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Foucault ea ética: algumas considerações - Unicamp

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ISSN 1981-1225<br />

Dossiê <strong>Foucault</strong><br />

N. 3 – dezembro 2006/março 2007<br />

Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins<br />

<strong>Foucault</strong> e a <strong>ética</strong>: <strong>algumas</strong> <strong>considerações</strong> *<br />

<strong>Foucault</strong> and ethics: some remarks<br />

1<br />

Rommel Luz F. Barbosa<br />

Mestrando em Filosofia – UERJ<br />

Correio eletrônico: rommel.luz@gmail.com<br />

Resumo: O presente artigo procura apontar como os últimos escritos de <strong>Foucault</strong><br />

podem contribuir para o pensamento moral contemporâneo. Partindo do problema da<br />

vinculação do sujeito com a norma moral, busco mostrar a relevância de se perguntar<br />

pelo ethos e, através dos conceitos de subjetivação e de problematização, faço<br />

<strong>algumas</strong> <strong>considerações</strong> sobre o modo como <strong>Foucault</strong> trata tal questão. Por fim,<br />

diferencio a questão da <strong>ética</strong> do modo pelo qual comumente se entende que deva ser<br />

um pensamento moral.<br />

Palavras-chave: <strong>ética</strong> – subjetivação – problematização.<br />

Abstract: I try to point out in this essay how <strong>Foucault</strong>’s latter works can contribute to<br />

contemporary moral thought. I start to show the importance of asking about the ethos<br />

by the problem of the bond between the subject and the moral norm. Furthermore, I<br />

make some remarks about the way <strong>Foucault</strong> approaches the question of ethos by the<br />

concepts of subjectivation and problematization. Finally, I differentiate between the<br />

question of ethics and what we usually understand as a moral thought.<br />

* Este artigo faz parte de minha pesquisa de mestrado, que está sendo r<strong>ea</strong>lizada no Programa de Pósgraduação<br />

em Filosofia da UERJ, sob orientação da Profa. Dra. Vera Maria Portocarrero, com o apoio de uma<br />

bolsa da CAPES.


Rommel Luz F. Barbosa<br />

<strong>Foucault</strong> e a <strong>ética</strong>:<br />

Algumas <strong>considerações</strong><br />

Key-words: ethics – subjectivation – problematization.<br />

I<br />

Os últimos escritos de Michel <strong>Foucault</strong> têm sido revisitados e muito é<br />

falado sobre a <strong>ética</strong> em seu pensamento, que viria somar-se aos outros<br />

dois eixos de seus trabalhos: o saber e o poder. Gostaria de perguntar<br />

aqui não pelo melhor modo de se dispor esses escritos no conjunto das<br />

investigações de <strong>Foucault</strong>, mas como situá-los nas discussões<br />

contemporân<strong>ea</strong>s em torno da <strong>ética</strong>. O que eles têm a nos dizer, quais<br />

familiaridades do nosso pensamento moral podem ser inquietadas<br />

através do estudo desses escritos? Questão em nada trivial, mas<br />

imperiosa, a propósito da qual pretendo fazer <strong>algumas</strong> <strong>considerações</strong>.<br />

Quando Jürgen Habermas diz, em O futuro da natureza humana,<br />

que toda teoria da justiça não pode senão esperar pela transigência<br />

daqueles aos quais ela se dirige (cf. Habermas, 2004: 7), expõe um<br />

problema central para toda teoria moral contemporân<strong>ea</strong>. Esse mesmo<br />

