Os brasileiros retornados à África - UFF
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Cadernos de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Diálogos Interamericanos, n o 38, p. 51-70, 2009 51<br />
OS BRASILEIROS RETORNADOS À ÁFRICA<br />
Eurídice Figueiredo<br />
RESUMO<br />
Durante o século XIX muitos afro-<strong>brasileiros</strong> retornaram<br />
<strong>à</strong> <strong>África</strong>, sobretudo para a região do Golfo do Benin. Esta<br />
história é tematizada por alguns romances <strong>brasileiros</strong> e<br />
antilhanos centrados numa figura de mulher brasileira que<br />
retorna. Mariana é a protagonista do primeiro volume da<br />
trilogia de Antonio Olinto A alma da <strong>África</strong>, que inclui<br />
A casa da água, O rei de Keto e O trono de vidro. O assunto<br />
foi retomado recentemente por Ana Maria Gonçalves em<br />
Um defeito de cor, no qual a autora inspira-se nas lacunas da<br />
biografia de Luiz Gama para reconstituir ficcionalmente a<br />
história de sua mãe, Kehinde/Luísa. A escritora antilhana<br />
Maryse Condé também encena esta volta através de Ayodélé/Romana<br />
no seu romance em dois volumes: Ségou,<br />
Les murailles de terre e Ségou, La terre en miettes.<br />
Introdução<br />
PALAVRAS-CHAVE: Antonio Olinto; Ana Maria<br />
Gonçalves; Maryse Condé.<br />
Durante o século XIX muitos afro-<strong>brasileiros</strong> retornaram <strong>à</strong> <strong>África</strong>,<br />
sobretudo para a região do Golfo do Benin (Benin, Nigéria, Togo,<br />
Gana). Alguns foram deportados depois da Revolta dos Malês (Bahia,<br />
1835), mas a maioria retornou por vontade própria. Eram pessoas livres, dinâmicas,<br />
que se instalaram na <strong>África</strong> e aí criaram uma comunidade de “Brasileiros”,<br />
também chamados de “Agudás” ou “Amarôs” na Nigéria, no Benin, no Togo<br />
e de “Tabom” em Gana.
52 Figueredo, Eurídice. <strong>Os</strong> <strong>brasileiros</strong> <strong>retornados</strong> <strong>à</strong> <strong>África</strong>.<br />
Esta história é tematizada por alguns romances <strong>brasileiros</strong> e antilhanos<br />
centrados numa figura de mulher brasileira que retorna: Mariana, Kehinde/<br />
Luísa e Ayodélé/Romana 1 . Mariana é a protagonista do primeiro volume da<br />
trilogia de Antonio Olinto (nascido em 1919 em Ubá, Minas Gerais) A alma<br />
da <strong>África</strong>, que inclui A casa da água (publicado em 1969), O rei de Keto (de<br />
1980) e O trono de vidro (de 1987). O assunto foi retomado recentemente por<br />
Ana Maria Gonçalves (nascida em 1970 em Ibiá, Minas Gerais) em Um defeito<br />
de cor (2007), no qual a autora inspira-se nas lacunas da biografia do advogado,<br />
jornalista e escritor Luiz Gama 2 (1830-1882), para reconstituir ficcionalmente<br />
a história de sua mãe Kehinde e, através dela, das condições de vida dos escravos<br />
na Bahia do século XIX. A escritora antilhana Maryse Condé (nascida em<br />
1937 em Pointe-<strong>à</strong>-Pitre, Guadalupe) também recria a vida dos Agudás no seu<br />
romance em dois volumes: Ségou, Les murailles de terre (publicado em 1984) e<br />
Ségou, La terre en miettes (em 1985). Nesta saga sobre a família Traoré, da etnia<br />
Bambará, no reino de Ségou (atual Mali), um dos quatro filhos do patriarca é<br />
capturado e enviado como escravo ao Brasil, onde é injustamente condenado<br />
<strong>à</strong> morte. Ele morre mas sua esposa Romana da Cunha e seus 3 filhos são deportados<br />
para a <strong>África</strong>.<br />
Não se pretende fazer uma análise exaustiva dos romances; busca-se, antes,<br />
apreender como os afetos atingem os personagens quando eles se deslocam<br />
de um país para outro, de uma cultura para outra. Percebe-se que a procura<br />
de uma origem, de uma raiz, através de variados “retornos”, não resulta necessariamente<br />
em felicidade, já que a nostalgia de um lar que se teve no passado<br />
não pode ser resolvida por um retorno simples.<br />
<strong>Os</strong> Agudás<br />
<strong>Os</strong> <strong>retornados</strong> do Brasil (<strong>à</strong>s vezes até os de Cuba) eram denominados<br />
Brasileiros ou Agudás, termo derivado do nome do forte português São João<br />
d’Ajuda (ou Ajudá ou Agudá), em Uidá (antigo Daomé, atual Benin). Como<br />
1<br />
Mariana, nascida no Brasil, só tem nome brasileiro; Kehinde, apesar de receber o nome de<br />
Luísa, só decide usá-lo quando vai viver na <strong>África</strong>; Ayodélé, depois da morte de seu marido,<br />
converte-se ao catolicismo e passa a usar só seu nome cristão, Romana. Para evitar confusão,<br />
no meu texto só usarei Kehinde e Romana, os nomes que prevalecem nos romances.<br />
2<br />
GAMA, Luís. . Acesso em 12/02/2008.
Cadernos de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Diálogos Interamericanos, n o 38, p. 51-70, 2009 53<br />
Agudá significava ao mesmo tempo católico e como a religião católica era<br />
identificada com os brancos, os Brasileiros eram “brancos” de uma nova espécie,<br />
em que a cor da pele não interferia na classificação 3 . Aos olhos dos africanos<br />
que lá permaneceram e desprezavam os antigos escravos, o orgulho dos<br />
<strong>brasileiros</strong> parecia incompatível com o estatuto de escravos que eles tinham<br />
tido no Brasil.<br />
Si c’était pour perpétuer ainsi le souvenir du Brésil, que les<br />
Agoudas n’y étaient-ils restés? Les voil<strong>à</strong> qui clamaient qu’ils y<br />
avaient passé les meilleures années de leur vie. Oubliaient-ils<br />
qu’ils y avaient été esclaves? Et qu’ils avaient choisi de revenir<br />
dans la terre d’Afrique? Oubliaient-ils que souvent ils y avaient<br />
fomenté des révoltes? Etrange revirement!<br />
[Se era para perpetuar assim a lembrança do Brasil por que os<br />
Agudás não ficaram por lá? Eles clamavam que haviam passado<br />
os melhores anos de suas vidas lá. Será que se esqueciam de<br />
que foram escravos? E que haviam escolhido voltar para a terra<br />
de <strong>África</strong>? Será que se esqueciam de que muitas vezes fomentaram<br />
revoltas? Estranha reviravolta!] 4<br />
Segundo Pierre Verger (2002), os Brasileiros que voltavam <strong>à</strong> região da <strong>África</strong><br />
Ocidental provocavam sentimentos hostis da população local, como se pode<br />
verificar nos romances, porque se consideravam diferentes e superiores aos que<br />
lá permaneceram. Por outro lado, como os Sarôs 5 eram ainda mais orgulhosos,<br />
a reação de acrimônia contra eles era mais forte. Um personagem de Ségou diz:<br />
3<br />
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os<br />
Santos dos séculos XVII a XIX. Tradução de Tasso Gadzanis. Salvador:Corrupio, 2002. p. 633.<br />
4<br />
Tradução minha. <strong>Os</strong> textos teóricos são traduzidos diretamente no corpo do texto, sem<br />
citação do original.CONDÉ, Maryse. Ségou, Les murailles de terre. Tomes 1 et 2. Paris: Robert<br />
Laffont, 1984. Le livre de Poche. t.2, p. 48.<br />
5<br />
Sarôs (ou Salôs), segundo Gonçalves (2007, p. 776), é uma corruptela de Serra Leoa. O<br />
termo designava os africanos que seriam levados como escravos para o Brasil ou Cuba;<br />
libertados pelos ingleses em pleno mar foram instalados em Serra Leoa. Muitos deles<br />
acabaram indo depois para Lagos (Nigéria). O marido de Kehinde na <strong>África</strong> é um Sarô.
