é olhar. Por essa razão a asturiana é vista como uma


O Quixote: importância, utopia, personagens e o prazer de ler<br />

princesa e a sua rude roupa se transforma em seda; seu “bafo”, de resto de<br />

carne, em “hálito suave e aromático”; suas pulseiras de contas de vidro, em<br />

pérolas e seus cabelos duros, em “fios de luzentíssimo ouro de Arábia”, cujo<br />

esplendor “escurecia o próprio sol”. O personagem vê em profundidade e não<br />

na superfície.<br />

Também, quando D. Q. é hóspede dos duques, o tema da rejeição<br />

à mulher se repetirá, para assinalar a fidelidade do herói. Contudo, essa aventura<br />

não é espontânea, como foi a com Maritornes, pois foi forjada, isto é, foi uma<br />

farsa, idealizada pelos duques. Assim aconteceu: uma noite, ouviu girar<br />

a chave da porta de seu quarto e imaginou que fosse Altisodora, uma bela aia<br />

da duquesa que tivesse vindo tentá-lo contra a sua virtude e incitá-lo a trair<br />

a sua dama Dulcinéia del Toboso. Era ela a beleza-tentação, imitação<br />

aos livros de cavalaria, mas ele não estava disponível. Porém, em um desses<br />

suspenses de ação próprios da narrativa de Cervantes, não era a formosa<br />

aia que havia entrado, senão a anciã dona Rodríguez. A conversação se<br />

estabeleceu, mas como toda mulher assustava a D. Q., ele teve a prudência<br />

de agachar-se e cobrir-se, deixando apenas o rosto descoberto. (Cap. XLVIII,<br />

II parte).<br />

As mulheres que aparecem são reveladoras, mas nenhuma tem o<br />

espírito elevado, como Dulcinéia, a musa de D. Q. Para o personagem basta<br />

pensar e crer que a boa Aldonza Lorenzo é formosa e honesta, porque, explicando<br />

a Sancho, quanto à linhagem pouco importava, “pois faço de conta que é a<br />

mais importante princesa do mundo”:<br />

Porque tens de saber, Sancho, se já não sabes, que duas coisas só<br />

incitam a amar mais que outras; que são a muita formosura e a boa fama,<br />

e estas duas coisas se encontram consumadamente em Dulcinéia, porque<br />

em ser formosa, nenhuma lhe iguala; e na boa fama, poucas lhe alcançam<br />

(1981, p. 145).<br />

Refugiado na serra Morena, (Cap. XXV, 1ª parte) D. Q. escreve<br />

uma carta e a envia ao Toboso, por intermédio de Sancho:<br />

Soberana e alta senhora:<br />

O ferido do gume da ausência e o chagado nas teias do coração,<br />

dulcíssima Dulcinéia del Toboso, te envia a saúde que a ele lhe falta. Se<br />

a tua formosura me despreza, se o teu valor me não vale, e se os teus<br />

desdéns se apuram com a minha firmeza, não obstante ser eu muito<br />

sofrido, mal poderei com estes pesares, que, além de muito graves, já<br />

vão durando em demasia. O meu bom escudeiro Sancho te dará inteira<br />

relação, ó minha bela ingrata, amada inimiga minha, do modo como eu<br />

fico por teu respeito. Se te parecer acudir-me, teu sou: e, se não, faze o<br />

que mais te aprouver, pois com acabar a minha vida terei satisfeito à tua<br />

crueldade e ao meu desejo.<br />

37<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


38 Teu até à morte.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Ester Abreu Vieira de Oliveira<br />

O Cavaleiro da Triste Figura (1981, p. 146).<br />

As duas partes do Quixote se diferenciam na apresentação do<br />

personagem e na quantidade dos capítulos. Na primeira parte é quem<br />

transforma a realidade. Ela contém 52 capítulos. Nessa parte, vê sempre<br />

a realidade transformada de um ponto de vista subjetivo: o seu. Na segunda<br />

parte, que contém 74 capítulos, são os outros que pretendem que D. Q.<br />

veja a realidade inventada para zombarem dele. Porém, a base da primeira<br />

parte são os livros lidos e interpretados por D. Q., enquanto a da segunda<br />

é a idéia que palpita de que a história foi publicada, lida, interpretada e continuada.<br />

Cita-se um exemplo quando a duquesa quer saber de Sancho Panza<br />

se era o personagem de uma obra que ela tinha lido. Vários personagens lêem<br />

ou escrevem; muitos lêem a história de D. Q. e lêem livros de cavalarias,<br />

na taberna, nos momentos de ócio. No prólogo do Quixote, sobre o ato de<br />

escrever, encontra-se a seguinte narração:<br />

Não tenho, pois, remédio senão dizer-te que, apesar de me haver custado<br />

algum trabalho a composição dessa história, foi, contudo, o maior de<br />

todos fazer essa prefação que vais agora lendo. Muitas vezes peguei na<br />

pena para escrevê-la, e muitas a tornei a largar por não saber o que<br />

escreveria; e estando em uma das ditas vezes suspenso, com o papel<br />

diante de mim a pena engastada na orelha, o cotovelo sobre a banca, e a<br />

mão debaixo do queixo, pensando no que diria, entrou por acaso um meu<br />

amigo, homem de bem entendido, e espirituoso, o qual, vendo-me tão<br />

imaginativo, me perguntou a causa, eu, não lha encobrindo, lhe disse<br />

que estava pensando no prólogo que havia de fazer para a história de<br />

D.Q., e que me via tão atrapalhado e aflito com este empenho que nem<br />

queria fazer tal prólogo, em dar à luz as façanhas de um tão nobre<br />

cavaleiro[...] (1981, p. )<br />

Nessa obra, Cervantes se vale do romance de cavalaria, cujo<br />

empenho era a divulgação dos bons costumes cultivados pela sociedade, com<br />

base em uma prosa expositiva e uma linguagem nobre, agradável, que repelia<br />

qualquer sinal de harmonia dialógica. Esse estilo literário era o modelo do bem<br />

falar, que refletiria o refinamento e a <strong>educação</strong> do convívio social para recuperar<br />

vínculos históricos. No interior do discurso elevado do romance de cavalaria,<br />

Cervantes inseriu expressões vivas da língua interativa, processo que já tinha<br />

sido realizado, um pouco rusticamente, no passado, nas obras La Celestina,<br />

de Fernando Rojas, e Lazarillo de Tormes, de onde saiu, do mesmo fundo<br />

moral, psicológico e social, o Quixote. Como o Lazarillo, o Quixote parodia<br />

os velhos livros de cavalaria, principalmente o Amadis de Gaula. Mas a<br />

verdadeira essência do Quixote não está em ser o filho espiritual do Amadis,<br />

mas na concepção e composição do mundo picaresco. Cervantes elevou o<br />

gênero picaresco ao dar ao solitário rebelde o ideal de uma finalidade redentora,


O Quixote: importância, utopia, personagens e o prazer de ler<br />

tirando-o dos estreitos limites de uma vulgar luta pela existência, pois tanto nas<br />

narrativas picarescas quanto nas do Quixote, o herói está em rebelião com o<br />

mundo e a sociedade. Eles são uns inadaptados que se evadem da vida normal,<br />

lutam contra as normas que regulam a sociedade e não reconhecem outra lei<br />

que a determinada por sua própria individualidade. No Quixote, Cervantes<br />

soube fazer o equilíbrio entre o mundo ideal e o real, introduzindo um novo<br />

gênero narrativo que resulta da fusão de vários gêneros. A mordacidade que<br />

se observa nesse escritor, ao longo de sua obra, está presente nas sátiras a<br />

valores, nos temas, nas atitudes, nos personagens e nas convenções literárias<br />

que caracterizam os romances de cavalaria e a própria Espanha.<br />

Segundo opiniões de alguns cervantistas, a primeira intenção de<br />

Cervantes seria escrever uma narrativa breve, para parodiar os livros de<br />

cavalaria. Só depois planejou uma segunda saída, em busca de aventuras, mas<br />

com o escudeiro Sancho. Nessa saída vivem os protagonistas as tão conhecidas<br />

aventuras dos leitores: a luta contra os moinhos-gigantes, a batalha com o<br />

vascaíno, a libertação dos homens que iam para as galeras e a fuga de para a<br />

Serra Morena, onde pretende levar uma vida retirada e onde ele faz o famoso<br />

discurso das armas e das letras. Nessa caminhada dos protagonistas, para<br />

evitar a monotonia e o aborrecimento do leitor, Cervantes insere novelas curtas<br />

de temas variados, mudando a estrutura narrativa. Na terceira saída, na segunda<br />

parte da obra, a de 1615, ele suprime essas novelinhas e apresenta episódios<br />

menos grotescos, tais como: enfrentamento com o bacharel Sansón Carrasco,<br />

como o Cavaleiro dos Espelhos, a cova de Montesinos, o cavalo Clavilenho, a<br />

Ínsula Barataria.<br />

Se, na primeira parte, os diálogos amistosos entre e Sancho Panza,<br />

com uma linguagem viva, repleta de filosofia popular, com o emprego dos refrãos<br />

de Sancho, dão um toque moderno à narrativa, na segunda parte, a conversação<br />

se aprimora, enriquecendo os capítulos. Os protagonistas são mais reflexivos,<br />

as aventuras já não acontecem nos caminhos, mas dentro das casas ou nos<br />

castelos. Aparece um personagem com o desejo de curar a loucura do fidalgo:<br />

Sansón Carrasco, o Cavaleiro da Branca Lua, que o vence em uma batalha<br />

campal em Barcelona. Derrotado, volta para a sua casa, onde morre. Cervantes,<br />

ao articular a narrativa com recurso do processo dialógico, dando à linguagem<br />

culta um aspecto grotesco, no anacronismo do discurso do personagem que<br />

reflete um discurso lido, mas não vivenciado, inova o aspecto formal, rompendo<br />

com os cânones tradicionais do romance. A mudança de técnica narrativa<br />

se observa não só nas ações dos personagens, como também na maneira de<br />

apresentar o prólogo, eliminando o supérfluo suprimindo excessos do relato,<br />

como por exemplo, as citações bíblicas e latinas sem representatividade<br />

no relato, mas de moda em sua época, ainda que haja, no discurso, reflexos<br />

de normas do passado como as da Bíblia e do Alcorão.<br />

39<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


40 Na segunda parte da obra, a mesma realidade se apresenta<br />

mitificada. Vários personagens ouviram falar de ou leram as suas aventuras,<br />

conhecem as suas fantasias e lhe preparam o terreno para a sua realização<br />

com uma cenografia adequada, apresentando-lhe uma fingida realidade, tudo<br />

para dar realidade às aventuras das que costumam participar os cavaleiros<br />

andantes, conforme as histórias que lia, em sua biblioteca, nas suas mal dormidas<br />

noites.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Ester Abreu Vieira de Oliveira<br />

Se se focaliza nos protagonistas, observa-se que, no princípio,<br />

Sancho e são antagônicos e, à medida que o livro avança, eles vão se unindo.<br />

Na segunda saída, Sancho o acompanha por interesse, desejando ser governador<br />

de uma ilha, mas, na terceira saída, acompanha-o por amor. Não mais havia<br />

entre eles uma relação de cavaleiro e escudeiro, mas uma relação entre dois<br />

homens que se necessitam reciprocamente, porque Sancho foi descobrindo<br />

a coragem e firmeza no atuar de e foi percebendo que o mundo deste cavaleiro<br />

representava a encarnação do ideal no homem, o amor ao próximo,<br />

o desinteresse, a luta contra a hipocrisia e a fantasia, a encarnação da mais<br />

nobre condição humana.<br />

Sempre se atribuiu ao texto escrito um poder absoluto. Haja vista<br />

o decálogo escrito na pedra que Jeová entregou a Moisés. A pedra ficava bem<br />

guardada dentro de uma arca e era vista com o maior respeito. Isso porque a<br />

palavra escrita conserva esse ar sagrado, seja na pedra, no papiro, no barro ou<br />

no papel. Ela tem em si um ar sagrado de magia. E os livros são portas abertas<br />

para o sonho, em qualquer idade que se tenha acesso a eles. Eles nos permitem<br />

elaborar um mundo próprio e dar forma à experiência, ao proporcionar-nos<br />

conhecimentos e ampliar nossos horizontes. Manejar a linguagem escrita e ler<br />

um livro trazem prestígio e nos fazem sonhar, nos mostram que há saídas e que<br />

nem tudo está estagnado. E foi esse processo mágico da leitura que Cervantes<br />

nos apontou em O engenhoso fidalgo Dom Quxote de la Mancha (1ª. Parte)<br />

ou O engenhoso cavaleiro Dom Quxote de la Mancha (2ª. Parte). Daí a<br />

afirmação que toda obra leva, em seu interior, um Quixote.<br />

Os livros imóveis na biblioteca não nos impõem idéias, imagens<br />

ou histórias, mas nos fazem ver possibilidades, alternativas, que proporcionarão<br />

uma relação profunda em nossa vida. E foram os livros da biblioteca de, segundo<br />

ele, mais de trezentos os sobre histórias de cavaleiros andantes, que despertaram<br />

a fantasia do fidalgo Alonso Quijano, impulsionando-o a agir, tornando a sua<br />

história, contada pelo mouro Cide Hamete Benengeli, traduzida por um árabe e<br />

recontada por um espanhol, uma intercessão entre a poesia e a realidade, na<br />

medida em que faz com que a sua vontade de aventura, como observou Ortega<br />

y Gasset em Meditaciones del Quijote, entre para fazer parte da realidade e<br />

faz com que o imaginário poético da cavalaria participe da lógica redutível e<br />

previsível do real. Dessa forma, o grande mérito de Cervantes para a


O Quixote: importância, utopia, personagens e o prazer de ler<br />

posteridade foi fazer o seu herói viver as coisas imaginárias e significativas.<br />

Saber que a sua história foi lida, pois ler livros é possuir os signos de um código;<br />

é pôr em movimento um sistema; é encontrar sentido e dar nomes a eles, que,<br />

por sua vez, atrairão outros e outros numa cadeia circular; é reviver o livro; e<br />

é fazê-lo adquirir existência. A literatura fechada é morte. Assim os livros em<br />

uma biblioteca não têm vida, daí caber ao leitor dar vida à história narrada e<br />

fazê-la eterna, como fez o fidalgo manchego, Alonso Quijano, criando um<br />

personagem e dando-lhe ação.<br />

Ao colocar Cervantes a história de seus protagonistas, na segunda<br />

parte, a de 1615, sendo lida e contada por personagens, responde à ficção<br />

estética da obra literária no sentido de seu acolhimento por parte do leitor.<br />

Miguel de Unamuno, escritor espanhol do final do século XIX e<br />

princípio do XX, escreveu que colocar os pensamentos, os devaneios, os<br />

sentimentos no papel é matá-los, mas a ação de ler revive-os e faz eterna a<br />

obra. Nos versos a seguir, ele resume esse pensamento: “Leer, leer, leer, vivir/<br />

la vida que otros soñaron/ Leer, leer, leer, el alma olvida las cosas que pasaron”.<br />

Logo, ler um livro é fazer do passado um presente eterno, pois são os leitores<br />

que dão vida a esse Lázaro (alma, idéia, sonho) jacente no texto de um livro.<br />

A obra Dom Quixote de la Mancha se apóia na fé dos valores<br />

que o homem cria, sustenta e difunde, junto com a mesma vida. O protagonista<br />

é o protótipo do leitor e, na obra, há um paralelismo entre as reações que<br />

provoca sobre o leitor durante a sua vida e sobre o conjunto dos leitores no<br />

desenrolar da história. Daí vem o qualificativo “ingenioso”.<br />

Nessa obra, Cervantes dá conteúdo e perenidade a ela pela<br />

representação, pois, se o atuar aloucado de D. Q. não corresponde ao real, ela<br />

revela a realidade mesquinha com a qual convive o herói.<br />

O autor de Quixote, sugerindo, enganando o leitor, põe em dúvida<br />

se é ou não é verdade o que lê, da mesma forma duvidosa como D. Q. se põe<br />

em sua leitura dos acontecimentos nos quais vive. Nesse sentido, D. Q. escreve<br />

o seu livro ficcional, estabelece a mimese do “real”, faz literatura, tornando-se<br />

um mito, uma imagem, uma metáfora da criação artística, projetando a obra<br />

para a modernidade. E, com o seu atuar, representando as fábulas, as ações e<br />

a essência dos livros de cavalaria, estimula os seres ficcionais de sua biblioteca<br />

à ação e à perenidade.<br />

Cervantes, ao colocar D. Q. criando um mundo de ficção, ao<br />

parodiar livros de cavalaria, tendo a realidade (por exemplo, a dos moinhos)<br />

como ponto de partida, faz uma teoria-poética do que é uma obra literária, pois<br />

a realidade ficcional que cria se articula com o mundo “real” por semelhança<br />

ou contigüidade. Nesse processo, o conceito de mimese no Quixote, é uma<br />

prática, o que também torna a obra um modelo de romance para a posteridade.<br />

41<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


42 Cabe relembrar que, ao ler essa obra, nos colocamos diante de<br />

um discurso ideologicamente irônico, por isso é difícil saber quando ele é sério<br />

ou não, quando há humor ou o autor pretende apresentar-nos a sua real opinião<br />

ou combate uma idéia, pois o discurso literário se aproveita da alegoria, para<br />

romper normas: religiosas, políticas, sociais, literárias, etc.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Ester Abreu Vieira de Oliveira<br />

A leitura, como produto valorizado, como função social<br />

e discriminadora do saber prévio de cada leitor, de sua experiência de<br />

leitura, é vista no Quixote desde o seu prólogo até o fim do livro, no último<br />

pronunciamento do narrador, quando ele alude ao término de sua empresa<br />

e aos leitores e escritores futuros que poderiam vir a profaná-la: “Aqui ficarás<br />

pendurada desta espeteira, ó pena minha, que não sei se foste bem ou mal<br />

aparada, e aqui longos séculos viverás, se historiadores presunçosos e<br />

malandrinos te não despendurarem para te profanar [...]” (1981, p. 603).<br />

O tema da leitura no Quixote é uma atividade ambígua, pois lemos<br />

nós, leitores de carne e osso, e lêem outros, leitores de sonho. Esse processo já<br />

é uma teoria de leitura, uma arte de recepção do ato de ler, pois indica que uma<br />

obra literária se direciona a diferentes destinatários. São os leitores que buscam<br />

a distração ou a cultura intelectual e não o leitor-consumidor-indiferente. É ao<br />

leitor idealizado, aquele que se entrega à leitura por prazer, a quem Cervantes<br />

chama “desocupado” e nos fala no prólogo da primeira parte:<br />

Desocupado leitor, não preciso prestar juramento para que creias que<br />

com toda a minha vontade quisera que este livro, como filho do<br />

entendimento, fosse o mais formoso, o mais galhardo e discreto que<br />

pudesse imaginar: porém não esteve na minha mão contravir á ordem da<br />

natureza, na qual cada coisa gera outra que lhe seja semelhante […]<br />

(1981, p. 12).<br />

Por isso, não se pode deixar de lado o destinatário, diretamente<br />

idealizado pelo escritor, o leitor desocupado, de carne e osso. Também não se<br />

pode ignorar o personagem central da narrativa, o ocioso fidalgo manchego, o<br />

compulsivo leitor o qual não soube separar o mundo que o circundava do<br />

ficcional, o Cavaleiro Don Quixote, ou Alonso Quijano, o Bom, que afirmava<br />

que tinha uma grande biblioteca, mais de trezentos livros. Nem se pode desviar<br />

a vista dos personagens que, no interior da história, encontram, na leitura, uma<br />

terceira dimensão. Na superfície, para o leitor, está transparente a intenção de<br />

