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<strong>UFRJ</strong><br />

A problemática <strong>da</strong> clivagem: aspectos teóricos e<br />

clínicos<br />

Renata Machado <strong>de</strong> Mello<br />

Tese <strong>de</strong> Doutorado apresenta<strong>da</strong> ao Programa <strong>de</strong><br />

Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Psicologia</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, como parte dos requisitos necessários à<br />

obtenção do título <strong>de</strong> Doutor em Teoria<br />

Psicanalítica.<br />

Orientadora: Regina Herzog<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Julho / 2012<br />

1


A problemática <strong>da</strong> clivagem: aspectos teóricos e clínicos<br />

Renata Machado <strong>de</strong> Mello<br />

Orientadora: Regina Herzog<br />

Tese <strong>de</strong> Doutorado submeti<strong>da</strong> ao Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, <strong>Instituto</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro – <strong>UFRJ</strong>, como parte dos requisitos necessários<br />

à obtenção do título <strong>de</strong> Doutor em Teoria Psicanalítica.<br />

Aprova<strong>da</strong> por:<br />

_______________________________<br />

Profa. Dra. Regina <strong>de</strong> Oliveira Herzog<br />

_______________________________<br />

Profa. Dra. Maria Teresa <strong>da</strong> Silveria Pinheiro<br />

_______________________________<br />

Prof. Dr. Julio Sergio Verztman<br />

_________________________________<br />

Profa. Dra. Fernan<strong>da</strong> Pacheco-Ferreira<br />

_________________________________<br />

Profa. Dra. Rafaela Teixeira Zorzanelli<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Julho/2012<br />

2


Mello, Renata Machado<br />

A problemática <strong>da</strong> clivagem:aspectos teóricos e clínicos.<br />

Renata Machado <strong>de</strong> Mello. Rio <strong>de</strong> Janeiro: <strong>UFRJ</strong>/IP, 2012.<br />

121f. ; 26,5 cm<br />

Orientadora: Regina Herzog<br />

Tese (Doutorado) – <strong>UFRJ</strong>/IP/Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Teoria<br />

Psicanalítica, 2012.<br />

Referências Bibliográficas: f. 112-121<br />

1. Clivagem. 2. Simbolização. 3. Clínica. 4. Psicanálise. 5. Tese<br />

(Doutorado). I. Herzog, Regina. II. Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro/ <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong>/ Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em<br />

Teoria Psicanalítica. III. Título<br />

3


Agra<strong>de</strong>cimentos<br />

À minha mãe e ao meu irmão, pelo sentido <strong>da</strong> força.<br />

Aos meus queridos amigos, em especial, Adriana, Beatriz, Erika, Fernan<strong>da</strong>, Alina, Roberta,<br />

Priscilla, Manuela, Mariana e Felipe, pelas inúmeras experiências compartilha<strong>da</strong>s ao longo do<br />

percurso.<br />

Ao Gabriel, pelo tempo que se vive.<br />

À Jô, pela confiança.<br />

À Regina Herzog, pela acui<strong>da</strong><strong>de</strong> acadêmica e pelo carinho.<br />

Ao Prof. François Richard, pelas importantes reflexões e pelo acolhimento.<br />

Ao Prof. Ary Band, pedra angular <strong>da</strong> minha formação em psicanálise, pelo <strong>de</strong>spertar analítco.<br />

À Genny Nissenbaum, pela aposta generosa e pela aproximação <strong>da</strong> psicanálise com a arte.<br />

Ao Prof. Octavio Souza, pelas indicações valiosas.<br />

Ao NEPECC, pelas contribuições teóricas e clínicas fun<strong>da</strong>mentais.<br />

À Casa <strong>da</strong> Árvore, sobretudo, Lulli Milman e Fernan<strong>da</strong> Baines, pela vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> psicanálise<br />

em prática.<br />

Ao <strong>Instituto</strong> Cultural Freud, pelas ricas parcerias.<br />

À Bianca Savietto, pelas trocas acadêmicas e pela disponibili<strong>da</strong><strong>de</strong> atenciosa.<br />

À Flora Muniz Tucci, pela revisão cui<strong>da</strong>dosa.<br />

À CAPES, pela bolsa que financiou esta pesquisa tanto <strong>no</strong> país quanto <strong>no</strong> exterior.<br />

4


Dedicatória<br />

Ao meu pai,<br />

pela curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre o mundo.<br />

In memorian<br />

5


Resumo<br />

A problemática <strong>da</strong> clivagem: aspectos teóricos e clínicos<br />

Renata Machado <strong>de</strong> Mello<br />

Orientadora: Regina Herzog<br />

Resumo <strong>da</strong> Tese <strong>de</strong> Doutorado submeti<strong>da</strong> ao Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em<br />

Teoria Psicanalítica, <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro –<br />

<strong>UFRJ</strong>, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título <strong>de</strong> Doutor em Teoria<br />

Psicanalítica.<br />

A tese discute a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> clivagem enquanto <strong>de</strong>fesa privilegia<strong>da</strong> diante do excesso<br />

pulsional <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong> reviravolta conceitual dos a<strong>no</strong>s 20. Com este objetivo propomos<br />

em um primeiro momento abor<strong>da</strong>r os processos <strong>de</strong> simbolização do vivido clivado,<br />

avançando para o exame <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> registro e insistência traumáticos. Em um<br />

segundo momento, investigamos acerca <strong>da</strong> contraparti<strong>da</strong> do objeto na organização do<br />

psiquismo clivado, a partir <strong>da</strong>s falhas na imbricação do objeto com a pulsão. E, em<br />

segui<strong>da</strong> trataremos dos impasses <strong>da</strong> clínica <strong>da</strong> clivagem, conjecturando sobre as<br />

modificações necessárias <strong>no</strong> dispositivo analítico.<br />

Palavras-chaves: Clivagem – Simbolização – Clínica – Psicanálise – Tese<br />

(Doutorado)<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

Julho/2012<br />

6


Abstract<br />

The problem of cleavage: theoretical and clinical aspects<br />

Renata Machado <strong>de</strong> Mello<br />

Tutor: Regina Herzog<br />

Abstract of the Thesis presented to the Post-graduation Programme of Psychoanalytic<br />

Theory, <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro – <strong>UFRJ</strong>, as a<br />

part of the requisite for obtaining the Doctor's Degree in Psychoanalytic Theory.<br />

The thesis discusses the <strong>no</strong>tion of cleavage as a privileged <strong>de</strong>fence upon the instinctual<br />

excess in the context of the conceptual upheaval in the 1920’s. With this objective we<br />

propose at first approaching the processes of simbolisation of the cleaved experience,<br />

then subsequently moving on to the examination of the registry and traumatic insistence<br />

forms. We then investigate the object’s counterpart in the organization of cleaved<br />

psychism, starting from the flaws in the object's imbrication with instinct. Finally, we<br />

will examine the uncertainties of cleavage’s clinic, discussing the necessary changes in<br />

the analytical setting.<br />

Keywords: Cleavage – Simbolisation – Clinic – Psychoanalysis – Thesis (Doctor’s gra<strong>de</strong>)<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

July/2012<br />

7


Sumário<br />

Introdução ..................................................................................................................... 10<br />

I – Trauma e clivagem: situando a problemática ...................................................... 15<br />

I.1. Conflituali<strong>da</strong><strong>de</strong> e recalque ................................................................................ 17<br />

I.2. Da impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> representação à repetição compulsória ..................... 23<br />

I.3. Notas sobre o conceito <strong>de</strong> ligação...................................................................... 28<br />

II – Clivagem e processos <strong>de</strong> simbolização ................................................................. 31<br />

II.1. Simbolização primária versus simbolização secundária ............................... 34<br />

II.2. Fueros psíquicos ............................................................................................... 38<br />

II.3. A clivagem <strong>no</strong> eu: ênfase intrapsíquica .......................................................... 41<br />

II.4. Insistências traumáticas ................................................................................... 44<br />

III – Funcionamento psíquico clivado: pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong> e objeto ............................... 49<br />

III.1. A contraparti<strong>da</strong> do objeto .............................................................................. 54<br />

III.1.1. Holding e continência ................................................................................... 57<br />

III.2. O trabalho do negativo ................................................................................... 62<br />

III.3. A clivagem <strong>no</strong> eu: ênfase intersubjetiva ....................................................... 66<br />

III.3.1. Sistema fechado e povoado inter<strong>no</strong> ............................................................ 70<br />

IV – A clínica <strong>da</strong> clivagem ........................................................................................... 77<br />

IV.1. A aventura do método psicanalítico .............................................................. 79<br />

IV.1. 1. Extensões associativas ................................................................................. 82<br />

IV. 2. Apropriação subjetiva e síntese psíquica......................................................85<br />

IV3. Por uma simbolização compartilha<strong>da</strong> ............................................................ 89<br />

IV.3.1. Conversações primitivas .............................................................................. 92<br />

IV3.2. O envelope pré-narrativo ............................................................................. 95<br />

IV3.3. O analista-espelho ......................................................................................... 99<br />

IV.4. Intervenções do Nebenmensch ..................................................................... 102<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais ................................................................................................... 108<br />

Referências bibliográficas .......................................................................................... 112<br />

8


Somos sempre nós.<br />

Os nós não se <strong>de</strong>satam facilmente.<br />

Ericson Pires<br />

9


Introdução<br />

A presente tese <strong>de</strong> doutorado, cuja pesquisa teve início <strong>no</strong> a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 2008,<br />

configura-se como trabalho <strong>de</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong> à pesquisa e à dissertação <strong>de</strong> mestrado,<br />

apresenta<strong>da</strong>s ao Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro nesse mesmo a<strong>no</strong>. Tal dissertação investigou a figura <strong>da</strong><br />

confiança como condição <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para o estabelecimento <strong>de</strong> vínculos objetais.<br />

Trabalhamos com a perspectiva <strong>de</strong> uma dupla inscrição <strong>da</strong> confiança; a primeira<br />

concebi<strong>da</strong> como motor para o engendramento dos processos <strong>de</strong> subjetivação e a segun<strong>da</strong><br />

enquanto via <strong>de</strong> abertura para o outro. Nosso objetivo principal consistiu em<br />

circunscrever o campo <strong>da</strong>s relações objetais primárias, buscando traduzir a quali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

particular <strong>da</strong>s trocas iniciais entre sujeito e objeto em termos <strong>de</strong> confiabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A título <strong>de</strong> conclusão <strong>da</strong> pesquisa <strong>no</strong> mestrado, manifestamos a intenção <strong>de</strong><br />

realizar um <strong>de</strong>sdobramento clínico em <strong>no</strong>sso objeto <strong>de</strong> estudo, a fim <strong>de</strong> examinar as<br />

condições necessárias para a promoção <strong>de</strong> uma abertura para o encontro alteritário. Esta<br />

tese <strong>de</strong> doutorado visa cumprir tal propósito, <strong>de</strong> modo que o seu objetivo princeps é<br />

extrair subsídios teóricos para refletir sobre a prática psicanalítica. Se anteriormente, na<br />

jorna<strong>da</strong> <strong>da</strong> dissertação, valorizamos a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> confiança agora estamos privilegiando a<br />

problemática <strong>da</strong> clivagem. Isso porque apesar <strong>de</strong> ser fato que a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> confiar<br />

subjaz a relação <strong>de</strong> objeto, parece-<strong>no</strong>s que a confiabili<strong>da</strong><strong>de</strong> pressupõe um avanço <strong>no</strong><br />

processo <strong>de</strong> integri<strong>da</strong><strong>de</strong> narcísica e diferenciação entre o eu e o outro. Consi<strong>de</strong>ramos<br />

que o contato genuí<strong>no</strong> com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa obe<strong>de</strong>ce a um longo caminho <strong>de</strong><br />

apropriação subjetiva dos múltiplos encontros vi<strong>da</strong> afora.<br />

É importante precisar, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, que <strong>no</strong>s situamos junto àqueles que<br />

compreen<strong>de</strong>m a problemática <strong>da</strong> clivagem <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> perspectiva dos “sofrimentos<br />

narcísico-i<strong>de</strong>ntitários” (ROUSSILLON, 1999), <strong>de</strong>clarando o <strong>no</strong>sso entendimento <strong>de</strong> que<br />

o que se encontra em jogo é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> constituição do psiquismo e <strong>da</strong> separação entre<br />

sujeito e objeto. Desse modo, vamos <strong>no</strong>s voltar para as situações arcaicas e limites, nas<br />

quais a presença do outro se configura como absolutamente necessária para o existir do<br />

indivíduo. Nesse sentido, cabe salientar a pertinência que atribuímos para a imbricação<br />

do mundo inter<strong>no</strong> com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa. Colocando isso em perspectiva, <strong>no</strong>s<br />

10


<strong>de</strong>teremos <strong>no</strong> campo conceitual anterior à primazia <strong>da</strong> linguagem verbal, lançando mão<br />

<strong>da</strong>s contribuições <strong>de</strong> psicanalistas atentos aos primórdios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica, como Sándor<br />

Ferenczi, Michael Balint, Donald Winnicott e Ronald Fairbairn, especialmente <strong>no</strong><br />

tocante ao entrelaçamento intra e inter, René Roussillon e André Green. Por essa via <strong>de</strong><br />

entendimento, inclusive, i<strong>de</strong>ntificamos o incremento <strong>da</strong> procura <strong>no</strong> meio psicanalítico<br />

atual por autores que articulam clinicamente a temática dos primeiros vínculos objetais.<br />

É importante assinalar que o contexto <strong>de</strong> surgimento <strong>da</strong> presente pesquisa é o<br />

confronto ca<strong>da</strong> vez mais frequente na prática psicanalítica <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong> com<br />

as subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que encerram os ditos estados limites 1 e sofrimentos narcísicos, tais<br />

como os adoecimentos psicossomáticos e hipocondríacos, os ataques <strong>de</strong> pânico,<br />

hiperativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, as compulsões mais diversas – <strong>da</strong>s drogas aos alimentos e mercadorias.<br />

Tais configurações subjetivas têm em comum a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> serem refratárias ao<br />

dispositivo psicanalítico clássico, colocando em xeque o próprio método <strong>da</strong> psicanálise<br />

fun<strong>da</strong>mentado na livre associação. Nessas condições, enten<strong>de</strong>mos que o mal-estar se<br />

enuncia, sobretudo, <strong>no</strong> registro do corpo e <strong>da</strong> ação, <strong>de</strong>safiando o potencial simbólico<br />

(BIRMAN, 2006). Cabe precisar que, efetivamente, não <strong>no</strong>s <strong>de</strong>teremos na<br />

especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s sintomatologias ocasiona<strong>da</strong>s <strong>no</strong>s dias <strong>de</strong> hoje, apesar <strong>de</strong> adotarmos a<br />

premissa <strong>de</strong> que o funcionamento clivado se constitui como uma importante chave <strong>de</strong><br />

leitura para o sofrimento psíquico contemporâneo.<br />

Encaramos a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> clivagem enquanto <strong>de</strong>fesa privilegia<strong>da</strong> diante do excesso<br />

pulsional <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong> reviravolta conceitual dos a<strong>no</strong>s 20, marca<strong>da</strong>, fun<strong>da</strong>mentalmente,<br />

por “Além do princípio do prazer” (FREUD, 1920/1996) e “O ego e o id” (FREUD,<br />

1923/1996), a partir <strong>da</strong> qual se torna possível consi<strong>de</strong>rar algo fora do registro<br />

representacional. Nesse terre<strong>no</strong>, a certeza <strong>da</strong> ligação originária <strong>da</strong> pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong> com os<br />

objetos começa a ser relativiza<strong>da</strong> em prol <strong>de</strong> um redimensionamento do traumático com<br />

base <strong>no</strong>s fenôme<strong>no</strong>s psíquicos <strong>da</strong> compulsão à repetição, a <strong>de</strong>speito do princípio <strong>de</strong><br />

prazer. Efetivamente, a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar saí<strong>da</strong>s representacionais para<br />

aquilo que exce<strong>de</strong> inviabiliza a mediação pelo recalque, <strong>da</strong>ndo ensejo ao<br />

transbor<strong>da</strong>mento intensivo. O <strong>de</strong>sequilíbrio inter<strong>no</strong> entre Eros e Tânatos será explorado<br />

1 Em referência aos ensinamentos <strong>de</strong> Jean-Bertrand Pontalis, constata-se que “os ‘casos limites’ não<br />

po<strong>de</strong>m mais ser consi<strong>de</strong>rados excepcionais e que o estado-limite parece estar subjacente à construção<br />

neurórica e a cena perversa” (1974/2005, p. 217).<br />

11


em função <strong>da</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s relações estabeleci<strong>da</strong>s entre o sujeito e os objetos.<br />

Explicitaremos como o não encontro <strong>da</strong> pulsão com os objetos se torna o império <strong>de</strong><br />

ação <strong>da</strong>s clivagens como <strong>de</strong>fesa paradoxal, resultando na procura por meios <strong>de</strong><br />

apropriação subjetiva do impacto intensivo.<br />

Avançaremos o <strong>no</strong>sso percurso tendo como eixo fun<strong>da</strong>mental a processuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

envolvi<strong>da</strong> na simbolização <strong>da</strong>s experiências <strong>no</strong> psiquismo. Isso indica que<br />

sustentaremos o fato <strong>de</strong> que existe um trabalho psíquico entre a experiência vivi<strong>da</strong> e o<br />

sentido <strong>da</strong> experiência, capaz <strong>de</strong> transformar a relação do sujeito com o próprio campo<br />

experiencial. Tal transformação será aprecia<strong>da</strong> por meio <strong>da</strong> inscrição em diferentes<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> organização, registro e insistência do vivido subjetivo, os quais<br />

comportam uma relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>rivação e coexistência, mas não <strong>de</strong> oposição. Definiremos<br />

o or<strong>de</strong>namento psíquico com base <strong>no</strong>s três níveis estratificados <strong>de</strong> sucessão sob a forma<br />

<strong>de</strong> sig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> percepção, traços inconscientes e traços conscientes, oferecidos pela<br />

memorável “Carta 52” <strong>de</strong> Freud (1896a/1996). Vamos valorizar, sobretudo, a passagem<br />

dos sig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> percepção para os traços inconscientes, na qual localizamos as<br />

intercorrências do excesso traumático solidário do funcionamento clivado. Por essa via<br />

<strong>de</strong> abertura, <strong>da</strong>remos ensejo às reminiscências traumáticas <strong>de</strong> natureza sensório-motora<br />

e perceptiva fora do espaço psíquico <strong>da</strong> representação. Interessa-<strong>no</strong>s prestigiar a<br />

expressão psíquica multisensorial do sofrimento em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> aparelhagem verbal,<br />

tendo <strong>no</strong> horizonte o engendramento <strong>de</strong> apropriações subjetivas efetivas e revigorantes.<br />

Com esssas consi<strong>de</strong>rações em mente, buscaremos refletir sobre a prática clínica,<br />

conjecturando sobre as modificações necessárias <strong>no</strong> dispositivo terapêutico para o<br />

atendimento <strong>da</strong>s subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s cliva<strong>da</strong>s. Apoiando-<strong>no</strong>s <strong>no</strong> pressuposto <strong>de</strong> que os<br />

acontecimentos atravessados pelo excesso pulsional resi<strong>de</strong> <strong>no</strong> coração do psiquismo<br />

majoritariamente clivado, vamos examinar as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> trocas analíticas propícias<br />

à integração dos estados subjetivos postos à margem. Interrogaremos sobre a pertinência<br />

do método <strong>da</strong> livre associação, consi<strong>de</strong>rando possíveis extensões para além <strong>da</strong><br />

consagra<strong>da</strong> talking cure, tendo em vista que o traumático em voga não se mostra<br />

redutível ao domínio <strong>da</strong> linguagem verbal. Na esteira <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias, <strong>da</strong>remos um lugar<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque às formas <strong>de</strong> conversações primitivas calca<strong>da</strong>s em narrativa gestuais,<br />

motoras, rítmicas e sensoriais. Proporemos a condução do processo analítico com base<br />

12


em uma simbolização compartilha<strong>da</strong> entre analista/analisando, implicando diretamente<br />

a presença analítica <strong>no</strong> exercício <strong>de</strong> ligação <strong>da</strong>s experiências <strong>de</strong>sconexas <strong>no</strong> psiquismo.<br />

Antes <strong>de</strong> <strong>da</strong>rmos início ao <strong>no</strong>sso percurso, consi<strong>de</strong>ramos premente <strong>no</strong>s<br />

posicionar diante <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> presente tese. Para tanto, vamos <strong>no</strong>s servir <strong>da</strong><br />

diferenciação, realiza<strong>da</strong> por Ronald Fairbairn (1955/1994), entre o psicanalista<br />

“cientista” e o psicanalista “psicoterapeuta”. Sob a ótica fairbairniana, o psicanalista<br />

cientista seria aquele que tem um interesse objetivo pelo funcionamento do aparelho<br />

psíquico, evitando, assim, o contato emocional com os pacientes e consigo mesmo. A<br />

postura neutra do cientista subenten<strong>de</strong>, então, uma apreensão racional e <strong>de</strong>scritiva do<br />

outro. O psicanalista psicoterapeuta, por sua vez, pressuporia uma abertura para a<br />

ligação afetiva alteritária. De certa forma, o psicoterapeuta se torna apto para o<br />

psicanalizar a partir do reconhecimento dos seus próprios sofrimentos psíquicos. Aqui a<br />

proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a i<strong>de</strong>ia inspira<strong>da</strong> por Sándor Ferenczi <strong>de</strong> que o bom analista é o<br />

paciente bem tratado fica evi<strong>de</strong>nte. Nessa perspectiva, o cientista se implicaria<br />

intectualmente <strong>no</strong> processo terapêutico enquanto o psicoterapeuta se pautaria com base<br />

<strong>no</strong> seu vivido subjetivo.<br />

A esse propósito, acompanhemos o enunciado <strong>de</strong> Fairbain: “Parece-me óbvio<br />

que o psicanalista não é primeiramente um cientista, mas um psicoterapeuta, e pareceme<br />

igualmente óbvio que a adoção <strong>de</strong> um papel <strong>de</strong> psicoterapeuta envolve o abando<strong>no</strong><br />

<strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> estritamente científica” (1955/1994. op. cit., p.126. Tradução <strong>no</strong>ssa).<br />

Preten<strong>de</strong>mos com isso esclarecer que o que move a <strong>no</strong>ssa pesquisa não consiste na<br />

elaboração <strong>de</strong> uma trama conceitual totalitária nem em uma apresentação sistematiza<strong>da</strong><br />

acerca <strong>da</strong> problemática <strong>da</strong> clivagem, pois a preocupação crucial aqui resi<strong>de</strong> <strong>no</strong> fator<br />

terapêutico. Desse modo, os autores serão convocados em cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> com a <strong>no</strong>ssa<br />

visa<strong>da</strong> clínica. Evi<strong>de</strong>ntemente, a aventura do pensamento psicanalítico <strong>no</strong>s comove,<br />

contudo, na medi<strong>da</strong> mesmo em que permite a ampliação do horizonte <strong>de</strong> tratamento<br />

analítico. Apesar <strong>da</strong> fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> clínica, esperamos, contudo, não sacrificar a teoria<br />

psicanalítica por nós mobiliza<strong>da</strong>.<br />

A título <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, por fim, interessa-<strong>no</strong>s salientar que a sequência<br />

assumi<strong>da</strong> pelo texto seguirá o próprio sentido dos processos <strong>de</strong> simbolização, isto é, a<br />

tese se inicia com a contextualização do campo conceitual a partir <strong>de</strong> impressões<br />

13


sensíveis, complexificando em função do entrelaçamento entre os aspectos<br />

intrapsíquicos e intersubjetivos, culminando na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reflexão clínica, ponto <strong>de</strong><br />

expressão <strong>da</strong> <strong>no</strong>ssa apropriação subjetiva acerca <strong>da</strong> problemática cliva<strong>da</strong>. Tal sequência<br />

implica, portanto, em respeitar a processuali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica como o procedimento <strong>da</strong><br />

pesquisa em questão.<br />

14


I. Trauma clivagem: situando a problemática<br />

Meu ser elástico, mola, agulha, trepi<strong>da</strong>ção...<br />

Fernando Pessoa<br />

O homem divi<strong>de</strong>-se <strong>de</strong> si mesmo. Fato incontornável. A divisão testemunha não<br />

apenas a sobrevivência aos traumatismos, como implica na própria constituição do<br />

psiquismo. Não há como passar <strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong>mente pelos impactos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ou<br />

açambarcar os acontecimentos cotidia<strong>no</strong>s inteiramente <strong>de</strong> modo contínuo. O caráter<br />

impactante <strong>de</strong> uma vivência <strong>de</strong>man<strong>da</strong> inevitavelmente um movimento <strong>de</strong> transmutação<br />

interna, provocando <strong>de</strong>sdobramentos em algum nível subjetivantes. Nota-se aí o preço<br />

<strong>da</strong> subjetivação, via <strong>de</strong> engendramento alienante ou gerador <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Desse modo,<br />

tomamos a divisão não como um sig<strong>no</strong> psicopatológico em si, po<strong>de</strong>ndo referir-se a um<br />

processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcação entre os sistemas do aparato psíquico e, mesmo, a um processo<br />

absolutamente organizador dos traumas. Dessa perspectiva, algumas divisões po<strong>de</strong>m ser<br />

vistas como constitutivas e potentes, enquanto outras, se apresentam<br />

predominantemente como entraves ao movimento psíquico, ain<strong>da</strong> que indispensáveis<br />

para a sobrevivência do eu.<br />

A esse respeito cabe precisar que os procedimentos <strong>de</strong> cisão po<strong>de</strong>m incindir<br />

como cortes horizontais em que partes <strong>da</strong> experiência são excluí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> consciência ou<br />

intervir para segregar porções <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> objetiva e <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> por meio <strong>de</strong><br />

barreiras verticais (FIGUEIREDO, 2003a). O primeiro caso diz respeito à operação<br />

realiza<strong>da</strong> pelo recalque, mediante a qual, as representações são separa<strong>da</strong>s dos afetos<br />

correlatos, tornando-se excluí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> consciência. Trata-se, portanto, <strong>de</strong> cisões intersistêmica,<br />

responsáveis pela diferenciação entre as instâncias psíquicas e as formações<br />

do inconsciente. As verticalizações, por sua vez, encerram uma divisão intrapsíquica, a<br />

partir <strong>da</strong> qual abor<strong>da</strong>remos a clivagem, instaurando uma <strong>de</strong>sconexão <strong>no</strong> psiquismo.<br />

Nessas condições, as cisões inviabilizam a integração <strong>da</strong>s experiências psíquicas,<br />

criando áreas separa<strong>da</strong>s, paralelas e incomunicáveis. É importante sublinhar que o<br />

psiquismo po<strong>de</strong> comportar ambos os cortes, <strong>de</strong> modo que a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> se engendra<br />

<strong>no</strong>s atravessamentos entre recalques e clivagens. Com base nessas proposições, <strong>no</strong>s<br />

15


parece mais apropriado traçar uma linha transversal, mesmo que uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

corte seja mais dominante que outro, conforme adverte Jô Gon<strong>da</strong>r (2006).<br />

O termo em alemão Spaltung, para o qual adota-se o equivalente clivagem,<br />

obe<strong>de</strong>ce a um longo caminho <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento conceitual na obra freudiana, sendo<br />

utilizado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a invenção do inconsciente, passando por variações, tais como,<br />

“clivagem <strong>da</strong> consciência” ou “clivagem psíquica”, até assumir a especificação<br />

Ichspaltung, <strong>de</strong>signa<strong>da</strong> como a divisão do eu, <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong> reflexão sobre o fetichismo<br />

e as psicoses (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001/1982). Evi<strong>de</strong>ntemente, a acepção <strong>da</strong><br />

palavra sofre inflexões <strong>de</strong> acordo com o aporte teórico-clínico em voga, contudo,<br />

sempre se refere ao fato <strong>de</strong> o homem dividir-se <strong>de</strong> si mesmo.<br />

Conforme afirmamos em <strong>no</strong>ssa introdução geral, investigaremos o modo<br />

específico <strong>de</strong> funcionamento psíquico diante do trauma: a clivagem <strong>no</strong> eu. Tal clivagem<br />

se inscreve na reviravolta conceitual dos a<strong>no</strong>s 20, apontando para uma dimensão do<br />

traumático como excesso pulsional. No entanto, valendo-se do enunciado presente <strong>no</strong><br />

final <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Freud em “O esboço <strong>de</strong> psicanálise”, a saber, “os fatos <strong>de</strong>sta divisão do<br />

ego, que acabamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver, não são tão <strong>no</strong>vos nem tão estranhos quando po<strong>de</strong>m<br />

em princípio parecer” (1940a[1938]/1996, p.217), iniciaremos o capítulo <strong>de</strong>slocando a<br />

ênfase <strong>da</strong> clivagem em referência às intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s traumáticas para as formulações<br />

iniciais <strong>no</strong> tocante à divisão do psiquismo. Preten<strong>de</strong>mos com tal <strong>de</strong>slocamento,<br />

fortalecer a discussão <strong>da</strong> problemática <strong>da</strong> clivagem, conferindo-lhe profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

contor<strong>no</strong>s mais <strong>de</strong>finidos.<br />

Interessa-<strong>no</strong>s circunscrever os estados subjetivos clivados e sustentar a sua<br />

pertinência para abor<strong>da</strong>r <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s experiências psíquicas. Nessa disposição,<br />

começaremos o percurso passando pela trama conceitual <strong>de</strong> Freud <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a hipótese do<br />

inconsciente <strong>no</strong>s primóridos vienenses à primazia do recalque <strong>no</strong> arcabouço <strong>da</strong><br />

psicanálise, culminando na <strong>de</strong>finição forja<strong>da</strong> <strong>no</strong>s seus últimos escritos após os a<strong>no</strong>s 30.<br />

16


I.1. Conflituali<strong>da</strong><strong>de</strong> e recalque<br />

A consagra<strong>da</strong> <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> Freud em “História do movimento psicanalítico”,<br />

não <strong>de</strong>ixa dúvi<strong>da</strong>s em relação ao alcance e prestígio concedido ao recalque<br />

(Verdrängung) na sua obra, em termos precisos, “a teoria <strong>da</strong> repressão é a pedra angular<br />

sobre a qual repousa to<strong>da</strong> a estrutura <strong>da</strong> psicanálise” (1914a/1996, p. 26). Sabemos que<br />

o recalque remonta aos primórdios vienenses, razão pela qual, vamos <strong>no</strong>s aproximar do<br />

conceito refazendo brevemente o percurso dos a<strong>no</strong>s correspon<strong>de</strong>ntes à invenção do<br />

inconsciente freudia<strong>no</strong>. Por essa via, se tornará possível revelar as raízes <strong>da</strong>s primeiras<br />

articulações entre o trauma e as divisões na história do pensamento psicanalítico.<br />

Parece-<strong>no</strong>s importante abrir a <strong>no</strong>ssa investigação, retomando a teoria <strong>de</strong> Pierre<br />

Janet e as contribuições <strong>de</strong> Jean-Martin Charcot, na medi<strong>da</strong> em que as proposições <strong>de</strong><br />

ambos influenciam substancialmente as formulações originais <strong>de</strong> Freud, em princípio,<br />

na companhia <strong>de</strong> Joseph Breuer, a partir <strong>da</strong> qual <strong>no</strong>vos pontos <strong>de</strong> vistas são introduzidos<br />

e encaminhados. Tal retoma<strong>da</strong> <strong>no</strong>s remete ao final do século XIX, momento em que a<br />

hip<strong>no</strong>se adquire um estatuto científico, tornando o estudo <strong>da</strong>s relações entre hip<strong>no</strong>se e<br />

histeria instigante não apenas para os especialistas, mas para o conjunto dos intelectuais<br />

e cientistas <strong>da</strong> época. À frente do Laboratório <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> Experimental <strong>de</strong><br />

Salpetrière, criado por Charcot em Paris, Janet se <strong>de</strong>dica à investigação dos<br />

<strong>de</strong>sdobramentos mentais observados em transes hipnóticos, sonambulismos e<br />

personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s múltiplas.<br />

A tese central <strong>de</strong> Janet (1892/2003) resi<strong>de</strong> na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do eu se<br />

sustenta pela capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> síntese mental. A falha <strong>de</strong>ssa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> impediria um<br />

funcionamento unitário do eu, o que, por sua vez, promove o engendramento dos<br />

fenôme<strong>no</strong>s <strong>da</strong> dissociação psíquica característicos <strong>da</strong> histeria. A dissociação implicaria,<br />

portanto, em um estreitamento do campo <strong>da</strong> consciência, mantendo uma série <strong>de</strong><br />

experiências à parte. De acordo com Janet, a referi<strong>da</strong> falha pressupõe um caráter<br />

<strong>de</strong>generado em alguns sujeitos, na qual os torna predispostos à fragmentação <strong>da</strong>s<br />

experiências. Tal <strong>de</strong>generação fica evi<strong>de</strong>nte diante <strong>da</strong> ação <strong>de</strong> traumas psíquicos. Nesse<br />

sentido, uma <strong>de</strong>ficiência inata situa-se como traço primário <strong>de</strong> alteração mental <strong>no</strong>s<br />

fenôme<strong>no</strong>s histéricos.<br />

17


Pouco a pouco, os famosos experimentos com a hip<strong>no</strong>se se configuram como<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> referência para compreensão <strong>da</strong> dissociação histérica. Efetivamente, Charcot<br />

<strong>de</strong>monstrava com mestria como as paralisias histéricas po<strong>de</strong>riam ser reproduzi<strong>da</strong>s em<br />

pessoas ditas <strong>no</strong>rmais sob o efeito <strong>da</strong> sugestão hipnótica. Dessa forma, a hip<strong>no</strong>se passou<br />

a ser entendi<strong>da</strong> como uma espécie <strong>de</strong> histeria artificial. O que se observava durante os<br />

fenôme<strong>no</strong>s hipnóticos é que uma or<strong>de</strong>m <strong>da</strong><strong>da</strong> por meio do transe era imperiosamente<br />

obe<strong>de</strong>ci<strong>da</strong> após a recuperação do estado. Explicita-se aí, claramente, a cisão e a<br />

articulação entre as partes cindi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> mente. Assim, foi se tornando palatável a<br />

concepção, em princípio obscura, <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>m existir vários agrupamentos psíquicos<br />

em um mesmo indivíduo, sejam eles mais ou me<strong>no</strong>s in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e alternados entre si.<br />

A partir <strong>de</strong>ssa perspectiva, Breuer e Freud conceberam a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a base<br />

fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> histeria residiria na presença <strong>de</strong> estados hipnói<strong>de</strong>s, ou seja, os sintomas<br />

<strong>da</strong> histeria se formariam em condições mentais semelhantes aos estados <strong>da</strong> hip<strong>no</strong>se,<br />

resultando na <strong>de</strong>signação <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> “histeria hipnói<strong>de</strong>”. Acompanhemos a<br />

formulação <strong>de</strong> ambos em “Comunicação preliminar”:<br />

(...) na histeria certos grupos <strong>de</strong> representação que se originam <strong>no</strong>s estados hipnói<strong>de</strong>s estão<br />

presentes e são isolados <strong>da</strong> ligação associativa com as outras representações, mas po<strong>de</strong>m<br />

associar-se entre si, formando assim o rudimento mais ou me<strong>no</strong>s altamente organizado <strong>de</strong> uma<br />

segun<strong>da</strong> consciência, uma condition secon<strong>de</strong>. Se assim for, um sintoma histérico crônico<br />

correspon<strong>de</strong>rá à intrusão <strong>de</strong>sse segundo estado na invervação somática, que, em geral, se acha<br />

sob o controle <strong>da</strong> consciência <strong>no</strong>rmal (BREUER & FREUD, 1893-95/1996, p. 50-51).<br />

Com efeito, os estados hipnói<strong>de</strong>s seriam os equivalentes naturais dos<br />

experimentos induzidos pela hip<strong>no</strong>se. Tais estados se engendram durante a prevalência<br />

<strong>de</strong> experiências sobremaneira intensas ou em situações <strong>de</strong> <strong>de</strong>vaneio próximas ao sonho.<br />

Nesse contexto, as representações que assim insurgem são priva<strong>da</strong>s <strong>da</strong> associação com o<br />

restante do conteúdo representacional <strong>da</strong> consciência, formando um “grupo psíquico<br />

separado”. A esse propósito, em “Estudos sobre a histeria” (BREUER & FREUD, 1893-<br />

95/1996. op. cit.) <strong>no</strong>s <strong>de</strong>paramos com a utilização do termo Spaltung para <strong>de</strong>signar a<br />

dissociação <strong>da</strong> consciência na histeria, a qual precisamente se atribui a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

pela formação dos grupos psíquicos separados. Os fenôme<strong>no</strong>s histéricos justificavam,<br />

então, a suposição <strong>de</strong> uma “segun<strong>da</strong> consciência” em benefício do isolamento <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminados conteúdos representativos <strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais representações conscientes e, logo,<br />

abrigo do conteúdo expulso. É importante assinalar que as representações ocasiona<strong>da</strong>s<br />

18


durante os estados hipnói<strong>de</strong>s associam-se entre si, po<strong>de</strong>ndo atingir um grau avançado <strong>de</strong><br />

organização psíquica. Por esse viés, o estado hipnói<strong>de</strong> reforça a constatação <strong>de</strong> uma<br />

divisão do psiquismo, ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para a diferenciação entre os sistemas<br />

consciente, pré-consciente e inconsciente.<br />

Convencido <strong>da</strong> tendência à dissociação presente na histeria, mas se distanciando<br />

gra<strong>da</strong>tivamente <strong>da</strong>s concepções anteriores, Freud começa a traçar uma abor<strong>da</strong>gem<br />

própria em relação à divisão <strong>da</strong> consciência, <strong>de</strong>slocando o acento posto na<br />

<strong>de</strong>generescência para a intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> na ação <strong>de</strong> corte. Marca-se aí a introdução <strong>da</strong><br />

implicação do sujeito na conformação <strong>da</strong> psique. De fato, Freud não parecia satisfeito<br />

com as explicações sobre a origem <strong>da</strong> dissociação histérica sustenta<strong>da</strong>s na suposição <strong>de</strong><br />

atrofias <strong>de</strong>generativas ou, mesmo, na ocorrência <strong>de</strong> estados hipnói<strong>de</strong>s, cuja natureza dita<br />

a<strong>no</strong>rmal mostrava-se enigmática. Em última instância, ambas negligenciavam o pla<strong>no</strong><br />

psicológico em favor <strong>da</strong> fisiologia. Além disso, Freud tinha um interesse claramente<br />

terapêutico em suas especulações teóricas, buscando um arcabouço que lhe ren<strong>de</strong>sse<br />

uma hipótese <strong>de</strong> trabalho clínico com os pacientes histéricos.<br />

Com base nessas consi<strong>de</strong>rações, Freud se volta para a investigação do fator<br />

psíquico na <strong>de</strong>terminação <strong>da</strong> histeria, estabelecendo a partir <strong>da</strong>í uma conexão causal<br />

entre os sintomas histéricos e os eventos traumáticos enunciados pelo indivíduo. Tratase<br />

<strong>de</strong> outra mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> histeria – secundária e “psiquicamente adquiri<strong>da</strong>” – em<br />

contraposição à emergência primária e disposicional menciona<strong>da</strong> até então, uma<br />

formulação absolutamente i<strong>no</strong>vadora. Nesses casos, portanto, a importância recai na<br />

natureza do trauma consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> conjuntamente com a reação ao mesmo. O momento<br />

traumático aqui residiria na incompatibili<strong>da</strong><strong>de</strong> entre o sujeito e alguma i<strong>de</strong>ia imposta a<br />

ele. Seguindo a sugestão <strong>de</strong> Hanns (1996), vale extrair a co<strong>no</strong>tação visceral conti<strong>da</strong><br />

nessa impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> coexistência <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia com o eu, motivo princeps do ato <strong>de</strong><br />

expulsão. Na linha <strong>de</strong>ssas proposições, a discussão freudiana <strong>no</strong> caso <strong>de</strong> Lucy R. se<br />

mostra bastante esclarecedora:<br />

Quando esse processo ocorre pela primeira vez, passa a existir um núcleo e centro <strong>de</strong><br />

cristalização para a formação <strong>de</strong> um grupo psíquico divorciado do ego – um grupo em tor<strong>no</strong> do<br />

qual tudo o que implicaria uma aceitação <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia incompatível passa então a se reunir. A divisão<br />

<strong>da</strong> consciência nesses casos <strong>de</strong> histeria adquiri<strong>da</strong> é, portanto, <strong>de</strong>libera<strong>da</strong> e intencional. Pelo<br />

me<strong>no</strong>s, é muitas vezes introduzi<strong>da</strong> por um ato <strong>de</strong> volição, pois o resultado real é um pouco<br />

diferente do que o indivíduo pretendia. O que ele <strong>de</strong>sejava era eliminar uma i<strong>de</strong>ia, como se<br />

jamais tivesse surgido, mas tudo o que consegue fazer é isolá-la psiquicamente (BREUR &<br />

FREUD, 1893-95/1996, op. cit. p. 149).<br />

19


Nesses termos, a divisão <strong>da</strong> consciência já po<strong>de</strong> ser encara<strong>da</strong> como o resultado<br />

do conflito entre forças psíquicas contrárias, o que vai ser abor<strong>da</strong>do por Freud através<br />

<strong>da</strong> <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa. Entre os pólos do conflito, se situa o <strong>de</strong>sejo, por um lado, e a<br />

<strong>de</strong>fesa, por outro, o que significa que o prazer almejado pela satisfação entra em choque<br />

com o <strong>de</strong>sprazer gerado pela censura. Tal pivô teórico sustenta as suas bases <strong>no</strong> texto<br />

“As neuropsicoses <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa” (FREUD, 1894/1996), a respeito <strong>da</strong> origem <strong>da</strong><br />

dissociação psíquica e o papel central ocupado pela <strong>de</strong>fesa <strong>no</strong>s processos em questão.<br />

Nessas circunstâncias, Freud sugere a existência <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> histeria encontra<strong>da</strong><br />

em indivíduos mentalmente saudáveis até o momento em que ocorre uma<br />

incompatibili<strong>da</strong><strong>de</strong> em sua i<strong>de</strong>ação, a qual <strong>de</strong>signa propriamente <strong>de</strong> “histeria <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa”,<br />

modus operandi posteriormente absorvido como protótipo <strong>da</strong>s psiconeuroses <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa.<br />

Por essa via <strong>de</strong> entendimento, as forças <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesas seriam motiva<strong>da</strong>s pelo<br />

confronto do sujeito com uma experiência aflitiva, em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ia<br />

incompatível e seu eu, a qual prefere esquecer ou suprimir. A escuta clínica <strong>da</strong><br />

sintomatologia histérica termina por conduzir Freud à constatação <strong>de</strong> que era a vi<strong>da</strong><br />

sexual, sobretudo, que costumava <strong>de</strong>spertar vergonha, auto-censura e mal-estar,<br />

forçando o paciente a manter tal conteúdo fora <strong>da</strong> consciência. Desse modo, as<br />

representações sexuais incompatíveis se tornam responsáveis pela <strong>de</strong>tonação do curso<br />

<strong>de</strong>fensivo, o que quer dizer, que o alvo visado pela <strong>de</strong>fesa se institui como a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

traumática do <strong>de</strong>sejo. Nessa direção, o conflito psíquico passa a se inscrever<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente <strong>no</strong> registro sexual.<br />

Evocando o postulado freudia<strong>no</strong>, segundo o qual to<strong>da</strong> representação está<br />

associa<strong>da</strong> a um quantum <strong>de</strong> afeto, po<strong>de</strong>mos facilmente <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r que as representações<br />

sexuais engendram um acúmulo <strong>de</strong> carga afetiva. Sob o rigor <strong>da</strong> censura, configura-se o<br />

conflito entre o ‘eu <strong>de</strong>sejo’ e o ‘eu <strong>de</strong>vo’, <strong>de</strong> forma que a tensão sexual não po<strong>de</strong> ser<br />

direciona<strong>da</strong> livremente para a <strong>de</strong>scarga. Levando-se em conta o regulador fun<strong>da</strong>mental<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica pauta<strong>da</strong> pelo princípio <strong>de</strong> prazer (FREUD, 1900/1996), cuja<br />

visa<strong>da</strong> evitar o <strong>de</strong>sprazer e proporcionar o prazer, torna-se indispensável reduzir a<br />

tensão <strong>de</strong>sagradável. Isso implica, certamente, em encontrar uma resposta mais<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> em termos <strong>de</strong> balanço quantitativo entre os impulsos eróticos e as exigências<br />

morais.<br />

20


Precisamente, respon<strong>de</strong>-se a isso por intermédio do recalque. A solução<br />

encontra<strong>da</strong> para o conflito, portanto, resi<strong>de</strong> na <strong>de</strong>composição <strong>da</strong> representação através<br />