54 Figueredo, Eurídice. <strong>Os</strong> <strong>brasileiros</strong> <strong>retornados</strong> <strong>à</strong> <strong>África</strong>.<br />
Les métis étaient bien plus arrogants que les Blancs car ils voulaient<br />
faire oublier leur moitié de sang noir. Quant aux ”Saros”<br />
et aux ”Brésiliens” , les premiers calquaient leur comportement<br />
sur celui des Anglais et méprisaient les seconds <strong>à</strong> cause de leur<br />
ancien état servile. Mais les deux groupes abominaient les autochtones<br />
de la même manière et avaient partie liée avec les<br />
métis et les Blancs 6 .<br />
[<strong>Os</strong> mestiços eram mais arrogantes que os brancos pois queriam<br />
fazer esquecer sua metade de sangue negro. Quanto aos “Sarôs”<br />
e aos “Brasileiros”, os primeiros calcavam seu comportamento<br />
no dos ingleses e desprezavam os últimos por causa de seu antigo<br />
estado servil. Mas os dois grupos abominavam os autóctones<br />
da mesma maneira e se associavam aos mestiços e aos brancos].<br />
Há uma inadaptação pois “se eles cultivavam o seu particularismo africano<br />
no Brasil, por outro lado foi um apego aos costumes e hábitos adquiridos<br />
neste país que eles fizeram questão de manter quando de volta <strong>à</strong> costa<br />
africana” 7 . Este é o caso de Kehinde que, apesar de ter fugido do batismo,<br />
acaba recebendo o nome cristão de Luísa, usado quando lhe é conveniente.<br />
Ela, que sempre fez questão de preservar seus deuses e seu nome africano, ao<br />
ter filhos na <strong>África</strong> prefere dar-lhes nomes portugueses e cristãos. Segundo<br />
Gilberto Freyre, estes <strong>retornados</strong> já estavam bastante mestiçados.<br />
Esses africanos e descendentes de africanos, tendo vivido no<br />
Brasil, principalmente na Bahia, voltaram para a <strong>África</strong> com<br />
costumes, hábitos, modos de vida que tinham adquirido em<br />
terra estrangeira aos quais se tinham ligado para sempre (...).<br />
Eles levaram para a <strong>África</strong> o gosto pela farinha de mandioca,<br />
pela goiabada, pelas comidas brasileiras, pelos hábitos <strong>brasileiros</strong>.<br />
Perpetuaram na <strong>África</strong> devoções como a do Senhor do<br />
Bonfim e festas, com danças e cantos, muito brasileiras, já mestiçadas<br />
(apud VERGER, 2002, p. 632).<br />
6<br />
CONDÉ, Op. Cit. p. 198.<br />
7<br />
VERGER, Op. Cit, p. 632.
Cadernos de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Diálogos Interamericanos, n o 38, p. 51-70, 2009 55<br />
Por mais paradoxal que possa parecer esta situação, o desejo de retorno,<br />
ao ser satisfeito, não desencadeia necessariamente nem readapatação nem<br />
bem-estar. Segundo Edouard Glissant, a “primeira pulsão de uma população<br />
transplantada (...) é o Retorno. O Retorno é a obsessão do Um: não se deve<br />
mudar o ser. Voltar é consagrar a permanência, a não-relação” (GLISSANT,<br />
1981, p. 30). Ora, a volta ao Um original é imaginária e, na realidade, pode-se<br />
transformar em frustração e revolta porque o transplantado, como bem percebeu<br />
Freyre, já estava hibridizado, mestiçado. Ou, nos termos glissantianos, ele<br />
já entrara em Relação com o Outro, crioulizando-se.<br />
<strong>Os</strong> autores destes romances retratam esta comunidade mostrando a<br />
transformação que ela opera na região e, mais particularmente, na cidade<br />
de Lagos, com a construção de sobrados e igrejas, com suas escolas católicas,<br />
suas festas e seus costumes. As protagonistas são o motor da história:<br />
elas conseguem contratar marcineiros e pedreiros <strong>brasileiros</strong> para construir<br />
sobrados como os da Bahia, começam a fazer comércio com o Brasil, exportando<br />
dendê e importando açúcar, carne seca e fumo. Elas circulam bastante<br />
pela região, indo da Nigéria ao Benin e ao Togo; aprendem várias línguas a<br />
fim de poder se comunicar com os diferentes colonizadores implantados na<br />
região e com as várias etnias africanas. Enviam os filhos para continuar os<br />
estudos na Europa.<br />
Se Ana Maria Gonçalves descreve a <strong>África</strong> a partir de pesquisa livresca, Maryse<br />
Condé, que se casou com o ator Mamadou Condé (da Guiné), viveu grande<br />
parte das décadas de 1960/1970 na Guiné, em Gana e no Senegal, e Antonio<br />
Olinto, que trabalhou como diplomata na Nigéria nos anos 1960, conheceram,<br />
na costa ocidental africana, a comunidade dos Brasileiros, que conserva até hoje<br />
a memória de seus ancestrais <strong>retornados</strong>, comemorando festas brasileiras como<br />
o bumba-meu-boi (ou burrinha), a festa do senhor do Bonfim e outras.<br />
Para criar a Mariana, Olinto inspirou-se em uma mulher idosa que lá<br />
encontrou, Romana da Conceição, que realizou o sonho de vir passear no<br />
Brasil em 1963 (OLINTO, 1980). O fato de Maryse Condé ter usado o<br />
nome de Romana talvez não seja uma coincidência. O poço da casa de Mariana<br />
foi calcado no fato de o primeiro poço de água em Lagos ter sido<br />
perfurado por um retornado brasileiro, João Esan da Rocha. A chegada de<br />
Mariana, em que todos desembarcam nus, foi inspirado no caso acontecido<br />
em 1899 com Romana da Conceição, que viajou com a família no pata-
56 Figueredo, Eurídice. <strong>Os</strong> <strong>brasileiros</strong> <strong>retornados</strong> <strong>à</strong> <strong>África</strong>.<br />