Cervantes de parodiar as novelas de cavalarias, apoiando-se na obra Amadis<br />

de Gaula. Essa função superficial é importante e se realiza por meio da ênfase<br />

que o escritor dá a esse fato, ao humor que provoca a paródia e à comicidade<br />

da aventura. Cervantes nos explica, indiretamente, o sentido profundo de sua<br />

obra, unindo teoria ou significação simbólica e execução artística, eliminando<br />

explicações diretas ou indiretas. Ele explicita a teoria, o que aproxima essa<br />

obra à arte contemporânea. É inquestionável a importância do livro para a


O Quixote: importância, utopia, personagens e o prazer de ler<br />

história da literatura, não pela história que conta, mas pela sua essência e pela<br />

representatividade de seus protagonistas, na metáfora da humanidade, revestida<br />

de ideal e de realidade.<br />

São testemunhas do êxito alcançado por essa obra não somente a<br />

variedade de reimpressões e traduções, mas os vários estudos que surgiram<br />

com base nela, pois, desde sua apresentação ao público, estimulou a leitura e<br />

adquiriu fama. Assim, não é exagerada a afirmativa do personagem Sansón<br />

Carrasco, na segunda parte, de que já haviam sido impressos mais de doze mil<br />

livros e que já era conhecido em Portugal, Barcelona e Valência e que, no seu<br />

modo de pensar, “não haveria nenhuma nação nem língua onde não fosse<br />

traduzido”.<br />

Repete-se: muitos dos personagens da obra lêem ou escrevem.<br />

Lêem a história de D. Q. e lêem livros de cavalarias no momento de ócio no<br />

palácio ou na taberna. Cervantes anteviu a leitura como prazer, regulando os<br />

processos anímicos, antes de Freud escrever Além do princípio do prazer,<br />

em que apresentou a teoria das sensações concretas do prazer e desprazer,<br />

ligadas ao EGO. Assim, durante a leitura de sua obra ou na leitura e (re)leitura<br />

dela, percebe-se que o prazer em alto grau é perigoso para a afirmação do<br />

organismo diante das dificuldades do mundo exterior. Prova disso é o processo<br />

mental pelo qual passou Alonso Quijano, por não saber substituir o princípio do<br />

prazer pelo princípio da realidade. E, não conseguindo o equilíbrio necessário<br />

para a conservação do EU, passou a adotar um outro EU, o do Quixote, em<br />

que reinava o princípio do prazer, que será atingido somente por forças malignas,<br />

insólitas, produzidas por alguma magia. Um exemplo de um processo mágico<br />

de desprazer está nos cap. V, VI e VII, da primeira parte, em que se narram os<br />

acontecimentos que anteciparam e os que se pospuseram à queima dos livros<br />

da biblioteca desse fidalgo manchego. Havia D. Q. voltado para casa, ferido e,<br />

enquanto dormia, os seus amigos e familiares (o clero, o bacharel, a ama e a<br />

sobrinha) queimaram quase todos os seus livros e fizeram uma parede fechando<br />

a porta da biblioteca. Quando despertou e verificou o desaparecimento de seu<br />

ambiente de maior prazer, foi informado de que o sábio Frestón havia levado<br />

todos os seus livros. Resignadamente, explicou que esse sábio encantador era<br />

um seu grande inimigo, por saber que ele deveria ter uma grande batalha com<br />

um cavaleiro, um protegido desse mago, e que, como o venceria, a despeito de<br />

todo o seu poder mágico, ele o perseguia.<br />

Cervantes não desconhecia a força que o leitor tem para o sucesso<br />

de uma obra. Assim, se a palavra escrita sustenta o processo de vida e um<br />

exemplo é a Bíblia, é o leitor que eterniza a escritura em sua leitura e (re)leitura<br />

no decorrer dos séculos. E, desde o prólogo, Cervantes não se esquece de<br />

seus leitores, mostrando-lhes o desejo de lhes ser agradável e de obter deles<br />

um julgamento sincero. Esse temor também aparece, quando o prologuista se<br />

43<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


44 refere à dificuldade que tem de escrever.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Ester Abreu Vieira de Oliveira<br />

No final do livro, o narrador, leitor do historiador Cide Hamete, de<br />

quem diz recontar a história, narra a morte de Alonso Quijano e aponta a sua<br />

vontade. O narrador não só reproduz o diálogo de D. Q. com a sua sobrinha,<br />

no qual declara que o seu juízo voltou e que reconhece “os disparates e os<br />

embelecos” da leitura de livros de cavalaria, mas também descreve o ato do<br />

testamento, narra os acontecimentos que antecedem à morte do herói e a sua<br />

atitude de renegar tais livros.<br />

Como todos os homens buscam a eternidade (na maioria das vezes,<br />

pela forma mais vital do homem: a da reprodução, pois a paternidade é uma<br />

maneira de não morrer), o escritor encontra, no destinatário, a sua forma de<br />

perenidade, que só existe pela leitura, e o leitor é o seu elemento estrutural.<br />

Logo, para ler o Quixote, naturalmente, necessita-se aproximar de sua época,<br />

não só pelo código lingüístico e historicidade do conteúdo próprio da época em<br />

que foi escrita a obra, mas também porque nela existem muitas referências<br />

a fatos, pessoas, obras, leituras, enfim, à vida da época do autor.<br />

Contudo, a distância histórica que, às vezes, dificulta a interpretação do leitor<br />

pode ser abrandada, se se procura decodificar a leitura com base nas<br />

características formais do texto. A estética da recepção demonstra que uma<br />

obra, no decorrer do tempo, traz novas e diferentes respostas para aqueles que<br />

a lêem, de acordo com a sua experiência e pensamento. Jorge Luis Borges<br />

afirma e teoriza que o diálogo, que o livro estabelece com o leitor, é infinito, e<br />

Ortega y Gasset, por sua vez, declara que a obra se consuma “completando a<br />

sua leitura”. Se, no princípio do século XVII, quase não se editavam livros de<br />

cavalarias, ainda que fossem muito lidos, Cervantes, lendo a sua essência,<br />

transfigura e enaltece a sua poesia, levando-a à sua obra, purificando-a,<br />

completando-a, revivendo-a. Coloca um leitor consumista 4 e dá vida a um<br />

gênero anacrônico e a aventuras inverossímeis. São os personagens secundários<br />

e o principal que valorizam o livro. No Cap. L, 1ª parte, discorda da opinião do<br />

canônico e fala sobre livros impressos de cavalaria e sobre o prazer que dá a<br />

sua leitura. No Cap. XXV, 1ª parte, na aventura na Sierra Morena, D. Q.<br />

explica a Sancho a liberdade poética e a técnica da representação mimética,<br />

com base num ponto “real”. Explica que assim como os vários nomes de heroínas<br />

dos romances de cavalaria, Amarílis, Filis, Diana, e outros nomes que os poetas<br />

designam, assim como os dramaturgos, não são pessoas de carne e osso, mas<br />

apoio poético, essa é a razão de ele poder transformar Aldonza em princesa e<br />

em pessoa de suma beleza: “tudo o que digo é assim, sem um til de mais nem<br />

menos; pinto-a na fantasia como a desejo [...]”. (1981, p. 145)<br />

4 Na primeira parte, Cap. VI, há uma referência a cem livros grandes e muito bem<br />

encadernados e outros pequenos da biblioteca de D. Q., só sobre o tema da cavalaria.


Terminamos afirmando que a importância que Cervantes dá à<br />

leitura pode-se observar, também, na organização da narrativa. No primeiro<br />

capítulo, o narrador faz, em um parágrafo, a caracterização do herói. Descreve<br />

os seus gostos, hábitos e familiares, seu nível social, sua idade, seu físico e seu<br />

nome. Nos sete parágrafos restantes do mesmo capítulo, apresenta a obsessão<br />

do protagonista pela leitura e as conseqüências dessa no seu comportamento,<br />

ou seja, faz a interação entre texto e leitor. A leitura afeta a vida de Alonso<br />

Quijano e de outros personagens que a valorizam de acordo com a sua<br />

experiência de vida ou identificação com a história. Quando lia o nosso fidalgo?<br />

O narrador diz que lia nos momentos de ócio e que esses eram muitos durante<br />

o ano. Logo a sua vida era só ler e por isso pôde desenvolver o seu poder<br />

criativo, dando vida às histórias que lia dia e noite nas numerosas páginas dos<br />

apinhados livros de sua biblioteca. Logo, a leitura é um instrumento de estímulo<br />

produtivo, desenvolve o intelecto, ativa células cerebrais, favorece a formulação<br />

de perguntas e o desenvolvimento da capacidade crítica e do processo onírico,<br />

próprio do ser humano.<br />

Referências<br />

O Quixote: importância, utopia, personagens e o prazer de ler<br />

CERVANTES, M. Saavedra. Dom Quixote de la Mancha. Tradução de<br />

Vizcondes de Castilho e Azevedo. São Paulo: Abril Cultural, 1981.<br />

FREUD, Sigmund. Más allá del principio del placer. In: ______Obras<br />

completas. Traducción del alemán por Luis Lopez-Ballesteros y de Torres.<br />

Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. tomo 3, p. 2507-2541.<br />

OLIVEIRA, Ester A.V. de. Um estudo cervantino. UFES - Revista de Cultura,<br />

Vitória, ano 15, n. 41-42, 1989, p. 25-50.<br />

ORTEGA Y GASSET, J. Meditaciones del Quijote. Comentario por Julián<br />

Marías. 2. ed. Madrid: Revista de Occidente, 1966.<br />

45<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


RECUPERAÇÃO E PRESERVAÇÃO DE NASCENTES NA<br />

MICROBACIA HIDROGRÁFICA DO RIO PERUÍPE SUL –<br />

REGIÃO EXTREMO SUL DA BAHIA<br />

Joana Farias dos Santos*<br />

A natureza está todo momento a serviço da humanidade,<br />

basta que o homem tenha sabedoria ao usar os recursos<br />

naturais.<br />

Henry David<br />

RESUMO<br />

A água é um dos elementos da natureza indispensável à da vida,<br />

sendo atualmente motivo de preocupação mundial. Frente ao<br />

exposto, o presente estudo objetivou recuperar e conservar duas<br />

nascentes pertencentes à Microbacia Hidrográfica do Rio Peruípe<br />

Sul. Escolheu-se duas nascentes, da bacia, em Ibirapuã/Ba, fezse<br />

o cercamento, da área de preservação permanente e em uma<br />

delas, a recomposição vegetal. Uma terceira nascente foi a<br />

testemunha. Analisou-se a qualidade da água com o Ecokit<br />

técnico, para os parâmetros OD, pH, Dureza Total e Amônia.<br />

Mediu-se a vazão com a Caixa Medidora; fez-se a recomposição<br />

vegetal com prática de covas. Os resultados foram OD, 2,5 a 7,0<br />

mg/l. pH, 6,5 a 7,0. Dureza Total, 20,0 a 70 de CaCO3. Amônia 0,5<br />

mg/l. Precipitação 5,8 a 206,2 mm. A vazão variou de 320 a 1000<br />

cm3/s. Conclui-se que os valores médios de Dureza Total, pH e<br />

Amônia encontram-se dentro dos padrões para água de<br />

nascentes; com base na Resolução CONAMA nº 20/86, as águas<br />

das nascentes estão fora dos padrões estabelecidos para OD.<br />

Nota-se uma correlação direta entre a precipitação e a vazão das<br />

nascentes. O cercamento pode contribuir na melhoria da infiltração<br />

de água no solo. Quanto à recomposição vegetal, como as mudas<br />

estão germinando, impossibilita uma análise efetiva dos<br />

resultados desta intervenção.<br />

Palavras-chave: Preservação de nascentes; Microbacia<br />

Hidrográfica; Rio Peruípe.<br />

* Joana Farias dos Santos é mestre em <strong>Desenvolvimento</strong> Regional e Meio Ambiente<br />

(Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC).


48 Apresentação<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Joana Farias dos Santos<br />

A água é um elemento natural fundamental para a manutenção da<br />

vida de todos os seres vivos e possui usos diversos. Diante dos fenômenos<br />

naturais e dos graves problemas ambientais, o homem passa a refletir sobre os<br />

seus atos; a escassez da água associada à sua degradação torna-se um fato<br />

relevante. A escassez de água, tanto em qualidade quanto em quantidade, será<br />

um dos graves problemas a serem enfrentados pela humanidade.<br />

Hoje existe uma quantidade suficiente de água para atender à<br />

demanda mundial. Entretanto, não havendo uma política de preservação dos<br />

mananciais de abastecimento que estão sendo ameaçados – o que provoca<br />

alteração no ciclo hidrológico – num futuro bem próximo, tal situação constituirá<br />

em uma ameaça de extinção desse recurso, às civilizações futuras.<br />

Na questão ambiental, a região do extremo sul da Bahia, área de<br />

inserção do projeto, por ser próxima do litoral, apresentava, no passado, Mata<br />

Atlântica como vegetação predominante e área de Restinga. É também uma<br />

região influenciada por questões culturais abrangentes, envolvendo a cultura de<br />

três estados, Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo, uma vez que a região do<br />

extremo sul da Bahia faz fronteira com Minas Gerais e Espírito Santo.<br />

Visto que o recurso natural “água”, no que diz respeito à quantidade<br />

e à qualidade, é de fundamental importância a recuperação das nascentes em<br />

propriedades rurais no extremo sul da Bahia, na Bacia Hidrográfica do Rio<br />

Peruípe. No entanto, percebe-se que estas nascentes encontram-se atualmente<br />

degradadas pela intervenção intensa dos proprietários rurais.<br />

Nas propriedades rurais, as nascentes são principalmente utilizadas<br />

como bebedouros para a dessedentação do gado. Nas áreas do entorno (área<br />

de preservação permanente das nascentes) são implantadas pastagens, algumas<br />

inclusive com gramíneas da espécie Brachiaria humidicola, que são pouco<br />

exigentes em relação à fertilidade do solo.<br />

Outro fator relevante é que a presença do gado, nas áreas de<br />

preservação permanente das nascentes, causa compactação do solo, pelo seu<br />

pisoteamento constante.<br />

A recuperação das nascentes é algo relevante para a<br />

sustentabilidade das propriedades rurais e melhoria na qualidade de vida das<br />

comunidades locais. O projeto “Recuperação e Preservação das Nascentes<br />

em propriedades rurais do extremo sul da Bahia”, na bacia do Rio Peruípe é<br />

promissor porque se insere no complexo contexto de degradação ambiental<br />

desenvolvido pelos habitantes da região que, sem conhecimento científico sobre<br />

as conseqüências da extração da madeira, superpastejo e queimadas, continuam<br />

explorando erroneamente as nascentes entre os diferentes municípios.<br />

O presente estudo teve, a priori, o objetivo de propor a recuperação


Recuperação e preservação de nascentes na microbacia hidrográfica do Rio Peruípe Sul –<br />

região extremo sul da Bahia<br />

e conservação de duas nascentes pertencentes à Microbacia Hidrográfica do<br />

Rio Peruípe Sul, que encontra-se inserida na Bacia Hidrográfica do Rio Peruípe,<br />

com intuito de ser um estudo piloto para ser empregado em outras bacias,<br />

projeto ou pela comunidade <strong>local</strong>, bem como utilizar os resultados da pesquisa<br />

para difusão de eventos. Possuindo, a posteriori, os seguintes objetivos<br />

específicos: delimitar a área de abrangência das nascentes, com posterior<br />

isolamento da área de entorno; levantar espécies vegetais nativas nas APP´s<br />

degradadas; monitorar a qualidade da água e vazões das nascentes; identificar<br />

as espécies que melhor se adeqüem às diferenças de umidade do solo<br />

(encharcados, úmidos, bem drenados); realizar a recomposição vegetal de<br />

espécies nativas pioneiras e clímax e de mudas depois do plantio, quando<br />

necessário.<br />

A área de estudo, geograficamente inseriu-se na Microbacia<br />

Hidrográfica do Rio Peruípe Sul, que encontra-se inserida na Bacia Hidrográfica<br />

do Rio Peruípe. Esta bacia envolve cinco municípios da região extremo sul da<br />

Bahia, sendo: Medeiros Neto, Ibirapuã, Caravelas, Teixeira de Freitas e Nova<br />

Viçosa, com uma população total estimada de 187.996 habitantes (IBGE, 2000),<br />

abrangendo uma área de 6.905 km 2 . Sendo georeferenciada de acordo com as<br />

coordenadas 39º a 41º de longitude e 17º a 18º de latitude Sul (BAHIA, 1997).<br />

As nascentes estudadas encontram-se georeferenciadas de acordo<br />

com as seguintes coordenadas: Fazenda Baronesa UTM 386438 e 8036408 L-<br />

W, com 178m de altitude; Fazenda Diamante UTM 387156 e 8038084 L-W e<br />

altitude 168m; Fazenda Cachoeirinha UTM 383868 e 8038312 L-W e 168m de<br />

altitude, conforme figura abaixo:<br />

Figura 1. Mapa de Localização das Nascentes<br />

Fonte: Roberto Carlos Fonseca (2005)<br />

A Bacia Hidrográfica do Rio Peruípe tem uma densa malha de<br />

drenagem em forma de leque, possui muitos tributários, destes, destacam-se o<br />

Rio Peruípe Sul e Peruípe Norte. O Rio Peruípe Norte, que nasce perto da<br />

cidade de Medeiros Neto, tem em seu sentido de escoamento Sudeste até o<br />

ponto de confluência com o Rio Peruípe Sul. Já O Rio Peruípe Sul nasce na<br />

49<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


50 cidade de Ibirapuã e possui sentido de escoamento Nordeste até sua confluência<br />

com Peruípe Norte. O ponto de confluência dos dois rios acontece<br />

aproximadamente há cinco quilômetros, a montante da cidade de Helvécia.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Joana Farias dos Santos<br />

Segundo Munõz (2000), a água doce e limpa é um recurso limitado.<br />

Mais de 97% da água da terra é salgada e encontra-se nos mares e oceanos.<br />

Aproximadamente dois terços da água disponível encontra-se distribuídas em<br />

geleiras e calotas polares. A água doce representa menos de 1% to total da<br />

terra e distribui-se na atmosfera, lagos, rios, riachos, terras úmidas e águas<br />

subterrâneas.<br />

Santos et al. (1992) afirmam que o consumo global de água está<br />

aumentando consideravelmente devido ao crescimento populacional e ao<br />

aumento da agricultura e da indústria. Em 1950, eram 1360 quilômetros cúbicos<br />

por ano, em 40 anos aumentou para 4.130 quilômetros cúbicos, sendo a agricultura<br />

a atividade que mundialmente apresenta o maior consumo, são gastos para a<br />

mesma, 69% da água doce contra 23% para a indústria e 8% para o uso<br />

doméstico). Por tanto, atualmente concentra-se os estudos que dizem respeito<br />

à recuperação da disponibilidade e conservação de águas nas áreas de<br />

abrangências das bacias hidrográficas que, segundo o Código das águas de 10/<br />

07/1934, e a Lei n° 9.433, de 08/01/1997, em seu CAPÍTULO V, referente a<br />

nascentes Art. 89, para efeitos deste Código, consideram-se “nascentes”, as<br />

águas que surgem naturalmente ou por indústria humana e segundo o Capítulo<br />

único, Art. 98 da referida Lei, são expressamente proibidos construções capazes<br />

de poluir ou inutilizar para o uso ordinário, a água do poço ou nascente alheia,<br />

a elas preexistentes.<br />

De acordo com o Código Florestal Brasileiro Lei Nº 4.771, de 15<br />

de Setembro de 1965, uma bacia hidrográfica é composta por vários pequenos<br />

cursos d’água, que definem as microbacias hidrográficas (ou sistemas naturais<br />

de drenagem). Nas partes altas de bacia existem pontos em que se pode<br />

encontrar as nascentes de rios. Normalmente estas áreas não poderiam ser<br />

ocupadas, devido à legislação de proteção ambiental; e é fundamental priorizar<br />

a arborização das áreas de cabeceira dos rios, uma vez que a vegetação tem<br />

grande capacidade de regular o impacto das chuvas, mantendo as águas nas<br />

partes altas da cidade e não provocando enchentes nas partes baixas.<br />

Mascarenhas (2005) afirma que o calor do sol, direto sobre o solo<br />

provoca o secamento do húmus e a eliminação de seus nutrientes. No solo<br />

seco, as partículas, sem a coesão exercida pela água, desprendem-se facilmente<br />

e são transportadas pelo vento, na forma de poeira, ou pelas chuvas. Já o<br />

desmatamento irracional facilita o desgaste do solo pela ação erosiva do vento e<br />

da água, e em grande escala traz outros prejuízos aos seres vivos; prejudica, por<br />

exemplo, à sobrevivência de animais da região, adaptados às condições da mata<br />

em que vivem.