ponto é visado quando se criticam as teorias morais universalistas por<br />

pressuporem um sujeito “desenraizado”, isto é, uma subjetividade<br />

supostamente desprendida de suas determinações históricas, sociais,<br />

culturais. Poderíamos dizer que se trata de um problema de motivação:<br />

por que agir moralmente? Contudo, quando se fala de motivação, fala-<br />

se do vínculo que o indivíduo tem com a norma ou o preceito moral.<br />

Kant deu uma resposta a esse problema quando fez da lei moral a lei<br />

que a vontade dá a si mesma, quando fez da lei moral a lei da<br />

liberdade, princípio da autonomia do homem. Entretanto, estamos longe<br />

de um consenso acerca da pretensa validade universal da resposta<br />

kantiana. Não se pode dizer que Kant tenha negligenciado o problema<br />

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ISSN 1981-1225<br />

Dossiê <strong>Foucault</strong><br />

N. 3 – dezembro 2006/março 2007<br />

Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins<br />

da vinculação do sujeito com a lei moral, mas também não podemos tão<br />

prontamente aceitar sua resposta para esse problema. Sobre isso,<br />

<strong>Foucault</strong> tem algo a nos dizer.<br />

<strong>Foucault</strong> nos lembra que a moral não se esgota no código moral,<br />

nas regras de conduta que são prescritas aos indivíduos e aos grupos,<br />

nem na conduta mais ou menos adequada a essas regras desses<br />

indivíduos e grupos. Entre a regra e a conduta que se avalia pela regra,<br />

há aquilo que ele chamou de subjetivação, os modos de conduzir-se,<br />

isto é, as maneiras pelas quais o indivíduo se transforma em sujeito de<br />

uma conduta moral. Quanto a isso, duas observações: a subjetivação<br />

não diz respeito a uma subjetividade dada que introjetaria normas e<br />

preceitos que lhe seriam estranhos, tampouco se trata de uma<br />

subjetividade que se identifica com regras de conduta porque elas<br />

provêm de sua “cultura”; não há um sujeito “desenraizado” nem<br />

“enraizado” porque não há sujeito algum dado de antemão. A<br />

subjetivação concerne aos modos como um indivíduo se torna<br />

propriamente um sujeito, e sujeito de uma conduta moral. Os modos de<br />

conduzir-se de que se fala aqui não são razões ou justificativas que se<br />

pode aceitar (ou não) para se submeter a certas leis, eles não são algo<br />

que se possa avaliar como que de fora: eles dizem respeito ao modo de<br />

constituição do sujeito enquanto tal. Diz <strong>Foucault</strong>:<br />

É verdade que toda ação moral comporta uma relação ao r<strong>ea</strong>l em<br />

que se efetua, e uma relação ao código a que se refere; mas ela<br />

implica também uma certa relação a si; essa relação não é<br />

simplesmente “consciência de si”, mas constituição de si enquanto<br />

“sujeito moral”, na qual o indivíduo circunscreve a parte dele mesmo<br />

que constitui o objeto dessa prática moral, define sua posição em<br />

relação ao preceito que respeita, estabelece para si um certo modo<br />

de ser que valerá como r<strong>ea</strong>lização moral dele mesmo; e, para tal,<br />

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Rommel Luz F. Barbosa<br />

<strong>Foucault</strong> e a <strong>ética</strong>:<br />

Algumas <strong>considerações</strong><br />

age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se à<br />

prova, aperfeiçoa-se, transforma-se (<strong>Foucault</strong>, 1988: 28).<br />

A subjetivação é a dimensão propriamente <strong>ética</strong> da moral; ela diz<br />

respeito à constituição de um ethos, de um modo de ser, e não à mera<br />

correção de atos isolados.<br />

O problema da motivação, do vínculo do indivíduo com o código<br />

moral se mostra mais amplo de acordo com <strong>Foucault</strong>. Quando ele nos<br />

apresenta a subjetivação como uma importante dimensão da<br />

experiência moral, ele nos lembra que a relação do código com as<br />

condutas que devem ser regidas por ele não é algo que se deixe pensar<br />

unicamente em termos da apresentação de razões que justifiquem a<br />

aceitação do código por parte de indivíduos e grupos. Agir segundo um<br />

determinado preceito implica não só posicionar-se diante dele de um<br />

determinado modo, mas também circunscrever a parte de si implicada<br />

na observância desse preceito, agir sobre si através de práticas, e tudo<br />

isso tendo como horizonte uma certa conduta, um certo modo de ser<br />

que é almejado. Mais do que ligar um sujeito a certas regras, a<br />

subjetivação mostra que a experiência moral diz respeito à constituição<br />

de uma subjetividade, de um certo tipo de sujeito que não está de modo<br />

algum dado de antemão, pois que se trata de formá-lo, de tornar-se um<br />

certo tipo de sujeito, e não de afirmá-lo, de desdobrar algo que já<br />

estivesse presente. Assim, a <strong>ética</strong> é propriamente a elaboração da<br />

relação consigo mesmo, a constituição de um modo de ser, de um<br />

ethos.<br />

4<br />

II


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Dossiê <strong>Foucault</strong><br />