cho Aliança, no qual haviam morrido pessoas com febre amarela durante a<br />
travessia. As autoridades britânicas forçaram o navio a ficar em quarentena.<br />
Romana contou isto a Antonio Olinto: “Com receio da doença, os ingleses<br />
tomaram tudo o que a gente possuía. Descemos em Lagos enrolados nuns<br />
panos que não eram nossos” 8 .<br />
Nos três romances se faz referência ao brasileiro Francisco Félix de Souza<br />
(1754?-1849), o Xaxá (ou Chachá), a figura mais importante do Daomé<br />
depois do rei Guezo. Filho de um português traficante de escravos, nasceu<br />
em Salvador de uma mãe negra ou indígena. Começou a negociar e acabou<br />
fixando residência em Uidá no final do século XVIII. Trabalhou no Forte São<br />
João d’Ajuda; com a saída dos portugueses, passou a comandar o forte e, por<br />
extensão, a cidade de Uidá, que se tornou o mais ativo entreposto de embarque<br />
de escravos para Brasil e Cuba. Era o mais rico comerciante e traficante<br />
de escravos do Daomé. Fez pacto de sangue com o rei Guezo, a quem ajudou<br />
a derrubar seu predecessor, o rei Adandozan. Ele era um ponto de referência<br />
para os Agudás. Inspirou obras literárias como O vice-rei de Uidá, de Bruce Chatwin<br />
(1940-1989), O último negreiro, de Miguel Real (1953-). O primogênito<br />
de seus descendentes conserva até hoje o título de Xaxá.<br />
O sincretismo religioso aparece tanto na Bahia quanto na <strong>África</strong> 9 . Católicas<br />
e praticantes do candomblé, Mariana e Kehinde não deixam de fazer<br />
suas devoções aos orixás. Às vésperas da eleição de seu filho, Mariana lhe diz:<br />
“Pedi a Xangô que tudo saísse bem. A Xangô e ao Divino Espírito Santo”. 10<br />
Já Romana é mais profundamente católica e intransigente, o que não a impede<br />
de ir procurar um pai-de-santo quando está muito necessitada; por<br />
sua austeridade, ela tem mais conflitos religiosos que as protagonistas dos<br />
romances <strong>brasileiros</strong>. Diante de suas desventuras, ela se indaga se os orixás<br />
a estariam punindo por ela ter abandonado seu nome Ayodélé pelo nome<br />
cristão de Romana.<br />
8<br />
OLINTO, Antonio. Brasileiros na <strong>África</strong>. S. Paulo:GRD; Brasília: INL, 1980. p. 262<br />
9<br />
Ao usar o termo <strong>África</strong> neste texto estou-me referindo sempre a esta região do golfo do<br />
Benin, sobretudo aos atuais países Nigéria e Benin. A etnia que prevalece nestas histórias é a<br />
dos Iorubás, e a religião é a do culto dos orixás, que recebeu no Brasil o nome de candomblé<br />
(no Haiti, de vodu, em Cuba, de santeria).<br />
10<br />
OLINTO, Antonio. A casa da água. Rio de Janeiro:Difel, Brasília: INL, 1978. p. 342.
Cadernos de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Diálogos Interamericanos, n o 38, p. 51-70, 2009 57<br />
A casa da água<br />
A história do romance A casa da água se inicia em 1898, 10 anos após a<br />
abolição da escravidão, quando Catarina deixa a cidade de Piau (MG) com<br />
sua filha Epifânia e seus três netos (Mariana, Antônio e Emília) a fim de voltar<br />
<strong>à</strong> <strong>África</strong>. Depois de passar mais de um ano na Bahia, a família consegue tomar<br />
o patacho Esperança em direção a Lagos (Nigéria), onde chega em 1900. Mariana<br />
tem 13 anos e sua primeira menstruação ao desembarcar em Lagos, nua,<br />
coberta com um lençol. Segundo o autor, a história de Mariana foi inspirada<br />
nos eventos protagonizados por Romana da Conceição:<br />
Muita gente me pergunta se Romana é a Mariana de meu romance<br />
A casa da água. Até certo ponto, sim. Explico-me: foi Romana<br />
quem me contou a viagem do patacho “Aliança” — que<br />
no romance chamei de “Esperança” — e entrou em detalhes<br />
sobre os primeiros anos de sua vida em Lagos, no começo do<br />
século. Ela não é a Mariana, mas foi sua inspiração 11 .<br />
A avó Catarina, nascida na <strong>África</strong>, vendida por um tio aos 18 anos, nunca<br />
perdeu o desejo de voltar durante os 50 anos que passara no Brasil mas<br />
Epifânia segue a mãe contrariada, pois nunca havia saído de Piau. Se Catarina<br />
considera o regresso necessário, Epifânia acha que é uma iniciativa condenada<br />
ao fracasso. Frustrada, pelo menos no início, ela acaba adaptando-se <strong>à</strong> vida<br />
africana e morre aos 79 anos. Catarina vive a dura experiência do retorno, já<br />
que o país real não corresponde ao país sonhado, imaginado. Ao afirmar que<br />
a <strong>África</strong> era sua terra, alguém lhe responde: “É e não é, iaiá. Para a maioria, os<br />
avós saíram daqui e foram escravos no Brasil, se acostumaram lá, mas sempre<br />
pensando que aqui era o paraíso. Pois isto aqui é o paraíso e também não é o<br />
paraíso, iaiá” 12 . Catarina leva a família para visitar sua cidade natal, Abeokutá,<br />
faz o reconhecimento do país, o palácio do Alakê, o local onde morava,<br />
mas não reencontra nenhum amigo, nenhum parente. Epifânia percebe que<br />
a decepção da mãe manifesta-se em forma de tristeza, de melancolia, pois a<br />
11<br />
OLINTO, Antonio. Brasileiros na <strong>África</strong>. S. Paulo: GRD; Brasília:INL, 1980. p. 230.<br />
12<br />
OLINTO, Antonio. A casa da água. Rio de Janeiro: Difel, Brasília:INL, 1978. p. 75.