Recuperação e preservação de nascentes na microbacia hidrográfica do Rio Peruípe Sul –<br />

região extremo sul da Bahia<br />

Assim, recuperação de nascentes é um instrumento relevante e<br />

consistente para a preservação do meio ambiente. Apesar de não solucionar o<br />

problema da poluição dos grandes rios, sem as nascentes limpas, é impossível<br />

implantar um projeto de despoluição dos grandes cursos d´água com efetivo<br />

sucesso. Recuperar nascentes é também uma maneira de proteger o meio<br />

ambiente urbano. Dentre os méritos de uma ação voltada à recuperação de<br />

nascentes está também a valorização, do ponto de vista econômico e social, de<br />

áreas até então deterioradas (OLIVEIRA, 2004).<br />

Escolheu-se, aleatoriamente, duas nascentes da Microbacia<br />

Hidrográfica do Rio Peruípe Sul, com vários estágios de degradação. Estas<br />

nascentes devem situar-se em pontos eqüidistantes de propriedades rurais.<br />

A área de cada nascente foi cercada num raio de 50 metros de<br />

área de preservação permanente em seu entorno, como salienta o Código Florestal<br />

Brasileiro – Lei nº 4771 (1965). Após o cercamento, foi feito o isolamento das<br />

áreas de entorno usando equipamentos topográficos (teodolito, bússola etc.).<br />

Fez-se o cercamento das duas nascentes e em uma delas, fez-se também a<br />

recomposição vegetal com espécies nativas da região. Uma terceira nascente<br />

pareada foi usada como testemunha.<br />

Fez-se o levantamento de espécies nativas através de metodologias<br />

florestais, as quais serão comparadas com os bancos de dados da Comissão<br />

Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira - CEPLAC/Bahia, para identificação<br />

das espécies a serem introduzidas na área.<br />

Para a qualidade de água, as análises foram realizadas empregandose<br />

o uso de equipamento de campo (usando o Ecokit técnico, da Alfa<br />

Tecnoquímica) seguindo técnicas científicas internacionais, recomendadas pelo<br />

Standet Metod (APHA-1996), totalizando uma coleta para cada estação do ano<br />

para análise dos parâmetros pH, Oxigênio Dissolvido, Dureza Total e Amônia.<br />

As vazões foram monitoradas por técnicas de hidráulica, utilizando<br />

o método da caixa, onde calculou-se o tempo gasto para preencher um recipiente<br />

(caixa), de 20 litros. Pode-se, também, calcular a vazão pela metodologia de<br />

Ferraz (2001).<br />

Na recomposição vegetal utilizou-se a prática de covas, respeitando<br />

o espaçamento recomendado por Pinto (2003), sendo aproximado de 3,0 x 2,6m,<br />

dependendo do banco de sementes da área e do estágio de degradação. As<br />

covas terão dimensão de 30x30x30 ou 50x50x50 (Davide et. al. 2002).<br />

Os dados encontrados serão analisados utilizando-se o pacote<br />

estatístico SPSS e Excel, correlacionando-se os dados de qualidade de água<br />

com os valores legalmente estabelecidos e a diversidade de espécies pioneiras<br />

e clímax.<br />

51<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


52 Analisou-se a qualidade da água quanto aos seguintes parâmetros:<br />

Oxigênio Dissolvido, pH, Dureza Total e Amônia.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

a) Oxigênio Dissolvido (OD), encontrou-se para os meses analisados, um<br />

resultado que variou de 2,5 a 7,0 mg/l alcançando uma média geral de 5,2 mg/<br />

l para OD. Conforme Tabela 1 e Figura 2.<br />

TABELA 1<br />

RESULTADO DO OXIGÊNIO DISSOLVIDO (MG/L) POR<br />

PONTOS DE COLETAS<br />

Meses N1 N2 N3 Média<br />

Out 2,5 6,0 3,5 4,0<br />

Nov 3,0 7,0 7,0 5,7<br />

Dez 6,0 6,3 5,5 5,9<br />

Fonte: Dados da pesquisa (2004)<br />

Oxigênio Dissolvido (PPM)<br />

8<br />

6<br />

4<br />

2<br />

0<br />

Joana Farias dos Santos<br />

Out Nov Dez<br />

Figura 2. Variação do Oxigênio Dissolvido (OD)<br />

Fonte: Dados da pesquisa (2004)<br />

b) Potencial Hidrogeniônico – pH, encontrou-se para os meses analisados,<br />

uma variação de 6,5 a 7,0 e uma média geral de 6,5. Conforme Tabela 2 e<br />

Figura 3.<br />

N1<br />

N2<br />

N3<br />

Média


Recuperação e preservação de nascentes na microbacia hidrográfica do Rio Peruípe Sul –<br />

região extremo sul da Bahia<br />

TABELA 2<br />

RESULTADO DO POTENCIAL HIDROGENIÔNICO – PH POR<br />

PONTOS DE COLETAS<br />

Meses N1 N2 N3 Média<br />

Out 6,5 6,5 6,5 6,5<br />

Nov 6,5 6,5 6,5 6,5<br />

Dez 7,0 6,5 6,5 6,5<br />

Jan 6,5 6,5 6,5 6,5<br />

Fev 6,6 6,5 6,5 6,5<br />

Fonte: Dados da pesquisa (2004)<br />

Ph<br />

7,2<br />

7,0<br />

6,8<br />

6,6<br />

6,4<br />

6,2<br />

6,0<br />

Out Nov Dez Jan Fev<br />

Figura 3. Variação do Potencial Hidrogeniônico – pH<br />

Fonte: Dados da pesquisa (2004)<br />

c) Dureza Total, encontrou-se para os meses analisados, uma variação de<br />

20,0 a 70,0 com uma média geral de 43,3 mg/l de CaCO 3 .para Dureza Total.<br />

Conforme Tabela 3 e Figura 4.<br />

TABELA 3<br />

RESULTADO DA DUREZA TOTAL (MG/L DE CACO 3 ) POR<br />

PONTOS DE COLETAS<br />

N1<br />

N2<br />

N3<br />

Média<br />

Meses N1 N2 N3 Média<br />

Out 70,0 50,0 40,0 53,3<br />

Nov 50,0 20,0 30,0 33,3<br />

Dez 60,0 40,0 30,0 43,3<br />

Fonte: Dados da pesquisa (2004)<br />

53<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


54<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Dureza<br />

80<br />

60<br />

40<br />

20<br />

0<br />

Out Nov Dez<br />

Figura 4. Variação da Dureza Total<br />

Fonte: Dados da pesquisa (2004)<br />

d) Amônia (mg/l), encontrou-se para os meses analisados, uma média geral<br />

de 0,5 mg/l para Amônia. Conforme Tabela 4 e Figura 5.<br />

TABELA 4<br />

RESULTADO PARA AMÔNIA (MG/L) POR PONTOS DE<br />

COLETAS<br />

Amônia (Mg/L)<br />

2<br />

1<br />

0<br />

Joana Farias dos Santos<br />

Out Nov Dez<br />

Figura 5. Variação da Amônia (mg/l)<br />

Fonte: Dados da pesquisa (2004)<br />

N1<br />

N2<br />

N3<br />

M édia<br />

Meses N1 N2 N3 Média<br />

Out 1,0 0,5 0,5 0,7<br />

Nov 0,5 0,5 0,5 0,5<br />

Dez 0,5 0,5 0,5 0,5<br />

Fonte: Dados da pesquisa (2004)<br />

N1<br />

N2<br />

N3<br />

M édia


Recuperação e preservação de nascentes na microbacia hidrográfica do Rio Peruípe Sul –<br />

região extremo sul da Bahia<br />

e) Precipitação(mm), a precipitação de maio/2004 a maio/2005 variou de<br />

5,8mm a 206,2mm com uma média geral de 82mm. De acordo com a Tabela 5<br />

e Gráfico 1.<br />

TABELA 5<br />

RESULTADO PARA PRECIPITAÇÃO(MM) DE MAIO/03 À<br />

MAIO/04<br />

250,0<br />

200,0<br />

150,0<br />

100,0<br />

50,0<br />

0,0<br />

Meses Precipitação(mm)<br />

Mai 38,3<br />

Jun 59,6<br />

Jul 82,3<br />

Ago 9,7<br />

Set 5,8<br />

Out 34,2<br />

Nov 83,3<br />

Dez 206,2<br />

Jan 95,7<br />

Fev 133,0<br />

Mar 106,7<br />

Abr 52,6<br />

Mai 158,6<br />

Fonte: CEPLAC, Escritório Local (2004)<br />

Mai<br />

Jul<br />

Set<br />

Nov<br />

Jan<br />

Mar<br />

Mai<br />

Gráfico 1. Variação da Precipitação (mm)<br />

Fonte: CEPLAC, Escritório Local (2004)<br />

Precipitação(mm)<br />

f) Vazão(cm3/s): encontrou-se para os meses analisados, valores para a vazão<br />

que variou de 320 a 1000 cm3/s, com uma média geral de 660 cm3/s. De<br />

acordo com a Tabela 6 e Gráfico 2.<br />

55<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


56 TABELA 6<br />

RESULTADO PARA VAZÃO(CM3/S) POR PONTOS DE COLETAS<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

1200<br />

1000<br />

800<br />

600<br />

400<br />

200<br />

0<br />

N1 N2 N3 M édia<br />

Gráfico 2. Vazão (cm 3 /s)<br />

Fonte: Dados da pesquisa (2004)<br />

Joana Farias dos Santos<br />

Vazão das Nascentes (cm3/s)<br />

Meses N1 N2 N3 Média<br />

Out 320 700 330 450<br />

nov 330 330 330 330<br />

Dez 860 860 860 860<br />

Abril 1000 1000 1000 1000<br />

Fonte: Dados da pesquisa (2004)<br />

Após tabulação e análise dos resultados, conclui-se que os valores<br />

médios de Dureza Total, pH e Amônia encontram-se dentro dos padrões normais<br />

estabelecidos para água de nascentes brasileiras, de acordo com Esteves (1998);<br />

com base na Resolução CONAMA nº 20/86, as águas de tais nascentes<br />

encontram-se fora dos padrões estabelecidos para Oxigênio Dissolvido, para<br />

águas brasileiras, cujo valor deve ser superior a 6 mg/O 2 . Resultados que se<br />

justificam em razão de as nascentes apresentarem um volume de água represada<br />

e por haver o carreamemto de matéria orgânica das encostas por falta de uma<br />

efetiva cobertura vegetal, assim como, presença de matéria orgânica em<br />

decomposição imersa na água em virtude do não-raleamento das espécies<br />

freatóficas presentes.<br />

Observou-se ao analisar as precipitações na área estudada, a<br />

existência de uma correlação direta entre a precipitação e a vazão das nascentes,<br />

resultados que podem ser nitidamente percebidos ao se comparar os dados de<br />

vazão e precipitação para os meses de outubro, novembro e dezembro.<br />

Out<br />

nov<br />

Dez<br />

Abril


Recuperação e preservação de nascentes na microbacia hidrográfica do Rio Peruípe Sul –<br />

região extremo sul da Bahia<br />

Quanto ao cercamento, observa-se que, ele por si só, representa<br />

possibilidade de melhoria na infiltração de água no solo, em função de não<br />

haver pisoteio do gado e compactação na área de entorno da nascente.<br />

Com relação à recomposição vegetal, conclui que, em função das<br />

mudas plantadas se encontrarem em fase de germinação, não possibilita que<br />

se faça uma análise efetiva dos resultados desta intervenção.<br />

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WORKS ASSOCIATION AND WATER POLLUITION CONTROL<br />

FEDERATION. Standard methods for the examination of wastwater and<br />

water 18 th. Edition. Washington, 1991. 1587 p.<br />

BAHIA, Secretaria de Recursos Hídricos. Plano Diretor de Recursos<br />

Hídricos: Bacia do Extremo Sul. Hydros, 1997. v. 1, 489 p.<br />

BARROS, Antônio A.A. Economia de Recursos Hídricos: aspectos<br />

conceituais da tributação pelo uso da água no Brasil, antecedentes e perspectivas<br />

e a experiência internacional. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, dos<br />

Recursos Hídricos e da Amazônia Legal / Secretaria de Recursos Hídricos,<br />

1998.<br />

BRASIL. Código Florestal Brasileiro. Lei Nº 4.771, de 15 de Setembro de<br />

1965. Publicado em D.O.U. de 16/09/65.<br />

BRASIL. Resolução n.º 20. O Conselho Nacional do Meio Ambiente, no uso<br />

das atribuições que lhe confere o art. 7º, inciso IX, do Decreto 88.351, de 1º de<br />

junho de 1983, e o que estabelece a Resolução/CONAMA/Nº 003, de 05 de<br />

junho de 1984. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 18<br />

jun. 1986.<br />

BRASIL, Política do Meio Ambiente, Recursos Hídricos. Lei 9433 de 08/<br />

01/1997 - Lei Ordinária. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria<br />

o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos, regulamenta o inciso<br />

XIX do artigo 21 da Constituição Federal, e altera o artigo 1 da lei 8.001, de 13<br />

de março de 1990, que modificou a Lei 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Pub<br />

09/01/1997 000470 1 Diário Oficial da União.<br />

DAVIDE, A. C. ; PINTO, L. V. A. ; MONNERAT, P. F. ; BOTELHO, S. A.<br />

Nascente: o verdadeiro tesouro da propriedade rural: o que fazer para conservar<br />

as nascentes nas propriedades rurais. Lavras, MG: UFLS/CEMAC, 2002.<br />

FERRAZ, Epaminondas S. B( Coord. ); MARTINELLI, Luiz A.; VICTÓRIA,<br />

Reynaldo Luiz. Coletânea do “Notícias PiraCena”: a bacia do Rio Piracicaba.<br />

Piracicaba – SP: C.N., 2001. 182 p.<br />

57<br />

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58 MASCARENHAS, Sérgio P. Água. Disponível em http://www.geocities.com/<br />

irrigafertil/. Acessado em 05 de setembro de 2004.<br />

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Joana Farias dos Santos<br />

MUNÕZ, Héctor Raúl (organizador); BARTH, Flávio T; SANTOS, José L.;<br />

MACIEL FILHO, Albertino Alexandre. Interfaces da gestão de recursos<br />

hídricos: Desafios da Lei das Águas de 1997. 2 edição . Brasíli: Secretaria de<br />

Recursos Hídricos, 2000. 421 p.<br />

OLIVEIRA, Patrícia Laczynski; Fernanda, MORETTI, Ricardo.<br />

<strong>Desenvolvimento</strong> urbano. Disponível em http://www.polis.org.br/publicacoes/<br />

dicas/. Acessado em 31 ago. 2004.<br />

PINTO, L. V. A. Caracterização física da sub-bacia do ribeirão Santa<br />

Cruz, MG: Universidade Federal de Lavras, 2003.<br />

______. Propostas de recuperação de suas nascentes. Universidade Federal<br />

de Lavras, 2003, 165 p. Dissertação de Mestrado.<br />

SANTOS, H.F.; MORITA, D. M., GRULL, D., RODRIGUES, J.M.C.<br />

PIMENTEL, J.S., et. al. Reuso de águas. Revista DAE. SABESP. 1992.


A FILOLOGIA E A CRÍTICA TEXTUAL:<br />

COMENTÁRIOS DE TEXTOS REGIONAIS<br />

Sélcio de Souza Silva*<br />

RESUMO<br />

Este artigo pretende mostrar a importância da Interpretação e<br />

Explicação de Textos como atividades básicas aos estudos<br />

filológicos. É o filólogo quem, ao debruçar-se sobre um texto, um<br />

manuscrito antigo ou uma edição moderna, nos garantirá não só<br />

a autenticidade do documento quanto à segurança das<br />

informações para outros pesquisadores, a exemplo dos literatos<br />

e críticos da literatura. Buscar-se-á, ao desenvolver este texto,<br />

evidenciar a estreita relação que há entre língua e literatura,<br />

filologia e crítica textual. Na verdade, quando o filólogo tece<br />

comentários ou explicação de textos, tarefa da Filologia, ciência<br />

que abrange diversas atividades, principalmente as de ordem<br />

lingüística e de conteúdo, ele está “abrindo caminhos” para a<br />

garantia de informações seguras e imprescindíveis à Literatura.<br />

Palavras-chave: Filologia; crítica textual; língua; interpretação e<br />

explicação de textos literários.<br />

Considerações iniciais<br />

Antes mesmo de abordar o assunto em questão, gostaria de<br />

mencionar, como fala introdutória, a relevância que têm a história literária e<br />

suas pesquisas. Estas, além de serem objeto da preocupação da Filologia são,<br />

de certa forma, amparadas pelas atividades desta, considerando que todos os<br />

textos interessam à Filologia, principalmente os literários, uma vez que esta<br />

ciência, desde a sua origem, tem como missão a explicação de textos.<br />

Até o fim do século XVIII, a crítica estética ainda se fazia valer,<br />

sempre alegando como deveria ser uma obra de arte de um determinado gênero,<br />

em um determinado período. Geralmente, esse modelo tendia ser imutável e<br />

absoluto, fornecendo preceitos e regras para a poesia e prosa, sempre levando<br />

* Sélcio de Souza Silva é mestre em Gestão Educacional.


60 em consideração o modelo a ser imitado dentre um grupo de obras consideradas<br />

perfeitas.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Sélcio de Souza Silva<br />

Com o surgimento do Romantismo, a antiga crítica estética, cuja<br />

preocupação era simplesmente com métodos e regras, deixa efetivamente de<br />

imperar, dando lugar a outros sentidos e formas, sobretudo, ao sentido histórico,<br />

bem como suas expressões populares e, passa-se a reconhecer não só o belo<br />

fixo e determinado, mas, além disso, uma nova concepção do belo das obras<br />

artísticas de cada época e região, a partir da relação que se faz com os povos<br />

e sua cultura.<br />

Nosso interesse, nesse trabalho, é mostrar que, a partir do texto<br />

literário, seja ele a prosa ou a poesia, os elementos lingüísticos e de conteúdo,<br />

presentes nesses textos, são explicados, de forma mais segura pela crítica<br />

textual. Torna-se, assim, mais fácil o entendimento de alguns aspectos<br />

geográficos, históricos e cultural, presentes nos referidos poemas, quando o<br />

crítico textual faz uso da interpretação e explicação de textos de difícil<br />

entendimento, principalmente em se tratando de textos manuscritos antigos,<br />

muitas vezes deteriorados.<br />

Sabemos também que a explicação ou comentário de textos sempre<br />

foi tarefa da Filologia porque, na verdade, quando se trata de textos de difícil<br />

compreensão, sejam eles de ordem lingüística (língua pouco conhecida,<br />

neologismos, conteúdo) ou de conteúdo, como o caso de textos religiosos ou<br />

literários (v. g., Os Lusíadas), sua leitura dificulta a compreensão daquele leitor<br />

que, desprovido, muitas vezes, de conhecimentos prévios de fatos históricos,<br />

geográficos, mitológicos, etc, não consegue fazer as inferências necessárias<br />

para a sua compreensão.<br />

Podemos afirmar que a Crítica Textual é a tarefa fundamental<br />

para os estudos filológicos, isto é, ela oferece à Filologia informações sobre o<br />

estabelecimento dos textos de acordo com a forma mais próxima possível da<br />

vontade do autor.<br />

Nesse sentido, os historiadores, literatos e pesquisadores, de modo<br />

geral, que têm por objeto ou ponto de partida a investigação do texto, precisam<br />

das informações obtidas através da edição crítica e da interpretação dos textos;<br />

o que lhes garantem maior segurança às suas teorias.<br />

Para melhor ilustrarmos o que queremos expor, valemo-nos do<br />

exercício que os alunos fazem rotineiramente na aprendizagem da língua. Ao<br />

exercitá-la (referimo-nos à escrita), o professor de língua faz uso da explicação<br />

e interpretação de textos, atividades não-estranhas aos alunos e professores<br />

desde as séries iniciais do Ensino Fundamental.<br />

Em se tratando dos textos regionais, percebemos que, ao fazer a<br />

leitura dos textos poéticos, o leitor deparar-se-á diante de termos e vocábulos


A Filologia e a crítica textual: comentários de textos regionais<br />

desconhecidos da grande maioria brasileira que, por se tratar de uma<br />

determinada região, e trazer em suas construções, significados próprios – além<br />

do estilo do autor – tornam-se, muitas vezes, desconhecidos.<br />

Pressupõe-se que, ao ler, esse leitor adquira conhecimentos<br />

culturais, geográficos e históricos, por meio de uma leitura descritiva, como é o<br />

caso dos textos literários, embora muitas vezes isso não é garantia de uma<br />

leitura cabal. Por outro lado, quando se faz explicação ou comentário de textos,<br />

com base lingüística, não significa necessária e simplesmente um meio de facilitar<br />

a vida do leitor, como um fastfood, mas, pelo contrário, para torná-lo mais bem<br />

informado sobre o assunto que, pensamos, já sê-lo adquirido como leitura prévia.<br />

Assim, não é puramente para que se compreenda o conteúdo material desses<br />

textos, mas, conforme Silva “apreender-lhes as bases psicológicas, sociológicas,<br />

históricas e sobretudo estética” (SILVA, 2005, p. 14).<br />

Quando nos referimos à poesia, a questão se dificulta mais, pois<br />

como o texto poético dá margem a infinitas interpretações, percebe-se também<br />

que a sua construção é muito mais marcada de vocábulos rebuscados ou de<br />

terminologia equivocada, o que nem sempre significa o que o dicionário define.<br />

Daí, o uso da linguagem figurada, onde, intencionalmente, o autor oculta-nos o<br />

verdadeiro sentido do seu texto sob várias aparências. Utiliza-se de recursos<br />

da estilística, dando vazão a múltiplas interpretações. Percebemos em algumas<br />

interpretações de textos bíblicos que dão margem, ausentes de fatores culturais<br />

ou ao cargo da livre interpretação, a várias interpretações e, conseqüentemente,<br />

se justifica o surgimento da pluralidade de movimentos religiosos e seus variados<br />

credos.<br />

Além disso, cabe ao filólogo alguns questionamentos, ao depararse<br />

com um manuscrito com texto literário e buscar explicações de ordem<br />

lingüística, se o vocabulário ou os termos, de caráter regional, que são usados,<br />

são de leituras prévias e adquiridos de outros autores. E quais seriam esses<br />

autores que, possivelmente, poderiam ter influenciado na construção dos textospoéticos?<br />

