A psicossomática nos confins do sentido: problemas e reflexões ...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO<br />
INSTITUTO DE PSICOLOGIA<br />
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA<br />
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO<br />
A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO<br />
SENTIDO<br />
PROBLEMAS E REFLEXÕES PSICANALÍTICAS<br />
ACERCA DO FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO<br />
ROGERIO ROBBE QUINTELLA<br />
ORIENTADORA: TERESA PINHEIRO<br />
Rio de Janeiro / UFRJ<br />
2005
UFRJ<br />
A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO<br />
PROBLEMAS E REFLEXÕES PSICANALÍTICAS ACERCA DO FENÔMEO PSICOSSOMÁTICO<br />
Rogerio Robbe Quintella<br />
Dissertação de Mestra<strong>do</strong> apresentada ao<br />
Programa de Pós-graduação em Teoria<br />
Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da<br />
Universidade Federal <strong>do</strong> Rio de Janeiro, como<br />
parte <strong>do</strong>s requisitos necessários à obtenção <strong>do</strong><br />
título de Mestre em Teoria Psicanalítica.<br />
Orienta<strong>do</strong>ra: Maria Teresa da Silveira Pinheiro<br />
Rio de Janeiro<br />
Janeiro de 2005
A PSICOSSOMÁTICA NOS CONFINS DO SENTIDO<br />
PROBLEMAS E REFLEXÕES PSICANALÍTICAS ACERCA DO FENÔMEO<br />
PSICOSSOMÁTICO<br />
Rogerio Robbe Quintella<br />
DISSERTAÇÃO SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO PROGRAMA DE<br />
PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA DO INSTITUTO DE<br />
PSICOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COMO<br />
PARTE DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS À OBTENÇÃO DO GRAU DE<br />
MESTRE.<br />
Aprovada em ___ de _________ de 2005 pela Banca Examina<strong>do</strong>ra.<br />
Prof.ª Drª. _________________________________________________<br />
Maria Teresa da Silveira Pinheiro<br />
(Orienta<strong>do</strong>ra)<br />
Prof.ª Drª. _________________________________________________<br />
Marta Resende Car<strong>do</strong>so<br />
Prof. Dr. _________________________________________________<br />
José Henrique Valentim<br />
Rio de Janeiro<br />
Janeiro/2005
FICHA CATALOGRÁFICA<br />
Quintella, Rogerio Robbe<br />
A Psicossomática <strong>nos</strong> <strong>confins</strong> <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> – <strong>problemas</strong> e reflexões psicanalíticas<br />
acerca <strong>do</strong> fenômeno psicossomárico / Rogerio Robbe Quintella. Rio de Janeiro:<br />
UFRJ/IP, 2005.<br />
119 f.<br />
Orienta<strong>do</strong>ra: Maria Teresa da Silveira Pinheiro. Dissertação: Mestre em Teoria<br />
Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Teoria<br />
Psicanalítica, 2005.<br />
Referências Bibliográficas: f. 120-124.<br />
1. Psicossomática 2. Neurose atual 3. Exesso traumático 4. Gozo 5. Cripta<br />
I. Pinheiro, Maria Teresa da Silveira. II. Universidade Federal <strong>do</strong> Rio de Janeiro,<br />
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título.
AGRADECIMENTOS<br />
Agradeço primeiramente a Teresa Pinheiro, que orientou com mestria esta empreitada,<br />
amplian<strong>do</strong> horizontes teóricos e apontan<strong>do</strong> caminhos consistentes.<br />
Agradeço também à minha mãe que me deu muito apoio, muitas vezes com um esforço<br />
além <strong>do</strong> espera<strong>do</strong>.<br />
À minha namorada Vanessa, que esteve to<strong>do</strong> o tempo ao meu la<strong>do</strong> com carinho, e me<br />
aju<strong>do</strong>u muito em inúmeros momentos, fáceis e difíceis.<br />
Aos amigos verdadeiros Paulo, Bernar<strong>do</strong> e Marcelo que, apesar muitas vezes da<br />
distância física, dispõem-se a ser amigos <strong>nos</strong> momentos cruciais.<br />
Aos professores <strong>do</strong> Programa, que se mostram sempre dispostos a auxiliar em<br />
momentos necessários.<br />
Ao CNPq pelo financiamento da pesquisa.