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John Rajchman nos diz que em <strong>Foucault</strong> encontramos “uma tentativa de<br />

repensar a antiga questão do ethos: como estar ‘à vontade’ num mundo<br />

em que nossa identidade não é dada, nosso convívio é questionado,<br />

nosso destino é contingente ou incerto – o mundo da violência de nossa<br />

autoconstituição. Essa seria uma questão que, ainda hoje, só ignoramos<br />

à custa de uma brutalidade mortífera” (Rajchman, 1993: 166). E de que<br />

modo a ignoramos? Diz mais a frente Rajchman:<br />

Dizem, vez por outra, que hoje vivemos em meio a diferentes<br />

tradições <strong>ética</strong>s, sem mais sermos capazes de dizer por que devemos<br />

adotá-las ou como escolher entre elas. O “pluralismo” é a visão de<br />

que devemos conservá-las todas ao mesmo tempo, ainda que ao<br />

preço da dissonância ou “incomensurabilidade” lógica; o “monismo” é<br />

a visão de que precisamos ou devemos ter a única teoria correta.<br />

Mas em nenhum desses casos surge o problema do que ainda<br />

poderia ocorrer para r<strong>ea</strong>rranjar e repensar nossas tradições<br />

(Rajchman, 1993: 167).<br />

Assim, tanto as ações afirmativas como as demandas pelo<br />

reconhecimento de diversas tradições, ambas tão comuns hoje, passam<br />

por cima da “antiga questão do ethos”. Reivindicações pluralistas e<br />

monistas tratam os modos de viver que nos são familiares como não<br />

problemáticos ou problematizáveis. Ambos querem garantir um modo de<br />

“estar à vontade” no mundo, em vez de afrontá-lo como problema.<br />

Talvez se possa dizer que tanto o pluralismo quanto o monismo, como<br />

os descreve Rajchman, são afins de um certo cosmopolitismo, pois o<br />

cosmopolita é aquele que está à vontade em qualquer lugar, sendo<br />

secundário se ele está à vontade porque todos os modos de viver lhe<br />

são familiares ou porque só há um único núcleo ético universal<br />

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Rommel Luz F. Barbosa<br />

<strong>Foucault</strong> e a <strong>ética</strong>:<br />

Algumas <strong>considerações</strong><br />

partilhado por qualquer forma de vida com a qual ele possa deparar-se.<br />

Ao contrário desse cosmopolitismo, <strong>Foucault</strong> nos confronta com o ethos<br />

enquanto problema. A condição que nos cabe não é tanto a de cidadão<br />

do mundo, mas a de estrangeiro, a condição daquele para o qual a<br />

questão “quem somos nós?” é inconclusa.<br />

O estrangeiro precisa pôr-se “a antiga questão do ethos: como<br />

estar ‘à vontade’ num mundo em que nossa identidade não é dada,<br />

nosso convívio é questionado, nosso destino é contingente ou incerto”.<br />

O ethos surge então como aquilo que se deve constituir e não como algo<br />

dado. As ações morais não são a mera aplicação de um princípio<br />

universal a casos particulares ou a afirmação de uma identidade<br />

original, mas através dessas ações se constitui uma certa conduta<br />

moral, um modo de ser específico.<br />

A posição do estrangeiro é questionada pelas duas posições que<br />

chamei de cosmopolitas: o pluralismo e o monismo. Como se pôr a<br />

questão da <strong>ética</strong> sem fazer apelo a um “nós” advindo de uma<br />

comunidade previamente dada onde o sujeito estaria “enraizado” ou a<br />

uma subjetividade universal e abstrata? Diz-nos Rajchman:<br />

Com efeito, não precisamos submeter-nos à chantagem dos “hábitos<br />

sociais” que nos dizem que, sem eles, não podemos ter nenhuma<br />

identidade, nem à chantagem dos princípios abstratos que nos dizem<br />

que, sem eles, não podemos ter nenhum meio independente de<br />

criticar nossos hábitos sociais. O “nós” da “questão da <strong>ética</strong>” não é<br />