<strong>da</strong> retira<strong>da</strong> do afeto que lhe é correspon<strong>de</strong>nte, operação recalcante por excelência. É<br />

importante observar que o propósito do processo <strong>de</strong> recalcamento na<strong>da</strong> mais é do que a<br />

fuga do <strong>de</strong>sprazer (FREUD, 1915a/1996). Para tanto, a associação entre a quota <strong>de</strong> afeto<br />

e a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>sfeita, enfraquecendo o conteúdo representacional, <strong>de</strong> tal modo que<br />

a mesma representação per<strong>de</strong> acesso à consciência se tornando efetivamente<br />

inconsciente. O afeto então <strong>de</strong>salojado precisa ser empregado <strong>de</strong> outras maneiras, sendo<br />

o caminho tomado por ele justamente o que vai caracterizar a sintomatologia neurótica.<br />

Nesse contexto, o afeto po<strong>de</strong> se converter para o soma como comprovam os sintomas<br />

histéricos, ou ain<strong>da</strong>, se <strong>de</strong>slocar para representações inócuas em si mesmas, tal como<br />

ocorre na neurose obsessiva 2 . Desse modo, constata Freud “o conflito é solucionado<br />

pela formação dos sintomas e seguido pelo <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>da</strong> doença manifesta”<br />

(1912/1996, p. 250).<br />

Nessas condições, o que acontece é um acordo <strong>de</strong> conciliação, em termos<br />

freudia<strong>no</strong>s, uma “formação <strong>de</strong> compromisso” (FREUD, 1896b/1996). Os pólos opostos<br />

do conflito – <strong>de</strong>sejo e <strong>de</strong>fesa – conformam-se sem que, <strong>de</strong> fato, um cancele o outro,<br />

encontrando, <strong>de</strong>sse modo, uma saí<strong>da</strong> intermediária. Por conseguinte, surgem os<br />

sintomas e as mais varia<strong>da</strong>s formações do inconsciente, entre sonhos, atos falhos e<br />

chistes. Tais produções comportam <strong>de</strong> forma distorci<strong>da</strong> as exigências contrárias,<br />

possibilitando a obtenção <strong>de</strong> algum prazer ou a realização parcial <strong>de</strong> ambos. Trata-se,<br />

portanto, <strong>de</strong> uma satisfação alucinatória dos <strong>de</strong>sejos outrora recalcados, o que fica<br />

evi<strong>de</strong>nte com as elaborações freudianas a propósito dos sonhos como tentativa <strong>de</strong><br />

realização dos <strong>de</strong>sejos (FREUD, 1900/1996, op. cit.). Preten<strong>de</strong>mos com isso realçar a<br />

perspectiva do sofrimento como fruto do conflito psíquico e do recalcamento como o<br />

processo responsável pela divisão do psiquismo em instâncias, a qual encerra o clássico<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> neurose.<br />

Com efeito, o recalque cin<strong>de</strong> o psiquismo. Afirmar isso aqui significa colocar o<br />

recalcamento como operador <strong>da</strong> linha divisória entre os sistemas – inconsciente, préconsciente<br />

e consciente – ensejando a primeira tópica freudiana, como Freud <strong>no</strong>s<br />

2 Para um estudo <strong>de</strong>talhado <strong>de</strong>sta temática, ver “As neuropsicoses <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa” (FREUD, 1894/1996. op.<br />

cit.).<br />

21


apresenta <strong>no</strong> capítulo VII <strong>de</strong> “A interpretação dos sonhos” (Ibid.). Valendo-se dos seus<br />

conhecimentos sobre as psiconeuroses, Freud concebe a estrutura do aparelho psíquico e<br />

as relações estabeleci<strong>da</strong>s entre as partes constituintes. Trata-se <strong>da</strong> diferenciação entre<br />

lugares e sistemas psíquicos, aos quais correspon<strong>de</strong>m princípios <strong>de</strong> funcionamento dos<br />

processos mentais. Sob essa perspectiva tópica, o que caracteriza o inconsciente, em<br />

última instância, são as representações <strong>de</strong> natureza sexual, impedi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> acesso à<br />

consciência pela censura.<br />

Para o encaminhamento <strong>da</strong> <strong>no</strong>ssa problemática, interessa-<strong>no</strong>s <strong>de</strong>stacar a divisão<br />

primeira do aparato psíquico entre uma instância crítica e uma instância critica<strong>da</strong>, <strong>de</strong><br />

modo que a função <strong>da</strong> instância crítica compreen<strong>de</strong> justamente o atravancamento <strong>da</strong><br />

expressão consciente <strong>da</strong>s representações critica<strong>da</strong>s. Tal <strong>de</strong>staque <strong>no</strong>s parece importante<br />

para enfatizar a forte correlação existente entre os processos <strong>de</strong> recalcamento e o campo<br />

conflitivo, ancora<strong>da</strong> <strong>no</strong> universo representacional e submeti<strong>da</strong> ao princípio <strong>de</strong> prazer.<br />

Nesse contexto, o sofrimento psíquico institui-se por meio <strong>da</strong> irrupção <strong>da</strong>s<br />

representações reminiscentes do conflito ou, em termos precisamente freudia<strong>no</strong>s, em<br />

função <strong>da</strong> ameaça <strong>de</strong> retor<strong>no</strong> do recalcado. Por esse motivo, mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

compromisso, conforme vimos, entram em linha <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração, caracterizando a<br />

sintomatologia neurótica, engendrando <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> via subjetivação. Em linhas gerais,<br />

cabe acrescentar que o tratamento analítico aqui é pensado <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> “tornar<br />

consciente o que é inconsciente” (FREUD, 1917[1916-17]/1996), p. 437), o que se<br />

efetua através <strong>da</strong> superação <strong>da</strong>s resistências psíquicas do paciente em trazer à tona a<br />

experiência esqueci<strong>da</strong><br />

Configura-se, assim, o mo<strong>de</strong>lo dialético recalque versus retor<strong>no</strong> do recalcado <strong>da</strong><br />

primeira metapsicologia freudiana, elaborado para <strong>da</strong>r conta do espectro <strong>da</strong> neurose:<br />

histerias, neuroses obsessivas e fobias. Tal dialética, apesar <strong>de</strong> estar absolutamente<br />

atrela<strong>da</strong> à divisão psíquica, certamente, diferencia-se <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem a qual preten<strong>de</strong>mos<br />

valorizar <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong> vira<strong>da</strong> dos a<strong>no</strong>s 20. Porém, o retor<strong>no</strong> às origens parece-<strong>no</strong>s<br />

importante para a edificação do contraponto necessário na eluci<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> problemática<br />

<strong>da</strong> clivagem. Feito isso, a<strong>de</strong>ntraremos o território <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metapsiologia freudiana,<br />

campo fértil capaz <strong>de</strong> açambarcar o sofrimento psíquico situado para além <strong>da</strong><br />

representação.<br />

22


I.2. Da impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> representação à repetição compulsória<br />

Com a vira<strong>da</strong> dos a<strong>no</strong>s 20, marca<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentalmente por “Além do princípio<br />

do prazer” (FREUD, 1920/1996, op. cit.) e “O ego e o id (FREUD, 1923/1996, op. cit),<br />

começa a ser possível consi<strong>de</strong>rar algo fora do registro <strong>da</strong>s representações e do princípio<br />

<strong>de</strong> prazer. O conceito <strong>de</strong> pulsão passa a ser relativizado para além <strong>de</strong> uma referência<br />

exclusivamente sexual e a auto<strong>no</strong>mia do campo quantitativo <strong>da</strong> pulsão, indica<strong>da</strong> por<br />

Freud (1915b/1996) em “Pulsões e suas vicissitu<strong>de</strong>s”, assume aqui a sua radicali<strong>da</strong><strong>de</strong>. É<br />

importante frisar que até então prepon<strong>de</strong>rava a certeza <strong>da</strong> ligação originária entre a força<br />

pulsional e seus representantes, <strong>de</strong> forma que a pulsão era necessariamente inscrita <strong>no</strong><br />

registro <strong>da</strong> representação como pulsão sexual 3 . Com efeito, o primeiro mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong><br />

psicanálise foi constituído centrado nas representações em suas diferentes formas <strong>de</strong><br />

localização e funcionamento psíquicos, como vimos, consciente, pré-consciente e<br />

inconsciente, via pela qual, o psiquismo estava sob o égi<strong>de</strong> do princípio do prazer.<br />

Nessa mesma direção, acompanhemos o enunciado <strong>de</strong> Birman:<br />

Se, <strong>no</strong> mo<strong>de</strong>lo inicial, a força <strong>da</strong> pulsão aparecia completamente absorvi<strong>da</strong> pela<br />

representação e pelo objeto, o ensaio <strong>de</strong> 1915 e os escritos seguintes, tratando <strong>da</strong> pulsão<br />

<strong>de</strong> morte, mostram que Freud se chocou precisamente com a questão <strong>da</strong> força pulsional<br />

com os objetos e os representantes. E é este tipo <strong>de</strong> ligação que colocará todos os <strong>no</strong>vos<br />

problemas com os quais se <strong>de</strong>frontarão a teoria e a experiência psicanalíticas (1996, p.<br />

39).<br />

Na esteira dos enunciados <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metapsicologia, Freud vai então<br />

reconsi<strong>de</strong>rar a primazia atribuí<strong>da</strong> à representação, caminhando para a suposição <strong>de</strong> algo<br />

além do princípio <strong>de</strong> prazer. O divórcio entre a dimensão intensiva <strong>da</strong> pulsão e seus<br />

possíveis representantes, logo, converge para a temática do excesso, exigindo a<br />

construção <strong>de</strong> um <strong>no</strong>vo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> aparelho psíquico. Enquanto na tópica do<br />

inconsciente <strong>no</strong>s <strong>de</strong>paramos com um conjunto <strong>de</strong> experiências trata<strong>da</strong>s pela<br />

representação, agora estamos diante <strong>de</strong> fenôme<strong>no</strong>s psíquicos que escapam disso. A<br />

pulsão como força, <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> como o limite entre o somático e o psíquico (FREUD,<br />

1915b/1996, op. cit.), situa-se além <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> representação. Para tanto, o<br />

traumático precisa ser redimensionado, a fim <strong>de</strong> comportar não apenas o campo <strong>da</strong><br />

3 Para um estudo mais aprofun<strong>da</strong>do sobre as bases do postulado freudia<strong>no</strong> acerca <strong>da</strong> ligação originária <strong>da</strong><br />

pulsão com o representante, ver: Freud (1905/1996), (1915b/1996, op. cit) e Birman (1996, op. cit.).<br />

23


conflituali<strong>da</strong><strong>de</strong> entre conteúdos contrários, como também, a temática do<br />

transbor<strong>da</strong>mento. Convém precisar aqui que a ampliação <strong>da</strong> geografia psíquica com<br />

base na divisão inconsciente/pré-consciente/consciente para incluir a divisão<br />

id/ego/superego respon<strong>de</strong> justamente ao esforço <strong>de</strong> Freud para justificar a existência<br />

<strong>de</strong>sse além. Por essa via <strong>de</strong> abertura, a ênfase conceitual <strong>da</strong> trama freudiana se <strong>de</strong>sloca<br />

<strong>da</strong>s formações do inconsciente para o encaminhamento <strong>da</strong> pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Com isso, o<br />

impessoal, in<strong>de</strong>finível e in<strong>de</strong>terminado do pólo pulsional ganha <strong>de</strong>staque <strong>no</strong> pensamento<br />

psicanalítico (FREUD, 1923/1996. op. cit.).<br />

O referido <strong>de</strong>slocamento <strong>da</strong>s tange as bases do saber psicanalítico vai ser<br />

<strong>de</strong>lineado a partir do reconhecimento <strong>da</strong> extensão dos fenôme<strong>no</strong>s repetitivos não<br />

reduzíveis à realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e obtenção <strong>de</strong> satisfação. Nesses casos, se trataria <strong>da</strong><br />

repetição <strong>de</strong> situações que engendram sofrimento psíquico, ou seja, acontecimentos que<br />

ultrapassam o princípio <strong>de</strong> funcionamento mental pautado exclusivamente pela busca <strong>de</strong><br />

prazer e evitamento do <strong>de</strong>sprazer 4 . Nessa linha <strong>de</strong> reflexão, se institui a emblemática<br />

“compulsão à repetição”, mediante a qual o paciente é “obrigado a repetir o material<br />

reprimido como se fosse uma experiência contemporânea” (FREUD, 1920/1996, op.<br />

cit., p. 29. Grifos do autor). Desse modo, repete-se incansavelmente experiências<br />

pe<strong>no</strong>sas que não trouxeram satisfação <strong>no</strong> passado em nenhuma instância e, tampouco,<br />

geradoras <strong>de</strong> bem-estar <strong>no</strong> presente. São, portanto, situações pe<strong>no</strong>sas que não se curvam<br />

ao princípio <strong>de</strong> prazer, tais como os sonhos traumáticos, as brinca<strong>de</strong>iras infantis que<br />

reproduzem a ausência dos objetos primordiais, caso do ilustre jogo fort-<strong>da</strong>, bem como,<br />

as próprias revivescências dolorosas na relação transferencial.<br />

Sob essa perspectiva, a interrogação sobre a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> repetição se constiui<br />

como fun<strong>da</strong>mental para o <strong>no</strong>sso direcionamento. Dito <strong>de</strong> outro modo, como justificar a<br />

prisão <strong>de</strong> alguns sujeitos em <strong>de</strong>terminados acontecimentos <strong>de</strong>sfavoráveis do passado?<br />

Ou ain<strong>da</strong>, como pensar a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> renúncia do objeto perdido e a fixação na<br />

dor <strong>da</strong> sua ausência? Ora, até então estávamos acostumados com a repetição mais<br />

próxima possível <strong>da</strong> satisfação anterior, como bem ilustram os contadores <strong>de</strong> histórias<br />

4 Mesmo o princípio <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que, inicialmente, apresentava-se como um empecilho ao prazer, revela,<br />

mais tar<strong>de</strong>, contudo, um mero <strong>de</strong>svio, isto é, uma concessão ao mundo exter<strong>no</strong> em benefício <strong>de</strong> um prazer<br />

mais seguro. Para uma investigação aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>, ver Freud (1911/1996).<br />

24


infantis, cujo enredo precisa ser insistentemente narrado com as mesmas palavras,<br />

mesmo tom, gestual e voz, pois, caso contrário, não agra<strong>da</strong>ria as crianças. E, mesmo<br />

acompanhando a gra<strong>da</strong>tiva integração do princípio <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>no</strong> princípio <strong>de</strong> prazer,<br />

não caberia pensar em uma visa<strong>da</strong> <strong>de</strong>scontente, <strong>no</strong> máximo em uma repetição<br />

negocia<strong>da</strong>, levemente diferente.<br />

Com base nesses pressupostos, vamos <strong>no</strong>s servir <strong>da</strong> investigação dos processos<br />

psíquicos em voga <strong>no</strong>s sonhos traumáticos, tal como <strong>no</strong>s orienta Freud (1920/1996, op.<br />

cit.), visto que eles abalam a função, até então inquestionável, do sonho como tentativa<br />

<strong>de</strong> realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo. Sabemos que o sonho se tor<strong>no</strong>u o mo<strong>de</strong>lo por excelência <strong>da</strong><br />

primeira metapsicologia freudiana e do tratamento psíquico em prol <strong>da</strong> conscientização<br />

do inconsciente (FREUD, 1900/1996, op. cit.). Nesse contexto, a elaboração onírica dos<br />

traumas psíquicos apresenta-se na contramão do postulado <strong>de</strong> que os sonhos se<br />

configuram como realização do <strong>de</strong>sejo recalcado à serviço do princípio <strong>de</strong> prazer. Por<br />

esse ângulo, acompanhemos o pensamento freudia<strong>no</strong>:<br />

Po<strong>de</strong>mos supor que aqui os sonhos estão aju<strong>da</strong>ndo a executar outra tarefa, a qual <strong>de</strong>ve<br />

ser realiza<strong>da</strong> antes que a dominância do princípio do prazer possa mesmo começar.<br />

Esses sonhos esforçam-se por dominar retrospecitvamente o estímulo, <strong>de</strong>senvolvendo a<br />

ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> cuja omissão constituiu a causa <strong>da</strong> neurose traumática (FREUD, 1920/1996,<br />

op. cit.p. 42).<br />

É importante salientar que a concepção <strong>de</strong> trauma aqui implica na irrupção <strong>de</strong><br />

uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> excitação incontrolável <strong>no</strong> psiquismo, <strong>de</strong> modo que a repetição se<br />

move propriamente pela pressão do excesso não ligado. Sendo assim, o fator traumático<br />

se caracteriza pelas quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s afluentes <strong>de</strong> estímulo <strong>no</strong> aparelho psíquico, sem<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ligação e/ou <strong>de</strong>scarga, o que torna imperioso dominar o afluxo e<br />

vincular as impressões traumáticas, a fim <strong>de</strong> se <strong>de</strong>svencilhar <strong>de</strong>las. Por essa via <strong>de</strong><br />

reflexão, anuncia-se que o princípio <strong>de</strong> prazer não é mais dominante a priori, sendo<br />

necessárias condições para a sua vigência, a saber, a contenção do volume <strong>de</strong> excitação<br />

<strong>no</strong> psiquismo. É indispensável, portanto, um trabalho psíquico para efetuar a ligação <strong>da</strong><br />

força pulsional <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> representacional. A distinção paradigmática entre o sonho<br />

como tentativa <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e o sonho como tentativa <strong>de</strong> ligação do pólo<br />

intensivo coloca em perspectiva a repetição do <strong>de</strong>sejo versus a repetição do terror. Com<br />

isso, o potencial traumático <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificado exclusivamente com a ameaça <strong>de</strong><br />

25


etor<strong>no</strong> <strong>da</strong>s representações recalca<strong>da</strong>s para se afirmar como ruptura do escudo páraexcitatório.<br />

Em “A psicanálise e as neuroses <strong>de</strong> guerra”, Freud (1919/1996) vai reconhecer a<br />

existência <strong>de</strong> uma neurose traumática, distante <strong>da</strong> neurose comum até então encontra<strong>da</strong><br />

em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> um conflito psíquico. Nesses casos, “o conflito é entre o velho ego<br />

pacífico do sol<strong>da</strong>do e o seu <strong>no</strong>vo ego bélico” (Id., ibid., p. 224), isto é, entre o eu que<br />

busca pacificar as pulsões e o <strong>no</strong>vo eu que precisa se proteger frente ao risco <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Nas neuroses traumáticas, portanto, o sujeito <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se <strong>de</strong> um perigo exter<strong>no</strong> ou<br />

inter<strong>no</strong>, cuja exigência lhe parece ameaçadora para a sua integri<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica. Por<br />

analogia, isso <strong>no</strong>s leva à <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> que o acontecimento se constitui como<br />

traumático a partir <strong>da</strong> relação <strong>de</strong> forças que se estabelece entre as excitações que<br />

inva<strong>de</strong>m o psiquismo e a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> energia em reserva para dominá-las. Em outras<br />

palavras, os efeitos disruptivos do trauma <strong>de</strong>rivam <strong>da</strong> tensão entre o afluxo <strong>de</strong> excitação<br />

e a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> processamento <strong>da</strong> mesma, tensão que, <strong>no</strong> limite, aponta para o<br />

colapso do eu. Logo, é conveniente consi<strong>de</strong>rar tanto a magnitu<strong>de</strong> pulsional quanto os<br />

recursos psíquicos à disposição.<br />

Retomemos aqui a metáfora <strong>da</strong> substância viva utiliza<strong>da</strong> por Freud (1920/1996,<br />

op. cit.), em “Além do princípio <strong>de</strong> prazer”, a fim <strong>de</strong> explicitar a dinâmica traumática<br />

em jogo. A partir <strong>da</strong> diferenciação que ocorre na substância para a formação <strong>de</strong> um<br />

escudo protetor, acompanhamos como o aparato psíquico <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se diante do<br />

transbor<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> excitações. Sabemos que a tarefa <strong>de</strong> proteção é uma <strong>da</strong>s mais<br />

importantes para o organismo vivo, por essa razão, a substância dispõe <strong>da</strong> sua superfície<br />

transformando-a em um envoltório resistente e i<strong>no</strong>rgânico. Cria-se, assim, uma crosta<br />

mortifica<strong>da</strong> para li<strong>da</strong>r com a incidência <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosas forças externas. Seguindo o<br />

enunciado freudia<strong>no</strong>, subenten<strong>de</strong>-se que “através <strong>de</strong> sua morte a cama<strong>da</strong> exterior salvou<br />

to<strong>da</strong>s as cama<strong>da</strong>s mais profun<strong>da</strong>s <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> semelhante, a me<strong>no</strong>s que os estímulos<br />

que atinjam sejam tão fortes que atravessem o escudo protetor” (Id., ibid., p.38). A fim<br />

<strong>de</strong> evitar as rupturas <strong>da</strong> crosta, as reservas <strong>de</strong> energia quiescente <strong>de</strong>vem se manter <strong>no</strong><br />

interior <strong>da</strong> vesícula, pois é precisamente isso que vai ser mobilizado em socorro, caso o<br />

escudo protetor seja muito pressionado. Nessas condições, com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> impedir<br />

a livre circulação <strong>da</strong> energia incontrola<strong>da</strong>, tratar-se-ia <strong>de</strong> promover a <strong>de</strong>scarga ou<br />

ligação do afluxo <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

26


Nessa mesma direção, na conferência XXXII, intitula<strong>da</strong> “Ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> e vi<strong>da</strong><br />

instintual”, Freud (1933a[1932]/1996) vai investigar a angústia e a sua relação com a<br />

situação <strong>de</strong> perigo, in<strong>da</strong>gando acerca do que seria realmente temido pelo sujeito nessas<br />

ocasiões. Seguindo o pensamento freudia<strong>no</strong>, i<strong>de</strong>ntificamos que “é apenas a magnitu<strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> soma <strong>de</strong> excitação que transforma uma impressão em momento traumático, paralisa a<br />

função do princípio <strong>de</strong> prazer e confere à situação <strong>de</strong> perigo a sua importância” (Id.,<br />

ibid., p. 97). Evi<strong>de</strong>ncia-se aí uma dupla origem <strong>da</strong> angústia, tal como apreciamos em<br />

“Inibições, sintomas e ansie<strong>da</strong><strong>de</strong>” (FREUD, 1926/1996), a partir do <strong>de</strong>sdobramento<br />

traumático<strong>no</strong>s termos <strong>de</strong> uma angústia sinal e uma angústia automática. Sob esse<br />

ângulo, po<strong>de</strong>mos aproximar a angústia sinal do princípio <strong>de</strong> prazer e a angústia<br />

automática do além do princípio <strong>de</strong> prazer.<br />

Isso <strong>no</strong>s leva em direção aos enunciados do pólo pulsional como fonte<br />

privilegia<strong>da</strong> <strong>de</strong> excitação, <strong>no</strong> qual se inscreve propriamente o registro do id 5 . Vale<br />

observar que o inconsciente <strong>de</strong>ixa aqui <strong>de</strong> coincidir com as resultantes do recalque,<br />

passando a incluir a expressão psíquica <strong>da</strong>s pulsões, ou seja, as forças incontroláveis<br />

(FREUD, 1923/1996, op. cit.). Contudo, <strong>no</strong>s parece importante consi<strong>de</strong>rar, como mostra<br />

Eliana Reis, que “essas gran<strong>de</strong>s quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> excitação se originam <strong>de</strong> percepções do<br />

mundo exter<strong>no</strong>, e <strong>de</strong> percepões internas, fazendo uma exigência <strong>de</strong> trabalho ao<br />

psiquismo” (2004, p. 47). Dito isso, preten<strong>de</strong>mos indicar que ambas excitações –<br />

internas e externas – são açambarca<strong>da</strong>s pelo aparelho psíquico, imbricando o que vem<br />

<strong>de</strong> fora com o que vem <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro. Contudo, cabe ain<strong>da</strong> reforçar que a excitação<br />

provin<strong>da</strong> do interior é constante.<br />

Dando prosseguimento ao <strong>no</strong>sso encaminhamento, interessa-<strong>no</strong>s salientar que o<br />

embate do psiquismo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se efetivar apenas entre consciente e inconsciente,<br />

englobando também o conflito entre Eros e Tânatos, o qual dá ensejo ao esforço <strong>de</strong><br />

ligação <strong>da</strong> pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

5 Para um estudo <strong>de</strong>talhado sobre a diferenciação entre as instâncias <strong>de</strong> acordo com a segun<strong>da</strong> concepção<br />

do aparelho psíquico, ver Freud (1923/1996, op. cit.).<br />

27


I. 3. Algumas <strong>no</strong>tas sobre o conceito <strong>de</strong> ligação<br />

Lendo o “Dicionário comentado do alemão <strong>de</strong> Freud” (HANNS, 1996. op. cit.),<br />

apreciamos o emprego do termo “ligação” (Bindung) para <strong>de</strong>signar o “ligar/atar” <strong>da</strong>s<br />

pulsões a <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s representações e <strong>da</strong>s pulsões entre si. Segundo o autor, o termo<br />

evoca a imagem <strong>de</strong> “fixação”, “aprisionamento”, “imobilização”, referindo-se, portanto,<br />

à amarração <strong>no</strong>s processos <strong>de</strong> circulação nas diversas dimensões psíquicas. Interessa<strong>no</strong>s<br />

<strong>de</strong>stacar ain<strong>da</strong> a acepção <strong>de</strong> “correlação”, “conexão lógica” e “interligação física ou<br />

funcional”, também associa<strong>da</strong>s ao termo. Vale acrescentar que, “apesar <strong>de</strong> a palavra<br />

‘ligação’ também evocar em português algo que ‘une’ e ‘fixa’ um elemento ao outro, há<br />

um sentido <strong>de</strong> ‘estabelecer uma ponte’, que permite transitar entre dois elos” (Id., ibid,<br />

p. 295).<br />

Ao retornar às formulações do Projeto <strong>de</strong> 1895 (Freud, 1950[1895]/1996),<br />

constatamos que a Bindung encerra precisamente a passagem <strong>da</strong> energia do estado livre<br />

ao estado ligado, em contraposição ao estatuto <strong>da</strong> Entbindung compreendi<strong>da</strong> como<br />

<strong>de</strong>sligamento ou liberação brusca <strong>de</strong> energia. Em termos econômicos, trata-se,<br />

efetivamente, <strong>da</strong> transformação psíquica <strong>de</strong> uma magnitu<strong>de</strong> intensiva em equivalentes<br />

simbólicos. Levando isso em consi<strong>de</strong>ração, vale evocar o conceito <strong>de</strong> pulsão enquanto<br />

limite entre o somático e o psíquico, ou ain<strong>da</strong>, como exigência <strong>de</strong> trabalho feita ao<br />

psiquismo pelo somático (FREUD, 1915b/1996, op. cit.), <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> realçar o<br />

processo <strong>de</strong> ligação envolvido <strong>no</strong> trajeto que vai do impacto <strong>da</strong> força pulsional ao pla<strong>no</strong><br />

representacional. Com esse respeito, <strong>no</strong>s parece importante frisar que “na ligação que a<br />

pulsão efetua nem o corpo é pura extensão ou biológico, nem o psiquismo comporta a<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> puro pensamento” (HERZOG, 2003, p. 40), <strong>de</strong>scartando, assim, o equívoco <strong>de</strong><br />

uma polarização.<br />

Dito <strong>de</strong> outro modo, referimo-<strong>no</strong>s aqui ao funcionamento do processo psíquico<br />

primário, cujo <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> energia se faz livremente, e ao processo psíquico<br />

secundário, o qual respon<strong>de</strong> pela vinculação do afluxo <strong>de</strong> energia (FREUD, 1900/1996,<br />

op. cit.). Nessa linha <strong>de</strong> entendimento, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> circulação energética refere-se à<br />

passagem <strong>de</strong>senfrea<strong>da</strong> <strong>da</strong> energia <strong>de</strong> uma representação para outra. Tal agitação<br />

associativa obe<strong>de</strong>ce apenas aos mecanismos por meio dos quais se <strong>de</strong>sdobram os<br />

processos inconscientes, tais como o <strong>de</strong>slocamento e a con<strong>de</strong>nsação. Depreen<strong>de</strong>-se <strong>da</strong>í<br />

28


que ambos modos <strong>de</strong> funcionamento operam <strong>no</strong> espaço representativo, logo,<br />

estreitamente vinculados às pulsões sexuais, alvo privilegiado do recalque. Entretanto,<br />

como examinamos anteriormente, a ausência <strong>de</strong> ligação originária entre a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

pulsional e os representantes <strong>da</strong> pulsão, <strong>no</strong>s faz pressupor a existência <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong><br />

ligação e <strong>de</strong>sligamento prévios à captura representacional. Dito isso, <strong>no</strong>s importa indicar<br />

aqui a existência <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> ligação primária, compreendido como condição sine<br />

qua <strong>no</strong>n para a assunção vigorosa do princípio <strong>de</strong> prazer, posto à <strong>de</strong>riva <strong>no</strong> âmbito<br />

clivado. Seja como for, a circulação livre <strong>da</strong> energia <strong>no</strong> aparato psíquico, por si só, não<br />

produz na<strong>da</strong>, convergindo para a pura <strong>de</strong>scarga.<br />

Nesse sentido, apoiando-<strong>no</strong>s <strong>no</strong> pensamento <strong>de</strong> Monique David-Ménard (2000),<br />

consi<strong>de</strong>ramos o processo <strong>de</strong> ligação com base em dois registros exce<strong>de</strong>ntes, isto é, “um<br />

excesso inter<strong>no</strong> ao prazer” e “um excesso que está para além do princípio <strong>de</strong> prazer”<br />

(Id., ibid., p. 49), a <strong>no</strong>sso ver, respectivamente equivalentes à repetição traumática do<br />

<strong>de</strong>sejo e à repetição disruptiva. Aqui cabe ain<strong>da</strong> mencionar a conceituação <strong>de</strong> André<br />

Green (1979/1990), a propósito <strong>da</strong> “lógica <strong>da</strong> esperança” vigente na circulação pulsional<br />

media<strong>da</strong> pelo princípio <strong>de</strong> prazer, em oposição à “lógica do <strong>de</strong>sespero” caracteriza<strong>da</strong><br />

pela compulsão à repetição. Na primeira lógica, o <strong>de</strong>sejo triunfa em meio às interdições,<br />

enquanto na segun<strong>da</strong>, vigora a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> encontro com objetos aptos ao<br />

agenciamento <strong>da</strong>s ligações.<br />

Prete<strong>de</strong>mos com isso circunscrever a clivagem como <strong>de</strong>fesa privilegia<strong>da</strong> diante<br />

do excesso pulsional carente <strong>de</strong> ligação com os representantes <strong>da</strong> pulsão. Ou seja, a<br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> representação <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s experiências psíquicas inviabilizam a<br />

mediação pelo recalque e a vigência do princípio <strong>de</strong> prazer, resultando em uma divisão<br />

psíquica em partes representa<strong>da</strong>s e não representa<strong>da</strong>s. Isso emperra a integração<br />

psíquica e a atribuição <strong>de</strong> um sentido coerente ao vivido subjetivo. Em termos <strong>de</strong><br />

experiências cliva<strong>da</strong>s <strong>no</strong>s reportamos às situações arcaicas e limites, justo nas quais o<br />

<strong>de</strong>sempenho simbólico vacila, colocando em risco a integri<strong>da</strong><strong>de</strong> narcísica e a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um outro. Como <strong>de</strong>corrência, o psiquismo passa a funcionar<br />

proeminentemente sob a compulsão à repetição submetido à lógica do <strong>de</strong>sepero. Nesse<br />

contexto, o sofrimento psíquico se caracteriza pela dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> em encontrar saí<strong>da</strong>s<br />

representacionais, ensejando o transbor<strong>da</strong>mento intensivo. Marcar-se aí a entra<strong>da</strong> do<br />

objeto como elemento fun<strong>da</strong>mental para a instauração <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> ligação, o que<br />

quer dizer que, “a Bindung só tem lugar a partir <strong>da</strong> relação com o outro”, <strong>de</strong><strong>no</strong>tando<br />

29


propriamente um “corpo marcado pela presença/ausência do outro como condição <strong>de</strong><br />

subjetivação” (HERZOG, 2003, op. cit., p. 48). Na esteira <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias, encaramos os<br />

processos <strong>de</strong> simbolização como tentativas <strong>de</strong> apropriação subjetiva <strong>da</strong>quilo que exce<strong>de</strong>,<br />

não raro, <strong>no</strong> psiquismo.<br />

30


II. Clivagem e processos <strong>de</strong> simbolização<br />

As reminiscências são metáforas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

As metáforas são reminiscências <strong>da</strong> arte.<br />

Claudio Ulpia<strong>no</strong><br />

Trago <strong>de</strong>ntro do meu coração,<br />

Como num cofre que se não po<strong>de</strong> fechar <strong>de</strong> cheio,<br />

Todos os lugares on<strong>de</strong> estive,<br />

Todos os portos a que cheguei,<br />

To<strong>da</strong>s as paisagens que vi através <strong>de</strong> janelas ou vigias,<br />

Ou <strong>de</strong> tombadilhos, sonhando,<br />

E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.<br />

Fernando Pessoa<br />

Em “Moisés e o mo<strong>no</strong>teísmo: três ensaios”, Freud (1939[1934-38]) distingue<br />

dois tipos <strong>de</strong> efeitos traumáticos: positivos e negativos. Os primeiros seriam tentativas<br />

<strong>de</strong> recor<strong>da</strong>r a experiência esqueci<strong>da</strong>, isto é, formas <strong>de</strong> introduzir o trauma <strong>no</strong>vamente a<br />

partir <strong>de</strong> uma revivescência. Nessas condições, se institui a repetição <strong>de</strong> caráter<br />

sintomático. Freud menciona como exemplo um homem que passou a infância em uma<br />

interação excessiva com a mãe, interação posteriormente esqueci<strong>da</strong>. Dessa perspectiva,<br />

o referido homem vai procurar na sua vi<strong>da</strong> adulta uma mulher para ser nutrido e apoiado<br />

como a experiência originária. Encontra-se, ain<strong>da</strong>, ilustração <strong>de</strong> uma menina que por ter<br />

sido objeto <strong>de</strong> uma sedução sexual termina por provocar ataques semelhantes.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, trata-se aqui do terre<strong>no</strong> <strong>da</strong> fantasia neurótica. No rumo inverso, os<br />

efeitos negativos se configuram pelas reações <strong>de</strong>fensivas, convergindo para as<br />

evitações, inibições e fobias. Ambos – positivos e negativos – são fun<strong>da</strong>mentalmente<br />

fixações <strong>no</strong> trauma e apresentam uma quali<strong>da</strong><strong>de</strong> compulsiva, embora os primeiros sejam<br />

reconhecíveis pelos sintomas neuróticos e a negativi<strong>da</strong><strong>de</strong> imponha uma restrição ao eu.<br />

Com base nessas consi<strong>de</strong>rações, vamos aproximar as ressonâncias <strong>da</strong> clivagem<br />

aos referidos efeitos negativos. Enten<strong>de</strong>mos tais efeitos a partir <strong>da</strong> segregação <strong>da</strong>s<br />

experiências impactantes, cujo excesso <strong>de</strong> excitação não encontra representação<br />

31


psíquica. Nesse sentido, o não representado se afirmaria pelo prisma <strong>da</strong> negativi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

proposição particularmente afina<strong>da</strong> com o vivido na prática clínica, contempla<strong>da</strong>,<br />

sobretudo, pela sensação radical <strong>de</strong> vazio, estranheza e incoerência. É importante<br />

precisar, então, que clivar uma experiência traumática implica na incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

integrá-la. Convém observar que, apesar <strong>de</strong> apartado e sem <strong>no</strong>meação, o trauma não<br />

<strong>de</strong>saparece misteriosamente do aparelho psíquico, o que <strong>de</strong><strong>no</strong>ta a existência <strong>de</strong> um nível<br />

<strong>de</strong> inscrição arcaica do mesmo.<br />

O enunciado <strong>de</strong> Donald Winnicott <strong>no</strong> que concerne ao medo do colapso,<br />

empregado precisamente para abor<strong>da</strong>r “o impensável estado <strong>de</strong> coisas subjacentes à<br />

organização <strong>de</strong>fensiva” (1963a/2005, p. 71), contribui para uma melhor <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong><br />

<strong>no</strong>ssa inquietação. Vale ressaltar que as experiências subjacentes ao colapso são<br />

impensáveis e não po<strong>de</strong>m ser reuni<strong>da</strong>s ou integra<strong>da</strong>s <strong>no</strong> eu, <strong>de</strong> modo que o psiquismo<br />

enquanto uma organização narcísica se encontra ameaçado. A i<strong>de</strong>ia winnicottiana é a <strong>de</strong><br />

que o medo diz respeito a um colapso passado que não pô<strong>de</strong> ser apropriado<br />

subjetivamente, portanto, paradoxalmente, o colapso aconteceu e não aconteceu. De<br />

acordo com Winnicott, “não é possível lembrar <strong>de</strong> algo que ain<strong>da</strong> não aconteceu, e esta<br />

coisa do passado não aconteceu ain<strong>da</strong>, porque o paciente não estava lá para que ela lhe<br />

acontecesse” (Id., ibid., p. 74). Entrevê-se aí que o colapso permanece como um pa<strong>no</strong> <strong>de</strong><br />

fundo subjetivo ameaçador, posto o seu caráter evocativo do vivido <strong>de</strong> caos e<br />

transbor<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> outrora.<br />

Ora, evi<strong>de</strong>ntemente, o vivido traumático encontra-se vivo, esteja ele ausente,<br />

esquecido ou em negativo. Dito isso, parece-<strong>no</strong>s evi<strong>de</strong>nte a existência <strong>de</strong> uma memória<br />

do colapso, condição <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para um processo posterior <strong>de</strong> simbolização <strong>da</strong>s<br />

experiências psíquicas cliva<strong>da</strong>s. Eis aqui, as <strong>no</strong>ssas in<strong>da</strong>gações. Como tornar presente o<br />

ausente, visível o invisível, apreensível o inapreensível? Como conceber uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

do psiquismo, cujo ponto nevrálgico é justamente a ausência <strong>de</strong> ser? Como narrar o não<br />

acontecimento <strong>de</strong> si? Seria possível traduzir o excesso pulsional em termos <strong>de</strong><br />

localizações psíquicas? Nesse bojo <strong>de</strong> questões, conduziremos o presente capítulo,<br />

tendo como horizonte a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> instaurar a face positiva do negativo, ou seja,<br />

simbolizar o conteúdo clivado.<br />

32


Por essa via <strong>de</strong> reflexão, propomos investigar o aspecto intrapsíquico <strong>da</strong>s<br />

experiências <strong>de</strong> transbor<strong>da</strong>mento intensivo situa<strong>da</strong>s além <strong>da</strong> representação. Apesar <strong>de</strong><br />

reconhecermos a participação do fator relacional na conformação do psiquismo,<br />

optamos por não colocá-lo em perspectiva <strong>no</strong> momento, <strong>de</strong>dicando o próximo capítulo<br />

para esse empreendimento. Interessa-<strong>no</strong>s pensar aqui na engrenagem <strong>de</strong> registro,<br />

ativação e transformação <strong>da</strong>s experiências psíquicas cliva<strong>da</strong>s, a partir <strong>da</strong> estrutura do<br />

aparelho psíquico composta por meio <strong>de</strong> instâncias. Sabemos que tal engrenagem se<br />

constitui, originalmente, para a compreensão <strong>da</strong> neurose, cujo conflito entre as<br />

instâncias psíquicas <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> representacional torna-se patente. Mesmo assim, vamos<br />

<strong>no</strong>s lançar na exploração dos processos mentais envolvidos na repetição característica<br />

do além <strong>da</strong> representação. Realizaremos a empreita<strong>da</strong>, buscando construir um arcabouço<br />

conceitual que <strong>no</strong>s ofereça uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> intuições para o exercício <strong>da</strong> clínica <strong>da</strong><br />

clivagem.<br />

Reatualizando a máxima freudiana <strong>de</strong> que o sofrimento do sujeito advém <strong>da</strong>s<br />

suas próprias reminiscências (FREUD, 1893/1996.), parece-<strong>no</strong>s premente consi<strong>de</strong>rar <strong>de</strong><br />

que or<strong>de</strong>m é o registro <strong>da</strong>s lembranças que são precipita<strong>da</strong>s. Manteremos a perspectiva<br />

freudiana <strong>de</strong> que a memória não se faz presente <strong>de</strong> uma só vez, se <strong>de</strong>sdobrando em<br />

temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> e espaciali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s. Nessa direção, vamos abor<strong>da</strong>r os processos<br />

<strong>de</strong> simbolização com base na transformação <strong>da</strong>s experiências psíquicas por meio dos<br />

diferentes níveis <strong>de</strong> ligação simbólica. Tais níveis comportam uma relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>rivação<br />

e coexistência, mas não <strong>de</strong> oposição, tendo em vista que a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica não é<br />

apreendi<strong>da</strong> <strong>de</strong> imediato nem maneira uniforme.<br />

Valendo-se, então, do intervalo existente entre a experiência vivi<strong>da</strong> e o sentido<br />

<strong>da</strong> experiência, fica evi<strong>de</strong>nte a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um trabalho <strong>de</strong> simbolização. Isso <strong>no</strong>s<br />

reporta às relações entre o sujeito e o mundo, pois, em última instância, o psiquismo<br />

<strong>de</strong>ve prestar contas para si <strong>de</strong> tudo o que experimenta. Sendo assim, tal processo baseiase<br />

em um movimento <strong>de</strong> transcrição sequencial pelos sistema mnêmico, <strong>de</strong> acordo com<br />

as particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> experiência vivi<strong>da</strong>, tais como impacto e frequência. Seja como<br />

for, a simbolização envolve em alguma medi<strong>da</strong> a apropriação subjetiva, interferindo na<br />

relação do sujeito com a sua própria vi<strong>da</strong> psíquica.<br />

33


II. 1. Simbolização primária versus simbolização secundária<br />

Retomando as orientações levanta<strong>da</strong>s pelo Projeto <strong>de</strong> 1895 (FREUD,<br />

1950[1895]/1996. op. cit.), <strong>no</strong> tocante às modificações dos neurônios diante <strong>da</strong> ação <strong>de</strong><br />

fortes excitações provin<strong>da</strong>s <strong>de</strong> fora, apreciamos o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma teoria do<br />

traço. Por analogia, o psiquismo sofreria a ação <strong>da</strong>s experiências vivi<strong>da</strong>s, modificandose<br />

ao registrar inevitavelmente àquilo ao qual é confrontado. Com efeito, “todo traço é<br />

traço <strong>de</strong> uma impressão”, como frisa Garcia-Roza (1993/2008). O traço seria, então, a<br />

forma pela qual a impressão conserva os seus efeitos. Nesse sentido, o traço pressupõe<br />

uma inscrição, sendo a memória forma<strong>da</strong> pelo conjunto dos traços. É importante<br />

ressaltar que os mesmos po<strong>de</strong>m estabelecer conexões entre si, o que precisamente<br />

<strong>de</strong>signa-se por associação. Nessas circunstãncias, quando ocorre, por exemplo,<br />

simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong> ou semelhança <strong>de</strong> impressões, uma relação associativa se estabelece<br />

entre os elementos psíquicos.<br />

Na linha <strong>de</strong>sses enunciados, vamos recorrer às elaborações memoráveis <strong>de</strong> Freud<br />

conti<strong>da</strong>s na “Carta 52” (FREUD, 1896a/1996, op. cit.) e “A intepretação dos sonhos”<br />

(FREUD, 1900/1996, op. cit.), acerca dos modos <strong>de</strong> inscrição dos acontecimentos <strong>no</strong><br />

aparelho psíquico. Na carta referi<strong>da</strong>, Freud propõe que “a memória não se faz presente<br />

<strong>de</strong> uma só vez, mas se <strong>de</strong>sdobra em vários tempos; que ela é registra<strong>da</strong> em diferentes<br />

espécies <strong>de</strong> indicações” (FREUD, 1896a/1996, op. cit., p. 281). Apresenta-<strong>no</strong>s aí três<br />

registros sucessivos <strong>da</strong>s experiências, a saber: a indicação ou sig<strong>no</strong> <strong>de</strong> percepção como<br />

o primeiro registro <strong>da</strong>s percepções, incapaz <strong>de</strong> se tornar consciente e disposto conforme<br />

associações por simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong>; os traços inconscientes tomados em relação <strong>de</strong><br />

causali<strong>da</strong><strong>de</strong>, passíveis <strong>de</strong> conscientização; e o terceiro são os traços pré-conscientes<br />

ligados às representações verbais. Por essa via, ocorre a tradução do material psíquico, o<br />

que quer dizer que o sig<strong>no</strong> <strong>de</strong> percepção se transcreve como traço inconsciente, e,<br />

sequencialmente, transforma-se em traço pré-consciente.<br />

Com base nisso, Freud vai avançar em 1900 para o mo<strong>de</strong>lo óptico do aparelho,<br />

composto <strong>de</strong> sistemas, dispostos em uma sucessão linear; estrutura a qual equivalem<br />

funções psíquicas. Dessa perspectiva, a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica possui claramente uma<br />

direção que parte <strong>da</strong> percepção dos estímulos inter<strong>no</strong>s ou exter<strong>no</strong>s ao pólo motor. Há,<br />

portanto, uma extremi<strong>da</strong><strong>de</strong> sensorial perceptiva e uma extremi<strong>da</strong><strong>de</strong> motora. Vale trazer<br />