A psicossomática <strong>nos</strong> <strong>confins</strong> <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> – <strong>problemas</strong> e reflexões<br />
psicanalíticas acerca <strong>do</strong> fenômeno psicossomático<br />
Rogerio Robbe Quintella<br />
Resumo da Dissertação de Mestra<strong>do</strong> submetida ao Programa de Pós-graduação em<br />
Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, Universidade Federal <strong>do</strong> Rio de Janeiro –<br />
UFRJ, como parte <strong>do</strong>s requisitos necessários à obtenção <strong>do</strong> título de Mestre em Teoria<br />
Psicanalítica.<br />
RESUMO<br />
O presente trabalho situa a questão psicossomática como problemática para a<br />
psicanálise, a qual teve como principais referências G. Groddeck, F. Alexander e P.<br />
Marty. A pesquisa realizada aponta <strong>problemas</strong> teóricos importantes que aparecem<br />
nessas abordagens, quan<strong>do</strong> da confrontação de seus respectivos modelos teóricos com o<br />
conceito freudiano da “neurose atual” e com os princípios fundamentais <strong>do</strong> pensamento<br />
de Freud.<br />
O modelo da neurose atual passa por uma releitura neste trabalho, o qual coloca<br />
em cena a concepção de historicidade em relação ao que se denomina “atual” na obra<br />
freudiana, e propõe uma relativização <strong>do</strong> último, conferin<strong>do</strong> uma dimensão de<br />
‘historicidade’ atrelada também aos sintomas orgânicos. Esta análise indica a<br />
pertinência de se articular a neurose atual ao campo <strong>do</strong> trauma, conceben<strong>do</strong>-a como um<br />
excesso traumático impossibilita<strong>do</strong> de elaboração. Nesse campo, focalizamos a questão<br />
<strong>do</strong>s ‘neurônios-chave’ no “Projeto para uma psicologia científica”, relacionan<strong>do</strong>-os ao<br />
trauma tal como se verifica em “Além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer”. Partin<strong>do</strong> deste ponto,<br />
buscamos no campo teórico da psicanálise autores que pensam com profundidade o<br />
problema <strong>do</strong> trauma de maneira articulada a efeitos de linguagem. A teoria <strong>do</strong><br />
significante e <strong>do</strong> gozo em Lacan, bem como a noção de “Cripta” em Abraham e Torok<br />
acenam para perspectivas cujos fatores de linguagem determinantes aparecem em uma<br />
relação direta com o traumático. O “psicossomático” seria nessa direção toma<strong>do</strong> como<br />
um efeito de linguagem cujos elementos, para além da significação, assumiriam um<br />
estatuto traumático e poderiam, em determinadas condições, convocar o corpo a<br />
responder em sua materialidade.<br />
A psicossomática indica ainda <strong>problemas</strong> relaciona<strong>do</strong>s ao campo de saber<br />
psicanalítico, sobretu<strong>do</strong> no que tange à questão <strong>do</strong> dualismo, da separação corpo/mente.<br />
Procuramos pensar a psicanálise, tentan<strong>do</strong> sair deste escolho, como campo de<br />
positivação para a idéia de uma interação corpo-mente.<br />
Palavras-chave: psicossomática, neurose atual, excesso traumático, gozo, cripta.<br />
Rio de Janeiro<br />
Janeiro/2005
ABSTRACT<br />
The present work situates the psychosomatic matter as problematical in<br />
psychoanalysis, which had as main references G. Groddeck, F. Alexander and P. Marty.<br />
We located, in the first instance, important theoretical problems that appears on these<br />
approaches, on the confrontation of its respective theoretical models with Freud’s<br />
concept of “actual neurosis” and with the fundamental principles of Freud’s<br />
conception.<br />
The model of actual neurosis is submitted to a re-reading that puts forward the<br />
conception of historicity matter in relation to “actual” in Freud’s work. We point out the<br />
necessity of articulating actual neurosis to the trauma field, conceiving it lastly as<br />
traumatic excess disabled of elaboration. In this field, we focus the matter of the key<br />
brain cells in the “Project for a scientific psychology” on an articulated way to trauma<br />
as it’s verified in “Beyond the principle of pleasure”. Starting from this point, we search<br />
for theories in the psychoanalytic field that considers the idea of a peculiarity in the<br />
associative chain that takes to the impediment of the excitement draining. The theory of<br />
significant and enjoyment in Lacan, as well as the notion of “Cripta” in Abraham and<br />
Torok points out to perspectives of which language factors would be present on a direct<br />
relation to traumatic. The “psychosomatic” would be in this way taken as an effect of<br />
language of which elements, for beyond signification, would assume a traumatic statute<br />
and could, in certain conditions, convoke the body to respond on its materiality.<br />
The psychosomatic still indicates problems related to the field of psychoanalytic<br />
knowing, especially to the matter of dualism, of body/mind separation. We purpose to<br />
think psychoanalysis, trying to get out of this problem, as field of making positive for<br />
the idea of a body-mind interaction.<br />
Key words: Psychosomatic, actual neurosis, traumatic excess, enjoyment, cripta.
