PORQUE AS CRIANÇAS NÃO GOSTAM DA ESCOLA - Sistema de ...
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<strong>PORQUE</strong> <strong>AS</strong> CRIANÇ<strong>AS</strong> <strong>NÃO</strong> <strong>GOSTAM</strong> <strong>DA</strong> <strong>ESCOLA</strong> ?<br />
Luisa Castiglioni Lara
4.<br />
í<br />
I<br />
\ ,<br />
POR QUE <strong>AS</strong> CRIANÇ<strong>AS</strong> <strong>NÃO</strong> <strong>GOSTAM</strong> <strong>DA</strong> <strong>ESCOLA</strong> ?<br />
O'Pientadora:<br />
Luisa Castiglioni Lara<br />
Tese submetida como requisito<br />
parcial para a obtenção do grau<br />
<strong>de</strong> mestre em Educação.<br />
. Zi:Zah Xavie'P <strong>de</strong> A Zmei'da<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
Fundação Getúlio Vargas<br />
Instituto <strong>de</strong> Estudos Avançados em Educação<br />
Departamento <strong>de</strong> Administração <strong>de</strong> <strong>Sistema</strong>s EducacioHais<br />
1987<br />
11<br />
,
•<br />
111<br />
Aos meus filhos<br />
e aos meus alunos,<br />
<strong>de</strong> ontem e <strong>de</strong> hoje.<br />
,J
•<br />
V.2. A Organização Hierarquica da Escola.. 64<br />
V.3. A Participação dos Alunos na Organiza<br />
ção da Escola ...................... .<br />
• CAPíTULO VI: UMA REFLEXÃO SOBRE A PRÁTICA <strong>ESCOLA</strong>R 79<br />
J<br />
VI.I. Raciocínio/Pensamento .............. 83<br />
VI.2. Pensando/Fazendo: A Praxis da Autono<br />
m1 a •••••••••••••••••••••••••••••••• 9 O<br />
BIBLIOGRAFIA. 95<br />
V<br />
67
..<br />
junto o seu trabalho na Escola. Durante alguns anos, nos<br />
encontramos quase que quinzenalmente. Trocamos experiê!!.<br />
cias; discutimos posturas e atitu<strong>de</strong>s com relação aos alu<br />
nos e ã instituição escolar; analisamos os conteúdos e os<br />
livros escolares; chegamos a produzir algum material didá<br />
tico e realizamos, juntando alunos <strong>de</strong> várias escolas, aI<br />
gumas ativida<strong>de</strong>s que são chamadas normalmente <strong>de</strong> extra<br />
classe: cineclube, grupo <strong>de</strong> teatro, produção <strong>de</strong> artesana<br />
to, passeios, etc .. Várias colocações que constam <strong>de</strong>ssa<br />
dissertação foram fruto <strong>de</strong>sta troca e do trabalho que,<br />
nestes tempos, realizamos em conjunto.<br />
Mesmo se hoje essa experiência <strong>de</strong> trabalho, por<br />
vários motivos, encontra-se esgotada, ficou-nos a certeza<br />
<strong>de</strong> que e possível <strong>de</strong> se realizar algo novo na instituição<br />
escolar, em qualquer situação em que ela se encontre.<br />
Quando chegamos ao início da década <strong>de</strong> 80, com<br />
os novos ares - ou leves sopros - <strong>de</strong>mocráticos, muita coi<br />
sa parecia querer mudar. O interesse sobre a Escola havia<br />
se reacendido em âmbito nacional; a nova década se inaugu<br />
rava com a lª Conferência Brasileira <strong>de</strong> Educação; na im<br />
prensa, vários artigos <strong>de</strong>nunciavam as mazelas e a inefici<br />
ência do ensino público; as livrarias apresentavam em<br />
suas vitrines - com bastante <strong>de</strong>staque - livros <strong>de</strong> leitura<br />
simplificada <strong>de</strong> análise crítica da instituição escolar.<br />
Entre outros, <strong>de</strong>stacou-se, na época, um texto com título<br />
<strong>de</strong> bastante apelo: "CUI<strong>DA</strong>DO <strong>ESCOLA</strong>!", baseado quase total<br />
mente em bibliografia estrangeira.<br />
VIII
I<br />
•<br />
A reabertura da discussão sobre a Escola coinci<br />
dia com o novo interesse <strong>de</strong> alguns governantes em colocar<br />
como priorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Governo a Educação Infantil. Começaram,<br />
assim, a aparecer, em vários estados do país, propostas e<br />
planos <strong>de</strong> reformulação do ensino. Grupos <strong>de</strong> trabalho fo<br />
ram formados, equipes pensantes e equipes executivas.<br />
Temos hoje, em nosso estado, novos prédios esco<br />
lares, uma carga horária mais extensa, esboços <strong>de</strong> novos<br />
conteúdos <strong>de</strong> ensino ... Mas no dia-a-dia escolar da re<strong>de</strong><br />
pública do Município do Rio <strong>de</strong> Janeiro quase nada mudou.<br />
Muito já foi discutido, escrito e falado sobre o Ensino<br />
e sobre a Escola mas, ao que me parece, muito pouco, ou<br />
quase nada, conseguiu chegar até às salas <strong>de</strong> aula.<br />
A maioria dos profissionais que estão nas esco<br />
las, engajados diretamente com a Educação Escolar, nunca<br />
participaram nem estão participando <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>bates. Se al<br />
gum texto sobre Educação lhes chega até às mãos, é lido<br />
com muito pouco interesse - até mesmo com <strong>de</strong>sconfiança e<br />
incredulida<strong>de</strong> - não chegando a motivar nenhuma discussão<br />
e, muito menos, portanto, alguma renovação da prática do<br />
ensino.<br />
Não seria uma preocupaçao fundamental a supera<br />
çao <strong>de</strong>sse impasse ? Como romper essa inércia, essa incre<br />
dulida<strong>de</strong>, essa distância ? Como se ampliar os <strong>de</strong>bates exa<br />
tamente ali, on<strong>de</strong> eles po<strong>de</strong>riam ser levados à sua conse<br />
cuçao prática ?<br />
Será que os entraves nao vem da distância entre<br />
IX
t.<br />
i<br />
r<br />
J<br />
que se dá aos fatos, assim corno encaminham a escolha e a<br />
leitura que <strong>de</strong>les é feita. Essas referências se encontram<br />
incorporadas na própria experiência recuperada neste tra<br />
balho.<br />
o que procuro, entáo, é evi<strong>de</strong>nciar uma forma <strong>de</strong><br />
relação entre teoria e a prática - uma praxis - para a<br />
qual o fundamental nao e a tentativa <strong>de</strong> apreensão exausti<br />
va do real e nem a reafirmação <strong>de</strong> um saber consagrado [1J.<br />
Trata-se <strong>de</strong>, a partir da leitura da experiência viva, e<br />
com a luci<strong>de</strong>z que me foi possível (ou <strong>de</strong> que fui capaz),<br />
levantar algumas pistas para um novo fazer na Escola que<br />
venha a oferecer respostas ao <strong>de</strong>sejo e à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> sa<br />
ber, <strong>de</strong> criar e <strong>de</strong> comunicar-se que as crianças possuem,<br />
manifestam e, por isso mesmo, nos apontam.<br />
A referência básica <strong>de</strong>ste meu trabalho e a re<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ensino público do Município do Rio <strong>de</strong> Janeiro. E, a me<br />
dida que estas linhas foram sendo escritas, <strong>de</strong>sfilavam<br />
sob os meus olhos as inúmeras colegas <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> magisté<br />
rio neste município. Gostaria que essa dissertação fosse<br />
uma continuação <strong>de</strong> tantas conversas interrompidas, ou ape<br />
nas esboçadas ...<br />
Na Introdução a esta dissertação, partindo do <strong>de</strong><br />
poimento <strong>de</strong> ex-alunos, levanto a constatação, bastante sim<br />
pIes aliás, <strong>de</strong> que as crianças, em geral, não gostam <strong>de</strong>s<br />
ta escola que aí está. Esse não gostar, que normalmente<br />
[1] Ver Castoriadis, C., em "A Instituição Imaginária da<br />
Socieda<strong>de</strong>", à página 45.<br />
XI
os adultos nao levam em muita conta, é "superado" por boa<br />
parte dos alunos, que acabam se enquadrando nas discipli<br />
nas e métodos escolares. Mas há também um gran<strong>de</strong> numero<br />
<strong>de</strong> crianças e adolescentes que, não encontrando nenhum a<br />
trativo no ensino escolar, acabam abandonando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo<br />
as salas <strong>de</strong> aula.<br />
Nos capítulos seguintes, apos analisar a atitu<strong>de</strong><br />
dos adultos frente às instituições e às várias mistifica<br />
çoes que a socieda<strong>de</strong> forja para incentivar as novas gera<br />
çoes às ativida<strong>de</strong>s escolares, me encaminho para a análise<br />
e o questionamento <strong>de</strong> como a escola <strong>de</strong>senvolve o processo<br />
<strong>de</strong> aquisição do saber; como ela se relaciona com o traba<br />
lho, essa ativida<strong>de</strong> individual e socialmente imprescindí<br />
vel na reprodução da vida humana; e como nela, escola, são<br />
"preparados" os futuros cidadãos.<br />
Finalmente, concluindo minhas reflexões, ressal<br />
to a prepon<strong>de</strong>rância assumida pela Razão (império dos co<br />
nhecimentos "claros e distintos") e, em <strong>de</strong>corrência, a va<br />
lorização unilateral dos conteúdos já estabelecidos em <strong>de</strong><br />
trimento das possibilida<strong>de</strong>s múltiplas do pensamento. Con<br />
si<strong>de</strong>ro este como um dos elementos fundamentais, responsa<br />
veis pela ausência <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong> e pela esterilida<strong>de</strong> da<br />
instituição escolar na busca da sabedoria.<br />
Quem sabe, não seja justamente essa busca da sa<br />
bedoria o que é necessário restaurar? De tal modo que,<br />
<strong>de</strong> lugar da instituição (lugar instituído), a Escola pos<br />
sa se tornar lugar <strong>de</strong> instituição (lugar instituinte), on<br />
XII
•<br />
I<br />
<strong>de</strong> as crianças possam apren<strong>de</strong>r a se auto-regular fazendo<br />
pensando-criando.<br />
XIII
•<br />
da vida.<br />
AGRADECIMENTOS<br />
Aos Alunos, com quem continuo apren<strong>de</strong>ndo os encantos<br />
As Companheiras e Companheiros <strong>de</strong> aventuras e <strong>de</strong>sven<br />
turas do ensino público que, <strong>de</strong> um jeito ou <strong>de</strong> outro, con<br />
tribuiram para essas reflexões.<br />
A Zilah, com sua orientação sempre atenta, consisten<br />
te e encorajadora.<br />
A Bia, com sua paciência, suas observações, seu apoio<br />
e sua solidarieda<strong>de</strong>.<br />
Ao Ivandro que veio <strong>de</strong> longe trazendo o seu carinho<br />
e sua sabedoria.<br />
Os meus agra<strong>de</strong>cimentos.