58 Figueredo, Eurídice. <strong>Os</strong> <strong>brasileiros</strong> <strong>retornados</strong> <strong>à</strong> <strong>África</strong>.<br />
volta não realizou nenhuma transformação real em sua vida, o regresso não lhe<br />
devolveu aquilo que ela havia perdido aos 18 anos, uma infância feliz numa<br />
cidade bonita, ou seja, o Um fixo no espaço e no tempo ao qual queria voltar<br />
já não existia.<br />
Agora ela está percebendo que não mudou nada, não há diferença<br />
muito grande entre isto aqui e a Bahia, a diferença que há<br />
é para pior, lá a gente era da terra, aqui somos estrangeiros para<br />
os ingleses e somos estrangeiros para os africanos, até nas festas<br />
de Xangô e dos santos dela o movimento daqui é pequeno,<br />
e o que diverte a gente aqui é festa como as de lá, a do Divino,<br />
a de São José, a do Bonfim, a de Nossa Senhora dos Prazeres 13 .<br />
Das três gerações, a única a se adaptar na <strong>África</strong> é a das crianças. Catarina,<br />
que recupera seu nome africano Ainá, morre pouco depois de sua volta,<br />
sem ter obtido aquilo que a moveu a empreender a viagem de retorno.<br />
Enquanto Epifânia só pensa no Brasil, Mariana tenta entender os inúmeros<br />
conflitos locais, rivalidades entre grupos étnicos, enfim, tenta apropriar-se da<br />
realidade local a fim de fincar raízes. Aos 16 anos casa-se com Sebastian Silva,<br />
um brasileiro que trabalhava com os ingleses. Tem três filhos: Joseph, Ainá e<br />
Sebastian. O primeiro empreendimento de Mariana é abrir um poço em seu<br />
quintal a fim de vender água, produto escasso e caro; aos poucos diversifica<br />
seus negócios, tornando-se uma mulher rica ao longo da vida.<br />
O filho que mais se destaca no romance é Sebastian, inspirado no personagem<br />
histórico Sylvanus Olympio, presidente do Togo, que era descendente<br />
de <strong>brasileiros</strong> e que foi assassinado. Sebastian, casado com Segui, dedica-se <strong>à</strong><br />
vida política, tornando-se representante do Zorei (país fictício) na Assembleia<br />
Nacional da França e participa do processo de descolonização africana.<br />
Somos um grupo grande, de homens de toda a <strong>África</strong> que,<br />
falando francês como nós, estão em Paris preparando a autonomia.<br />
(...) Temos em Paris um movimento, chamado Présence<br />
Africaine, que luta em favor da consciência da gente negra,<br />
13<br />
OLINTO, Op. Cit. p. 87.
Cadernos de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Diálogos Interamericanos, n o 38, p. 51-70, 2009 59<br />
e nele estão africanos como Senghor e D’Arboussier, e nãoafricanos<br />
como Césaire, que é das Antilhas, e Damas, que é<br />
da Guiana, numa permanente campanha em prol dos povos<br />
colonizados 14 .<br />
Além de Sebastian, também seu cunhado Fagum tem participação política<br />
na descolonização. Ambos têm consciência de que se trata de um processo<br />
longo, com várias etapas: independência política, econômica e tecnológica.<br />
Fagum aponta para o neocolonialismo que apareceria logo após as independências<br />
pois os europeus continuariam a “mandar no continente através de<br />
uma rede de bancos, de investimentos, de companhias, de vários tipos de negócios<br />
que permaneceriam lá” 15 . Antonio Olinto mistura personagens ficcionais<br />
com personagens históricos na festa da independência de Zorei: lá estão<br />
Fagum (personagem ficcional), genro de Mariana, enviado oficial da Nigéria,<br />
e o presidente do Togo, Sylvanus Olympio (personagem histórico).<br />
A família de Sebastian tem um fim trágico: ele torna-se o primeiro presidente<br />
de Zorei após a independência mas é assassinado, oito anos depois de a<br />
mulher ter morrido ao dar <strong>à</strong> luz Mariana, que será a protagonista do terceiro<br />
volume da trilogia.<br />
Mariana (...) entrou com a neta no quarto de Xangô, mostrou-a<br />
aos orixás, ó deuses de cada coisa, do vento, da água, do fogo, da<br />
saúde, da doença, das folhas, que a menina cresça livre e forte,<br />
que tenha a proteção de todos, que seja boa e saiba resistir aos<br />
sofrimentos, que ame a vida, que ame a vida, que ame a vida 16 .<br />
Apesar de ter mantido intenso contato com as pessoas no Brasil em seus<br />
muitos empreendimentos, Mariana nunca deixa a <strong>África</strong>; quem vai realizar a<br />
volta é sua neta Mariana. Em O trono de vidro, a jovem Mariana é chamada a assumir<br />
um papel político, seguindo as pegadas do pai, Sebastian Silva. Ela lidera<br />
uma campanha pela redemocratização do país e é eleita presidente. Inspirado<br />
14<br />
OLINTO, Op. Cit. p. 325.<br />
15<br />
OLINTO, Antonio. Op. Cit. p. 339.<br />
16<br />
OLINTO, Op. Cit. p. 337.
60 Figueredo, Eurídice. <strong>Os</strong> <strong>brasileiros</strong> <strong>retornados</strong> <strong>à</strong> <strong>África</strong>.<br />
parcialmente na visita que Romana da Conceição fez ao Brasil em 1963, Olinto<br />
descreve a visita da neta Mariana, refazendo o trajeto de seus ancestrais ao<br />
voltar <strong>à</strong> Africa: as cidades de Piau e Juiz de Fora, em seguida Rio de Janeiro<br />
e Salvador. É uma viagem sentimental, em que ela vê aqueles lugares que ela<br />
conhecia de tanto ouvir as histórias contadas pela avó. Fotografa e filma tudo<br />
a fim de levar um video para a avó, já quase centenária, que se sente feliz ao<br />
reconhecer o cenário de sua infância: “Não mudou muito. A casa, a igreja,<br />
tudo é como era”. 17<br />
O romance A casa da água, por sua vez, serviu de inspiração para a escritora<br />
Ana Maria Gonçalves criar a parte da volta de Kehinde <strong>à</strong> <strong>África</strong> no romance<br />
Um defeito de cor. A diferença que ressalta é que, enquanto Mariana, nascida<br />
no Brasil, é levada criança <strong>à</strong> <strong>África</strong> pela mãe e sobretudo pela avó Catarina,<br />
Kehinde é trazida criança para o Brasil e volta <strong>à</strong> <strong>África</strong> por seu próprio desejo<br />
em idade adulta. Também é de se destacar o fato que as duas mulheres nunca<br />
deixam de cumprir as obrigações aos orixás, preservando a religião dos Iorubá.<br />
<strong>Os</strong> filhos africanos de ambas vão prosseguir os estudos superiores na Europa,<br />
voltam, se casam, têm filhos, integrando uma nova elite. No final de A casa da<br />
água, Mariana sente um vago desejo de voltar para o Brasil, mas acaba por não<br />
fazê-lo, enquanto Kehinde retorna, movida pelo desejo de reencontrar o filho<br />
Luiz Gama, de quem conseguira finalmente ter notícias.<br />
Um defeito de cor<br />
O romance é narrado em primeira pessoa por Kehinde/Luísa, de sua<br />
infância em Savalu, reino do Daomé, passando por sua vinda para o Brasil<br />
como escrava, os anos passados na Bahia e no Rio de Janeiro, o retorno <strong>à</strong> Africa,<br />
até sua derradeira volta ao Brasil no fim da vida. Ela tinha 7 anos quando<br />
sua mãe foi estuprada e morta. A avó levou Kehinde e sua irmã gêmea Taiwo<br />
para Uidá. Depois de um curto período feliz, as meninas foram capturadas e<br />
embarcadas em um navio negreiro. A avó, desesperada, decidiu segui-las. No<br />
entanto, tanto a avó quanto a irmã morreram durante a viagem e Kehinde<br />
desembarcou sozinha na Bahia. Comprada pelo senhor José Carlos Gama, ela<br />
foi levada para a ilha de Itaparica para ser escrava de companhia da Sinhazinha<br />
17<br />
OLINTO, Antonio. O trono de vidro. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2007. p. 391.