SUMÁRIO<br />
INTRODUÇÃO...................................................................................................................<br />
...1<br />
1 a PARTE: TEORIAS DA PSICOSSOMÁTICA NO CAMPO<br />
PSICANALÍTICO.............................................................................................................<br />
...4<br />
CAPÍTULO I – OS CAMINHOS E OS DESCAMINHOS DA<br />
PSICOSSOMÁTICA NA<br />
PSICANÁLISE...............................................................................................................5<br />
1.1 – Freud entre a neurose atual e a<br />
psicanálise........................................................7<br />
1.2 – Groddeck e sua concepção <strong>do</strong><br />
“Isso”...............................................................12<br />
1.3 – Alexander e a tipologia clínica da Escola de<br />
Chicago.....................................15<br />
1.4 – As perspectivas atuais: o Instituto de Psicossomática de<br />
Paris........................18<br />
1.4.1 – Freud e o estu<strong>do</strong> das<br />
afasias..........................................................................31<br />
1.4.2 Freud e Marty..............................................................34<br />
2 a PARTE: PERSPECTIVAS CONCEITUAIS NO CAMPO<br />
PSICANALÍTICO......39<br />
CAPÍTULO II – A NEUROSE ATUAL: UMA<br />
RELEITURA......................................40<br />
2.1 – A concepção de historicidade em<br />
psicanálise..................................................42<br />
2.2 – A aglutinação neurose atual–<br />
psiconeurose......................................................48<br />
2.3 – O “atual” em<br />
questão.......................................................................................52<br />
2.4 – Escoamento e descarga no “Projeto para uma psicologia<br />
científica”..............56<br />
2.5 – Trauma, neurose atual e violência psíquica: além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong><br />
prazer.......62
CAPÍTULO III – PERSPECTIVAS E PROBLEMATIZAÇÕES: A<br />
“PSICOSSOMÁTICA” EM<br />
QUESTÃO..........................................................................71<br />
3.1 – Freud e<br />
Ferenczi...............................................................................................71<br />
3.2 – Lacan: cadeia significante, gozo e<br />
holófrase....................................................80<br />
3.3 – “Incorporação” e “Cripta” em Abraham e Torok:<br />
aproximações....................94<br />
3.4 – Questionamentos e<br />
perspectivas......................................................................98<br />
CONCLUSÃO...................................................................................................................<br />
107<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................120
INTRODUÇÃO<br />
Nossa proposta de dissertação se enraíza em questões levantadas durante o<br />
percurso de graduação em Psicologia, especificamente no trabalho monográfico “As<br />
Neuroses Atuais e a Psicossomática” (QUINTELLA, 2002), o qual se centrou em uma<br />
verificação, no interior da obra de Freud, <strong>do</strong> conceito de “neurose atual”. Este conceito<br />
apresenta um modelo estabeleci<strong>do</strong> por Freud <strong>nos</strong> primórdios de suas teorias que serviu<br />
como principal ferramenta para a abordagem das patologias psicossomáticas encontrada<br />
em obras contemporâneas de autores empenha<strong>do</strong>s com a questão no meio psicanalítico.<br />
Verificou-se mediante este trabalho alguns <strong>problemas</strong> de natureza teórica, sobretu<strong>do</strong> no<br />
que se refere aos pontos de vista <strong>do</strong>s pesquisa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Instituto de Psicossomática de<br />
Paris (IPSO), cujo principal articula<strong>do</strong>r foi o psicanalista P. Marty e cuja teoria<br />
permanece como principal referência dessa abordagem. A confrontação entre o<br />
pensamento freudiano sobre o conceito de neurose atual e a teoria psicossomática<br />
estabelecida por essa corrente teórica, a qual vige atualmente no campo psicanalítico,<br />
constituiu-se como principal eixo <strong>do</strong> trabalho menciona<strong>do</strong>. Este trabalho apontou uma<br />
importante incongruência entre Marty e Freud, bem como uma utilização superficial por<br />
parte de Marty <strong>do</strong> princípio freudiano da neurose atual 1 (QUINTELLA, 2003).<br />
Nesse campo, avaliamos pertinente ressaltar que o princípio freudiano da<br />
neurose atual e sua distinção em relação às ‘psiconeuroses’ (FREUD, 1898/1996)<br />
configurou-se como de fundamental relevância no desenvolvimento de idéias em<br />
estu<strong>do</strong>s pós-freudia<strong>nos</strong> que tomaram para si como campo de investigação a<br />
‘psicossomática’, abrin<strong>do</strong> possibilidade de discussão a respeito de patologias orgânicas<br />
cujas implicações psíquicas estariam presentes.<br />
Nessa direção, percebe-se que o problema <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> em psicanálise está<br />
crucialmente implica<strong>do</strong> nas discussões sobre a psicossomática. Conforme se entende no<br />
meio psicanalítico, as patologias psiconeuróticas – em especial, as neuroses histéricas,<br />
fóbicas e obsessivas – apresentam, <strong>nos</strong> enlaces de sua dinâmica, a característica da<br />
condensação, bem como <strong>do</strong> deslocamento pela via de processos inconscientes.<br />
Outrossim, apresentam uma estrutura de senti<strong>do</strong>, um conteú<strong>do</strong> representativo latente<br />
1 Esse apontamento será retoma<strong>do</strong> e discuti<strong>do</strong> no desenvolvimento da presente dissertação de mestra<strong>do</strong>,<br />
aprofunda<strong>do</strong> e trabalha<strong>do</strong> à luz <strong>do</strong>s fundamentos psicanalíticos.