RESUMO<br />
A experiência da vida escolar no magistério público da<br />
re<strong>de</strong> oficial <strong>de</strong> ensino em bairros populares do Rio <strong>de</strong> Janei<br />
ro conduz a uma reflexão sobre os limites e possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>sta instituição. As normas que nela prevalecem, pratica<br />
das como se pensadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, inibem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início os<br />
espaços <strong>de</strong> escolha, criativida<strong>de</strong> e pensamento das crianças.<br />
O próprio "saber escolar", apresentado como eterno, a-histó<br />
rico e único possível, segue caminhos que nada têm a ver<br />
com os questionamentos e as experiências dos alunos. A ma<br />
neira pela qual a Escola se encontra estruturada em nossa<br />
socieda<strong>de</strong> conduz à <strong>de</strong>svalorização do pensamento concreto<br />
- do pensar fazer - e impõe formas abstratas para a aquisi<br />
ção <strong>de</strong> conhecimentos acabados. A Escola tem-se mostrado in<br />
capaz, também, <strong>de</strong> repensar uma forma <strong>de</strong> organização que nao<br />
seja a repetição mecãnica ou reprodução das formas <strong>de</strong> orga<br />
nização social já estabelecidas nessa socieda<strong>de</strong>. A cultura<br />
oficial impõe à Escola a predominãncia da razao lógica como<br />
a única forma possível para o pensamento. Mas o pensar en<br />
cerra possibilida<strong>de</strong>s mais amplas que apenas a sua forma <strong>de</strong><br />
raciocínio lógico. Experiências concretas, realizadas em sa<br />
la <strong>de</strong> aula no município do Rio <strong>de</strong> Janeiro, apontam para uma<br />
nova forma do fazer/pensar no processo educativo.
- o buraco está mais embaixo .•.<br />
O Guilherme e o filho mais velho <strong>de</strong> uma família<br />
numerosa criada sem pai. Hoje, ele é sargento do Exército,<br />
apesar <strong>de</strong> não gostar da carreira militar. Nasceu e mora,<br />
até hoje, "numa favela em Ramos, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Depois<br />
do ginásio, cursou o segundo grau, à noite, na Escola pú<br />
blica, é claro. Escreveu e apresentou na Escola, com alguns<br />
colegas, várias peças para as crianças. Chegou o Serviço<br />
Militar e, ao final, engoliu seco, chorou por <strong>de</strong>ntro, mas<br />
acabou ficando no Exército. Era o único emprego seguro que<br />
se lhe apresentava (já havia aprendido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeno que e<br />
possivel "se vencer", ou se alienar e se integrar à Insti<br />
tuição). Muitos dos seus professores ficaram satisfeitos<br />
em saber que a Escola o "ajudou" a entrar para a carreira<br />
militar. Mas ele gostava mesmo era <strong>de</strong> teatro ...<br />
Po<strong>de</strong>ria essa Escola ter ajudado ao Guilherme a en<br />
contrar outro caminho ?<br />
O Gilberto é vizinho do Guilherme. Estudaram os<br />
dois na mesma Escola, em turmas diferentes. Gilberto foi<br />
sempre um dos melhores alunos. Destacava-se nao somente<br />
nas matérias do núcleo comum, mas inclusive também em músi<br />
ca e <strong>de</strong>senho (mesmo se na Escola não houvesse aulas <strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
senho ... ). Alguns professores chegaram até a classificá-lo<br />
como "superdotado" mas, não apresentando nenhum sintoma <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sajuste na turma, foi simplesmente reconhecido como um<br />
aluno muito dotado.<br />
Saindo da Escola, terminado o Ginásio, conseguiu<br />
2.
logo um emprego numa gráfica; além disso, apren<strong>de</strong>u a tocar<br />
alguns instrumentos e organizou um grupo <strong>de</strong> jovens que se<br />
reunia semanalmente. Neste grupo, cada um falava sobre um<br />
assunto que fosse <strong>de</strong> seu interesse; música, astronomia, bio<br />
logia, etc. Cada um contava o que sabia ou o que lia. Na<br />
época <strong>de</strong> servir o Exército, saiu do emprego e, enquanto ser<br />
via, <strong>de</strong>dicava-se, nas horas vagas, ao artesanato. Atualmen<br />
te, é um profissional qualificado na indústria gráfica.<br />
Mas, por que o Gilberto não quis continuar a estu<br />
dar? Teria conseguido isso sem gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s. "De<br />
posse <strong>de</strong> um diploma do segundo grau, ou até mesmo <strong>de</strong> um<br />
curso superior, po<strong>de</strong>ria, quem sabe, melhorar <strong>de</strong> vida, sair<br />
da favela ••. " Foi o que mui tos professores comentaram. Mas<br />
ninguém quis se aprofundar mais na questão. "Que motivos<br />
teriam levado esse garoto 'tão inteligente' a se <strong>de</strong>sinte<br />
ressar pelos estudos escolares ?"<br />
A maioria das crianças, sempre que perguntadas,<br />
afirmam que querem ir para a Escola; querem apren<strong>de</strong>r a ler<br />
e a escrever. Por uma simples razão <strong>de</strong> ter um lápis, um ca<br />
<strong>de</strong>rno .•• Não importa se esse querer e um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> emula<br />
ção das outras. A criança quer apren<strong>de</strong>r a fazer o que as<br />
outras fazem. Mas, por que muitas vezes ela per<strong>de</strong> essa von<br />
ta<strong>de</strong> quando entra na Escola ?<br />
Nem todas chegam a chorar como o Guilherme, mas o<br />
que se constata é que muitas crianças têm na Escola um com<br />
portamento muito diferente do que têm na rua ou em casa.<br />
Uns se tornam mais agressivos, outros mais retraídos. Será<br />
3.
•<br />
t<br />
CAPíTULO I<br />
DE QUE <strong>AS</strong> CRIANÇ<strong>AS</strong> NÂO <strong>GOSTAM</strong> NA <strong>ESCOLA</strong> ?<br />
Há anos eu ouço comentários, reivindicações e pro<br />
testas dos alunos <strong>de</strong> várias escolas públicas e acompanho a<br />
resistência que eles oferecem a elas; mais feroz por parte<br />
<strong>de</strong> alguns, mais tímida por parte <strong>de</strong> outros, ou mesmo a ati<br />
tu<strong>de</strong> <strong>de</strong> resignação oferecida pelos restantes. Variam as es<br />
colas, as turmas, mudam os cantores da moda mas, tirando<br />
as especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada situação, há algumas colocações<br />
comuns a todos.<br />
A gran<strong>de</strong> maioria dos alunos sao contra a<br />
cia diária, sem caber exceção, dos uniformes, dos<br />
exigên<br />
uni for<br />
mes completos dos quais nem os sapatos escapam. Eles acham<br />
absurda a rigi<strong>de</strong>z dos horários, <strong>de</strong>testam "formar", ficar<br />
sentados por muito tempo e, como se isso tudo não bastas<br />
se, até mesmo estando em casa, ter ainda que fazer os <strong>de</strong>ve<br />
res. são essas as questões que sao sempre apontadas pelos<br />
alunos como sendo as responsáveis por eles não gostarem da<br />
Escola.<br />
Não sao as crianças dos primeiros anos que nos di<br />
zem isso, mas os que estão na Escola há algum tempo e, so<br />
bretudo, os representantes das turmas ou aqueles que for<br />
mam os grêmios estudantis. Para os menores, em parte, as<br />
dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> explicitação e, em parte, a necessida<strong>de</strong> e
10.<br />
pais e <strong>de</strong> seus vizinhos. Neste mundo, ela po<strong>de</strong>rá nao pagar<br />
os transportes coletivos até alcançar um certo<br />
contanto que se arraste por <strong>de</strong>baixo das roletas.<br />
tamanho,<br />
Po<strong>de</strong>rá<br />
usar as ruas, contanto que tome muito cuidado com o espaço<br />
<strong>de</strong>scomunal que os carros ocupam. Po<strong>de</strong>rá ter acesso a uma<br />
quantida<strong>de</strong> mui to pequena dos produtos expostos no comércio,<br />
mas so com o dinheiro na mao. Se ela não incorporar tudo<br />
isso a punição é imediata.<br />
Em casa, é a necessida<strong>de</strong> da sobrevivência que di<br />
ta as "leis"; nos jogos se vive uma experiência muito mais<br />
próxima da autonomia; nos outros lugares da socieda<strong>de</strong> impe<br />
ram as leis do sistema. E na Escola ?<br />
A Escola, dizem, é feita em função das crianças;<br />
é o prolongamento da família. Hoje até ficou na moda se di<br />
zer aos alunos: - "A Escola é sua". Mas, na verda<strong>de</strong>, ela<br />
se apresenta para as crianças como o lugar inverso ao dos<br />
seus jogos, on<strong>de</strong> elas próprias ditam suas leis; a Escola<br />
se constitui num lugar <strong>de</strong> "heteronomia" tanto quanto um su<br />
permercado, uma <strong>de</strong>legacia, ou uma fábrica, mudando-se ape<br />
nas as "funções".<br />
Se acompanharmos mais <strong>de</strong> perto o comportamento<br />
das crianças no dia-a-dia escolar po<strong>de</strong>remos notar que nao<br />
sao as normas o que elas rejeitam. De fato, a sua recusa<br />
se dirige muito mais para a atitu<strong>de</strong> acrítica e para a repe<br />
tição não criativa que <strong>de</strong>las é exigida perante essas nor<br />
mas. Não há jogo sem regras, nem civilização sem leis; is<br />
so as crianças já vivem, intuem, pressentem. Mas o que elas
•<br />
a instituição cumpra com suas funções, encontrando sua a<br />