34


aqui a referência clássica <strong>da</strong>s funções psíquicas como processos reflexos utiliza<strong>da</strong> por<br />

Freud em suas especulações oníricas acerca do aparato psíquico. Nesse contexto, os<br />

traços oriundos <strong>da</strong>s percepções sensoriais são <strong>de</strong>scritos como traços mnêmicos, pelos<br />

quais a memória é composta. O pólo perceptivo não guar<strong>da</strong> nenhum lastro, <strong>de</strong> forma<br />

que o conteúdo <strong>da</strong>s percepções <strong>de</strong>ve ser registrado pelo sistema mnêmico. Desse modo,<br />

há então, um sistema permeável e receptivo e outro responsável pela conservação, logo,<br />

o registro efetua-se por meio dos diferentes traços mnêmicos conforme o nível<br />

topográfico. Configura-se, assim, a estratificação sucessiva <strong>de</strong> inscrições e localizações<br />

psíquicas.<br />

É importante enfatizar que não se trata <strong>de</strong> estabelecer um antagonismo entre os<br />

registros, muito pelo contrário, <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>mos um <strong>de</strong>sdobramento em continui<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>purar a distinção entre eles, vamos <strong>de</strong>cantar o sig<strong>no</strong> <strong>de</strong> percepção<br />

como presentificação (Darstellung), enquanto, tomaremos os traços inconscientes e<br />

conscientes através <strong>da</strong> representação (Vorstellung). Com respeito ao questionamento<br />

sobre “Os limites <strong>da</strong> representação psíquica”, Regina Herzog (2011) po<strong>de</strong> <strong>no</strong>s auxiliar,<br />

na medi<strong>da</strong> em que correlaciona representação e presentificação com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

distinguir uma linguagem verbal e uma linguagem do sensível. Levando isso em<br />

consi<strong>de</strong>ração, cabe <strong>de</strong>stacar, com Hanns (1996, op. cit.), que a co<strong>no</strong>tação premente em<br />

Darstellung consiste na exposição em uma forma sensorial ou imagem sensório-motora;<br />

enquanto a acepção <strong>da</strong> Vorstellung refere-se especificamente àquilo que está em lugar<br />

<strong>de</strong> algo, o representante, por assim dizer. A esse propósito, <strong>no</strong>s interessa chamar atenção<br />

para a dimensão sensorial e perceptiva <strong>da</strong> primeira inscrição, <strong>de</strong>signa<strong>da</strong> como sig<strong>no</strong> <strong>de</strong><br />

percepção, e o caráter representativo dos traços mnêmicos.<br />

De imediato, vamos <strong>no</strong>s <strong>de</strong>ter na passagem <strong>de</strong> um registro para o outro, na<br />

medi<strong>da</strong> em que ela implica justamente em um trabalho <strong>de</strong> simbolização <strong>da</strong>s experiências<br />

psíquicas. Avançaremos com base <strong>no</strong>s ensinamentos <strong>de</strong> René Roussillon (1999, op. cit;<br />

1995, 2001) acerca <strong>da</strong>s diferentes mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> simbolização. Valendo-se <strong>da</strong>s<br />

contribuições freudianas conti<strong>da</strong>s na “Carta 52” (FREUD, 1896/1996, op. cit.), o autor<br />

formula a hipótese <strong>de</strong> uma tripla inscrição mnêmica, valorizando três tipos <strong>de</strong> traços<br />

distintos, mas intimamente ligados entre si. Dito com as suas palavras, “a existência<br />

afirma<strong>da</strong> em 1896 <strong>de</strong> três traços diferentes <strong>da</strong> experiência implica então, <strong>de</strong> fato, a<br />

existência <strong>de</strong> dois tipos <strong>de</strong> simbolização diferentes: uma primária, outra secundária”<br />

35


(ROUSSILLON, 1995, op. cit., p. 1479. Tradução <strong>no</strong>ssa). O recurso à diferenciação<br />

entre as formas <strong>de</strong> simbolização primária e simbolização secundária institui-se como<br />

fun<strong>da</strong>mental para a discussão <strong>da</strong> <strong>no</strong>ssa problemática, <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> eluci<strong>da</strong>r o modo <strong>de</strong><br />

incidência do traumático <strong>no</strong> psiquismo. Sob essa perspectiva, cabe aqui uma observação<br />

lateral para mencionar que gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s encontra<strong>da</strong>s na prática clínica<br />

com psicóticos, psicossomáticos e estados-limite resulta <strong>da</strong> ausência <strong>de</strong> diferenciação<br />

entre os dois tipos <strong>de</strong> simbolização do funcionamento psíquico.<br />

Nessa direção, dialoguemos com algumas reflexões em jogo <strong>no</strong> contexto <strong>de</strong><br />

1900 e após 1920, na medi<strong>da</strong> em que po<strong>de</strong>mos utilizá-las para <strong>no</strong>s referirmos à<br />

simbolição secundária e simbolização primária respectivamente. A partir <strong>de</strong>sses<br />

contextos, po<strong>de</strong>mos apreen<strong>de</strong>r o mo<strong>de</strong>lo apresentado em “A interpretação dos sonhos”<br />

(FREUD, 1900/1996, op. cit.) com base na regulação do aparelho psíquico pelo<br />

princípio <strong>de</strong> prazer e, mais tardiamente, com a vira<strong>da</strong> dos a<strong>no</strong>s 20, o mo<strong>de</strong>lo indicado<br />

pela compulsão à repetição <strong>de</strong>sprazerosa, como organizadores do psiquismo. De um<br />

lado, a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica compõe-se <strong>de</strong> representações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo<br />

recalca<strong>da</strong>s, <strong>de</strong> outro lado, a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> implica a existência <strong>de</strong> excessos pulsionais<br />

não representados. Tal distinção remete consecutivamente ao que Roussillon (1999, op.<br />

cit.) <strong>de</strong>screve como traumatismo secundário, cujo processo <strong>de</strong>senrola-se sob a égi<strong>de</strong> do<br />

princípio <strong>de</strong> prazer, e traumatismo primário, o qual se <strong>de</strong>sdobra em um universo aquém<br />

<strong>da</strong> representação. Com relação à elaboração onírica, como vimos anteriormente, isso<br />

fica bastante claro por meio <strong>da</strong> diferenciação entre o sonho como realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e<br />

o sonho como busca <strong>de</strong> ligação pulsional. A esse respeito, acompanhemos o<br />

pensamento <strong>de</strong> Birman:<br />

(...) enquanto na tópica do inconsciente estamos diante <strong>de</strong> experiências que receberam<br />

uma inscrição e que passaram por um código <strong>de</strong> linguagem – e, por isso mesmo,<br />

po<strong>de</strong>riam ser interpreta<strong>da</strong>s – na tópica do id teríamos algo além disso. Com efeito, <strong>no</strong><br />

registro do id teríamos um conjunto <strong>de</strong> experiências que não receberam uma inscrição e<br />

não se inseriram num código <strong>de</strong> linguagem, que estariam ‘fora’ <strong>da</strong> psique, se esta é<br />

<strong>de</strong>fini<strong>da</strong> pelo sistema <strong>de</strong> oposição inconsciente/pré-consciente-consciente. Isto é,<br />

teríamos um conjunto <strong>de</strong> marcas psíquicas que não estariam se movimentando num<br />

espaço <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> significados. (1991, p. 230).<br />

Diante disso, visamos sustentar que os processos <strong>de</strong> clivagem recaem sobre as<br />

experiências psíquicas que não alcançaram o status <strong>de</strong> representação, portanto, não são<br />

36


passíveis <strong>de</strong> recalcamento. Nesse sentido, os alicerces conceituais dos fenôme<strong>no</strong>s<br />

clivados encontram um solo mais firme com a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se pensar uma<br />

or<strong>de</strong>nação psíquica para além <strong>da</strong> representação.<br />

Levando isso em consi<strong>de</strong>ração, po<strong>de</strong>mos prosseguir apresentando as duas<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> simbolização: simbolização primária e simbolização secundária<br />

entrelaçando-as aos três registros <strong>de</strong>scritos na “Carta 52” (FREUD, 1986a/1996,<br />

op.cit.), tal como <strong>no</strong>s ensina Roussillon (1995, op. cit.). Por essa perspectiva, vamos<br />

<strong>no</strong>mear simbolização primária o processo pelo qual o sig<strong>no</strong> <strong>de</strong> percepção (traço<br />

mnêmico primário) é transformado em traço inconsciente e simbolização secundária o<br />

processo pelo qual o traço inconsciente transforma-se em traço consciente, sendo<br />

passível <strong>de</strong> tradução <strong>no</strong> aparelho <strong>de</strong> linguagem verbal. Dizendo <strong>de</strong> outra maneira, a<br />

simbolização primária equivale a ligação do sig<strong>no</strong> <strong>de</strong> percepção à representação <strong>de</strong><br />

coisa, enquanto a simbolização secundária vincula a representação-coisa à representação<br />

<strong>de</strong> palavra. Cabe acrescentar que, enquanto a representação <strong>de</strong> palavra contempla uma<br />

convenção, a representação-coisa comporta um caráter mais idiossincrático. Com isso, a<br />

passagem <strong>de</strong> uma para a outra implica em uma subjetivação <strong>da</strong> matéria-prima <strong>da</strong><br />

experiência psíquica, expressão utiliza<strong>da</strong> por Freud (1900/1996, op. cit.) ao se referir ao<br />

ponto último <strong>de</strong> regressão <strong>no</strong>s sonhos.<br />

A partir dos pontos levantados, <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>-se que a representação po<strong>de</strong> ser<br />

concebi<strong>da</strong> como um <strong>de</strong>sdobramento <strong>da</strong> presentificação. Nessa lógica, o <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> final <strong>da</strong><br />

expressão psíquica seria <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> representação. É importante sublinhar que a<br />

transcrição dos sig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> percepção para o registro seguinte dos traços mnêmicos é ti<strong>da</strong><br />

como certa até o contexto <strong>de</strong> 1900, <strong>de</strong> modo que a problemática teórico-clínica recai<br />

sobre as condições <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> comunicação entre os traços inconscientes e<br />

traços pré-conscientes. Nessas circunstâncias, a simbolização diz respeito às ligações<br />

apenas <strong>de</strong> natureza representativa. To<strong>da</strong>via, a vira<strong>da</strong> dos a<strong>no</strong>s 20 põe em evidência a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um trabalho psíquico <strong>de</strong> ligação primária dos sig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> percepção aos<br />

traços mnêmicos representativos, não mais inscritos <strong>de</strong> saí<strong>da</strong>. Assim sendo, torna-se<br />

evi<strong>de</strong>nte a ausência <strong>de</strong> garantias quanto ao cumprimento <strong>de</strong> todo o percurso transcritivo,<br />

o que levanta a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> falhas <strong>de</strong> tradução <strong>no</strong> nível perceptivo, além <strong>da</strong>s<br />

abarca<strong>da</strong>s pelo recalque.<br />

37


II. 2. Fueros psíquicos<br />

Prosseguindo com o objetivo <strong>de</strong> circunscrevermos a problemática <strong>da</strong> clivagem,<br />

vamos <strong>no</strong>s <strong>de</strong>ter na questão <strong>da</strong> transcrição <strong>da</strong>s experiências pelo vértice <strong>da</strong> falha <strong>de</strong><br />

tradução <strong>no</strong> curso dos processos psíquicos. A esse respeito, evoquemos mais uma vez a<br />

“Carta 52” (FREUD, 1896a/1996, op. cit.), na qual Freud enuncia a presença <strong>de</strong> fueros 6<br />

ou sobrevivências fruto <strong>de</strong> intercorrências <strong>no</strong> or<strong>de</strong>namento pelos sistemas mnêmicos.<br />

Tais fueros ocorrem em função do <strong>de</strong>sprazer que seria gerado, caso uma tradução se<br />

realizasse, <strong>de</strong> modo que o material psíquico não po<strong>de</strong> percorrer os registros sucessivos<br />

<strong>de</strong> transcrição, permanecendo como um enclave. É importante precisar que quando falta<br />

a transcrição subsequente, a inscrição é maneja<strong>da</strong> segundo a lógica do sistema vigente,<br />

sendo o primeiro registro organizado em função <strong>da</strong> associação por simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong>; o<br />

seguinte <strong>de</strong> acordo com base na causali<strong>da</strong><strong>de</strong>; e por último, comparece o registro verbal<br />

do material psíquico acessível à consciência. Via <strong>de</strong> regra, trata-se do trajeto dos<br />

precipitados somáticos ao pensamento sofisticado.<br />

De acordo com o mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> carta freudiana, as falhas na tradução são<br />

consequência do processo <strong>de</strong> recalcamento. Ao proce<strong>de</strong>r assim, Freud se refere ao<br />

<strong>de</strong>sprazer envolvido propriamente pelo re<strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s lembranças, o que<br />

<strong>no</strong>s faz situar essas falhas na passagem do traço inconsciente para o traço pré-consciente<br />

ou, em outros termos, na articulação entre a representação <strong>de</strong> palavra e a representaçãocoisa.<br />

To<strong>da</strong>via, levando em consi<strong>de</strong>ração os três registros – sig<strong>no</strong> <strong>de</strong> percepção, traço<br />

inconsciente e traço pré-consciente – po<strong>de</strong>mos inferir também a existência <strong>de</strong> fueros na<br />

passagem do sig<strong>no</strong> <strong>de</strong> percepção para o traço inconsciente e não apenas fueros na<br />

transcrição do traço inconsciente para o traço pré-consciente. Nesse sentido,<br />

preten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>monstrar a coexistência <strong>de</strong> dois tipos <strong>de</strong> fueros, o recalque, como já fora<br />

<strong>de</strong><strong>no</strong>minado por Freud, e a clivagem justifica<strong>da</strong> pela impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o sig<strong>no</strong> <strong>de</strong><br />

percepção convergir para a representação-coisa.<br />

Com esse propósito, examinemos brevemente a concepção do par representaçãocoisa/representação<br />

<strong>de</strong> palavra presente <strong>no</strong> estudo <strong>de</strong> Freud sobre as afasias (FREUD,<br />

6 De acordo com a <strong>no</strong>ta <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>pé conti<strong>da</strong> na “Carta 52” (FREUD, 1896a/1996, op. cit.), o fuero era uma<br />

antiga lei espanhola que vigorava em <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> ou província para garantir os privilégios<br />

perpétuos <strong>da</strong> região.<br />

38


1915c/1996). Sob esse ângulo, as representações-coisa são <strong>de</strong>scritas como<br />

essencialmente visuais e as representações <strong>de</strong> palavra se apresentam como uma<br />

combinação <strong>de</strong> imagens so<strong>no</strong>ras, motoras visuais e motoras <strong>da</strong> fala. Desse modo, as<br />

representações-coisa caracterizam o funcionamento inconsciente, enquanto o sistema<br />

pré-consciente/consciente engloba as representações-coisa em conjunto com as<br />

representações <strong>de</strong> palavra. A articulação entre as duas é propriamente o que possibilita a<br />

passagem do processo psíquico primário (energia livre) para o processo psíquico<br />

secundário (energia vincula<strong>da</strong>), permitindo, assim, o acesso do inconsciente ao préconsciente.<br />

Na contramão <strong>de</strong>ssa articulação, o processo <strong>de</strong> recalcamento intervém recusando<br />

uma tradução que <strong>de</strong>spertaria <strong>de</strong>sprazer. Ou seja, o recalque inci<strong>de</strong> propriamente na<br />

passagem entre os traços inconscientes e os traços pré-conscientes/conscientes,<br />

interrompendo o acesso <strong>de</strong> uma representação, por certo, incompatível à consciência.<br />

Cabe lembrar que as representações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m sexual são as mais suscetíveis <strong>de</strong><br />

incompatibili<strong>da</strong><strong>de</strong> consciente. Então, com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> inibir o <strong>de</strong>sprazer, o recalque<br />

quebra a sequência <strong>da</strong> transcrição, inviabilizando a articulação entre a representaçãocoisa<br />

e a representação <strong>de</strong> palavra e, com isso, o traço mnêmico é mantido inconsciente.<br />

Reportamo-<strong>no</strong>s aqui ao campo <strong>da</strong> simbolização secundária, cuja ação concerne ao<br />

campo <strong>da</strong>s representações. Com efeito, se o contexto <strong>de</strong> 1900 <strong>no</strong>s traz a questão <strong>da</strong><br />

ligação entre a representação-coisa e a representação <strong>de</strong> palavra, após 1920, o acento<br />

recai na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou não, <strong>de</strong> contenção do excesso intensivo pela aparelhagem<br />

representativa. Entra em consi<strong>de</strong>ração aqui uma forma <strong>de</strong> experimentação do mundo<br />

não media<strong>da</strong> pela representação. A partir disso, vamos avançar na compreensão dos<br />

fenôme<strong>no</strong>s clivados.<br />

Tomemos como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> o primeiro registro psíquico – um sig<strong>no</strong> <strong>de</strong><br />

percepção – o que <strong>de</strong><strong>no</strong>ta uma impressão sensível ou uma presentificação <strong>da</strong>s forças<br />

intensivas. Referimo-<strong>no</strong>s aqui às situações vivi<strong>da</strong>s e conserva<strong>da</strong>s em estado quase bruto,<br />

sem gran<strong>de</strong>s repercussões conscientes, sob a forma sensório-motora perceptiva, <strong>da</strong>ndo<br />

ensejo, assim, a uma tradução primitiva <strong>da</strong> experimentação do caldo intensivo. Dessa<br />

perspectiva, consi<strong>de</strong>ramos o primeiro esboço <strong>de</strong> registro dos movimentos pulsionais<br />

como uma espécie <strong>de</strong> biografia dos sentidos <strong>no</strong> âmbito <strong>de</strong> uma apreensão sensível. Tais<br />

fragmentos mnêmicos <strong>de</strong> impressões, pouco a pouco, entram em associação,<br />

39


intrincando-se rumo à série simbólica. Ora, trata-se precisamente aqui dos processos<br />

originários <strong>de</strong> constituição psíquica. Nessa mesma direção, <strong>no</strong>s parece pertinente<br />

introduzir o conceito <strong>de</strong> “introjeção” formulado por Ferenczi (1909/1988; 1912/1988),<br />

com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> valorizar a captura dos movimentos pulsionais – por intermédio <strong>da</strong>s<br />

“marcas diferenciais <strong>da</strong>s sensações <strong>de</strong> prazer/<strong>de</strong>sprazer” (REIS, 2004, op. cit, p. 60.) –<br />

como um “alargamento do eu”. Isso aponta a introjeção como mecanismo que torna a<br />

pulsão em consonância com a vi<strong>da</strong> psíquica.<br />

No rumo inverso, terre<strong>no</strong> <strong>da</strong>s situações arcaicas e limites, nem sempre há<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> incluir o vivido na esfera representativa, posto o acentuado<br />

<strong>de</strong>sequilíbrio na relação entre a maturi<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica e a magnitu<strong>de</strong> do afluxo <strong>de</strong><br />

excitação. Configura-se aí o caráter fun<strong>da</strong>mentalmente traumático <strong>da</strong>s “intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

anárquicas” (GARCIA-ROZA, 1990), sem elos <strong>de</strong> ligação. Nesses casos, o aparato<br />

psíquico não possui referentes para absorver o vivido traumático, <strong>de</strong> maneira que a<br />

agitação pulsante se torna como senhora <strong>da</strong> situação. Em outras palavras, o indivíduo<br />

não encontra condições para <strong>de</strong>sgastar ou efetuar ligações do excesso intensivo 7 ,<br />

<strong>de</strong>sorganizando a subjetivação em curso sob ameaça efrativa. Evi<strong>de</strong>ntemente, é preciso<br />

consi<strong>de</strong>rar aqui a figura do outro <strong>no</strong> apaziguamento do impacto pulsional. Deflagra-se,<br />

assim, o espectro <strong>da</strong>s falhas dos objetos primordiais em sua função <strong>de</strong> agenciamento<br />

condutor <strong>da</strong> pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong> às ligações. Não obstante, isso será objeto <strong>de</strong> estudo <strong>no</strong><br />

capítulo seguinte.<br />

Interessa-<strong>no</strong>s aqui marcar justamente o caráter arredio e inassimilável do<br />

acontecimento situado além do princípio <strong>de</strong> prazer, avesso a qualquer combinação<br />

psíquica e forma simbólica. Ora, com efeito, como representar algo que ultrapassa<br />

propriamente a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> representar? Marca-se aí, precisamente, o campo <strong>de</strong><br />

acionamento <strong>da</strong>s ações <strong>de</strong> clivagem, compreendido com base <strong>no</strong>s fueros psíquicos e<br />

falhas <strong>no</strong>s processos <strong>de</strong> simbolização primária, justificando a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecer<br />

uma dimensão entre a apreensão primeira <strong>da</strong> experiência pelos sig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> percepção e a<br />

sua transformação em representação-coisa.<br />

77 A quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste vivido será objeto <strong>de</strong> investigação <strong>no</strong> próximo capítulo.<br />

40


II. 3. A clivagem <strong>no</strong> eu: ênfase intrapsíquica<br />

De saí<strong>da</strong>, é importante consi<strong>de</strong>rar que em “O fetichismo” (FREUD, 1927/1996), a<br />

clivagem apresenta-se como o mecanismo <strong>de</strong> referência majoritária para a compreensão<br />

dos casos <strong>de</strong> perversão. Contudo, mais tardiamente, nas formulações freudianas<br />

conti<strong>da</strong>s <strong>no</strong> “Esboço <strong>de</strong> psicanálise” (1940a[1938]/1996, op. cit.) e “A divisão do ego<br />

<strong>no</strong> processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa” (1940b[1938]/1996), po<strong>de</strong>mos acompanhar a extensão <strong>da</strong><br />

clivagem (Ichspaltung) para além do fetichismo e <strong>da</strong>s psicoses, incluindo, os processos<br />

<strong>de</strong> subjetivação em geral. Com isso, o fetichismo gra<strong>da</strong>tivamente torna-se um caso<br />

favorável para a investigação dos fenôme<strong>no</strong>s clivados, porém, sem mais contrato <strong>de</strong><br />

exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Sendo assim, a alteração do eu pela ação <strong>da</strong> clivagem configura-se como<br />

um procedimento válido <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa sob a influência <strong>de</strong> um trauma psíquico. Seja como<br />

for, conclui Freud, “será possível ao ego evitar uma ruptura em qualquer direção<br />

[neurose e psicose] <strong>de</strong>formando-se, submetendo-se a usurpações em sua própria uni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e até mesmo, talvez, efetuando uma clivagem ou divisão <strong>de</strong> si próprio (FREUD,<br />

1924[1923]/1996, p. 170).<br />

Na direção dos enunciados freudia<strong>no</strong>s, o traumático objeto <strong>da</strong> clivagem recai,<br />

inicialmente, portanto, sobre a evidência <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> castração dos órgãos<br />

genitais (FREUD, 1927/1996, op. cit.). Por essa via <strong>de</strong> entendimento, o eu se parte em<br />

duas correntes opostas, uma capaz <strong>de</strong> acatar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> castração e outra capaz <strong>de</strong><br />

negá-la peremptoriamente. Trata-se, portanto, <strong>de</strong> duas ca<strong>de</strong>ias representativas<br />

incompatíveis, mas que convivem lado a lado, sem conflito ou influência mútua. Em<br />

certa medi<strong>da</strong>, distanciaremo-<strong>no</strong>s <strong>da</strong> perspectiva <strong>da</strong> clivagem sob a égi<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

representação, resultante <strong>da</strong> <strong>de</strong>scoberta <strong>da</strong> diferença entre os sexos ou do perigo <strong>da</strong><br />

castração, a fim <strong>de</strong> valorizar a clivagem como o ato <strong>de</strong> rejeição <strong>no</strong> nível perceptivo. Tal<br />

rejeição pressupõe falhas <strong>de</strong> transcrição enfrenta<strong>da</strong>s <strong>no</strong> primeiro registro dos sig<strong>no</strong>s <strong>de</strong><br />

percepção, em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> ausência <strong>de</strong> referentes para o acontecimento psíquico. Por essa<br />

via <strong>de</strong> pensamento, consi<strong>de</strong>ramos que a criação do objeto <strong>de</strong> fetiche subenten<strong>de</strong> uma<br />

representação <strong>da</strong> castração, isto é, um substituto simbólico do pênis <strong>no</strong>s órgãos<br />

femini<strong>no</strong>s. Tratar-se-ia, assim, <strong>de</strong> uma solução secundária para li<strong>da</strong>r com o retor<strong>no</strong> do<br />

clivado, propiciando algum nível <strong>de</strong> ligação do excesso <strong>de</strong> impressões traumáticas<br />

anteriores (ROUSSILLON, 1999, op. cit.).<br />

41


Para circunscrever a particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> do traumatismo em voga aqui recuperemos<br />

a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> trauma postula<strong>da</strong> por Freud (1939[1934-38]/1996. op. cit.) ao final <strong>da</strong> sua<br />

obra. Sigamos o seu enunciado: “Os traumas são ou experiências sobre o próprio corpo<br />

do indivíduo ou percepções sensórias, principalmente <strong>de</strong> algo visto e ouvido, isto é,<br />

experiências ou impressões” (Id., ibid, p. 89). Na esteira <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias, entram em linha<br />

<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração reações <strong>de</strong>fensivas que instituem inibições e restrições ao eu como<br />

medi<strong>da</strong> cicatrizante. De <strong>no</strong>ssa parte, tomamos tais reações <strong>de</strong>fensivas precisamente<br />

como efeito psíquico <strong>da</strong> clivagem. Trata-se, assim, <strong>de</strong> uma divisão na esfera do eu, isto<br />

é, um recurso pelo qual o sujeito se distancia <strong>de</strong> si mesmo, <strong>de</strong>ixando à margem partes<br />

psíquicas.<br />

Por essa via <strong>de</strong> reflexão, i<strong>de</strong>ntificamos as falhas na função sintética dos<br />

processos psíquicos (FREUD, 1940b [1938]/1996. op. cit.), pela não integração <strong>de</strong><br />

experiências que foram interioriza<strong>da</strong>s, mas, não apropria<strong>da</strong>s subjetivamente. Nessa<br />

lógica, a clivagem põe em evidência a presença <strong>de</strong> sig<strong>no</strong>s traumáticos <strong>de</strong> percepção <strong>no</strong><br />

psiquismo, testemunhas do impacto pulsional <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong>s situações arcaicas e limites.<br />

Tais sig<strong>no</strong>s não fazem parte do repertório experiencial manejável pelo indivíduo,<br />

embora ele sofra as suas consequências <strong>no</strong> existir. Nessas circunstâncias, o registro<br />

mnêmico sob a forma sensório-motora perceptiva em estado clivado encontra-se furtado<br />

<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> evolução simbólica, subsistindo como um quisto <strong>no</strong> psiquismo<br />

infenso ao sentido.<br />

Em certa medi<strong>da</strong>, po<strong>de</strong>mos reconhecer a ocorrência <strong>de</strong> percepções<br />

incompatíveis, algo <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma negação <strong>da</strong> própria sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, em termos<br />

freudia<strong>no</strong>s, uma rejeição (Verleugnung), cuja finali<strong>da</strong><strong>de</strong> consiste em estancar o canal<br />

perceptivo, amortecendo o efeito traumático. De fato, uma impressão sensível po<strong>de</strong> ser<br />

apreendi<strong>da</strong> pela percepção, mas refratária aos códigos representativos, isto é,<br />

intraduzível pelos traços <strong>de</strong> representação. Com efeito, se a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> intensiva não se<br />

engancha por meio <strong>da</strong>s ligações representativas nem encontra <strong>de</strong>scarga direta, a pressão<br />

do excesso transforma-se em um impasse existencial. Nesse nível, a percepção se<br />

<strong>de</strong>svigora em benefício <strong>da</strong> contenção do caos psíquico. Nota-se aí que é como se a<br />

própria percepção adquirisse um estatuto ameaçador e potencialmente <strong>de</strong>sestabilizador.<br />

Relançando o sentido <strong>da</strong> clivagem fetichista, constatamos que o eu se <strong>de</strong>svia dos<br />

42


movimentos pulsionais, <strong>no</strong> contexto aflitivo, pela rejeição <strong>da</strong>s percepções, resultando<br />

precisamente disso a divisão.<br />

A esse respeito, Figueiredo (2003a, op. cit.) sugere a tradução do termo<br />

Verlegnung por <strong>de</strong>sautorização, pois, tratar-se-ia, fun<strong>da</strong>mentalmente, <strong>de</strong> negar a<br />

autorização para que tal experiência intensiva se inscreva <strong>no</strong> campo subjetivo<br />

relativamente integrado e aberto às simbolizações. Preten<strong>de</strong>mos com isso ressaltar a<br />

permanência <strong>da</strong> percepção <strong>no</strong> psiquismo, contudo, sem autori<strong>da</strong><strong>de</strong> para alcançar outros<br />

passos <strong>no</strong> fluxo psíquico. Trata-se, assim, <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>fesa paradoxal que articula<br />

“registro e repúdio” (FIGUEIREDO, 2003b, p. 172), sem envolver propriamente o<br />

inconsciente recalcado. Nessa mesma direção, os elementos clivados subsistiriam em<br />

estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sautorização, porém, sem mobili<strong>da</strong><strong>de</strong>, trânsito e associação <strong>no</strong> psiquimo.<br />

Desse modo, o funcionamento psíquico <strong>de</strong>senrola-se <strong>no</strong> eixo do transbor<strong>da</strong>mento<br />

pulsional, aproximando-se do mo<strong>de</strong>lo visto nas neuroses traumáticas. Aqui qualquer<br />

variação quantitativa, natural <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, po<strong>de</strong> ser experimenta<strong>da</strong> com sobressalto, na<br />

medi<strong>da</strong> em que o psiquimo se encontra imerso em um estado <strong>de</strong> tensão que escapa aos<br />

esforços <strong>de</strong> ligação por Eros. Presentifica-se aí, <strong>de</strong> forma disruptiva, a condição<br />

subjetiva cliva<strong>da</strong>.<br />

Nesse sentido, po<strong>de</strong>mos reforçar, na companhia <strong>de</strong> Roussillon, que “a clivagem<br />

supõe a ação <strong>de</strong> um ‘além do princípio <strong>de</strong> prazer/<strong>de</strong>sprazer’, quer dizer, <strong>da</strong> tentativa e <strong>da</strong><br />

falha <strong>de</strong> instauração do seu primado: alguma coisa lhe escapa, o que está na origem <strong>de</strong><br />

um hiato <strong>no</strong> funcionamento psíquico” (1995, op. cit., p. 1358. Tradução. <strong>no</strong>ssa). Tal<br />

hiato se refere, precisamente, ao <strong>de</strong>sgarramento <strong>no</strong> interior do próprio psiquismo, o qual<br />

correspon<strong>de</strong> as partes sob clivagem. Tal operação <strong>de</strong>signa, portanto, uma cisão entre a<br />

parte representa<strong>da</strong> e não representa<strong>da</strong> <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, estabelecendo, assim, uma<br />

<strong>de</strong>sconexão <strong>no</strong> coração do psiquismo. Com isso, fica evi<strong>de</strong>nte a diferença em relação ao<br />

universo do recalque – <strong>de</strong>sejo versus censura – <strong>no</strong> âmbito substancialmente<br />

representativo. Entretanto, o que <strong>no</strong>s parece importante <strong>de</strong>stacar do funcionamento<br />

clivado consiste na não integração <strong>de</strong> uma experiência psíquica, vigorando através dos<br />

vestígios traumáticos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m sensório-motor perceptível. Nessas condições, o vivido<br />

subjetivo conserva um caráter vivo e atual, na contramão do reor<strong>de</strong>namento e<br />

recombinação psíquicos, dificultando o giro <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> do tempo.<br />

43


Dessa perspectiva, o psiquismo não po<strong>de</strong> atribuir um sentido ao excesso<br />

traumático. A<strong>de</strong>mais, o sofrimento psíquico não se torna reconhecido facilmente, posto<br />

a ausência <strong>de</strong> referentes. A questão aqui resi<strong>de</strong> na impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do traumático ser<br />

visto em sua materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>, engendrando a sensação <strong>de</strong> uma dor sem razão, tornando<br />

mais árdua a tarefa pela busca <strong>de</strong> um sentido. A título <strong>de</strong> ilustração, <strong>no</strong>s parece<br />

interessante pensar nas queixas dos pacientes que não dizem respeito ao conflito<br />

psíquico, mas reportam-se justamente a um mal-estar difuso, uma impressão <strong>de</strong> vazio e<br />

estranheza. Nesse bojo <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações, enten<strong>de</strong>mos que, por um lado, a clivagem<br />

conserva o status quo traumático mediante a sua não integração ao campo restante do<br />

psiquimo; por outro lado, permite a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> do traçado psíquico. Tal recurso<br />

<strong>de</strong><strong>no</strong>ta a coexistência <strong>de</strong> dinamismos distintos <strong>no</strong> psiquismo, isto é, a presença <strong>de</strong> uma<br />

montagem psíquica inconsciente com base tanto <strong>no</strong> recalcamento quanto na clivagem.<br />

Tal visa<strong>da</strong> torna-se fun<strong>da</strong>mental para a apreciação <strong>da</strong> via <strong>de</strong> insistência <strong>da</strong>s<br />

experiências traumáticas cliva<strong>da</strong>s. Tais insistências configuram-se como uma ameaça à<br />

integri<strong>da</strong><strong>de</strong> narcísica, informando o psiquismo acerca <strong>da</strong> sua história não subjetiva<strong>da</strong>.<br />

Apoiados nisso, vamos retornar mais uma vez à Freud, com o intuito <strong>de</strong> examinar o<br />

caráter alucinatório do funcionamento psíquico enquanto condição para a reativação dos<br />

traumatismos.<br />

II. 4. Insistências traumáticas<br />

Avançando com o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> distinção entre o contexto <strong>de</strong> 1900 e<br />

após 1920, po<strong>de</strong>mos conceber um modo <strong>de</strong> retor<strong>no</strong> dos traumas sob a égi<strong>de</strong> do princípio<br />

<strong>de</strong> prazer e, outro referido ao além do princípio <strong>de</strong> prazer, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo, por sua vez, <strong>da</strong><br />

forma <strong>de</strong> registro <strong>da</strong>s experiências <strong>no</strong> psiquismo. Vale reafirmar que não preten<strong>de</strong>mos<br />

com isso estabelecer um “ou isto ou aquilo” <strong>no</strong> psiquismo, mas sim, <strong>de</strong>purar as<br />

operações mentais em jogo na dinâmica cliva<strong>da</strong>. Dito isso, <strong>no</strong>s parece importante<br />

observar que é graças ao reinvestimento alucinatório <strong>no</strong> registro mnêmico que se obtém<br />

uma vivência análoga à experimentação original. Por essa via <strong>de</strong> reflexão, enten<strong>de</strong>mos<br />

que se o registro é <strong>de</strong> natureza representativa, a sua insistência – retor<strong>no</strong> do recalcado –<br />

se fará via representação, mutatis mutandis, se o registro é <strong>de</strong> natureza perceptiva, a sua<br />

44


insistência – retor<strong>no</strong> do clivado – se fará via percepções. Nesse sentido, o conteúdo<br />

traumático se repete necessariamente com o colorido reminiscente.<br />

Servindo-<strong>no</strong>s do mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> experiência primária <strong>de</strong> satisfação, <strong>no</strong> tocante ao<br />

alívio <strong>da</strong>s tensões <strong>de</strong>correntes do acúmulo <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong>mos acompanhar como<br />

se instaura a dinâmica alucinatória. Lançando mão do discurso freudia<strong>no</strong> manifesto<br />

tanto em “Projeto para uma psicologia científica” (FREUD, 1950[1895]/1996, op. cit.)<br />

quanto em “A interpretação dos sonhos” (FREUD, 1900/1996, op. cit.),<br />

compreen<strong>de</strong>mos que quando o estado <strong>de</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> surge, instaura-se a busca pela<br />

satisfação inaugural através do reinvestimento <strong>da</strong> imagem mnêmica do objeto que a<br />

proporcio<strong>no</strong>u inicialmente. Isso acontece porque a imagem-lembrança <strong>da</strong> satisfação se<br />

liga à imagem-lembrança do objeto <strong>de</strong> satisfação (GARCIA-ROZA, 1991),<br />

configurando, assim, a busca alucinatória pela satisfação conforme os mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong><br />

satisfação real <strong>de</strong> outrora. Efetivamente, a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> dos processos psíquicos<br />

primários com o princípio <strong>de</strong> prazer subenten<strong>de</strong> que as representações reinvesti<strong>da</strong>s pelo<br />

processo alucinatório encerram uma experiência <strong>de</strong> satisfação. Desse modo, a satisfação<br />

se tece pela trama representativa, o que implica em pensar que tal registro mnêmico<br />

fornece a arquitetura do <strong>de</strong>sejo.<br />

Colocando isso em perspectiva, apreen<strong>de</strong>mos que a alucinação consiste <strong>no</strong> modo<br />

<strong>de</strong> insistência <strong>da</strong> lembrança, o que significa que a reatualização <strong>da</strong> lembrança encontrase<br />

intrinsecamente relaciona<strong>da</strong> ao <strong>formato</strong> dos vestígios passados que serão<br />

reinvestidos. Nessa medi<strong>da</strong>, consi<strong>de</strong>rando o caráter alucinatório dos processos<br />

psíquicos, po<strong>de</strong>mos entrever um retor<strong>no</strong> alucinatório através <strong>da</strong>s representações, mas<br />

também, pelas vivências sensoriais, cinestésicas, visuais, auditivas. Nesse sentido, o<br />

fator <strong>de</strong> convicção <strong>de</strong> uma história subjetiva po<strong>de</strong>ria advir tanto dos símbolos<br />

representativos quanto do pla<strong>no</strong> sensório-motor perceptivo. Marca-se aí uma diferença<br />

entre as maneiras pelas quais se po<strong>de</strong> sofrer <strong>de</strong> reminiscências, <strong>da</strong>ndo expressão a uma<br />

memória <strong>de</strong> natureza representativa e/ou a uma memória <strong>de</strong> natureza sensível. Em<br />

relação a esta última, César Botella (2006) refere-se como “memória sem lembranças”,<br />

pois, em relação às experiências não representa<strong>da</strong>s se tornaria inviável o registro por<br />

traços mnêmicos representativos. De acordo com suas proposições, tratar-se-ia <strong>de</strong><br />

marcas memoriais dos traumas não revivi<strong>da</strong>s por recor<strong>da</strong>ções, mas, precisamente,<br />

através do material perceptivo. Certamente, a ausência <strong>de</strong> conteúdo representado não<br />

45


quer dizer ausência <strong>de</strong> acontecimento psíquico (BOTELLA & BOTELLA, 1992). A<br />

esse propósito, acompanhemos o pensamento <strong>de</strong> Roussillon:<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista psicanalítico, é a partir do momento on<strong>de</strong> a pulsão produz uma força<br />

psíquica que ela se torna apreensível pela metapsicologia, quer dizer a partir do<br />

momento on<strong>de</strong> ela ativa os traços mnêmicos perceptivos do id. Ela toma então uma<br />

primeira forma pela ativação <strong>de</strong>stes traços e se apresenta ao eu-sujeito sob a forma <strong>de</strong><br />

uma força perceptiva que o afeta (1995, op. cit. p. 1463. Tradução <strong>no</strong>ssa).<br />

Tal pensamento dialoga com algumas reflexões psicanalíticas sobre a existência<br />

<strong>de</strong> uma memória corporal, <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> experiências inscritas em uma coporali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

anterior às vias toma<strong>da</strong>s pela representação. Com respeito a isso, privilegiando a relação<br />

do trauma com o corpo, Ivanise Fontes em Memória corporal e transferência:<br />

fun<strong>da</strong>mentos para uma clínica do sensível, (2002), evoca a pertinência <strong>de</strong> símbolos<br />

mnêmicos corporais, a partir <strong>de</strong> referências explicitamente ferenczianas. Trata-se do<br />

arquivo <strong>da</strong>s sensações experimenta<strong>da</strong>s nas situações traumáticas fora do espaço psíquico<br />

<strong>da</strong> representação, reafirmando a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> rememoração enquanto lembrança<br />

recalca<strong>da</strong>. Preten<strong>de</strong>mos enaltecer aqui o postulado <strong>de</strong> que o corpo também se apresenta<br />

como palco para acontecimentos subjetivantes.<br />

Essa perspectiva comparece, especialmente, em “Construções em análise”<br />

(FREUD, 1937/1996), quando Freud se <strong>de</strong>para <strong>no</strong> final <strong>da</strong> sua obra com a ausência <strong>de</strong><br />

recor<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s experiências passa<strong>da</strong>s ao longo do tratamento analítico. Nesses casos,<br />

dispõe-se apenas <strong>de</strong> um fragmento <strong>de</strong> “ver<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica” (Id., ibid., p. 285), isto é,<br />

pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong> experiência perdi<strong>da</strong>. Voltaremos a isso mais adiante, contudo, <strong>no</strong>s parece<br />

importante pontuar aqui a pertinência <strong>de</strong> uma outra or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> reminiscências a <strong>de</strong>speito<br />

<strong>da</strong>s representações, implica<strong>da</strong>, a <strong>no</strong>sso ver, justamente <strong>no</strong> processo <strong>de</strong> simbolização<br />

primária. Nessa direção, “o abando<strong>no</strong> <strong>da</strong> representação é justificado pela terrível<br />

constatação <strong>de</strong> que a rememoração encontra e<strong>no</strong>rmes obstáculos e <strong>de</strong> que o agir é<br />

preferido pelo analisando” (GREEN, 2005, p. 71). Ora, enquanto a simbolização<br />

secundária liga dois símbolos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m representativa, a simbolização primária<br />

respon<strong>de</strong> à conformação pela via do corpo e <strong>da</strong> ação. Em se tratando <strong>de</strong> um traumatismo<br />

primário, a invasão do passado não seria ocasiona<strong>da</strong> pelo reinvestimento alucinatório do<br />

<strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong> maneira que o vínculo exclusivo entre a alucinação e a satisfação começa a se<br />

tornar insustentável.<br />

46


Por essa lógica, se sustenta que a memória comporta tanto os sig<strong>no</strong>s <strong>de</strong><br />

percepção quanto os traços representativos, o que converge para mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s distintas<br />

<strong>de</strong> insistência psíquica. Efetivamente, não vamos <strong>no</strong>s <strong>de</strong>ter aqui em uma investigação<br />

exaustiva <strong>da</strong> memória em psicanálise, contudo, <strong>no</strong>s interessa realçar que apesar do<br />

sistema mnêmico ter sido fun<strong>da</strong>do enquanto memória do <strong>de</strong>sejo, ao abrimo-<strong>no</strong>s para um<br />

registro multisensorial dos fenôme<strong>no</strong>s písquicos, além <strong>da</strong>s representações, po<strong>de</strong>mos <strong>no</strong>s<br />

<strong>de</strong>parar com uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> expressões psíquicas. Com isso, po<strong>de</strong>mos vislumbrar<br />

acesso aos estados clivados, quiçá tão ressonantes <strong>no</strong> psiquismo quanto o conteúdo<br />

recalcado. Para tanto, convém prestigiar diferentes dimensões narrativas e outras<br />

recapitulações históricas por meio <strong>da</strong>s quais a figura <strong>da</strong> presentificação (Darstellung)<br />

ocupa um lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque.<br />

Dito isso, po<strong>de</strong>mos entrever que, a rigor, repete-se tudo, seja pela via do <strong>de</strong>sejo,<br />

seja pela via do “medo do colapso” (WINNICOTT, 1963a/2006. op. cit.). Certamente,<br />

trata-se <strong>de</strong> uma repetição afina<strong>da</strong> com a história <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> indivíduo, na medi<strong>da</strong> em que a<br />

repetição fun<strong>da</strong>-se nas bases <strong>da</strong>quilo que causa com certa frequência e intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em<br />

termos relacionais, po<strong>de</strong>mos assinalar que é a experiência <strong>de</strong> encontro com o objeto que<br />

vai ser continua<strong>da</strong>mente retoma<strong>da</strong>. Se o encontro com os objetos proporcio<strong>no</strong>u<br />

suficientes experiências <strong>de</strong> satisfação, buscar-se-á acentua<strong>da</strong>mente o prazer. Se o<br />

encontro com os objetos instituiu-se como <strong>de</strong>sencontrado e exce<strong>de</strong>nte, a ligação será<br />

procura<strong>da</strong> compulsivamente. Então, a a<strong>de</strong>são aos fenôme<strong>no</strong>s repetitivos vai se encontrar<br />

necessariamente vetoriza<strong>da</strong> pelos acontecimentos históricos <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong><br />

objeto, ultrapassando a procura <strong>de</strong> satisfação ou insatisfação em si mesmo. A<br />

engrenagem <strong>de</strong> ativação e <strong>de</strong>sativação do registro psíquico testemunha, portanto, o nível<br />