liga<strong>do</strong> a movimentos libidinais que se engendram no corpo e cuja fonte remete ao<br />
princípio de prazer, à satisfação sexual (FREUD, 1917/1996). No que concerne às<br />
patologias ‘psicossomáticas’, segun<strong>do</strong> o modelo teórico <strong>do</strong> IPSO, o ‘senti<strong>do</strong>’ estaria<br />
absolutamente fora de questão, visto que o que está implica<strong>do</strong> nesses fenôme<strong>nos</strong> é para<br />
Marty (1993) uma pura excitação somática que não encontrou vias psíquicas de<br />
descarga.<br />
Percebe-se igualmente no campo psicanalítico a existência de importantes<br />
discussões sobre a concepção <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, bem como as relações <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> com a ordem<br />
<strong>do</strong> corpo (BEZERRA Jr., 2001), debate que leva a psicanálise irremediavelmente a<br />
impasses sem dúvida presentes, sobre as relações entre corpo e mente e as<br />
conseqüências para o pensamento psicanalítico <strong>do</strong> paradigma moderno que opera uma<br />
separação entre essas duas categorias (ibid.). Tal debate leva a concepções diversas<br />
sobre tais relações (ou não-relações) entre corpo e psique que configuram <strong>problemas</strong><br />
cruciais para a psicanálise.<br />
Constata-se por exemplo que Freud, ao buscar a elucidação <strong>do</strong>s enigmas<br />
concernentes às “<strong>do</strong>enças nervosas” no início de sua investigação, esbarrava<br />
constantemente nas questões somáticas que se entrecruzavam com seu recente campo de<br />
saber, a psicanálise. O estu<strong>do</strong> das neuroses atuais, que fornecia a Freud os elementos<br />
fundamentais para certificar-se da problemática sexual no circuito humano, não deixava<br />
de circunscrever-se num <strong>do</strong>mínio sobre o qual Freud tentava constantemente desligarse,<br />
mas que era para ele, ao mesmo tempo, indispensável – o campo somático, o<br />
<strong>do</strong>mínio biológico – chegan<strong>do</strong> Freud (1910/1996) a considerar veementemente que “o<br />
psíquico se baseia no orgânico” (p. 227). A questão das neuroses atuais, apesar de não<br />
ter si<strong>do</strong> muito aprofundada por Freud, foi amplamente utilizada como paradigma teórico<br />
para a explicação da fenomenologia psicossomática. Muitas pesquisas até hoje<br />
debruçam-se assim nesse campo e tentam construir, a partir <strong>do</strong> discurso freudiano, redes<br />
teóricas que se dispõem a dar conta desse assunto.<br />
Com base na teoria psicanalítica, temos assim como direção o aprofundamento<br />
de questões relativas ao campo de estu<strong>do</strong>s da psicossomática e à problemática que se<br />
instaura nas principais teorias, a partir de verificações detalhadas que colocam em curso<br />
reflexões renovadas a respeito das relações corpo–mente bem como das psicopatologias<br />
existentes nessas relações. A questão das fronteiras entre o corpo e a mente, bem como
entre os diversos campos de saber relativos a cada uma dessas categorias, são trazidas<br />
sem dúvida à tona pelos enigmas teóricos concernentes aos fenôme<strong>nos</strong> psicossomáticos.<br />
Nesse contexto, o termo <strong>confins</strong>, utiliza<strong>do</strong> por Mattos (2002) – inspira<strong>do</strong> em Pontalis<br />
(1974) – para caracterizar um espaço positivo da reflexão psicanalítica que possibilita a<br />
abrangência de novos aspectos <strong>do</strong>s fenôme<strong>nos</strong> clínicos, aparece aqui, de maneira<br />
contínua ao dizer de Mattos (op. cit.), como referência crítica à questão <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s<br />
“limites” da simbolização que se encontra <strong>nos</strong> modelos teóricos em psicossomática.<br />
Esta questão requer avanços teóricos que devem permanecer afins aos princípios<br />
fundamentais da psicanálise. Enfocamos também nessa ótica, a questão da consistência<br />
<strong>do</strong> discurso psicanalítico na possibilidade de abordagem <strong>do</strong>s fenôme<strong>nos</strong><br />
psicossomáticos, das relações entre corpo e mente e de suas relações com outros campos<br />
de saber.<br />
Procuramos assim delinear, no primeiro capítulo de <strong>nos</strong>sa dissertação, as<br />
diferentes linhas de pensamento em psicossomática e os principais <strong>problemas</strong> que elas<br />