Cadernos de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Diálogos Interamericanos, n o 38, p. 51-70, 2009 61<br />
Maria Clara, ou seja, para brincar e, ao mesmo tempo, servir de brinquedo<br />
para a menina. Designada para trabalhar na casa-grande e dormir na senzala<br />
pequena, Kehinde encontrou amor e proteção junto a Esméria, que se tornou<br />
uma verdadeira mãe para ela. Após ser violada pelo Sinhô aos 12 anos, Kehinde<br />
foi tratada por Esméria. Ao sair de seu torpor, percebeu que estava grávida.<br />
Depois de muitos percalços, Kehinde conseguiu comprar a alforria para ela e o<br />
filho. Encontrou um português, Alberto, com quem teve um outro filho, que<br />
seria Luiz Gama. O período que passou em sua companhia foi de prosperidade<br />
e de relativa felicidade.<br />
O livro é escrito para um destinatário, o filho desaparecido, cujo nome<br />
não é jamais mencionado, nem mesmo no prólogo, quando a autora se refere<br />
ao seu personagem “que nasceu livre, foi vendido ilegalmente como escravo, e<br />
mais tarde se tornou um dos principais poetas românticos <strong>brasileiros</strong>, um dos<br />
primeiros maçons e um dos mais notáveis defensores dos escravos e da abolição<br />
da escravatura” 18 . Assim, a autora evita o grande personagem histórico<br />
para se concentrar na figura da mãe — um verdadeiro fantasma na vida de<br />
Luiz Gama — que a autora constrói como uma mulher forte, que vence na<br />
vida apesar de todos os sofrimentos.<br />
Pode-se sugerir que a criação de um personagem chamado Fatumbi tanto<br />
em A casa da água quanto em Um defeito de cor pode ser interpretado como<br />
uma homenagem a Pierre Verger (1902-1996), fotógrafo e pesquisador francês<br />
que chegou a Salvador em 1946, onde passou a maior parte de sua vida.<br />
Ele se iniciou no candomblé na Bahia mas foi na <strong>África</strong> que recebeu o nome<br />
de Fatumbi, “nascido de novo graças ao Ifá”, em 1953. Fatumbi é, em A casa<br />
da água, um pai-de-santo africano que acompanha os passos de Mariana ao<br />
longo de sua vida e, em Um defeito de cor, Fatumbi é um escravo muçulmano,<br />
com quem Kehinde aprende a ler na infância (em Itaparica) e que exerce um<br />
papel fundamental em sua vida no período em que vive em Salvador, seja na<br />
função de contador, ajudando-a na administração da padaria, seja ao fazê-la<br />
compreender melhor questões mais políticas ligadas <strong>à</strong> comunidade. Fatumbi<br />
é em ambos os romances um homem íntegro que desempenha o papel de<br />
mentor espiritual e/ou cultural de Kehinde e de Mariana.<br />
18<br />
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 16.
62 Figueredo, Eurídice. <strong>Os</strong> <strong>brasileiros</strong> <strong>retornados</strong> <strong>à</strong> <strong>África</strong>.<br />
A saúde mental e a perseverança de Kehinde, apesar de todo o sofrimento,<br />
se devem a alguns fatores que funcionaram a seu favor: protegida pela<br />
comunidade e sobretudo por Esméria, a cozinheira da casa-grande que funciona<br />
como figura materna, Kehinde conta também com a rede de apoio do<br />
candomblé, que lhe dá o conforto de poder continuar a praticar a religião de<br />
seus ancestrais, transmitida pela avó. Ela consegue tornar-se amiga até mesmo<br />
da filha do senhor, a Sinhazinha Maria Clara, pouco mais velha que ela, e que<br />
foi sua correspondente durante os anos passados na <strong>África</strong>. Esta amizade fiel<br />
e sólida atenua a violência e elimina qualquer tipo de dicotomia que oporia os<br />
negros aos brancos.<br />
A volta <strong>à</strong> <strong>África</strong> se dá depois de Kehinde perder a esperança de reencontrar<br />
seu filho, Luiz Gama. Isto se dá em 1847, 30 anos depois de ela ter chegado<br />
no Brasil. Ela vai-se estabelecer em Uidá, que é o porto do qual partira,<br />
e onde conhecia algumas pessoas. Durante a viagem, ela tem um relacionamento<br />
amoroso com um Sarô, John, um mulato escuro nascido e criado em<br />
Freetown, Serra Leoa, de quem engravida. Ele se propõe a ajudá-la a vender a<br />
carga que levava (cachaça, tabaco) e a partir daí se unem, negociando armas,<br />
pólvora, óleo de dendê, tanto com os ingleses quanto com os reis africanos e<br />
os <strong>brasileiros</strong> de Salvador. Não demonstra escrúpulos ao vender armas, que<br />
seriam usadas no comércio de escravos.<br />
Às vezes eu ficava um pouco constrangida por me relacionar<br />
com mercadores de escravos, mas logo esquecia, já que aquele<br />
não era problema meu. Eu não conseguiria resolvê-lo mesmo<br />
se quisesse, e também não poderia ficar com muitos escrúpulos<br />
depois de fornecer armas para o rei Guezo, sabendo que<br />
seriam usadas em guerras que fariam escravos, quase todos<br />
mandados para o Brasil 19<br />
Ela e John formam uma família, consolidada com o nascimento dos<br />
gêmeos, que recebem nomes <strong>brasileiros</strong>, Maria Clara (homenagem <strong>à</strong> Sinhazinha<br />
brasileira) e João. Ela decide usar seu nome brasileiro, Luísa, e escolhe<br />
dois sobrenomes <strong>brasileiros</strong>, Andrade Silva porque ela mais conveniente ter<br />
19<br />
GONÇALVES, Op. Cit. p. 771.