Quais são, possivelmente, suas leituras? Como tecer comentários a<br />

uma obra de 1ª/2ª edição, cujo espaço de tempo ainda é pequeno e não<br />

precisamos reconstruir o texto como acontecem com alguns manuscritos antigos<br />

que, ao serem salvos, precisam ser, minuciosamente, reconstruídos? Em o<br />

autor estando em vida, neste caso, provavelmente, poderia estar nos<br />

respondendo ou, a partir de uma entrevista escrita já feita, poderíamos estar<br />

nos informando? Mas quando não se encontra mais conosco o autor, e este,<br />

por outras razões nunca deu entrevista, ou pouca coisa deixou-nos de registros<br />

manuscritos? Por onde começar? Pela obra? Na verdade, os textos modernos,<br />

com edições modernas, também são motivos de análise da Filologia e, para<br />

isso, faz-se mister que o filólogo tenha em mãos o maior número de informações,<br />

sejam elas, no atual contexto, através da mídia, da Internet, ou de informações<br />

61<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


62 que, aparentemente, contrariam aos tradicionais manuscritos, quando estes<br />

muitas vezes nos faltam, para textos mais próximos de nós, assessorados<br />

tecnologia, descartando até mesmo o papel.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

A explicação de textos e a filologia<br />

Sabemos que a explicação de textos já foi praticada desde a<br />

Antigüidade, principalmente na Idade Média e Renascença, onde boa parte<br />

dos textos escritos foram classificados como comentários. Podemos perceber<br />

isso nos manuscritos ou em livros religiosos, à direita ou à esquerda, acima ou<br />

abaixo da página, em letras menores. O professor José Pereira da Silva, em<br />

artigo intitulado “Critica Textual e Literatura”, nos explica que o “comentário”<br />

pode conter toda sorte de coisas: explicações de termos difíceis; resumos<br />

ou paráfrases do pensamento do autor; remissões a outras passagens onde<br />

o autor diga algo de parecido; referências a outros autores que falaram do<br />

mesmo problema ou empregaram um torneiro de estilo semelhante;<br />

desenvolvimento do pensamento, em que o comentador faz entrar suas<br />

próprias idéias ao explicar as do autor; exposição do sentido oculto, se o<br />

texto for, mesmo presumidamente, simbólico (SILVA, 2005, p. 16).<br />

E mais adiante:<br />

Sélcio de Souza Silva<br />

Um comentador moderno fornece, em primeiro lugar, explicações<br />

lingüísticas das passagens em que uma palavra ou uma construção as<br />

exijam; discute as passagens cujo teor seja duvidoso; dá esclarecimentos<br />

sobre os fatos e personalidades mencionadas no texto; tenta facilitar a<br />

compreensão das idéias filosóficas, políticas, religiosas, assim como<br />

das formas estéticas que a obra contém e, naturalmente, se servirá do<br />

trabalho daqueles que o precederam no mesmo afã, citando-os, amiúde,<br />

textualmente (SILVA, 2005, p. 17).<br />

A Filologia é a ciência que cuida da cultura dos povos, preservada<br />

através de sua língua registrada em textos cientificamente editados. Estes textos,<br />

por sua vez, devem impreterivelmente ser editados ou reproduzidos de acordo<br />

com as técnicas do trabalho filológico da Crítica Textual.<br />

Não nos resta dúvida que é através da Filologia que se estuda a<br />

etimologia, a evolução histórica das palavras, etc, no propósito de que, a partir<br />

dessas informações, possamos compreender a evolução do conhecimento e do<br />

pensamento humano. Sem a Filologia, portanto, não teríamos hoje as edições<br />

dos antigos textos sagrados, tão importantes para a preservação da cultura e<br />

da religião de uma nação, nem mesmo a literatura clássica dos gregos e dos<br />

romanos, a exemplo de Ilíada, Odisséia e Eneida, etc.<br />

César Nardelli Cambraia cita-nos, segundo o dicionário Houaiss,<br />

quatro definições para o termo filologia. Buscamos, aqui, aquela definição mais<br />

próxima da nossa proposta defendida, ou seja, o estudo do texto ou interpretação


do texto (não necessariamente antigos) e a utilização da literatura e sua história<br />

como uma das técnicas imprescindíveis para a investigação filológica:<br />

estudo científico de textos (não obrigatoriamente antigos) e<br />

estabelecimento de sua autenticidade através da comparação de<br />

manuscritos e edições, utilizando-se de técnicas auxiliares (paleografia,<br />

estatística para datação, história literária, econômica etc.), esp. para a<br />

edição de textos (CAMBRAIA, 2005, p. 14).<br />

Não podemos negar a dificuldade que ainda temos da compreensão<br />

mais clara da definição do termo filologia, principalmente em se tratando da<br />

crítica textual, uma vez que sua função é basicamente a restituição da forma<br />

genuína dos textos, bem como sua transmissão, fixação, interpretação e edição.<br />

Por outro lado, não podemos negar a preocupação da filologia com o estudo de<br />

história da língua. Na verdade, desde a Grécia antiga essa dificuldade de<br />

compreensão era também evidente, pois o termo já apresentava sentido diversos<br />

uma vez que Philologia é a parte das ciências que tem por objeto as palavras e<br />

sua propriedades.<br />

Ainda no século XVIII, o termo continua abrangente, ganhando<br />

sentidos polissêmicos, adquirindo significados como o estudo das letras humanas,<br />

começando da gramática, caminhando pela eloqüência Oratória, pela Poética,<br />

pela História antiga e moderna, pela interpretação, pela crítica literária.<br />

Resta-nos, portanto, a definição de Herrero (Apud CAMBRAIA,<br />

2005, p. 16) para filologia como “estudo do que é necessário para conhecer a<br />

correta interpretação de um texto literário”.<br />

Já no século XX, segundo Cambraia, ao citar Vasconcelos, esse<br />

termo é utilizado, sobretudo com enfoque “no estudo da língua, ficando a<br />

interpretação dos textos como parte acessória.” Nesse sentido, trata-se do<br />

“estudo da língua em toda a sua amplitude, no tempo e no espaço, e<br />

acessoriamente o da literatura, olhada sobre tudo como documento formal da<br />

mesma língua” (Vasconcelos, apud CAMBRAIA, 2005, p. 17).<br />

diz que<br />

A Filologia e a crítica textual: comentários de textos regionais<br />

E, por fim, o mesmo autor, na definição de filologia portuguesa, no<br />

o estudo científico, histórico e comparado da língua nacional em toda a<br />

sua amplitude, não só quanto à gramática (fonética, morfologia, sintaxe)<br />

e quanto à etimologia, semasiologia, etc., mas também como órgão da<br />

literatura e como manifestação do espírito nacional (Apud CAMBRAIA,<br />

2005, p. 17).<br />

A preservação da cultura dos povos através da língua<br />

Nenhuma ciência como a Filologia e a Lingüística se preocuparam<br />

63<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


64 tanto, desde suas origens, com a preservação da cultura dos povos. Isso se<br />

deve ao estudo, em particular, da língua. Para a última, a preocupação envolve<br />

a língua em seu aspecto oral, enquanto que para a primeira, a preocupação é<br />

de âmbito textual.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Sélcio de Souza Silva<br />

A Filologia, desde a sua origem, edita, interpreta e explica textos<br />

de ordem literária e filosófica, a partir de manuscritos antigos ainda bem<br />

conservados. Ela é, por sua vez, disciplina auxiliar a todas outras, pois é através<br />

dela que a memória cultural de um povo se preserva ou se redescobre na<br />

sutileza da interpretação dos textos preservados em edições tratadas<br />

cientificamente.<br />

Ao estudar a etimologia das palavras, os filólogos buscam os seus<br />

significados mais primitivos, reinterpretando as diversas alterações que sofreram<br />

na forma e no sentido para se adaptarem às diversas comunidades de falantes<br />

(no espaço, no tempo e nas diversas classes sociais), para mostrar que a língua<br />

é a expressão mais legítima da cultura de um povo, tanto que as palavras que<br />

se tornam desnecessárias em cada geração caem no esquecimento e surgem<br />

espontaneamente outras para suprirem as novas necessidades.<br />

Do ponto de vista geográfico, a Filologia se preocupa em interpretar<br />

os valores culturais de cada comunidade de falantes, registrando os fatos<br />

lingüísticos (ou dialetais) que lhes são mais peculiares e oferecendo grande<br />

contribuição aos estudos etnográficos e de diversas outras especialidades. A<br />

Filologia, em seu estudo diacrônico, se ocupa da história da língua propriamente<br />

dita (a gramática histórica) e da história de seus falantes ou dos fatos culturais<br />

que mais tiveram relevância e atuaram na aceleração e retardamento da sua<br />

evolução.<br />

O filólogo e a filologia se põem a refletir sobre as diversas formas<br />

de criação de novas palavras, como, por exemplo, o empréstimo de uma língua<br />

de especialidade para outra, de estrangeirismos tomados das línguas dos povos<br />

que se destacarem em cada área do conhecimento ou em cada especialidade,<br />

etc.<br />

Os textos filologicamente trabalhados fornecem dados que tornam<br />

possível o fomento de uma política do idioma com vistas a garantir a identidade<br />

nacional, uma vez que a língua é o fator preponderante na definição de uma<br />

nacionalidade ou mesmo restabelecer elos comuns de povos que já conviveram<br />

num mesmo espaço geográfico, como é o caso dos textos galegos, portugueses<br />

e galego-portugueses. A gramaticalização das línguas vernáculas e seu ensino<br />

valoriza língua, assim como a crítica literária, ambas preocupadas com a<br />

descrição segura e simples dos dialetos e dos estilos mais prestigiados.<br />

A língua, como um produto da ação humana, nos proporciona a<br />

construção da história de um povo e sua identidade cultural. Partindo do


pressuposto de que ela é um produto social, e jamais deixará de sê-lo, nas suas<br />

múltiplas diferenças, damos-lhe um caráter de unidade (quando reconhecida<br />

oficialmente) e de diversidade (quando usadas nos diversos espaços sociais e<br />

geográficos e em situações histórico-político-culturais.<br />

Sabemos que as expressões regionais expressam a mentalidade,<br />

costumes, crenças, religiosidade, as histórias de um determinado povo e são<br />

registrados em sua literatura. É por meio dos termos regionais que percebemos<br />

os fatos sociais, o aspecto geográfico, a cultura e a história de cada um que<br />

domina determinado dialeto <strong>local</strong>. Para Bragança Jr., o conhecimento da história<br />

de um povo, o que ele pensa, ou como se expressa resumem-se no grande<br />

número de expressões populares, “portadoras das vivências de uma ou mais<br />

geração que funcionam como instrumentos de conduta aptos para ser aplicados<br />

no cotidiano” (1977, p. 240).<br />

Em suma, ao estudarmos a língua, torna-se imprescindível o<br />

conhecimento de dois aspectos lingüísticos: o lexical e o semântico, para a<br />

formação lingüística de um determinado povo, ponto indiscutível para o processo<br />

de comentário à explicação de textos. O primeiro (lexical) depende<br />

exclusivamente do dinamismo da língua que, em seu processo de evolução,<br />

permite o surgimento de novas palavras e, conseqüentemente, novos<br />

significados. O segundo (semântico) ampara-se no estudo do significado que<br />

atribuímos às palavras de acordo com sua evolução, pois são várias as<br />

transformações ou criações que um determinado termo perde ou ganha no<br />

decorrer de tempo, a depender da sua contextualização. Nesse sentido, ao<br />

analisarmos determinado termo, inserido dentro de textos literários regionais,<br />

torna-se necessário que verifiquemos, a priori, suas raízes etimológicas, a<br />

partir dos estudos filológicos.<br />

Referências<br />

A Filologia e a crítica textual: comentários de textos regionais<br />

CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 2005.<br />

ELIA, Sílvio. A crítica textual em seu contexto sócio-historico. In.: Anais do<br />

III Encontro Ecdótica e Crítica Genética. João Pessoa, 1993, pp. 57 – 64.<br />

PICCHIO, Luciana STEGAGNO. A Lição do texto: filologia e literatura. São<br />

Paulo: Martins Fontes, 1979.<br />

SILVA, José Pereira da. Critica textual e edições de textos. Rio de Janeiro:<br />

Edição do Autor, 2005.<br />

SPAGGIARI & PERUGI, Bárbara & Maurizio. Fundamentos da crítica<br />

textual. Rio de Janeiro: Lucerna. 2004.<br />

SPINA, Segismundo. Introdução à edótica. São Paulo: Ars Poética, 1994.<br />

65<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


UMA PERSONAGEM QUE DEU O QUE FALAR<br />

RESUMO<br />

Vanda Luiza de Souza Netto*<br />

Este artigo pretende destacar alguns aspectos do estudo<br />

onomástico em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado<br />

de Assis, selecionando o nome da personagem Plácida e as<br />

possíveis implicações significativas percebidas na obra e nos<br />

múltiplos recursos utilizados na construção da personagem,<br />

dentre elas a escolha do nome.<br />

Palavras–chave: Onomástico; significado; plácida; dependência;<br />

contexto social.<br />

A análise onomástica tem sido objeto de estudo desde a<br />

Antigüidade, o que podemos atestar pelo texto de Platão, intitulado Crátilo.<br />

Este registro clássico tornou-se célebre nos meios literários, justamente por<br />

relatar as considerações sobre “a justeza dos nomes”, num extenso diálogo<br />

entre Sócrates, Hermógenes e Crátilo. A discussão gira em torno de dois<br />

pontos de vista: se os nomes são criados por convenção ou se pela natureza do<br />

sujeito. Sócrates usa de seus recursos retóricos para conduzir seus interlocutores<br />

pelos meandros da reflexão a respeito das “justeza dos nomes”. Para o mestre<br />

grego o nome é instrumento para informar a respeito das coisas e para<br />

separá-las, tal como a lançadeira separa os fios da teia. (2001, p.152). O<br />

vocábulo onomástico, que significa relativo aos nomes próprios, tem justamente<br />

uma origem grega “ónoma”(nome), que deu origem ao vocábulo “onomaston”<br />

(a ser denominado), e Sócrates (2001, p.218) defende o princípio de que os<br />

nomes devem assemelhar-se tanto quanto possível à coisa representada.<br />

Esta perspectiva clássica, à qual o leitor comodamente se<br />

acostumou, ditou as regras na literatura, o que facilitava bastante o entendimento<br />

de uma obra. Machado desconstrói estes princípios várias vezes em suas obras,<br />

pois nem sempre seus personagens têm afinidades com seus nomes próprios,<br />

* Vanda Luiza de Souza Netto é mestranda em Estudos Literários (UFES).


68 são o contrário de seu significado, criando um jogo de opostos, levando o leitor<br />

à estranheza, com objetivos de chocar, ridicularizar ou com a intenção em que<br />

é um expert: de dissimular suas reais intenções.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Vanda Luiza de Souza Netto<br />

A proposta deste artigo é de investigar as estratégias de Machado,<br />

com um olhar dedicado a uma das personagens femininas, em Memórias<br />

Póstumas de Brás Cubas. Não é uma tarefa simples escolher algum aspecto<br />

da obra de Machado, tal a riqueza de sua construção literária. Além disso a<br />

fortuna crítica do autor é das mais variadas, despertando novas e estimulantes<br />

abordagens, o que amplia muito as possibilidades mas também pode levar à<br />

paralisia, pela dificuldade em escolher em meio a tantos textos críticos ou<br />

teóricos. A riqueza da obra machadiana pode ser comparada ao ato de colar o<br />

olho a um caleidoscópio e admirar as 1001 possibilidades do Bruxo. Investigar<br />

as personagens principais, aquelas que carregam a história nas costas seria<br />

muito óbvio, especialmente o célebre auto-defunto/Brás. Por isto dirigimos o<br />

olhar para os personagens periféricos, e, com surpresa, ao efetuar uma leitura<br />

de garimpo, verificamos que a personagem Dona Plácida, a alcoviteira, é citada<br />

cerca de dezoito vezes, a partir do capítulo 67 até o capítulo 150. Definitivamente<br />

Dona Plácida é uma personagem secundária bem importante, uma falsasecundária,<br />

ainda que ocupe na narrativa um cargo de serviçal. No capítulo 67,<br />

ela é apresentada ao leitor, como uma mulher, conhecida de Virgília, em cuja<br />

casa fora costureira e agregada. Aqui ela não tem nome ainda, apenas o<br />

designante uma mulher.<br />

Dona Plácida atinge os limites da peculiaridade sem atingir a<br />

deformação caricatural. Roberto Schwarz,(1990, p. 100) ao falar sobre Dona<br />

Plácida em “A sorte dos pobres”, reflete sobre a desconsideração dos serviços<br />

prestados pelas pessoas pobres, no contexto social em que a obra de Machado<br />

está inserida. Não se trata de uma personagem escrava, e sim de uma prestadora<br />

de serviços livre, mas ainda assim em uma situação de dependência de favores,<br />

que a classe dominante sempre fez questão de manter inalterada em nosso<br />

país.<br />

O nome Plácida, de acordo com o Dicionário etimológico da língua<br />

portuguesa, de Antenor Nascentes (1952, p. 246) 1 , nos diz o seguinte: origem<br />

no Latim, “placidia”, adjetivo que sugere tranqüilidade, o que é confirmado<br />

pelo dicionarista Aurélio Buarque de Holanda, que fala em pessoa serena,<br />

mansa, sossegada, pacífica. A personagem Plácida criada por Machado traz<br />

estes atributos, mas ao longo da narrativa apresenta algumas atitudes que a<br />

fazem especial, talvez daí venha a freqüência com que nos deparamos com a<br />

agregada de Virgília.A mulher é pessoa resignada que trabalhou muito, sofreu<br />

1 Todas as citações com apenas indicação de página referem-se à obra em estudo.


Uma personagem que deu o que falar<br />

com doenças e dificuldades as mais variadas. Ganhou o sustento com trabalhos<br />

de costura, fazendo doces para fora, além de ensinar crianças do bairro. A<br />

personagem lutou com dignidade até onde foi possível. Derrotada talvez pelo<br />

cansaço desta luta inglória, é levada à degradação moral. O narrador/defunto/<br />

Brás se diverte com o processo meticuloso realizado por ele para conquistar<br />

a simpatia de Dona Plácida, o que é descrito no capítulo 70. A personagem<br />

sente-se humilhada ao perceber o arranjo feito pelos amantes Brás e Virgília,<br />

mas graças ao pecúlio de cinco contos de réis, Dona Plácida vendeu-se,<br />

e nas palavras de seu benfeitor “foi assim que lhe acabou o nojo”<br />

(ASSIS, 2001, p. 121). Agrados e dinheiro conseguiram destruir a resistência<br />

da caseira/alcoviteira, sendo que em uma leitura mais atenta percebemos nunca<br />

ter sido muito firme. Suas características casam perfeitamente com o nome,<br />

uma pessoa pacífica, que aceita as vicissitudes da vida com resignação, com<br />

certos pudores, mas nada que agrados e dinheiro não resolvam.<br />

O autor-defunto dedica o capítulo 74 a contar a vida da alcoviteira,<br />

e o título é História de Dona Plácida, capítulo que é fruto de uma pratinha<br />

colocada na algibeira do vestido da serviçal. A pratinha estimula o relato da<br />

vida difícil que levou, e lembra-se que desde a infância lidava com os tachos de<br />

doces. Depois de longo tempo conheceu a família de Virgília e lá foi bem<br />

recebida, e revela ao final do relato que seu maior medo é terminar os dias na<br />

rua, pedindo esmolas. Brás, impiedosamente, não se comove com a história de<br />

Plácida, tanto que fala com seus botões: se Dona Plácida tivesse perguntado<br />

aos pais(um sacristão da Sé e uma doceira que freqüentava a igreja),<br />

para que me chamastes? Eles responderiam: - chamamos-te para queimar<br />

os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer,<br />

andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de<br />

tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora logo desesperada, amanhã<br />

resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até<br />

acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num<br />

momento de simpatia (p. 75).<br />

No capítulo seguinte Brás continua a tecer considerações sobre<br />

Dona Plácida, ao levar um “repelão” de sua consciência. Reflete alguns<br />

segundos sobre a torpeza de seu ato em degradar uma pessoa tão sofrida, mas<br />

logo cala a voz da consciência com o aforismo cínico e desaforado: o vício é<br />

muitas vezes o estrume da virtude, já que, de uma situação humilhante para<br />

Dona Plácida, o estrume tornou-se adubo para uma vida melhor, ao mesmo<br />

tempo em que levava Brás a sentir-se uma pessoa caridosa e de boas intenções.<br />