apresentam <strong>do</strong> ponto de vista da psicanálise, que concernem à coerência com o discurso<br />
psicanalítico e com as formas clínicas nas quais os fenôme<strong>nos</strong> psicossomáticos<br />
aparecem. No segun<strong>do</strong> capítulo procuramos aprofundar, nessa direção, questões<br />
relativas às principais referências <strong>do</strong> campo psicanalítico circunscritas à obra de Freud,<br />
em especial o modelo teórico da neurose atual. Na seqüência, aprofundamos <strong>nos</strong>sa<br />
questão em vista de dar perspectivas a discussões consistentes que abram caminho para<br />
novas reflexões. Nosso objetivo é expor importantes confrontações entre as principais<br />
teorias em psicossomática e o pensamento freudiano, mediante pesquisas teóricas,<br />
buscan<strong>do</strong> situar importantes questões para as mesmas. Assim, a partir <strong>do</strong> discurso<br />
freudiano, visamos possibilidades de articulação para elementos teóricos consistentes<br />
rumo à compreensão <strong>do</strong>s fenôme<strong>nos</strong> em questão, caracteriza<strong>do</strong>s hoje como<br />
“psicossomáticos”. Esta pesquisa procura, pois, tecer caminhos circunscritos aos<br />
contextos atuais <strong>nos</strong> quais a psicanálise se situa, buscan<strong>do</strong> linhas de pensamento que<br />
abarquem as especificidades das principais questões e <strong>problemas</strong> que a acometem na<br />
atualidade.
1 a PARTE:<br />
TEORIAS DA PSICOSSOMÁTICA NO CAMPO PSICANALÍTICO
CAPÍTULO I – OS CAMINHOS E OS DESCAMINHOS DA<br />
PSICOSSOMÁTICA NA PSICANÁLISE<br />
A psicossomática se desenvolveu a partir de pensa<strong>do</strong>res, médicos e<br />
psicanalistas, que voltaram sua atenção a fenôme<strong>nos</strong> corporais, diferentes daqueles<br />
aborda<strong>do</strong>s por Freud a respeito das conversões histéricas. Tais fenôme<strong>nos</strong> aparecem<br />
muitas vezes de forma enigmática para a medicina, à medida que configuram lesões<br />
orgânicas concretas e que, contu<strong>do</strong>, apresentam uma etiopatogenia muitas vezes<br />
desconhecida <strong>do</strong> ponto de vista das observações médicas. São fenôme<strong>nos</strong> que desafiam<br />
o saber médico, face à impossibilidade de sustentação etiopatogênica que justifique seu<br />
aparecimento, bem como aos contextos de sua manifestação, fator importante para que<br />
se estabeleça na medicina e na psicanálise a suposição de ligação desses fenôme<strong>nos</strong><br />
com processos psíquicos (WARTEL, 1987).<br />
Em decorrência de uma interlocução entre o discurso médico e o discurso<br />
psicanalítico (VOLICH, 1998), a psicossomática começou a se constituir como<br />
importante vertente das investigações em psicanálise, ou pelo me<strong>nos</strong> como investigação<br />
em permanente diálogo com esta. Tal interlocução se iniciou com o próprio Freud, que<br />
defendeu a idéia de que a medicina deve aliar-se às perspectivas que trabalham o<br />
psíquico, onde ele propõe uma visão não tão tecnocêntrica no tratamento das<br />
enfermidades:<br />
“Essa formação [médica] tem si<strong>do</strong> justamente criticada nas últimas décadas pela<br />
maneira parcial pela qual dirige o estudante para os campos da anatomia, da<br />
física e da química, enquanto falha, por outro la<strong>do</strong>, no esclarecimento <strong>do</strong><br />
significa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s fatores mentais nas diferentes funções vitais, bem como nas<br />
<strong>do</strong>enças e seu tratamento” (FREUD, 1919a/1996, p. 187).<br />
Essa opinião de Freud revela sua preocupação em relação à importância da<br />
dinâmica psíquica e da implicação <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s enfermos sobre a subjetividade humana,<br />
bem como <strong>do</strong>s progressos da própria medicina face às dificuldades subjetivas que uma<br />
<strong>do</strong>ença pode acarretar para a vida psíquica. Para Birman (1980), o saber médico<br />
estende-se necessariamente a uma inter-relação que se estabelece em suas fronteiras<br />
com outros campos de saber tais como, Psicologia, Sociologia, Biologia, Psicanálise.<br />
Ele aponta:<br />
“A prática médica passa assim a ser pensada e realizada com auxílio de outros<br />
saberes, que se articulam numa relação complexa com o discurso biológico. A<br />
Medicina entra na região da interdisciplinaridade, adquirin<strong>do</strong> neste campo de<br />