dado pela engenhosa alternativa “hegeliana” entre os princípios<br />

universais e as comunidades particulares, entre o “racionalismo” e o<br />

“relativismo”. Pois em certo sentido, “nós” é que estamos sempre em<br />

questão, nós mesmos, cuja experiência sempre se afasta de nossas<br />

identificações. Que novas formas de vínculos, que novos tipos de<br />

regras podemos ainda inventar para nós, ainda queremos ter?<br />

(Rajchman, 1993: 168)<br />

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Dossiê <strong>Foucault</strong><br />

N. 3 – dezembro 2006/março 2007<br />

Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins<br />

<strong>Foucault</strong> abordou, em uma entrevista, o problema do “nós” a<br />

propósito de uma crítica que Richard Rorty lhe fez. Tal questão é<br />

também uma questão de critério, diz respeito àquilo a que se faz apelo<br />

quando se contesta, rejeita ou busca algo. Com efeito, Rorty notou que<br />

<strong>Foucault</strong>, em suas análises, não faz apelo a nenhum “nós”, “a nenhum<br />

desses ‘nós’ cujos consensos, os valores, a tradicionalidade formam o<br />

quadro de um pensamento e definem as condições nas quais se pode<br />

validá-lo” (<strong>Foucault</strong>, 2001: 1413) 1 . A crítica de Rorty (que apresento<br />

aqui através das palavras do próprio <strong>Foucault</strong>, que faz menção a ela) é<br />

fundamental e permite que se esclareça o que penso ser uma das mais<br />

importantes contribuições de <strong>Foucault</strong> para o pensamento moral.<br />

Como disse Rajchman, somos confrontados tanto por aqueles que<br />

afirmam que sem a base de uma comunidade na qual o sujeito estaria<br />

“enraizado” não teríamos como responder quem somos, quanto pelos<br />

que nos dizem que sem o recurso a princípios abstratos não teríamos<br />

como nos distanciar dessa identidade primeira, estando condenados,<br />

portanto, a falar a partir de uma única perspectiva. Qualquer crítica teria<br />

que fazer apelo a princípios hauridos de um desses dois “nós”.<br />

Entretanto, <strong>Foucault</strong> pensa a atividade crítica de outro modo.<br />

Para ele, “o problema justamente é de saber se efetivamente é no<br />

interior de um ‘nós’ que convém se situar para fazer valer os princípios<br />

que se reconhecem e os valores que se aceitam; ou se não é preciso,<br />

elaborando a questão, tornar possível a formação futura de um ‘nós’”<br />

(<strong>Foucault</strong>, 2001: 1413). Em vez da contestação de algo em nome de um<br />

critério assumido previamente, o que <strong>Foucault</strong> propõe é a elaboração do<br />

problema que afrontamos. No primeiro caso, tem-se “o quadro de um<br />

1 A versão para o português dos textos em francês é de minha responsabilidade.<br />

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Rommel Luz F. Barbosa<br />

<strong>Foucault</strong> e a <strong>ética</strong>:<br />

Algumas <strong>considerações</strong><br />

pensamento” em cujo interior se define um princípio em função do qual<br />

se pode julgar o r<strong>ea</strong>l, tem-se um “nós” prévio à própria questão. Trata-<br />

se, portanto, de um princípio regulador em função do qual “se deve<br />

organizar o fato nos limites que podem ser definidos pela experiência ou<br />

pelo contexto” (<strong>Foucault</strong>, 2001:1409). Tal princípio poderia ser validado<br />

no interior daquele “nós” a que se referiu Rorty. A crítica de <strong>Foucault</strong><br />

dispensa esse “nós” prévio ao mesmo tempo em que não se constitui<br />

como a aplicação de um princípio regulador a casos particulares.<br />

Mas então, o que significa, para <strong>Foucault</strong>, elaborar a questão? E que tipo<br />