A personagem D.P. é, sem dúvida, uma personagem aparentemente plácida,<br />

pois sob a superfície há uma variedade de referências históricas e sociais,<br />

contradizendo sua aparente calmaria. Sabemos que o nome é apenas um dos<br />

elementos que contribuem para a construção de uma personagem, mas o fato<br />

de ser o primeiro dado de individualização dá a medida de sua importância. Há,<br />

69<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


70 segundo Cunha (1984, p. 116), uma conexão íntima do nome com a personalidade,<br />

o que torna o nome especial, pois designa, evoca e sugere. No capítulo 84,<br />

Dona Plácida revela-se uma personagem regida pelo senso-comum, típico das<br />

classes mais humildes, repleta de ingenuidade e aceitação:<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Mas eu preferia a pura ingenuidade de Dona Plácida, quando confessava<br />

não poder ver um sapato voltado para o ar:<br />

- Que tem isso? Perguntava-lhe eu.<br />

- Faz mal, era sua resposta.<br />

Vanda Luiza de Souza Netto<br />

Brás cita o caso da criação de verrugas, resultante do ato de<br />

apontar uma estrela com o dedo, todas estas superstições que fazem parte da<br />

personagem. Em outro capítulo, o 103, chega ao requinte de dar razão a Dona<br />

Plácida, que o repreende pelo atraso de uma hora em um encontro de amor<br />

com Virgília. Em um mesmo parágrafo refere-se à mulher por duas vezes<br />

como “coitada de Dona Plácida! Com a ênfase de pontos de exclamação, ao<br />

perceber a aflição da alcoviteira com os arrufos dos apaixonados. No capítulo<br />

104 exerce, com especial sabedoria e competência, seu encargo de guardiã<br />

dos amantes, ao perceber que o marido traído vinha chegando. – Virgem Nossa<br />

Senhora! aí vem o marido de Iaiá! Prontamente, Dona Plácida (nem tão plácida<br />

assim, na verdade cheia de expedientes) assume-se como dona da casa e<br />

informa a Lobo Neves a presença de Virgília que veio lhe fazer uma visita.<br />

Brás está escondido na alcova, e após a partida do casal, a alcoviteira deixa-se<br />

cair em uma cadeira, esgotada pela tensão do acontecimento.<br />

Virgília não esquece de sua agregada e, ao partir com o marido<br />

recomenda a Brás que não a desampare. No entanto , tempos depois, ao receber<br />

um bilhete de Virgília pedindo que leve Dona Plácida para a Santa Casa de<br />

Misericórdia, por estar muito doente, declara: Que maçada! Não vou. (capítulo<br />

143) Tudo porque ele achava que já tinha feito muito pela alcoviteira/doceira/<br />

costureira, ao dar-lhe os cinco contos de réis no passado. Após refletir durante<br />

à noite, no entanto, decide visitar a mulher e ajudá-la; após uma semana<br />

internada na Misericórdia, Plácida vem a falecer. Nas palavras secas de Brás,<br />

sua morte foi lacrada assim: Minto: amanheceu morta; saiu da vida às<br />

escondidas, tal qual entrara (capítulo 198), como se unisse as pontas de um<br />

laço, fechando a história da personagem. Brás reflete sobre a utilidade da vida<br />

de Dona Plácida: apenas para servir aos amores com Virgília. A última<br />

referência à personagem está no capítulo 150, em que Brás compara a morte<br />

de seu jornal, com apenas seis meses de vida à morte clandestina e discreta de<br />

Dona Plácida.<br />

Ao contemplar uma personagem secundária com tantas citações<br />

e dar-lhe o nome de Plácida, uma pessoa serena e ingênua, mas possuidora da<br />

esperteza dos sobreviventes, dos que passam a vida apenas mantendo-se à


tona, não estaria Machado querendo “dizer” por meio de ”outro dizer”? Ou<br />

seja , não seria esta personagem um modo de sutilmente mais uma vez mostrar<br />

a espoliação da dignidade a que tantas pessoas humildes são submetidas? A<br />

discussão está aberta, pois entendemos que este é mais um dos inúmeros<br />

piparotes de Machado, que saltam de sua obra e atingem o leitor.<br />

Referências<br />

Uma personagem que deu o que falar<br />

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 5. ed. Rio de<br />

Janeiro: Editora Record, 2001.<br />

CHALHOUB, Sidney. Ciência e ideologia em Memórias Póstumas de Brás<br />

Cubas. In: ______. Machado de Assis historiador. São Paulo: Cia das Letras,<br />

2003.<br />

CUNHA, Celso. Poética e onomástica em Os Lusíadas. In: ______. Língua<br />

e Verso. 2. ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1984.<br />

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Plácida. In: ______. Novo<br />

dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975. p. 1097.<br />

NASCENTES Antenor. Plácida. In: ______. Dicionário Etimológico da<br />

Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1952. p.246.<br />

PLATÃO. Crátilo. In: Teeteto-Crátilo. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2001.<br />

SCHWWARZ, Roberto. A sorte dos pobres (Eugenia, Dona Plácida,<br />

Prudêncio). In: ______. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado<br />

de Assis. São Paulo: Livraria duas cidades, 1990.<br />

71<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


RELIGIÃO: UMA VISÃO MERCADOLÓGICA<br />

DESFIGURANDO A IMAGEM VERDADEIRA DE DEUS<br />

RESUMO<br />

Sélcio de Souza Silva*<br />

Neste ensaio discute-se a forte influência do espírito<br />

merdadológico invadindo o espaço religioso. Daí, por exemplo, o<br />

grande crescimento de movimentos religiosos no atual contexto<br />

de mundo globalizado e, porque não, secularizado. Nesse sentido,<br />

pretendemos, a partir da leitura prévia de Weber, Durkeim e,<br />

recentemente, Pierucci as trágicas conseqüências que as<br />

Instituições de Tradições Religiosas tem enfrentado e vão ter<br />

que enfrentar nesse terceiro milênio.<br />

Palavras-chave: Religião; espírito mercadológico; movimentos<br />

religiosos; secularização.<br />

O que fazermos, quando, na modernidade em que vivemos, o<br />

que se privilegia é a liberdade, a sensação de bem-estar, a racionalidade,<br />

motivados pela urbanização, pela tecnologia, pelo consumismo, pela<br />

democracia, pelo poder econômico e pela consciência da subjetividade da<br />

pessoa humana? Contexto em que o mercado e religião acabam fazendo um<br />

jogo de marketing e deus nada mais é que a própria razão mercadológica,<br />

cujos templos são os bancos, os shopping-centers, com suas romarias de<br />

adoradores e devotos. O poder do mercado relegou a religião para a esfera<br />

do intimismo e privacidade, características do individualismo. As pessoas<br />

fizeram da religião meramente “fetiche de desejo” ou “tábua de salvação”,<br />

destronando Deus do templo subjetivo da mente humana, e usurpando-lhe<br />

até mesmo o domingo, considerado como o dia do Senhor (die Domini),<br />

resultado do fenômeno secularismo.<br />

* Sélcio de Souza Silva é mestre em Gestão Educacional


74<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Na verdade, estamos contaminados pelo vírus da modernidade<br />

e, como garante Pierucci (1997), não temos como fugir dela, pois dela não<br />

podemos correr. A humanidade nunca presenciou, em tamanha proporção, o<br />

desemprego, o inchaço das cidades, a exclusão dos pobres, a violência,<br />

doenças sem soluções, drogas, alcoolismo, etc. Grupos fundamentalistas não<br />

se limitam mais a regiões específicas, mas pertencem a uma rede de conexões.<br />

Há o aumento da insegurança e do medo e grande insatisfação, paralelamente<br />

a um vazio existencial. Tudo isso forçou, de certa forma, a volta da religião,<br />

dos movimentos religiosos, que crescem aceleradamente, do misticismo, o<br />

que chamamos de “a volta do sagrado”, a volta da religião, conseqüência<br />

sine qua non, da lógica do mercado. Estamos na pós-modernidade? Depende<br />

da leitura que se faça de sobre pós-modernidade até porque há divergência<br />

de pensamento entre alguns estudiosos, pois nesses primeiros anos do século<br />

XXI ainda se discute se houve a passagem do paradigma da modernidade<br />

para um paradigma da pós-modernidade. Por outro lado, não há como negar<br />

o fato de que realmente vivemos num momento de transformações de valores,<br />

contextualizado pelo capitalismo avançado, de uma sociedade de consumo<br />

desenfreado.<br />

Percebe-se que as pessoas querem Deus, mas não querem a<br />

Instituição religiosa, nem a vontade de Deus, nem muito menos cumprir os<br />

seus mandamentos. O discurso fiat lux de Deus passou a ser, no mundo<br />

atual, o fiat lux na voz humanizada do homem. Por outro lado, as pessoas<br />

querem um Deus, que a religião preencham seus vazios, carências e<br />

necessidades. A religiosidade atual é mais busca de tranqüilidade e equilíbrio<br />

emocional que verdadeira fé. É uma religião mais terapêutica que ética. Todos<br />

estamos em busca de satisfação pessoal, da libertação do pânico, de<br />

segurança psicológica. A vida moderna desestabiliza as pessoas, deixandoas<br />

inseguras, desesperançosas, medrosas e angustiadas. Este é o momento<br />

propício para a volta da religiosidade, do pluralismo religioso, do misticismo.<br />

Estamos diante de um mercado variado de religiões das mais diversas.<br />

Podemos escolhê-las às nossas conveniências, pois queremos uma nova<br />

religiosidade, Religião sem Instituição, deveres ou compromissos. Igreja não.<br />

Religiosidade sim, compromisso não.<br />

Nesse pluralismo religioso, temos o esoterismo, com seus gurus<br />

iluminados, que nos apresenta a razão, o conhecimento como Deus. A Nova<br />

Era, sob a direção dos astros, que apresentando-nos um mundo diferente. O<br />

pentecostalismo que sobressai pela cura das doenças e todos os males dos<br />

quais se oriundam os vícios. O espiritismo que se apresenta como a invocação<br />

da sorte para alguns e de feitiço para outros. As religiões orientais que são<br />

sinônimas de paz, harmonia, relax e satisfação. O catolicismo que, perdendo<br />

o espaço para outras religiões, tem se destacado através da Renovação<br />

Carismática Católica, situando-se no movimento pentecostal católico.


Estamos diante de um mercado religioso que, muitas vezes, não<br />

nos apresentam uma verdadeira conversão de pessoas, pois não se percebem,<br />

nesses grupos, a vivência comunitária ou uma verdadeira mudança de vida,<br />

de engajamento eclesial, de transformação social e libertação política,<br />

econômica, cultural e social fica difícil falarmos de Religião.<br />

Em suma, respondermos à pergunta inicial parece-nos um pouco<br />

difícil, embora as maiores dificuldade sejam as ações necessárias de retomada<br />

evangelizadora dentro das estruturas, primeiramente, da Igreja Católica, como<br />

tentativas de resistência à cultura secular que nos fomenta modelos de vida<br />

sem Deus. Não adianta pregarmos uma nova evangelização com um novo<br />

ardor missionário sem, a priori, não existir intra Igreja, sejam-nos fieis-leigos<br />

da “Igreja Carismática”, os quais se disparam significativamente à frente do<br />

clero e religiosos, até mesmo dentre os demais movimentos e pastorais<br />

católicas. Por outro lado, conforme a irreversibilidade dos processos de<br />

globalização, nesse contexto de capitalismo avançado, sem a cooperação do<br />

Alto, não poderíamos nadar contra a correnteza, pois, a intervenção divina,<br />

em sua mais digna onipresença, fez, a partir do Vaticano II, em comunhão<br />

com a Igreja instituída, surgir no seio da sua Igreja, uma nova etapa de<br />

maturidade espiritual e porque não eclesial.<br />

Dentre os movimentos religiosos que surgem, constantemente<br />

no mundo atual, o movimento da Renovação Carismática Católica trouxe à<br />

luz dos grandes teólogos, o significado que nos faltava, embora os textos<br />

bíblicos sempre nos instruíssem. Faltava-nos o Espírito Santo com uma unção<br />

e efusão de seus carismas, assim como ocorrera no início da Igreja Primitiva,<br />

que pudessem, alimentando-nos a fé, fazermo-nos homens ousados e<br />

desbravadores de novos tempos difíceis que a Igreja há de passar. A<br />

providência divina fez brotar um movimento eclesial, dentro da Igreja que<br />

pudesse buscar a unidade tão sonhada de Cristo, em sua oração no<br />

Getsemani, contrariando toda a lógica dos movimentos atuais que buscam<br />

combater o tradicional, a tradição apostólica e dogmática de uma Igreja duomilenar.<br />

Referência<br />

PIERUCCI, Antônio Flávio. Interesses religiosos dos sociólogos da religião.<br />

In: Globalização e religião. São Paulo: Vozes, 1999.<br />

75<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


UM SABER QUE NÃO SE EXPLICA: NOTAS SOBRE O MESTRE<br />

IGNORANTE, DE JACQUES RANCIÈRE<br />

Bernardina Leal*<br />

Cada sujeito falante é o poeta de si próprio e das coisas.<br />

Jacques Rancière<br />

Entre o ensinar e o aprender há muito mais do que meras ou<br />

mesmo elaboradas explicações. É possível, até mesmo, que as explicações<br />

constituam o maior fator impeditivo do aprender. Inversamente ao que é comum<br />

se pensar, pode ser que as explicações criem apenas uma série progressiva,<br />

ordenada e hierárquica de condicionantes para que o entendimento necessário<br />

ao saber seja pesquisado de modo inalcançável, posto que sempre adiado para<br />

um momento posterior. Este adiamento coincide com a situação supostamente<br />

superior daquele que detém os mecanismos do ensino e decide qual é o momento<br />

adequado à aprendizagem do aprendiz, conseqüentemente colocado em situação<br />

de inferioridade.<br />

É neste sentido que uma denominada “ordem explicadora” estaria<br />

a colocar em funcionamento uma série de dispositivos capazes de organizar a<br />

estrutura considerada necessária para a aprendizagem. Do mesmo modo esta<br />

“ordem explicadora” elaboraria meios de legitimar tal estrutura e também modos<br />

de relações de poder que a manteriam inalterada. Assim sendo, a sociedade<br />

pedagogizada prescindiria de instituições escolares que abrigassem uma<br />

quantidade cada vez maior de alunos situados ordenada, seqüencial e<br />

hierarquicamente em um continuum instrucional continuadamente reforçado e<br />

mantido pela lógica explicadora que lhe daria sentido. Este é o modo de pensar<br />

a <strong>educação</strong> desde os seus princípios fundantes. Esta é a busca de sentido para<br />

o ato educativo travada por Jacques Rancière em sua obra intitulada “O Mestre<br />

Ignorante” - Cinco Lições sobre a Emancipação Intelectual. Neste livro o<br />

*<br />

Bernardina Leal é mestre em Educação pela UnB.


78 autor resgata a relação pedagógica de um professor chamado Jacotot com um<br />

grupo de alunos de outra nacionalidade, falantes de uma língua diferente da<br />

sua. O desafio de ensinar sem a condição prévia da existência de uma língua<br />

comum que pudesse mediar a transmissão dos conhecimentos da parte do<br />

professor para os alunos fez com que Jacotot experienciasse uma situação de<br />

ensino e aprendizagem inusitada. Esta situação nova apresentava um problema<br />

que impelia Jacotot a buscar o princípio do aprendizado como forma de possibilitar<br />

a relação pedagógica que se impunha necessária. Tensionado pelas<br />

contingências, Jacotot chegou à ideia basilar do que viria a ser o fundamento<br />

do seu ensino: aqueles alunos já sabiam algo e a este saber deveriam relacionar<br />

todo o resto. Afinal, todos eram igualmente inteligentes, inclusive ele, o professor.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Bernardina Leal<br />

O princípio da igualdade das inteligências seguido por Jacotot em<br />

sua experiência de ensino, destacada por Rancière na figura do mestre ignorante,<br />

configura uma oposição à ordem explicadora que mantém o tipo de <strong>educação</strong><br />

que se mantém na contemporaneidade. Jacotot havia antecipado a ideia de<br />

que a escola e a sociedade pedagogizada em vez de reduzir a distância entre o<br />

saber e o não-saber a ampliava. Na verdade, seria esta distância a base em<br />

que ambas instâncias se sustentariam a fim de crescer e manter esta condição<br />

sempre necessária. Nesta lógica, a transmissão do conhecimento dos<br />

possuidores do saber para os ignorantes se daria segundo um sistema progressivo<br />

adequado aos diferentes níveis de aprendizagem possíveis àqueles que estariam<br />

hierarquicamente separados por distinções em estágios intelectuais, cargos,<br />

funções e saberes. O princípio deste tipo de organização educacional seria a<br />

existência da desigualdade intelectual que se desdobraria em desigualdades<br />

sociais e culturais, entre outras. A escola e a sociedade pedagogizada, instituídas<br />

com a finalidade de diminuir estas diferenças, paradoxalmente garantiriam suas<br />

estruturas nestas mesmas desigualdades e nelas fundamentariam sua<br />

organização seqüencial, ordenada, progressiva e hierarquizada de ser e de<br />

produzir dispositivos de perpetuação. Este paradoxo postergaria a igualdade<br />

na forma de um objetivo a ser atingido por meio de uma sucessão infinitamente<br />

progressiva de estágios educacionais. Conseqüentemente, as diferenças<br />

deveriam permanecer a fim de que as agências educacionais enquanto instâncias<br />

mediadoras se tornassem sempre necessárias.<br />

A única forma de romper esta ordenação seria modificar o<br />

pressuposto da desigualdade pelo princípio da igualdade das inteligências. Isto<br />

permitiria supor que qualquer aprendiz seria sabedor de uma infinidade de coisas<br />

e sobre este saber é que deveria estruturar-se todo o ensino. Ensinar seria,<br />

assim, reconhecer a capacidade que todos têm de aprender, destacar a<br />

positividade do aprendiz, a potência do que já se sabe em um processo relacional<br />

com outros saberes e direcionar a vontade para a busca do que se quer aprender.<br />

Seria o mesmo que pressionar o aprendiz a assumir uma capacidade préexistente<br />

em si mesmo, bem como as consequências do desenvolvimento desta


Um saber que não se explica: notas sobre o Mestre Ignorante, de Jacques Ranciére<br />

capacidade. Esta não seria uma questão apenas metodológica, mas filosófica e<br />

política. O importante, neste caso, não seria organizar formas mais ou menos<br />

adequadas ao aprendizado. O fundamental estaria no tipo de relação a ser<br />

estabelecida entre mestre e aprendiz -uma relação de respeito recíproco em<br />

função do reconhecimento da igualdade das inteligências de ambos e do destaque<br />

dado à potência das vontades orientadas para um fim. Seria ainda uma questão<br />

política - um posicionamento frente ao outro a partir de uma igualdade a ser<br />

verificada, não de uma desigualdade a ser reduzida.<br />

O princípio da igualdade das inteligências suscitado por Jacotot e<br />

resgatado por Rancière coloca em questão aquilo que é considerado o grande<br />

mérito da instrução - constituir-se um meio, um elo, a possibilidade de mediação<br />

entre pontos antagónicos de uma escala progressiva - uma concessão aos<br />

pobres, aos menos capacitados ou menos instruídos, um auxílio àqueles social<br />

e culturalmente inferiorizados. A instrução, alardeada como um meio redutor<br />

das desigualdades preexistentes, estaria a naturalizar as desigualdades<br />

pressupostas e, portanto, estaria, contraditoriamente, perpetuando-as. A única<br />

forma de ascender, de melhorar o nível de aprendizagem, de reduzir a diferença<br />

constitutiva das relações desiguais, seria a instrução. Tal instrução seria<br />

possibilitada por meio dos dispositivos pedagógicos, nos espaços escolares,<br />

pela mediação dos mestres.<br />

A escola seria, deste modo, o <strong>local</strong> eleito e legitimado por todos, a<br />

partir do qual o exercício do poder do professor sobre o aluno ocorreria de<br />

modo considerado natural. A razão explicadora colocaria a serviço das<br />

desigualdades pressupostas, um ordenamento hierárquico e disciplinador<br />

constituído por categorizações e classificações que enquadrariam tanto o<br />

professor quanto o aluno numa escala progressiva linear. Inserida nesta lógica,<br />

a instituição educacional seria o <strong>local</strong> privilegiado para as mediações entre o<br />

saber e o não-saber, o mestre e o ignorante, o adulto e a criança. A partir do<br />

pressuposto da desigualdade, as instâncias educativas estariam empenhadas<br />

em diminuir as distâncias assumidas.<br />

Contudo, para Jacotot e Rancière, a igualdade não é um fim a ser<br />

atingido por meio de dispositivos pedagógicos, mas um princípio a ser assumido<br />

filosófica e politicamente na relação com o outro. A assunção deste princípio<br />

provoca uma consequente e inevitável ruptura nos modos de organização e<br />

controle da sociedade. A igualdade estaria fora do alcance da pedagogia, fora<br />

do âmbito de projetos elaborados por grandes pensadores e dirigidos a um<br />

grande grupo de incapacitados. A igualdade, enquanto princípio, implicaria na<br />

emancipação intelectual, no ato individual de ruptura com o embrutecimento<br />

gerado pela lógica da explicação. Tal emancipação não se limitaria a formas<br />

constitucionais, não se disporia como um produto a ser consumido ou um método<br />

a ser aplicado. A autonomia intelectual seria fundante, posto que inventiva. Ela<br />