práticas o mesmo estatuto ambíguo, <strong>do</strong> ponto de vista epistemológico, que em
outros campos teóricos. Com efeito, este conjunto de discursos não se refere ao<br />
mesmo objeto científico, mas a uma pluralidade de objetos que encontram sua<br />
delimitação e as suas verdades <strong>nos</strong> saberes de origem: Psicologia, Sociologia,<br />
Antropologia, Psicanálise e Biologia.(...) Desta perspectiva o enquadre<br />
interdisciplinar é regula<strong>do</strong> pela lógica <strong>do</strong> complementarismo” (p.25).<br />
Tal discussão relaciona diretamente a medicina à psicanálise e ao estu<strong>do</strong> da<br />
subjetividade, fato que deu abertura à possibilidade de abordagem daquelas patologias<br />
que desafiam o discurso médico, conforme a configuração que elas tomam face à<br />
impossibilidade de explicação a respeito da <strong>do</strong>ença que desponta.<br />
Assim, o termo “psicossomática”, inventa<strong>do</strong> em 1818 pelo psiquiatra Heinroth<br />
para caracterizar “a influência das paixões sexuais sobre a tuberculose, a epilepsia e o<br />
câncer” (ABREU, 1988, p. 10), foi utiliza<strong>do</strong> amplamente, não apenas no meio<br />
psicanalítico, mas também na psicologia experimental de Cannon e Seyle e no<br />
behaviorismo de Pavlov (ibid.), para caracterizar implicações e influências <strong>do</strong><br />
psiquismo sobre o soma. No que diz respeito à psicanálise, campo no qual se localiza<br />
<strong>nos</strong>sa pesquisa, diversos pensa<strong>do</strong>res e pesquisa<strong>do</strong>res foram movi<strong>do</strong>s pelas questões<br />
pertinentes a esse tema, o que os levou a estabelecer linhas de pesquisa diversas,<br />
baseadas a princípio no discurso psicanalítico.<br />
Começaram a surgir então tentativas de se relacionar psique e soma, toman<strong>do</strong>-se<br />
como base postula<strong>do</strong>s a respeito <strong>do</strong> inconsciente, da sexualidade, da dinâmica psíquica,<br />
segun<strong>do</strong> a metapsicologia freudiana. Os principais psicanalistas que se dispuseram, na<br />
história da psicanálise, a estabelecer aprofundadas investigações a respeito <strong>do</strong> tema da<br />
psicossomática podem ser vistos <strong>nos</strong> nomes de G. Groddeck, F. Alexander e P. Marty.<br />
Esses autores reportaram-se aos princípios psicanalíticos estabeleci<strong>do</strong>s por Freud no<br />
desenvolvimento de suas teorias, manten<strong>do</strong> com a psicanálise uma relação de<br />
permanente diálogo; contu<strong>do</strong>, cada um <strong>do</strong>s três nomes menciona<strong>do</strong>s representam linhas<br />
de pensamento essencialmente diferentes no que tange à compreensão <strong>do</strong>s fatores em<br />
curso na ocorrência das afecções psicossomáticas. A principal referência freudiana para<br />
a psicossomática – salvo a linha de pensamento de Groddeck, que será exposta no<br />
desenvolvimento deste trabalho – é a distinção entre as ‘psiconeuroses’ e o princípio<br />
característico <strong>do</strong> que Freud denominava como ‘neurose atual’, elemento que<br />
consideramos importante na composição da teoria psicanalítica, trabalha<strong>do</strong> por Freud já<br />
<strong>nos</strong> primeiros delineamentos a respeito das concepções sobre as neuroses em geral, e<br />
que constitui indubitavelmente a base fundamental <strong>do</strong> pensamento que vigora
atualmente na psicanálise a respeito das psicopatologias psicossomáticas (Cf. VOLICH,<br />
1998). Conforme apontamos alhures (QUINTELLA, 2003), o conceito de neurose atual<br />
deve ser aborda<strong>do</strong> em suas minúcias, visto a sua importância para a psicossomática.<br />
É portanto necessário que desde já se retome a localização deste conceito na<br />
obra freudiana, no que diz respeito aqui ao desenvolvimento inicial da teoria<br />
psicanalítica, momento em que Freud introduziu a importante distinção entre as<br />
psiconeuroses e as mencionadas ‘neuroses atuais’. Visto sua importância para a<br />
psicossomática, principalmente a martyniana (Cf. VOLICH, op. cit.), avaliamos<br />
fundamental a exposição das características básicas da neurose atual, para que, num<br />
momento posterior de discussão, tenhamos como base o delineamento de seus<br />
princípios, no objetivo de estabelecer uma importante problematização na utilização <strong>do</strong><br />
modelo da neurose atual a qual aparece inevitavelmente na confrontação entre as<br />