<strong>de</strong> apropriação subjetiva em questão.<br />

Trazendo a questão para a varie<strong>da</strong><strong>de</strong> do sofrimento psíquico, retomamos a<br />

justificativa postula<strong>da</strong> por Freud <strong>no</strong> “Esboço <strong>de</strong> psicanálise” (1940a[1938]/1996, op.<br />

cit.) acerca <strong>da</strong>s <strong>de</strong>sarmonias quantitativas. Por essa vertente, a resultante <strong>de</strong>fensiva<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> ação recíproca entre as exigências pulsionais e a maturação psíquica, logo,<br />

<strong>de</strong>ve-se levar em conta a natureza <strong>da</strong> pulsão e o período <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> relacionado.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, isso se a<strong>da</strong>pta particularmente aos traumas arcaicos em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

prematuri<strong>da</strong><strong>de</strong> do bebê huma<strong>no</strong>, mas vale também para situações limites mais tardias,<br />

em face <strong>da</strong> qual o sujeito se vê a mercê dos seus excessos não ligáveis, ou seja, quando<br />

47


se <strong>de</strong>para com uma impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> traduzir os acontecimentos psíquicos, sobretudo,<br />

em palavras. De fato, uma experiência não se constitui como <strong>de</strong>sorganizadora se a<br />

exigência <strong>de</strong> trabalho psíquico imposta não exce<strong>de</strong>r a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ligação. O que<br />

confere à quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> um valor <strong>de</strong> efração é, propriamente, a incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ligá-la, o<br />

que <strong>de</strong><strong>no</strong>ta um <strong>de</strong>sequilíbrio acentuado <strong>da</strong>s relações <strong>da</strong> força com o sentido.<br />

Ora, certamente, a ligação ganha contor<strong>no</strong> a partir <strong>da</strong> relação com o outro, pois,<br />

em última instância, o objeto que vai permitir que a força pulsional se inscreva. Nesse<br />

sentido, é conveniente consi<strong>de</strong>rar, então, o trauma para além <strong>da</strong> dimensão tópica,<br />

econômica e dinâmica, para avaliar os componentes qualitativos. Dito isso, po<strong>de</strong>mos<br />

inferir que a presença <strong>de</strong> clivagens em <strong>de</strong>masiado <strong>no</strong> psiquismo revela exigências<br />

excessivas em relação às competências simbólicas, o que subeten<strong>de</strong> um modo <strong>de</strong><br />

relação objetal <strong>de</strong>sencontrado. Nessa medi<strong>da</strong>, a falha <strong>de</strong> tradução <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />

acontecimentos psíquicos <strong>no</strong>s remete diretamente ao potencial traumático <strong>da</strong> “confusão<br />

<strong>de</strong> línguas” entre sujeito e objeto, expressão consagra<strong>da</strong> na obra <strong>de</strong> Ferenczi<br />

(1933/1992), o precursor <strong>da</strong> discussão que empreen<strong>de</strong>remos a seguir, a partir <strong>da</strong><br />

perspectiva <strong>da</strong>s relações com o objeto.<br />

48


III.<br />

Funcionamento psíquico clivado: pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

objeto<br />

Espaços, espaços, espessuras, texturas. Quente.<br />

Espaços <strong>de</strong>ntro e fibras e frisas e filas e fluidos e<br />

liquens. Uma multidão, uma colônia, uma epi<strong>de</strong>mia,<br />

uma epifania, um contato. Contagio-me. To<strong>da</strong>s as<br />

coisas estão em mim. Eu não existo. Insisto em tudo.<br />

Persisto nas linhas, trajetos, fugas. Persisto lá, on<strong>de</strong><br />

a terra acaba, e o mar acaba, e o <strong>de</strong>serto acaba, e<br />

a floresta acaba, on<strong>de</strong> o on<strong>de</strong> acaba, lá. Faço meu<br />

jardim. Aqui começa os jardins.<br />

Ericson Pires<br />

Ain<strong>da</strong> que a metapsicologia freudiana sustente o seu prestígio e i<strong>no</strong>vação pela<br />

dimensão intrapsíquica, evi<strong>de</strong>ntemente, também encontramos significativo relevo na<br />

obra <strong>de</strong> Freud para a incidência do outro na constituição psíquica, sobretudo, a partir <strong>da</strong><br />

<strong>no</strong>ção <strong>de</strong> narcisismo (FREUD, 1914b/1996), do espectro <strong>da</strong>s i<strong>de</strong>ntificações (FREUD<br />

1917[1915]/1996; 1921/1996), formação do supereu e vivências do complexo <strong>de</strong> Édipo<br />

(FREUD,1910/1996, 1917[1916-1917]/1996, op. cit.; 1923/1996, op. cit.), sem contar o<br />

amplo terre<strong>no</strong> <strong>da</strong>s transferências (FREUD, 1912/1996, op. cit.). Contudo, apesar <strong>de</strong> <strong>no</strong><br />

presente capítulo movimentar-<strong>no</strong>s-emos com base <strong>no</strong>s ensinamentos <strong>de</strong> Freud, isto é,<br />

enquanto leitores do texto freudia<strong>no</strong>, não <strong>no</strong>s <strong>de</strong>teremos fun<strong>da</strong>mentalmente aqui na<br />

trama dos seus conceitos. Optamos por <strong>da</strong>r prosseguimento a <strong>no</strong>ssa investigação, a<br />

partir <strong>da</strong> contribuição <strong>de</strong> diferentes autores referidos à função do objeto na constituição<br />

subjetiva; <strong>de</strong> um modo mais amplo, especialmente, Sándor Ferenczi, Donald Winnicott,<br />

Ronald Fairbairn, Wilfred Bion e, mais recentemente, André Green. Buscaremos um<br />

aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s relações objetais envolvi<strong>da</strong>s <strong>no</strong>s processos <strong>da</strong> clivagem, sem<br />

<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar, entretanto, as perspectivas tópica, dinâmica e econômica examina<strong>da</strong>s até<br />

então. Com efeito, <strong>no</strong>s interessa edificar pivôs conceituais para pensar a história do<br />

49


funcionamento psíquico clivado e o que se passa na intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s trocas alteritárias<br />

constituintes.<br />

Não preten<strong>de</strong>mos criar uma referência unifica<strong>da</strong> <strong>no</strong> que concerne ao suposto outro<br />

<strong>da</strong> clivagem, mantendo, assim, uma visão multifaceta<strong>da</strong> capaz <strong>de</strong> instaurar um campo<br />

<strong>de</strong> inteligibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> ligação e <strong>de</strong>sligamento estabeleci<strong>da</strong>s entre o sujeito e<br />

os objetos, tendo o manejo clínico <strong>no</strong> horizonte teórico. Enten<strong>de</strong>mos que a dimensão<br />

interna do psiquismo comporta e revela a relação do sujeito com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa,<br />

assim como, pela via inversa, os laços estabelecidos com o objeto informam sobre o que<br />

se passa <strong>no</strong> intrapsíquico. Sob esse ângulo, empreen<strong>de</strong>remos a construção hipotética do<br />

psiquismo clivado, levando em conta, sobretudo, as relações experimenta<strong>da</strong>s e intuí<strong>da</strong>s<br />

na experiência transferencial com as subjetivações em questão.<br />

É importante precisar que ao enaltecer o ponto <strong>de</strong> vista relacional, não visamos<br />

sacrificar a abor<strong>da</strong>gem intrapsíquica, mas sim buscar a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> intrínseca ao<br />

processo <strong>de</strong> subjetivação, valorizando, com isso, a tensão existente <strong>no</strong> encontro entre<br />

dois mundos inter<strong>no</strong>s. Reconhecemos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, a imbricação dos objetos com a pulsão,<br />

mesmo porque, em última análise, nenhum psiquismo po<strong>de</strong>ria ser constituído sem um<br />

objeto para aten<strong>de</strong>r às insuficiências que caracterizam a imaturi<strong>da</strong><strong>de</strong> do bebê huma<strong>no</strong>.<br />

Nesse sentido, a forma como o objeto respon<strong>de</strong> em prol <strong>da</strong> ativação pulsional interfere<br />

diretamente na organização psíquica do sujeito e, nessa medi<strong>da</strong> mesmo, consi<strong>de</strong>ramos<br />

juntamente com Green que “o objeto é o revelador <strong>da</strong> pulsão” (1979/1990, op. cit., p.<br />

71). Evi<strong>de</strong>ncia-se aí que a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa constrói o mundo inter<strong>no</strong> e vice-versa.<br />

Efetivamente, não existe o eu sem o outro 8 . Nessa direção, acompanhemos o enunciado<br />

<strong>de</strong> Green, sintético e inspirador:<br />

E esta é a razão principal que me incita a continuar <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo o conceito <strong>de</strong> pulsão.<br />

Porque somente ele fala <strong>da</strong>quilo que <strong>no</strong>s impele a viver, <strong>no</strong>s retém à vi<strong>da</strong>, <strong>no</strong>s convi<strong>da</strong> a<br />

explorar sua diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> e põe em movimento <strong>no</strong>ssa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> investir em outros<br />

campos, alargando <strong>no</strong>ssos horizontes, para que neles <strong>de</strong>scubramos aquilo para o que<br />

<strong>no</strong>sso <strong>de</strong>sejo é atraído. Mas não ig<strong>no</strong>ro que a vi<strong>da</strong> na<strong>da</strong> tem <strong>de</strong> uma aventura solitária e<br />

que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro dia, <strong>no</strong>ssa textura psíquica é teci<strong>da</strong> por <strong>no</strong>ssas ligações com os<br />

outros, os quais chamamos <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssos objetos, aqueles sem os quais não teríamos<br />

sobrevivido, aqueles sem os quais teríamos ficado muito sós e muito incompletos <strong>no</strong><br />

mundo, aqueles aos quais <strong>de</strong>ixamos algo, enfim, para que perpetuem <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nós, à<br />

sua maneira, esta fonte criadora à qual tudo <strong>de</strong>vemos (2005, op. cit., p. 81).<br />

8 Vale indicar que isso não significa o reconhecimento <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> do objeto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, temática<br />

que será examina<strong>da</strong> mais cui<strong>da</strong>dosamente adiante.<br />

50


Servindo-<strong>no</strong>s dos enunciados <strong>de</strong> “As pulsões e suas vicissitu<strong>de</strong>s 9 ” (FREUD,<br />

1915b/1996), apreen<strong>de</strong>mos que a pulsão é a medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> exigência <strong>de</strong> trabalho feita ao<br />

psíquico em consequência <strong>da</strong> sua ligação com o corpo. Reporta-se aqui, precisamente,<br />

ao feixe <strong>de</strong> forças, contemplado na segun<strong>da</strong> tópica pelo conceito <strong>de</strong> id. Pressão<br />

constante, fonte somática, satisfação como finali<strong>da</strong><strong>de</strong>, objeto variável, eis a clássica<br />

concepção <strong>da</strong> pulsão. Fiéis à Freud, afirmamos que a “sua origem é um estado <strong>de</strong><br />

excitação do corpo, sua finali<strong>da</strong><strong>de</strong> é a remoção <strong>de</strong>ssa excitação; <strong>no</strong> caminho que vai<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua origem até sua finali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a pulsão torna-se atuante psiquicamente”<br />

(1933a[1932]/1996), op. cit. p. 99). Dito isso, po<strong>de</strong>mos retomar e abor<strong>da</strong>r o trabalho <strong>de</strong><br />

simbolização como a passagem do corpo – pulsional por excelência – para o psíquico.<br />

Entrevemos aí a abertura para salientar como o objeto parece propiciar a tramitação<br />

pulsional <strong>da</strong> fonte à finali<strong>da</strong><strong>de</strong>, entrelaçando a transformação pulsional intrapsíquica ao<br />

campo <strong>da</strong>s experiências intersubjetivas.<br />

No bojo <strong>da</strong>s diferenças <strong>de</strong> apreensão do conceito <strong>de</strong> pulsão na obra freudiana,<br />

po<strong>de</strong>mos realçar a <strong>de</strong>finição <strong>da</strong> pulsão como limite do psíquico ou como representante<br />

psíquico, tal como <strong>no</strong>s conduz Octavio Souza (2001). Por essa via, visamos valorizar<br />

aqui a pulsão enquanto pólo <strong>de</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>, em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> concepção <strong>da</strong> pulsão<br />

como organização representacional. Afirmar isso implica pensar que a “intensi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

afetiva <strong>da</strong> pulsão, ao mesmo tempo que busca inscrição <strong>no</strong> campo representacional,<br />

mantém a pressão <strong>de</strong> um excesso que <strong>de</strong>sloca o sentido <strong>da</strong>do, transformando-o em<br />

sentido <strong>no</strong>vo” (Id., ibid., p. 286). Com isso, torna-se possível problematizar a finali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

pulsional última apenas como <strong>de</strong>scarga <strong>da</strong> tensão através <strong>da</strong>s representações psíquicas,<br />

passando a incluir outras formas <strong>de</strong> expressão psíquicas, revigorando, assim, a<br />

participação do objeto <strong>no</strong>s processos <strong>de</strong> ligação.<br />

Nessa linha <strong>de</strong> reflexão, <strong>no</strong>s aproximamos do aporte <strong>da</strong>s relações entre o<br />

intrapsíquico e o intersubjetivo, caracterizado por Green (1982/1990, op. cit; 2005, op.<br />

cit.), a partir do mo<strong>de</strong>lo do “duplo limite”, cuja <strong>de</strong>finição estabelece o limite entre o<br />

<strong>de</strong>ntro e o fora e a separação entre os sistemas psíquicos. Desse modo, dois campos são<br />

configurados: o intersubjetivo, entre <strong>de</strong>ntro e fora, que comporta a relação com o objeto;<br />

9 A palavra instinto foi utiliza<strong>da</strong> em to<strong>da</strong> a Edição Stan<strong>da</strong>rd para traduzir a palavra alemãTrieb, porém,<br />

com fins didádicos, optamos por substitui-la pela palavra pulsão mesmo nas citações .<br />

51


e o intrapsíquico, <strong>de</strong>ntro, resultado <strong>da</strong>s relações entre as partes que o compõem.<br />

Efetivamente, o objeto ocupa um duplo lugar, isto é, pertence tanto ao mundo inter<strong>no</strong><br />

quanto à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa, reforçando, assim, a articulação entre os dois. Por esse viés,<br />

o percurso pulsional esbarra necessariamente <strong>no</strong> outro; logo, estaremos aqui sempre<br />

referidos a esse entrelaçamento <strong>da</strong>s dimensões intra e inter. Levando isso em conta,<br />

cabe questionar sobre o efeito que tem para uma criança o modo <strong>de</strong> presença ou<br />

ausência <strong>da</strong> mãe e/ou um pai para a constituição do psiquismo. Sob esse ângulo, fica<br />

evi<strong>de</strong>nte a função primordial dos objetos <strong>no</strong> agenciamento <strong>da</strong>s primeiras ligações e, <strong>no</strong><br />

sentido inverso, se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> como as insuficiências objetais po<strong>de</strong>m dificultar as<br />

mesmas ligações.<br />

Perseguindo o entrelaçamento, tomaremos a pulsão <strong>de</strong> morte a partir <strong>de</strong> uma<br />

compreensão multifaceta<strong>da</strong> <strong>da</strong>s manifestações <strong>da</strong> compulsão à repetição, com base em<br />

três hipóteses, tal como circunscreve Figueiredo (2003c). Na linha <strong>de</strong> proposições do<br />

autor, a primeira hipótese <strong>no</strong>s leva à pulsão em busca <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga insistentemente por<br />

não encontrar <strong>no</strong>s objetos primários a função necessária para a ligação e integração dos<br />

circuitos pulsionais. Caberia, portanto, aos objetos primários interceptar a<br />

pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong> para conduzi-la às ligações, sendo que a ausência dos mesmos po<strong>de</strong>ria<br />

provocar, <strong>no</strong> rumo oposto, ações <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga e <strong>de</strong>sligamento. Por outro viés, a segun<strong>da</strong><br />

hipótese subenten<strong>de</strong> que a pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong> quando aflora <strong>de</strong> maneira mais primitiva e<br />

disruptiva, revela ain<strong>da</strong> uma vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> profun<strong>da</strong>, reconhecendo uma afirmação na pura<br />

repetição do mesmo. A terceira hipótese, por sua vez, introduz a repetição como<br />

insistência na procura do objeto primordial. Preten<strong>de</strong>mos salientar com tal visa<strong>da</strong><br />

tríplice <strong>de</strong> Tanatos, a “vi<strong>da</strong> pulsante <strong>no</strong>s estados <strong>de</strong> quase-morte, reconhecer <strong>no</strong>s<br />

estados-limite uma preservação paradoxal <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>” (Id., ibid., p. 155), na medi<strong>da</strong> em se<br />

apresenta, certamente, como mais rentável e promissora clinicamente. Contudo,<br />

evi<strong>de</strong>ntemente, não <strong>de</strong>vemos <strong>no</strong>s iludir quanto às dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s encontra<strong>da</strong>s <strong>no</strong> âmbito<br />

<strong>da</strong>s repetições mortíferas. Retomaremos isso <strong>no</strong> capítulo seguinte em referência à<br />

clínica <strong>da</strong> clivagem.<br />

Com base nisso, o <strong>de</strong>sequílibrio entre Eros e Tânatos precisa ser consi<strong>de</strong>rado em<br />

função <strong>da</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s relações do sujeito com os objetos importantes para o seu<br />

existir, uma vez que o movimento pulsional assume o seu vigor às custas <strong>da</strong> ligação <strong>da</strong><br />

pulsão. Nesse contexto, convém consi<strong>de</strong>rar o intrincamento pulsional em prol <strong>da</strong> pulsão<br />

52


<strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, não apenas enquanto resultado <strong>da</strong> satisfação pulsional, passando a levar em<br />

conta as condições necessárias para que a satisfação ocorra, o que implica na quali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>s trocas intersubjetivas. Dessa perspectiva, além do sofrimento psíquico engendrado<br />

pela ameaça <strong>de</strong> per<strong>da</strong> dos objetos <strong>da</strong> satisfação pulsional, classicamente neurótico, se<br />

torna possível abor<strong>da</strong>r as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s oriun<strong>da</strong>s do não-encontro <strong>da</strong> pulsão com os<br />

objetos, as quais justamente visamos <strong>da</strong>r relevo.<br />

Avançando com o <strong>no</strong>sso pressuposto <strong>de</strong> que a clivagem é a <strong>de</strong>fesa privilegia<strong>da</strong><br />

diante do excesso pulsional, vamos examinar a experiência do transbor<strong>da</strong>mento,<br />

reportando-<strong>no</strong>s às falhas nas funções dos objetos primordiais, seja por presença <strong>de</strong>mais<br />

ou <strong>de</strong> me<strong>no</strong>s. A esse respeito, Winnicott <strong>no</strong>s oferece uma preciosa chave <strong>de</strong> leitura<br />

processual, articulando o transbor<strong>da</strong>mento pulsional às respostas do objeto baseado <strong>no</strong><br />

fator temporal 10 . Acompanhemos a sequência ilustrativa e esclarecedora:<br />

O sentimento <strong>de</strong> que a mãe existe dura x minutos. Se a mãe ficar mais do que x minutos, então a<br />

imago se esmaece e, juntamente com ela, cessa a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do bebê utilizar o símbolo <strong>da</strong> união.<br />

O bebê fica aflito, mas essa aflição é logo corrigi<strong>da</strong>, pois a mãe retorna em x + y minutos. Em x<br />

+ y minutos, o bebê não se alterou. Em x + y + z minutos, o retor<strong>no</strong> <strong>da</strong> mãe não corrige o estado<br />

alterado do bebê (WINNICOTT, 1971a/1975, p. 136).<br />

Nota-se aí o modo pelo qual o mundo intersubjetivo intervém na organização do<br />

mundo intrapsíquico. Por essa via <strong>de</strong> entendimento, abor<strong>da</strong>mos o potencial traumático<br />

tanto em relação ao esgotamento dos recursos inter<strong>no</strong>s para li<strong>da</strong>r com excesso intensivo<br />

quanto em relação às falhas dos objetos em <strong>de</strong>sempenhar as funções primordiais <strong>de</strong><br />

cui<strong>da</strong>do. Tais funções po<strong>de</strong>riam evitar a irrupção <strong>de</strong> excitações dolorosas ou torná-las<br />

digeríveis. Na esteira <strong>de</strong>ssas preocupações, interessa-<strong>no</strong>s investigar a existência <strong>de</strong><br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> relações objetais mais suscetíveis <strong>de</strong> ocasionar transbor<strong>da</strong>mento<br />

pulsional, <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> não propiciar as ligações necessárias para o encaminhamento <strong>da</strong><br />

pulsão, disparando as ações <strong>de</strong> clivagem.<br />

10 Vale precisar que tal articulação é valoriza<strong>da</strong> por Roussillon (1995, op. cit.) e Garcia (2011).<br />

53


III.1. A contraparti<strong>da</strong> do objeto<br />

Em “A criança mal acolhi<strong>da</strong> e sua pulsão <strong>de</strong> morte” (FERENCZI, 1929/1992), a<br />

análise <strong>da</strong> gênese <strong>da</strong>s tendências inconscientes <strong>de</strong> auto-<strong>de</strong>struição conduz Ferenczi a<br />

afirmar a probabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeitos acolhidos com ru<strong>de</strong>za e sem carinho manifestarem<br />

pouca resistência à morte. Tal afirmação baseia-se <strong>no</strong> postulado <strong>de</strong> que a pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

vital não se ativa com plena carga logo após o nascimento, precisando ser <strong>de</strong>sperta<strong>da</strong><br />

pelo acolhimento físico e psíquico dispensados com tato. Pela via oposta, a per<strong>da</strong> do<br />

gosto pela vi<strong>da</strong> e o <strong>de</strong>slizamento para o não-ser se justifica em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> precoci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um trauma, ensejando uma experiência que exce<strong>de</strong> as forças <strong>de</strong> enfrentamento do<br />

indivíduo. Nesse caso, o indivíduo se organizaria sob o impacto <strong>da</strong> pulsão <strong>de</strong> morte,<br />

manifestando um funcionamento psíquico para além do princípio <strong>de</strong> prazer. É função do<br />

outro primário, portanto, inicialmente possibilitar que o indivíduo viva, se sinta vivo e<br />

tenha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver.<br />

Logo, a relação com o mundo inaugura-se por meio do cui<strong>da</strong>do na relação com o<br />

objeto, <strong>de</strong> forma que cabe ao outro, o convite à vi<strong>da</strong> e o oferecimento <strong>da</strong>s condições<br />

necessárias para o indivíduo continuar vivo. Nessa medi<strong>da</strong>, o objeto não <strong>de</strong>ve se impor<br />

quando <strong>de</strong>veria estar ausente nem se ausentar quando <strong>de</strong>veria se impor, consi<strong>de</strong>rando<br />

que o jogo pulsional se organiza em correlação com a interferência do outro primordial.<br />

Efetivamente, as funções <strong>de</strong>sempenha<strong>da</strong>s pelos cui<strong>da</strong>dores ocupam um lugar <strong>de</strong><br />

absoluto <strong>de</strong>staque para o recém-nascido, não obstante, também, se exprimem nas<br />

configurações alteritárias estabeleci<strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Em última análise,<br />

acreditamos que a motivação fun<strong>da</strong>mental do espectro <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>dos objetais consiste em<br />

facilitar para o indivíduo a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “fazer sentido” <strong>da</strong> sua existência,<br />

equivalente a elaborar uma experiência <strong>de</strong> integração (FIGUEIREDO, 2009a).<br />

Uma vez que estamos consi<strong>de</strong>rando a clivagem em correlação com o excesso<br />

pulsional, enalteceremos aqui as funções do objeto primordial capazes justamente <strong>de</strong><br />

conduzir a pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong> às ligações. Nessa linha <strong>de</strong> reflexão, <strong>de</strong>stacaremos o conceito<br />

<strong>de</strong> holding proposto por Winnicott 11 e a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> continência <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> por Bion.<br />

11 É importante precisar que o universo conceitual winnicottia<strong>no</strong> não abarca as experiências primárias<br />

entre sujeito e objeto em termos pulsionais, na medi<strong>da</strong> mesmo em que para Winnicott, não há id antes <strong>de</strong><br />

ego, nas suas palavras, “não faz sentido usar a palavra ‘id’ para fenôme<strong>no</strong>s que não são registrados,<br />

catalogados, vivenciados e eventualmente interpretados pelo funcionamento do ego” (1962/1983, p.55).<br />

Enten<strong>de</strong>mos que tal posicionamento se justifica, posto o acento winnicottia<strong>no</strong> na importância <strong>da</strong><br />

54


Antes, contudo, <strong>no</strong>s parece importante indicar que a <strong>no</strong>ssa direção parte <strong>de</strong> um processo<br />

<strong>de</strong> indiferenciação acentua<strong>da</strong> entre sujeito e objeto para uma diferenciação gradual entre<br />

eles. Levando isso em consi<strong>de</strong>ração, sustentaremos o caráter processual <strong>da</strong><br />

diferenciação apoiando-se em uma linha <strong>de</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica sem rupturas<br />

excessivas nem meras repetições, o que significa, em uma linguagem coloquial, um<br />

<strong>de</strong>sdobramento relacional primitivo com muito <strong>de</strong> parecido e pouco <strong>de</strong> diferente. Tratase<br />

<strong>de</strong> uma dimensão <strong>de</strong> encontro modular entre eu/não-eu, cujo peso do objeto não se<br />

apresenta por falta nem por excesso <strong>de</strong> presença, mas pelo assentamento do cui<strong>da</strong>do.<br />

Entrevê-se aí um diálogo com as reflexões <strong>de</strong> Maurice Merleau-Ponty (1964),<br />

particularmente conti<strong>da</strong>s em “Le visible et l’invisible” (Id., ibid.), na medi<strong>da</strong> em que o<br />

autor <strong>de</strong>screve um pla<strong>no</strong> <strong>de</strong> experiências intersubjetivas <strong>da</strong> quase indiferenciação, como<br />

se as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que engendram as diferenças entre sujeito e objeto fossem praticamente<br />

aboli<strong>da</strong>s. O termo quase <strong>no</strong>s parece referir ao fato paradoxal <strong>de</strong> o indivíduo ter uma<br />

experiência <strong>de</strong> indiferenciação com o outro, ao mesmo tempo em que se sabe<br />

diferenciado <strong>de</strong>le. Apesar <strong>da</strong> aparente imagem <strong>de</strong> uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong>, isso não <strong>de</strong>ve ser<br />

entendido, então, como uma coincidência absoluta entre as partes, mas sim um<br />

entrelaçamento, o que implica que “há distinção, mas não separação” (BEZERRA JR,<br />

2007, P. 55). Lançaremos mão <strong>de</strong> um uso utilitário do arcabouço filosófico <strong>de</strong> Merleau-<br />

Ponty, na medi<strong>da</strong> em que preten<strong>de</strong>mos <strong>no</strong>s valer <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma experiência <strong>de</strong><br />

interseção e passagem do eu para o não-eu e do não-eu para o eu, sem o postulado <strong>de</strong><br />

uma equivalência e simetria entre ambos.<br />

Da perspectiva merleau-pontiana, os limites entre eu e outro, corpo e mundo,<br />

não precisam sequer ser reivindicados. É interessante observar que isso não se confun<strong>de</strong><br />

com falta <strong>de</strong> contor<strong>no</strong>, fusão ou homogenei<strong>da</strong><strong>de</strong>, dizendo respeito a uma dimensão <strong>de</strong><br />

continui<strong>da</strong><strong>de</strong> entre presença e ausência. Na companhia <strong>de</strong> Coelho Junior e Figueiredo<br />

(2012), colocamos em perspectiva a “simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> diferenciação e<br />

indiferenciação”, pressuposta por uma implicação recíproca. Tal simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

sustenta-se pela composição <strong>de</strong> uma experiência <strong>de</strong> mundo inter<strong>no</strong> e reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa<br />

que emerge <strong>da</strong> imbricação do corpo <strong>no</strong> mundo. Trata-se, fun<strong>da</strong>mentalmente, <strong>de</strong> um<br />

satisfação <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s somatopsíquicas para além <strong>da</strong> satisfação pulsional, <strong>de</strong> forma que estamos<br />

referidos às mesmas preocupações winnicottianas em relação à organização do eu, contudo, consi<strong>de</strong>ramos<br />

a gramática pulsional antes <strong>de</strong> uma organização psíquica.<br />

55


corpo vivido em sua relação com o mundo, superposição que prece<strong>de</strong> o reconhecimento<br />

<strong>da</strong> objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e externali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Depreen<strong>de</strong>-se <strong>da</strong>í a configuração <strong>de</strong> limites fluidos e<br />

móveis entre sujeito e objeto, cuja materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ser dissolvi<strong>da</strong> nem supera<strong>da</strong>.<br />

A <strong>no</strong>ssa inspiração em Merleau-Ponty converge em direção às proposições <strong>de</strong> Balint<br />

acerca do amor primário, sinômi<strong>no</strong> <strong>de</strong> relação <strong>de</strong> objeto, as quais preten<strong>de</strong>mos trazer à<br />

tona (BALINT, 1937/1965). Dessa perspectiva, o bebê e os seus objetos <strong>de</strong> amor<br />

formam uma “mescla harmoniosa interpenetrante” (Ibid., 1968/1993, p.60), o que quer<br />

dizer que o indivíduo ao nascer se encontra imerso num mundo <strong>de</strong> mistura, <strong>no</strong> qual os<br />

limites entre o eu e o não-eu se apresentam <strong>de</strong> forma nebulosa e in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>. No âmbito<br />

<strong>da</strong> mistura não existem ain<strong>da</strong> objetos separados nem fronteiras <strong>de</strong>limita<strong>da</strong>s, apenas<br />

substâncias ou expansões ilimita<strong>da</strong>s com as quais o sujeito interage, ou seja, os objetos,<br />

os odores, o ritmo, a temperatura, os sons, formam uma mescla na qual o sujeito<br />

circun<strong>da</strong> e com a qual se relaciona. Parece-<strong>no</strong>s necessário precisar que não existe uma<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> inicial homogênea e simétrica <strong>da</strong> dupla mãe/ bebê, mas uma experiência <strong>de</strong><br />

modulação entre o eu e o outro, certamente, promovi<strong>da</strong> pela a<strong>da</strong>ptação materna<br />

(MELLO & HERZOG, 2008). Nesse sentido, um antagonismo ou diferença entre o<br />

interesse próprio e o interesse alteritário sequer se coloca em questão.<br />

A <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> substância permite, assim, <strong>de</strong>screver partes do mundo sem contor<strong>no</strong>s<br />

nítidos e diferenciados, em contraposição aos objetos que se referem às partes do mundo<br />

com limites <strong>de</strong>finidos e resistentes (BALINT, 1959). Desse modo, torna-se possível<br />

postular uma experiência primária do indíviduo com o seu entor<strong>no</strong> prévia ao<br />

reconhecimento representacional <strong>da</strong> externali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Com base nisso, o objeto mostra-se<br />

presente sem reivindicar a sua presença. Balint utiliza a relação do organismo com o ar<br />

que respira em analogia ao campo relacional primordial (Ibid., 1968/1993. op. cit.). Ora,<br />

sabemos que o ar respirado distingue-se do indivíduo que o respira, porém, enquanto<br />

existir ar, não se toma conhecimento <strong>da</strong> sua existência nem sequer se refere a ele como<br />

exter<strong>no</strong>. Pela via do antagonismo, a privação do suprimento <strong>de</strong> ar <strong>no</strong>tifica acerca <strong>da</strong> sua<br />

existência, do mesmo modo quando o objeto primordial falha, assumindo o caráter <strong>de</strong><br />

objeto para o sujeito.<br />

De fato, o outro diferenciado vai emergir a partir <strong>de</strong> uma certa <strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

oposição e resistência do entor<strong>no</strong>. Fato inexorável, mas atenuado quando processual e<br />

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passível <strong>de</strong> simbolização. To<strong>da</strong>via, quando a dissincronia espaço/temporal entre o<br />

eu/não-eu se configura como inapreensível, um estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero existencial se<br />

instaura. I<strong>de</strong>ntifica-se aí uma separação objetal traumática, semelhante à <strong>de</strong>scoberta do<br />

ar pela sua falta, engendrando <strong>de</strong>fesas na tentativa <strong>de</strong> recompor uma estabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

ventila<strong>da</strong>. Cabe insistir que estamos referidos aos objetos primordiais absolutamente<br />

imprescindíveis para a integri<strong>da</strong><strong>de</strong> narcísica. A analogia com a respiração permite<br />

ressaltar o efeito <strong>da</strong> ausência do objeto quando ele <strong>de</strong>veria estar presente, porém,<br />

convém pensarmos em termos <strong>de</strong> ausência do exercício <strong>da</strong>s funções objetais, posto que<br />

a presença do objeto em <strong>de</strong>masia po<strong>de</strong> ser tão excessiva quanto a sua ausência. O cerne<br />

<strong>da</strong> questão inci<strong>de</strong> sobre a exposição ao excesso pulsional sem arsenal intrapsíquico e<br />

intersubjetivo à altura para manejá-lo. Com relação ao aspecto intersubjetivo,<br />

subenten<strong>de</strong>-se sem holding e continência, funções inicialmente <strong>de</strong>sempenha<strong>da</strong>s pelo<br />

objeto cui<strong>da</strong>dor.<br />

III. 1. 1. Holding e continência<br />

A relação primordial entre sujeito e objeto são <strong>de</strong>signa<strong>da</strong>s por Winnicott<br />

(1960a/1983) em termos <strong>de</strong> holding e por Bion (1967a/1994) em termos <strong>de</strong> continência.<br />

Trata-se <strong>de</strong> duas funções primordiais que conferem ao objeto uma presença constituinte<br />

do psiquismo do sujeito, especialmente, a partir <strong>da</strong> perspectiva dos processos <strong>de</strong><br />

simbolização do vivido subjetivo. A fim <strong>de</strong> radicalizar a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência do<br />

sujeito em relação aos cui<strong>da</strong>dos <strong>de</strong> um outro, Winnicott enuncia que “isso que chamam<br />

<strong>de</strong> bebê não existe” (WINNICOTT, 1952/2000, p. 165), indicando a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

invariável <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar a dupla mãe/bebê.<br />

Pelas pega<strong>da</strong>s winnicottianas, consi<strong>de</strong>ra-se que o recém-nascido encontra-se em<br />

um estado <strong>de</strong> não integração primária, resumindo-se a uma mera continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser <strong>no</strong><br />

tempo e <strong>no</strong> espaço, a partir <strong>da</strong> qual vai se organizar psiquicamente. Tudo se <strong>de</strong>sdobra<br />

com base <strong>no</strong> atendimento <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s somatopsíquicas do infante pelo objeto<br />

maternante, possível pela a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong> mãe <strong>no</strong> contexto <strong>da</strong> “preocupação materna<br />

primária” (WINNICOTT, 1956/2000). Essa preocupação diz respeito a um estado <strong>de</strong><br />

sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> exacerba<strong>da</strong> por meio do qual a mãe é capaz <strong>de</strong> se i<strong>de</strong>ntificar com os<br />

anseios cambiantes do filho, como se estivesse mesmo <strong>no</strong> lugar <strong>de</strong>le e, assim,<br />

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correspon<strong>de</strong>r na proporção a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>. Sem dúvi<strong>da</strong>, o objeto cui<strong>da</strong>dor é passível <strong>de</strong><br />

falhas, contudo, sensivelmente atento para que a sua insuficiência seja neutraliza<strong>da</strong> em<br />

um limiar suportável para o bebê. Esse entendimento é especialmente importante para a<br />

compreensão do que Winnicott abarca com o conceito <strong>de</strong> holding, na medi<strong>da</strong> em que<br />

implica a função primária <strong>de</strong> segurança, traduzindo o modo <strong>de</strong> presença <strong>da</strong> mãe e as<br />

formas pelas quais ela se faz disponível ou simplesmente ali. O holding compõe a série<br />

<strong>de</strong> cui<strong>da</strong>dos disponibilizados pelo objeto cui<strong>da</strong>dor, levando-se em conta o próprio ato<br />

físisco <strong>de</strong> segurar e tocar o infante, como também a atmosfera do ambiente, tais como<br />

temperatura, luz, força, som, mímica, postura, e, particularmente, o ritmo entre os<br />

contatos calmantes e excitantes. No limite, trata-se <strong>da</strong> oferta <strong>de</strong> um mundo sob medi<strong>da</strong><br />

para o recém-nascido. Vale <strong>no</strong>tar que somente um objeto em sintonia fina com o sujeito<br />

percebe o que, por um lado, po<strong>de</strong> ser suficiente e apropriado e, por outro, excessivo e<br />

intrusivo. Nessas condições, a mãe apresenta o seio <strong>no</strong> momento em que o bebê sente<br />

fome, impedindo a irrupção <strong>de</strong> sensações <strong>de</strong>sprazerosas em <strong>de</strong>masia. Desse modo, ela<br />

permite que o bebê tenha a experiência <strong>de</strong> ter criado o seio. Efetivamente, em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

repeti<strong>da</strong> conjugação <strong>da</strong> apresentação com a criação torna-se possível a “crença na<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> como algo sobre o qual é possível ter ilusões” (WINNICOTT, 1945/2000, p.<br />

229). Da ilusão e do encantamento, emerge então o movimento <strong>de</strong> diferenciação entre<br />

eu/não-eu e a <strong>de</strong>scoberta pessoal do caráter exter<strong>no</strong> do objeto. Com isso, em última<br />

instância, a ilusão concebe a externali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Em contraparti<strong>da</strong>, o acentuado adiantamento ou atraso do objeto primário<br />

maternante em apresentar o mundo ao infante engendra um encontro,<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente, traumático com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma vez que o aparato psíquico não tem<br />

condições <strong>de</strong> representá-la nem integrá-la como uma experiência. Desse modo, as falhas<br />

do objeto primordial são vivi<strong>da</strong>s pelo sujeito enquanto <strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> abrupta com o<br />

ambiente, diante <strong>da</strong>s quais ele reage. Na medi<strong>da</strong> mesmo <strong>da</strong> sua reação, per<strong>de</strong> a sensação<br />

<strong>de</strong> ser, por consequência, agonias impensáveis sobrevêm, a saber, “ser feito em pe<strong>da</strong>ços,<br />

cair para sempre, morrer, morrer e morrer, per<strong>de</strong>r todos os vestígios <strong>de</strong> esperança e<br />

re<strong>no</strong>vação <strong>de</strong> contatos” (WINNICOTT, 1970/2002, p. 76), trazendo consigo uma<br />

ameaça <strong>de</strong> colapso psíquico. É importante atentar que tais agonias <strong>de</strong>svelam,<br />

precisamente, a falta <strong>de</strong> holding por parte dos objetos. Ora, sem a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> sustentação,<br />

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produto <strong>de</strong> uma a<strong>da</strong>ptação materna suficientemente boa, não há solo firme que viabilize<br />

a separação <strong>da</strong> mãe.<br />

Enquanto para Winnicott a base dos processos <strong>de</strong> subjetivação recai na<br />

a<strong>da</strong>ptação materna capaz <strong>de</strong> oferecer holding, para Bion o motor resi<strong>de</strong> na oferta <strong>de</strong><br />

continência que se realiza por meio <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação projetiva e <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

revêrie. Por esse meio, o bebê comunica as suas experiências intensas, potencialmente<br />

perturbadoras, e a mãe, por sua vez, torna-se capaz <strong>de</strong> acolher tal intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

experimentando-a em si mesmo. No contexto bionia<strong>no</strong>, a mãe e o bebê se ajustam<br />

mutuamente, maneira pela qual a i<strong>de</strong>ntificação projetiva e a revêrie passam a exercer<br />

proeminentemente a comunicação e o manejo relacional entre eles.<br />

De acordo com Bion, “a i<strong>de</strong>ntificação projetiva se manifesta como conduta que<br />

premedita<strong>da</strong>mente visa a <strong>de</strong>spertar, na mãe, sentimentos dos quais <strong>de</strong>seja livrar-se”<br />

(1967a/1994, op. cit. p. 132). Nessas condições, a mãe consegue tolerar tamanha<br />

projeção, por intermédio <strong>da</strong> aceitação dos estados emocionais do bebê e reage<br />

terapeuticamente a ela, isto é, <strong>de</strong>volvendo-lhe, mas <strong>de</strong> forma tolerável. Dito <strong>de</strong> outro<br />

modo, a mãe recebe as experiências projeta<strong>da</strong>s sutilmente pelas manifestações corporais<br />

do seu filho e as <strong>de</strong>volve digeri<strong>da</strong>s como elementos passíveis <strong>de</strong> simbolização,<br />

tornando-as suportáveis para ele. Por essa via <strong>de</strong> entendimento, a continência funciona<br />

em favor <strong>da</strong> sequência simbólica do excesso intensivo, sendo que gra<strong>da</strong>tivamente o<br />

próprio bebê vai <strong>de</strong>senvolver a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> manejar seus <strong>da</strong>dos sensoriais, em última<br />

instância, “a saber <strong>de</strong> si a partir <strong>da</strong> própria experiência consigo mesmo” (Id., ibid., p.<br />

133).<br />

Pela face oposta, quando a projeção – uma sensação <strong>de</strong> estar morrendo, por<br />

exemplo – não é bem recebi<strong>da</strong> pela mãe, porque po<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar nela o pavor <strong>de</strong> que ele<br />

esteja mesmo morrendo, o bebê não tem como atribuir correlação nem sentido para o<br />

acontecido. Desse modo, a mãe subverte a força comunicacional <strong>da</strong> projeção do bebê,<br />

enfraquecendo o potencial simbólico que ela comporta. Com efeito, se ela não tolera as<br />

projeções do bebê, não vai conseguir transformá-las em um <strong>formato</strong> ajustado para ele.<br />

Nessas circunstâncias, a sensação <strong>de</strong> estar morrendo não recebe o sentido <strong>de</strong> um medo<br />

<strong>da</strong> morte tolerável pelo infante, mas submerge como um “terror sem <strong>no</strong>me” (BION,<br />

1963/2004) <strong>no</strong> psiquismo. Como resultado <strong>da</strong> falta <strong>de</strong> continência <strong>da</strong>s emoções, a<br />

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capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> para suportar tensões fica, substancialmente, prejudica<strong>da</strong>, reforçando a<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong> por soluções <strong>de</strong> apaziguamento e evacuação urgentes.<br />

É importante precisar que a continência envolve, por um lado, uma porosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>no</strong> que concerce à recepção <strong>da</strong>s sensações, por outro, uma soli<strong>de</strong>z para aceitá-las. Caso<br />

contrário, não seria possível a comunicação, transformação e <strong>de</strong>volução dos elementos<br />

projetados por meio <strong>da</strong>s relações objetais. Em termos bionia<strong>no</strong>s, a simbolização <strong>da</strong>s<br />

experiências emocionais traduz-se pela transformação dos elementos β (<strong>da</strong>dos<br />

sensoriais) em elementos α (material íquico ps apto a ser pensado , sonhado,<br />

fantasiado) 12 . Cabe ao objeto primordial, portanto, exercer a metabolização necessária à<br />

constituição <strong>da</strong>s fronteiras do psiquismo, estabelecendo a diferenciação entre elementos<br />

conscientes e inconscientes. Nessas ocasiões, propicia-se ao sujeito a apreensão do<br />

modo <strong>de</strong> processamento <strong>da</strong>s intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s primitivas, o que ele vai passar a exercer por<br />

si só. Isso implica pensar que a função <strong>de</strong> continência intersubjetiva ce<strong>de</strong> lugar ao<br />

exercício <strong>da</strong> continência intrapsíquica.<br />

Evi<strong>de</strong>ncia-se aí que holding e continência <strong>de</strong>sdobram-se em um solo que presi<strong>de</strong><br />

o representacional <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong>s relações objetais primárias, palco <strong>de</strong> acontecimentos<br />

subjetivantes. Na esteira <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias, acompanhemos o pensamento <strong>de</strong> Souza em seu<br />

artigo sobre “Empatia, holding e continência”:<br />

É ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que a dramatici<strong>da</strong><strong>de</strong> do solo pré-representacional bionia<strong>no</strong> é bem mais<br />

próxima do movimento sincopado <strong>da</strong> compulsão à repetição freudiana, na medi<strong>da</strong> em<br />

que forma<strong>da</strong> por elementos <strong>de</strong>sprazerosos que pe<strong>de</strong>m simbolização, enquanto o solo<br />

winnicottia<strong>no</strong> apresenta uma ondulação mais contínua, na medi<strong>da</strong> em que forma<strong>da</strong> por<br />

elementos <strong>da</strong> ilusão onipotente que se esten<strong>de</strong>m na duração <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong><br />

encantamento. No entanto, em ambos a representação é concebi<strong>da</strong> como se formando <strong>no</strong><br />

movimento espiralado <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> diferenciação continua<strong>da</strong> (2012, p. 239-240).<br />

Enten<strong>de</strong>mos o que se passa na relação primária entre a mãe e o bebê em termos<br />

<strong>de</strong> um processuali<strong>da</strong><strong>de</strong> na organização <strong>da</strong>s experiências, o que <strong>de</strong><strong>no</strong>ta que o bebê está<br />

com um outro que é continuamente “auto-regulador” <strong>da</strong>s suas experiências, lançando<br />