de comunidade, que “nós” pode se constituir daí? Elaborar a questão é<br />

mais do que o uso do que poderíamos chamar de faculdade de<br />

ajuizamento, trata-se de um trabalho do pensamento. E o que é o<br />

pensamento?<br />

8<br />

III<br />

O pensamento não é o que habita uma conduta e lhe dá um sentido;<br />

ele é antes isso que permite tomar um recuo em relação a essa<br />

maneira de fazer ou de r<strong>ea</strong>gir, de dá-la a si como objeto de<br />

pensamento e de a interrogar sobre seu sentido, suas condições e<br />

seus fins. O pensamento é a liberdade em relação a isso que se faz,<br />

o movimento pelo qual nos desprendemos disso, o constituímos<br />

como objeto e sobre ele refletimos como problema (<strong>Foucault</strong>, 2001:<br />

1416).<br />

O pensamento não é algo que possa ser entendido como um<br />

princípio regulador ou como “aquilo que habita uma conduta e lhe dá<br />

um sentido”, mais ou menos ao modo dos “hábitos sociais” aludidos por<br />

Rajchman, que nos permitiriam dizer quem somos. Não, o pensamento


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Dossiê <strong>Foucault</strong><br />

N. 3 – dezembro 2006/março 2007<br />

Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins<br />

é o que permite que nos distanciemos de nós mesmos, mas não através<br />

do recurso a um princípio que seria prévio a esse movimento. Não nos<br />

distanciamos para que então possamos julgar-nos de longe, não se trata<br />

de duas “etapas” distintas. O pensamento é esse movimento mesmo de<br />

recuo em relação a si. Pode-se perguntar o que torna possível tal<br />

distanciamento e quais são seus limites.<br />

Afinal, penso que ninguém estaria pronto a afirmar ser capaz de<br />

tomar a si mesmo, sob qualquer aspecto, como objeto de<br />

questionamento. O pensamento precisa ser provocado, incitado. “De<br />

fato, para que um domínio de ação, para que um comportamento entre<br />

no campo do pensamento, é preciso que um certo número de fatores o<br />

tenham tornado incerto, o tenham feito perder sua familiaridade, ou<br />

tenham suscitado em torno dele um certo número de dificuldades. Esses<br />

elementos dependem de processos sociais, econômicos, ou políticos”<br />

(<strong>Foucault</strong>, 2001: 1416). São esses fatores que incitam o pensamento:<br />

eles não garantem que haja uma problematização pelo pensamento,<br />

mas a tornam possível.<br />

Problematizar é justamente em que consiste o trabalho do<br />

pensamento. Elaborar uma questão é problematizá-la, é tornar o dado<br />

em problema. É pelo pensamento que nós afrontamos o r<strong>ea</strong>l (<strong>Foucault</strong>,<br />

2001: 1029); a problematização responde às dificuldades que a<br />

incitaram, “ela elabora a propósito delas as condições nas quais as<br />

respostas possíveis podem ser dadas; ela define os elementos que<br />

constituirão isso ao quê as diferentes soluções se esforçam por<br />

responder” (<strong>Foucault</strong>, 2001: 1417).<br />

Problematizar não é, então, solucionar problemas, é antes a<br />

transformação de um dado em problema a partir de certos fatores que<br />

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Rommel Luz F. Barbosa<br />

<strong>Foucault</strong> e a <strong>ética</strong>:<br />

Algumas <strong>considerações</strong><br />

tornam tal trabalho possível; diferentes soluções só podem surgir a<br />

partir de um esforço de problematização. Trata-se de inquietar<br />

familiaridades, não de pacificar distúrbios. O trabalho do pensamento é<br />

mais afim das tentativas do estrangeiro em sentir-se à vontade, em<br />

orientar-se em meio ao que não lhe é familiar do que com a atitude do<br />

cosmopolita, que, por sentir-se à vontade em qualquer situação, não<br />

pode pensar propriamente.<br />

A problematização, em que consiste o trabalho específico do<br />

pensamento, é o movimento através do qual nos distanciamos de nós<br />

mesmos, tornamos algo que nos era familiar em problema. Tal não<br />

implica, contudo, ficar “perdido”, desorientado; ao contrário, trata-se de<br />

elaborar a questão. Confrontado com um certo número de dificuldades<br />

em torno de algo, o pensamento o elabora, o transforma em problema e<br />

permite que “soluções” (que podem ser variadas e mesmo antagônicas<br />

entre si) possam ser apresentadas a ele.<br />

Certamente se fala aqui de um “estar à vontade” que é da ordem<br />

de um certo desconforto e não da quietude; “estar à vontade” seria não<br />

estar meramente desorientado em meio a uma situação estranha. Com<br />

efeito, como disse Rajchman, a questão da <strong>ética</strong> não é garantir que se<br />