79<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


80 inauguraria modos de verificação de sua existência. Qualquer tipo de<br />

dependência ou subordinação seria uma contradição.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Bernardina Leal<br />

A emancipação intelectual vislumbrada por Rancière a partir da<br />

experiência de Jacotot rivaliza gritantemente com a organização pedagógica<br />

seguida pelas instituições de ensino. Desde a acepção primeira de que o processo<br />

de aprendizagem ocorre sempre em decorrência do ensino que o precede até<br />

a ideia de que para compreeender um texto escrito o aluno prescinde de notas<br />

explicativas, de um estudo dirigido ou mesmo da explicação de um mestre, o<br />

princípio regente desta organização é, para Rancière, o embrutecimento. A<br />

ideia basilar definidora da relação professor-aluno seria, neste caso, aquela<br />

que associaria ao professor a condição de possuidor do saber, logo, ensinante e<br />

ao aluno a situação de desprovido, logo, incapaz ou carente, um aprendiz. Neste<br />

contexto ensina aquele que sabe; aprende aquele que ignora. Rancière se opõe<br />

a esta lógica e apresenta a figura do mestre que ignora - o mestre ignorante.<br />

Este mestre não mantém segredos seus em relação aos alunos.<br />

Não guarda para si compreensões que os alunos só possam adquirir através de<br />

seus ensinamentos. Não crê em sua superioridade frente aos outros. Este mestre<br />

assume uma postura diante do aprendiz de reconhecimento da potência da<br />

inteligência de ambos. Ele reconhece a capacidade intelectual que lhes é comum,<br />

não hierárquica. É a tomada de consciência dessa igualdade de natureza que<br />

se denomina emancipação e que possibilita a aventura do saber. O saber é,<br />

então, procurado por quem o ignora, inclusive o mestre. O mestre ignorante<br />

não sabe mais do que seu aluno, não se antecipa ao aprendiz e pode, portanto,<br />

perguntar mais e verdadeiramente sobre as coisas, pode ainda exercer<br />

autonomamente sua inteligência. Este mestre pode até mesmo ensinar o que<br />

ignora na medida em que questiona sobre tudo o que ignora. O que este mestre<br />

ensina é a busca. E o que ele pode verificar não é se o aluno descobriu o que<br />

havia sido planejado encontrar, mas se o aluno buscou, se o aluno estava atento<br />

ao que encontrou. O poder da igualdade de suas inteligências é o laço comum<br />

entre ambos, o que os une.<br />

O mestre ignorante é, enfim, aquele que está sempre a procurar,<br />

aquele que emancipou-se e consegue reconhecer suas competências intelectuais<br />

e sabe aperfeiçoá-las. Este mestre emancipado pode emancipar outros, pois<br />

reconhece nas virtualidades intelectuais de todos inúmeras possibilidades de<br />

realizações. Ele auxilia o aluno a manter sua atenção dirigida aos atos intelectuais<br />

que descrevem caminhos a serem percorridos e que possibilitam avanços. Ele<br />

não fornece a chave do saber ao aluno, mas a consciência do poder de sua<br />

inteligência na busca do saber que lhe é próprio conquistar. A emancipação é a<br />

consciência dessa igualdade, da reciprocidade desta relação, da possibilidade<br />

de verificação da igualdade das inteligências entre semelhantes. A preocupação<br />

do mestre emancipado e emancipador é a de que o aprendiz conceba-se digno,


Um saber que não se explica: notas sobre o Mestre Ignorante, de Jacques Ranciére<br />

tenha consciência de sua capacidade intelectual e possa deliberar quanto a seu<br />

uso. Este mestre trabalha com a vontade do aluno a fim de que ele racionalmente<br />

se esforce e autodetermine suas atividades no exercício de sua inteligência<br />

expressa na atenção e busca daquilo que queira aprender. A vontade é esta<br />

potência de mobilidade, esta capacidade de agir segundo um movimento próprio.<br />

Apostar na vontade própria e na vontade do aluno, na potência<br />

intelectual de si mesmo e do outro, tanto quanto no ato decisivo emancipador,<br />

requer uma ruptura com a disciplina pedagógica. A disciplina, a ordem e a<br />

hierarquização do processo de ensino e aprendizagem em vez de possibilitar a<br />

busca do saber pelo despertar da vontade servida pela inteligência, produz a<br />

distração, a ausência. Na maioria das vezes o aluno age sem vontade, sem<br />

reflexão. O resultado não se traduz como ato intelectual, mas como certo<br />

idiotismo. A insignificância das tarefas escolares faz com que nada se passe<br />

no professor, tampouco no aluno. Não há emancipação, mas embrutecimento.<br />

A imagem reproduzida ao final deste texto lustra bem a ideia do<br />

embrutecimento que os mecanismos pedagógicos têm impostos aos professores<br />

e alunos. A figura revela uma tela pintada por um aluno em um curso de desenho<br />

e pintura. Inserido na lógica explicadora de um tipo de ensino sequencialmente<br />

progressivo, o professor exigiu que os trabalhos dos alunos obedecessem uma<br />

determinada ordem de aprendizagem de técnicas e tipos de pintura em tela. A<br />

despeito da vontade do aluno, mesmo contra seu posicionamento e habilidade<br />

na arte da pintura, o mestre ordenara que a primeira obra a ser produzida fosse<br />

uma “natureza morta”. A contra-gosto o trabalho foi realizado e logo guardado<br />

em um canto qualquer, bem escondido de qualquer exposição. Passado algum<br />

tempo, após a desistência do curso dado o desinteresse do aluno, a tela foi<br />

casualmente reencontrada. Mofada, a pintura em tela ficara diferente, havia<br />

sido alterada, nem parecia mais tão morta. A “natureza morta” revivia aos<br />

olhos do aluno naquele mofo que nascia sobre a tela e agregava ao desenho<br />

original novas imagens. Foi assim que o aprendiz reviu sua obra e decidiu falar<br />

dela nela mesma. A partir daquele instante a tarefa pedagógica realizada como<br />

mera obrigação escolar passou a revestir-se de novos sentidos. Intrigado com<br />

o mofo na tela e atraído pêlos desenhos ali inscritos pela natureza reavivada, o<br />

aluno escreveu sobre a pintura o poema que acabara de criar:<br />

A Natureza<br />

Morta.<br />

Mofada<br />

A podre cida.<br />

A podre sendo.<br />

Não era mais uma natureza morta. Era uma natureza viva,<br />

vivificada nas circunstâncias criadoras vislumbradas por aquele aluno que havia<br />

se emancipado. O processo embrutecedor que havia imposto a superioridade<br />

81<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


82 da inteligência de seu professor sobre a sua vontade e sua subserviência ao<br />

modelo hierarquizado de ensino da pintura se rompera. A emancipação intelectual<br />

do aluno, inibida pelo processo pedagógico que intentava ensiná-lo a pintar<br />

pressupondo sua incapacidade, naquele momento se manifestava. De modo<br />

abrupto, o rompimento com o modelo embrutecedor de ensino propiciou o efeito<br />

oposto: a criação poética. O aluno conseguiu traduzir na forma de um curto<br />

poema o significado anterior da realização daquela tarefa pedagógica e a<br />

posterior ruptura com o embrutecimento imposto.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Bernardina Leal<br />

Esta capacidade de relacionar coisas e provocar novos sentidos,<br />

este fluxo e refluxo de idéias é entendida por Rancière como a arte de<br />

improvisar. O autor destaca a importância deste exercício como uma virtude<br />

poética: “A impossibilidade que é a nossa de dizer a verdade, mesmo quando a<br />

sentimos, nos faz falar como poetas, narrar as aventuras de nossos espíritos e<br />

verificar se são compreendidas por outros aventureiros, comunicar nosso<br />

sentimento e vê-lo partilhado por outros seres sencientes”. Improvisar seria,<br />

neste caso, o mesmo que criar poeticamente, a partir de nossa impossibilidade<br />

de identificar com exatidão a verdade das coisas ou mesmo de fixar a verdade<br />

presumida em algum lugar. É por isso que tentamos traduzir a verdade que<br />

sentimos na forma de palavras, figuras e comparações como forma de contála<br />

a outros. Neste sentido a palavra estaria a ser utilizada menos para expressar<br />

um saber, mais para poetizar, traduzir e convidar outros a fazê-lo. A palavra<br />

seria a própria emancipação na medida em que cada um estaria a falar da arte<br />

que sabe ou quer aprender.<br />

Neste sentido, qualquer arte poderia ser compreendida e falada<br />

por qualquer um, desde que cada um se sentisse capaz de fazê-lo. No caso da<br />

pintura, o que interessaria não seria a formação de grandes pintores, mas de<br />

homens emancipados, capazes de proferir a afirmação: “Eu também sou pintor”.<br />

Isto significaria reconhecer o justo poder de exprimir uma capacidade e a<br />

possibilidade de comunicar sentimentos aos semelhantes, além do<br />

reconhecimento nos outros da mesma potencialidade. O mesmo poderia ser<br />

dito em relação a qualquer um: cada um é também pintor, posto que todos têm<br />

em comum a capacidade de experimentar sentimentos e decidir como expressálos.<br />

Por isso é preciso aprender. Aprender a comunicar a emoção. Aprender<br />

com aqueles que conseguiram articular sentimento e expressão, que<br />

conseguiram associar a “linguagem muda da emoção e o arbitrário da língua”.<br />

Conhecer a obra de um mestre da pintura, da literatura ou de qualquer outra<br />

arte se faria necessário, não para distingui-lo hierarquicamente no campo<br />

intelectual, mas ao contrário, para percebê-lo na igualdade das inteligências e<br />

na potência realizadora de sua vontade de expressão artística. Nas palavras de<br />

Rancière, “A lição emancipadora do artista, oposta termo a termo à lição<br />

embrutecedora do professor, é a de que cada um de nós é artista, na medida<br />

em que adota dois procedimentos: não se contentar em ser homem de um


Um saber que não se explica: notas sobre o Mestre Ignorante, de Jacques Ranciére<br />

ofício: não se contentar em sentir, mas buscar partilhá-lo. O artista tem<br />

necessidade de igualdade, tanto quanto o explicador tem necessidade de<br />

desigualdade” (2002, p. 104).<br />

Enquanto houver uma razão explicadora pretensamente científica,<br />

estratificadora e mantenedora das pressupostas desigualdades intelectuais entre<br />

os homens, não haverá espaço para a aventura poética. O ato poiético, criador,<br />

não se explica. A organização lógica da ideia de desenvolvimento linear,<br />

progressivo e consecutivo que mantém alunos presos a um sistema de ensino<br />

hierarquizador impossibilita o surgimento abrupto do entendimento poético. A<br />

regulação do processo de aprendizagem, seu controle e monitoramento ocupa<br />

o tempo do trabalho docente na realização de tarefas pouco ou nada inventivas.<br />

Em decorrência dos atos meramente tarefeiros, o fazer docente torna-se um<br />

trabalho embrutecedor tanto do aluno quanto do professor. É nesta lógica que<br />

se insere a última frase da citação de Ranciere.<br />

Apostar na capacidade comum a todos de serem afetados, de se<br />

comoverem reciprocamente, assume, assim, um caráter ético. Ranciere alerta<br />

para o risco de que os homens tornem-se estrangeiros uns aos outros, dispersos<br />

de si mesmos e dos seus semelhantes se não tiverem essa faculdade igual e se<br />

não puderem partilhá-la. O exercício desta potência auto-poiética seria um<br />

doce prazer, além de uma imperiosa necessidade para todos nós. O sentimento<br />

de alteridade, o respeito ao outro e a consciência das implicações de cada ato<br />

individual na vida de outrem dimensiona o campo ético do reconhecimento da<br />

igualdade das inteligências. Uma postura que se expressa não por meio de leis<br />

ou da força, mas pelo reconhecimento de uma virtude que se assume e<br />

potencializa todas as outras presentes em cada um. A igualdade, neste contexto,<br />

não seria decretada, tampouco concedida ou recebida, mas verificada em ato.<br />

Em uma constante atenção a si mesmos, os homens estariam a realizar uma<br />

infinita busca pelo saber. A potência de se fazer compreender seria verificada<br />

na relação entre iguais. Este tipo de convívio requereria, entretanto, disposição<br />

e coragem diante da enorme tarefa que cada um teria de assumir-se racional,<br />

de respeitar-se a si próprio e aos outros. Não mais apoiar-se em supostas<br />

autoridades, não mais submeter ao outro a própria vontade ou inteligência.<br />

Empregar a inteligência própria na vontade de realização, no esforço de<br />

superação das dificuldades, sem distração ou desvio. Sem a necessidade de<br />

fazer calar o outro, mas de comunicar-se. Sem a retórica que levaria o sujeito<br />

a falar por intermédio de coisas alheias à sua obra. Com a convicção de que<br />

“cada sujeito falante é o poeta de si próprio e das coisas”.<br />

De volta à tela mofada, apostando com Jacotot e Ranciere na<br />

emancipação intelectual possibilitadora do ato poético, estamos resgatando a<br />

idéia de um saber que não se explica. Um saber que se aprende, mas que,<br />

talvez, não se ensine. A arte da pintura, o ato de pintar, já se fazia presente na<br />

83<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


84 vontade daquele aluno. Ele havia aprendido sozinho a pintar, sem um mestre<br />

explicador. A submissão a um curso programado para ensiná-lo quase o paralisou.<br />

Contudo, a tensão de seu próprio desejo e as contingências da situação o fizeram<br />

relacionar àquilo que já sabia a construção das palavras no jogo poético do<br />

poema. Na brincadeira semântica com as palavras utilizadas para identificar<br />

aquele tipo de pintura e nas palavras empregadas no verso criado, expressa-se<br />

a experiência da aprendizagem, o acontecimento urgente do novo. A “natureza<br />

morta”, assim classificada na história da arte, a partir da contingência do mofo,<br />

da situação paradoxal de apodrecimento, refazia-se na mente do artista.<br />

Apodrecida, não seria mais a mesma. Transformada, mofada, era percebida<br />

outra. Estava sendo podre. Não estava mais morta.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Esta parece ser uma imagem bastante representativa da lógica<br />

embrutecedora dos sistemas de ensino convencionalmente aceitos. A tela<br />

mofada, recriada, agora solenemente exposta na parede da sala, passava a<br />

anunciar a potência da vontade exercida e o reconhecimento da própria<br />

inteligência. Capaz de exercer sua inteligência, sentindo-se confiante,<br />

emancipado, o pintor falava na tela de sua obra e espalhava sua emancipação<br />

a outros, anunciava seus benefícios e, assim, levava outros a se reconhecerem<br />

como tais. O pintor havia buscado seu próprio caminho e anunciava sua decisão<br />

na tela. Inventava o que queria realizar. Esta é, para Rancière, a vantagem da<br />

emancipação intelectual _ a convicção de que cada um é capaz de realizar<br />

uma obra. Que cada um possui um saber que não carece de explicações, mas<br />

que se faz, que acontece. É deste modo que cada manifestação intelectual<br />

exprime o todo da inteligência humana.<br />

Referências<br />

Bernardina Leal<br />

RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação<br />

intelectual. Tradução de Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.


O TEMPO VIVO DA MEMÓRIA: ENSAIOS DE PSICOLOGIA<br />

SOCIAL<br />

Liliane Maria Fernandes Cordeiro Gomes*<br />

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São<br />

Paulo, Ateliê Editorial, 2003.<br />

Ecléa Bosi, no livro O tempo vivo da memória: ensaios de<br />

psicologia social, chama a atenção para a importância do estudo do passado<br />

recente e mostra que a memória oral é um precioso instrumento na constituição<br />

da crônica do cotidiano, à medida que pode funcionar como uma espécie de elo<br />

entre diferentes tempos. A autora faz indagações acerca da valorização atual<br />

da tradição oral e afirma que a formação de identidade se alimenta dos vínculos<br />

com o passado. Ressalta também, que essa história cotidiana não deve ser<br />

entendida como o avesso da história política hegemônica e muito menos como<br />

uma história que vá substituir um conceito ou uma teoria da História. A riqueza<br />

em se dar a palavra às pessoas “comuns” para falarem de suas memórias<br />

consiste no fato de que elas expressam suas paixões individuais. Paixões essas<br />

que não são contempladas na história que se estuda na escola e que trazem em<br />

seu bojo elementos distintos e por vezes contraditórios, constituintes da cultura<br />

à qual pertencem.<br />

O fato de a memória oral não tender para uma construção<br />

monocromática não implica dizer que ela seja mais autêntica que a versão<br />

oficial ou ainda, que não sofra influência de ideologias que representem a<br />

memória coletiva. Ecléa Bosi, em suas pesquisas, teve a oportunidade de<br />

comprovar a influência da narrativa coletiva, trabalhada pela ideologia, sobre a<br />

memória de indivíduos que participaram e testemunharam fatos e que, portanto<br />

poderiam enriquecer suas falas a partir dessas vivências. Entretanto não o<br />

fizeram. Ao contrário, usaram a narrativa coletiva como forma de legitimar e<br />

explicar o poder do grupo ao qual pertenciam.<br />

*Liliane Maria Fernandes Cordeiro Gomes é especialista em Docência Superior.


86 A narrativa coletiva apresenta-se assim como se fora em si mesma<br />

mais legítima, trazendo portanto, no seu bojo, elementos significativos para<br />

validar aquilo que fora vivenciado pelo próprio sujeito, que, muitas vezes, em<br />

sendo convidado a falar do acontecido, ao invés de fazer uso de suas memórias,<br />

recorre aquilo que coletivamente institui-se como a memória constituída de um<br />

dado episódio ou situação. Vê-se assim a força da ideologia na construção e<br />

valorização dessa memória coletiva.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Liliane Maria Fernandes Cordeiro Gomes<br />

A cada momento do livro a autora nos brinda com exemplos<br />

comprovadores da riqueza da memória oral. Chamo a atenção para o fato de<br />

que neste sentido também os esquecimentos e omissões apresentam-se como<br />

significativos na construção do acontecimento histórico cotidiano, bem como a<br />

diversidade de visões de mundo a partir de experiências diferentes de pessoas<br />

que compartilharam a mesma época histórica. Dessa forma, a narrativa mostra<br />

a complexidade dos acontecimentos, o que exige do pesquisador uma atitude<br />

sensível neste processo de recomposição constante de dados, visto que a<br />

memória não pode ser compreendida como algo estanque, pronto. Ao contrário,<br />

ela se mostra, em razão de ser construída por homens e mulheres, plena de<br />

lembranças e esquecimentos, apta a todo e qualquer tipo de atravessamento<br />

social que os seres humanos experienciam.<br />

Pode-se inferir que, ao trazer para o leitor o valor significativo,<br />

aparentemente paradoxal, dos esquecimentos da memória, a autora esteja<br />

referendando as afirmações de Pierre Nora, que ao diferenciar memória de<br />

história faz ver o dinamismo típico da primeira quando afirma que<br />

[...] a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse<br />

sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança<br />

e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas,<br />

vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas<br />

latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução<br />

sempre problemática do que não existe mais. A memória é um fenômeno<br />

sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história uma<br />

representação do passado (1993, p. 9).<br />

Ecléa apresenta também, com muita propriedade, a problemática<br />

do desenraizamento como condição desagregadora da memória, pois a<br />

mobilidade imposta aos indivíduos pelo sistema econômico capitalista tende a<br />

fazer com que os espaços e objetos tenham basicamente a função de consumo,<br />

dificultando a permanência nas casas ou bairros, que guardam em si<br />

experiências, emoções individuais, sons e imagens que possuem um significado<br />

único, especial. A dispersão das pessoas por diferentes espaços cria de algum<br />

modo dificuldades à memória coletiva, visto que a dimensão humana do espaço<br />

e do tempo tem sido paulatinamente expurgada pela roda-viva das grandes<br />

cidades, onde as velhas casas com varandas, quintais e cadeiras nas calçadas<br />

cedem lugar aos arranha-céus, no processo conhecido como verticalização.