12 Para um estudo porme<strong>no</strong>rizado sobre a teoria <strong>da</strong>s transformações na obra bioniana, ver Bion<br />

(1965/1991).<br />

60


mão <strong>da</strong> formulação <strong>de</strong> Daniel Stern 13 (1992) acerca do mundo interpessoal do bebê.<br />

Parece-<strong>no</strong>s que o que encontra-se fun<strong>da</strong>mentalmente em jogo aqui é a maneira sensível<br />

<strong>de</strong> a mãe estar com o filho, nessa mesma direção, o “bebê registra a experiência objetiva<br />

com outros auto-reguladores como uma experiência subjetiva” (Id., ibid., p.93). Com<br />

base nisso, o autor propõe uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> subjetiva não em termos fusionais, mas pelo<br />

âmbito relacional, mediante o qual o mundo subjetivo do bebê une-se ao mundo<br />

subjetivo <strong>da</strong> mãe, sem simetria, nem tampouco coincidência. Consi<strong>de</strong>ramos importante<br />

ressaltar que o contato entre sujeito e objeto aqui não é um contato afirmado <strong>de</strong> saí<strong>da</strong>,<br />

mas uma construção contínua na relação entre eles. Nessas condições, o ajustamento<br />

mater<strong>no</strong> engendra o compartilhamento <strong>da</strong> experiência em uma dimensão sintoniza<strong>da</strong>,<br />

alinha<strong>da</strong> ou empática <strong>de</strong> encontro.<br />

Na linha <strong>de</strong>ssas proposições, o outro winnicottia<strong>no</strong>, pelo viés do holding,<br />

enaltece a sustentação <strong>de</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> existência através <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação ativa às<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do bebê, na medi<strong>da</strong> em que o outro bionia<strong>no</strong> valoriza a transformação<br />

ativa dos <strong>da</strong>dos sensoriais em conteúdos psíquicos pela via <strong>da</strong> continência, tornando a<br />

tensão tolerável. De fato, enquanto para Bion as agruras <strong>da</strong> experiência humana<br />

primitiva são passíveis <strong>de</strong> processamento, mas, <strong>de</strong> certa forma, inevitáveis, Winnicott as<br />

consi<strong>de</strong>ra contigentes e absolutamente dispensáveis. Evi<strong>de</strong>ntemente, tanto a experiência<br />

<strong>de</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong> quanto a <strong>de</strong> transformação concorrem para a constituição do psiquismo,<br />

porém, convém ressaltar que elas representam vértices sutilmente distintos, a partir dos<br />

quais po<strong>de</strong>mos abor<strong>da</strong>r a mesma experiência emocional primitiva (OGDEN, 2004).<br />

Com efeito, as funções <strong>de</strong> holding e continência do objeto primordial favorecem<br />

<strong>de</strong> maneira silenciosa e discreta a integração <strong>da</strong>s experiências psíquicas do indivíduo,<br />

posto o estado relevante <strong>de</strong> indiferenciação entre eu/não-eu. Nessa disposição, tais<br />

funções terminam por <strong>de</strong>ságuar na tolerância dos próprios atributos psíquicos (BION,<br />

1967a/1994, op. cit.) e na confiança <strong>no</strong> fluxo dos processos inter<strong>no</strong>s e na reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

externa (WINNICOTT, 1958/1983) por parte do sujeito. A esse propósito, Green<br />

afirma:<br />

13 Vale precisar que Stern (1992, op. cit.) volta-se para a investigação sobre a posse subjetiva <strong>da</strong> alteração<br />

<strong>da</strong> auto-experiência e, nesse sentido, abor<strong>da</strong> a relação do eu com o outro como uma experiência subjetiva,<br />

não em termos <strong>de</strong> fusão primária, mas como uma experiência real <strong>de</strong> estar com alguém.<br />

61


O que é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância é a construção introjeta<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma estrutura enquadrante<br />

análoga aos braços <strong>da</strong> mãe <strong>no</strong> holding. Esta estrutura enquadrante po<strong>de</strong> tolerar a<br />

ausência <strong>de</strong> representação porque ela mantém seguro o espaço psíquico, tal como o<br />

continente <strong>no</strong>s termos <strong>de</strong> Bion (1997, p. 217. Tradução <strong>no</strong>ssa).<br />

Com base nisso, a ausência do objeto maternante não vai ser experimenta<strong>da</strong><br />

como caos psíquico, mas como convite a uma relativa in<strong>de</strong>pendência e auto<strong>no</strong>mia.<br />

Desse modo, instalam-se as condições necessárias para que o indivíduo consiga regular<br />

seus sobressaltos intensivos, tendo em vista que a presença real do objeto primordial<br />

pô<strong>de</strong> conservar-se como uma presença interna viva e segura. Isso vai permitir que ca<strong>da</strong><br />

vez mais que o sujeito possa dispensar o objeto <strong>de</strong> suas funções cui<strong>da</strong>doras.<br />

A<strong>de</strong>ntramos, assim, o campo <strong>da</strong> negativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, explorado por Green (1993), a partir do<br />

qual o objeto po<strong>de</strong> negativizar-se, entrelaçando o intersubjetivo em intrapsíquico.<br />

III. 2. O Trabalho do negativo<br />

Para avançarmos <strong>no</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> compreensão do estatuto do objeto na<br />

clivagem, vamos lançar mão <strong>da</strong>s contribuições <strong>de</strong> Green sobre o trabalho do negativo,<br />

particularmente, formula<strong>da</strong>s em “Le concept <strong>de</strong> limite” (1976/1990, op. cit.) e Le travail<br />

du négatif (1993, op. cit.). Visamos examinar a intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos acontecimentos que<br />

conduzem a pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong> na direção <strong>da</strong>s ligações com os objetos <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> <strong>da</strong> mistura<br />

primária. Apreciaremos a clivagem como <strong>de</strong>fesa diante do excesso pulsional,<br />

privilegiando agora as nuances dos encontros com os objetos primordiais. É importante<br />

consi<strong>de</strong>rar que estamos <strong>no</strong> terre<strong>no</strong> fronteiriço do psiquismo, colocando em perspectiva o<br />

funcionamento psíquico <strong>da</strong>s situações arcaicas e limites. Vale realçar que as forças <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> clivagem vão se constituir em soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong><strong>de</strong> à <strong>de</strong>limitação forja<strong>da</strong> do<br />

psiquismo, por ocasião <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> indiferenciação caótico.<br />

A partir <strong>da</strong>s linhas <strong>de</strong> investigação anteriores, vimos como as pulsões em excesso,<br />

fruto <strong>de</strong> uma tramitação pulsional traumática, instituem-se como motor <strong>de</strong><br />

engendramento <strong>da</strong> ação <strong>de</strong> corte <strong>da</strong> clivagem. Diante <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> transbor<strong>da</strong>mento<br />

pulsional, caracteriza<strong>da</strong> pela compulsão à repetição, são os próprios processos <strong>de</strong><br />

simbolização que se encontram em xeque. Levando isso em conta, implicaremos certos<br />

<strong>de</strong>sdobramentos do extravio do trabalho do negativo com os efeitos psíquicos <strong>da</strong><br />

62


clivagem <strong>no</strong> eu. Interessa-<strong>no</strong>s, sobretudo, consi<strong>de</strong>rar o funcionamento in extremis que<br />

susbsiste <strong>no</strong> psiquismo predominantemente marcado pelas clivagens, <strong>no</strong> âmbito do<br />

enunciado <strong>de</strong> Green:<br />

a relação <strong>de</strong> objeto toma<strong>da</strong> entre os fogos cruzados <strong>da</strong>s pulsões <strong>de</strong> morte e <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> um<br />

lado, e <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong> amor <strong>de</strong> outro. O trabalho do negativo se resume então a uma questão: como,<br />

face à <strong>de</strong>struição que ameaça to<strong>da</strong>s as coisas, encontrar uma saí<strong>da</strong> para <strong>de</strong>sejar viver e amar?<br />

(2002/2008, p.269)<br />

Como vimos, as funções <strong>de</strong> holding e continência quando suficientemente bem<br />

<strong>de</strong>sempenha<strong>da</strong>s pelos objetos primordiais tornam possível os processos <strong>de</strong> simbolização<br />

nas quais experiências intensivas encontram expressão psíquica. O exercício <strong>de</strong> tais<br />

funções terminam por permitir que o objeto possa ser esquecido, ou seja, submetido às<br />

formas <strong>de</strong> negativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, o que implica em ser <strong>de</strong>sprendido, perdido, rasurado. Nessa<br />

medi<strong>da</strong>, instaura-se uma espécie <strong>de</strong> “presença ausente” do objeto, como sugere<br />

Figueiredo e Cintra (2004), em referência ao pensamento <strong>de</strong> Green, ou ain<strong>da</strong>, uma<br />

“capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> para estar só” na presença do outro, em termos winnicottia<strong>no</strong>s<br />

(WINNICOTT, 1958/1983. op. cit.). Sob esse ângulo, o trabalho do negativo se torna<br />

constitutivo quando a presença dos objetos po<strong>de</strong> ser atenua<strong>da</strong> pela simbolização, <strong>da</strong>ndo<br />

ensejo às séries <strong>de</strong> ligações substitutivas <strong>da</strong> pulsão, cujo horizonte consiste na percepção<br />

do outro como algo exter<strong>no</strong>.<br />

Por esse intermédio, o objeto primordial consegue tornar o próprio impacto <strong>da</strong> força<br />

pulsional tolerável. Não tar<strong>da</strong> muito, o sujeito apreen<strong>de</strong> a natureza <strong>da</strong> sua constituição<br />

pulsional enquanto exigência constante <strong>de</strong> trabalho psíquico, como bem apreciaria<br />

Freud (FREUD, 1915a/1996, op. cit.), criando aptidões para agenciar <strong>no</strong>vos e múltiplos<br />

intrincamentos. Reportamo-<strong>no</strong>s aqui à “função objetalizante”, formula<strong>da</strong> por Green<br />

(1990, op. cit.), a qual correspon<strong>de</strong> precisamente a empreita<strong>da</strong> <strong>de</strong> ligar as pulsões aos<br />

objetos pelas trilhas <strong>de</strong> Eros.<br />

Efetivamente, o trabalho do negativo constitui-se a partir do esquecimento dos<br />

objetos, permitindo que as funções cumpri<strong>da</strong>s pelos objetos sejam apropria<strong>da</strong>s<br />

subjetivamente e incluí<strong>da</strong>s <strong>no</strong> repertório simbólico do sujeito. Não se trata, portanto, <strong>de</strong><br />

um esquecimento radical do objeto, <strong>no</strong> sentido do seu <strong>de</strong>saparecimento (seja como<br />

exter<strong>no</strong> ou inter<strong>no</strong>), na medi<strong>da</strong> em que o objeto <strong>de</strong>ve ser absorvido como função,<br />

transformado-se em estrutura psíquica. Desse modo, <strong>no</strong> mesmo movimento pelo qual os<br />

63


objetos são negativados para <strong>de</strong>ntro, também são apagados para fora. Nessas condições,<br />

cria-se, simultaneamente, um limite entre <strong>de</strong>ntro/fora e uma <strong>de</strong>limitação por <strong>de</strong>ntro<br />

correspon<strong>de</strong>nte ao estabelecimento <strong>da</strong>s instâncias psíquicas. A esse propósito, Green<br />

propõe a existência precisa <strong>de</strong> um “duplo limite” (GREEN, 1982/1990, op. cit.),<br />

salientando o cruzamento do limite responsável pela separação entre inter<strong>no</strong> e exter<strong>no</strong><br />

com o limite que respon<strong>de</strong> pela geografia psíquica. Logo, vale insistir, os objetos<br />

quando são esquecidos tornam-se duplamente negados: para <strong>de</strong>ntro e para fora.<br />

No rumo inverso, a incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> dos objetos em cumprir suas funções parece<br />

potencializar o aspecto disruptivo e ameaçador <strong>da</strong> pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Consi<strong>de</strong>rando o<br />

momento <strong>de</strong> indiferenciação primária, <strong>no</strong> qual os objetos são absolutamente<br />

imprescindíveis para a constituição subjetiva, fica evi<strong>de</strong>nte o efeito traumático <strong>da</strong>s<br />

falhas objetais em jogo. É importante reconhecer as falhas não em termos <strong>da</strong> inevitável<br />

falibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do objeto, tal como <strong>no</strong>s adverte Winnicott (1968/2002, op. cit.) com a<br />

introdução <strong>da</strong> expressão “mãe suficientemente boa”, mas <strong>de</strong> acordo com a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

presença <strong>de</strong>stempera<strong>da</strong> em relação às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s psíquicas do sujeito. Isso <strong>no</strong>s leva a<br />

pensar que uma mãe superprotetora po<strong>de</strong> ser tão falha quanto uma mãe muito relapsa.<br />

Dito isso, interessa-<strong>no</strong>s chamar a atenção para o <strong>de</strong>svio <strong>da</strong> função primordial tanto em<br />

relação ao objeto que falha porque se mostra alheio e inacessível, como pelo seu caráter<br />

absoluto e viscoso. Seja como for, o sujeito fica submetido à presença excessiva e<br />

invasiva do outro, resultando <strong>da</strong>í o engendramento <strong>da</strong> coalescência entre o objeto e a<br />

pulsão. No âmbito <strong>de</strong>ssas questões, acompanhemos o enunciado <strong>de</strong> Figueiredo e Cintra:<br />

(...) quando o ‘objeto absolutamente necessário’ não se <strong>de</strong>ixa esquecer – seja porque nunca pô<strong>de</strong><br />

ser bem encontrado, seja porque não tolera as próprias falhas e as separações, etc. – ele, com seu<br />

excesso, produz uma intrusão intolerável e não dá lugar à representação e ao pensamento, à<br />

<strong>no</strong>stalgia e ao <strong>de</strong>sejo, pois em todos estes processos o objeto <strong>de</strong>ve estar ausente ( 2004, p. 23, op.<br />

cit.).<br />

Ora, <strong>de</strong> fato, não se <strong>de</strong>ixando esquecer, o objeto torna-se indispensável e<br />

insubstituível, dificultando a instalação <strong>da</strong> diferença e <strong>da</strong> separação. As per<strong>da</strong>s tornamse<br />

intoleráveis intervindo nas vicissitu<strong>de</strong>s objetais. Nessas circunstâncias, o objeto<br />

permanece <strong>no</strong> psiquismo do sujeito como outro intrusivo, excessivo e onipresente,<br />

configurando-se, assim, como alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> interna radical. Na esteira <strong>de</strong>ssas<br />

preocupações, vale pontuar aqui os avatares <strong>de</strong> “Luto e melancolia” (FREUD,<br />

1917[1915]/1996, op. cit.), sendo o processo <strong>de</strong> luto pela per<strong>da</strong> do objeto irrealizável. O<br />

64


posicionamento melancólico, mediante o qual “a sombra do objeto caiu sobre o ego”<br />

(Id., ibid., p. 254.), não permite abrir mão do objeto, pois, para tanto, seria preciso<br />

conquistar a sua representação. Trazendo à tona o estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência acentua<strong>da</strong><br />

entre sujeito e objeto em se tratando <strong>de</strong> situações arcaicas e limites, vislumbra-se a<br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> radical <strong>da</strong> per<strong>da</strong> alteritária.<br />

Nessas ocasiões, o excesso <strong>de</strong> presença do objeto não dá lugar aos objetos<br />

substitutos nem à capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> representação, exigindo saí<strong>da</strong>s alternativas para o<br />

sobressalto do outro fora do registro representacional. Se <strong>no</strong>s casos <strong>de</strong> uma “mescla<br />

harmoniosa interpenetrante”, como diria Balint (1968/1993. op. cit), os processos <strong>de</strong><br />

simbolização vão permitir, pouco a pouco, ao sujeito ter a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar <strong>no</strong><br />

objeto ausente – aqui a ausência do objeto torna-se sinônimo <strong>de</strong> caos psíquico.<br />

Demasiado próximo e invasivo; <strong>de</strong>masiado distante e inacessível, o outro sempre<br />

exce<strong>de</strong>. Em última instância, o objeto não po<strong>de</strong> ser negado ou simbolizado, tampouco,<br />

perdido ou substituído. Efetivamente, os <strong>de</strong>scaminhos <strong>da</strong>s vias <strong>da</strong> negativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

dificultam a constituição <strong>de</strong> um espaço psíquico habitado por representações e <strong>de</strong>sejos,<br />

ambos solidários ao funcionamento do princípio <strong>de</strong> prazer.<br />

Seja como for, não basta que o objeto não esteja presente para que não haja angústia<br />

<strong>de</strong> separação nem que o objeto esteja ausente para não haver angústia <strong>de</strong> intrusão, pois o<br />

extravio <strong>da</strong> negativi<strong>da</strong><strong>de</strong> impe<strong>de</strong> a constituição <strong>da</strong> ausência. Nessa linha <strong>de</strong> reflexão, o<br />

objeto apresenta-se, por um lado, como inacessível e fora <strong>de</strong> alcance do investimento,<br />

por outro, como perseguidor e invasor. Por esse prisma, nenhum acordo parece<br />

consi<strong>de</strong>rável e satisfatório. A esse respeito, acompanhemos o pensamento <strong>de</strong> Claudia<br />

Garcia:<br />

De fato, a situação <strong>de</strong> ocupação permanente pelo objeto intrusivo, por um lado, e a ausência<br />

radical do objeto i<strong>de</strong>alizado provocam uma intensa beligerância interna que, paradoxalmente,<br />

serve <strong>de</strong> sustentação i<strong>de</strong>ntitária na ausência <strong>de</strong> limites minimamente <strong>de</strong>finidos. Esta beligerância<br />

excitante protege o sujeito <strong>da</strong> ameaça, seja <strong>de</strong> fusão regressiva, seja <strong>de</strong> dissolução psíquica, e<br />

garante uma certa coerência do eu (2007, p. 131-32).<br />

Configura-se, assim, uma “dupla angústia contraditória” (Green, 1976/1990), o que<br />

implica em uma angústia <strong>de</strong> separação e uma angústia <strong>de</strong> intrusão, tornando evi<strong>de</strong>nte o<br />

rígido e frágil contor<strong>no</strong> entre o sujeito e o objeto. Efetivamente, em <strong>de</strong>corrência <strong>da</strong><br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o objeto ser negativado tanto “para fora” quanto “para <strong>de</strong>ntro”<br />

65


(Figueiredo & Cintra, 2004, op. cit.), a diferenciação entre os limites intersubjetivos<br />

efetua-se <strong>de</strong> forma mal ajambra<strong>da</strong>, na mesma linha em que os limites intrapsíquicos não<br />

se edificam soli<strong>da</strong>mente. Tomando isso em consi<strong>de</strong>ração, pressupõe-se um narcisismo<br />

<strong>de</strong>spe<strong>da</strong>çado e sem a precisão dos contor<strong>no</strong>s. Em busca <strong>de</strong> uma distância segura na<br />

relação com o objeto, muitas vezes, o sujeito recai em uma contradição vacilante entre<br />

<strong>de</strong>sejar o que ele tem medo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r e rejeitar o que está em sua posse, o que <strong>de</strong><strong>no</strong>ta,<br />

claramente, o evitamento do contato e o temor <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos <strong>de</strong>sapontamentos (GREEN,<br />

1979/1990, op. cit.). Entreve-se aí que o alívio <strong>da</strong> sobrecarga <strong>de</strong> tensão se faz ao custo<br />

<strong>de</strong> um certo isolamento psíquico.<br />

III. 3. A clivagem <strong>no</strong> eu: ênfase intersubjetiva<br />

Eis que a<strong>de</strong>ntramos <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> <strong>da</strong> “loucura priva<strong>da</strong>” <strong>no</strong>s termos <strong>de</strong> Green (1979/1990.<br />

op. cit.) ou, na concepção winnicottiana, campo <strong>da</strong>s “agonias primitivas”<br />

(WINNICOTT, 1963/2005) e “inimagináveis” (WINNICOTT, 1962/1983. op. cit.),<br />

“terror sem <strong>no</strong>me” para Bion (1963/2004. op. cit.);eEfeito propriamente proveniente dos<br />

impasses subjetivos do excesso traumático <strong>no</strong> psiquismo. Fora do registro <strong>da</strong><br />

representação, o espaço psíquico passa a ser dominado pela compulsão à repetição sob a<br />

lógica do <strong>de</strong>sespero. De acordo com Green, o psiquismo encontra-se sob uma dupla<br />

influência: “a pressão <strong>da</strong> pulsão para realizar a ação específica e o impacto do objeto<br />

pela sua representação” (1976/1990, op. cit., p. 149. Tradução <strong>no</strong>ssa). Evi<strong>de</strong>ntemente,<br />

para sobreviver torna-se necessário alcançar um mínimo <strong>de</strong> apaziguamento e<br />

estabili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nessa mesma direção, evocamos Ferenczi, para apresentar a clivagem<br />

como a saí<strong>da</strong> dramática diante <strong>de</strong> uma “dor sem conteúdo <strong>de</strong> representação” (1990,<br />

p.64), vi<strong>de</strong> o estado <strong>de</strong> coalescência pulsão-objeto.<br />

É importante precisar que trata-se, contudo, <strong>de</strong> uma solução paradoxal, na medi<strong>da</strong><br />

em que se “salva” do vivido traumático pelo corte psíquico. Por essa via <strong>de</strong> abertura,<br />

vamos consi<strong>de</strong>rar a clivagem com base em uma tripla inscrição <strong>de</strong> corte: incisão entre<br />

<strong>de</strong>ntro/fora; separação intrapsíquica entre representado/não representado;<br />

<strong>de</strong>svinculação entre psique/soma. Nessas circuntâncias, <strong>no</strong> lugar <strong>de</strong> uma construção <strong>de</strong><br />

limites psíquicos, organizadores tópicos, dinâmicos e econômicos do funcionamento<br />

mental, conta-se com a fabricação <strong>de</strong> barreiras protetoras rígi<strong>da</strong>s e frágeis. Por<br />

66


conseguinte, <strong>no</strong>ta-se a obstaculização <strong>da</strong>s vias <strong>de</strong> trânsito internas em prol <strong>da</strong> paralisia<br />

do psiquismo e <strong>da</strong> manutenção dos estados clivados. Com base nisso, subenten<strong>de</strong>-se que<br />

a ação <strong>da</strong> clivagem afeta diretamente as fronteiras psíquicas entre a interiori<strong>da</strong><strong>de</strong> e a<br />

exteriori<strong>da</strong><strong>de</strong>, os limites entre os sistemas psíquicos e a interseção psicossoma. É<br />

importante observar que a interceptação psicossoma perverte a própria <strong>de</strong>finição do<br />

conceito <strong>de</strong> pulsão como conceito limite entre o somático e o psíquico (FREUD,<br />

1915a/1996, op. cit.), engendrando, assim, a <strong>de</strong>sarticulação entre as sensações corporais,<br />

os afetos, as representações e os pensamentos. Dito isso, entrevemos as consequências<br />

subjetivas <strong>no</strong> que se refere ao valor e alcance <strong>da</strong> clivagem <strong>no</strong> eu, <strong>de</strong>sviando,<br />

propriamente, a natureza <strong>da</strong> constituição pulsional. Levando em consi<strong>de</strong>ração tais<br />

consequências, po<strong>de</strong>mos constatar que ao invés <strong>de</strong> um arremedo <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitação<br />

psíquica, o que se apresenta como resultado é a imobili<strong>da</strong><strong>de</strong> do eu e truncamento dos<br />

processo <strong>de</strong> simbolização. Contudo, trata-se <strong>de</strong> uma estratégia <strong>de</strong>fensiva <strong>de</strong><br />

sobrevivência e preferível ante ao colapso do eu.<br />

Em <strong>de</strong>corrência <strong>da</strong> dissolução <strong>da</strong>s fronteiras, com níveis mais ou me<strong>no</strong>s<br />

vulneráveis quanto às possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> expansão e retraimento, sobrevém um estado<br />

subjetivo <strong>de</strong> instabili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Desse modo, instauram-se mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> relações com os<br />

objetos marca<strong>da</strong>s pela contradição e incoerência, tributárias <strong>da</strong> <strong>de</strong>sconexão entre<br />

<strong>de</strong>ntro/fora, psique/soma. Por essa via <strong>de</strong> reflexão, o sujeito move-se ora para <strong>de</strong>ntro,<br />

ora para fora, recaindo em modos <strong>de</strong> ser que englobam <strong>da</strong> introspecção às atuações ou<br />

<strong>da</strong> observação à impulsivi<strong>da</strong><strong>de</strong> (FIGUEIREDO, 2003d). Sendo assim, frequentemente,<br />

a falta <strong>de</strong> coesão traduz-se por uma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> em se sentir presente e existindo,<br />

<strong>de</strong>terminando aí uma posição <strong>de</strong> observador diante do mundo (VERZTMAN, 2002).<br />

Em última instância, o sujeito <strong>de</strong>para-se com a sensação <strong>de</strong> que a vi<strong>da</strong> não vale a pena<br />

ser vivi<strong>da</strong>, ou como diria Winnicott (1960b/1983), em uma sentimento <strong>de</strong> futili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Trata-se aqui <strong>de</strong> um vazio fun<strong>da</strong>mental que <strong>no</strong>tifica acerca <strong>da</strong> falta <strong>de</strong> sentido ou <strong>de</strong><br />

símbolos para o acontecido subjetivo. Além disso, o esvaziamento <strong>de</strong><strong>no</strong>ta significativos<br />

entraves na experimentação <strong>da</strong> vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos tecidos corporais, em benefício do<br />

amansamento <strong>da</strong>s excitações dolorosas e <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> mental protetora.<br />

Nesse nível, vamos lançar mão <strong>da</strong> <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> “refúgio psíquico” <strong>de</strong> John Steiner<br />

(2009) para <strong>de</strong>screver a postura <strong>de</strong> retira<strong>da</strong> e evitamento do contato com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

externa. Nesses estados psíquicos refugiados, o sujeito sente-se protegido <strong>da</strong> dor<br />

67


experimenta<strong>da</strong> por meio dos encontros objetais outrora <strong>de</strong>vastadores, prevenindo <strong>no</strong>vas<br />

<strong>de</strong>cepções. Trata-se aqui <strong>de</strong> um espaço inter<strong>no</strong> relativamente seguro, na medi<strong>da</strong> em que<br />

mesmo o contato com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica convém ser evitado em prol <strong>de</strong> uma calmaria<br />

e anestesiamento intensivo. Tamanha provisão, entretanto, se faz ao custo <strong>de</strong> um<br />

isolamento, ain<strong>da</strong> que alguns contatos possam ser estabelecidos <strong>de</strong> maneira superficial e<br />

robótica, por vezes, perversos. Steiner <strong>no</strong>s traz algumas imagens, tais como gangues<br />

mafiosas, organizações empresariais, internatos escolares, seitas relogiosas, gover<strong>no</strong>s<br />

totalitários, para ilustrar e enfatizar o caráter tirânico e admirado do sistema em refúgio.<br />

Contudo, refugiar-se parece ser uma alternativa ao dilaceramento do eu.<br />

Apreen<strong>de</strong>-se aí o terre<strong>no</strong> princeps <strong>da</strong> pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong> pelo viés <strong>de</strong> Tânatos, ensejando<br />

a disjunção <strong>no</strong> circuito pulsional. Nesse contexto, ocorre um <strong>de</strong>sinvestimento na<br />

dimensão propriamente pulsional, o que compreen<strong>de</strong> a “função <strong>de</strong>sobjetalizante”<br />

(Green, 1990, op. cit.), posto a amálgama pulsão-objeto. Desse modo, as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> investimento pulsional <strong>no</strong> objeto são ataca<strong>da</strong>s tanto quanto <strong>no</strong> tocante ao eu.<br />

Comparece aqui a expressão <strong>da</strong> pulsão <strong>de</strong> morte, vigente como aspiração ao na<strong>da</strong>, ao<br />

nível zero <strong>de</strong> excitação, à inércia. Efetivamente, a tentativa <strong>de</strong> apagar a presença objetal<br />

traumática implica em um apagamento <strong>de</strong> si mesmo, ou seja, a suposta liber<strong>da</strong><strong>de</strong> em se<br />

<strong>de</strong>sligar do objeto vale o <strong>de</strong>sligamento <strong>de</strong> si, como vislumbramos com a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong><br />

refúgio. Logo, o retraimento objetal é acompanhado pelo distanciamento <strong>de</strong> si, po<strong>de</strong>ndo<br />

chegar ao estado subjetivo <strong>de</strong> não se perceber mais vivo e real, operação por excelência<br />

<strong>da</strong> clivagem. Trata-se <strong>de</strong> justamente <strong>da</strong> resposta dramática ante a incidência radical do<br />

objeto, mediante a qual, o sujeito “entrega a sua alma” (FERENCZI, 1990, op. cit. p.<br />

73), como medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> resistência. Por esse viés, a clivagem comporta o sacrifício <strong>de</strong> uma<br />

parte <strong>de</strong> si em prol <strong>da</strong> sobrevivência psíquica, tal como explicitado por Ferenczi<br />

(1921/1988) com o processo <strong>de</strong> autotomia. Esse processo diz respeito à artimanha que<br />

alguns seres vivos elementares possuem <strong>de</strong> subtrair partes do corpo, fonte <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprazer<br />

ou ferimento, para permitir a salvaguar<strong>da</strong> do conjunto. Com isso, o sujeito “divi<strong>de</strong>-se<br />

num ser psíquico <strong>de</strong> puro saber que observa os eventos a partir <strong>de</strong> fora, e num corpo<br />

insensível” (Ferenczi, 1990, op. cit. p. 142).<br />

Na esteira <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias, o <strong>de</strong>sligamento objetal adquire ares <strong>de</strong> auto-suficiência e<br />

prematuração patológica, glória íntima e pe<strong>no</strong>sa, cuja meta é escapar <strong>da</strong> interferência do<br />

objeto e do caos pulsional. A imagem onírica do “bebê sábio”, menciona<strong>da</strong> por Ferenczi<br />

68


(1923/1988), assume aqui a sua expressão <strong>de</strong> sentido, posto que evi<strong>de</strong>ncia a dimensão<br />

paradoxal <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tomar conta <strong>de</strong> si, função que cabe aos objetos primordiais.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, um brusco amadurecimento, ou seja, um envelhecimento adquirido às<br />

pressas se realiza, mediante a exploração <strong>da</strong> mente e ao preço do esgarçamento <strong>da</strong><br />

afetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Marca-se aí um claro diálogo com o artigo “A mente e a sua relação com o<br />

psicossoma” (WINNICOTT, 1949/2000), <strong>no</strong> qual Winnicott postula que o pensamento<br />

adquire a função <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>do, por ocasião <strong>da</strong>s falhas objetais <strong>no</strong> cumprimento <strong>de</strong> suas<br />

funções. Trata-se, certamente, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento intelectual pelo vetor traumático,<br />

resultado <strong>de</strong> uma extrema a<strong>da</strong>ptação à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa. Isso conduz a uma “progressão<br />

traumática”, conforme propõe Ferenczi (1933/ 1992, op. cit.), como proteção diante <strong>da</strong>s<br />

ameaças <strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> incog<strong>no</strong>scível. Por essa via <strong>de</strong> entendimento, abor<strong>da</strong>mos a<br />

intransigência <strong>da</strong>s exigências superegóicas proeminente nas subjetivações cliva<strong>da</strong>s,<br />

especialmente, <strong>no</strong> que concerne ao incremento <strong>da</strong> crítica diante do fracasso em<br />

prescindir inteiramente do objeto e recompor-se do excesso intensivo por própria conta.<br />

Aqui cabe uma observação, acompanhando a proposta <strong>de</strong> Figueiredo (2012),<br />

explicita<strong>da</strong>mente atravessa<strong>da</strong> pelas elaborações kleinianas, <strong>no</strong> tocante ao supereu como<br />

a instância psíquica que traz fun<strong>da</strong>mentalmente consigo as marcas <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong><br />

objeto <strong>no</strong> campo intrapsíquico. Sob essa perspectiva, as falhas dos objetos primordiais<br />

inesquecíveis, mais ou me<strong>no</strong>s insuficientes, sedimentam-se como “rudimentos do<br />

campo superegóico, repleto <strong>de</strong> fragmentos e estilhaços mal integrados que pairam como<br />

que ‘acima do eu’, o envolvem, e sobre ele lançam suas sombras e assombrações (Id.,<br />

ibid., p. 257). Referimo-<strong>no</strong>s aqui a um supereu anterior à herança do complexo <strong>de</strong><br />

Édipo e situado, portanto, <strong>no</strong> momento <strong>da</strong> constituição subjetiva, logo, contemporâneo à<br />

organização do psiquismo. Configura-se, assim, um cenário cruel e aterrorizante,<br />

levando-se em conta a combinação <strong>de</strong>sse supereu primitivo com as forças pulsionais<br />

intoleráveis do id, <strong>no</strong> âmbito dos impasses na condução <strong>da</strong> ligação <strong>da</strong>s pulsões aos<br />

objetos, próprias <strong>da</strong> negativi<strong>da</strong><strong>de</strong> extravia<strong>da</strong>. Nessas circunstâncias, portanto, id e<br />

supereu articulam-se a favor <strong>da</strong> disjunção pulsional.<br />

É preciso, então, consi<strong>de</strong>rar a constituição <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong>fensivo <strong>no</strong> limite <strong>da</strong><br />

não existência, loucura e morte, pois os excessos e a <strong>de</strong>sproporção exagera<strong>da</strong> são<br />

perniciosos nas origens <strong>da</strong> organização subjetiva. Para assegurar a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

psíquica, cria-se uma espécie <strong>de</strong> “anjo <strong>da</strong> guar<strong>da</strong> inter<strong>no</strong>” (FERENCZI, 1923/1990. op.<br />

69


cit.), uma anestesia calmante (MELLO & HERZOG, 2008, op.cit.) e uma imobili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

asilar, ambos suporte <strong>de</strong> frágeis fronteiras psíquicas, em <strong>de</strong>trimento do prazer e <strong>de</strong> uma<br />

vi<strong>da</strong> com sentido. De fato, o efeito dos processos <strong>da</strong> clivagem na cena psíquica resulta<br />

na criação <strong>de</strong> núcleos incomunicáveis, os quais Green (1976/1990, op. cit.) aproxima <strong>de</strong><br />

arquipélagos isolados. Reforçando a alusão pela perspectiva greeniana, as ilhas do<br />

arquipélago seriam equivalentes aos lugares possivelmente habitados e o mar em volta<br />

correspon<strong>de</strong>nte ao vazio que as separa. De <strong>no</strong>ssa parte, enten<strong>de</strong>mos que tanto as ilhas<br />

isola<strong>da</strong>s do eu quanto a imensidão do vazio do mar informam sobre o aparato psíquico<br />

para o psicanalista-navegador que consulta os mapas. Contudo, <strong>no</strong> âmbito insular, os<br />

estilhaçamentos psíquicos, positivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s pelo avesso, subsistem em meio aos ventos e<br />

marés.<br />

III. 3. 1. Sistema fechado e povoado inter<strong>no</strong><br />

Para <strong>no</strong>s comunicarmos com as ilhas cliva<strong>da</strong>s resultantes do traumatismo<br />

imposto pelo excesso pulsional correlato <strong>da</strong>s falhas dos objetos primordiais, vamos<br />

lançar mão <strong>de</strong> algumas formulações <strong>de</strong> Ronald Fairbairn, para quem to<strong>da</strong> subjetivação<br />

comporta uma certa esquizoidia (FAIRBAIRN, 1974). Dessa perspectiva, as<br />

insuficiências objetais são inevitáveis, <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>-se sempre um grau <strong>de</strong> esquizoidia<br />

subjacente, cujos indícios po<strong>de</strong>m se manifestar mais profun<strong>da</strong>mente ou mais<br />

superficialmente, <strong>de</strong> acordo com os sofrimentos experimentados ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. É<br />

importante precisar que o fenôme<strong>no</strong> esquizói<strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mental consiste na presença <strong>de</strong><br />

clivagens <strong>no</strong> eu, via pela qual, elas se tornam um processo <strong>de</strong>fensivo que se confu<strong>de</strong><br />

com a própria constituição do psiquismo. Nessa mesma direção e na companhia <strong>de</strong><br />

Figueiredo (2003e), sublinhamos que to<strong>da</strong> trama conceitual <strong>de</strong> Fairbairn inscreve-se <strong>no</strong><br />

campo <strong>de</strong> “Além do princípio <strong>de</strong> prazer” (FREUD, 1920/1996, p. cit.), na medi<strong>da</strong> em<br />

que se reporta às subjetivações conforma<strong>da</strong>s <strong>no</strong> contexto <strong>da</strong> loucura precoce, por<br />

ocasião <strong>da</strong> <strong>de</strong>pendência radical do outro. Dessa perspectiva, vale adiantar que o<br />

enlouquecimento se <strong>da</strong>ria quando o bebê sente que não <strong>de</strong>ve amar nem po<strong>de</strong> ser amado,<br />

temendo, portanto, o seu próprio movimento pulsional. Dito isso, passemos para o<br />

mergulho <strong>no</strong> funcionamento psíquico clivado, buscando a vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> e a <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

constituintes <strong>da</strong>s relações intrapsíquicas.<br />

70


Em “Endopsychic structure consi<strong>de</strong>red in terms of object-relationships”<br />

(1944/1986), Fairbairn vai propor a existência <strong>de</strong> uma estrutura endopsíquica composta<br />

por três partes do eu – sabotador inter<strong>no</strong>, ego libidinal e eu central – e pelos objetos<br />

inter<strong>no</strong>s – objeto rejeitador, objeto excitante e objeto bom 14 . Nessa lógica, po<strong>de</strong>mos<br />

consi<strong>de</strong>rar que se trata <strong>de</strong> uma estrutura engendra<strong>da</strong> em <strong>de</strong>corrência <strong>da</strong>s falhas dos<br />

objetos primordiais <strong>no</strong> exercício <strong>de</strong> suas funções <strong>de</strong> holding e continência, com vistas à<br />

organizar o que se passa internamente. Valendo-se <strong>da</strong> gramática fairbairniana, cabe<br />

enfatizar que a pulsão busca a ligação com os objetos e não apenas a mera <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong><br />

tensão pulsional, <strong>de</strong> forma que o impasse esquizói<strong>de</strong> essencial situa-se entre amar ou<br />

não amar, o que, por sua vez, <strong>de</strong>sdobra-se tanto em ser amado na sua singulari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

quanto em ter o seu amor recebido como algo valioso (Ibid.,1941/1986).<br />

Na linha <strong>de</strong>ssas proposições, diante do objeto absoluto e excessivo em sua<br />

ausência ou presença intrusiva, isto é, quando o objeto não po<strong>de</strong> ser esquecido e<br />

substituído, a alternativa encontra<strong>da</strong> seria o afastamento dos objetos exter<strong>no</strong>s e a volta<br />

<strong>da</strong> ligação para os objetos inter<strong>no</strong>s. Dito <strong>de</strong> outro modo, na medi<strong>da</strong> em que é impossível<br />

livrar-se dos objetos dos quais se <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, resta internalizá-los, abrindo-se mão <strong>da</strong><br />

relação genuína com os objetos exter<strong>no</strong>s, mediante o <strong>de</strong>scolamento <strong>de</strong> si próprio e o<br />

incremento do investimento na interiori<strong>da</strong><strong>de</strong>. Assim, quando os objetos exter<strong>no</strong>s são<br />

bons e maus, presentes e ausentes, excitantes e rejeitadores, <strong>de</strong> maneira aleatória, a<br />

clivagem dos objetos internamente permite a instauração <strong>de</strong> uma relação mais garanti<strong>da</strong>,<br />

amena e conheci<strong>da</strong> com os objetos inter<strong>no</strong>s. Nessas condições, a internalização forja<br />

uma espécie <strong>de</strong> registro catalogado dos aspectos traumáticos do objetos,<br />

compartimentando as experiências psíquicas.<br />

Aqui cabe uma pequena observação lateral, na medi<strong>da</strong> em que <strong>no</strong>s parece<br />

importante reintroduzir o conceito ferenczia<strong>no</strong> <strong>de</strong> “introjeção” (FERENCZI, 1909/1988,<br />

op. cit.), como um processo permanente por meio do qual se dá a integração do outro <strong>no</strong><br />

psiquismo. Nas palavras <strong>de</strong> Ferenczi, “é a esta união entre os objetos amados e nós<br />

mesmos, esta fusão <strong>de</strong>sses objetos com o <strong>no</strong>sso ego, que chamei <strong>de</strong> introjeção”<br />

(1912/1988, op. cit. p. 61), que resulta em uma expansão na esfera do eu. Trata-se,<br />

14 Vale insistir que tal estrutura se inscreve <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong>s inquietações conceituais <strong>da</strong> reviravolta dos a<strong>no</strong>s<br />

20, a partir <strong>da</strong> qual Freud introduz uma <strong>no</strong>va gerografia <strong>da</strong> mente, em termos <strong>de</strong> eu, id e supereu. Com<br />

isso, apostamos que a formulação alternativa <strong>de</strong> Fairbairn coloca em perspectiva as relações <strong>de</strong> objeto<br />

com a pulsão, permitindo ampliar o alcan<strong>de</strong> <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metapsicologia freudiana.<br />

71


portanto, <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> organização <strong>da</strong>s relações objetais, “reverso <strong>da</strong> ação <strong>da</strong> pulsão<br />

<strong>de</strong> morte” (PINHEIRO, 1995, p. 49), mediante o qual o psiquismo se constitui. Em<br />

última análise, po<strong>de</strong>mos afirmar que introjetar significa simbolizar, trilha pela qual as<br />

experiências alteritárias revestem-se <strong>de</strong> sentido. To<strong>da</strong>via, quando as relações com a<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa configuram-se <strong>de</strong> maneira majoritariamente traumática e<br />

<strong>de</strong>sestruturante, não há como dotá-las <strong>de</strong> um significado e a introjeção se torna<br />

impossível.<br />

Nessa ótica <strong>de</strong> reflexão, vale abor<strong>da</strong>r a diferenciação entre introjeção e<br />

“introjeção do agressor” (FERENCZI, 1933/1992, op. cit.), ou, como sugere Abraham e<br />

Torok (1987/1995), entre introjeção e “incorporação”, para <strong>no</strong>s aju<strong>da</strong>r <strong>no</strong> entendimento<br />

<strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> introjeção. Nesses casos, o objeto exter<strong>no</strong> traumatizante torna-se<br />

intrapsíquico e <strong>de</strong>saparece em seu caráter <strong>de</strong> objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, entretanto, o que é vivido não<br />

consegue “fazer sentido” para o sujeito, permenecendo encriptado ou fora <strong>de</strong> conexão.<br />

Isso <strong>no</strong>s leva a pensar na ação <strong>de</strong> corte <strong>da</strong> clivagem através <strong>da</strong> navalha <strong>da</strong> interiorização<br />

dos objetos primordiais traumatizantes. Retomando Fairbairn, consi<strong>de</strong>ramos que o<br />

indivíduo internaliza os objetos, colocando para <strong>de</strong>ntro do eu o <strong>de</strong>sencontro objetal, <strong>de</strong><br />

forma que tais objetos passam a compor o psiquismo Nessa medi<strong>da</strong> mesmo, os objetos<br />

inter<strong>no</strong>s encerram partes do eu i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong>s com os objetos exter<strong>no</strong>s, tal como <strong>no</strong>s<br />

esclarece Og<strong>de</strong>n (1994, op. cit.). .<br />

Passemos, então, às incidências <strong>de</strong> corte constituintes <strong>da</strong> estrutura endopsíquica<br />

<strong>de</strong> Fairbairn (1944/1986, op. cit.). Tratar-se-ia, precisamente, <strong>de</strong> conceber a maneira<br />

como os objetos primordiais excessivos em presença ou ausência são interiorizados.<br />

Apreen<strong>de</strong>-se, assim, que a estrutura refere-se ao esforço <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> certas versões<br />

compartimenta<strong>da</strong>s do objeto primordial. Nessa direção, os aspectos <strong>da</strong> mãe excitante<br />

são agrupados <strong>no</strong> objeto inter<strong>no</strong> excitante e os aspectos <strong>da</strong> mãe rejeitadora reúnem-se <strong>no</strong><br />

objeto inter<strong>no</strong> rejeitador. Tais versões cliva<strong>da</strong>s e cataloga<strong>da</strong>s do objeto correspon<strong>de</strong>m a<br />

versões cliva<strong>da</strong>s <strong>no</strong> eu, o que implica na organização <strong>de</strong> eus subsidiários: o eu seduzido<br />

(libidinal) e o eu frustrado (sabotador inter<strong>no</strong>). Da mesma forma, o vértice mater<strong>no</strong> que<br />

cumpriu as funções <strong>de</strong> holding e continência forma o eu central, o qual torna-se<br />

funcional, ativo e relativamente relacional. Contudo, frente ao par <strong>de</strong> objetos opostos e<br />

perturbadores, tanto o eu central observador quanto os objetos exter<strong>no</strong>s reais tornam-se<br />

frágeis e <strong>de</strong>svitalizados.<br />

72


Certamente, a possível interação com os objetos exter<strong>no</strong>s <strong>de</strong>sdobra-se por meio<br />