esteja à vontade em toda e qualquer situação, mas ela consiste na<br />

pergunta por como “estar à vontade” quando não se pode contar com a<br />

tranqüilidade de uma familiaridade na qual o questionamento se faria<br />

ausente; ela exige um esforço de problematização. É quando as coisas<br />

se tornam incertas que o pensamento se faz necessário.<br />

Resta responder que espécie de comunidade se pode formar<br />

através desse esforço de problematização. Para tanto é preciso ter<br />

compreendido por que problematização e <strong>ética</strong> não se separam. Como<br />

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Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins<br />

disse Rajchman, “a antiga questão do ethos” diz respeito a “como estar<br />

‘à vontade’ num mundo em que nossa identidade não é dada, nosso<br />

convívio é questionado, nosso destino é contingente ou incerto”, ela<br />

trata do “mundo da violência de nossa autoconstituição”. Vê-se então<br />

que o trabalho de problematização não pode ser encarado como uma<br />

atividade meramente intelectual.<br />

Pensamos ou, mais precisamente, por vezes somos incitados a<br />

pensar, a elaborar algo em problema porque não nos é mais possível, ou<br />

começa a não ser mais possível, lidar com esse algo, r<strong>ea</strong>gir a ele,<br />

comportar-se do modo como usualmente o fazíamos: incertezas,<br />

embaraços, dificuldades se apresentam e põem nosso modo de ser em<br />

questão. Faz-se necessário uma vez mais perguntar “quem somos?”.<br />

O trabalho do pensamento só pode ser empreendido quando é<br />

possível tornarmo-nos, em alguma medida, estrangeiros. Quando algo<br />

em nós não é mais tão certo, podemos nos distanciar de nós mesmos e<br />

elaborar essa parte de nós em questão, problematizá-la.<br />

Tal trabalho exige uma atenção constante a si mesmo, sem a qual<br />

toda problematização se faz impossível; nada mais estranho a ela do<br />

que a “espontaneidade” ou qualquer atitude que não seja da ordem da<br />

reflexão. Por isso, <strong>Foucault</strong> lembra, em seu já célebre ensaio,<br />

Baudelaire, para o qual “ser moderno não é reconhecer e aceitar esse<br />

movimento perpétuo [em que consistiria a modernidade, como “o<br />

transitório, o fugitivo, o contingente”]; é ao contrário tomar uma certa<br />

atitude em relação a esse movimento” (<strong>Foucault</strong>, 2001: 1388). Assumir<br />

o trabalho do pensamento implica em tomar uma atitude que <strong>Foucault</strong><br />

chamou de crítica, implica a constituição de um ethos crítico.<br />

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Rommel Luz F. Barbosa<br />

<strong>Foucault</strong> e a <strong>ética</strong>:<br />

Algumas <strong>considerações</strong><br />

O tipo de comunidade, de “nós” que pode advir desse esforço de<br />

problematização é da ordem de uma comunidade crítica, de uma<br />

“comunidade de ação”. Com efeito, <strong>Foucault</strong> diz o seguinte a propósito<br />

da escrita de sua História da loucura:<br />

Não estou certo, por exemplo, que no momento em que escrevia a<br />

História da loucura havia um “nós” preexistente e acolhedor, ao qual<br />

teria sido suficiente que eu me referisse para escrever meu livro e do<br />

qual esse livro teria sido a expressão espontân<strong>ea</strong>. Entre Laing,<br />