comodação em suas próprias regras.<br />
12.<br />
Para se viver o dia-a-dia, parece mais fácil nao<br />
se pensar o que já está pensado ou querer, sem limites, as<br />
possibilida<strong>de</strong>s que parecem ser as únicas para se querer.<br />
Ou então, parece mais cômodo não se questionar sobre os<br />
funcionamentos dados, a que "necessida<strong>de</strong>s" respon<strong>de</strong>m eles,<br />
e não querer mais além do que nos permite uma or<strong>de</strong>m pre<br />
estabelecida.<br />
Parece uma conquista impossível, a muitos, perce<br />
ber que sao os próprios homens que criam as instituições<br />
e que e por isso que eles po<strong>de</strong>m repetí-las, empobrecendo<br />
as, enriquecendo-as, ou modificando-as, até mesmo radical<br />
mente, a partir <strong>de</strong> um projeto que seja fruto do pensamen<br />
to e da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um, colocados sob o critério da<br />
reflexão e do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> todos.<br />
O "respeito" às normas valorizadas por si mesmas<br />
e que se <strong>de</strong>svincularam das razões pelas quais foram cria<br />
das evi<strong>de</strong>ncia-se pela falta absoluta <strong>de</strong> iniciativas que<br />
marca a rotina da vida escolar. Apesar da insistência <strong>de</strong><br />
pais e alunos que, enfrentando problemas muito concretos<br />
<strong>de</strong> tempo dinheiro, etc., solicitavam uma certa elasticida<br />
<strong>de</strong> na questão do uso do uniforme, foi necessária uma por<br />
taria da Secretaria Municipal <strong>de</strong> Educação para que as di<br />
reções admitissem excepcionalmente alunos não completamen<br />
te uniformizados nas escolas. (As crianças nos perguntam:<br />
- "por que <strong>de</strong> sapato se estuda melhor do que <strong>de</strong> chine
lo ?").<br />
Nas instituições privadas o patrão é quem<br />
nas instituições pGblicas quem manda é o "governo".<br />
instituições privadas, o patrão é visível, se nao<br />
mente, através <strong>de</strong> seus prepostos; mas, nas escolas<br />
13.<br />
manda,<br />
Nas<br />
pessoa!<br />
pGbll:<br />
cas, on<strong>de</strong> esti o "patrão" ? On<strong>de</strong> esti o "governo", nas oi<br />
tocentas ou mais escolas municipais espalhadas pelo Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro ? Que burocracia tão eficiente e "capilar" é esta<br />
que po<strong>de</strong> se fazer presente em cada uma das unida<strong>de</strong>s, em ca<br />
da uma das normas, em cada situação, ou até mesmo em cada<br />
gesto ?<br />
O fetiche da instituição, mascarado sob a suposta<br />
presença <strong>de</strong> um "dominador", é vivido em grau maior ou me<br />
nor pela maioria dos que nela trabalham, não importa tanto<br />
o lugar que ocupem. Muitas propostas inovadoras, até as<br />
vindas "<strong>de</strong> cima", esbarram na resistência <strong>de</strong> muitos que,<br />
mais realistas do que o rei, agarram-se ao ji instituído.<br />
Por que o Guilherme chorou tanto ao entrar na Es<br />
cola ? Por que tantos continuam sofrendo, resistindo, ou<br />
<strong>de</strong>sistindo ?<br />
Eles vivem na Escola a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esco<br />
lher, <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir, <strong>de</strong> inventar. Outros j i <strong>de</strong>cidiram por eles<br />
o que <strong>de</strong>vem vestir, a sala on<strong>de</strong> ficarão, a professora e os<br />
colegas com os quais terão <strong>de</strong> conviver, corno ou com o que<br />
ocuparão seu tempo.
j<br />
14.<br />
Qual é o espaço on<strong>de</strong> a criança po<strong>de</strong>rá exercitar o<br />
seu pensamento, o seu <strong>de</strong>sejo e a sua imaginação ?
J<br />
CAPITULO 11<br />
POR QUE <strong>AS</strong> CRIANÇ<strong>AS</strong> vAo PARA A <strong>ESCOLA</strong> ?<br />
A fim <strong>de</strong> se vencer a resistência que as crianças<br />
sempre ofereceram à vida escolar, há muito tempo os adul<br />
tos vêm inventando muitas histórias e forjando exortações<br />
para motivar as novas gerações ao estudo.<br />
"SE vocE <strong>NÃO</strong> ESTU<strong>DA</strong>R VAI VIRAR BURRO!"<br />
Quantos <strong>de</strong> nos, quando crianças, já nao ouvimos<br />
exortações <strong>de</strong>sse tipo e, quem sabe, não estremecemos ao<br />
olhar certas gravuras apresentando as crianças, as que ha<br />
viam jogado os livros fora, <strong>de</strong> rabos crescidos e orelhas<br />
<strong>de</strong> burro. Entre todas as aventuras do boneco Pinóquio, cer<br />
tamente o relato <strong>de</strong> sua passagem pelo "Paese <strong>de</strong> Bengodi",<br />
on<strong>de</strong> todas as crianças faziam o que queriam mas, aos pou<br />
cos, iam virando burros, foi a que mais marcou várias e va<br />
rias geraçoes.<br />
Sem dfivida, nessa frase "vai virar burro" se en<br />
contra embutido o conceito <strong>de</strong> razao e <strong>de</strong> cultura peculiar<br />
à concepção liberal do homem: este animal racional que <strong>de</strong><br />
ve distanciar-se cada vez mais da animalida<strong>de</strong>, reprimir e<br />
dominar os instintos e <strong>de</strong>senvolver a razão. Este é o <strong>de</strong>sti<br />
no do homem traçado pelos iluministas e a Escola, incutin<br />
do o saber e a cultura - frutos da razão - <strong>de</strong>sempenha um<br />
papel fundamental na realização <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>stino.
17.<br />
A mesma antiga conotação é clara nesta exortação,<br />
ou em outras <strong>de</strong>sse tipo. Só que agora o mundo do trabalho<br />
não é apenas figurado, ele é expresso sem metáforas. Ao mo<br />
vimento operário e suas reivindicações, as classes patro<br />
nais respon<strong>de</strong>m com o progresso tecnológico e, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le,<br />
introduzem a divisão hierarquizada dos postos <strong>de</strong> trabalho.<br />
Concretizam, assim, a teia <strong>de</strong> especializações com as quais<br />
procuram dividir o movimento operário, justificar as dife<br />
renças .salariais e o <strong>de</strong>sprezo às profissões consi<strong>de</strong>radas<br />
nao especializadas.<br />
Desta vez a Escola é apontada como o caminho para<br />
se entrar no mundo do trabalho, para se ocupar postos mais<br />
"nobres" e mais bem remunerados <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le.<br />
As mudanças na socieda<strong>de</strong> atual, no entanto, sao<br />
muito rápidas. Em nosso país, no final da década passada,<br />
após o fictício milagre econômico, acabamos por cair em<br />
uma longa recessão. Neste período, as indústrias investi<br />
. ram na automatização, diminuiram os postos <strong>de</strong> trabalho e<br />
imprimiram uma aceleração no ritmo <strong>de</strong> produção impensável<br />
até então [3]. Os <strong>de</strong>sempregados das fábricas e escritórios<br />
se somaram aos subempregados e ao contingente das novas ge<br />
rações em ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho, todos em busca <strong>de</strong> qualquer for<br />
ma <strong>de</strong> ganho.<br />
[3] Veja Beatriz Costa, O Trabalhador e a Produção<br />
um Ponto <strong>de</strong> Vista, Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Educação Popular<br />
Vozes coedição NOVA, 1985.<br />
Hoje:<br />
9;
os novos cidadãos.<br />
21.
fi-<br />
!<br />
somada; chega até a intuir que os números nao acabam ( .•.<br />
quero mais um, mais, mais .•• ).<br />
24.<br />
Des<strong>de</strong> cedo, a criança da cida<strong>de</strong> adquire um certo<br />
costume com os símbolos escritos: cartazes, "out-doors" e<br />
televisão se encarregam <strong>de</strong> bombar<strong>de</strong>ar os seus olhos. E,<br />
muito antes <strong>de</strong> conhecerem as letras do alfabeto, elas aca<br />
bam reconhecendo o logotipo da Coca-Cola, da Sadia, da<br />
Mesbla e tantos outros, sobretudo quando há alguém mais<br />
velho por perto que lha possa oferecer uma atenção maior.<br />
Solicitada pelo misterioso po<strong>de</strong>r da escrita, to<br />
da criança diz, em geral, que tem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a<br />
ler e a escrever. t com uma gran<strong>de</strong> expectativa que ela co<br />
loca em sua pasta, nos primeiros dias da Escola, os seus<br />
lápis, borracha e ca<strong>de</strong>rno. Há, porém, diferenças profun<br />
das entre as crianças: a história <strong>de</strong> cada uma, as solici<br />
tações que cada uma <strong>de</strong>las carrega consigo.<br />
Para as crianças das classes "cultas", o se apo<br />
<strong>de</strong>rar do código da escrita e dos conhecimentos científi<br />
cos significa, mais que um ritual <strong>de</strong> passagem, um ritual<br />
<strong>de</strong> incorporação: significa que, através da escolarização,<br />
a criança passa a pertencer integralmente ao seu mundo fa<br />
miliar.<br />
Já para as crianças das classes menos escolariza<br />
das, essa mesma aprendizagem nao tem o mesmo significado.<br />
E, muito mais que uma forma <strong>de</strong> incorporação <strong>de</strong> um univer<br />
so simbólico <strong>de</strong> seu próprio mundo familiar, ingressa-se<br />
na Escola para se integrar na própria socieda<strong>de</strong>.