<strong>de</strong>ssa polari<strong>da</strong><strong>de</strong> extrema<strong>da</strong>, instável e cíclica dos objetos inter<strong>no</strong>s: excitantes e<br />

rejeitadores. Tanto o estabelecimento <strong>de</strong> um contato ultra libidinal com a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

quanto o contato muito anestesiado servem para a manutenção <strong>da</strong> indiferenciação<br />

eu/não-eu primária, reproduzindo, portanto, com os objetos exter<strong>no</strong>s, as relações<br />

estabeleci<strong>da</strong>s internamente. Efetivamente, com isso, não há encontro com os objetos<br />

enquanto exteriores nem rediagramação dos limites psíquicos 15 . Nesse bojo <strong>de</strong> questões,<br />

per<strong>de</strong>r os objetos inter<strong>no</strong>s implica em per<strong>de</strong>r-se completamente. Diante disso, parece<strong>no</strong>s<br />

interessante associar o pólo excitante e o pólo rejeitador com as angústias <strong>de</strong><br />

engolfamento e as angústias <strong>de</strong> abando<strong>no</strong> respectivamente, como <strong>de</strong>sgina Green<br />

(1976/1990, op. cit.).<br />

Seja como for, interessa-<strong>no</strong>s solidificar a compreensão do fato <strong>de</strong> que o<br />

traumático <strong>da</strong>s relações objetais é jogado para o interior do aparato psíquico sem<br />

refinamento simbólico. Nessas ocasiões, ocorre uma conformação do psiquismo em<br />

submetimento aos <strong>de</strong>sencontros traumáticos. Sem dúvi<strong>da</strong>, os objetos exter<strong>no</strong>s<br />

continuam sendo imprescindíveis, apesar <strong>da</strong>s falhas <strong>no</strong> contexto <strong>de</strong> acentua<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>pendência ou, mais ain<strong>da</strong>, em função <strong>de</strong>las, valorizando a internalização via clivagem<br />

<strong>da</strong> esfera objetal como uma solução não representacional relativamente viável, a fim <strong>de</strong><br />

alcançar algum alívio. É importante observar que os estados clivados mantêm um certo<br />

laço objetal, ain<strong>da</strong> que esfarrapado e falseado, posto o <strong>de</strong>samparo fun<strong>da</strong>mental e a<br />

<strong>de</strong>pendência dos mesmos para a sobrevivência. O que acontece é que o sujeito afrouxa<br />

os vínculos com os objetos exter<strong>no</strong>s para não se <strong>de</strong>ixar à mercê do seu vaivém<br />

imprevisível.<br />

Retomando a alusão insular, avistamos ilhas distantes, isola<strong>da</strong>s e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />

umas <strong>da</strong>s outras, tal como entrevemos uma coleção <strong>de</strong> experiências à <strong>de</strong>riva <strong>no</strong><br />

psiquismo. A partir <strong>da</strong> elaboração <strong>de</strong> objetos inter<strong>no</strong>s enquanto partes <strong>de</strong> si mesmo, os<br />

traumas são aglutinados, mas não existe uma integração psíquica, sendo uma<br />

<strong>de</strong>limitação improvisa<strong>da</strong> e artificial entre eu/não-eu. Ora, com efeito, se não há<br />

organização na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa, convém implementar um arremedo <strong>da</strong> organização <strong>no</strong><br />

15 À título <strong>de</strong> ilustração, po<strong>de</strong>mos evocar a construção <strong>de</strong> situações sociais frequentes na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, cuja<br />

combinação <strong>de</strong> excitação e amortecimento, típica do ambiente dos estados-limites, parecem estar<br />

presentes, como nas festas rave por meio do uso <strong>de</strong> drogas e hits eletrônicos repetitivos (FIGUEIREDO,<br />

2003e, op. cit.).<br />

73


mundo inter<strong>no</strong>, mesmo que à custa do sentido <strong>de</strong> estar vivo. Sem possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ligação genuína com o outro, sobrevém o vazio por obra do silenciamento <strong>da</strong>s forças<br />

pulsionais encapsula<strong>da</strong>s na psique.<br />

Compreen<strong>de</strong>-se, assim, como o não encontro <strong>da</strong> pulsão com os objetos ocupa um<br />

papel prepon<strong>de</strong>rante <strong>no</strong> acionamento <strong>da</strong>s clivagens e edificação <strong>de</strong> um eu pretensamente<br />

auto-suficiente em <strong>de</strong>trimento dos objetos primordiais falhos em <strong>de</strong>masia. Além disso, o<br />

impulso <strong>de</strong> ligação insistentemente não intermediado pelo objeto extrai a potência do<br />

próprio impulso, convergindo para o sentimento <strong>de</strong> que a busca objetal é inútil ou má.<br />

Instala-se, assim, uma <strong>de</strong>sconfiança em relação ao outro e aos próprios impulsos,<br />

expressa por um dilema irreconciliável entre aproximar-se e afastar-se dos objetos<br />

(MELLO, 2008). Dito <strong>de</strong> outro modo, o investimento alteritário configura-se como uma<br />

ameaça incog<strong>no</strong>scível, uma vez que o sujeito po<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir o objeto ou ser <strong>de</strong>struído por<br />

ele. Nesse contexto, as falhas objetais não são apreendi<strong>da</strong>s enquanto falhas do objeto,<br />

mas como excesso pulsional, cuja autoria parece inimputável. A <strong>de</strong>scoberta <strong>da</strong><br />

externali<strong>da</strong><strong>de</strong> se realiza, então, pela face perigosa.<br />

Nessas condições, <strong>de</strong>senvolve-se o que Fairbain (1958/1994) <strong>de</strong>signa como um<br />

“sistema fechado”, eficiente na manutenção do sujeito <strong>de</strong>ntro do seu mundo inter<strong>no</strong>, o<br />

que termina por arrefecer tanto a relação alteritária quanto a pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tal sistema<br />

seria, propriamente, o outro <strong>no</strong>me <strong>da</strong> pulsão <strong>de</strong> morte, operação silenciosa, muitas<br />

vezes, escamotea<strong>da</strong> pelo barulho <strong>de</strong> Eros. Tal fechamento – “a maior <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as fontes<br />

<strong>de</strong> resistência” (Id., ibid., p, p. 84. Tradução <strong>no</strong>ssa), diga-se <strong>de</strong> passagem – seria,<br />

portanto, um recurso em benefício <strong>da</strong> organização dos contatos caóticos com os objetos<br />

fun<strong>da</strong>mentais para o existir.<br />

A esse propósito, instala-se uma “neutralização energética”, tal como alerta<br />

Roussillon (1999, op. cit.), que consiste em uma evitação, tanto quanto possível, dos<br />

investimentos que arrisquem a reativação do transbor<strong>da</strong>mento intensivo. Em<br />

<strong>de</strong>corrência, variações qualitativas e quantitativas, naturais do contato huma<strong>no</strong>, são<br />

terminantemente evita<strong>da</strong>s. Fica evi<strong>de</strong>nte aqui que a <strong>de</strong>sarticulação psíquica como uma<br />

ma<strong>no</strong>bra <strong>de</strong> sobrevivência, para seguir adiante <strong>de</strong> qualquer maneira. Entretanto, mesmo<br />

que a ocupação do mundo inter<strong>no</strong> se apresente como uma alternativa, precisamos<br />

consi<strong>de</strong>rar o vazio <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> existir e o <strong>de</strong>smoronamento à espreita <strong>de</strong> um vacilo.<br />

Em meio a multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> eus e objetos fairbairnia<strong>no</strong>s, visamos,<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente, <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r a vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> e percurssão subsistente na interiori<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

74


Po<strong>de</strong>mos <strong>no</strong>s arriscar a dizer que o embate está aí, correndo por um <strong>de</strong>ntro em<br />

paralelo 16 . Estar fora <strong>de</strong> si, fora <strong>de</strong> contato, fora do tempo e do espaço, fora <strong>da</strong><br />

representação, parece ter sido a providência necessária para suportar o trauma <strong>da</strong><br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ligar-se aos objetos. Contudo, mesmo exposto às clivagens<br />

profun<strong>da</strong>s, habitando uma área retraí<strong>da</strong>, o sujeito po<strong>de</strong> cumprir um protocolo<br />

existencial, tornando-se uma espécie <strong>de</strong> morto-vivo. Por essa via <strong>de</strong> entendimento, o<br />

relacionamento com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa precisa se <strong>da</strong>r <strong>de</strong> uma forma que preserve a<br />

carapaça <strong>de</strong>fensiva custosamente adquiri<strong>da</strong>, ou seja, com o mínimo <strong>de</strong> interferência<br />

possível.<br />

Certamente, isso remete aos enunciados winnicottia<strong>no</strong>s a respeito do falso-self ,<br />

cuja função <strong>de</strong>fensiva consiste em “ocultar e proteger o self ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, o que quer que<br />

esse possa ser” (WINNICOTT, 1960b, p.130), e conformar-se às exigências do meio.<br />

Com efeito, diferentes gra<strong>da</strong>ções apresentam-se na organização do falso self, po<strong>de</strong>ndo,<br />

<strong>no</strong> extremo <strong>da</strong> patologia, ocupar todo o modo <strong>de</strong> existência do indivíduo, <strong>de</strong> maneira<br />

que o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro self permanece oculto, até <strong>no</strong> extremo oposto <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>, encontrado<br />

conjuntamente com o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro self. Em contraparti<strong>da</strong>, não se po<strong>de</strong> dizer que o<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro self tenha graus, na medi<strong>da</strong> em que ele simplesmente <strong>de</strong>fine o que é<br />

“singular e original em ca<strong>da</strong> pessoa” (PHILLIPS, 2006), fonte <strong>da</strong> espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Contudo, não <strong>no</strong>s parece interessante pensar, sobretudo, clinicamente, numa parte do<br />

self como sendo falsa<br />

17<br />

e <strong>no</strong>utra como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira. Em última instância, ambas as partes<br />

<strong>de</strong>signam o que é próprio do indivíduo, seja um sentimento <strong>de</strong> futili<strong>da</strong><strong>de</strong>, seja a<br />

expressão autêntica do vivo. Nesse sentido, acompanhamos a formulação <strong>de</strong> Pontalis,<br />

segundo a qual, “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro e falso não <strong>de</strong>vem ser entendidos como quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

inerentes ao indivíduo. Não são os predicados do sujeito” (1975/2005, p.200). O que<br />

importa, portanto, encontra-se na dinâmica <strong>da</strong> relação entre essas partes. Vale dizer que<br />

quanto mais <strong>de</strong>marca<strong>da</strong> a cisão entre o falso e o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro self, mais difícil será<br />

transitar entre a interiori<strong>da</strong><strong>de</strong> e a exteriori<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

16 Tomando isso em consi<strong>de</strong>ração, evocamos o acesso privilegiado <strong>da</strong>s subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s cliva<strong>da</strong>s ao campo<br />

do intrapsíquico, em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> em estabelecer contato com a exteriori<strong>da</strong><strong>de</strong>. Apesar <strong>da</strong><br />

aparente imobili<strong>da</strong><strong>de</strong> subjetiva, conferimos um lugar significativo <strong>no</strong> tocante à possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> em <strong>da</strong>r-se<br />

conta do funcionamento inter<strong>no</strong>, na medi<strong>da</strong> em que não se trata <strong>de</strong> uma insensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ou frieza, mas <strong>de</strong><br />

uma impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> contato, posto que não há como tocar o outro sem ser tocado.<br />

17 Heitor O’Dwyer <strong>de</strong> Macedo (1999) sugere o termo self falsificado a falso self com o intuito <strong>de</strong><br />

privilegiar a participação ativa do indivíduo na criação <strong>de</strong>sta falsificação necessária à sua sobrevivência,<br />

medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> proteção <strong>da</strong> sua “íntima-intimi<strong>da</strong><strong>de</strong>”.<br />

75


Ora, não obstante, apesar <strong>de</strong> fechado em si mesmo, apesar <strong>da</strong>s inúmeras fen<strong>da</strong>s<br />

na história e <strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong>s subjetivas, acreditamos que a busca pela ligação com o<br />

objeto não cessa nunca. Nesse sentido, tratar-se aqui, sobretudo, <strong>de</strong> uma condição<br />

subjetiva <strong>de</strong> ser e estar <strong>no</strong> mundo. Por esse viés, o aparente vazio existencial <strong>de</strong>svela um<br />

“cheio <strong>de</strong>mais” (FIGUEIREDO, 2009b) <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> <strong>da</strong> experiência psíquica, tal como<br />

enaltece Fairbairn (1944/1986, op. cit.) com o povoado inter<strong>no</strong>. Entrevemos, portanto,<br />

um rasgo <strong>de</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>; alguém que aí insiste. Eis, a <strong>no</strong>ssa aposta.<br />

76


IV. A clínica <strong>da</strong> clivagem<br />

Há um silêncio <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim.<br />

E esse silêncio tem sido a fonte <strong>de</strong> minhas palavras.<br />

Clarice Lispector<br />

Most people don't k<strong>no</strong>w what they want or feel.<br />

And for everyone, myself inclu<strong>de</strong>d,<br />

It's very difficult to say what you mean<br />

when what you mean is painful.<br />

John Cassavetes<br />

Parece-<strong>no</strong>s comum afirmar hoje que os pacientes não são mais os mesmos dos<br />

tempos vienenses, o que vem continua<strong>da</strong>mente exigindo <strong>no</strong>vas ficções teóricas do<br />

aparelho psíquico e modificações <strong>no</strong> dispositivo terapêutico clássico, <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong><br />

ampliação e precisão do objeto <strong>da</strong> psicanálise. Tomamos como pressuposto uma certa<br />

circulari<strong>da</strong><strong>de</strong> , mas, não coincidência, entre a teoria e a prática, o que implica em pensar<br />

que os impasses clínicos terminam por exigir reposicionamentos teóricos que, por sua<br />

vez, refletem <strong>no</strong> psicanalisar e assim por diante. De fato, o intervalo entre ambos –<br />

teoria e prática – se apresenta como motor para avanços e a<strong>da</strong>ptações, tal como<br />

po<strong>de</strong>mos testemunhar ao longo <strong>da</strong> evolução <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Freud, <strong>no</strong>ta<strong>da</strong>mente, pontua<strong>da</strong><br />

pela elaboração <strong>da</strong> primeira e segun<strong>da</strong> metapsicologias.<br />

Dito isso, preten<strong>de</strong>mos aqui conjecturar sobre as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> instaurar uma<br />

“situação analisante”, <strong>no</strong>s valendo <strong>da</strong> <strong>no</strong>ção proposta por J-L. Donnet (2005), <strong>no</strong> sentido<br />

<strong>de</strong> tornar dinâmica, viva e operante a clínica <strong>da</strong> clivagem. Sustentando o pressuposto <strong>de</strong><br />

que as experiências atravessa<strong>da</strong>s pelo excesso pulsional encontram-se <strong>no</strong> coração do<br />

psiquismo proeminentemente clivado, vamos investigar as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> trocas<br />

analíticas propícias aos processos <strong>de</strong> simbolização do vivido traumático em jogo,<br />

repensando a escuta, o modo <strong>de</strong> ser e as intervenções do analista. Consi<strong>de</strong>ramos que o<br />

que insurge <strong>no</strong> encontro clínico <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> essencialmente dos processos psíquicos do<br />

paciente, mas, convém, evi<strong>de</strong>ntemente, ao analista estar apto para apreendê-los,<br />

introduzindo alguma diferença na repetição. Para tanto, o analista precisa estar<br />

77


sensivelmente conectado com o que se passa <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> <strong>da</strong>s transferências e contratransferências<br />

sessão após sessão.<br />

Por essa via <strong>de</strong> entendimento, ao <strong>no</strong>s <strong>de</strong>pararmos com impedimentos <strong>no</strong> que<br />

concerne o an<strong>da</strong>mento do processo analítico, <strong>no</strong>s interrogamos acerca do funcionamento<br />

subjetivo em questão e <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação do dispositivo terapêutico. Com<br />

base nisso, empreen<strong>de</strong>mos <strong>no</strong> início do <strong>no</strong>sso percurso a procura por balizadores<br />

conceituais que pu<strong>de</strong>ssem eluci<strong>da</strong>r a compreensão dos estados psíquicos clivados –<br />

origem, registro e insistência do sofrimento – otimistas em relação aos seus efeitos na<br />

prática clínica. Desse contexto, <strong>no</strong>s interessa agora revisitar o método analítico <strong>da</strong><br />

psicanálise, buscando <strong>da</strong>r relevo a discussão sobre as suas compatibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e seus<br />

entraves com os modos <strong>de</strong> sofrimento psíquico experimentado nas situações arcaicas e<br />

limites. A esse respeito, acompanhemos o pensamento <strong>de</strong> Pontalis:<br />

Tudo está aí: <strong>no</strong>sografia, teoria e técnica. Mas não há na<strong>da</strong> <strong>de</strong> redutor: não se trata <strong>de</strong><br />

fazer fenôme<strong>no</strong>s entrarem à força na estreiteza <strong>de</strong> um quadro, mas, inversamente, <strong>de</strong><br />

criar o (en)quadro para que o objeto psicanalítico se constitua (1974/2005, op. cit., p.<br />

213.<br />

Nessa linha <strong>de</strong> reflexão, é importante ressaltar a pertinência em reconhecer o<br />

mal-estar que se enuncia, sobretudo, <strong>no</strong> registro do corpo e <strong>da</strong> ação (âmbito dos<br />

processos <strong>da</strong> simbolização primária), como <strong>no</strong>s indica Birman (2006, op. cit.), a respeito<br />

<strong>da</strong>s subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s contemporâneas. A título <strong>de</strong> ilustração, cabe encarar os adoecimentos<br />

psicossomáticos e hipocondríacos, os ataques <strong>de</strong> pânico, hiperativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, o espectro <strong>da</strong>s<br />

compulsões – <strong>da</strong>s drogas aos alimentos e mercadorias – à luz <strong>da</strong> problemática <strong>da</strong><br />

clivagem. Efetivamente, <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>-se <strong>da</strong>í a incidência do excesso, ou seja, a<br />

intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> pulsional em vias <strong>de</strong> transbor<strong>da</strong>mento <strong>no</strong> psiquismo. A impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ligação simbólica do excesso justificaria, então, o <strong>de</strong>slocamento para o corpo e a ação.<br />

Seja como for, o sujeito se vê diante <strong>de</strong> algo que ultrapassa e fragmenta, em <strong>de</strong>safio aos<br />

seus recursos psíquicos para a integração e atribuição <strong>de</strong> sentido. Como tentativa <strong>de</strong> <strong>da</strong>r<br />

passagem ao que se impõe <strong>de</strong> maneira incoercível, a compulsão à repetição comparece<br />

na direção <strong>de</strong> uma recontextualização do excesso sobre o qual reinam as ações<br />

compulsivas e as corporificações.<br />

A <strong>no</strong>sso ver, parece legítimo pressupor o sofrimento em voga <strong>no</strong> processo<br />

analítico, com vistas a viabilizar as condições necessárias para a elaboração <strong>da</strong>s<br />

78


experiências traumáticas em questão. Dito <strong>de</strong> outro modo, se o sujeito vai repetir na<br />

relação transferencial tudo aquilo que aconteceu na sua história, vislumbrar tais<br />

acontecimentos torna-se um imperativo clínico. Sem dúvi<strong>da</strong>, o que habita a sessão <strong>de</strong><br />

análise difere quando se trata <strong>de</strong> um sofrimento fruto <strong>da</strong> repetição aprisiona<strong>da</strong> pelo<br />

<strong>de</strong>sejo sexual ou fruto <strong>da</strong> repetição engendra<strong>da</strong> por um dilaceramento inter<strong>no</strong>. Por um<br />

lado, conflito psíquico, castração e recalque; por outro, excesso psíquico, narcisismo e<br />

clivagem. Em referência ao contexto traumático <strong>da</strong>s situações arcaicas e limites, a<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> clínica predominantemente marca<strong>da</strong> por clivagens, vai comportar formas <strong>de</strong><br />

pa<strong>de</strong>cimento psíquico que escapam ao universo representacional. Disso resulta,<br />

evi<strong>de</strong>ntemente, obstáculos na passagem do traumatismo para a discursivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Sendo assim, em lugar <strong>de</strong> uma experiência comunicável pela palavra, <strong>no</strong>s<br />

<strong>de</strong>paramos com uma comunicação em estado <strong>de</strong> fragmentação e reserva. Ain<strong>da</strong> que<br />

alguns traumas possam ser narrados <strong>de</strong> maneira articula<strong>da</strong>, embora, frequentemente,<br />

sem afetação e teor reflexivo, o ponto nevrálgico <strong>da</strong> clivagem é justamente a<br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> alcançar com palavras o vivido subjetivo. Além disso, vale observar<br />

que a manutenção dos estados clivados exige o <strong>de</strong>smantelamento dos nexos<br />

associativos, o que se confirma pela pouca capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> trânsito e reverberação <strong>no</strong><br />

psiquismo. Não raro, os próprios pacientes expressam que não há o que ser dito acerca<br />

<strong>da</strong> sua biografia traumática, encerrando a narrativa <strong>no</strong>s mol<strong>de</strong>s tradicionais. Afinal,<br />

como contar uma história que não foi inscrita <strong>no</strong> aparelho <strong>de</strong> linguagem verbal? Como<br />

pensar sobre um acontecimento que ultrapassa precisamente a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar?<br />

IV. 1. A aventura do método psicanalítico<br />

A associação livre apresenta-se como o método fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> psicanálise<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primórdios vienenses até os dias atuais. Ain<strong>da</strong> que o dispositivo terapêutico<br />

tenha sofrido algumas variações com o passar dos a<strong>no</strong>s, tais como a oscilação do tempo<br />

e do número <strong>de</strong> sessões <strong>de</strong> análise, bem como o uso opcional do divã ou o face à face, o<br />

enunciado <strong>da</strong> regra continua o mesmo. Cabe ao paciente dizer “tudo o que lhe vem à<br />

cabeça mesmo que lhe seja <strong>de</strong>sagradável dizê-lo, mesmo que lhe pareça sem<br />

importância ou realmente absurdo” (FREUD, 1940a[1938], op. cit. p. 189). Nessas<br />

ocasiões, a expressão verbal configura-se como o operador clínico privilegiado, na<br />

79


medi<strong>da</strong> em que o sintoma po<strong>de</strong>ria ser “eliminado pela fala” (BREUER & FREUD,<br />

1893-95, op. cit.). Caberia, portanto, ao analisando suspen<strong>de</strong>r ativamente a seleção<br />

racional do fluxo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias para introduzir e revelar os pensamentos inci<strong>de</strong>ntes.<br />

O analista, em contraparti<strong>da</strong>, procuraria escutar tal discurso <strong>de</strong> modo flutuante à<br />

luz do seu conhecimento acerca dos mecanismos <strong>de</strong> transformação do conteúdo<br />

inconsciente, a saber, con<strong>de</strong>nsação, <strong>de</strong>slocamento, presentificação e elaboração<br />

secundária (FREUD, 1900/1996. op. cit.). Dessa perspectiva, quando os relatos<br />

apresentam-se incoerentes e distorcidos pela censura, ou mesmo, ausentes por conta <strong>da</strong><br />

resistência, tratar-se-ia <strong>de</strong> lançar mão <strong>da</strong> arte interpretativa. De fato, através <strong>de</strong>ssa<br />

aparente per<strong>da</strong> <strong>de</strong> fio, buscava-se favorecer a emergência <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> comunicação<br />

capaz <strong>de</strong> acessar a lógica inconsciente e driblar as artimanhas <strong>de</strong>fensivas. Evoquemos<br />

aqui a metáfora <strong>da</strong> viagem <strong>de</strong> trem utiliza<strong>da</strong> por Freud (1913/1996), na qual o viajante<br />

sentado perto <strong>da</strong> janela <strong>de</strong>screve a paisagem que vê, a fim <strong>de</strong> ilustrar a produção<br />

associativa realiza<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> sessão. Sob essa ótica, o sujeito <strong>de</strong>veria informar ao analista<br />

todo o material que a sua autopercepção lhe fornecesse; e ao analista “extrair do minério<br />

bruto <strong>da</strong>s associações intencionais o metal puro dos pensamentos recalcados” (FREUD,<br />

1905 [1904]/1996, p. 238).<br />

Entreve-se aí como o método <strong>da</strong> livre associação, em seu caráter original, ao<br />

privilegiar a discursivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, postula <strong>de</strong> saí<strong>da</strong> um sujeito capaz <strong>de</strong> fazer o seu mundo<br />

inter<strong>no</strong> objeto <strong>de</strong> narrativa (ANDRADE, MELLO & HERZOG, 2012). Nesse sentido, o<br />

dispositivo inventado por Freud pressupõe uma experiência comunicável em palavras,<br />

solidária, portanto, ao sofrimento neurótico. Com base nisso, o método se confun<strong>de</strong> com<br />

a própria maneira associativa pela qual o psiquismo se constitui, o que torna possível a<br />

interpretação <strong>de</strong> uma sequência narrativa, legitimando, por sua vez, a hipótese do<br />

inconsciente. Por esse vértice, preten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar que a associativi<strong>da</strong><strong>de</strong> em questão<br />

subenten<strong>de</strong> uma <strong>no</strong>meação complexa do vivido subjetivo, vali<strong>da</strong>ndo um sofrimento<br />

psíquico passível <strong>de</strong> articulação em fala, logo, referindo-se ao traumático subsumido ao<br />

campo <strong>da</strong> palavra.<br />

Nesses casos, o trabalho clínico <strong>de</strong> simbolização em análise se aproximaria <strong>de</strong><br />

uma conscientização <strong>da</strong>s experiências traumáticas, tal como <strong>no</strong>s orienta a clássica<br />

fórmula <strong>de</strong> Freud pronuncia<strong>da</strong> na conferência XXVII, intitula<strong>da</strong> “Transferência”, a<br />

80


saber, “tornar consciente o que é inconsciente” (1917[1916-17]/1996, op. cit, p. 437).<br />

Tratar-se-ia aqui precisamente <strong>de</strong> acontecimentos inscritos <strong>no</strong> universo<br />

representacional, submetidos ao recalque e ao esquecimento, por conta do embate entre<br />

o <strong>de</strong>sejo e a <strong>de</strong>fesa. Isso <strong>de</strong><strong>no</strong>ta que estamos <strong>no</strong> terre<strong>no</strong> <strong>da</strong>s formações do inconsciente<br />

por excelência, <strong>de</strong> modo que a ação psicanalítica consistiria em trazer ao sistema<br />

consciente os pensamentos latentes, dito <strong>de</strong> outro modo, emprestar palavra à coisa, ou<br />

ain<strong>da</strong>, introduzir o princípio <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>no</strong>s caprichos <strong>da</strong> procura exclusiva por prazer.<br />

Dessa forma, a visa<strong>da</strong> clínica em favor <strong>da</strong> toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> consciência <strong>da</strong>ria conta <strong>da</strong><br />

condução do processo terapêutico.<br />

Porém, se colocarmos em perspectiva o vivido subjetivo experimentado nas<br />

situações arcaicas e limites – irredutíveis ao domínio <strong>da</strong> linguagem verbal – somos<br />

obrigados a repensar o modo <strong>de</strong> presença do traumático <strong>no</strong> psiquismo e as condições<br />

sobre as quais a comunicação po<strong>de</strong>rá ser efetua<strong>da</strong> ulteriormente, colocando em xeque o<br />

primado <strong>da</strong> talking cure <strong>no</strong> psicanalisar. Deparamo-<strong>no</strong>s aqui com uma impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>no</strong> que concerce ao cumprimento <strong>da</strong> prescrição analítica ao pé <strong>da</strong> letra, na medi<strong>da</strong> em<br />

que o paciente não consegue entregar-se à associação livre, com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

discorrer acerca <strong>da</strong> sua interiori<strong>da</strong><strong>de</strong>. É importante insistir que o impedimento à<br />

associativi<strong>da</strong><strong>de</strong> aqui não correspon<strong>de</strong> a uma resistência contra o retor<strong>no</strong> do recalcado,<br />

tal como <strong>no</strong>s familiarizamos ante os sofrimentos neuróticos. Tal impedimento diz<br />

respeito a uma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> em utilizar uma retórica para abor<strong>da</strong>r os sofrimentos<br />

psíquicos ou em representar as coisas nas palavras, apontando para a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />

levar em conta outros índices <strong>de</strong> comunicação. Nessas circunstâncias, os obstáculos<br />

encontrados na recuperação <strong>da</strong>s reminiscências do trauma não po<strong>de</strong>m mais se justificar<br />

em função <strong>da</strong> resistência tradicional, <strong>de</strong>svelando, então, a existência <strong>de</strong> experiências<br />

psíquicas não integra<strong>da</strong>s na ca<strong>de</strong>ia associativa.<br />

Em sentido inverso <strong>da</strong> lógica do recalque que pressupõe o disfarce do <strong>de</strong>sejo, ou<br />

seja, aquilo que se manifesta <strong>de</strong> forma dissimula<strong>da</strong> para se esquivar <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa, a lógica<br />

<strong>da</strong> clivagem aponta para uma esfera <strong>de</strong> “retraimento” (WINNICOTT, 1954/2000),<br />

“função <strong>de</strong>sobjetalizante” (GREEN, 1990b, op. cit.), “ataque à ligação” (BION,<br />

1967b/1994) “sistema fechado” (FAIRBAIRN, 1958/1994, op. cit.). Sob essa ótica,<br />

“falar em resistência, certamente, é pouco para <strong>no</strong>s referirmos a esta empe<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><br />

recusa à alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, à <strong>de</strong>pendência e à mu<strong>da</strong>nça” (FIGUEIREDO & CINTRA, 2004,op.<br />

cit. p. 49). Ora, sendo assim, não se trataria apenas <strong>de</strong> interpretar as resistências que<br />

81


impe<strong>de</strong>m o bom an<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> análise, pois, <strong>de</strong> fato, as lembranças traumáticas não se<br />

mostram acessíveis por meios verbais. Nesse contexto, tem-se mesmo a impressão que<br />

os pacientes não têm na<strong>da</strong> a dizer, como diria Ferenczi, “como se o inconsciente <strong>de</strong>les<br />

se tivesse esgotado” (1919/1988, op. cit., p. 129). Com isso, o célebre enunciado<br />

freudia<strong>no</strong>, cujo <strong>no</strong>rte analítico implica na tarefa <strong>de</strong> tornar consciente o inconsciente<br />

precisa ser redimensionado.<br />

IV.1.1. As extensões associativas<br />

A segun<strong>da</strong> metapsicologia freudiana constitui-se <strong>no</strong> eixo <strong>da</strong> dissolução dos<br />

impasses clínicos até então encontrados. Efetivamente, a análise centra<strong>da</strong><br />

exclusivamente na interpretação <strong>da</strong>s formações do inconsciente não traduzia mais o que<br />

se passava entre analista/analisando. Tal como examinamos anteriormente, o<br />

remanejamento se faz em resposta às consequências teórico-clínicas introduzi<strong>da</strong>s a<br />

partir <strong>da</strong> problemática <strong>da</strong> repetição na obra <strong>de</strong> Freud; à luz, particularmente, <strong>de</strong><br />

“Recor<strong>da</strong>r, repetir e elaborar” (1914c/1996), “Luto e melancolia” (1917[1915]/1996, op.<br />

cit.), “Além do princípio <strong>de</strong> prazer” (1920/1996, op. cit.), culminando em “Construções<br />

em análise” (1937/1996, op. cit.). De <strong>no</strong>ssa parte, enten<strong>de</strong>mos que tal problemática<br />

coloca justamente em questão a associação livre enquanto método fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong><br />

psicanálise. De fato, não bastaria mais à psicanálise conhecer o enigma do <strong>de</strong>sejo, pois,<br />

<strong>no</strong> limite, a ameaça não comporta apenas a busca incessante pela satisfação outrora<br />

experimenta<strong>da</strong>, mas, sobretudo, a ameça <strong>de</strong> aniquilamento psíquico. Logo, a repetição<br />

em jogo aqui não se orienta pela procura do a<strong>no</strong>s dourados <strong>da</strong> infância, reportando-se,<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente, ao modo <strong>de</strong> organização <strong>de</strong>fensiva para evitar a dor psíquica<br />

experimenta<strong>da</strong> precocemente. Sem dúvi<strong>da</strong>, a resultante clínica disso implica em um<br />

aporte terapêutico distinto.<br />

Nessa direção, Freud intui que a tarefa do analista não se reduz mais ao aguardo<br />

<strong>da</strong>s recor<strong>da</strong>ções trazi<strong>da</strong>s pelo paciente. Em suas palavras: “Qual é, então, a sua tarefa?<br />

Sua tarefa é a <strong>de</strong> completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que <strong>de</strong>ixou atrás<br />

<strong>de</strong> si ou, mais precisamente, construí-lo” (1937/1996. op. cit., p. 276). Por analogia ao<br />

trabalho realizado pelo arqueólogo, Freud refere-se à construção como uma escavação,<br />

porém, em se tratando do analista, o material disponível para o processo não se<br />

82


encontraria <strong>de</strong>struído, mas ain<strong>da</strong> vivo. Tal vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> se mostra através dos fragmentos<br />

<strong>de</strong> lembranças, repetições e comportamentos do sujeito durante a sessão; eis os<br />

escombros do psicanalista. A porta aberta por Freud <strong>no</strong>s conduz ao campo <strong>da</strong><br />

compulsão à repetição, <strong>no</strong> qual a história traumática engendra uma narrativa para além<br />

do que po<strong>de</strong>ria ser formulado em termos significantes. Trata-se, sem dúvi<strong>da</strong>, <strong>de</strong> uma<br />

gramática distinta <strong>da</strong> neurótica, na qual o arsenal representativo se encontra habilitado<br />

para fins reflexivos.<br />

No terre<strong>no</strong>s dos estados psíquicos clivados, o acento tradicionalmente posto <strong>no</strong><br />

baralho <strong>da</strong>s representações <strong>de</strong>svia-se, em certa medi<strong>da</strong>, para a tarefa <strong>de</strong> invenção <strong>da</strong>s<br />

representações. Dessa perspectiva, po<strong>de</strong>mos dizer que o processo analítico passa a se<br />

conduzir, privilegia<strong>da</strong>mente, pela via <strong>de</strong> porre, em <strong>de</strong>trimento à via <strong>de</strong> levare,<br />

subvertendo, assim, o discurso freudia<strong>no</strong> presente em “Sobre a psicoterapia”<br />

(1905[1904]/1996, op. cit.). Partindo <strong>da</strong> analogia <strong>da</strong> terapia analítica com a pintura e a<br />

escultura, Freud sustenta, então, que o analista não <strong>de</strong>veria, assim como faz o pintor,<br />

acrescentar na<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>no</strong>vo para não cair na sugestão, mas, sim, <strong>de</strong>svelar, trazer algo para<br />

fora, tal como o escultor. Entretanto, em função <strong>da</strong> incidência <strong>da</strong> clivagem, <strong>no</strong>s<br />

<strong>de</strong>paramos com a quebra <strong>da</strong> sequência associativa, <strong>de</strong> modo que o enca<strong>de</strong>amento<br />

discursivo não se opera. Nessas condições, uma associação não remete à outra que, por<br />

sua vez, não remete à outra e, assim, sucessivamente, <strong>de</strong><strong>no</strong>tando, propriamente, a<br />

<strong>de</strong>sconexão psíquica.<br />

Ora, com isso, a neutrali<strong>da</strong><strong>de</strong> radical do analista justifica<strong>da</strong> pela sua fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

ao enunciado <strong>da</strong> associação livre recai em uma posição <strong>de</strong> distanciamento, o que em<br />

termos ferenczia<strong>no</strong>s, equivaleria a uma “hipocrisia profissional” (FERENCZI,<br />

1933/1992, op. cit. p. 99). Dito <strong>de</strong> outro modo, o silêncio não evocaria a fala do<br />

analisando, pelo contrário, reproduz, em certo nível, a situação traumática supostamente<br />

original <strong>de</strong> frieza e eficiência mecânica. Com esse respeito, supõe Green, que “o<br />

silêncio po<strong>de</strong> ser vivido em certas situações limites como um silêncio <strong>de</strong> morte”<br />

(1974c/1990, p. 116. Tradução <strong>no</strong>ssa). Sendo assim, a passivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do analista na espera<br />

do material associativo po<strong>de</strong> ter um efeito iatrogênico, acirrando ain<strong>da</strong> mais as<br />

clivagens, razão pela qual, o calar-se analítico enquanto imperativo começa a se tornar<br />

improdutivo. Levando isso em conta, <strong>no</strong>s parece válido pensar que a fala do analista,<br />

muitas vezes, po<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> como um suporte <strong>da</strong> sua escuta, redun<strong>da</strong>ndo em<br />

uma fala para simplesmente dizer que ouve, ou ain<strong>da</strong>, para confirmar a sua presença ali.<br />

83


Na esteira <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias, o analista parece ca<strong>da</strong> vez mais convocado a se<br />

posicionar <strong>de</strong> forma ativa, <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> facilitar o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

associativa em análise (PINHEIRO, VERZTMAN & BARBOSA, 2006). Constatamos<br />

<strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong> clínico que o an<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> muitas análises, sobretudo, <strong>no</strong> período inicial<br />

do tratamento, caracteriza-se por um revezamento <strong>da</strong> palavra entre analista e analisando,<br />

uma espécie <strong>de</strong> perguntas e respostas, sem o qual o <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong>s sessões se tornaria<br />

imóvel, por vezes, inviável. Ora, com isso, a imaginação teórica do analista entra ca<strong>da</strong><br />

vez mais em cena, tornando-se fun<strong>da</strong>mental para a formulação <strong>de</strong> construções que<br />

visem às vivências primitivas do analisando, tal como <strong>no</strong>s chama a atenção Souza<br />

(2006). Nesse contexto, Green (1976/1990, op. cit.), compara o discurso do paciente em<br />

análise com um colar, cujo fio teria se rompido, cabendo, então, ao analista reconstituir<br />

os nexos ausentes a partir <strong>de</strong> seu próprio aparelho psíquico. Com base nisso,<br />

consi<strong>de</strong>ramos, na companhia <strong>de</strong> Donnet, que “o encontro [analista/analisando] não é<br />

consi<strong>de</strong>rado sob o ângulo do que se repete, mas sob o ângulo do que ele oferece <strong>de</strong><br />

<strong>no</strong>vo” (2005, op. cit, p. XIII. Tradução <strong>no</strong>ssa).<br />

No bojo <strong>de</strong>ssas questões, <strong>no</strong> texto “Os fantasmas provocados”, Ferenczi (1924)<br />

indica uma maneira <strong>de</strong> o analista promover a produção fantasmática em análise, com<br />

base <strong>no</strong> empréstimo <strong>da</strong>s suas próprias fantasias. Ao <strong>no</strong>tar a estagnação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

fantasmática do paciente, Ferenczi o intimava a imaginar fantasias ou reações afetivas<br />

ausentes <strong>no</strong>s relatos, o que implica pensar <strong>no</strong> “jogo <strong>da</strong>s fantasias” como um<br />

encorajamento ao livre associar. Nessa mesma direção, Og<strong>de</strong>n (2007a) vai aproximar a<br />

livre associação <strong>da</strong> sessão analítica com o trabalho associativo encontrado <strong>no</strong>s sonhos,<br />

com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> valorizar uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conversação em análise basea<strong>da</strong> em<br />

um “falar como sonhar” (talking-as-dreaming). Nessas ocasiões, o analista conversa<br />

sobre assuntos que lhe “vêm à cabeça” <strong>no</strong> <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong>s sessões, tais como “livros,<br />

poemas, filmes, regras <strong>de</strong> gramática, etimologia, a veloci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> luz, o gosto do<br />

chocolate, e assim por diante” (Id., ibid., p. 575). Em referência aos pacientes com<br />

pequena capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> para o sonho (ou associação livre), tal modo psicanalítico <strong>de</strong><br />

funcionar, <strong>no</strong> âmbito do processo psíquico primário, favoreceria, então, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sonhar as próprias experiências emocionais, tarefa simbólica por excelência.<br />

Por essa abertura <strong>da</strong>s vias <strong>de</strong> comunicação, prestigiamos, fun<strong>da</strong>mentalmente, a<br />

função <strong>de</strong> atribuição <strong>de</strong> sentido ao existir, permitindo que o sujeito se torne mais vivo e<br />

autor <strong>da</strong>s suas próprias experiências. Evi<strong>de</strong>ntemente, entreve-se aí o fio <strong>da</strong> navalha <strong>da</strong><br />

84


sugestão, artifício sedutor diante <strong>de</strong> sujeitos que pouco sabem sobre si, tomados por<br />

uma sensação <strong>de</strong> inexistência e irreali<strong>da</strong><strong>de</strong>, tributárias <strong>da</strong> fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> narcísica. To<strong>da</strong>via,<br />

não se trataria, absolutamente, <strong>de</strong> equivaler a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do analista a uma sugestão<br />

alienante, mas sim, <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>r a produção conjunta <strong>de</strong> uma historici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

(ANDRADE, MELLO & HERZOG, 2012, op. cit.). Se cabe alguma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sugestão, po<strong>de</strong>mos referi-la ao confronto do sujeito com a sua história subjetiva, com<br />

vistas à elaboração simbólica. Com respeito à garantia quanto à veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tais<br />

construções, o próprio Freud (1937/1996, op. cit.) <strong>no</strong>s adverte quanto à inexistência <strong>de</strong><br />

construções ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras ou falsas, posto que o que interessa é a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

contrução engendrar movimento psíquico, mobilizando, muitas vezes, <strong>no</strong>vas narrativas.<br />

A esse propósito, Roussillon (2008a), consi<strong>de</strong>ra que a maneira <strong>de</strong> vali<strong>da</strong>r a pertinência<br />

<strong>de</strong> uma intervenção analítica seria através <strong>da</strong>s associações que ela traz à tona, ou seja, o<br />

seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> “generativi<strong>da</strong><strong>de</strong> associativa”. Nesse sentido, a ênase recai <strong>no</strong><br />

favorecimento do trabalho <strong>de</strong> ligação <strong>da</strong> história subjetiva à margem até então.<br />

Com isso, a busca inicial do analista-arqueólogo pela “ver<strong>da</strong><strong>de</strong> material” <strong>da</strong><br />

lembrança esten<strong>de</strong>-se para a criação <strong>de</strong> uma “ver<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica” <strong>da</strong> construção (FREUD,<br />

1939 [1934-38]/1996, op. cit.). Tal recurso põe em evidência a ampliação tanto <strong>da</strong>s<br />

fontes <strong>de</strong> coleta sobre o funcionamento psíquico do paciente, como também sugere uma<br />

re<strong>de</strong>finição <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> intervenção psicanalítica. Isso significa que a vi<strong>da</strong><br />

psíquica po<strong>de</strong> se transformar, mais ou me<strong>no</strong>s, em função <strong>da</strong>s condições <strong>de</strong> simbolização<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s aos diferentes níves <strong>de</strong> registro do vivido subjetivo. Marca-se aí o caráter<br />

processual <strong>da</strong> subjetivação, precisando ain<strong>da</strong> que ca<strong>da</strong> passagem <strong>de</strong> nível implica em<br />

uma transformação psíquica em prol <strong>da</strong> integração.<br />

IV. 2. Apropriação subjetiva e síntese psíquica<br />

No rumo <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias, vamos retomar o célebre postulado psicanalítico <strong>no</strong><br />

âmbito <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metapsicologia freudiana, a respeito <strong>de</strong> “A dissecção <strong>da</strong><br />

personali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica”, segundo o qual a análise passaria a incluir como referência<br />

“on<strong>de</strong> estava o id, ali estará o ego” (FREUD, 1933b[1932]/1996, p. 84). Ora, se o id –<br />

“cal<strong>de</strong>irão cheio <strong>de</strong> agitação fervilhante”, como <strong>de</strong>fine Freud (Id., ibid., p. 78) – contém<br />

85


em si as exigências pulsionais que buscam representação <strong>no</strong>s processos mentais<br />

psíquicos, a ligação <strong>da</strong> pulsão com a representação não é toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> imediato nem <strong>da</strong><strong>da</strong><br />

com certa, mas um <strong>de</strong>safio constante ao simbólico. Nesse sentido, situamos o processo<br />

<strong>de</strong> simbolização <strong>da</strong>s experiências subjetivas arcaicas e limites <strong>no</strong> coração <strong>da</strong> clínica <strong>da</strong><br />

clivagem. Com base nisso, chega-se a afirmar que tão importante quanto se conhecer<br />

(tornar consciente o inconsciente), é transformar-se (on<strong>de</strong> estava o id, ali estará o ego),<br />

o que implica precisamente em uma apropriação subjetiva do excesso traumático. Nessa<br />

disposição, acompanhemos o pensamento <strong>de</strong> Green:<br />

Por mais difícil que tenha sido a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma pessoa, por mais objetivas que tenham<br />

sido suas frustrações e <strong>de</strong>cepções, é preciso que, em um momento ou outro, o indivíduo<br />

tome consciência <strong>de</strong> que isto é <strong>de</strong> sua proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Sua proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> transformar os<br />