Cooper, Basaglia e eu mesmo, não havia nenhuma comunidade nem<br />

nenhuma relação. Mas o problema se pôs para os que nos tinham<br />

lido, e se pôs também para alguns dentre nós, de saber se era<br />

possível constituir um “nós” a partir do trabalho feito e de modo a<br />

formar uma comunidade de ação. (<strong>Foucault</strong>, 2001:1413)<br />

Tal comunidade não encontraria sua força vinculatória numa teoria<br />

compartilhada, mas num esforço de problematização que foi assumido<br />

por cada um. Em vez de o que poderíamos chamar de uma escola de<br />

pensamento, cujos membros compartilhariam pontos de vista, opiniões<br />

e valorações, <strong>Foucault</strong> se refere a um tipo de “nós” que se forma a<br />

partir da resposta que certas pessoas dão àquela incitação ao<br />

pensamento de que falei anteriormente.<br />

Essa resposta é voluntária e precisa ser dada por cada um<br />

individualmente, mas ela diz respeito a um pertencimento porque nunca<br />

é dada por um único indivíduo apenas. Trata-se, todavia, de um<br />

pertencimento possível. Como disse <strong>Foucault</strong>, a possibilidade dessa<br />

comunidade se apresentou para alguns que desenvolveram certos<br />

trabalhos ou que os leram, ela não foi constatada como já existente. Tal<br />

comunidade não pode, portanto, ser dissociada do desenvolvimento de<br />

uma atitude crítica, de uma atitude de problematização.<br />

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Dossiê <strong>Foucault</strong><br />

N. 3 – dezembro 2006/março 2007<br />

Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins<br />

A maior contribuição que <strong>Foucault</strong> apresenta ao pensamento moral<br />

contemporâneo talvez seja sua “tentativa de repensar a antiga questão<br />

do ethos”. Certamente ele não é o único a fazê-lo, mas é notável o<br />

modo como ele o faz. Não encontramos em seus escritos tentativas de<br />

resolver conflitos de obrigações, dilemas éticos, querelas de valores,<br />

nada que pudesse ser compreendido como uma resposta à pergunta,<br />

considerada a questão clássica da <strong>ética</strong>, “o que devo fazer?”. Responder<br />

a essa pergunta seria apenas fornecer preceitos, regras de conduta,<br />

critérios para a resolução de conflitos morais. Como diz Rajchman:<br />

13<br />

IV<br />

Na filosofia moral, houve uma “<strong>ética</strong> aplicada” no que [Bernard]<br />

Williams considera como a “forma inútil” de derivar princípios<br />

abstratos de casos particulares e formulá-los em termos de uma<br />

teoria ou método de raciocínio geral. Houve questões de igualdade<br />

no direito e na justiça, e nas “esferas” a que eles se aplicam. Que<br />

deve ser abarcado, indagou-se, pelo texto da teoria moral? Houve<br />

discussões a respeito de os governos deverem ou não evitar qualquer<br />

concepção relativa à “boa vida”. Mas o que não se perguntou foi se<br />

pode haver algo de novo na <strong>ética</strong> (Rajchman, 1993: 167).<br />

<strong>Foucault</strong> voltou-se justamente para a pergunta pelo que pode haver<br />

de novo na <strong>ética</strong>. Quando ele fala de subjetivação, de constituição de si<br />

enquanto sujeito de uma conduta moral, o que está em jogo é quem se<br />

é; e, neste caso, quem somos está r<strong>ea</strong>lmente em jogo, pois não se trata<br />

de legitimar ou deslegitimar valores, hábitos, comportamentos, mas, ao<br />

contrário, de questioná-los, de inquietar sua familiaridade e torná-los<br />

em problema, objetos de pensamento, objetos de uma elaboração <strong>ética</strong>.<br />