) 27.<br />
escrito nos livros. Até que as crianças nao tenham sufici<br />
ente <strong>de</strong>streza para a leitura, não po<strong>de</strong>rão verda<strong>de</strong>iramente<br />
ser iniciadas no mundo dos conhecimentos. As perguntas e<br />
a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber <strong>de</strong>verão aguardar outro momento, quando<br />
elas mesmas forem capazes <strong>de</strong>. enten<strong>de</strong>r ou <strong>de</strong> se exercita<br />
rem por escrito, nos livros.<br />
o mundo está lá fora. As perguntas <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>i<br />
xadas para <strong>de</strong>pois. O que é então que vai realimentar o in<br />
teresse e a vonta<strong>de</strong> das crianças durante os primeiros anos<br />
escolares ? As palavras, frases ou pequenos textos que<br />
elas irão ler e escrever, compor e recompor? Essas crian<br />
ças nao possuem, em suas casas, os jogos pedagógicos que<br />
ensinam brincando, nem, muito menos, alguma Enciclopédia<br />
ou Atlas que, além <strong>de</strong> atrair com suas figuras, alimentam<br />
a curiosida<strong>de</strong> e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r sempre um pouco mais<br />
o que vem escrito nos livros.<br />
O interesse se reacen<strong>de</strong> sempre que a professora<br />
interrompe os exercícios da escrita ou <strong>de</strong> leitura e come<br />
ça a contar, ou mesmo ler, uma história. Todas as crian<br />
ças se amarram nisto, mas esta ativida<strong>de</strong> dificilmente e<br />
vista como parte fundamental do processo <strong>de</strong> aprendizagem.<br />
Por que, por exemplo, não contar para as crianças que es<br />
tão se alfabetizando a história da natureza ? ou a histó<br />
ria dos homens <strong>de</strong> ontem e <strong>de</strong> hoje ? Contar sem o medo <strong>de</strong><br />
não conseguir respon<strong>de</strong>r a tudo, sem cobranças. Nem mesmo<br />
a história das primeiras formas <strong>de</strong> comunicação, gráficas<br />
ou pictóricas, e do <strong>de</strong>senvolvimento da escrita nunca sao
28.<br />
contadas para aqueles que estão apren<strong>de</strong>ndo a ler e a escre<br />
ver ••. Provavelmente, se as crianças ouvissem a professo<br />
ra falar mais amiú<strong>de</strong> sobre estes assuntos que acen<strong>de</strong>m a<br />
sua curiosida<strong>de</strong> e a respeito dos quais elas pu<strong>de</strong>ssem apre<br />
sentar· as suas perguntas, dizer o que enten<strong>de</strong>m a respeito,<br />
o que sentem, não apren<strong>de</strong>riam mais facilmente a escrever ?<br />
Afinal, não e também ouvindo e falando que se apren<strong>de</strong> a co<br />
municar-se, a exprimir-se e a escrever? [4].<br />
[4] Frente à gran<strong>de</strong> problemática que se levanta hoje, so<br />
bre as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> alfabetização, eu sempre me lem<br />
bro que minha sogra, há mais <strong>de</strong> 40 anos atrás, conse<br />
guia alfabetizar crianças, filhas <strong>de</strong> camponeses do in<br />
terior <strong>de</strong> Minas Gerais. Para ela e para suas colegas<br />
<strong>de</strong> classe média do interior, formadas no colégio das<br />
freiras, alfabetizar crianças que não tinham tido ne<br />
nhum preparo anterior, que iam para o pequeno grupo es<br />
colar segurando pela primeira vez um lápis na mão, não<br />
se constituia numa tarefa assim tão extraordinária. Es<br />
tava <strong>de</strong>ntro da normalida<strong>de</strong> da vida, assim como o fato<br />
que as mesmas crianças não iriam além do primário, a<br />
não ser que entrassem em algum seminário. As técnicas<br />
pedagógicas da época eram bastante tradicionais mas,<br />
pelo que sei, junto com a alfabetização vinha também o<br />
catecismo (mesmo que não fosse esse último ensinado di<br />
retamente na Escola). O ensinar era vivido como uma<br />
missão porque introduzia as crianças ao flestudo" da re<br />
ligiãoi explicação e sentido da vida. -<br />
Qual é o sentido que se tem hoje no trabalho <strong>de</strong> alfabe<br />
tização ? Não se trata evi<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> propor a volta<br />
daquele sentido missionário, mas é possível <strong>de</strong> se ter<br />
uma relação educativa com crianças sem uma motivação ?<br />
O saber e os conhecimentos científicos chegam a se<br />
constituir numa motivação ? Ou talvez o exercício da<br />
cidadania ?
se ter um domínio concreto dos pesos e medidas.<br />
31.<br />
Por que as crianças, na Escola, não me<strong>de</strong>m, nao pe<br />
sam, nao comparam pesos e volumes diferentes, tirando daí<br />
as suas próprias conclusões ? Quem sabe se os números <strong>de</strong>ci<br />
mais, que tanto confun<strong>de</strong>m os alunos atã no segundti grau,<br />
nao seriam assim muito mais facirmente compreendidos ?<br />
Por que, ao invãs <strong>de</strong> se entrar logo na lógica abs<br />
trata, não se trabalha durante um bom tempo a Geometria,<br />
tão mais concreta e tão mais próxima à experiência huma<br />
na ? Afinal, há mais <strong>de</strong> 3.000 anos atrás, os Egípcios e os<br />
Babilônicos, partindo <strong>de</strong>stes estudos, não conseguiram <strong>de</strong><br />
senvolver atã mesmo a Astronomia, chegando a dividir com e<br />
xatidão o ano solar ?<br />
Trabalhando as formas, calculando suas áreas e<br />
seus volumes a partir da medição dos lados, diagonais e<br />
diâmetros, nao haveria necessida<strong>de</strong>, anos mais adiante, <strong>de</strong><br />
se <strong>de</strong>corar tantas fórmulas que, por outro lado, só po<strong>de</strong>m<br />
se apresentar corno mágicas.<br />
III.4. OS ÚLTIMOS ANOS DO lQ GRAU<br />
Após terem passado alguns anos treinando a escri<br />
ta, a leitura e <strong>de</strong>senvolvendo o raciocínio matemático, as<br />
crianças - já quase adolescentes - vão enfrentar o Segundo<br />
Segmento do Primeiro Grau (em geral, elas não sabem que se<br />
chama assim).
32.<br />
Mui tos dos que começaram juntos ficaram para trás,<br />
estão repetindo algumas séries. vários outros <strong>de</strong>sistiram.<br />
Mas a Escola não parou para pensar seriamente no porque<br />
<strong>de</strong> tantas repetências e <strong>de</strong>sistências. - "Quem nao tem con<br />
dições não po<strong>de</strong> ir para frente", muitos professores já <strong>de</strong><br />
cretararn e continuam <strong>de</strong>cretando sempre, a cada Conselho<br />
<strong>de</strong> Classe.<br />
Todas essas crianças, durante quatro ou mais<br />
anos, cresceram, trocaram os <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> leite, <strong>de</strong>scobriram<br />
o sexo, apren<strong>de</strong>ram a andar pela cida<strong>de</strong>, apaixonaram-se pe<br />
la música e sentem no corpo uma vonta<strong>de</strong> louca <strong>de</strong> dançar.<br />
Isso tudo aconteceu, e a Escola sempre passou ao largoi<br />
da mesma maneira corno nunca soube estar atenta, duranteos<br />
primeiros anos, aos gran<strong>de</strong>s porques que as crianças<br />
dararn <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequenos e que, agora, já começaram a<br />
se esquecer.<br />
guar<br />
<strong>de</strong>les<br />
Neste Segundo Segmento, já alfabetizados, esses<br />
alunos po<strong>de</strong>rão, finalmente, ser introduzidos ao estudo das<br />
ciências. Continuarão sentados, todos os dias, numa sala<br />
perfeitamente igual às que já tiveram, mas assistirão a<br />
várias aulas, <strong>de</strong> vários professores. Terão nas pastas tex<br />
tos <strong>de</strong> várias matérias. Para eles, há uma nova expectati<br />
va no ar.<br />
- "Professora, eu estou me sentindo que nem uma<br />
cômoda! Cada hora vem um professor manda abrir uma<br />
ta". Foi o que me disse um aluno da quinta série,<br />
dos primeiros dias <strong>de</strong> aula. Numa mesma manhã, ele<br />
gave<br />
<strong>de</strong>pois<br />
havia
33.<br />
enfrentado: a classificação dos pronomes, a composição das<br />
rochas, algumas expressões algébricas e a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> cul<br />
tura. A um simples toque do sinal, um assunto se fecha e<br />
outro se inicia.<br />
Corno po<strong>de</strong> ser concebida urna experiência <strong>de</strong> apren<br />
dizagem organizada <strong>de</strong>sta maneira ? Que saber e este que po<br />
<strong>de</strong> ser transmitido <strong>de</strong> forma tão fragmentária e parcelada,<br />
e do qual basta engolir algumas doses semanais para que se<br />
componha algum conhecimento ?<br />
A princípio, as crianças se espantam, confun<strong>de</strong>m<br />
se, nao sabem on<strong>de</strong> estão. Perplexas, passam as folhas <strong>de</strong><br />
seu "ca<strong>de</strong>rnão" dividido em várias matérias, assim corno es<br />
tá dividido também o seu tempo escolar. Qual é a ligação<br />
entre a terra que o professor <strong>de</strong> Geografia <strong>de</strong>screve, que o<br />
professor <strong>de</strong> Ciências <strong>de</strong>compõe e que os homens vão trans<br />
formando no processo histórico? A síntese nunca é feita,<br />
as informações se sobrepoem, às vezes até se contradizem,<br />
e os alunos vão aos poucos imaginando que há três ou mais<br />
mundos diferentes, mas nenhum <strong>de</strong>les se assemelhaaesse mun<br />
do real, no qual vivemos.<br />
Eles irão apren<strong>de</strong>r que o Brasil se limita a Leste<br />
com o Oceano Atlântico. No entanto, nenhum aluno da Esco<br />
la, que se situa em frente à Praia <strong>de</strong> Ramos, chegou a fa<br />
zer ligação alguma entre este Oceano e aquele braço <strong>de</strong> mar<br />
que ele via todos os dias ao chegar na Escola. Os mais es<br />
tudiosos chegavam a dizer que ali era a Baía <strong>de</strong> Guanabara,<br />
