09_Samara Inácio e Samarkandra.pdf - CCHLA/UFRN
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com o outro do sexo masculino, porque, no convento, esta relação era explicitamente<br />
proibida e simbolizava a impureza. Assim, ela, que quase morreu, “dormiu magra e<br />
pálida. A febre diminuiu, ela se levantou” (Lispector, 1999, p. 89).<br />
A suposta impureza, atribuída aos do sexo masculino, desfaz-se com a<br />
atitude do médico, no que concerne à doença de Rosa, pois, sabedor do motivo de<br />
sua febre nervosa, ele tenta dirimir a relevância adquirida pela leitura do livro,<br />
assegurando a Rosa que ela não “deve ler essas coisas, elas são mentira”<br />
(Lispector, 1999, p. 89). Ora, vê-se claramente que o médico tenta preservar a<br />
inocência de Rosa, não se configurando, portanto, na figura perigosa antes<br />
representada.<br />
Este, como o filho de Apolo, Asclépio, Deus da Medicina, que não só<br />
curava praticamente todas as doenças e traumas, como também ressuscitava os<br />
mortos, ressuscitou Rosa. Surge, então, o momento epifânico da protagonista: “É<br />
que eu pensava que tudo o que se escreve num livro e que se publica é verdade,<br />
disse olhando com tanto pudor o primeiro homem–bom” (Lispector, 1999, p. 89).<br />
Através da descoberta de que nem tudo que se escreve é verdade, Rosa descobrese,<br />
embrenhando-se, por conseguinte, nos caminhos do ser.<br />
Dissertando acerca da epifania, termo tão explorado pelos estudiosos da<br />
obra clariceana, Rossoni (2001) fez uma colocação bastante pertinente ao nosso<br />
estudo, ao afirmar que na escritura de Clarice persiste uma “técnica do susto”:<br />
“[...] Em que o instante mais banal estimula a suspensão do<br />
tempo e a descrição da realidade. Este instante de real perigo<br />
dentro do texto expressa a razão fundamental de ser ele<br />
próprio, uma vez que expõe a desestabilização da ordem<br />
natural das coisas. (...) O texto abre-se para a experiência<br />
pessoal e vivencial, possibilitando o retorno às instâncias da<br />
exterioridade, em estágio de suspensão e de questionamento<br />
dela própria” (Rossoni, 2001, p. 158).<br />
A menina que, de “cabeça raspada e o longo vestido de fazenda<br />
grosseira”, surgiu do susto, transformou-se, dando lugar a uma mulher que, “aos<br />
quarenta anos, ficou tão alegre, não sei explicar”, diz o narrador.<br />
Mas também tentou se matar, por amor. Anos depois, risos, namorados,<br />
novas experiências. Ao que parece, as novas experiências despertam também o<br />
erotismo da personagem. Para Birman (2001), o erotismo deveria ser sublinhado<br />
no psiquismo do sujeito, o que, por sua vez, desnuda a atitude do sujeito em face<br />
da modernidade. É desta forma, portanto, que Rosa se insere no espaço e no<br />
tempo, afirmando-se enquanto sujeito, fixando sua identidade e,<br />
conseqüentemente, deixando de ser o sujeito deslumbrado com o mundo para<br />
despir-se e deslumbrar-se.<br />
Transcrevendo seu diálogo com a protagonista, a narradora, que só no<br />
fim da crônica descobrimos que se trata de uma mulher, revela-nos mais sobre a<br />
conversa entre as duas – é assim que ela legitima sua história: “Também diz: não<br />
sou muito inteligente, tenho a impressão de que a senhora é mais do que eu.<br />
Também diz: “a senhora alguma vez já chorou como uma boba e sem saber por<br />
quê? Pois eu já!” – e cai na gargalhada” (Lispector, 1999, p. 90). Muito embora<br />
possa se dizer que a personagem inscreve-se na associação espaço-temporal<br />
daqueles que são, ela continua sendo a partir do outro, o que revela a profunda<br />
necessidade desse outro enquanto elemento apaziguador da solidão.<br />
No parágrafo acima, referimo-nos às novas experiências de Rosa, como<br />
item de captação de sua capacidade de ser e da necessidade do outro para a<br />
vivência 36<br />
1<strong>09</strong><br />
n. 36 2011 p. 103-111