Cadernos de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Diálogos Interamericanos, n o 38, p. 51-70, 2009 63<br />
nomes <strong>brasileiros</strong>. Eles se enriquecem, enviando os filhos para prosseguir os<br />
estudos na França. Após a morte de John, ela opta por permanecer em Lagos.<br />
<strong>Os</strong> filhos se casam e dão-lhe 11 netos. Sua atitude positiva diante da vida e<br />
das pessoas, suscita ao mesmo tempo o respeito e o ciúme de John. “O John se<br />
dizia admirado com a minha sorte e com a maneira como eu logo me tornava<br />
amiga das pessoas” 20 .<br />
Ségou<br />
Trata-se de uma saga que se inicia no fim do século XVIII no reino de<br />
Ségou 21 em torno da família de Dousika Traoré, notável e conselheiro do rei.<br />
O próspero reino dos Bambarás, de tradição animista, começa a sofrer o impacto<br />
da islamização desta parte da <strong>África</strong>. Há uma espécie de maldição que<br />
paira sobre a família Traoré. <strong>Os</strong> quatro filhos de Dousika se desgarram das<br />
origens ancestrais, se dispersam e têm destinos trágicos. Tiékoro, o primogênito,<br />
é atraído pelo Islã, vivendo uma vida de conflito, que será também<br />
o destino de seu filho Mohammed. O segundo, Naba, capturado e vendido<br />
como escravo, morre no Brasil. Siga, o terceiro filho, o mal-amado (porque<br />
era filho de uma escrava, que fugiu), atravessa o deserto, seguindo os passos<br />
do irmão mais velho, o preferido do pai, e chega até Fez (Marrocos). O filho<br />
mais novo, Malobali, sempre rebelde, vai para Lagos, onde encontrará a viúva<br />
do irmão, com quem vai-se casar. Seu filho Olubunmi se torna soldado do<br />
exército colonial francês.<br />
Através deste resumo pode-se perceber que o romance faz uma imensa reconstituição<br />
histórica de cerca de um século, de um lado mostrando o processo<br />
de islamização da <strong>África</strong> (do século XVIII ao XIX), de outro lado encenando<br />
os conflitos ligados <strong>à</strong> chegada dos colonizadores europeus e sua associação com<br />
a cristianização das populações locais. Uma primeira cena anuncia a catástrofe<br />
que estaria por vir: a chegada <strong>à</strong>s portas de Ségou de um explorador escocês,<br />
Mungo Park (1771-1806), que atinge as margens do rio Níger. Trata-se do<br />
primeiro homem branco que aquelas pessoas veem; assustadas, elas correm<br />
para contar aos outros habitantes, uma novidade, aliás, quase inacreditável.<br />
20<br />
GONÇALVES, Op. Cit. p. 780.<br />
21<br />
Conservarei a ortografia francesa; em português a cidade é chamada de Segu.
64 Figueredo, Eurídice. <strong>Os</strong> <strong>brasileiros</strong> <strong>retornados</strong> <strong>à</strong> <strong>África</strong>.<br />
Uma das cenas finais é o ataque do exército francês a Ségou, a destruição dos<br />
muros da cidade e a entrada triunfante da colonização em 1890.<br />
A linha da intriga que diz respeito aos Brasileiros começa com a captura<br />
de Naba e Ayodélé: Naba encontra Ayodélé ainda antes do embarque para o<br />
Brasil. Ele a protege durante a viagem mas são separados no ato da compra<br />
em Recife. Ela é levada para uma fazenda em Pernambuco, onde, aos 13 anos,<br />
é estuprada por seu senhor. Algum tempo depois, Naba aparece por lá, com<br />
jeito meio estranho, fingindo-se de louco, sem falar, e se instala com Ayodélé,<br />
já grávida do senhor. Ele aceita o filho dela sem mágoa. Juntos, têm 3 filhos,<br />
encontrando uma certa felicidade, que dura pouco, porém, já que ele é condenado<br />
<strong>à</strong> morte em consequência da delação do filho mais velho, Abiola/Jorge,<br />
que sabia ser filho do senhor. Ao ouvir as conversas dos pais, ele descobriu que<br />
faziam planos de comprar a alforria e retornar <strong>à</strong> <strong>África</strong>. Como ele desprezava a<br />
<strong>África</strong> e preferia ficar no Brasil, ele acusou Naba de ser conspirador por causa<br />
de um panfleto escrito em árabe que Naba recebera nas ruas de Recife. Após<br />
a morte do marido, antes de ser deportada com os 3 filhos de Naba, ela se<br />
converteu ao catolicismo e passou a adotar o nome de Romana da Cunha.<br />
Em Lagos, Romana da Cunha encontrou por acaso Malobali, irmão de<br />
seu finado marido, com quem se casou, conforme a tradição Bambará. Apesar<br />
de apaixonada e fortemente atraída por ele, Romana considerava o casamento<br />
uma forma de incesto; a incompatibilidade do casal viria justamente das diferenças<br />
culturais.<br />
Quand commença la mésentente du couple? En vérité, dès la<br />
nuit de noces (...). Bientôt tout devint sujet de querelles. Les<br />
Agoudas, dont Malobali trouvait les amusements puérils et<br />
guindés, et l’arrogance vis-<strong>à</strong>-vis des autochtones insuportable ;<br />
les Bambaras, que Romana trouvait quant <strong>à</strong> elle grossiers, dépravés,<br />
ennemis du vrai Dieu 22 .<br />
[Quando começou o desentendimento do casal ? Na verdade,<br />
desde a noite de núpcias. (...) Logo tudo se tornou razão para<br />
brigas. Para Malobali as diversões dos Agudás pareciam pueris<br />
22<br />
CONDÉ, Maryse. Ségou, Les murailles de terre. Tomes 1 et 2. Paris: Robert Laffont, 1984. Le<br />
livre de Poche. t.2, p. 51.
Cadernos de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Diálogos Interamericanos, n o 38, p. 51-70, 2009 65<br />
e pretensiosas, e achava a arrogância em relação aos autóctones<br />
insuportável; já Romana considerava os Bambarás grosseiros,<br />
depravados, inimigos do verdadeiro Deus.]<br />
Como Mariana, que descobriu que estava grávida depois da morte do<br />
marido, Romana também só percebeu que esperava o filho de Malobali que<br />
ela tanto desejara após a sua morte. Infeliz demais para poder continuar vivendo,<br />
ela definha e morre após o parto; seu quinto filho, Olubunmi, é entregue<br />
<strong>à</strong> família Traoré, em Ségou. <strong>Os</strong> três filhos de Naba vão viver com o tio paterno<br />
de Romana, um antigo escravo na Jamaica, que se instalara em Freetown. O<br />
dois filhos que se tornam personagens do romance são Eucaristus e Olubunmi,<br />
sendo que este último vai se inserir na linhagem dos Bambarás. Quanto<br />
a Eucaristus, depois de um certo conflito por não saber o que ele é, Agudá,<br />
Bambará ou Iorubá, vai-se encaminhar para o sacerdócio pelas mãos dos ingleses,<br />
já que estava instalado em Serra Leoa (colônia britânica), onde viviam os<br />
<strong>retornados</strong> da Jamaica e os Sarôs. Como sua mãe, Eucaristus é um personagem<br />
em conflito com suas várias heranças culturais.<br />
Eucaristus lui-même parlait le portugais et le yoruba, langues<br />
de sa mère, l’anglais, langue de l’enseignement <strong>à</strong> Fourah Bay<br />
College, un peu de français et tout cela mêlé pour former le<br />
pidgin qui était la lingua franca de la côte. Cette confusion de<br />
langues, qui faisait penser <strong>à</strong> celle de la tour de Babel, lui semblait<br />
<strong>à</strong> l’image de sa propre identité. Qu’était-il lui-même ? Un<br />
animal composite, incapable de se définir 23 .<br />
[Eucaristus falava português e iorubá, línguas de sua mãe, inglês,<br />
língua do ensino em Fourah Bay College, um pouco de<br />
francês e tudo isto misturado para formar o pidgin que era<br />
a lingua franca da costa. Esta confusão de línguas, que fazia<br />
pensar na torre de Babel, parecia-lhe a imagem de sua própria<br />
identidade. O que era ele? Um animal compósito, incapaz de<br />
se definir.]<br />
23<br />
CONDÉ, Op. Cit. p. 189.