mas ninguém sabia o que vinha a ser urna baía. Nenhum pro
assimilado por estes.<br />
111.5. CONTEÚDOS E LIVROS DIDÂTICOS<br />
36.<br />
Por quem foram estabelecidos os conteúdos escola<br />
res ? Como foram eles elaborados ? De on<strong>de</strong> foram extraí<br />
dos ? a maioria dos professores reclama dizendo que os<br />
programas não estão a<strong>de</strong>quados.<br />
No município do Rio <strong>de</strong> Janeiro, há algum tempo,<br />
já nao se tem diretrizes programáticas oficiais. Mesmo<br />
quando existiam, no papel, nas turmas <strong>de</strong> 5ª a 8ª série nun<br />
ca houve uma fiscalização oficial séria sobre o seu cum<br />
primento. A única coisa que existe hoje nesse sentido, por<br />
parte da Secretaria Municipal <strong>de</strong> Educação, são algumas su<br />
gestões programáticas para algumas matérias, o que e <strong>de</strong>s<br />
conhecido por muitos professores, uma vez que elas foram<br />
zelosamente guardadas nos armários das secretarias das Es<br />
colas.<br />
Todos os anos, os professores, por <strong>de</strong>terminação<br />
da Secretaria Municipal <strong>de</strong> Educação, <strong>de</strong>dicam alguns dias,<br />
no início do ano letivo, ao planejamento escolar. Nesta<br />
ocasião, os professores se reunem por matéria, por série,<br />
ou isoladamente e colocam no papel os conteúdos que pre<br />
ten<strong>de</strong>m <strong>de</strong>senvolver com os seus alunos, durante o ano. Tais<br />
planejamentos, que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> escritos são entregues às di<br />
reções da Escola e enviados ao DEC, jamais foram <strong>de</strong>volvi
40.<br />
para as cores e nem para a fantasia. Em compensaçao, logo<br />
em seguida aos textos apresentados, vem um roteiro obriga<br />
tório <strong>de</strong> interpretação, sugestões ortográficas e<br />
gramaticais e sintáticas.<br />
regras<br />
Interpretar passou, na Escola, a significar ape<br />
nas repetição e or<strong>de</strong>nação lógica do texto. O estudo das re<br />
gras ortográficas, gramaticais e sintáticas, <strong>de</strong>pois dos<br />
primeiros anos escolares, acaba ocupando um tempo absoluta<br />
mente maior do que o que é <strong>de</strong>dicado à leitura, ao<br />
a composição <strong>de</strong> textos, etc ....<br />
falar,<br />
Mas o que mais espanta é que, enquanto na aula <strong>de</strong><br />
português os alunos estão "interpretando" e estudando gra<br />
maticalmente um texto <strong>de</strong> Ziraldo, po<strong>de</strong> acontecer que, na<br />
aula seguinte, <strong>de</strong> música, continuem a ensaiar o Hino Nacio<br />
nal e na outra, <strong>de</strong> Artes Plásticas, vão experimentar algu<br />
mas técnicas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho ornamental.<br />
Há que se lembrar que nao sao todas as escolas pu<br />
blicas que têm o privilégio <strong>de</strong> contar com professores <strong>de</strong><br />
matérias artísticas. Naquelas que têm tal privilégio, o<br />
que se diz muitas vezes e que muito pouco po<strong>de</strong> ser feito,<br />
porque nao há material, porque não há instrumentos, ou en<br />
tão, porque não há um ambiente a<strong>de</strong>quado.<br />
Mas, para além dos muros da Escola, há artistas,<br />
artesãos e músicos; há instrumentos, pinturas e ma<strong>de</strong>iras<br />
entalhadas<br />
Quando, em ocasiões especiais, se promovem nas Es<br />
colas festas e comemorações, em todas elas aparecem, corno
41.<br />
que por encanto, alunos tocando e dançando. Aparecem ins<br />
trumentos, aparelhos, muita coisa improvisada; a criativi<br />
da<strong>de</strong> dá jeito para tudo e sempre acaba dando certo. Os alu<br />
nos, consi<strong>de</strong>rados mais problemáticos no dia-a-dia da Esco<br />
la, nestas ocasiões, são os mais ativos e revelam toda a<br />
sua iniciativa. são eles, muitas vezes, que se encarregam<br />
do ensaio das danças, trabalham na <strong>de</strong>coração e conhecem,<br />
na comunida<strong>de</strong>, quem po<strong>de</strong> ajudar.<br />
Na maioria das Escolas não há laboratório <strong>de</strong> Ciên<br />
cias. Normalmente, toda a matéria é apenas explicada e <strong>de</strong><br />
corada. Mas on<strong>de</strong> se tenta, consegue-se promover, durante<br />
alguns dias, uma Feira <strong>de</strong> Ciências. Nessas ocasiões, sao<br />
armadas experiências que são explicadas pelos próprios alu<br />
nos. Conseguem-se recolher exemplares <strong>de</strong> bichos das mais<br />
variadas espécies; mostra <strong>de</strong> minérios; até fetos humanos e<br />
coleção <strong>de</strong> borboletas raríssimas aparecem. Todos se empe<br />
nham em recolher o que existe em volta da Escola; <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
Posto <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> ao velho colecionador do bairro, todos sao<br />
procurados.<br />
A Escola, nessas ocasiões, parece querer <strong>de</strong>sco<br />
brir uma proposta mais viva, mas essas ativida<strong>de</strong>s sao con<br />
si<strong>de</strong>radas extra-classe. Nascem pela iniciativa <strong>de</strong> alguns e<br />
terminam não conseguindo influir na rotina diária.
CAPíTULO IV<br />
A <strong>ESCOLA</strong> E O TRABALHO<br />
O Francisco era um <strong>de</strong>sses alunos que estão sempre<br />
prontos a participar das festas, torneios, campeonatos e<br />
<strong>de</strong>mais eventos não rotineiros e animados da vida escolar.<br />
Mas não conseguia ficar quieto em sala <strong>de</strong> aula mais que<br />
quinze ou vinte minutos. Ele foi colega do Gilberto. Repe<br />
tiu algumas séries. Só conseguiu terminar o Primeiro Grau<br />
pela insistência da mae e, também, por um empurrãozinhoque<br />
os professores <strong>de</strong>ram no final <strong>de</strong> seu período escolar<br />
- muitos, até mesmo, para se verem livres das piadinhas e<br />
brinca<strong>de</strong>iras com as quais ele sempre conseguia agitar a<br />
turma toda.<br />
IV.I. DIPLOMA VI<strong>DA</strong> E TRABALHO<br />
Depois do "Ginãsio", ainda pela insistência da<br />
mae, o Francisco iniciou o Segundo Grau; mas, nao <strong>de</strong>morou<br />
muito, abandonou os estudos. Estava para se tornar pai. Aos<br />
<strong>de</strong>zessete anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> assumiu o filho e "foi à luta" pa<br />
ra arranjar um trabalho.<br />
Muitos dos professores que participavam das ava<br />
liações do Francisco, quando ele ainda estava na Escola,<br />
diziam que ele não tinha nem condições e nem base para po
47.<br />
primir pequenos dizeres. Depois <strong>de</strong> alguns meses <strong>de</strong> produ<br />
ção intensa, a maioria é dispensada; mas sempre um ou ou<br />
tro é convidado a entrar nos quadros dos empregados perma<br />
nentes da firma. Então, a Escola é abandonada em caráter<br />
permanente. Os critérios que norteiam tais seleções é que<br />
sempre são muito misteriosos.<br />
Um procedimento muito parecido com o das gráficas<br />
sempre e utilizado pelas ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> lanchonetes, tipo<br />
"Bob's", ou por outras re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s lojas: estas abrem,<br />
<strong>de</strong> tempos em tempos, muitas vagas para menores, usando a<br />
sua rapi<strong>de</strong>z e agilida<strong>de</strong> no serviço <strong>de</strong> atendimento ao públi<br />
co. Nessas ocasiões, a Escola registra um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />
baixas. Depois <strong>de</strong> poucos meses <strong>de</strong> "experiência", há dispen<br />
sas em massa. Eventualmente, um ou outro jovem é seleciona<br />
do e ai permanece exercendo o cargo <strong>de</strong> "supervisor" das<br />
próximas turmas <strong>de</strong> pequenos trabalhadores.<br />
Para as moças, além do comércio, as fábricas e o<br />
ficinas <strong>de</strong> costura sao as gran<strong>de</strong>s fontes <strong>de</strong> emprego, tempo<br />
rário para algumas e mais duradouras para outras. Os requi<br />
sitos sao, como sempre, a esperteza - ou seja, apren<strong>de</strong>r o<br />
trabalho com rapi<strong>de</strong>z - pontualida<strong>de</strong> e cumprimento do <strong>de</strong><br />
ver. Não importa para isso, o grau <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> da can<br />
didata.<br />
- "O trabalho a gente apren<strong>de</strong> no próprio traba<br />
lho. Esse negócio <strong>de</strong> diploma, na prática, ele não adianta<br />
<strong>de</strong> nada". Foi o que vários alunos me disseram. E <strong>de</strong>vem ter<br />
razão já que, pelo que acompanhei dos meus alunos até ago
lho manual produtivo, e o trabalho intelectual.<br />
52.<br />
"Para esses alunos da 506, que não querem nada<br />
com o estudo, era preciso que fossem encaminhados para um<br />
curso <strong>de</strong> construção civil ou <strong>de</strong> mecânica. Aí eles<br />
dar certo".<br />
iriam<br />
Em quantos Conselhos <strong>de</strong> Classe Ja nao ouvimos a<br />
firmações, senão idênticas, muito parecidas com essa ?Mais<br />
até que separaçâo, o que há é um certo - e as vezes vela<br />
do - <strong>de</strong>sprezo pelo trabalho produtivo. Os que nao dâo con<br />
ta do estudo, não importa quais sejam os motivos,<br />
ser encaminhados para os trabalhos "manuais"<br />
<strong>de</strong>vem<br />
Numa reunlao geral <strong>de</strong> professores do Município do<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro, há pouco tempo atrás, questionava-se o fa<br />
to <strong>de</strong> que muitas crianças que sabem construir carrinhos <strong>de</strong><br />
feira, montar caixas <strong>de</strong> engraxate ou armar pipas não conse<br />