O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social<br />

Entretanto, ainda que de forma esporádica, como por exemplo, em datas<br />

especiais, normalmente comemorativas e associadas à memória coletiva, as<br />

pessoas se reencontram e reconstroem o mapa afetivo da cidade.<br />

O sistema capitalista faz-se presente não só na organização do<br />

espaço. O próprio tempo teve seu ritmo subjugado à lógica do mercado, idéia<br />

claramente explicitada no dito burguês popularmente divulgado: “tempo é<br />

dinheiro”, em detrimento da orientação do tempo pelas tarefas. O ritmo das<br />

fábricas se impõe e rompe os ritmos sociais.<br />

A autora também nos fala sobre as diferenças e relações cotidianas<br />

entre memória-hábito, aquela em que o corpo faz uso automático de mecanismos<br />

motores e a memória de eventos únicos, singulares. A respeito dessa última,<br />

Ecléa Bosi conta que nos depoimentos orais por ela escutados, o narrador<br />

dava voz às suas memórias e vivia no presente e com uma nova intensidade a<br />

experiência rememorada, o que significa dizer que não se trata somente de um<br />

reviver de imagens do passado, mas sim da memória bergsoniana, ou seja, da<br />

“Memória como atividade do espírito, não repositório de lembranças” (p. 52).<br />

Cabe ao ouvinte perceber as imagens produzidas pela fala do narrador, imagens<br />

essas que podem inclusive ter a conotação de duração de tempo a partir daquilo<br />

que é intuído pelo próprio sujeito que narra, a esse tempo a autora chama de<br />

“[...] tempo concreto e qualificado das lembranças” (p. 51).<br />

Ainda no que diz respeito ao tempo, a autora ressalta que a<br />

memória é um trabalho sobre o próprio trabalho, só que sobre o tempo vivido<br />

de cada pessoa e que este é influenciado pela cultura a qual o indivíduo pertence,<br />

por esse motivo o tempo social acaba por se sobrepor ao individual. Essa<br />

sobreposição não implica a negação do olhar individual, mas sim o fato de que<br />

ao narrar uma situação singular, o narrador fala também de suas relações com<br />

outras pessoas, utiliza referências de acontecimentos temporais que marcaram<br />

época, faz uso de crenças adquiridas na coletividade da qual faz parte e constrói,<br />

por assim dizer, um tempo original, onde a ordenação utilizada obedece a<br />

critérios afetivos.<br />

Um dos mais ricos ensaios do livro é intitulado “Sugestões<br />

para um jovem pesquisador”, em que fica evidente o cuidado e a preocupação<br />

da autora com a ação de ouvir o outro. Há aqui uma espécie de alerta acerca<br />

da necessidade de que o pesquisador saiba respeitar o narrador em todos os<br />

momentos, o que inclui desde o seu preparo anterior, sobre o universo do<br />

narrador, no sentido de que o pesquisador possa efetivamente formular questões<br />

significativas e que despertem no narrador o interesse pelo ato de rememorar,<br />

até a tessitura de uma relação entre ambos pautada na amizade, entendida<br />

aqui como uma aproximação entre pessoas que se mostrem desarmadas dos<br />

rótulos sociais, isto é, o pesquisador não deve ir ao encontro do narrador como<br />

se fosse, em virtude de diferenças de classe ou instrução, superior àquele.<br />

87<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


88 No mais, o texto, de forma poética, convida o “jovem ouvinte” a se<br />

permitir viajar através da narrativa do outro, respeitando os silêncios e valorizando<br />

as rupturas, as construções nem sempre bem arrumadas. Vejamos na fala da<br />

própria Ecléa:<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Liliane Maria Fernandes Cordeiro Gomes<br />

[...] Os lapsos e incertezas das testemunhas são o selo da autenticidade.<br />

Narrativas seguras e unilineares correm sempre o perigo de deslizar para o<br />

estereótipo. [...] Nos idosos, as hesitações, as rupturas do discurso não<br />

são vazios, podem ser trabalhos da memória. [...] A fala emotiva e<br />

fragmentada é portadora de significações que nos aproximam da verdade.<br />

Aprendemos a amar esse discurso tateante, suas pausas, suas franjas<br />

com fios perdidos quase irreparáveis (p. 64-5).<br />

A riqueza da narrativa para o historiador, ao desenvolver um projeto<br />

que coerentemente faça uso de entrevistas, não consiste numa simples coleta de<br />

dados, mais sim na possibilidade de fazer leituras críticas dos depoimentos, visto<br />

que as testemunhas dos fatos históricos são de uma riqueza ímpar na medida em<br />

que trazem consigo um discurso plural, pontuado pela coletividade, pela realidade<br />

em que se deu a experiência vivida, por isso mesmo propensa a terem também<br />

suas falas e memórias indagadas. Um outro aspecto relevante diz respeito<br />

certamente à possibilidade de se estabelecer, a partir das entrevistas, comparações<br />

e análises entre diferentes tempos históricos. Não é papel do historiador, buscar<br />

invalidar testemunhos em razão da inexatidão dos mesmos ou inquirir o narrador<br />

como se este fosse um réu, afinal, a oralidade, como já foi dito, traz em si a<br />

opulência também dos silêncios. Também não se trata de uma busca da verdade<br />

histórica, é bom lembrar que a experiência humana traz em si possibilidades para<br />

diferentes verdades.<br />

Em decorrência desse campo de possibilidades que se abre ao<br />

conhecimento humano a partir da utilização de entrevistas em que se valorize a<br />

memória de homens e mulheres, espera-se uma postura ética do pesquisador, o<br />

que em linhas gerais significa respeitar o ritmo do narrador, bem como dar a este<br />

a condição de ler, e se necessário modificar, aquilo que foi escrito a partir de sua<br />

fala, de sua vivência, de sua criação.<br />

Um dos ensaios do livro (sobre o campo de Terezin) chama a atenção<br />

pelo poder que a autora tem de levar o leitor a sentir todo o peso da emoção de<br />

uma história de dominação e resistência. Fica explicitado que no campo de Terezin<br />

construiu-se uma imagem pelos nazistas, à época da Segunda Guerra Mundial,<br />

para convencer a Cruz vermelha de que aquela era apenas uma cidade comum.<br />

Os registros indicam que este objetivo foi alcançado, a propaganda conseguiu<br />

camuflar a realidade e esconder a dor e miséria dos judeus que ali habitavam e<br />

cotidianamente eram vítimas de todo tipo de barbarismo e autoritarismo. A<br />

resistência se expressa na teimosia desses habitantes que diante dessa situação<br />

de opressão insistiam em simplesmente continuar vivos.


O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social<br />

A experiência dos indivíduos se inscreve em um espaço e tempo<br />

determinado, o que implica dizer que conhecemos partes do todo e muitas<br />

dessas partes se tornam conhecidas para nós a partir da confiança que temos<br />

em registros feitos por outras pessoas que experienciaram tais fatos. Mesmo<br />

em relação aos fatos por nós vivenciados é comum a existência de construções<br />

distorcidas, tais construções são alinhavadas por aspectos culturais e por vezes,<br />

tais alinhavos, implicam num processo, denominado por Ecléa de estereotipia,<br />

onde resistimos às novas possibilidades ofertadas pela percepção e nos<br />

deixamos enredar por aquilo que já está previsto, padronizado, modelado pelos<br />

grupos de poder instituídos. Neste processo acaba-se por simplificar a realidade<br />

e dessa maneira perde-se a riqueza que a mesma traz em si, naquilo que ainda<br />

não foi, por assim dizer, codificado no estereótipo veiculado pelos meios de<br />

informação. O conhecimento requer de cada um a ruptura, não só com os<br />

estereótipos, mas também com as limitações da opinião que constitui uma<br />

representação subjetiva. Esse movimento de ruptura pressupõe um desejo de<br />

conhecer, de se lançar em busca de algo que não está dado. Tal movimento<br />

requer afinidade, vontade de ir além da superficialidade das opiniões e da<br />

segurança dos modelos, que por mais opressores que sejam não dão conta de<br />

destruir a originalidade dos indivíduos. É exatamente esta vontade que é<br />

responsável pelas transformações históricas a partir de ações que não aceitam<br />

a submissão e assumem posturas de rebeldia, através do enfrentamento do<br />

status quo.<br />

No sentido de anunciar a desobediência ao status quo, temos no<br />

livro a ilustração, construída de forma a acenar ao leitor com a possibilidade de<br />

uma viagem poético-visual da resistência cultural, relatos de experiências de<br />

operários e operárias, onde revela-se a grandeza da complexidade do ser<br />

humano, ressaltando-se a importância do fazer cotidiano e a beleza dos<br />

movimentos de oposição e reconstrução daquilo que está dado, a princípio,<br />

como pronto e acabado. É neste movimento de resistência que as pessoas, a<br />

partir de suas vontades e necessidades, constroem e mostram sua essência,<br />

através do jeito de se organizarem e viverem. É assim que vemos um espaço<br />

padrão ganhar vida, pois<br />

[...] A casa vai crescendo junto ao poço, ganhando cômodos de tijolo,<br />

alterando sua fachada. Isto pode levar dez, quinze anos. A rua vai<br />

ganhando uma fisionomia tão peculiar que às vezes já não identificamos<br />

uma série de casas planejadas e outrora idênticas. [...] Há uma<br />

composição paciente e constante da casa no sentido de arrancá-la à<br />

‘racionalização’ e ao código imposto. Em abril e maio algumas ruas mudam<br />

de cor: o milho e as abóboras estendem sua folhagem amarelada nos<br />

mínimos espaços possíveis. Se o bairro pudesse, ele seria semi-rural,<br />

pois ainda vive tão atraído pelo rural que resiste muito ao cimento, ao<br />

cimentado no quintal que cobre a terra, que amordaça a planta, que<br />

queima a sola dos pés, preferindo o terreiro bem batido, onde um dia<br />

poderá nascer uma roseira, um pé de laranja, um capim (p. 160).<br />

89<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


90 A toda hora, na sociedade contemporânea, pessoas são obrigadas<br />

pelas circunstâncias econômicas a se deslocarem de seus lugares de origem<br />

em busca de trabalho. Este processo traz em si o desenraizamento cultural que<br />

é traduzido pelas perdas que os migrantes têm de seus espaços, objetos,<br />

convívios, fazendo com que suas raízes fiquem partidas, quebradas. A memória,<br />

através das palavras e ações possibilita uma nova vida a partir desses<br />

fragmentos, sendo de fundamental importância para a história social às<br />

experiências transmitidas e tecidas por esses indivíduos e sua coletividade que<br />

teima em ser aquilo que em essência são e desejam ter sua identidade<br />

reconhecida num processo permanente de construção e reconstrução, onde a<br />

tradição não se deixa cristalizar e se reinventa cotidianamente.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

A leitura do referido livro se faz importante para o estudante da<br />

área de ciências sociais que deseja valorizar a memória de indivíduos e<br />

coletividades, lançando mão em suas pesquisas da fonte oral através da coleta<br />

de depoimentos. A obra irá contribuir na construção/ elaboração de<br />

questionamentos pertinentes, frente a respostas a perguntas bem como ao<br />

silêncio do narrador frente às mesmas. De forma conexa, coerente com aquilo<br />

que foi apresentado, também é abordada no livro a necessidade premente de<br />

uma postura efetivamente ética do entrevistador/pesquisador frente ao<br />

entrevistado/entrevistada. Salienta-se aqui que a leitura do livro O tempo vivo<br />

da memória: ensaios de psicologia social, ganha relevância para os estudiosos<br />

da história social quando, com um estilo de escrita simples e sedutor, trata de<br />

forma séria da importância da memória sem contudo divinizá-la.<br />

Referências<br />

Liliane Maria Fernandes Cordeiro Gomes<br />

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São<br />

Paulo, Ateliê Editorial, 2003.<br />

MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A história, cativa da memória? Para um<br />

mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. In.: Revista Inst.<br />

Est. Bras., SP, 1992.<br />

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In.:<br />

Revista do programa de estudos pós-graduados em história e do departamento<br />

de história – Projeto história nº 10, PUC/SP, 1993.<br />

THOMPSON, E. P., Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular<br />

tradicional. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.


GEMAGEM: POESIA DE ALTO QUILATE<br />

Waldo Motta*<br />

TAVARES, Marcos. Gemagem: poemas. Vitória, ES: Flor & Cultura, 2006.<br />

Com um atraso de uns 20 anos, o escritor Marcos Tavares, 49<br />

anos, nascido numa antiga casa de pedra, na Vila Rubim, em Vitória, e hoje<br />

radicado em Guaçuí, por insistência de amigos ora traz à lume a edição de seus<br />

antológicos poemas, no livro Gemagem, publicado através da Lei Rubem Braga.<br />

Enquanto contista, em 1987 publicara o livro “No Escuro, Armados”, que veio<br />

a conquistar a admiração de críticos de renome e de exigentes leitores. “Entre<br />

os muitos que escrevem por aqui (...), salvam-se tão poucos, com domínio de<br />

técnicas de linguagem, com algum conhecimento da língua, com realmente<br />

algo a dizer. Marcos Tavares é um deles.”, escreveu a jornalista Sandra Aguiar<br />

sobre “No Escuro, Armados”, em A GAZETA, Caderno Dois, 23-07-1987.<br />

Por analogias fonéticas e semânticas, a palavra gemagem nos<br />

lembra: gemação, gema, gen, genética, gênio, engenharia. E tudo isso está<br />

presente nos poemas deste livro. Chama-se gemagem o processo pelo qual se<br />

retira dos vegetais a resina, ou o látex. E gemação é o processo de formação<br />

de gemas nos três reinos da natureza: animal (ovo), mineral (pedras) e vegetal<br />

(brotos). Com este título o autor alude à produção de suas jóias poéticas, do<br />

ovo de ouro, da pedra filosofal, em suas retortas operações verbais, alquímicas,<br />

matemáticas. Marcos burila palavras, fá-las gemas gemidas, germinadas nas<br />

minas da alma, qual pedras viventes, jóias da língua. O título do livro vincula-se<br />

ao poema “Gema Gemido” (dedicado a Oscar Gama, outro poeta, cujo<br />

sobrenome serviu de mote a essa jogada criativa).<br />

Como bem o demonstram os avançados estudos científicos, a<br />

Natureza obedece a um plano matemático na construção de formas nos reinos<br />

Waldo Motta é poeta, autor de “Eis o Homem”, “Poiezen”, “Bundo e outros poemas” e<br />

“Recanto”.


92 mineral, vegetal e animal, que revela uma ordem cósmica: padrões de simetria<br />

e harmonia assombrosos, tanto em níveis macro quanto micro. Demiurgo, o<br />

poeta cria seres de linguagem em que aparecem esses sinais da arquitetura<br />

divina.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Diálogo<br />

Escritos entre 1976 e 1984, uns já publicados nas revistas capixabas<br />

Letra e Ímã, outros premiados em concursos literários daqui, e alguns inéditos,<br />

os poemas de Gemagem revelam um poeta consciente e atento às ideologias<br />

políticas e estéticas. Daí que a maioria dos poemas é construída segundo os<br />

padrões formais da poesia concreta, do poema processo, do poema práxis, da<br />

arte engajada, da literatura popular e erudita. Ou seja: ciente de que está numa<br />

aldeia global, Marcos dialoga com várias correntes da poesia brasileira.<br />

Nessa linha da relação dialética com outras vozes estão os poemas<br />

intertextuais, em que o poeta dialoga com os seus pares, através de paródias,<br />

da apropriação, da mímese estilística à Drumonnd e à Cabral, de concretistas,<br />

de praxistas, de autores anônimos da literatura popular, do folclore (formas<br />

simples), exibindo seus dotes camaleônicos. O poeta é um fingidor? Melhor, o<br />

poeta é um ator que se desdobra em “trezentos e cinqüenta” eus e outros em<br />

constantes assembléias e diálogos. Por isso, dos 50 poemas de Gemagem, 17<br />

são intertextuais e metalingüísticos.<br />

Nos poemas metalingüísticos o poeta nos apresenta a sua poética,<br />

e diz o que pensa de sua arte, seus instrumentos e limitações. Confiram-se:<br />

“Da isenção do instante” (p. 25), “Do linguajar das pedras” (p. 48),<br />

“Poetílico”(p.50), “Canto outra vez adiado” (p. 53-55), “Mundo versus palavras”<br />

(p. 82), “Saudação à ave que passará” (p. 86), “Do desencanto do poemador”<br />

(p. 87) – este, sintomaticamente, o último poema.<br />

Ciência e arte<br />

Waldo Motta<br />

Embora o pai o quisesse engenheiro, e sendo esportista e exestudante<br />

de Matemática e de Economia, na Ufes, o poeta incorporou em seus<br />

poemas a disciplina, as harmonias, a construção verbal, a condensação, o<br />

exercício formal, a reflexão social. Observem-se, por exemplo, as simetrias e<br />

os detalhes formais presentes no título Gemagem e no poema “Gema gemido”<br />

(tanto na forma do poema, quanto no verso “a bala abala a rara arara” – onde<br />

se pode notar desde o impacto do projétil, representado pelo som da letra b, até<br />

a própria bala, representada pela letra a atravessando o verso de um lado ao<br />

outro). Seria fantasioso demais observar que o título Gemagem é a combinação<br />

de 4 letras (o tetragrama G-E-M-A), que lembram as bases químicas (o<br />

tetragrama A-C-G-T ), e que “Gema gemido”, poema nuclear do livro, com 46


versos, é dividido em duas estâncias de 23 versos – lembrando os cromossomos?<br />

Em tempos de decifração de um possível Código DaVinci, tudo é possível.<br />

Nesse poema, que alude ao título, o assunto é a morte de uma ave<br />

(“rara arara”), que é clara metáfora do poeta. É interessante observar como o<br />

“poemador” (MT prefere assim) vincula essas imagens e se identifica com as<br />

aves, almas penosas neste mundo ímpio, avoado, nos poemas “Visita do anjo”<br />

(p. 60-61 ), “Saudação à ave que passará” (p. 86), “Gema gemido” (p. 21-22),<br />

“Da metafísica do ovo e da galinha” (p. 23-24 ), todos metaforizando a figura<br />

e a situação do poeta, “potencial marginalizado numa sociedade materialista e<br />

consumista”, conforme diz MT no Prefácio. Isso nos remete à velha discussão<br />

sobre a função ou utilidade da poesia, o desprezo burguês aos poetas, e também<br />

a linguagem dos pássaros, ou anjos, ou deuses. Que, no final da conta, é a<br />

poesia.<br />

Contexto<br />

No seu prefácio intitulado “Ruminações ao redor do ovo”, Tavares<br />

nos informa sobre o contexto de sua escritura, e cita um caso de patrulhamento<br />

ideológico que sofreu. Também revela seu relacionamento com quase todos os<br />

nomes expressivos da literatura daqueles anos: sobretudo Oscar Gama e Miguel<br />

Marvilla (do grupo Letra), Fernando Tatagiba, o autor deste artigo, Gilson Soares,<br />

Deny Gomes e os adeptos de oficina literária, Paulo Sodré, Francisco Grijó,<br />

Adilson Villaça, Alvarito Mendes, Benilson Pereira etc.<br />

Por força de sua consciência ética, de sua luta pela dignidade<br />

humana, MT aborda temas de interesse social, alguns recorrentes, tais como:<br />

violência, guerra, militarismo, arbítrio, destruição, morte, ecologia; negritude;<br />

religião; trabalho; vício; amor erótico e fraterno, incluindo poemas homoeróticos.<br />

Num momento em que muitos poetas bandearam para o verso<br />

fácil, quase fala em estado bruto (referimo-nos à poesia marginal) e outros<br />

refugiaram-se no formalismo estéril, ele aprofundou-se na pesquisa de forma e<br />

de conteúdo, sem abrir mão da inteligibilidade. Tornou-se, sem alarde, não<br />

apenas um poeta do seu tempo, mas também contra o seu tempo.<br />

Conclusão<br />

Gemagem: poesia de alto quilate<br />

A recorrência de temas, motivos, abordagens, imagens, técnicas<br />

e recursos dá uma coerência e equilíbrio ao conjunto dos poemas, revelando<br />

um plano de construção, uma intencionalidade, um pensamento pautado numa<br />

ética e num projeto de vida em que sobressaem justiça e dignidade.<br />

Marcos Tavares dá uma bela lição de competência e talento, de<br />

largueza de espírito, de consciência da aliança entre arte e vida, entre ética e<br />

93<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


94 estética. Por isso, recomendo a leitura não só dos poemas, mas também do dito<br />

prefácio e dos aspectos biográficos do autor em foco.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Waldo Motta<br />