teorias freudianas e as abordagens psicossomaticistas, especialmente aquelas que<br />
vigoram na atualidade, relativas ao desenvolvimento teórico de P. Marty.<br />
1.1 Freud entre a neurose atual e a psicanálise<br />
O caminho percorri<strong>do</strong> por Freud para a concepção da psicanálise se deu a partir<br />
de questões e investigações relativas às chamadas ‘<strong>do</strong>enças nervosas’ para as quais<br />
Freud voltou sua atenção, como neurologista, empenhan<strong>do</strong>-se esforçadamente em<br />
definir processos em jogo em cada uma dessas <strong>do</strong>enças. A histeria, a neurose obsessiva,<br />
a neurastenia, a parafrenia, eram para Freud <strong>problemas</strong> não soluciona<strong>do</strong>s até então pela<br />
medicina, o que provocou nele movimento de investigação, ten<strong>do</strong> como resulta<strong>do</strong> os<br />
postula<strong>do</strong>s psicanalíticos. Por muito tempo, a neurastenia e a histeria foram os<br />
principais objetos de estu<strong>do</strong> para os quais Freud se voltou. Em meio a profundas<br />
investigações sobre essas ‘<strong>do</strong>enças nervosas’, Freud delineava suas conclusões no<br />
senti<strong>do</strong> de demarcar fronteiras entre fenôme<strong>nos</strong> diferentes em suas características e sua<br />
etiologia. Isso o levou a distinguir histeria de neurastenia (FREUD, 1898/1996),<br />
localizan<strong>do</strong> a primeira entre aquelas que recebiam o nome de ‘psiconeuroses’ – neurose<br />
obsessiva, parafrenia, neurose histérica – e a segunda numa categoria que recebeu o
nome de ‘neurose atual’ – circunscritos por Freud no nome de ‘neurose de angústia’<br />
conjuntamente com a neurastenia 2 .<br />
A distinção entre psiconeuroses e neuroses atuais forneceu a Freud elementos<br />
imprescindíveis para possibilitar uma visada objetiva sobre os processos implica<strong>do</strong>s em<br />
cada um <strong>do</strong>s fenôme<strong>nos</strong> neuróticos, e a região na qual eles se localizam, <strong>do</strong>nde se pode<br />
verificar que, para Freud (1895b/1996), o ponto de vista principal <strong>do</strong>s processos em<br />
jogo nas neuroses ‘atuais’ deve se localizar no plano somático, enquanto que, no casos<br />
das psiconeuroses, o ponto de vista principal deve se centrar no plano psíquico, sen<strong>do</strong><br />
que em ambas as neuroses, o que interfere na irrupção <strong>do</strong>s sintomas é um problema de<br />
natureza sexual. Os fatores que derivam uma psiconeurose estão liga<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong> Freud<br />
(1898/1996) a questões históricas da sexualidade, a saber, traumas da infância<br />
relaciona<strong>do</strong>s a cenas de abuso sexual; no caso das neuroses atuais, há a prevalência de<br />
um desvio no curso da excitação sexual, levan<strong>do</strong> esta a produzir descargas corporais e<br />
sintomas de ordem eminentemente somática. Tal desvio procederia de uma aplicação<br />
insatisfatória da atividade sexual, como a masturbação excessiva, o coito interrompi<strong>do</strong>,<br />
a abstinência sexual. Essas atividades, de acor<strong>do</strong> com Freud (1898/1996, p. 256) levam<br />
a excitação a se desviar da esfera psíquica produzin<strong>do</strong> descargas somáticas<br />
insatisfatórias, e remetem a uma etiologia contemporânea, uma excitação que, pelo<br />
me<strong>nos</strong> nesse momento <strong>do</strong> pensamento freudiano, se esgota na atualidade, não ten<strong>do</strong><br />
qualquer relação com a historicidade.<br />
Tais distinções podem se verificar <strong>nos</strong> textos iniciais de Freud, onde ele<br />
demonstra um esforço grande na delimitação dessas fronteiras. Ali (FREUD,<br />
1893/1996), podemos perceber que seu movimento no senti<strong>do</strong> de delimitar os fatores<br />
que desencadeiam uma psiconeurose centrava-se fundamentalmente em estabelecer<br />
relações causais entre os sintomas manifestos e elementos históricos da vida subjetiva<br />
<strong>do</strong>s pacientes, “lembranças” <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> que estariam na raiz da patogenia, idéias<br />
incompatíveis na consciência sobre os referi<strong>do</strong>s fatos traumáticos da infância que<br />
pareciam encontrar-se na gênese de cada sintoma (psiconeurótico).<br />
Esse movimento de busca pelo elemento patógeno na psiconeurose se iniciou<br />