guem, no entanto, serem alfabetizadas. A reação <strong>de</strong> vários<br />
professores foi unânime ao afirmarem que "Uma coisa nao<br />
tem nada a ver com a outra". E mais, chegaram a dizer que<br />
"os pré-requisitos e a coor<strong>de</strong>nação motora necessária para<br />
a alfabetização são totalmente diversas".<br />
Será uma questão <strong>de</strong> mãos finas e maos calejadas ?<br />
Ou nos encontramos Ja diante <strong>de</strong> um argumento <strong>de</strong> fundo ra<br />
cista ? Há alguns que nascem para os trabalhos braçais e<br />
os que, biologicamente, são <strong>de</strong>stinados aos trabalhos inte<br />
lectuais ?<br />
Mesmo que estes preconceitos se encontrem muito<br />
mais disseminados do que se pensa, em nossa socieda<strong>de</strong>, sen
53.<br />
do assumidos também por vários <strong>de</strong> nossos atuais mestres,<br />
vamos, contudo, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado essas vertentes mais discri<br />
minatórias da relação Escola e Trabalho. Devemos reconhe<br />
cer que, via <strong>de</strong> regra, há um posicionamento geral bem <strong>de</strong>fi<br />
nido a respeito do que se espera da Escola, a respeito do<br />
papel da Escola: é ela a instituição que está encarregada<br />
da "formação intelectual" das novas geraçoes. De fato, es<br />
te e o papel encarnado pelos que se i<strong>de</strong>ntificam como Esco<br />
la - Direção e professores - e aquilo que imaginariamente<br />
esperam <strong>de</strong>la todos aqueles que <strong>de</strong>la se utilizam - alunos e<br />
pais.<br />
Desta forma, o papel da Escola e tão importante<br />
que, no afã da formação intelectual das crianças não há lu<br />
gar para a preocupação com as práticas cotidianas. Exata<br />
mente aquelas ativida<strong>de</strong>s pelas quais tudo é realizado. Mas<br />
Cultura, em nossa socieda<strong>de</strong>, nada mais tem a ver com a pro<br />
dução. A questão do trabalho somente está colocada como<br />
uma questão <strong>de</strong> contingência;<br />
- "Já que há pessoas que nao conseguem se escola<br />
rizar vamos oferecer uma preparação profissional".<br />
Ou então:<br />
- "já que há tanta miséria, tanto menor abandona<br />
do, vamos oferecer as crianças das classes pobres uma chan<br />
ce <strong>de</strong> ter seu ganha pão honesto".<br />
Nunca se pensa que os trabalhos concretos possam<br />
ter uma importância fundamental para a sobrevivência huma<br />
na: nunca se reconhece, por exemplo, qual a importância <strong>de</strong>
56.<br />
nem, muito menos, em aceitar o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> seu possível a<br />
profundamento. Os "segredos" da produção têm que continuar<br />
encerrados nas fábricas e apenas aos empresários cabe a<br />
administração da transmissão <strong>de</strong>sses conhecimentos, através<br />
do SENAI, por exemplo. Aí os futuros operários apren<strong>de</strong>m a<br />
"técnica" que, <strong>de</strong> fato, se tornou urna técnica puramente o<br />
peracional: nada <strong>de</strong> procurar muitos porques; o que interes<br />
sa e o a<strong>de</strong>stramento na profissão.<br />
Assim acontece algumas vezes que uma criança este<br />
ja estudando ao mesmo tempo no SENAI e na Escola. Nunca<br />
lhe ocorre que possa haver alguma conexão entre as frações<br />
que ele estudou na Escola e a Polegada Fracionária gravado<br />
no Paquímetro, que ele apren<strong>de</strong>u a medir no SENAI. O movi<br />
mento retilíneo que ele apren<strong>de</strong>u nos livros <strong>de</strong> ciências e<br />
os movimentos <strong>de</strong> urna plaina limadora ou <strong>de</strong> uma serra alter<br />
nativa. Entre o Teorema <strong>de</strong> Pitágoras da Escola e a medição<br />
<strong>de</strong> ângulos e triângulos que ele apren<strong>de</strong> a fazer<br />
transferidor, e daí para frente.<br />
com o<br />
Nâo há lugar, nessa nossa socieda<strong>de</strong>, para se <strong>de</strong><br />
senvolver o pensamento concreto.<br />
Formados na divisâo e no <strong>de</strong>sprezo pelo trabalho<br />
concreto, a maioria dos alunos que terminam o "Ginásio", di<br />
ficilmente pensam em procurar trabalho nas fábricas. Não<br />
se sentem absolutamente atraídos por ajudar a construir as<br />
casas; per<strong>de</strong>ram o interesse em fabricar as coisas. As mo<br />
ças que vão, porque não têm outra opção, para as fábricas<br />
<strong>de</strong> costura, dizem que trabalham numa "confecção", quando
57.<br />
perguntadas sobre qual é o seu trabalho. Não gostam <strong>de</strong> di<br />
zer quais as tarefas que executam.<br />
A fabricação só po<strong>de</strong> ser vista como um castigo;<br />
nao se po<strong>de</strong> ter por ele o mínimo gosto. Bem sabem disso<br />
os que têm que ficar, por mais <strong>de</strong> oito horas por dia, <strong>de</strong><br />
baixo das or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> um capataz, atento para que nao se<br />
<strong>de</strong>sperdice um segundo sequer da produção que pertence ao<br />
patrão.
CAPíTULO V<br />
A <strong>ESCOLA</strong> E A CI<strong>DA</strong><strong>DA</strong>NIA<br />
Se o saber e a vida escolar parecem ter-se insti<br />
tucionalizado passando ao largo <strong>de</strong> (e incapazes <strong>de</strong> se reen<br />
contrarem com) as experiências e as indagações das<br />
ças;<br />
crian<br />
Se a cultura oficial que a Escola sacramentou nao<br />
qualifica o trabalho produtivo como origem também <strong>de</strong> conhe<br />
cimentos e não consegue nem mesmo enxergar a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> realização e criativida<strong>de</strong> que existe no pensar/fazendo<br />
e no fazer/pensando;<br />
Se a instituição escolar nao foi realmente pensa<br />
da para - e nem, apesar das expectativas que ainda se ali<br />
mentam neste sentido, tem condições <strong>de</strong> - encaminhar as no<br />
vas geraçoes para a vida profissional;<br />
Como esta mesma instituição encara a questão <strong>de</strong><br />
formar os cidadãos <strong>de</strong> amanhã ? Como nela é experimentada a<br />
questão da cidadania já que é na Escola que as crianças vi<br />
vem sua primeira experiência mais ampla da socieda<strong>de</strong> insti<br />
tuída ?
61.<br />
Depois <strong>de</strong>sses primeiros papos <strong>de</strong>i uma olhada no<br />
prédio da Escola. Era uma estranha construção: um gran<strong>de</strong><br />
salão na entrada, seguido por um cumprido e estreito ga!<br />
pão, subdividido em salas <strong>de</strong> aula on<strong>de</strong> nao havia nem venti<br />
lação, nem luminosida<strong>de</strong>. Explicaram-me que aquele prédio<br />
havia sido um balneário, quando a Praia <strong>de</strong> Ramos atraía ba<br />
nhistas que vinham até mesmo <strong>de</strong> longe. Uma vez abandonado,<br />
a Prefeitura transformou-o em Escola para o atendimento das<br />
crianças da populosa favela que se formou no local. A úni<br />
ca adaptação que foi feita, na verda<strong>de</strong>, foi o abatimento<br />
<strong>de</strong> algumas pare<strong>de</strong>s ligando as antigas cabines para<br />
formá-las em salas <strong>de</strong> aula.<br />
trans<br />
Frente ao meu espanto, <strong>de</strong> como podia funcionar<br />
uma Escola naquelas condições, simplesmente me foi dito:<br />
"Por essa área, são todas mais ou menos assim.<br />
Na Nova Holanda, a Escola é toda <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira: foi construí<br />
da assim "provisoriamente", e Ja faz quinze anos. Não se<br />
po<strong>de</strong> nem mexer nos interruptores; para acen<strong>de</strong>r a luz voce<br />
leva choque".<br />
Voltando para casa, observei as Escolas Públicas<br />
<strong>de</strong> bairros dos subúrbios e que aten<strong>de</strong>m a outras classes ou<br />
grupos <strong>de</strong> pessoas. Alguns prédios bem sujos, outros com os<br />
vidros quebrados, mesmo assim apresentavam uma estrutura<br />
bem diferente da daquela Escola que atendia os meus alunos<br />
ou as <strong>de</strong> seus colegas <strong>de</strong> outras favelas; as salas eram<br />
mais amplas, havia quadra <strong>de</strong> esporte, área para recreação,<br />
salas para biblioteca, laboratório, etc .. Será que meus
alunos também nao percebiam todas essas diferenças? ...<br />
62.<br />
Com a super-utilização da Escola, as Ja precárias<br />
instalações do antigo balneário <strong>de</strong> Ramos foram rapidamente<br />
se <strong>de</strong>teriorando. Além das salas <strong>de</strong> aula sem iluminação nem<br />
arejamento; além da escassez <strong>de</strong> banheiros ou do refeitório<br />
improvisado, as instalações elétricas e hidráulicas foram<br />
rapidamente se estourando. Além da infiltração das aguas<br />
da chuva, por fim, as salas sofreram a infiltração dos es<br />
gotos da própria favela. Após inúmeras solicitações, um<br />
dia, finalmente, apareceu na Escola um engenheiro da Seção<br />
<strong>de</strong> Manutenção da Prefeitura para fazer a verificação dos<br />
inúmeros problemas apresentados pelas instalações. Após<br />
uma vistoria bastante rápida e superficial, afirmou:<br />
- "Isso aqui é um lixo! Não sei mesmo como se po<br />
<strong>de</strong> trabalhar nessas condições. Mas, dado o local em que se<br />
encontra a Escola, não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nada melhor".<br />
Algumas professoras que acompanhavam a vistoria<br />
se sentiram ofendidas pela afirmação do engenheiro e, por<br />
um instante, se sentiram solidárias com os seus alunos. A<br />
final, havia sido dito que "trabalhavam num lixo". E <strong>de</strong>ram<br />
uma rápida olha<strong>de</strong>la apreensiva em torno para verificarem<br />
que nenhuma das crianças havia escutado o final da observa<br />