<strong>da</strong>dos <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e <strong>de</strong> fora para criar algo que é seu psiquismo (1990, p. 176).<br />

Tal pensamento <strong>no</strong>s aproxima <strong>da</strong> citação <strong>de</strong> Goethe, a qual Freud lança mão <strong>no</strong><br />

final <strong>da</strong> sua obra, a saber, “aquilo que her<strong>da</strong>ste <strong>de</strong> teus pais, conquista-o para fazê-lo<br />

teu” (FREUD, 1940a[1938]/1996. op. cit., p. 220). Tal conquista subenten<strong>de</strong> uma<br />

subjetivação, o que implica em um “fazer sentido”; nas palavras <strong>de</strong> Figueiredo,<br />

“constituir para o sujeito uma experiência integra<strong>da</strong>, uma experiência <strong>de</strong> integração”<br />

(2009a, op. cit., p. 134). É importante precisar aqui que a própria solução <strong>da</strong> clivagem<br />

compreen<strong>de</strong> um grau <strong>de</strong> subjetivação diante do encontro do sujeito com o vivido<br />

traumático. Nessas bases, ocorre uma transformação interna a qual correspon<strong>de</strong> a<br />

impressão do vivido na esfera psíquica. A rigor, to<strong>da</strong> experiência subjetiva causa algum<br />

nível <strong>de</strong> alteração na vi<strong>da</strong> psíquica; eis o imperativo fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> psique. Ora, com<br />

efeito, o que aconteceu não se <strong>de</strong>sfaz, mas há, contudo, como diminuir o peso do<br />

passado <strong>no</strong> presente, mediante a integração <strong>da</strong> experiência subjetiva. A integração<br />

permite que as vivências passa<strong>da</strong>s sejam evoca<strong>da</strong>s e refleti<strong>da</strong>s pelo sujeito,<br />

enriquecendo o seu modo <strong>de</strong> ser e estar <strong>no</strong> mundo. Com isso, não preten<strong>de</strong>mos afirmar<br />

que a apropriação subjetiva comporta um elogio à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> substancial do eu ou uma<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> última do sujeito, a <strong>de</strong>speito <strong>da</strong>s suas mutliplici<strong>da</strong><strong>de</strong>s e ambivalências<br />

constitutivas, <strong>no</strong> entanto, valoriza-se o fortalecimento <strong>da</strong> <strong>de</strong>limitação intrapsíquica e<br />

intersubjetiva, em última instância, a criação <strong>de</strong> sentidos para o existir.<br />

Seguindo as pistas <strong>de</strong> Wainrib (2006), encaramos, então, que tornar algo<br />

subjetivo ou subjetivar implica em uma maneira própria <strong>de</strong> <strong>da</strong>r sentido a si e ao mundo,<br />

maneira, inclusive, reconheci<strong>da</strong> pelo indíviduo como o seu ponto <strong>de</strong> vista singular.<br />

86


Entreve-se aí um acento na processuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> apropriação em questão, um vaivém<br />

contínuo, <strong>de</strong> modo que a expressão psíquica vai se expandindo pela associação dos<br />

estados subjetivos clivados. Tomando essa direção, o sujeito vai ser capaz <strong>de</strong> ser ali<br />

aon<strong>de</strong> ele é e ao mesmo tempo se consi<strong>de</strong>rar sob o próprio ponto <strong>de</strong> vista e do ponto <strong>de</strong><br />

vista do outro, isto é, fazer uso <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> reflexivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> estar apto<br />

para se ver, se sentir e se escutar (ROUSSILLON, 2008b). Fica, assim, reforça<strong>da</strong> a<br />

importância <strong>da</strong> tarefa <strong>de</strong> construção para o engendramento <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos arranjos subjetivos,<br />

especialmente, em referência ao rompimento <strong>da</strong>s ligações, efeito <strong>de</strong> encontros com os<br />

objetos primordiais <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m traumática.<br />

Efetivamente, não contar como certa a função sintética dos processos psíquicos,<br />

tal como Freud (1940a[1938]/1996. op. cit.) <strong>no</strong>s ensina à propósito <strong>da</strong> divisão <strong>no</strong> eu,<br />

implica em consi<strong>de</strong>rar <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s condições para o exercício <strong>de</strong> tal função. Seguindo<br />

o enunciado freudia<strong>no</strong>, “a preferência etiológica pelo primeiro período <strong>da</strong> infância”, se<br />

justifica na medi<strong>da</strong> em que o eu “débil, imaturo e incapaz <strong>de</strong> resistência, fracassa em<br />

li<strong>da</strong>r com tarefas que, posteriomente, seria capaz <strong>de</strong> enfrentar com máxima facili<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />

(Id., ibid., p. 198). Valendo-se <strong>da</strong>s situações arcaicas e limites em perspectiva aqui, nas<br />

quais vigora uma significativa <strong>de</strong>pendência do sujeito em relação ao objeto, propomos o<br />

entendimento <strong>da</strong>s condições necessárias para a síntese <strong>da</strong>s experiências subjetivas pelo<br />

vértice relacional. Dito <strong>de</strong> outro modo, a fragili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> síntese <strong>da</strong>s<br />

experiências originárias e altamente intensivas coloca em evidência a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um outro, um eu auxiliar <strong>no</strong> sentido winnicottia<strong>no</strong> (1962/1983, op. cit.). Depreen<strong>de</strong>-se<br />

<strong>da</strong>í que o vivido subjetivo po<strong>de</strong> tornar-se clivado em função <strong>da</strong> ausência alteritária<br />

integradora.<br />

Isso vai encontrar ressonâncias na in<strong>da</strong>gação <strong>de</strong> Winnicott, <strong>no</strong> tocante ao ego<br />

forte ou fraco <strong>no</strong>s primórdios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica, cuja resposta seria “<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> mãe e <strong>da</strong><br />

sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> satisfazer a <strong>de</strong>pendência absoluta <strong>da</strong> criança <strong>no</strong> começo” (Id., ibid., p.<br />

56). Dessa perspectiva, convém insistir que a integração se encontra diretamente<br />

relaciona<strong>da</strong> com o cui<strong>da</strong>do. Seguindo o diálogo com Winnicott, <strong>no</strong>s parece interessante<br />

aproximar a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> não integração primária <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia freudiana <strong>de</strong> fragili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

sintética inicial e, nessa medi<strong>da</strong> mesmo, po<strong>de</strong>ríamos tomar a <strong>de</strong>sintegração psíquica por<br />

falta <strong>de</strong> um objeto maternante que reúna os porme<strong>no</strong>res <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> viver do<br />

indivíduo ao nascer. Isso <strong>no</strong>s remete a uma fala <strong>de</strong> um paciente jovem adulto, a<br />

87


propósito <strong>da</strong> sua sensação em ser como um quebra-cabeças substancialmente espalhado,<br />

cuja caixa com a figura estampa<strong>da</strong> havia sido perdi<strong>da</strong>, o que lhe rendia e<strong>no</strong>rme<br />

preocupação, pois temia não mais conseguir juntar as peças conforme o original.<br />

Por essa via <strong>de</strong> entra<strong>da</strong>, o sentido <strong>da</strong> construção freudiana equivale à síntese, isto<br />

é, a criação <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> contato entre os arquipélagos psíquicos em estado <strong>de</strong><br />

fragmentação e retraimento. Em se tratando <strong>da</strong>s subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s proeminentemente<br />

cliva<strong>da</strong>s, não bastaria, portanto, empreen<strong>de</strong>r a análise, pois seria também preciso<br />

favorecer a síntese, <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong> simbolização primária. Com base nessas proposições,<br />

interessa-<strong>no</strong>s investigar em sequência o meio pelo qual as experiências psíquicas<br />

historicamente cliva<strong>da</strong>s vão introduzir-se na cena analítica, servindo <strong>de</strong> bússola para o<br />

trabalho <strong>de</strong> construção. Vale insistir que tais experiências não foram inscritas <strong>no</strong><br />

aparelho <strong>de</strong> linguagem verbal, <strong>de</strong> modo que o arsenal representativo não tem como <strong>da</strong>r<br />

conta <strong>de</strong> organizar o vivido traumático. Com isso, a aparente ausência <strong>de</strong> interiori<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

expressiva, comumente observa<strong>da</strong> na clínica <strong>da</strong> clivagem compreen<strong>de</strong> precisamente<br />

uma vivência traumática rebel<strong>de</strong> aos referentes.<br />

É importante observar, então, que a incomunicabili<strong>da</strong><strong>de</strong> na clínica <strong>da</strong> clivagem<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> palavras que se profere, referindo-se à blin<strong>da</strong>gem do<br />

sofrimento psíquico em acordo com o arrefecimento pulsional. Reforçando a<br />

neutralização energética e a auto<strong>no</strong>mia precoce em jogo <strong>no</strong> funcionamento em questão é<br />

importante consi<strong>de</strong>rar que a abertura do sistema <strong>de</strong>fensivo <strong>no</strong> sentido <strong>da</strong> revelação do<br />

drama com os objetos inter<strong>no</strong>s configura-se como ousadia e risco <strong>de</strong> <strong>no</strong>vas <strong>de</strong>cepções.<br />

Em acréscimo à existência <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> gramática privativa, não se <strong>de</strong>ve esquecer<br />

a força em negativo a favor <strong>da</strong> manutenção dos estados psíquicos clivados. Disso<br />

resulta, como diria Joyce McDougall (1978a/1983), a propósito dos antianalisandos, em<br />

um “duplo bloqueio” <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> do racíoci<strong>no</strong> e <strong>da</strong> afetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>no</strong> limite, na interdição <strong>da</strong><br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar. Nesse sentido, in<strong>da</strong>gamos se as palavras seriam capazes <strong>de</strong><br />

transmitir todo o colorido do psiquismo, mesmo para um sujeito verborrágico.<br />

Partindo do pressuposto <strong>de</strong> uma incomunicabili<strong>da</strong><strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mental tributária do<br />

funcionamento psíquico clivado, quais seriam as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> escuta do<br />

traumatismo não inscrito pelo universo representacional <strong>no</strong> silêncio <strong>da</strong>s palavras?<br />

Colocando em perspectiva as experiências psíquicas envolvi<strong>da</strong>s <strong>no</strong> contexto traumático<br />

88


<strong>da</strong> clivagem, preten<strong>de</strong>mos valorizar um modo <strong>de</strong> simbolização que não vai <strong>de</strong>correr<br />

exclusivamente <strong>da</strong> articulação entre os significantes <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia associativa, mas,<br />

sobretudo, <strong>da</strong> relação que se estabelece entre analista e analisando em uma dimensão <strong>de</strong><br />

conversação primitiva. É pertinente observar que tal conversação ganha corpo, na<br />

medi<strong>da</strong> em que <strong>no</strong>s abrimos para a comunicação a partir <strong>de</strong> uma linguagem sensível, na<br />

qual os sig<strong>no</strong>s sensório-motores e perceptivos po<strong>de</strong>m ser compreendidos por um outro.<br />

Valendo-se <strong>da</strong> ruptura radical dos nexos <strong>de</strong> sentido e do movimento constante <strong>de</strong><br />

anti-ligação, bem como, do imperativo <strong>de</strong> elaborar o luto <strong>de</strong> uma ausência objetal não<br />

reconheci<strong>da</strong> como tal (vi<strong>de</strong> os extravios do trabalho do negativo), <strong>no</strong>s parece<br />

fun<strong>da</strong>mental explorar as vias <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma simbolização compartilha<strong>da</strong>. Tal<br />

simbolização efetua-se na direção propriamente dos processos primários e concorre para<br />

os avanços <strong>da</strong> síntese psíquica. Em última instância, marca-se aí a apropriação subjetiva<br />

<strong>da</strong> ausência, por conseguinte, uma diferenciação entre o eu/não-eu (RICHARD, 2006).<br />

Cabe indicar que a simbolização aqui se relaciona intimamente com os cui<strong>da</strong>dos<br />

primordiais.<br />

IV.3. Por uma simbolização compartilha<strong>da</strong><br />

O termo símbolo vem do grego symbolon, sendo utilizado para <strong>de</strong>signar as duas<br />

meta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um objeto partido que se aproximam (Garcia-Roza, 1993/2008, op. cit.).<br />

Nota-se aí o seu caráter <strong>de</strong> reunião e separação simultaneamente. Tal significado<br />

etimológico <strong>no</strong>s parece interessante por inscrever o termo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> suas origens <strong>no</strong> sentido<br />

<strong>de</strong> uma relação. Do vértice psicanalítico, os processos <strong>de</strong> simbolização compreen<strong>de</strong>m o<br />

contínuo trabalho <strong>de</strong> apropriação subjetiva <strong>da</strong>s resultantes psíquicas dos múltiplos<br />

encontros vi<strong>da</strong> afora. Disso resulta uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> conformação do aparelho psíquico,<br />

na qual equivalem modos específicos <strong>de</strong> ser e estar <strong>no</strong> mundo, passíveis <strong>de</strong> inúmeras<br />

associações e arranjos a ca<strong>da</strong> <strong>no</strong>vo encontro.<br />

Sabemos que uma gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong> reflexão psicanalítica sobre a simbolização<br />

assinala que o símbolo equivale à representação <strong>da</strong> ausência engendra<strong>da</strong> pela própria<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> representativa. Trata-se aqui do campo <strong>de</strong> conceituações fun<strong>da</strong>mentado <strong>no</strong><br />

89


contexto <strong>de</strong> 1900, <strong>no</strong> qual a palavra atesta a morte <strong>da</strong> coisa. Por ocasião <strong>da</strong> ausência do<br />

objeto, o mesmo passaria a ser evocado internamente (alucinado) com vistas à atenuar a<br />

sua falta. Nesses termos, a representação torna presente o objeto ausente na percepção, o<br />

que coloca o símbolo como presença <strong>de</strong> uma ausência. A garantia <strong>de</strong> tal continui<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

psíquica pressupõe, contudo, que o objeto exista na psique, ou seja, o objeto falta<br />

enquanto reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa, porém, é encontrado vivo <strong>no</strong> mundo inter<strong>no</strong>. Decorre <strong>da</strong>í o<br />

espectro <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Édipo, nas quais a ameaça <strong>de</strong> per<strong>da</strong> do amor alteritário con<strong>de</strong>nsa<br />

o drama central.<br />

Entretanto, ao <strong>no</strong>s voltarmos para as feri<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Narciso, <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong>s relações<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>masia<strong>da</strong> <strong>de</strong>pendência dos objetos para a constituição <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica, <strong>de</strong>paramo<strong>no</strong>s<br />

com a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> per<strong>da</strong> do objeto, isto é, não há meios <strong>de</strong> negativá-lo <strong>no</strong><br />

sentido propriamente greenia<strong>no</strong>. Aqui a per<strong>da</strong> do objeto implica na per<strong>da</strong> <strong>de</strong> si, <strong>de</strong> modo<br />

que o objeto adquire um caráter excessivo e onipresente justamente porque não se <strong>de</strong>ixa<br />

esquecer. Vale retomar brevemente que o objeto, ao falhar <strong>no</strong> cumprimento <strong>da</strong>s funções<br />

primordiais <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>do, <strong>de</strong>sponta a sua presença enquanto exteriori<strong>da</strong><strong>de</strong> absolutamente<br />

necessária, dificultando o seu apagamento pela representação. Nesses casos, a ausência<br />

como presença potencial não se constitui. Isso <strong>no</strong>s leva a questionar, com McDougall,<br />

como o indivíduo conseguiria “elaborar o luto <strong>de</strong> um objeto cuja per<strong>da</strong> jamais foi<br />

reconheci<strong>da</strong>” (1978b/1983,p.114), ou ain<strong>da</strong>, na companhia privilegia<strong>da</strong> <strong>de</strong> Roussillon,<br />

como o sujeito po<strong>de</strong>ria “renunciar ao que ele não pô<strong>de</strong> ser, mais do que o que foi e foi<br />

perdido” (1999, op. cit., p. 14). Seja como for, fica a in<strong>da</strong>gação sobre a pertinência <strong>de</strong><br />

circunscrever a elaboração simbólica <strong>da</strong> clínica <strong>da</strong> clivagem <strong>no</strong> campo <strong>da</strong> representação.<br />

Por essa via <strong>de</strong> reflexão, preten<strong>de</strong>mos valorizar aqui a presentificação<br />

(Darstellung) <strong>da</strong> relação do mundo inter<strong>no</strong> com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa, em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong><br />

representação (Vorstellung). Não se trata, em absoluto, <strong>de</strong> negligenciar o po<strong>de</strong>r<br />

metafórico, evocativo e <strong>de</strong> <strong>no</strong>meação do registro verbal, mas <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar a polivalência<br />

<strong>de</strong> uma comunicação primitiva. Dito <strong>de</strong> outro modo, não argumentaremos em prol <strong>de</strong><br />

uma lógica binária, na medi<strong>da</strong> mesmo em que pensamos a subjetivação em sua<br />

processuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ensejando precisamente uma relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>rivação (HERZOG, 2011,<br />

op. cit.). Acreditamos, inclusive, que não se <strong>de</strong>ve per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista o convite à fala,<br />

tradicional do psicanalisar, convite que po<strong>de</strong> nunca ter sido feito na história do<br />

indivíduo; muitas vezes, sequer lhe ocorre a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r contar para um outro (e com<br />

90


um outro) sobre si. Nesse sentido, <strong>no</strong>s inspiramos <strong>no</strong>vamente nas i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Og<strong>de</strong>n, ao<br />

afirmar que “é tão importante para o paciente saber que ele é livre para estar em<br />

silêncio, quanto é importante que saiba que é livre para falar” (1999, p. 123. Tradução<br />

<strong>no</strong>ssa). Convém, portanto, não privilegiar a fala em <strong>de</strong>trimento do silêncio, tampouco, a<br />

revelação sobre a privaci<strong>da</strong><strong>de</strong>, sustentando a tensão dialética entre o que é dito e o que<br />

se mantém privativo (COELHO JR & BARONE, 2007).<br />

Levando em consi<strong>de</strong>ração os níveis <strong>de</strong> simbolização <strong>da</strong>s experiências psíquicas<br />

enquanto transcrição dos sig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> percepção para as representações-coisa e, por<br />

conseguinte, para as representações <strong>de</strong> palavra, cabe sustentar que o psiquismo não se<br />

restringe ao universo representacional. Efetivamente, diante <strong>de</strong> sofrimentos psíquicos<br />

classicamente neuróticos não se faz necessária a distinção entre representação e<br />

linguagem, pois o campo <strong>de</strong> batalha institui-se na relação entre os significantes. Porém,<br />

com relação aos sofrimentos psíquicos narcísicos situados além <strong>da</strong> representação, os<br />

quais reportamos às situações arcaicas e limtes, se torna imperativo extrair a dimensão<br />

sensível <strong>da</strong> linguagem <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> dos sig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> percepção. Da perspectiva cliva<strong>da</strong>, então,<br />

o traumático presentifica-se mais do que se representa, razão pela qual tomamos os<br />

processos <strong>de</strong> simbolização tanto pelo viés <strong>da</strong> representação quanto <strong>da</strong> expressão<br />

psíquicas, ou seja, os símbolos tanto representam algo quanto expressam algo<br />

(BARROS 2007). Por essa via <strong>de</strong> entendimento, <strong>no</strong>s parece importante pensar em um<br />

aporte clínico que vai do sensível para o sentido e não apenas <strong>da</strong> representação para o<br />

sentido (GONDAR, 2010).<br />

Com base nesses pressupostos, <strong>no</strong>s interessa privilegiar os meandros <strong>de</strong> uma<br />

simbolização compartilha<strong>da</strong>, <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> uma apropriação subjetiva que não se opera<br />

a partir <strong>da</strong>s figuras <strong>da</strong> castração, inscrevendo-se fun<strong>da</strong>mentalmente em uma dimensão<br />

relacional <strong>de</strong> encontro. Trata-se, assim, <strong>de</strong> processos psíquicos que propiciam o<br />

engendramento <strong>da</strong>s ligações <strong>da</strong> pulsão com os objetos por meio <strong>de</strong> uma presença<br />

sensível. Ora, se a simbolização é a chave para a integração psíquica, convém refletir<br />

sobre as condições necessárias para a instauração <strong>de</strong> um dispositivo analítico com po<strong>de</strong>r<br />

simbolizante rumo em direção propriamente ao terre<strong>no</strong> <strong>da</strong> simbolização primária. Dito<br />

isso, a<strong>de</strong>ntremos as vias sensório-motoras e perceptivas.<br />

91


IV.3. 1. Conversações primitivas<br />

“A comunicação se origina do silêncio”, anuncia sutilmente Winnicott<br />

(1963/1983, p. 173). Atento aos primórdios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica, o pensamento<br />

winnicottia<strong>no</strong> resgata a existência <strong>de</strong> uma comunicação silenciosa entre o sujeito e o<br />

objeto através <strong>da</strong> vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos sentidos. Evi<strong>de</strong>ncia-se aí a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

interação não explícita ou <strong>de</strong>clarativa, anterior à primazia <strong>da</strong> linguagem verbal, por<br />

meio <strong>da</strong> qual se po<strong>de</strong> entrever o acesso aos estados psíquicos clivados. Seguindo as<br />

indicações winnicottianas, enten<strong>de</strong>mos que existem partes do psiquismo, o referido<br />

feitio insular, que não se comunicam e, ao mesmo tempo, precisam <strong>de</strong>sespera<strong>da</strong>mente<br />

se expressar. Por essa linha <strong>de</strong> pensamento, preten<strong>de</strong>mos conce<strong>de</strong>r valor <strong>de</strong> narrativa e<br />

troca aos elementos sensoriais, perceptivos e motores não alinhavados pelas palavras. A<br />

esse propósito, pelo viés propriamente clínico, Joyce McDougall (1983b, op. cit.)<br />

ressalta que é apenas quando tais elementos são compreendidos pelo analista que<br />

po<strong>de</strong>mos dizer que se trataria <strong>de</strong> uma comunicação primitiva. Nesse contexto,<br />

McDougall resgata ain<strong>da</strong> o significado original <strong>da</strong> palavra “comunicar”, em latim<br />

comunicare, <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> “tornar comum” ou “estar em relação com”. Desse modo, a<br />

função <strong>de</strong> “informar” alguém a respeito <strong>de</strong> algo se tornaria secundária.<br />

Com isso em mente, recorremos à Ferenczi, na medi<strong>da</strong> em que ele se apresenta<br />

como um dos precursores <strong>da</strong> valorização <strong>da</strong> linguagem em sua dimensão sensível. Em<br />

<strong>de</strong>corrência dos impasses <strong>no</strong> que se refere ao cumprimento do método fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong><br />

psicanálise, Ferenczi vai se <strong>de</strong>ter na atmosfera através <strong>da</strong> qual as palavras são ditas,<br />

mais do que naquilo que elas representam. Por essa ótica, a ênfase ferencziana recai na<br />

presentificação e não na representação (GONDAR, 2010, op. cit.). É importante<br />

sublinhar que é a estagnação experimenta<strong>da</strong> em algumas análises, sobretudo, a escassez<br />

<strong>de</strong> enredo fantasmático <strong>no</strong>s relatos dos pacientes, que o leva a propor modificações<br />

técnicas na tentativa <strong>de</strong> reintegrar o material repetido pelo paciente, porém,<br />

<strong>de</strong>sarticulado <strong>da</strong>s ca<strong>de</strong>ias associativas simbólicas. Descortina-se, assim, uma linguagem<br />

posta em cena, emprega<strong>da</strong>, sobretudo, em um momento primitivo <strong>no</strong> qual a<br />

comunicação se fazia por meio <strong>de</strong> gestos e sinais figurados <strong>no</strong> corpo (FERENCZI,<br />

1913/1988, op. cit.). Dessa perspectiva, tratar-se-ia <strong>de</strong> incluir os movimentos atuados,<br />

uma espécie <strong>de</strong> composição mímica, mediante a qual a repetição traumática se sobrepõe<br />

à rememoração, interferindo diretamente na relação transferencial.<br />

92


No âmbito <strong>de</strong>ssas questões, <strong>no</strong> texto revigorante sobre “A elastici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> técnica<br />

psicanalítica”, Ferenczi (1928/1992) vai propor uma conduta elástica calca<strong>da</strong> na<br />

facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “sentir com”. Para tanto, o analista <strong>de</strong>ve ser capaz <strong>de</strong> estar <strong>no</strong> mesmo<br />

“diapasão do doente” (Ibid., p. 311), que, por sua vez, lhe exigiria muito tato, isto é,<br />

uma aptidão para se colocar na pele do paciente, po<strong>de</strong>ndo aproximar-se <strong>de</strong> maneira<br />

empática do seu vivido subjetivo. Com efeito, o caráter elástico confere uma tonali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

mais afetiva e espontânea na relação analítica, na contramão <strong>da</strong>s recomen<strong>da</strong>ções a favor<br />

<strong>de</strong> uma posição <strong>de</strong> neutrali<strong>da</strong><strong>de</strong> artificial e posturas rígi<strong>da</strong>s. Vale sublinhar que isso não<br />

significa satisfação <strong>da</strong>s <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s em referência ao Édipo ou à castração, mas sim, a<br />

instauração <strong>de</strong> uma atmosfera <strong>de</strong> confiança. Nessas condições, o traumatismo<br />

corporificado pelo paciente, ao ser reconhecido pelo analista, po<strong>de</strong>ria ser integrado em<br />

um repertório simbólico amplificador e gerador <strong>de</strong> movimento psíquico.<br />

Na esteira <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias, Ferenczi sugere em “Análises <strong>de</strong> crianças com os<br />

adultos” (1931/1992), a atenuação <strong>da</strong> oposição entre as análises <strong>de</strong> adultos e as análises<br />

<strong>de</strong> crianças, enfatizando a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> questionar a escuta do conteúdo puramente<br />

verbal em um regime <strong>de</strong> frustração e abstinência radicais. Tal atenuação subenten<strong>de</strong> um<br />

movimento <strong>de</strong> ir ao encontro do paciente, lá on<strong>de</strong> ele se apresenta, lá on<strong>de</strong> ele se<br />

expressa. A esse propósito, a bela metáfora <strong>de</strong> Balint <strong>no</strong>s parece bastante esclarecedora.<br />

Sigamos:<br />

Nessa situação, <strong>no</strong>sso papel assemelha-se ao <strong>de</strong> um viajante visitando uma tribo<br />

primitiva, cuja língua ain<strong>da</strong> não foi estu<strong>da</strong><strong>da</strong> e cujos costumes ain<strong>da</strong> não foram<br />

testemunhados e muito me<strong>no</strong>s <strong>de</strong>scritos em termos objetivos. É trabalho do informante<br />

chamar atenção para as partes relevantes <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> conduta, <strong>de</strong>screvendo-as <strong>de</strong><br />

acordo com a importância, em linguagem inteligível. Essa dupla tarefa – <strong>de</strong> informante<br />

e intérprete – é inevitável, não interessando se preten<strong>de</strong>mos contribuir para o avanço <strong>da</strong><br />

ciência ou meramente auxiliar <strong>no</strong>ssos pacientes (1968/1993, op. cit., p. 88).<br />

A título <strong>de</strong> revisão para avançarmos em segui<strong>da</strong>, vale reafirmar que o curso dos<br />

processos <strong>de</strong> simbolização, a partir <strong>da</strong>s três mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> registros psíquicos, se<br />

inscreve inicialmente através dos sig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> percepção, transformando-se em sequência<br />

nas representações-coisa e complexificando em representações <strong>de</strong> palavra. Por essa<br />

linha <strong>de</strong> entendimento, fica evi<strong>de</strong>nte como as situações arcaicas e limites são mais<br />

propensas às formas <strong>de</strong> expressão psíquica <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> sensório-motor e perceptivo, na<br />

medi<strong>da</strong> em que não alcançam inscrição na aparelhagem verbal. A tendência à mise-emscene<br />

justifica-se, assim, em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> registro e retor<strong>no</strong> <strong>da</strong>s experiências<br />

93


traumáticas <strong>no</strong> psiquismo, <strong>de</strong> modo que a via <strong>de</strong> expressão do sofrimento psíquico pela<br />

presentifcação em <strong>de</strong>trimento à representação se sustenta. Nessas circunstâncias, se<br />

torna imprescindível resgatar formas primitivas <strong>de</strong> comunicação.<br />

Nessa disposição, evoquemos aqui a <strong>de</strong>lica<strong>da</strong> formulação <strong>de</strong> Masud Kkan<br />

(1971/1977), a propósito <strong>de</strong> “ouvir com os olhos 18 ”, com a qual introduz uma via <strong>de</strong><br />

apreensão do outro através <strong>da</strong> experiência visual, logo, se apoiando na presença física e<br />

vibrante. Vale retomar como ilustração, a in<strong>da</strong>gação inusita<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma paciente préadolescente<br />

sobre a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> analista ter “olhos <strong>no</strong>s ouvidos”, parecendo<br />

testemunhar propriamente aí um modo <strong>de</strong> captura <strong>de</strong> si mesma. Depreen<strong>de</strong>-se disso um<br />

relatório corporal enviado pelos sentidos ao corpo alteritário, ou seja, uma comunicação<br />

efetua<strong>da</strong> diretamente pela corporali<strong>da</strong><strong>de</strong> em uma dimensão sensória <strong>de</strong> encontro. O<br />

ponto central resi<strong>de</strong>, então, <strong>no</strong> fato <strong>de</strong> que “as reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s experienciais humanas<br />

empregam e se comunicam por outros meios além <strong>da</strong> linguagem [verbal] e, trocam<br />

importantes <strong>da</strong>dos através <strong>de</strong> aparelhos <strong>de</strong> ego que não a fala” (Id., ibid., p. 301). Por<br />

esse viés <strong>de</strong> abertura, caberia se distrair em meio ao campo <strong>da</strong>s narrativas verbais mais<br />

ou me<strong>no</strong>s em operação, <strong>de</strong>ixando-se contagiar, especialmente, por uma narrativa<br />

gestual, motora, rítmica, sensorial, na medi<strong>da</strong> mesmo em que elas também narram sobre<br />

o sujeito e acerca <strong>da</strong>s relações estabeleci<strong>da</strong>s com o objeto. Com efeito, tais poeiras<br />

narrativas configuram-se como brechas para o contato com o povoado inter<strong>no</strong> dos<br />

psiquimos clivados.<br />

Logo, mais do que um ador<strong>no</strong> <strong>da</strong>s trocas humanas formalmente linguísticas,<br />

<strong>no</strong>ta-se aí, propriamente, que as conversações primitivas antece<strong>de</strong>m a apreensão<br />

intelectual do mundo. Na esteira <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias, Roussillon (2005) vai postular a<br />

existência <strong>de</strong> uma “comunicação mimo-gesto-postural”, mediante a qual as experiências<br />

psíquicas arcaicas e limites po<strong>de</strong>riam ser transmiti<strong>da</strong>s, isto é, alcançando uma certa<br />

encarnação subjetiva. Ain<strong>da</strong> que a discursivi<strong>da</strong><strong>de</strong> seja, em princípio, perita <strong>no</strong> quesito<br />

<strong>da</strong> comunicação, evi<strong>de</strong>ncia-se aqui uma interação por meios viscerais, uma troca pelo<br />

<strong>de</strong>talhe. Servindo-<strong>no</strong>s <strong>da</strong>s contribuições <strong>de</strong> Stern sobre O mundo interpressoal do bebê<br />

(1992, op. cit.), enten<strong>de</strong>mos tal interação com base <strong>no</strong>s “afetos <strong>de</strong> vitali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, <strong>no</strong><br />

sentido preciso, embora sutil, <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> ir e vir <strong>da</strong>s sensações, ações e percepções.<br />

18 De acordo com Khan (1971/1977, op. cit.), a expressão “ouvir com os olhos”, parte do título do artigo<br />

em referência, foi retirado do último verso do 23° Soneto <strong>de</strong> Shakespeare, a saber, “ouvir com os olhos<br />

diz respeito a conhecer o outro amor”.<br />

94


Tratar-se-ia, fun<strong>da</strong>mentalmente, <strong>de</strong> uma comunicação dos estados <strong>de</strong> ser, prestigiando,<br />

sobretudo, a expressão <strong>da</strong> potência do afeto e não apenas um conteúdo afetivo<br />

específico, tal como chama atenção Silvia Zornig (2012).<br />

Na direção <strong>de</strong>sses enunciados, propomos explorar o sentido <strong>da</strong>s conversações<br />

primitivas em consonância com a sustentação <strong>de</strong> um trabalho <strong>de</strong> síntese psíquica na<br />

clínica psicanalítica, a partir <strong>da</strong> conceituação <strong>de</strong> Stern (2008), fun<strong>da</strong>do na construção <strong>de</strong><br />

um “envelope pré-narrativo”. Trata-se, justamente, <strong>de</strong> uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> base <strong>da</strong><br />

experiência subjetiva que se institui na relação com os objetos, cuja função consiste em<br />

integrar o vivido subjetivo, ou ain<strong>da</strong>, sintetizar as experiências subjetivas <strong>no</strong> psiquismo.<br />

IV.3.2. O envelope pré-narrativo<br />

Em “L’enveloppe prenarrative: vers une unité fon<strong>da</strong>mentale d'expérience<br />

permettant d'explorer la réalité psychique du bébé ”, Stern (Id., ibid.) vai propor uma<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> hipotética <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica primitiva, a qual <strong>de</strong>signa por “envelope prénarrativo”.<br />

Tal envelope se configura para a compreensão do psiquismo do recémnascido,<br />

mas também serve para os acontecimentos <strong>de</strong> caráter microscópio, pouco<br />

convencionais e com fronteiras levemente <strong>de</strong>limita<strong>da</strong>s. É importante precisar que o<br />

aspecto pré-narrativo <strong>de</strong>ve-se ao fato <strong>de</strong> que o envelope forma-se antes <strong>da</strong>s aptidões<br />

para uma produção narrativa em termos vocais, sendo, inclusive, a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> a partir <strong>da</strong><br />

qual a narrativi<strong>da</strong><strong>de</strong> verbal vai emergir. Nesse sentido, o envelope testemunha<br />

propriamente a integração do vivido subjetivo. Tendo em vista que temos abor<strong>da</strong>do<br />

diferentes narrativas (gestual, motora, rítmica, sensorial) com relação às conversações<br />

primitivas, eluci<strong>da</strong>mos que o pré-narrativo em jogo na conceituação <strong>de</strong> Stern se<br />

contrapõe à linguagem estritamente verbal.<br />

De acordo com a ótica sterniana, o envelope emerge <strong>da</strong>s experiências feitas pelo<br />

indivíduo ao nascer, por ocasião do encontro <strong>da</strong>s pulsões com os objetos. Reporta-se a<br />

uma construção psíquica a partir do contato com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa, realçando, assim, a<br />

co<strong>no</strong>tação relacional <strong>da</strong> construção em questão. Por esse viés, o envelope pré-narrativo<br />

apresenta-se sob a forma <strong>de</strong> um movimento rumo à coerência, em fases sucessivas<br />

(frequentemente passageiras) <strong>de</strong> múltiplos esboços, constantemente revisados, e que não<br />

95


<strong>de</strong>vem necessariamente obter um estado final <strong>de</strong> fixi<strong>de</strong>z. Há, por assim dizer,<br />

numerosas versões narrativas não verbais <strong>de</strong> uma mesma experiência subjetiva,<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s ao mesmo tempo, e não apenas um único fragmento. Nessa medi<strong>da</strong>,<br />

caberia ao envelope fun<strong>da</strong>mentalmente forjar um contor<strong>no</strong> do vivido <strong>no</strong> tempo,<br />

concen<strong>de</strong>ndo-lhe uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> inscrita em uma dimensão temporal.<br />

Para avançar <strong>no</strong> entendimento do envelope pré-narratico, Stern (Id., ibid.)<br />

empreen<strong>de</strong> uma analogia <strong>da</strong>s relações envolvi<strong>da</strong>s na constituição do envelope com uma<br />

sinfonia, aproximando ain<strong>da</strong> a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> experiência subjetiva com a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

frase musical, cujo sentido modifica-se <strong>no</strong> tempo por meio <strong>de</strong> escalas mais curtas ou<br />

mais longas. Dessa perspectiva, o compositor que cria a partitura musical equivaleria à<br />

herança genética do recém-nascido, enquanto o chefe <strong>de</strong> orquestra que sugere uma<br />

interpretação própria em função <strong>da</strong>s tendências inatas e <strong>da</strong>s suas preferências<br />

particulares seriam os pais. Ao bebê caberia o papel <strong>da</strong> orquestra, sendo que uma parte<br />

consi<strong>de</strong>rável dos instrumentos seria toca<strong>da</strong> automaticamente pela partitura dos genes.<br />

Em acréscimo, o bebê também representaria o público, na medi<strong>da</strong> em que não conhece a<br />

música a ser toca<strong>da</strong>. Vale pontuar que, mesmo que o recém-nascido tenha participado<br />

vigorosamente do concerto, <strong>de</strong>ve ain<strong>da</strong> organizar internamente os temas, as variações,<br />

as emoções que a música mobiliza.<br />

Adotando tal perspectiva, apreen<strong>de</strong>-se que a criação dos representantes psíquicos<br />

<strong>da</strong> experiência subjetiva-musical inscreve-se <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong>s relações <strong>da</strong> partitura<br />

pulsional com os objetos orquestrantes. Reconhecendo a poesia na analogia sterniana, o<br />

ponto que <strong>no</strong>s chama atenção, contudo, se <strong>de</strong>ve à organização do psiquismo não apenas<br />

pela execução <strong>da</strong> música, mas, sobretudo, pela sua escuta, que parece, a <strong>no</strong>sso ver,<br />

<strong>de</strong>stacar o lugar <strong>da</strong> ressonância na atribuição <strong>de</strong> sentido ao acontecido, cuja resultante<br />

última recairia nas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> simbolização. Vale ressaltar que os encontros que<br />

contribuem para a concepção do envelope pré-narrativo <strong>de</strong>vem ser repetidos, ou seja, é<br />

preciso haver exposições múltiplas para que o bebê possa i<strong>de</strong>ntificar e, em sequência,<br />

representar o seu padrão internamente.<br />

De certa forma, a constituição do envelope revela um aporte construtivista, não<br />

obstante, calcado <strong>no</strong> universo pulsional e relacional, tendo em vista que é o caráter<br />

rítmico <strong>da</strong>s pulsões que assegura a repetição tanto quanto a resposta dos objetos.<br />

Efetivamente, a repetição apresenta-se como fun<strong>da</strong>mental na apreensão subjetiva do<br />

96


campo experiencial, <strong>de</strong> forma que os padrões estabelecidos se tornam a matéria-prima<br />

<strong>da</strong>s construções psíquicas. De acordo com Stern,<br />

a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> experiências subjetivas repeti<strong>da</strong>s, ocasiona<strong>da</strong> pelos padrões<br />

recorrentes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, é uma <strong>da</strong>s tarefas <strong>da</strong> construção mental (o pensamento). As aptidões<br />

do recém-nascido em reconhecer os padrões garantem que as experiências repeti<strong>da</strong>s<br />

serão i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong>s como padroões globais (Id., ibid., p.35. Tradução <strong>no</strong>ssa).<br />

Calcado em recentes pesquisas sobre o <strong>de</strong>senvolvimento infantil primitivo, o<br />

autor <strong>no</strong>s mostra ain<strong>da</strong> que os bebês são capazes <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar padrões muito<br />

precocemente, tais como o reconhecimento <strong>da</strong> voz materna imediatamente após o<br />

nascimento, a diferenciação do cheiro <strong>da</strong> mãe cerca <strong>de</strong> quatro dia após o nascimento e a<br />

distinção <strong>da</strong> maneira habitual pela qual a mãe o faz dormir passados apenas <strong>de</strong>z dias.<br />

Dito isso, preten<strong>de</strong>mos trazer à luz a multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> experiências vivi<strong>da</strong>s pelo recémnascido<br />

em sua relação com os objetos maternantes com apenas poucos dias <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

logo, substancialmente, prévias à aquisição <strong>da</strong> linguagem verbal. Com efeito, essas<br />

experiências vão se <strong>de</strong>sdobrar em modos <strong>de</strong> estabelecer relações com os objetos, muito<br />

antes <strong>de</strong> se po<strong>de</strong>r falar a respeito disso.<br />

Seguindo o pensamento sternia<strong>no</strong>, isso ocorre graças a i<strong>de</strong>ntificação dos<br />

elementos invariantes, ou seja, <strong>da</strong>quilo que permanece o mesmo, a <strong>de</strong>speito <strong>da</strong>s<br />

variações, o que <strong>no</strong>s leva a pensar, por exemplo, que a mãe que amamenta, a mãe que<br />

brinca, a mãe que se <strong>de</strong>spe<strong>de</strong> para ir ao trabalho, a mãe que embala, con<strong>de</strong>nsa algo <strong>de</strong><br />

idêntico apesar <strong>da</strong>s transformações. Tais elementos, originalmente pulverizados, quando<br />

tomados em conjunto, vão constituir a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> experiência subjetiva do indivíduo, <strong>de</strong><br />

maneira que o envelope pré-narrativo forma-se pela constelação dos modos <strong>de</strong> presença<br />

invariáveis do objeto maternante em relação ao bebê. É importante precisar que ca<strong>da</strong><br />

elemento invariante do envelope tem a sua própria linha melódica ou o seu próprio<br />

traço, <strong>de</strong> forma que <strong>no</strong> envelope em questão ca<strong>da</strong> vivido subjetivo tem a sua “curva <strong>de</strong><br />

intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>”, como <strong>de</strong>sgina Stern (Id., ibid.) que exprime o seu <strong>de</strong>senrolar <strong>no</strong> tempo e<br />

mantém, por sua vez, relação com a curva <strong>no</strong>s outros invariantes. Vale relançar a<br />

analogia com a frase musical, agora para ilustrar a orquestração <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica como<br />

efeito <strong>de</strong> vários instrumentos or<strong>de</strong>nados e combinados entre si.<br />

Por essa via <strong>de</strong> entra<strong>da</strong>, as experiências têm uma forma subjetiva – não redutível<br />

à semântica nem à abstração pura – a qual Stern (Id., ibid.) aprecia <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> uma<br />

“trajetória dramática”. Dizendo <strong>de</strong> outro modo, os envelopes pré-narrativos enquanto<br />

97


uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> experiência subjetiva são vividos como uma curva <strong>de</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> em<br />

relação ao tempo, o que implica em uma forma precoce <strong>de</strong> trajetória dramática. Nessa<br />

direção, as narrativas verbais são organiza<strong>da</strong>s, propriamente, pelos enredos pré-verbais.<br />

Vale acrescentar que se trata aqui do primeiro nível <strong>de</strong> transformação psíquica em<br />

termos dos processos <strong>de</strong> simbolização primária.<br />

Importa-<strong>no</strong>s <strong>de</strong>stacar com isso que, apesar <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> invariante <strong>de</strong> uma<br />

experiência ser trata<strong>da</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e paralelamente, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> criar um<br />

sentimento <strong>de</strong> coerência, se faz premente sob a ótica sterniana. Isso dialoga diretamente<br />

com o imperativo <strong>de</strong> síntese psíquica do vivido subjetivo clivado, via pela qual,<br />

valorizamos a criação <strong>de</strong> um envelope pré-narrativo <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong> clínica, a partir do<br />

reconhecimento dos elementos invariantes traumáticos <strong>da</strong>s situações arcaicas e limites.<br />

Tratar-se-ia, então, prosseguindo com a analogia com a música, não apenas <strong>de</strong> ouvir a<br />

so<strong>no</strong>ri<strong>da</strong><strong>de</strong> musical atrás <strong>da</strong>s palavras, mas <strong>de</strong> captar as palavras ouvi<strong>da</strong>s na<br />

musicali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s conversações primitivas, explorando possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s múltiplas <strong>de</strong><br />

composição a partir <strong>da</strong>í. Dessa perspectiva, as <strong>no</strong>tas veiculam sentido tanto quanto as<br />

pausas. Para tanto, convém entrar <strong>no</strong> ritmo que o paciente traz a casa sessão, com o<br />

intuito <strong>de</strong> estabelecer uma melodia subjetiva em parceria, matéria-prima para a<br />

construção dos parâmetros <strong>da</strong> conjuntura traumática. A título <strong>de</strong> ilustração, Roussillon<br />

(2004) compara o encontro primitivo mãe/bebê – a <strong>no</strong>sso ver, po<strong>de</strong>ríamos acrescentar a<br />

relação analista/analisando – com as improvisações rítmicas dos duelistas <strong>de</strong> jazz, posto<br />

que na improvisação em voga, método e liber<strong>da</strong><strong>de</strong> se combinam e se harmonizam.<br />

Nessas circunstâncias, fica evi<strong>de</strong>nte a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> envere<strong>da</strong>r-se por uma<br />

comunicação através <strong>da</strong> expressão corporal por vias sensório-motoras e perceptivas,<br />

permitindo-se a entra<strong>da</strong> em um mundo inaudível. O que está em jogo <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> <strong>da</strong><br />

simbolização compartilha<strong>da</strong>, portanto, é a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do analista interpretar os<br />

enunciados sensíveis e, nesse sentido, como <strong>no</strong>s chama atenção Fontes, “a apreensão<br />

pelo analista <strong>da</strong> angústia arcaica corporifica<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong> pelo paciente, implica a<br />