66 Figueredo, Eurídice. <strong>Os</strong> <strong>brasileiros</strong> <strong>retornados</strong> <strong>à</strong> <strong>África</strong>.<br />
O romance de Maryse Condé tematiza um outro retorno, desta vez em<br />
sentido inverso, da <strong>África</strong> para a Jamaica, e os conflitos que este deslocamento<br />
vai acarretar. Samuel, filho de Eucaristus, influenciado pelas histórias contadas<br />
por sua mãe, Emma, uma descendente dos Maroons 24 da Jamaica, que tinha<br />
uma visão mitificada dos Maroons, decide viajar para a Jamaica, em busca dos<br />
ancestrais de sua família materna. Com sua esposa Victoria, eles desembarcam<br />
na Jamaica em 1865, para se separar logo depois, tamanho é o choque cultural<br />
dos dois numa terra tão hostil. A decepção no contato com os Maroons faz desmoronar<br />
tudo aquilo que parecia alicerçar a vida de Samuel, o que o leva a se<br />
identificar como o homem sem nome: “Mon nom, c’est Sans-Nom, oui!” 25<br />
Como se percebe, se a partida é (geralmente) traumática, o retorno não<br />
é menos doloroso, ou seja, o sentimento de pertença a um território é um<br />
agenciamento 26 , um emaranhado de fios de natureza diferente, formando processos<br />
de desterritorializações e reterritorializações sempre em desequilíbrio,<br />
em que o conhecimento é autopoiético, ou seja, causa e efeito são circulares,<br />
se retroalimentam .<br />
Resiliência e banzo<br />
O que se percebe na leitura destes três romances é que os personagens<br />
têm reação diferente a sofrimentos equivalentes. Romana e Kehinde foram<br />
ambas enviadas <strong>à</strong> escravidão na adolescência, sendo estupradas pelo senhor,<br />
pai de seu primeiro filho. Ambas voltam para a <strong>África</strong>, Romana com seus 3<br />
filhos, Kehinde sem os dois filhos que tivera, um morto e o outro desaparecido.<br />
Romana converte-se ao catolicismo enquanto Kehinde mantém-se fiel aos<br />
24<br />
No Caribe a palavra Marron (em francês), Cimarrón (em espanhol) e Maroon (em inglês) designa<br />
o escravo que foge das plantações para a liberdade nas colinas. O termo seria mais ou menos<br />
equivalente de quilombola. <strong>Os</strong> Maroons da Jamaica, que conseguiram vencer os ingleses, assinaram<br />
um pacto de não-agressão com eles, tornando-se em seguida verdadeiros traidores<br />
porque delatavam revoltas que outros negros tentavam organizar. Eles aparecem sob esta<br />
faceta negativa em Ségou e em outro romance de Maryse Condé, Moi, Tituba, sorcière ........noire<br />
de Salém (1986) (traduzido em português: Eu, Tituba, feiticeira .......negra de Salem).<br />
25<br />
Ségou, La terre em miettes. Tome 3. Paris:Robert Laffont, 1985. Le livre de Poche. p. 383.<br />
26<br />
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mille plateaux. Capitalisme et schizophrénie. 2. Paris:<br />
Minuit, 1980.
Cadernos de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Diálogos Interamericanos, n o 38, p. 51-70, 2009 67<br />
seus orixás. A Romana que Condé cria é uma mulher dilacerada em sua vida<br />
emocional, apesar de se manter sempre diligentemente em luta para ganhar<br />
dinheiro e melhorar sua situação econômica. Tanto as duas quanto Mariana<br />
demonstram um alto grau de resiliência e capacidade de negociação a fim de<br />
ascender socialmente.<br />
<strong>Os</strong> psicólogos começaram a usar o conceito de resiliência 27<br />
Termo oriundo da Física que tem sido utilizado, desde os anos 1970,<br />
por psicólogos, para designar a capacidade de resistência de pessoas para<br />
enfrentar dificuldades e conservar a saúde mental e a alegria, mesmo após<br />
um trauma.<br />
“Resiliência significa prosperar em condições adversas — em outras palavras,<br />
manter a saúde física e emocional e o espírito que permita viver uma<br />
vida com alegria” 28 . Eles apontam alguns fatores que podem influir no processo<br />
de preservação do eu possibilitando maior resiliência, dentre os quais se<br />
destacam, de um lado, a capacidade individual — como inteligência e autoimagem<br />
positiva — e, de outro lado, a rede de proteção formada pela família<br />
e pela comunidade. O conceito de resiliência se articula com o conceito de<br />
agenciamento, que pressupõe o desejo — potência criativa — que move as<br />
pessoas a entrar no jogo do poder.<br />
Em se tratando da escravidão no Brasil, pode-se apontar que a resiliência<br />
se oporia ao banzo, doença mental que acometia os africanos aqui chegados e<br />
que os levava ao suicídio, depois de muito sofrimento causado seja pelo ressentimento<br />
diante dos castigos injustos, seja pela perda de referenciais culturais<br />
e emocionais. Dentro da lógica do pensamento de Glissant, pode-se articular<br />
o banzo ao desejo de retorno, enquanto a resiliência seria a capacidade de<br />
estabelecer relação: relação com outra cultura, com outro espaço, com outros<br />
valores, sem se fixar na obsessão da unidade perdida.<br />
27<br />
Termo oriundo da Física que tem sido utilizado, desde os anos 1970, por psicólogos, para<br />
designar a capacidade de resistência de pessoas para enfrentar dificuldades e conservar a<br />
saúde mental e a alegria, mesmo após um trauma. Cf. REGALLA, Maria Angélica; GUI-<br />
LHERME, Priscilla Rodrigues; SERRA-PINHEIRO, Maria Antônia.“ Resiliência e transtorno<br />
do déficit de atenção/hiperatividade ”. Resilience and attention deficit/hyperactivity disorder.<br />
Jornal brasileiro de psiquiatria. vol.56 suppl.1 Rio de Janeiro 2007. < http://www.scielo.br.<br />
>. Acesso em 03/02/2009.<br />
28<br />
BOSS, Pauline. Loss, Trauma, and Resilience. Therapeutic Work with Ambiguous Loss.