A atitude crítica de que fala <strong>Foucault</strong> é uma atitude de atenção


Rommel Luz F. Barbosa<br />

<strong>Foucault</strong> e a <strong>ética</strong>:<br />

Algumas <strong>considerações</strong><br />

constante ao que se é e ao que se pode ser, atenção ao que em nós se<br />

apresenta como podendo e devendo ser pensado.<br />

Alguém poderia ainda perguntar, contudo, qual a relevância política<br />

da problematização, qual o papel político do intelectual. Sobre isso, diz<br />

<strong>Foucault</strong>:<br />

O trabalho de um intelectual não é modelar a vontade política dos<br />

outros; é, pelas análises que ele faz nos domínios que são os seus,<br />

de reinterrogar as evidências e os postulados, sacudir os hábitos, as<br />

maneiras de fazer e pensar, dissipar as familiaridades admitidas,<br />

retomar a medida das regras e das instituições e, a partir dessa<br />

reproblematização (onde ele desempenha seu mister de intelectual)<br />

participar da formação de uma vontade política (onde ele tem seu<br />

papel de cidadão a desempenhar). (<strong>Foucault</strong>, 2001:1495-1496)<br />

Em vez de “modelar a vontade política dos outros”, de lhes dizer o<br />

que fazer, o que cabe ao intelectual é o trabalho do pensamento, que<br />

em nada é alheio à política, à formação de uma vontade política.<br />

Entretanto, o que <strong>Foucault</strong> salienta é que não lhe cabe o papel de guia<br />

ou juiz, mas o de questionador.<br />

Ao intelectual não cabe dizer aos outros o quê pensar, tampouco<br />

justificar um modo qualquer de fazê-lo. Para que se possa perguntar<br />

pelo que pode haver de novo na <strong>ética</strong>, perguntar se podemos pensar de<br />

um modo diferente de como vínhamos pensando até então, é preciso<br />

uma desconfiança com relação a si mesmo que, como disse<br />

anteriormente, não está a nosso alcance em sua totalidade, mas cuja<br />

possibilidade deve atrair a atenção daquele que assume para si a tarefa<br />

do pensamento, daquele cuja conduta de vida corresponde a uma<br />

atitude crítica.<br />

14


ISSN 1981-1225<br />

Dossiê <strong>Foucault</strong><br />

N. 3 – dezembro 2006/março 2007<br />

Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins<br />

Na possibilidade, por certo limitada, de pensar diferentemente, de<br />

nos tornarmos estrangeiros a nós mesmos e problematizarmos o que<br />

em nós se apresenta como podendo e devendo ser pensado, se encontra<br />

nossa liberdade. Liberdade que, por isso mesmo, não pode ser<br />

assegurada ou reivindicada, mas apenas exercida. Ao intelectual,<br />

portanto, não pode caber dizer aos outros como ser livres, como agir,<br />

como se comportar; entretanto esse “trabalho de modificação de seu<br />

próprio pensamento e o dos outros me parece ser a razão de ser dos<br />

intelectuais” (<strong>Foucault</strong>, 2001: 1494).<br />

Bibliografia<br />

FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. 1988. 5<br />

ed. Rio de Janeiro, Graal.<br />

___________. Le souci de la vérité. In: Dits et écrits II, 1976-1988.<br />

2001. Paris, Quarto-Gallimard, pp. 1487-1497.<br />

___________. Polémique, politique et problématisations. In: Dits et<br />

écrits II, 1976-1988. 2001. Paris, Quarto-Gallimard, pp. 1410-1417.<br />

___________. Politique et éthique: une interview. In: Dits et écrits II,<br />

1976-1988. 2001. Paris, Quarto-Gallimard, pp. 1403-1409.<br />

___________. Punir est la chose la plus difficile qui soit. In : Dits et<br />

écrits II, 1976-1988. 2001. Paris, Quarto-Gallimard, pp. 1027-1029.<br />

__________. Qu’est-ce que les Lumières?. In: Dits et écrits II, 1976-<br />

1988. 2001. Paris, Quarto-Gallimard, pp. 1381-1397.<br />

HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma<br />

eugenia liberal? 2004. São Paulo, Martins Fontes.<br />

15


Rommel Luz F. Barbosa<br />

<strong>Foucault</strong> e a <strong>ética</strong>:<br />

Algumas <strong>considerações</strong><br />

RAJCHMAN, John. Eros e Verdade: Lacan, <strong>Foucault</strong> e a questão da <strong>ética</strong>.<br />

1993. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.<br />

16<br />

Recebido em dezembro/2006.<br />

Aprovado em fevereiro/2007.

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