GEMA GEMIDO<br />

a Oscar Gama, poeta<br />

dia a dia, adiado o tardio parto, perto.<br />

festa a floresta porque flore a manhã.<br />

alvorada, a ave vê alvo o céu e alto<br />

voa à luz do sol. seu par de asas sobrevoa<br />

a verde mata – matutino vôo,<br />

sem meta. no ar, vão batendo vão<br />

batendo vão, as asas – feixe de penas.<br />

à hora nona, ora evola céu afora<br />

ora parte da altura em raso vôo<br />

em volta ao ninho, meteórica partida<br />

a seu nicho ecológico – auriverde área.<br />

breve pausa, ao meio-dia, pousa brava.<br />

via oral, via aérea, ousa sua selvagem<br />

melodia – maviosa voz ao véu alvianil.<br />

e logo após impõe às asas o movimento.<br />

céu, vôo – seu ovo. clara metáfora.<br />

seu vôo, arauto de uma nova eva, aérea.<br />

finda o voar ao fim da parda tarde.<br />

pôr-do-sol, a dor do pôr-o-ovo:<br />

adorado ardor de ave ávida à vida.<br />

após posto o ovo, o vôo suave.<br />

de árvore em árvore, o ar de amar,<br />

mãe solteira na tarde, solitária.<br />

mas desalmado a dor da bela ave caça.<br />

bélica, sua mão destra mune a arma<br />

a ar comprimido e opressora bala.<br />

enquanto olho nu por fresta a vê.<br />

de par a par, pára e mira. depara-a<br />

em vôo. agora pouso. pára e mira.<br />

a ave alça vôo fora da alça de mira.<br />

respira o ar em volta. volta e meia,<br />

cessa o respirar. aponta. a ponte,<br />

entre alvo e mão, dura o tiro. demora.<br />

tempo do rito embora breve gera ira.<br />

duro dedo indicador, à vera, aguarda.<br />

quarto de hora, envolto em ar, respira.<br />

aorta em rota, fiel ator, o cão espreita.<br />

rota da ave quieta a mão. enfim o tiro.<br />

reto trajeto de projétil rasga o vôo.<br />

a bala abala a rara arara.<br />

ex-alada, exala findo suspiro.<br />

força da bala o grave repouso forja.<br />

as asas apenas ar: onde há penas.<br />

o corpo: o orpo o rpo o po o o.<br />

agora só o ovo: gema e clara.<br />

gemido imposto por própria arara.<br />

(Outubro, 1979)


Perto ao porto, não<br />

sei se parto, ou não:<br />

beiro o caos.<br />

Perto ao porto, não<br />

sei se rapto, ou não,<br />

parte da ilha.<br />

Partilho a antes-dor<br />

do ex-ilhado:<br />

meu ser é cacos.<br />

Em si, não me importo<br />

se parto ou não :<br />

a nau é o acaso.<br />

Se parto, levo a bordo<br />

parte da ilha<br />

qual clandestina.<br />

Se me abordarem em<br />

alto mar o contrabando,<br />

grito mais alto<br />

que as ondas.<br />

E, rápido, o embrulho<br />

desfaço, e o passaporte,<br />

e, oco, mergulho<br />

na morte.<br />

Gemagem: poesia de alto quilate<br />

PARTILHA<br />

(1980)<br />

95<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


96 DAS PULSAÇÕES<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

O coração pulsa<br />

em tic-tac maluco<br />

qual relógio de pulso<br />

que, diário, pulsasse<br />

à parede do tórax<br />

pelo lado ocluso.<br />

Waldo Motta<br />

À parede, sim (sem ser cuco<br />

que, horário, avisasse<br />

o passar da hora,<br />

que voasse num impulso<br />

de voar, sem verdugo<br />

tal o relógio – à chave<br />

preso e preso às cordas<br />

de seu mecanismo de não-ave).<br />

Que o cuco não-relógio<br />

só se ata às suas asas,<br />

às chaves do bico, às cordas<br />

vocais, e não canta nos móveis<br />

nem nas paredes das casas<br />

na hora em que acorda .<br />

Mas o coração pulsa.<br />

Seu tic-tac ilógico<br />

mede o tempo de uso,<br />

de vida – não o necrológico,<br />

da inércia dos músculos,<br />

e do conjunto ósseo.<br />

Mas o coração pulsa.<br />

Seu tic-tac, o arranque,<br />

ouve-se no peito, sob a blusa,<br />

onde, em artérias de sangue,<br />

mede a oferta e a recusa<br />

de outro coração que bate<br />

no mesmo compasso,<br />

em pulsações convulsas.<br />

(16-08-1977)


DE PARÓDIA, PARÁFRASE, ESTILIZAÇÃO, APROPRIAÇÃO<br />

E INTERTEXTUALIDADE<br />

Wilbett Oliveira*<br />

SANT’ANNA, Afonso Romano de. Paródia, paráfrase e cia. 6. ed. São<br />

Paulo: Ática, 1988. (Série princípios, v. 1)<br />

Credenciais do autor<br />

Affonso Romano de Sant’Anna é doutor em Literatura Brasileira<br />

pela Universidade Federal de Minas Gerais. Poeta de constante preocupação<br />

social e existencial participou dos principais movimentos de renovação da poesia<br />

brasileira nas décadas de 50 e 60 e é autor de uma obra em constante processo<br />

de auto-questionamento como linguagem e como revelação de realidade. Nesta<br />

área, publicou Canto e palavra (1965), Poesia sobre poesia (1975), A grande<br />

fala do índio guarani perdido na história e outras derrotas (1980). Professor<br />

da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, é autor de estudos críticos<br />

como Drummond, Análise da obra (1972) (nova edição de sua tese, antes<br />

publicada com o título Drummond, o gauche no tempo), Análise estrutural<br />

de romances brasileiros (1973), Por um novo conceito de Literatura<br />

Brasileira (1977) e Música popular e moderna poesia brasileira (1978).<br />

Como professor e escritor convidado, já esteve em muitos centros estrangeiros,<br />

entre eles universidades da Califórnia. Iowa, Texas, Colônia (Alemanha) e<br />

Aix-en-Provence. Tem inúmeros artigos publicados em revistas e jornais.<br />

Resumo da obra<br />

Em Paródia, paráfrase e cia, o objetivo do autor é ampliar o<br />

estudo da paródia e da paráfrase ao lado da estilização e da apropriação, o que<br />

permitirá ao leitor um esclarecimento do que é “literário” e um entendimento<br />

* Wilbett Oliveira é especialista em Literatura Brasileira (UNIVERSO), mestrando em<br />

Estudos Literários (UFES).


98 da formação ideológica por meio da linguagem. Apresenta modos de articulação<br />

dos termos por meio da análise de poemas de Manuel Bandeira, Oswald de<br />

Andrade, Jorge de Lima, Drummond etc.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Wilbett Oliveira<br />

O autor estabelece uma consonância entre paródia e Modernidade,<br />

apontando-a como efeito sintomático e freqüente desta. O re-aparecimento da<br />

paródia na modernidade se dá devido à especialização da arte: a paródia tornouse<br />

um efeito metalingüístico, intra e intertextualmente.<br />

Sant’Anna amplia os estudos realizados por Bakhtin e Tynianov<br />

sobre os conceitos de paródia, paráfrase, estilização e apropriação estendendoos<br />

aos estudos da semiologia em geral (Arte, dança, música).<br />

A partir dos aspectos históricos da paródia (de Aristóteles a<br />

Bakhtin), o autor aponta os seus significados e tipos básicos: a) verbal (alteração<br />

de um termo), b) formal (ironia por meio do estilo e dos efeitos técnicos), e;<br />

c)temática (caricatura da forma e do espírito do autor). Autores<br />

contemporâneos definiam paródia por contigüidade (sinônimo) de pastiche.<br />

Sant’Anna, no entanto, estabelece um paralelo entre paródia e estilização a<br />

partir das definições de Tynianov, que afirma haver na paródia um ponto de<br />

discordância e na estilização, ponto de consonância. Para Bakhtin, na paródia<br />

como na estilização, o autor emprega a fala de um outro, mas em oposição.<br />

A estilização se aproxima da paródia: na paródia os planos se<br />

deslocam (tragéda/comédia), na estilização, os planos se convergem. Tanto na<br />

estilização quanto na paródia o autor insere a fala de um outro. Na paródia, há<br />

uma intenção oposta à fala original.<br />

Quanto à definição, paráfrase “é a reafirmação em palavras<br />

diferentes, do mesmo sentido de uma obra escrita. [..] Em geral ela se aproxima<br />

do original em extensão” (p. 65).<br />

A partir desse conceito, paráfrase é vista como tradução ou<br />

transcrição. Na música, equivale-se ao arranjo e ao intérprete. Como tradução,<br />

John Dryden difere paráfrase de metáfrase, que não é totalmente literal.<br />

Para os lingüistas, todas as paráfrases possíveis de um enunciado<br />

podem ser previstas porque “à descrição de uma língua comporta como parte<br />

integrante a construção de um procedimento mecânico” (p. 20).<br />

Na Psicanálise, é Freud quem se utiliza da paráfrase, a partir do<br />

resumo do romance Gadiva, de Jeisen.<br />

Segundo Sara Koffman, são tênues os limites entre interpretar e<br />

resumir. O resumo já seria uma paráfrase pura e a tradução já seria uma<br />

interpretação.<br />

O autor retoma os termos apresentados exemplificando as<br />

relações parafrásticas e parodísticas entre os textos de Gonçalves Dias,


De paródia, paráfrase, estilização e aprorpiação: e intertextualidade<br />

Drummond, Cassiano Ricardo e Oswald de Andrade. Ao final, afirma que<br />

estas articulações somente serão percebidas por um leitor bem informado,<br />

com um repertório cultural e literário amplo.<br />

Sintagmaticamente, a paródia é tida como um novo discurso, como<br />

uma linguagem inauguradora, enquanto a paráfrase é ocultadora de um velho<br />

paradigma, pois repousa na camada da semelhança (condensação, substituição<br />

superficial). A paráfrase é continuidade, retomada; a paródia é descontinuidade,<br />

ruptura, deslocamento, enquanto a estilização é inserção.<br />

Ideologicamente, a paródia “foge ao jogo de espelhos denunciando<br />

o próprio jogo e deslocando as coisas de seu lugar. A paráfrase é um discurso<br />

sem voz. É a repetição da voz do outro. É angelical, enquanto a paródia é<br />

demoníaca, misticamente falando”.<br />

A relação entre a paródia e representação se dá pela<br />

complementaridade nas peças dramáticas, visto que sua origem é musical.<br />

Tem uma função catártica (interlúdio/cômico com a peça principal).<br />

Na verdade, a paródia vai além da representação. O texto<br />

parodístico faz uma re-apresentação do que estava subjugado; uma desleitura<br />

do texto, instauração de um novo discurso, tomada de consciência crítica.<br />

Psicanaliticamente, o estágio do espelho corresponde à paráfrase,<br />

marcada pela indeterminação do autor do discurso. Na paródia, não há um<br />

jogo de espelhos, pois ela associa-se à lente pelo exagero com que re-apresenta<br />

o elemento focado.<br />

Sant’Anna ao reformular os conceitos de Tynianov e de Bakhtin<br />

acrescenta algumas nuanças intermediárias por meio de um modelo triádico<br />

para se entender melhor paródia x estilização. Neste modelo, o elemento<br />

estilização não é mais opositivo a um texto original, mas uma técnica geral que<br />

tem como efeitos a paródia e a paráfrase.<br />

O autor apresenta outro tipo de raciocínio diferente da proposta<br />

de Tynianov e Bakhtin: o desvio. Para Sant’Anna, “a paráfrase surge como<br />

desvio mínimo, a estilização como desvio tolerável e a paródia como desvio<br />

total” (p. 38), considerando as relações intra e intertextuais. Na literatura e na<br />

música, a estilização pode ser medida como desvio tolerável e a paráfrase<br />

como desvio mínimo. Num segundo modelo, a paródia é vista como deformação,<br />

a paráfrase como conformação e a estilização como reforma. Assim, a paráfrase<br />

e a estilização fazem parte de um mesmo conjunto em oposição à paródia.<br />

Esta oposição, no entanto não é tão intensa quando se admite que a estilização<br />

possa ser um liame entre a paráfrase e a paródia.<br />

Apropriação é uma técnica artística que utiliza o deslocamento<br />

para re-apresentar os objetos do cotidiano em sua estranhidade (recurso usado<br />

pelo ready-made, pop art e happening).<br />

99<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


100 A apropriação se opõe à paródia e diverge da estilização. É uma<br />

espécie de paródia que chega ao paroxismo. O artista apropriador não releva a<br />

propriedade dos textos e objetos.<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006<br />

Wilbett Oliveira<br />

O terceiro modelo de análise apresentado pelo autor pressupõe o<br />

encadeamento de quatro elementos: paráfrase e estilização (no plano das<br />

similaridades), paródia e apropriação (no plano das diferenças). A gradação<br />

entre os dois conjuntos se dá da seguinte forma: a) o grau mínimo de alteração<br />

do texto é a paráfrase; o desvio tolerável é a estilização, o que confirma o eixo<br />

das similaridades; e b) a inversão do significado é a paródia, exemplo máximo<br />

na apropriação.<br />

A paráfrase e a apropriação têm pontos de convergências<br />

diferenciados. Aquela é uma quase não-autoria. A apropriação se configura<br />

um conjunto das diferenças por ser variante da paródia (não reproduz, produz<br />

algo novo).<br />

O eixo parafrásico relaciona-se à ideologia totalitarista, momento<br />

em que a arte passou a ser sinônimo de reprodução. O espírito criador passa a<br />

súdito. Na mesma ordem, associa paródia à decadência de acordo aos estudos<br />

de Bosi. Assim, a obra de arte é vista como “ruínas”, desocultamento,<br />

desvelamento das coisas, de sua realidade aparente.<br />

Manuel Bandeira, diferentemente de Jorge de Lima, cultiva as<br />

formas clássicas dentro de um espírito de “imitação” de forma aleatória, nãolinear<br />

(O poema ...E. E. Cummings, serve de exemplo). Sant’Anna afirma ser<br />

difícil separar estilização de paródia, pois onde se veria ou se pode ver sátira,<br />

da mesma forma que não se pode negar no texto a existência da paráfrase.<br />

Então, os limites da estilização, paráfrase e paródia estariam diluídos. Para<br />

Sant’Anna, “Em Bandeira, é possível encontrar uma série de comportamentos<br />

peculiares quanto à intertextualidade” (p. 62). Antologia, por exemplo, é um<br />

poema em que se verifica a autotextualidade: síntese da poética do próprio<br />

poeta, em que se observa o cruzamento de vários poemas do próprio Bandeira.<br />

A identificação da paródia, paráfrase, estilização e apropriação<br />

pressupõe a noção de semelhança e diferença entre os textos. Não se pode<br />

conceber a literariedade de um texto sem considerar seu aspecto ideológico e<br />

estético, tendo em vista a noção de valores de determinada escola ou<br />

manifestação cultural, pois “as linguagens são formuladas em espaços diversos<br />

dentro do cotidiano” (p. 66) e a literatura tem o poder de ser apropriar dessas<br />

linguagens. Assim, é que se percebe em Poema tirado de uma notícia de<br />

jornal a presença do cotidiano (linguagem comum jornalística) bem como, a<br />

transposição de aspectos literários para o jornal. A literatura, dessa forma, se<br />

apropria e se permite ser apropriada.<br />

Para Sant‘Anna, a automatização e a desautomatização da cultura


se relacionam com a paródia e com a paráfrase por meio do reconhecimento e<br />

refutação da linguagem. A automatização caracteriza-se pela desconcentração<br />

ou desvelamento e é o meio por que se pode ensinar e aprender uma língua. O<br />

seu uso como recurso de aprendizado da literatura requer o conhecimento das<br />

técnicas do escritor (texto original). A desautomatização é uma ruptura do<br />

cotidiano que se apresenta outro código social, outra lógica. Pode ser observada<br />

tanto na literatura quanto na pintura, no cinema, na moda (carnavalização).<br />

O capítulo conclusivo retoma o escopo inicial: inserir ao binômio<br />

paródia e paráfrase outras nuanças e/ou desdobramentos que seriam sua<br />

relação com a apropriação e a estilização a serem observados na intra e<br />

intertextualização que se dá por intertextualidade da semelhança e<br />

intertextualidade da diferenciação.<br />

O autor enfatiza que o efeito modernista da paródia xxxx mas<br />

antigo como distorção xxx sobre o presente. Ressalta também a coexistência<br />

dos quatro elementos no discurso e sugere a exaltação de um e de outros<br />

elementos como fatores excludentes e, em seguida, aponta exemplos clássicos<br />

de como os elementos são operados em versos de Horácio, Camões, Petrarca<br />

etc.<br />

Além disso, destaca o papel do crítico ante às noções de identidade<br />

e semelhança de obras e discute alguns modelos de análise literária por<br />

periodização e por semelhanças e diferenças (relações parodísticas,<br />

parafrásicas e estilizações). Para ele, até o século XVIII a literatura brasileira<br />

viveria um período de imitação, no século XIX, uma fase de estilização e<br />

atualmente um período parodístico.<br />

Ao final do livro, o autor apresenta um valioso vocabulário crítico<br />

(tópico 15) e bibliografia comentada (16).<br />

Indicações do resenhista<br />

O texto, por estender a análise da paródia, paráfrase, estilização e<br />

apropiação aos diversos campos da arte – música, dança, cinema, moda – é<br />

indicado aos estudiosos da Arte em geral, pois permite estabelecer relações de<br />

semelhança e diferença desses campos em sua história e evolução.<br />

Conclusão<br />

De paródia, paráfrase, estilização e aprorpiação: e intertextualidade<br />

Por possuir um cunho didático (uso extensivo de exemplos e<br />

retomada dos percursos realizados), o autor permite o entendimento dos<br />

conceitos de paródia, paráfrase, estilização e apropriação e sua inter-relação.<br />

A obra constitui elemento fundamental a quem se introduz nos estudos da Arte,<br />

principalmente da Literatura.<br />

101<br />

Revista Mosaicum - Ano II, n. 3 - Jan./Jul. 2006


NORMAS PARA PUBLICAÇÃO<br />

1 REVISTA MOSAICUM é uma publicação semestral do NUPPE/FASB/<br />

ISESB, de trabalhos originais classificados em uma das seguintes modalidades:<br />

a)resultados de pesquisas sob a forma de artigos; b) ensaios; c) resumos de<br />

teses, dissertações ou monografias, e d) resenhas críticas, dissertativas e<br />

literárias.<br />

2 Os trabalhos devem ser encaminhados para a Coordenação do Núcleo de<br />

Pós-graduação, Pesquisa e Extensão – NUPPE/FASB/ISESB: Rua Graciliano<br />

Viana, 79, Bela Vista – 45995-000, Teixeira de Freitas, BA, em três vias, digitados<br />

em folha com tamanho A4 210 x 297mm, em espaço duplo, fonte Times New<br />

Roman, tamanho 12, margem 3 superior e esquerda e 2 inferior e direita,<br />

parágrafo justificado e sem recuo da margem esquerda (primeira linha). O<br />

número máximo de páginas será: 15 para artigos científicos e resenhas críticas,<br />

20 para revisão bibliográfica e 8 para ensaios, resenhas literárias e/ou<br />

dissertativas, incluindo tabelas, gráficos e ilustrações. Enviar a forma digitalizada<br />

somente quando solicitada.<br />

3 Na primeira página devem constar: título do artigo; nome(s) do(s) autor(es),<br />

endereço, telefone, e-mail para contato; instituição a que pertence(m) e cargo<br />

que ocupa(m).<br />

4 Resumo (português) e Abstract (língua estrangeira): com no mínimo 100<br />

palavras e no máximo 250, cada um, de acordo com a NBR 6028. Logo em<br />

seguida, as Palavras-chave (português) e Keywords (língua estrangeira), cujo<br />

número desejado é de no mínimo três e no máximo cinco.<br />

5 As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias, quando apresentados em folhas<br />

separadas, devem ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados<br />

e apresentar referências de sua autoria/fonte. Para tanto devem seguir a Norma<br />

de apresentação tabular, estabelecida pelo Conselho Nacional de Estatística e<br />

publicada pelo IBGE em 1979.<br />

6 As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem,<br />

assim como os agradecimentos, apêndices e informes complementares.


7 0 sistema de chamada adotado por este periódico é o de autor-data. O uso<br />

de citações deverá obedecer à NBR 10520:2002<br />

8 As referências deverão ser efetuadas conforme ABNT (NBR 6023:2000).<br />

9 As colaborações encaminhadas à revista são submetidas à análise do Conselho<br />

Editorial, atendendo critérios de seleção de conteúdo e normas formais de<br />

editoração, sem identificação da autoria, para preservar isenção e neutralidade<br />

de avaliação. A aceitação da matéria para publicação implica na transferência<br />

de direitos autorais para a revista. Os trabalhos não aprovados não serão<br />

devolvidos.<br />

Conselho Editorial

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