ção do engenheiro. Mas foi só um instante apenas <strong>de</strong> sol ida<br />
rieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> indignação frente ao <strong>de</strong>sprezo e a discrimina<br />
çao manifestados assim, sem nenhum pudor.<br />
Na verda<strong>de</strong>, muitas das colegas estavam também im<br />
buídas <strong>de</strong>ssa mesma concepção: <strong>de</strong> que há cidadãos <strong>de</strong> primei
V.2. A ORGANIZAÇÃO HIERÂRQUICA <strong>DA</strong> <strong>ESCOLA</strong><br />
64.<br />
Aliás, que na socieda<strong>de</strong> haja urna hierarquia <strong>de</strong><br />
postos, funções e privilégios, isso a Escola faz<br />
<strong>de</strong> mostrar a cada instante.<br />
questão<br />
Primeiramente, há os que mandam e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m. Os di<br />
retores e seus diretores adjuntos, que mantêm um relativo<br />
(e estratégico) afastamento dos alunos e po<strong>de</strong>m dispor <strong>de</strong><br />
urna sala própria, a sala da IIDiretoria ll •<br />
A esses é que os pais procuram recorrer, muitas<br />
vezes sem sucesso, quando 'correm atrás <strong>de</strong> vagas para os<br />
filhos. A esses também é que cabe tornar as <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> a<br />
plicação dos castigos mais pesados sobre os alunos consi<strong>de</strong><br />
rados IIrebel<strong>de</strong>s ll<br />
- as suspensões ou, até mesmo, expulsões.<br />
Também são eles os que po<strong>de</strong>m IIcolocar à disposição ll os<br />
IIseus ll funcionários, isto é, mandar embora da Escola os<br />
professores, serventes, etc .. Dos diretores não é exigida<br />
a assinatura do cartão <strong>de</strong> ponto; este vem sempre carimbado<br />
com a frequência integral.<br />
Até hoje, não estão claros quais sao os<br />
tos que se exigem para que alguns professores se<br />
requisi<br />
tornem<br />
IIdiretores ll • Concursos nao há. Em alguns casos apenas - bem<br />
poucos - foi aceita a indicação dos colegas da Escola. Mas,<br />
em geral, as direções continuam a ser indicadas (leia-se<br />
lIimpostas ll ) <strong>de</strong> cima. são cargos <strong>de</strong> confiança.<br />
Na maioria das vezes, as diretoras contam, para
65.<br />
executar as tarefas burocráticas, com o trabalho <strong>de</strong> urna ou<br />
duas secretárias. Elas também <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m, para qualquer <strong>de</strong>ci<br />
sao, da aprovação - que muitas vezes significa urna simples<br />
assinatura - da própria direção.<br />
Sobre o trabalho da direção, os alunos muitas ve<br />
zes me perguntaram, quase sempre por ocasião <strong>de</strong> ausências,<br />
breves ou prolongadas, da direção:<br />
- "Mas o que é mesmo que faz urna diretora ?"<br />
Ocupando a segunda escala na hierarquia da insti<br />
tuição escolar, vamos encontrar um conjunto <strong>de</strong> pessoal <strong>de</strong><br />
apoio técnico-pedagógico, <strong>de</strong> número incrivelmente variado,<br />
<strong>de</strong> escola para escola. Os motivos <strong>de</strong>ssa variação sao abso<br />
lutamente aleatórios; nem mesmo e dito (e muitas vezes nao<br />
acontece mesmo) que as escolas com um maior número <strong>de</strong> alu<br />
nos sejam as que possuam um maior número <strong>de</strong> pessoal<br />
apoio técnico-pedagógico.<br />
A bem da verda<strong>de</strong>, os alunos passam o tempo<br />
<strong>de</strong><br />
todo<br />
<strong>de</strong> sua vida escolar sem chegar a perceber quais as atribui<br />
çoes e o trabalho <strong>de</strong>senvolvido por esse grupo <strong>de</strong> pessoal.<br />
Sua relação com a -direção é gran<strong>de</strong>, com os professores pe<br />
quena e com os alunos, salvo honrosas exceções, nenhuma.<br />
Logo abaixo, ocupando o terceiro escalão da hie<br />
rarquia escolar, vamos encontrar os professores, cujas a<br />
tribuições são as mais evi<strong>de</strong>ntes e conhecidas pelos alunos<br />
e pais. O gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ssa categoria é o <strong>de</strong> aprovar ou<br />
reprovar seus alunos. Esse po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> aprovação e reprovaçao<br />
é absoluto e <strong>de</strong>le a maioria dos professores não abre mao.
68.<br />
Das diretorias dos Centros cívicos faziam parte,<br />
geralmente, os alunos mais velhos, mais estudisos e mais<br />
bem arrumados (o fundamental era estar sempre perfeitamen<br />
te uniformizado). Em várias Escolas, essas diretorias<br />
eram escolhidas pelas diretoras da Escola e empossadas a<br />
cada ano. Em outras, chegava-se até a fazer eleições para<br />
a confirmação <strong>de</strong> uma chapa única. Neste caso, foi provi<br />
<strong>de</strong>nciado até mesmo títulos eleitorais para os "votantes":<br />
- "Assim apren<strong>de</strong>m corno se vota", me explicou um dia a pro<br />
fessora <strong>de</strong> Moral e Cívica, encarregada do evento.<br />
Nos últimos anos da década <strong>de</strong> setenta, foi permi<br />
tida a formação <strong>de</strong> mais chapas para a disputa das direto<br />
rias dos Centros Cívicos, mas as ativida<strong>de</strong>s permitidas<br />
continuavam as estritamente "cívicas". Por sorte, as da<br />
tas consi<strong>de</strong>radas cívicas são poucas durante o ano esco<br />
lar.<br />
Aquela epoca, no entanto, no dia-a-dia, sobres<br />
saíam-se outras formas <strong>de</strong> participação dos alunos: para<br />
as turmas do curso primário havia os "ajudantes <strong>de</strong> sala",<br />
já para os alunos do antigo curso ginasial havia as "pa<br />
trulhas". Os alunos "ajudantes" escolhidos eram o braço<br />
direito da professora; além <strong>de</strong> carregar giz, apagador, ca<br />
<strong>de</strong>rnos e levar recados, tinham a importante tarefa <strong>de</strong><br />
tornar nota dos colegas que fizessem bagunça na ausência<br />
da "tia". Já os alunos da "patrulha" <strong>de</strong>viam ostentar um<br />
bracelete no antebraço e eram encarregados <strong>de</strong> manter a<br />
or<strong>de</strong>m na entrada e saída da Escola, nos intervalos das au
78.<br />
direitos <strong>de</strong> todos sejam exercidos é uma questão complexa<br />
e o quanto a prática <strong>de</strong>ste princípio vem geralmente camu<br />
fIar sua realização ?<br />
Talvez assim se começaria a <strong>de</strong>scobrir o tanto<br />
que e preciso ser <strong>de</strong>svelado sobre a questão da cidada<br />
nia.
CAPITULO VI<br />
UMA REFLEXÃO SOBRE A PRÂTICA <strong>ESCOLA</strong>R<br />
Chegar-se a constatação <strong>de</strong> que a maioria das cri<br />
anças não gosta da Escola, seja pela maneira pela qual a<br />
Escola funciona no seu dia-a-dia, seja por corno nela se<br />
apren<strong>de</strong> a estudar, nao chega a ser, propriamente, urna<br />
gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta. Os meus filhos e os meus alunos, assim<br />
corno a maior parte dos filhos e dos alunos <strong>de</strong> todos, acre<br />
dito* nos dizem isso constantemente. t só preciso que os<br />
escutemos um pouco.<br />
Ao mesmo tempo, e nao po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consta<br />
tar também isto, todas as crianças, nas mais diversas oca<br />
siões, <strong>de</strong>monstram urna enorme vonta<strong>de</strong> - verda<strong>de</strong>ira se<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> saber, <strong>de</strong> conhecer, <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o que se passa em vol<br />
ta, no mundo dos homens e da natureza. As crianças e os<br />
adolescentes <strong>de</strong>monstram ter um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conhecer<br />
e atuar. - "O que é isso ?", não se cansam as crianças <strong>de</strong><br />
perguntar, com o <strong>de</strong>do apontado para qualquer coisa nova<br />
que se lhes apresente. - "Por que isso acontece ?". - "Pa<br />
ra que serve? •.• ". E, no que perguntam, jã estão se a<br />
proximando do objeto pelo qual se sentem atraídas, sempre<br />
dispostas a experimentar tudo que se lhes apresenta. Que<br />
rem enten<strong>de</strong>r não só com a cabeça (pelas palavras),<br />
também com todo o corpo (pelas sensações), com os<br />
mas<br />
senti
82.<br />
da qualida<strong>de</strong> do ensino público, a valorização da cultura<br />
popular ..• todas essas contribuições se encontram presen<br />
tes na maneira como foi vivida e contada essa experiência,<br />
nem que seja como contrapontos ou como marcos <strong>de</strong> um cami<br />
nho.<br />
Se tudo o que foi lido, ouvido e <strong>de</strong>batido me aju<br />
dou a melhor me localizar em relação a, ou a enten<strong>de</strong>r me<br />
lhor vários aspectos da instituição escolar, muitos cam<br />
pos ainda se encontram em aberto e muito existe que ser<br />
indagado. são muitas perguntas que perpassam a minha expe<br />
riência e muitas <strong>de</strong>las se fizeram presentes aqui,<br />
trabalho.<br />
neste<br />
o que é que querem nos dizer os alunos quando<br />
nao gostam <strong>de</strong>, ou simplesmente se recusam a, obe<strong>de</strong>cer as<br />
normas mais padronizadas da Escola ? Quando resistem a as<br />
similar os IIconteúdos ll ? Quando se recusam a acompanhar<br />
a lógica abstrata da matemática ? Quando abandonam a Esco<br />
la ? Quando eles não seguem as IIsuas li<strong>de</strong>ranças ll ? Não<br />
sera que eles estão querendo nos dizer; IINós não queremos<br />
que a Escola anule a nossa individualida<strong>de</strong>. Nós nao quere<br />
mos per<strong>de</strong>r a nossa autonomia <strong>de</strong> pensar ll<br />
• Não será também<br />
que o que eles nos apresentam não seja uma resistência às<br />
formas mais sutis da dominação ?