‘utilização’ <strong>de</strong> seu próprio corpo” (2010, p. 29). Na linha <strong>de</strong>ssas proposições, a<br />

ressonância <strong>da</strong>s curvas <strong>de</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sperta<strong>da</strong>s e revivi<strong>da</strong>s <strong>no</strong> campo transferencial<br />

adquire um lugar proeminente na prática analítica a serviço <strong>da</strong> simbolização, síntese e<br />

coerência, exigindo sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> para vislumbrá-lo.<br />

Nota-se aí a transformação <strong>de</strong> uma experiência intensiva, enquanto presença<br />

senti<strong>da</strong> pelo analista, em conteúdo simbolizável a partir do qual o analisando vai po<strong>de</strong>r<br />

98


etomar o contato com a sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica. Nessas condições, como diria Og<strong>de</strong>n<br />

(2007b), trata-se <strong>de</strong> “pôr a experiência do avesso” (p. 361. Tradução <strong>no</strong>ssa), isto é,<br />

convocar o mundo inter<strong>no</strong> do paciente para convertê-lo em algo sobre o qual o par<br />

analítico possa pensar a respeito. Nesse contexto, o enunciado <strong>de</strong> Winnicott, segundo o<br />

qual “ser conhecido significa sentir-se integrado ao me<strong>no</strong>s na pessoa do analista”<br />

(1945/2000, op. cit. p. 224), assume todo o seu fulgor. Ora, consi<strong>de</strong>rando que muitos<br />

pacientes não po<strong>de</strong>m perceber que sofrem psiquicamente, sequer se dão conta do seu<br />

existir, <strong>de</strong>monstrando uma significativa falta <strong>de</strong> intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> com o que se <strong>de</strong>senrola na<br />

interiori<strong>da</strong><strong>de</strong>, refletir o que se produz em uma dimensão sensível <strong>de</strong> encontro <strong>no</strong>s parece<br />

uma tarefa fun<strong>da</strong>mental do analista na clínica <strong>da</strong> clivagem. Em última instância, tratarse-ia<br />

<strong>de</strong> pensar a condução do tratamento analítico como i<strong>de</strong>alizado e acelerado pela<br />

“operação poética na afetação <strong>de</strong> si por si”, como sugere Richard (2006, p. 83. Op. cit.,<br />

Tradução <strong>no</strong>ssa).Vejamos como isso acontece.<br />

IV. 3. 3. O analista-espelho<br />

De saí<strong>da</strong>, retomemos aqui o belo texto winnicottia<strong>no</strong> sobre “O papel do espelho<br />

<strong>da</strong> mãe e <strong>da</strong> família <strong>no</strong> <strong>de</strong>se<strong>no</strong>lvimento infantil” (WINNICOTT, 1971b/1975). De<br />

acordo com Winnicott, o que o bebê vê quando olha para a sua mãe é ele mesmo, ou<br />

seja, “aquilo com o que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali” (Id.,<br />

ibid., p. 154). A visão do bebê <strong>no</strong> olhar <strong>da</strong> mãe espelha com harmonia a concordância<br />

entre o seu estado inter<strong>no</strong> e o que ele vê na expressão do rosto mater<strong>no</strong>. Vale observar<br />

que a função <strong>de</strong> espelho subenten<strong>de</strong> as funções primordiais <strong>de</strong> holding winnicottia<strong>no</strong> e<br />

revêrie bioniana, examina<strong>da</strong>s anteriormente. Seguindo a sugestão <strong>de</strong> Abram (1996),<br />

importante comentadora <strong>da</strong> obra winnicottiana, afirmamos que a tese central <strong>de</strong>sse texto<br />

consiste <strong>no</strong> fato <strong>de</strong> que para ver o mundo o indíviduo precisa inicialmente apreen<strong>de</strong>r a<br />

experiência <strong>de</strong> ter sido olhado. De <strong>no</strong>ssa parte, enten<strong>de</strong>mos que a função especular<br />

engloba todos os sentidos, não apenas o <strong>da</strong> visão, como <strong>no</strong> caso passível <strong>de</strong> sucesso dos<br />

bebês cegos, exemplo citado pelo próprio Winnicott.<br />

À luz do pensamento <strong>de</strong> Roussillon (2004), consi<strong>de</strong>ramos que a relação<br />

especular primordial com o outro supõe o encontro com um “duplo <strong>de</strong> si” tomado como<br />

um semelhante. A referência ao duplo aqui exclui a confusão psíquica, pois não se<br />

trataria <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> fusão entre o eu/não-eu. O duplo tornaria-se semelhante apenas<br />

99


na medi<strong>da</strong> mesmo em que aceita <strong>de</strong>sempenhar tal função, aceitando refletir o mundo<br />

inter<strong>no</strong> do objeto. Transpondo isso para o âmbito <strong>da</strong> clínica <strong>da</strong> clivagem, o analista<br />

passa a funcionar como espelho do que se encontra em negativo <strong>no</strong> analisando, tornando<br />

presente o que subjazia ausente (sem ligação). É importante observar que a partilha pelo<br />

viés <strong>da</strong> semelhança não implica em simetria entre analista/analisando, pois o analistaespelho<br />

caracteriza-se propriamente pelo processo <strong>de</strong> ajustamento e resposta em eco.<br />

Com base nisso, vale insistir que o duplo semelhante permanece outro, não sucumbindo<br />

ao amalgamento.<br />

Nessa disposição, o analista precisa entrar em contato com o paciente, “sentir<br />

com” <strong>no</strong> sentido propriamente ferenczia<strong>no</strong>, caso contrário, não conseguirá espelhar <strong>de</strong><br />

modo bastante aproximado os estados <strong>de</strong> ser do indivíduo em análise. É preciso, então,<br />

i<strong>de</strong>ntificar e amplificar o vir a ser do sujeito. Evi<strong>de</strong>ntemente, <strong>de</strong> na<strong>da</strong> adianta expressar<br />

<strong>de</strong> modo caricato pensamentos e afetos não experimentados ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente, pois,<br />

nesse caso, não haveria conformação entre analista/analisando. Como diria Pontalis,<br />

“nenhuma análise ‘an<strong>da</strong>’ – ou seja, atinge o vivo do sujeito – sem que o analista viva<br />

esses ferimentos que reavivam <strong>no</strong>ssas chagas, essas infiltrações imprevisas que<br />

atravessam e animam <strong>no</strong>ssa psique” (1975b/2005, p. 236). Cabe observar que tal<br />

conformação opera-se por meio <strong>de</strong> diferentes mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ou seja, a transmissão<br />

psíquica ocorre em sintonia, mas não necessariamente do mesmo modo, implicando em<br />

cruzamentos amo<strong>da</strong>is <strong>de</strong> comunicação (STERN, 1992, op. cit.). Nesse sentido, por<br />

exemplo, a captura <strong>de</strong> um estado inter<strong>no</strong> passional transmitido pelo gestual po<strong>de</strong> ser<br />

ecoado por um dito <strong>de</strong> maneira ajusta<strong>da</strong>.<br />

Parece-<strong>no</strong>s pertinente precisar que, não raro, a fruição <strong>da</strong>s partes psíquicas se<br />

mostram incompatíveis entre elas, resultando em eixos <strong>de</strong> reflexão analítica distintos,<br />

por vezes, antagônicos, próprios <strong>de</strong> um funcionamento clivado. Por essa razão, <strong>no</strong>s<br />

parece importante ressaltar que o próprio analista <strong>de</strong>ve ser capaz <strong>de</strong> também entrar em<br />

contato com estados <strong>de</strong> dissociação, permitindo-se ser tocado por canais simultâneos,<br />

paralelos e incongruentes <strong>de</strong> comunicação verbal e não verbal (FIGUEIREDO, 2003f).<br />

Apesar <strong>da</strong>s oscilações, instabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e turbulências que tamanha mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> engendra,<br />

as partes cindi<strong>da</strong>s precisam ser contacta<strong>da</strong>s, reconheci<strong>da</strong>s e integra<strong>da</strong>s, logo, convém<br />

não dispensar tal transferência paradoxal. Cientes disso, estaremos mais aptos a tolerar a<br />

sensação <strong>de</strong> confusão psíquica quando modos muito primitivos <strong>de</strong> relação com os<br />

objetos inter<strong>no</strong>s são transpostos para o objeto-analista. Pela face oposta, precisamos<br />

100


também aceitar, muitas vezes, o lugar <strong>de</strong> um “observador excluído”, como <strong>no</strong>s chama<br />

atenção Steiner (2011), <strong>de</strong>vido a retira<strong>da</strong> radical <strong>de</strong> investimento na troca analítica.<br />

Malgrado o rigor <strong>da</strong>s clivagens, vale perserverar na criação <strong>de</strong> brechas <strong>no</strong> sistema<br />

fechado, flexibilizando as relações com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa sem a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tantas<br />

películas protetoras.<br />

Com base nessas consi<strong>de</strong>rações, preten<strong>de</strong>mos ressaltar que é precisamente a<br />

reflexão analítica (<strong>no</strong> sentido especular e pensante) que vai permitir a construção <strong>da</strong>s<br />

primeiras formas <strong>de</strong> sentido, ou seja, a simbolização compartilha<strong>da</strong> em uma dimensão<br />

sensível vai <strong>da</strong>r origem aos esboços narrativos traumáticos, campo fértil <strong>de</strong><br />

transformação do vivido subjetivo, inscritos como sig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> percepção. Isso implica<br />

pensar que a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> pulsional figura<strong>da</strong> <strong>no</strong> corpo (Darstellung) começa a conquistar<br />

<strong>no</strong>vos domínios simbólicos. É interessante atentar que o espelhamento <strong>da</strong> condição<br />

subjetiva do analisando pelo analista efetua-se na contramão <strong>da</strong> clivagem, em benefício<br />

<strong>da</strong> reiteração <strong>da</strong>s partes psíquicas <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s à esmo. Logo, o evitamento do objetoanalista<br />

em uma dimensão pulsional <strong>de</strong> encontro e as angústias ocasiona<strong>da</strong>s pelo<br />

movimento <strong>de</strong> integração estarão permanentemente à espreita. Contudo, lendo Anzieu<br />

(1979/2007), reconhece-se que, nessas ocasiões, o paciente vai se <strong>de</strong>parar não apenas<br />

com um espelho, mas também, com a disposição subjetiva do próprio analista em<br />

intervir como seu “porta-voz”, em outros termos, com a sua crença na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

criar sentido para a existência.<br />

Sob essa ótica, preten<strong>de</strong>mos salientar, como <strong>no</strong>s chama atenção Green<br />

(1974/1990, op. cit.), que a visão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica do paciente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

psíquica do analista, do mesmo modo que a visão do mundo exterior do paciente<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica. Nesses termos, a resposta do analista confere uma<br />

forma e sentido às experiências subjetivas do analisando, reforçando o estabelecimento<br />

<strong>de</strong> uma relação, fun<strong>da</strong>mentamente, dialética entre eles. Isso <strong>de</strong><strong>no</strong>ta, tal como aponta<br />

Richard (2011), que “o encontro analítico é a experiência vivi<strong>da</strong> <strong>de</strong> contato<br />

interpsíquico” (p. 199. Tradução <strong>no</strong>ssa.). Ora, com efeito, a transformação do<br />

funcionamento psíquico clivado pelas vias <strong>da</strong> simbolização efetua-se através do<br />

compartihamento, ou seja, pela mediação do outro. Com esse propósito, lançando mão<br />

<strong>da</strong> indicações sugeri<strong>da</strong>s por Bruce Reis <strong>no</strong> tocante às implicações <strong>da</strong> psicanálise para os<br />

próximos tempos, “usaremos <strong>no</strong>ssas presenças corpóreas para <strong>no</strong>s conectarmos ao outro<br />

101


e para experienciar suas experiências, para sentir sua alegria, sua tristeza, sua dor”<br />

(2012, p. 231-232).<br />

Dessa perspectiva, ao invés <strong>de</strong> se fixar na escuta do <strong>de</strong>sejo inconsciente, o<br />

analista se entregaria aos movimentos pulsionais que lhe chegam através dos sentidos e,<br />

nesse caso, o que vai se passar durante a sessão <strong>de</strong> análise ultrapassaria<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente o discurso formal. Certamente, valorizar o espectro <strong>de</strong> radiação <strong>da</strong>s<br />

conversações analíticas para além <strong>da</strong> palavra, amplia as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> encontro e<br />

legitimação do outro. Com isso, o psicanalisar torna-se potente ali on<strong>de</strong> os pacientes se<br />

expressam. Consi<strong>de</strong>rando ain<strong>da</strong> o engessamento que envolve as subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

proeminentemente cliva<strong>da</strong>s, atravessa<strong>da</strong>s por inúmeras regras <strong>de</strong> comportamento e<br />

protocolos existenciais, convém oferecer uma quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> presença analítica que não<br />

pô<strong>de</strong> ser experimenta<strong>da</strong> nas situações arcaicas e limites.<br />

IV.4. Intervenções do Nebenmensch<br />

Consi<strong>de</strong>rando a eco<strong>no</strong>mia do excesso traumático e o espaço psíquico <strong>de</strong> vacilo<br />

narcísico, <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong>s falhas dos objetos primordiais <strong>no</strong> <strong>de</strong>sempenho <strong>da</strong>s funções <strong>de</strong><br />

holding e revêrie, propomos dinamicamente, com Richard (2011, op. cit.), resgatar<br />

clinicamente a figura do Nebenmensch, introduzi<strong>da</strong> por Freud <strong>no</strong> Projeto <strong>de</strong> 1895<br />

(1950[1895]/1996. op. cit.). Trata-se aqui <strong>de</strong> um ser huma<strong>no</strong> outro, mas próximo . Notase<br />

que, nesse contexto, o termo próximo <strong>de</strong>signa o modo específico pelo qual a mãe<br />

sensibiliza-se com o grito do recém-nascido, aten<strong>de</strong>ndo a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente aos seus<br />

anseios. Em contraposição à <strong>de</strong>scoberta traumática <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, as intervenções do<br />

Nebenmensch não são <strong>de</strong>tectáveis <strong>de</strong> imediato, configurando-se como função <strong>de</strong> amparo<br />

e ligação.<br />

Depreen<strong>de</strong>-se <strong>da</strong>í que mais do que interpretações astutas e verticalizações<br />

distanciadoras, torna-se mais a<strong>de</strong>quado estar lado a lado, em uma posição paralela,<br />

buscando conjuntamente sentido e forma para as experiências intensivas que se<br />

<strong>de</strong>senrolam por meio <strong>da</strong>s conversações primitivas. Logo, o <strong>de</strong>safio simbólico <strong>no</strong><br />

horizonte clínico consiste <strong>no</strong> favorecimento <strong>da</strong> ligação <strong>da</strong> pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong> com os<br />

objetos, buscando a intrincação <strong>de</strong> Eros com Tânatos.<br />

102


De fato, levando-se em conta o psiquismo majoritariamente clivado, a<br />

pressuposição <strong>de</strong> uma abor<strong>da</strong>gem primitiva, polimórfica e espelha<strong>da</strong> consiste em uma<br />

abertura fun<strong>da</strong>mental, pois o que está em jogo é a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> estabelecer uma<br />

conexão com os estados psíquicos ilhados, não apenas através <strong>da</strong>s relações entre os<br />

significantes, mas, sobretudo, por uma linguagem sensível. Sabemos que as relações<br />

com o povoado inter<strong>no</strong> assumem um colorido particular repetível na relação analítica,<br />

sendo assim, passível <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação, mesmo quando tais relações não possuem os<br />

códigos conferidos aos sig<strong>no</strong>s representativos. Efetivamente, trazendo à luz o teatro<br />

inter<strong>no</strong>, fica possível construir um roteiro, estabelecer papéis e marcos temporais para a<br />

trajetória dramática do traumatismo e, nesse sentido, abrir brechas <strong>no</strong> sistema fechado<br />

(FAIRBAIRN, 1958/1994, op. cit.).<br />

Nesse contexto, <strong>no</strong>s parece importante consi<strong>de</strong>rar formas <strong>de</strong> estabelecer contato<br />

que não violem em <strong>de</strong>masiado o retraimento <strong>de</strong>fensivo alcançado à duras penas.<br />

Servindo-<strong>no</strong>s <strong>da</strong> diferenciação <strong>de</strong> Rosenfeld (1987/1988), a propósito dos pacientes <strong>de</strong><br />

“pele fina” e “pele grossa”, <strong>no</strong>s parece importante i<strong>de</strong>ntificar as vias mais a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

comunicação com os pacientes <strong>no</strong> <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong>s sessões. Cabe acrescentar que do<br />

<strong>no</strong>sso ponto <strong>de</strong> vista, tal diferenciação po<strong>de</strong> ser referi<strong>da</strong> a um funcionamento distinto,<br />

mas alternado, em uma mesma subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nessa direção, algumas intervenções<br />

<strong>de</strong>vem ser conduzi<strong>da</strong>s com mais firmeza e confronto, posto a <strong>de</strong>safetação, anestesia e<br />

intangibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns pacientes, outras precisam ser <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>mente introduzi<strong>da</strong>s em<br />

virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> porosi<strong>da</strong><strong>de</strong> e hipersensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Seja como for, é preciso consi<strong>de</strong>rar a vulnerabili<strong>da</strong><strong>de</strong> em questão para não<br />

propiciar o embotamento em <strong>de</strong>trimento ao movimento <strong>de</strong> expansão. Em “Seeing and<br />

Being seen: emerging from a psychic retreat”, na esteira <strong>de</strong>ssas preocupações, Steiner<br />

(2011, op. cit.) <strong>no</strong>s adverte que ser visto po<strong>de</strong> trazer prazer, orgulho e admiração, por<br />

um lado, mas também engendra sensações opostas <strong>de</strong> constrangimento, vergonha e<br />

humilhação, por outro. Desse modo, a consequência imediata <strong>da</strong> emergência do refúgio<br />

seria <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma exposição <strong>de</strong> si equivalente a uma per<strong>da</strong> <strong>de</strong> proteção, po<strong>de</strong>ndo,<br />

<strong>no</strong> limite, levantar o colapso psíquico. Para ilustrar isso, Steiner <strong>no</strong>s lembra com<br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> a história do conto <strong>de</strong> fa<strong>da</strong>s “A roupa <strong>no</strong>va do rei” (ANDERSEN, 1995),<br />

para indicar que o refúgio psíquico serviria como as roupas nas quais o rei po<strong>de</strong>ria se<br />

escon<strong>de</strong>r, livrando-o do embaraço. Colocando isso em perspectiva, convém criar uma<br />

103


abertura para a comunicação analista/analisando com o mínimo <strong>de</strong> interferência<br />

possível.<br />

Cabe ain<strong>da</strong> retomar o postulado <strong>de</strong> que tais pacientes estão acostumados a<br />

funcionar em um “sistema fechado”, como apren<strong>de</strong>mos com Fairbairn (1955/1994, op.<br />

cit.), e <strong>de</strong> modo auto-suficiente, prescindindo, portanto, do efetivo encontro alteritário.<br />

Nessas circunstâncias, parece haver não apenas uma ve<strong>da</strong>ção ao outro, mas uma<br />

dispensa do próprio mundo inter<strong>no</strong>, raramente vivido como fonte <strong>de</strong> prazer. Reafirma-se<br />

aí a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> em traduzir o que se passa na interiori<strong>da</strong><strong>de</strong> por um fluxo pensante, o que<br />

termina por exigir do analista constante investimento <strong>no</strong> exercício reflexivo, na<br />

conjugação <strong>da</strong>s representações e afetos. Com esse propósito, constatamos que, muitas<br />

vezes, a genuína e simplória pergunta sobre os pensamentos do paciente em uma<br />

ocasião <strong>de</strong> silêncio – “o que você está pensando”, por exemplo – parece convocar<br />

minimamente o contato com a sua própria matriz relacional, com otimismo, <strong>da</strong>ndo<br />

ensejo ao aprendizado <strong>da</strong> comunicação ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira com o outro e com partes do si<br />

mesmo.<br />

Nesse bojo <strong>de</strong> questões, encaramos a espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> do analista como um<br />

ingrediente importante para instaurar uma “situação analisante” (DONNET, 2005, op.<br />

cit.), tornando-o me<strong>no</strong>s propenso aos padrões <strong>de</strong> atuações psicanalíticas, cujo efeito <strong>de</strong><br />

sentido não seria alcançado pelo paciente. Tal espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> conduz, muitas vezes,<br />

para um certo “estilo psicodramático <strong>de</strong> intervenção”, <strong>no</strong>s apoiando na expressão <strong>de</strong><br />

Richard (2011, op. cit.), <strong>no</strong> rumo inverso <strong>de</strong> um “estilo dialógico”. Isso se <strong>de</strong>termina na<br />

medi<strong>da</strong> em que o analista introduz uma fala do lugar suposto <strong>no</strong> paciente, colocando em<br />

cena palavras para uma experiência até então mu<strong>da</strong> e sem para<strong>de</strong>iro. É importante<br />

observar que tal fala forja-se justamente a partir <strong>da</strong>s conversações primitivas, a partir <strong>da</strong><br />

qual po<strong>de</strong>mos dizer que “o analista monta e guar<strong>da</strong> consigo uma cartografia contendo as<br />

quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s sensíveis do paciente” (KLAUTAU, 2012, p. 99). Entreve-se aí co<strong>no</strong>tações<br />

profícuas para o sentido <strong>da</strong>s construções em análise originalmente freudia<strong>no</strong>.<br />

Contudo, é preciso estar atento para a dosagem <strong>de</strong> reconhecimento, <strong>de</strong> modo que<br />

um nível <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>ração se faz necessário, ou seja, nem <strong>de</strong>mais nem <strong>de</strong> me<strong>no</strong>s. Dito isso,<br />

vale sublinhar que o Nebenmensch não <strong>de</strong>ve ser próximo <strong>de</strong>mais, precipitando-se nas<br />

respostas e inferências. Tratar-se-ia, então, <strong>de</strong> viabilizar uma experiência modula<strong>da</strong>,<br />

calca<strong>da</strong> em uma sintonia afina<strong>da</strong> com o outro, <strong>no</strong> que ele tem <strong>de</strong> mais autêntico; na<br />

104


contramão dos encontros alteritários pelo vértice do excesso, seja por engolfamento ou<br />

inacessibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Por essa via <strong>de</strong> entendimento, Figueiredo (2009, op. cit.), sugere a<br />

condução do processo analítico com base na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do analista se manter,<br />

simultaneamente, como “presença implica<strong>da</strong>” e “presença reserva<strong>da</strong>”. Acompanhemos<br />

o seu enunciado:<br />

É óbvia a insuficiência <strong>da</strong> pura reserva, entendi<strong>da</strong> como neutrali<strong>da</strong><strong>de</strong>, indiferença e<br />

silêncio, principalmente diante dos pacientes chamados ‘difíceis’. Aqueles que trazem a<br />

loucura à flor <strong>da</strong> pele. No entanto, seja na análise, seja na vi<strong>da</strong>, em qualquer experiência<br />

<strong>de</strong> cui<strong>da</strong>do, são inegáveis os malefícios <strong>da</strong> implicação pura – os extravios e excessos<br />

<strong>da</strong>s funções cui<strong>da</strong>doras – mesmo quando, e principalmente quando, são justificados<br />

pelas melhores razões humanitárias: salvar, socorrer, curar a todo custo! (Id., ibid., op.<br />

cit., p. 141).<br />

Tal quali<strong>da</strong><strong>de</strong> a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> <strong>de</strong> presença <strong>de</strong>ve ser especialmente consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> quando<br />

<strong>no</strong>s voltamos para a origem do acionamento <strong>da</strong>s clivagens, a saber, o excesso pulsional<br />

<strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong>s falhas dos objetos primordiais em <strong>de</strong>sempenhar as funções <strong>de</strong> holding e<br />

continência. Diante <strong>de</strong> um sujeito mergulhado em angústias contraditórias <strong>de</strong> separação<br />

e angústias <strong>de</strong> abando<strong>no</strong>, caberia ao analista, então, “oferecer um espaço ventilado <strong>no</strong><br />

qual o excesso possa se transformar em ausência enquanto presença potencial”<br />

(GARCIA, 2010, p. 75), simbolização por excelência.<br />

Isso <strong>no</strong>s remete às formulações <strong>de</strong> Marion Milner (1955) a respeito <strong>da</strong><br />

importância do meio maleável <strong>no</strong>s processos <strong>de</strong> simbolização, <strong>no</strong> qual não haveria a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> distinguir niti<strong>da</strong>mente entre o mundo inter<strong>no</strong> e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> externa,<br />

ocasionando a ilusão <strong>de</strong> uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> entre o eu e o não-eu. Sob essa ótica, a ilusão <strong>de</strong><br />

união sujeito/objeto permitiria, justamente, a aceitação efetiva <strong>da</strong> ausência do objeto, ou<br />

seja, para obter a separação é preciso experimentar a não separação. Nessa mesma<br />

direção, Balint afirma:<br />

(...) o analista, não <strong>de</strong>ve resistir, <strong>de</strong>ve consentir, não <strong>de</strong>ve <strong>da</strong>r origem a muito atrito,<br />

<strong>de</strong>ve aceitar e transportar o paciente durante um certo tempo, <strong>de</strong>ve provar ser mais ou<br />

me<strong>no</strong>s in<strong>de</strong>strutível, não <strong>de</strong>ve insistir em manter limites nítidos, permitindo o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> mistura entre o paciente e ele próprio (BALINT,<br />

1968/1993, op. cit., p. 134).<br />

No contexto clínico, caberia então aceitar o paciente não apenas na sua diferença<br />

como <strong>de</strong> costume analítico, mas também, na sua não diferença, ali on<strong>de</strong> ele precisa se<br />

confundir. Acrescentaremos uma pequena observação lateral, pois <strong>no</strong>s parece<br />

105


interessante pensar naqueles pacientes que costumam <strong>de</strong>screver minunciosamente os<br />

acontecimentos entre uma sessão e outra como um certo enfrentamento tanto <strong>da</strong>s<br />

angústias <strong>de</strong>correntes <strong>da</strong> união quanto <strong>da</strong> separação entre analista/analisando, via <strong>de</strong><br />

asseguramento do vínculo analítico. A<strong>de</strong>mais, tais relatos milimetricamente contados<br />

parecem concorrer ain<strong>da</strong> para a integração <strong>da</strong>s experiências psíquicas na presença do<br />

analista. 19<br />

Por esse viés, a referi<strong>da</strong> maleabili<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser toma<strong>da</strong> como “símbolo <strong>da</strong><br />

confiança” entre sujeito e objeto, apoiados <strong>no</strong>s ensinamentos winnicottia<strong>no</strong>s<br />

(WINNICOTT, 1968/2002, op. cit.), a partir do qual a ausência do objeto não é<br />

experimenta<strong>da</strong> como abando<strong>no</strong>, mas como convite à diferenciação. Encaminhando mais<br />

a discussão, propomos o entendimento <strong>da</strong> função do meio maleável em comparação<br />

com uma massa <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar, tal como sugere Roussillon (1995, op. cit.). Tal<br />

comparação torna-se possível em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s sensório-motoras e<br />

perceptivas <strong>da</strong> massa e pelo fato <strong>de</strong>la não apresentar nenhum símbolo a priori, além <strong>da</strong><br />

sua aptidão para assumir diversas formas. Prosseguindo com a analogia, <strong>no</strong>s parece<br />

interessante pensar como a massa <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar consiste em um objeto perceptível,<br />

consistente, manipulável, mas sem resistência própria, ou seja, a massa se dobra e se<br />

mo<strong>de</strong>la, <strong>de</strong> acordo com os movimentos que lhe imprimem. De fato, a massa não se<br />

quebra, rasga ou <strong>de</strong>strói, contentando-se em mu<strong>da</strong>r sensivelmente <strong>de</strong> forma, e ain<strong>da</strong> sim,<br />

permanecendo, <strong>de</strong> certa maneira, sempre pareci<strong>da</strong> com ela mesma.<br />

Importa-<strong>no</strong>s <strong>de</strong>stacar do meio enquanto massa <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar é a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

transformar quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> em quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, força em sentido, em outros termos, a ligação <strong>da</strong><br />

pulsionali<strong>da</strong><strong>de</strong> aos objetos. De acordo com Green, “é o movimento que <strong>de</strong>ve ser<br />

privilegiado em to<strong>da</strong>s as proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s do psiquismo. E sem forma não há movimento<br />

possível”, evi<strong>de</strong>ntemente, “imaginar uma força totalmente cega, absolutamente<br />

<strong>de</strong>sprovi<strong>da</strong> <strong>de</strong> sentido seria inconcebível” (2005, op. cit. p. 75). Em termos<br />

propriamente freudia<strong>no</strong>s, po<strong>de</strong>mos pensar a ligação como o terre<strong>no</strong> princeps do sentido,<br />

19 Vale sublinhar que tal funcionamento em análise também aponta para uma interdição do pensamento,<br />

efeito <strong>da</strong> clivagem, <strong>no</strong> sentido <strong>da</strong> <strong>de</strong>svinculação entre representações e afetos, como examinamos<br />

anteriormente.<br />

106


sendo o que permite fugir à dominação exclusiva <strong>da</strong> força é a simbolização. Graças à<br />

simbolização, a força se <strong>de</strong>sloca, permitindo a sua transformação. Fica patente aqui que<br />

para se estabelecer a ligação, é preciso a contraparti<strong>da</strong> do objeto.<br />

Ain<strong>da</strong> que não seja possível recapitular as histórias passa<strong>da</strong>s por inteiro, ou<br />

mesmo inventá-las mediante construções imaginativas, ain<strong>da</strong> assim, apreciamos a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sol<strong>da</strong> dos fragmentos psíquicos. A <strong>no</strong>sso favor, contamos ain<strong>da</strong> com<br />

um tratamento psíquico <strong>no</strong> âmbito <strong>da</strong> própria relação analítica. Diante disso, como bem<br />

apreciaria Balint (1968/1993, op. cit.), <strong>no</strong>s mantemos crédulos <strong>no</strong> “po<strong>de</strong>r cicatrizante <strong>da</strong><br />

relação”, apostando na oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um <strong>no</strong>vo começo através <strong>da</strong> gestação <strong>de</strong> outros<br />

mundos possíveis – inter<strong>no</strong>s e exter<strong>no</strong>s – <strong>no</strong>s limites do analisável. À luz <strong>da</strong>s reflexões<br />

fairbairnianas, <strong>no</strong>s resta insistir que “<strong>de</strong>ve-se acreditar que todos os aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

humana <strong>de</strong>vem ser capazes <strong>de</strong> alguma reconciliação última, ou ao me<strong>no</strong>s serem livres<br />

<strong>de</strong> uma incompatibili<strong>da</strong><strong>de</strong> inconciliável” (FAIRBAIN, 1955/1994, op. cit., p.127.<br />

Tradução <strong>no</strong>ssa).<br />

Encaminhamo-<strong>no</strong>s para o encerramento <strong>da</strong> <strong>no</strong>ssa discussão, articulando<br />

vigorosamente, mais um vez, a primeira e a segun<strong>da</strong> tópica (ao dizer que força e sentido<br />

são mediados pelos diferentes níveis e formas <strong>de</strong> simbolização); eu e o outro.<br />

107


Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei <strong>de</strong> tudo,<br />

Espécie <strong>de</strong> acessório ou sobressalente próprio,<br />

Arredores irregulares <strong>da</strong> minha emoção sincera,<br />

Sou eu aqui em mim, sou eu.<br />

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.<br />

Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.<br />

Quanto amei ou <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> amar é a mesma sau<strong>da</strong><strong>de</strong> em mim.<br />

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,<br />

Como <strong>de</strong> um sonho formado sobre reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s mistas,<br />

De me ter <strong>de</strong>ixado, a mim, num banco <strong>de</strong> carro elétrico,<br />

Para ser encontrado pelo acaso <strong>de</strong> quem se lhe ir sentar em cima.<br />

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,<br />

Como <strong>de</strong> um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acor<strong>da</strong>,<br />

De haver melhor em mim do que eu.<br />

Fernando Pessoa<br />

Lendo Proust e os sig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> Gilles Deleuze, <strong>de</strong>paramo-<strong>no</strong>s com o seguinte<br />

trecho: “A vocação é sempre uma pre<strong>de</strong>stinação com relação a sig<strong>no</strong>s. Tudo que <strong>no</strong>s<br />

ensina alguma coisa emite sig<strong>no</strong>s, todo ato <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r é uma interpretação <strong>de</strong> sig<strong>no</strong>s ou<br />

<strong>de</strong> hieróglifos” (1976/2003, p. 4). Com efeito, o trecho termi<strong>no</strong>u por interferir <strong>no</strong><br />

encaminhamento <strong>da</strong>s <strong>no</strong>ssas consi<strong>de</strong>rações finais acerca <strong>da</strong> problemática <strong>da</strong> clivagem,<br />

permitindo-<strong>no</strong>s <strong>de</strong>stacar a relevância que atribuímos à possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar os<br />

sig<strong>no</strong>s pelo ponto <strong>de</strong> vista do aprendizado. “Apren<strong>de</strong>r é relembrar, mas relembrar na<strong>da</strong><br />

mais é do que apren<strong>de</strong>r”, escreve Deleuze (Ibid., p. 61), afirmando a vi<strong>da</strong> como um<br />

aprendizado constante. Sob essa ótica, o indivíduo jamais <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r ou <strong>de</strong>cifrar<br />

os sig<strong>no</strong>s, <strong>de</strong>sdobrando-se por meio <strong>de</strong> uma prática interpretativa com base em uma<br />

permanente experimentação (ULPIANO, 1995/2012). Os mundos possíveis, nesse<br />

sentido, correspon<strong>de</strong>m ao inventário <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista sobre o mundo.<br />

108


À propósito <strong>da</strong> célebre obra <strong>de</strong> Proust – À la recherche du temps perdu –<br />

Deleuze (1976/2003, op. cit.) vai explorar a plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> do mundo dos sig<strong>no</strong>s. “Só há<br />

sig<strong>no</strong>s”, <strong>no</strong>s diz Deleuze (Id., ibid., p.86), enfatizando a não existência <strong>de</strong> fatos, apenas<br />

interpretações. Por essa linha <strong>de</strong> pensamento, haveria apenas uma lei – a lei dos sig<strong>no</strong>s.<br />

Sendo assim, é por intermédio dos sig<strong>no</strong>s que <strong>de</strong>staca-se o mundo, emite-se algo e<br />

<strong>de</strong>cifra-se algo. Com esse respeito, ca<strong>da</strong> sig<strong>no</strong> comporta uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira linha <strong>de</strong><br />

aprendizado em uma dimensão temporal privilegia<strong>da</strong>. Nota-se aí que o sig<strong>no</strong> mantém<br />

uma íntima relação com a memória, especialmente, em virtu<strong>de</strong> do seu caráter evocativo<br />

e absolutamente singular. Efetivamente, nunca sabe-se como um indivíduo apreen<strong>de</strong> a<br />

vi<strong>da</strong>, mas seja como for, é sempre através dos sig<strong>no</strong>s e per<strong>de</strong>ndo tempo, acrescentaria<br />

Deleuze (1976/2003, op. cit.)<br />

É importante observar que não se trata <strong>de</strong> uma interpretação lógica e abstrata dos<br />

sig<strong>no</strong>s, pois a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> aqui implica radicalmente o intérprete, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> sofre<br />

inteiramente a pressão interna e/ou externa. Nesse contexto, o tempo torna-se sempre<br />

necessário para a interpretação <strong>de</strong> um sig<strong>no</strong>, pois pressupõe-se a maturação progressiva<br />

do intérprete. No bojo <strong>de</strong>ssa reflexão, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> envolve necessariamente o tempo, <strong>de</strong><br />

tal maneira que a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser sempre consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> como a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um tempo.<br />

Com Deleuze, salientamos que “é, portanto, nas linhas do tempo que os sig<strong>no</strong>s<br />

interferem uns com os outros e multiplicam suas combinações” (Id., ibid., p. 82. Grifos<br />

do autor). Seguindo as pega<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Deleuze, constatamos a existência <strong>de</strong> sig<strong>no</strong>s que<br />

comportam a passagem do tempo – tempo perdido – o qual compreen<strong>de</strong> tanto o tempo<br />

que passa quanto o tempo que se per<strong>de</strong>; e, ain<strong>da</strong>, sig<strong>no</strong>s que implicam o tempo<br />

re<strong>de</strong>scoberto, ou seja, um tempo original que <strong>de</strong>scobre-se <strong>no</strong> âmago do tempo perdido.<br />

Ora, certamente, não bastaria per<strong>de</strong>r tempo para acessar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> do tempo<br />

perdido. Nesse sentido, “o essencial na Recherche não é a memória nem o tempo, mas o<br />

sig<strong>no</strong> e a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” (Id., ibid., p. 85). A Recherche configura-se, então, essencialmente<br />

como a busca pela ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mas, afinal, “quem procura a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>?”, interroga o<br />

filosófo (Id., ibid., p. 14). Por <strong>no</strong>ssa conta, <strong>de</strong>sdobramos a interrogação, mas, afinal,<br />

quem procura uma análise? Ou ain<strong>da</strong>, quem procura a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> em uma análise? Com<br />

efeito, <strong>no</strong>s ensina Deleuze, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> não seria <strong>de</strong>scoberta por boa vonta<strong>de</strong>, amor<br />

espontâneo ou afini<strong>da</strong><strong>de</strong>, reportando-se a algo que perturba o so<strong>no</strong>, algo que rouba a<br />

paz, algo que <strong>de</strong>sconcerta. É preciso, portanto, sentir-se coagido a procurar o sentido,<br />

experimentar o impacto imposto pelo sig<strong>no</strong>, encontrar a violência <strong>de</strong> uma impressão,<br />

109


pois, nessas condições, a “dor força a inteligência a funcionar 20 ” (Id., ibid., p. 22).<br />

Logo, há sempre a violência <strong>de</strong> um sig<strong>no</strong> mobilizando a procura, <strong>de</strong> modo que a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> consistiria <strong>no</strong> resultado <strong>de</strong> uma violência sobre o pensamento. Entreve-se aí<br />

como as impressões sensíveis convocam o olhar, a contigência dos encontros incitam<br />

traduções, as conversações impelem o ato <strong>de</strong> pensar. Por essa via <strong>de</strong> cruzamento,<br />

parece-<strong>no</strong>s interessante consi<strong>de</strong>rar que a procura pela ver<strong>da</strong><strong>de</strong> equivale à própria<br />

<strong>de</strong>cifração dos sig<strong>no</strong>s, sendo que a referi<strong>da</strong> <strong>de</strong>cifração confun<strong>de</strong>-se com o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento do sig<strong>no</strong> em si mesmo.<br />

Nesse sentido, resolvemos aproximar <strong>de</strong> maneira fluí<strong>da</strong> a aprendizagem conti<strong>da</strong><br />

<strong>no</strong> processo <strong>de</strong> subjetivação com o que se apren<strong>de</strong> através do Tempo re<strong>de</strong>scoberto, na<br />

medi<strong>da</strong> mesmo em que ambos englobam as reminiscências, as séries associativas, a<br />

comunicação entre as linhas dos sig<strong>no</strong>s, pondo em movimento o pensamento e a alma,<br />

<strong>de</strong>spertando, por sua vez, os próprios canais <strong>de</strong> comunicação. Abor<strong>da</strong>ndo a Recherche<br />

pela <strong>no</strong>ssa perspectiva, parece-<strong>no</strong>s pertinente consi<strong>de</strong>rá-la como a construção <strong>de</strong> uma<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> (material ou histórica) essencialmente procura<strong>da</strong>, a saber, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> pessoal.<br />

Sabemos que o passado nunca “cai em <strong>de</strong>suso”. Ora, se tem algo que, <strong>de</strong>finitivamente, a<br />

psicanálise <strong>no</strong>s ensina (1900/1996, op. cit.), consiste <strong>no</strong> caráter <strong>de</strong> in<strong>de</strong>strutibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

todos os acontecimentos psíquicos. “Uma humilhação experimenta<strong>da</strong> trinta a<strong>no</strong>s antes<br />

atua exatamente como uma <strong>no</strong>va humilhação ao longo <strong>de</strong>sses trinta a<strong>no</strong>s”, <strong>no</strong>s adverte<br />

Freud, “tão logo se roça em sua lembrança” (Id., ibid., p. 606).<br />

Sem otimimo nem pessimismo, acreditamos que a Recherche aponta a maneira<br />

<strong>de</strong> retomar a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica, tornando possível a reorganização subjetiva<br />

<strong>no</strong> âmago do traumatismo perdido. Não tratar-se-ia apenas <strong>de</strong> uma volta ao passado,<br />

mas, sobretudo, <strong>da</strong> retoma<strong>da</strong> dos sig<strong>no</strong>s para fins <strong>de</strong> aprendizagem. Tal retoma<strong>da</strong> nem<br />

sempre supera as fissuras <strong>no</strong> psiquismo, mas constitui-se como a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sol<strong>da</strong>r<br />

os fragmentos. Nessa direção, cabe efetivamente sustentar o “engendramento<br />

progressivo do psíquico a partir <strong>de</strong> um traumatismo originário” (ROUSSILLON,<br />

1991/2006, p.222). Levando isso em conta, inspirados pela leitura <strong>de</strong> Deleuze,<br />

consi<strong>de</strong>ramos que mais importante do que o próprio pensamento é restituir a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> pensar, dizendo <strong>de</strong> outro modo, mais importante do que o símbolo obtido é restituir a<br />

20 Vale precisar que a inteligência aqui não é sinônimo <strong>de</strong> sabedoria, como examinamos pelo viés<br />

traumático <strong>da</strong> prematuração patológica, referindo-se, sobretudo, ao entrelaçamento entre a força e o<br />

sentido.<br />

110


capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> simbolizar. Marca-se aí a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar o mundo como<br />

algo a ser interpretado, apropriação subjetiva por excelência, legado essencialmente<br />

freudia<strong>no</strong>. A <strong>no</strong>sso ver, resi<strong>de</strong> aí o caráter vigoroso <strong>da</strong> Recherche psicanalítica, sendo<br />

que “o leitmotiv do Tempo re<strong>de</strong>scoberto” como ensina Deleuze (Id., ibid., p. 89), “é a<br />

palavra forçar”.<br />

Certamente, não existe correspondência pré-estabeleci<strong>da</strong> entre o eu e o outro, <strong>de</strong><br />

modo que a “experiência <strong>da</strong>s <strong>de</strong>sproporções”, servindo-<strong>no</strong>s <strong>da</strong> expressão precisa <strong>de</strong><br />

Figueiredo (2009, op. cit.), <strong>de</strong><strong>no</strong>ta o contínuo <strong>de</strong>safio simbólico peculiar à condição<br />

humana. Por essa razão, convém não abrir mão <strong>da</strong> Recherche, sob a pena <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong><br />

que não será digna <strong>de</strong> ser vivi<strong>da</strong>, como bem diria Winnicott (1971c/1975). Além disso,<br />

se os sig<strong>no</strong>s são os únicos capazes <strong>de</strong> propiciar <strong>no</strong>vos sentidos e produzir <strong>no</strong>vos<br />

mundos, a procura por níveis <strong>de</strong> ligação torna-se o trabalho <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a história do<br />

indivíduo. Sem dúvi<strong>da</strong>, existem limites para a simbolização e integração psíquicas,<br />

limites para a interpretação, contudo, tratar-se-ia <strong>de</strong> manter a abertura forçosa para o<br />

campo <strong>da</strong> experiência, via <strong>de</strong> aprendizado e atribuição <strong>de</strong> sentido para o existir.<br />

Nessa lógica, não há meios <strong>de</strong> saber a priori o que permanecerá à margem <strong>no</strong><br />

psiquismo, sem porto seguro reflexivo, e o que po<strong>de</strong>rá ser relançado subjetivamente<br />

revestindo-se com outros símbolos. Entretanto, valendo-se <strong>da</strong> natureza associativa do<br />

funcionamento psíquico (verbal e sensível), algo necessariamente se produz na<br />

contigência dos encontros, mesmo em baixa escala. Um dia <strong>de</strong> sol, um filme à tar<strong>de</strong>, o<br />

<strong>de</strong>samparo alheio, a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> um ente, uma canção, uma sensação déjà vu, um<br />

movimento em falso, uma observação fortuita, a leitura <strong>de</strong> um livro, uma sessão <strong>de</strong><br />

análise, entre muitos, são, certamente, passíveis <strong>de</strong> exercer algum nível <strong>de</strong> ressonância<br />

associativa. Nessa medi<strong>da</strong>, se a psicanálise convém à vi<strong>da</strong>, a vi<strong>da</strong> convém à psicanálise.<br />

No mais, admitindo que a clivagem implica em um sujeito que consegue relativamente<br />

funcionar com base em ligações precárias, vislumbra-se aí a potência que ligações<br />

genuínas po<strong>de</strong>m resgatar.<br />

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