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09_Samara Inácio e Samarkandra.pdf - CCHLA/UFRN

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que proporciona uma análise sempre voltada para a investigação do “ser”, do “eu”;<br />

o viés de exame se constrói sob a ótica filosófica ou filosófico-literária, em que,<br />

muitas vezes, o elemento literário é ofuscado em virtude de estudos que<br />

supervalorizam apenas um dos caminhos percorridos pela autora na concepção de<br />

seus escritos. No entanto, a 'falha' da crítica não diminui o valor de suas obras<br />

literárias que dignificam a perscrutação interior da corrente intimista, quando a<br />

sondagem circula pelo íntimo das personagens, procurando descrever seus<br />

estados de alma e suas angústias.<br />

Segundo Stegagno Picchio (1997), o estilo da autora é compacto e pode<br />

ser percebido nas suas coletâneas de contos, em que “o encontro entre o quotidiano<br />

cinzento e os atos de rebelião vem celebrado de ceninhas familiares, miniaturizadas<br />

e cruéis” (Stegagno Picchio, 1997, p. 612). Nós acrescentamos as crônicas de<br />

Clarice Lispector, porque estas também perseguem, na maioria das vezes, o<br />

mesmo desejo de desvendamento do eu e, principalmente, os aspectos elencados<br />

acima são plenamente percebidos na crônica “Uma Italiana Suíça”, sobretudo<br />

quando se ressalta a aparente ingenuidade da personagem, que nem por isso se<br />

priva de sair em busca do “conhecimento”.<br />

A assertiva de Picchio vai ao encontro do discurso de Auerbach (2004)<br />

quando de suas observações sobre To The Lighthouse, romance de Virginia Woolf,<br />

em que se percebe claramente a alusão às cenas “miniaturizadas”, isto é, aos<br />

acontecimentos sem importância na narrativa, como o momento em que Mrs.<br />

Ramsay mede o comprimento das meias no filho caçula, James. Acerca disso,<br />

afiança-nos Auerbach (2004): “Neste episódio totalmente carente de importância<br />

são entretecidos constantemente outros elementos, os quais, sem interromper o<br />

seu prosseguimento, requerem muito mais tempo para serem contados do que ele<br />

duraria na realidade” (Auerbach, 2004, p. 477). Assim, tanto Picchio quanto<br />

Auerbach tocam em pontos decisivos da prosa clariceana, porque os<br />

acontecimentos cruciais da narrativa são gestados através das (des) importantes<br />

cenas ou falas que compõem a história de Rosa.<br />

Seu cotidiano cinzento pode ser apreendido tanto pela ambiência da<br />

crônica quanto pelo título que a ficcionista escolhe em que se confrontam Itália e<br />

Suíça, isto é, cria-se uma oposição entre o clima da Itália, nem sempre de<br />

atmosfera fria, e o clima suíço, quase sempre gélido.<br />

A narrativa se inicia mostrando o suplício de Rosa, uma italiana na Suíça,<br />

conforme indica o título da crônica, cuja angústia logo é explicitada: “Rosa perdeu<br />

os pais quando era pequena. Os irmãos se espalharam pelo mundo e ela entrou<br />

para o orfanato de um convento. Lá levava uma vida sóbria e dura com as outras<br />

crianças” (Lispector, 1999, p. 88). Além da tentativa de mostrar o cotidiano da<br />

protagonista, esta passagem demonstra a semelhança entre Rosa e as outras<br />

crianças, pressupondo que ela não se destacava, não era “diferente” de nenhuma<br />

outra, fazendo com que a similaridade entre os seres do orfanato denotasse um<br />

dado cruel, já que subverte as questões referentes à subjetividade e à<br />

individualidade.<br />

Órfã muito cedo, ela foi morar num convento, longe dos outros irmãos,<br />

fator que nos coloca frente a um profundo estado de solidão, porque esta mesma<br />

similaridade entre os seres também delibera um estado de isolamento. Sobre a<br />

“orfandade”, assevera-nos Pellegrino (1988):<br />

“Há uma orfandade das coisas e dos seres, no mundo de hoje.<br />

E entre coisas e seres órfãos vagueia o homem órfão, pois só<br />

se conquista a plena pertinência ao mundo na medida do<br />

consentimento às coisas para que existam, no esplendor de<br />

sua graça” (Pellegrino, 1988, p.191).<br />

vivência 36<br />

105<br />

n. 36 2011 p. 103-111

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