"raciocinio", a conotação ê <strong>de</strong> algo preciso, certo e,<br />
quando "correto" (quando leva aos resultados esperados) ê<br />
verda<strong>de</strong>iro.<br />
84.<br />
Assim tambêm a afirmação <strong>de</strong> que as crianças vao<br />
para a Escola com seis ou sete anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> "porque e<br />
nesta êpoca que elas atingem a ida<strong>de</strong> do uso da razão" <strong>de</strong>i<br />
xa transparecer a concepçao <strong>de</strong> que o intelecto se <strong>de</strong>sen<br />
volve unilinearmente, tendo como etapa terminal apenas a<br />
do "uso da razão" ou do funcionamento do raciocinio lógi<br />
co.<br />
Assim, o mais alto objetivo manifesto da Escola<br />
parece ter sido crono-biologicamente estabelecido; no mo<br />
mento preciso, ê preciso povoar o intelecto <strong>de</strong> conceitos<br />
a fim <strong>de</strong> que se possa iniciar o trabalho da razão, <strong>de</strong> co<br />
locar em conexão lógica os conteúdos dados. O pensamento<br />
aqui nao entra, a não ser no que <strong>de</strong>le fazem parte as fun<br />
çoes da conectação lógica.<br />
As raizes <strong>de</strong>ssa concepção vao se situar há mais<br />
<strong>de</strong> dois mil anos atrás, nos primórdios do pensamento filo<br />
sófico oci<strong>de</strong>ntal, ,quando o homem foi <strong>de</strong>finido como "ani<br />
mal racional". Se tal conceito, uma vez <strong>de</strong>finido, somente<br />
a custo, e com mais <strong>de</strong> mil anos ganharia <strong>de</strong>finitivamente<br />
o oci<strong>de</strong>nte europeu, na êpoca mo<strong>de</strong>rna, <strong>de</strong> atributo humano,<br />
a racionalida<strong>de</strong> foi transferida tambêm para o todo real<br />
[15] •<br />
Sem dúvida, contudo, mais que pela força da tra
88.<br />
se encontra conhecido e fixado em representações, basta<br />
so apreendê-las.<br />
Nossas crianças se sentem invadidas e esmagadas<br />
pela absolutização e pelo volume dos conhecimentos que <strong>de</strong><br />
vem ser aprendidos. Elas têm clareza <strong>de</strong> que nunca chega<br />
rao a dominar todos os conteúdos que a Escola ensina. E<br />
mais: para serem "aprovados" nossos alunos <strong>de</strong>vem <strong>de</strong>mons<br />
trar serem capazes <strong>de</strong> explicitar, segundo os mol<strong>de</strong>s prefi<br />
xados, a aplicação das fórmulas e conceitos aprendidos.<br />
Não há espaço para intuições, para opções diferentes, pa<br />
ra pensar com seu próprio ritmo, com sua própria capacida<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong> reflexão. Não há espaço para a experimentação, o re<br />
pensamento e a criação em conjunto [19].<br />
o esquecimento do que é pensar resultou no <strong>de</strong>s<br />
prezo característico das escolas em relação à imaginação,<br />
à fantasia, à intuiçãoi produziu o esquecimento <strong>de</strong> que o<br />
intelecto trabalha também com os sentidos e com o corpo<br />
todo (Frases como esta: "O <strong>de</strong>senvolvimento humano, em to<br />
[19] E claro que, para as crianças que pertencem as clas<br />
ses dominantes, o embate com a estruturação dos co<br />
nhecimentos é muito mais facilmente superada. Elas<br />
"pagam" pelo conhecimento que recebem, o que já as<br />
coloca em posição <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>. Mais ainda, além<br />
disso, eles já respiram, pelo contato com o seu meio,<br />
o "valor" do discurso racional.<br />
Para as crianças das classes populares, além da inva<br />
são <strong>de</strong> seu espaço autônomo <strong>de</strong> reflexão, o ser domina<br />
do pelos conhecimentos e métodos escolares significa<br />
ter que aceitar a mesma racionalida<strong>de</strong> que massacra<br />
seus pais no trabalho - quando há trabalho -i que<br />
divi<strong>de</strong> o espaço urbano expulsando a cada dia multi<br />
dões <strong>de</strong> pessoas que já foram expulsas antes, <strong>de</strong> al<br />
gum pedaço <strong>de</strong> terra: enfim, que é capaz até mesmo <strong>de</strong><br />
multiplicar ao infinito os armamentos e sua capacida<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>strutiva em nome da manutenção da paz ...
produzido, ao longo do tempo histórico, as culturas,<br />
artes, as ciências e .•• a própria razão.<br />
90.<br />
Esse trabalho <strong>de</strong> pensar se reinicia em cada cri<br />
ança, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o momento em que ela estabelece uma diferen<br />
ciação entre o "eu" e o "mundo". Afinal, nao po<strong>de</strong>mos nos<br />
esquecer <strong>de</strong> que é porque a criança pensa que ela também<br />
po<strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r a lógica do mundo instituído no qual ela<br />
está imersa; e que, por isso mesmo, ela po<strong>de</strong>rá também tra<br />
balhar na instituição <strong>de</strong> um novo mundo.<br />
VI.2. PENSANDO/FAZENDO - A PRAXIS <strong>DA</strong> AUTONOMIA<br />
Por mais forte que seja a pressao das institui<br />
ções autonomizadas e <strong>de</strong> tudo que se encontra estabelecido<br />
em nossa socieda<strong>de</strong>, sempre haverá possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se re<br />
pensar esse instituído, compreendê-lo em sua inércia esté<br />
ril, elucidá-lo e se buscar um modo <strong>de</strong> fazer novo, comprQ<br />
metido com necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um real atual, <strong>de</strong>cifrado e a<br />
ceito como tal.<br />
Ao se tentar romper com a prática estabelecida,<br />
nao e necessário - e nem seria possível - que se tenha uma<br />
evidência e uma clareza absolutas que se traduzissem na<br />
certeza daquilo que se quer - e que se julga como necessa<br />
rio - fazer.<br />
Certamente, é o bastante que se comece por aqui<br />
lo mesmo que se está vivendo. Deveríamos começar a anali<br />
as
sar se e isso mesmo que nos estamos querendo estar fazen<br />
do como professores e se isso que estamos fazendo nos en<br />
riquece a nós mesmo e aos outros com quem convivemos, tra<br />
balhamos e vivemos. Deveríamos esclarecer se, nesse nosso<br />
fazer, estamos apenas repetindo o que incorporamos em nós<br />
<strong>de</strong>sse mundo instituído (se estamos simplesmente "sendo a<br />
gidos" por outros) ou se estamos assumindo o nosso pro<br />
prio discurso, se e o "meu discurso" o que estamos tentan<br />
do viver.<br />
91.<br />
Por que o professor Antônio Leal, rompendo o cer<br />
co, conseguiu que seus alunos se interessassem pela escri<br />
ta e leitura, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> três ou quatro anos <strong>de</strong> escola sem<br />
dar nenhum avanço na aprendizagem? Ele mesmo nos diz: "A<br />
gran<strong>de</strong> aventura <strong>de</strong> ser alfabetizador, <strong>de</strong>scobridor <strong>de</strong> es<br />
critas, garimpeiro <strong>de</strong> palavras - me fascinava" [20]. O<br />
nosso colega se sentiu atraído, teve vonta<strong>de</strong> e, por isso,<br />
se jogou nessa aventura com nada mais que suas experiênci<br />
as, suas leituras, sua compreensao, seu lado artístico<br />
(coisas que existem em cada um <strong>de</strong> nós). Não consi<strong>de</strong>rou<br />
seus alunos simplesmente como crianças analfabetas, mas<br />
como seres humanos que " ... <strong>de</strong>vem ser entendidos como um<br />
todo. Devem se trabalhar as suas formas <strong>de</strong> representação,<br />
buscando bem no fundo <strong>de</strong> seu ser" [21].<br />
[20] Leal, Antônio; Fala Maria Favela, Uma Experiência<br />
Criativa <strong>de</strong> Alfabetização. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1982, Edi<br />
cão do Autor, pg. 3.<br />
[21j I<strong>de</strong>m, pg. 15.
94.<br />
t possível no ensino, uma recuperaçao do fazer/<br />
pensar ou do sentido do fazer abrangente que e o próprio<br />
trabalho do homem (a música e as letras, a história e o<br />
teatro, a ciência e o trabalho ... ), ou vice-versa.<br />
Parece claro que qualquer mudança na rotina esco<br />
lar vai <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r fundamentalmente <strong>de</strong> nós professores, <strong>de</strong><br />
nossa relação com o saber, com os alunos e com a socieda<br />
<strong>de</strong>. A Escola da Ciência e da Razão nos <strong>de</strong>u vários conheci<br />
mentos mas, talvez, nos tenha afastado do convívio com a<br />
sabedoria e, sem dúvida, nos inibiu muitas possibilida<strong>de</strong>s.<br />
No fundo, sentimo-nos aprisionados pelos conhecimentos.<br />
Nós mesmos nos percebemos, muitas vezes, sem condições <strong>de</strong><br />
verificá-los, ampliá-los, discutí-10s, enfim, <strong>de</strong> reinven<br />
tá-los. Acostumamo-nos, simplesmente, a repetí-los.<br />
Sentimo-nos prisioneiros e aprisionamos os ou<br />
tros. Por estarmos fechados numa única via <strong>de</strong> acesso aos<br />
conhecimentos não conseguimos perceber os nossos alunos<br />
como. seres que po<strong>de</strong>m também reelaborar, recriar, pensar e<br />
<strong>de</strong>scobrir. E o educar acaba inevitavelmente sendo entendi<br />
do e vivido como re-apreensão e repetição <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los já<br />
dados. Por que não tentar abrir novos caminhos ?<br />
"Não há nenhum sentido em interessar-se por uma<br />
criança, um doente, um grupo ou uma socieda<strong>de</strong>, se nao ve<br />
mos neles, primeiro e antes <strong>de</strong> mais nada, a vida, a capa<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser fundada sobre si mesma, a auto-produção e a<br />
auto-organização".<br />
(Castoriadis, 1.1.1., pg. 111)
; ...<br />
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