68 Figueredo, Eurídice. <strong>Os</strong> <strong>brasileiros</strong> <strong>retornados</strong> <strong>à</strong> <strong>África</strong>.<br />
O banzo foi bastante estudado no século XIX no Brasil devido ao impacto<br />
das variadas formas de violência auto-infligida: aborto, assassinato do bebê<br />
logo após o parto, suicídio. O médico francês, que se radicou no Brasil, Joseph<br />
Sigaud (1796-1856), em seu livro Du climat et des maladies du Brésil, publicado<br />
em Paris em 1844, discordava de um princípio adotado por muitos confrades<br />
europeus, o de que os negros seriam pouco sensíveis <strong>à</strong>s doenças mentais com<br />
exceção da idiotia. Ao tratar do banzo, Sigaud baseou-se no estudo de Luis<br />
Antonio de Oliveira Mendes (de 1793), que fez uma descrição daquelas “mortes<br />
lentas, espécies de consumpções produzidas pela inanição, e devidas a uma<br />
causa moral”, tais como a nostalgia da terra natal ou o ressentimento causado<br />
por castigos injustos. Sigaud considerava que não havia diferenças entre raças<br />
no que concerne <strong>à</strong>s enfermidades nervosas e que “os que pretendem que índios<br />
e negros não eram suscetíveis <strong>à</strong> loucura, na verdade queriam separar estas<br />
duas raças das inevitáveis condições de humanidade” 29 .<br />
Assim como o banzo, a inadaptação dos afro-<strong>brasileiros</strong> que voltaram <strong>à</strong><br />
<strong>África</strong> no século XIX, deportados ou <strong>retornados</strong> por vontade própria, comprova<br />
que a travessia de territórios sempre cobra pedágio no que concerne <strong>à</strong>s<br />
emoções. Ao sentir saudade do Brasil e tentar recriar seus usos e costumes e,<br />
sobretudo, ao considerar que os anos passados no Brasil tinham sido os mais<br />
felizes de suas vidas, apesar do cativeiro, eles atestam que toda mudança de<br />
país desencadeia uma crise, porque as pessoas se transformam e se adaptam.<br />
Quando se dá uma nova mudança, alguns têm maior facilidade do que outros<br />
para se readaptar, estabelecer relação, se enraizar.<br />
No momento presente, fala-se de “síndrome de Ulisses” 30 , uma espécie<br />
de banzo que afeta migrantes, levando-os ao suicídio. Estas pessoas, que migraram<br />
muitas vezes sem família, tendo de viver em países de cultura diferente,<br />
em condições econômicas adversas e, sobretudo, extremamente isoladas por<br />
dificuldades de comunicação por não falar a língua local, solitárias, privadas<br />
29<br />
Apud ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. Da enfermidade chamada banzo: excertos de<br />
Sigaud e de von Martius (1844). Revista latino-americana de psicopatologia fundamental. V. 11, n. 4,<br />
supl. 0. São Paulo, dez. 2008. . Acesso em 03/02/2009.<br />
30<br />
O psiquiatra Joseba Achotegui, da Universidade de Barcelona, em artigo que encontrei na<br />
internet em PDF (sem endereço de site), descreve as dificuldades encontradas por imigrantes<br />
ilegais, que vivem num nível de estresse que excede a capacidade de adaptação.
Cadernos de Letras da <strong>UFF</strong> – Dossiê: Diálogos Interamericanos, n o 38, p. 51-70, 2009 69<br />
de afeto, não resistem muito tempo a esta vida de autômato e acabam tendo<br />
uma depressão e/ou se suicidando, como se explica no romance A síndrome de<br />
Ulisses, do escritor colombiano Santiago Gamboa.<br />
As coisas difíceis que deve ter passado, sua auto-estima lá no<br />
chão, a sensação de estar indefeso e o medo, tudo isso deve têlo<br />
levado ao estresse crônico e <strong>à</strong> depressão. Tem uma doença<br />
muito relacionada com esses sintomas, disse o médico, mas não<br />
acrescentou mais nada, pois naqueles anos a síndrome ainda<br />
não tinha nome. Ainda não havia sido batizada como síndrome<br />
do imigrante ou síndrome de Ulisses 31 .<br />
Síndrome de Ulisses, saudade, banzo, estas e tantas outras formas<br />
servem para exprimir o mal-estar que caracteriza o ser humano sempre que<br />
ele se desloca e tem de abandonar laços tecidos com o espaço-tempo de suas<br />
relações, de suas emoções. Fala-se de espaço — utopia ou distopia — mas o<br />
espaço está intimamente ligado ao tempo: a saudade do Brasil do retornado é<br />
antes de tudo saudade de uma infância e/ou juventude que parecem ter sido<br />
bem melhores do que a maturidade ou a velhice na terra de <strong>África</strong>, onde se<br />
escolheu viver. O mal-estar pode-se acirrar em banzo ou síndrome de Ulisses,<br />
levando a pessoa ao suicídio, quando a própria humanidade da pessoa é<br />
ameaçada pelas difíceis ou insuportáveis condições de existência. No entanto,<br />
a história tem mostrado que o ser humano luta para sobreviver mesmo em<br />
situações de estresse, o que comprova que a resiliência é um fator importante<br />
ao se estudar o comportamento emocional das pessoas (e dos personagens de<br />
romances) frente ao trauma.<br />
31<br />
GAMBOA, Santiago. A síndrome de Ulisses. Tradução Luis Reyes Gil. São Paulo: Ed. Planeta<br />
do Brasil, 2006. p. 370.
70 Figueredo, Eurídice. <strong>Os</strong> <strong>brasileiros</strong> <strong>retornados</strong> <strong>à</strong> <strong>África</strong>.<br />
ABSTRACT<br />
During the nineteenth century, many Afro-Brazilians<br />
returned to Africa, mainly to the region of the Gulf<br />
of Benin. This story is the theme of some Brazilian<br />
and Caribbean novels whose protagonist is a Brazilian<br />
woman: Mariana, Kehinde/Luísa and Ayodélé/Romana.<br />
Mariana is the main character of the first volume of<br />
the trilogy by Antonio Olinto A alma da <strong>África</strong>, which<br />
includes A casa da água, O rei de Keto and O trono de vidro.<br />
The subject has been recently picked up by Ana Maria<br />
Gonçalves in Um defeito de cor, in which the author, inspired<br />
in the lacunas of Luiz Gama’s biography, reconstitutes<br />
fictitiously his mother’s history. The Caribbean<br />
writer Maryse Condé also depicts the community of<br />
the Agudás in her novel in two volumes: Ségou, Les murailles<br />
de terre and Ségou, La terre en miettes.<br />
KEYWORDSs: Antonio Olinto; Ana Maria Gonçalves;<br />
Maryse Condé.<br />
Recebido: 15/02/2009<br />
Aprovado: 11/05/2009