com trabalhos clínicos desenvolvi<strong>do</strong>s pelo seu professor, J. Breuer, com o qual Freud<br />
2 A hipocondria foi caracterizada como uma terceira neurose atual em 1914 por Freud em “Sobre o<br />
narcisismo: uma introdução”. Assim, esta estaria relacionada com as psiconeuroses narcísicas
estabeleceu durante um tempo uma grande interlocução. O estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sintomas<br />
histéricos – que nessa época constituíam principal objeto de investigação para os <strong>do</strong>is<br />
pesquisa<strong>do</strong>res (BREUER & FREUD, 1893/1996) – se baseava em méto<strong>do</strong>s clínicos<br />
caracteriza<strong>do</strong>s pela hip<strong>nos</strong>e e pela catarse. Seus respectivos pacientes eram submeti<strong>do</strong>s<br />
ao esta<strong>do</strong> de hip<strong>nos</strong>e com objetivo de se alcançar “representações psíquicas” que<br />
estariam provocan<strong>do</strong> os sintomas, e com objetivo de liberar o “afeto estrangula<strong>do</strong>”<br />
liga<strong>do</strong> aos mesmos (ibid.). Nesse momento, a explicação <strong>do</strong>s sintomas histéricos se<br />
baseava num deslocamento <strong>do</strong> “afeto estrangula<strong>do</strong>” que, por conversão, levaria a<br />
“inervações somáticas” 3 . Diante de freqüentes fracassos com o méto<strong>do</strong> hipnótico,<br />
contu<strong>do</strong>, Freud (ibid.) viu-se impeli<strong>do</strong> a promover mudanças em sua técnica, que o<br />
levaram a a<strong>do</strong>tar o méto<strong>do</strong> peculiar da “pressão na testa”, através <strong>do</strong> qual persuadia<br />
seus pacientes a relatar as idéias que emergiam de sua mente no momento em que<br />
aplicava a pressão. A partir disso, chegava à conclusão de que os elementos ideativos<br />
estavam associa<strong>do</strong>s entre si e a fatores importantes da história <strong>do</strong> indivíduo. Tais<br />
fatores eram concebi<strong>do</strong>s como “representações patogênicas” (ibid.), lembranças<br />
traumáticas da infância ligadas a abusos sexuais realiza<strong>do</strong>s por parte de adultos. Com a<br />
denominação de núcleo patógeno, Freud (1893/1996) inferiu nesse momento a relação<br />
entre sintomas histéricos e traumas sexuais infantis, apontan<strong>do</strong> em direção ao elemento<br />
nuclear da neurose – representações incompatíveis na consciência por seu caráter<br />
sexual traumático (ibid.).<br />
Os estu<strong>do</strong>s iniciais das psiconeuroses foram assim realiza<strong>do</strong>s<br />
concomintantemente aos estu<strong>do</strong>s das neuroses atuais, estas tomadas por Freud<br />
(1923a/1996) como introdutoras da idéia de uma etiologia sexual global nas neuroses.<br />
As investigações de Freud (1898/1996) acerca da neurastenia, em paralelo aos estu<strong>do</strong>s<br />
da histeria e da neurose obsessiva, apontam para a importância de se centrar nas<br />
questões da sexualidade a explicação da sintomatologia apresentada pelas neuroses em<br />
geral. Fica claro no pensamento de Freud (1923a/1996) que os fatores sexuais<br />
trabalha<strong>do</strong>s nas neuroses atuais influenciaram com grande peso a inferência <strong>do</strong> caráter<br />
(esquizofrenia, paranóia), enquanto que as demais neuroses atuais (neurastenia, neurose de angústia)<br />
estariam relacionadas com as psiconeuroses de transferência (histeria, fobia, neurose obsessiva).<br />
3 As “inervações somáticas” na histeria não constituem modificações fisiológicas, de ordem bioestrutural.<br />
Esse é o principal diferencia<strong>do</strong>r em termos fenomenológicos entre as conversões histéricas e<br />
os fenôme<strong>nos</strong> psicossomáticos (estes constituin<strong>do</strong> lesões orgânicas concretas).
universal <strong>do</strong> fator sexual nas psiconeuroses. O tema da sexualidade foi toman<strong>do</strong> corpo à<br />
medida que Freud se debruçava sobre a investigação etiológica <strong>do</strong>s sintomas e<br />
encontrava expressivamente a presença de conflitos sexuais no caso das psiconeuroses<br />
– e não apenas <strong>nos</strong> processos patológicos concernentes à aplicação da energia sexual –<br />
no caso das neuroses atuais. Freud (ibid.) esclarece:<br />
“(...) tornou-se inevitável curvar-se perante a evidência e reconhecer que na raiz<br />
da formação de to<strong>do</strong> sintoma deveriam encontrar-se experiências traumáticas <strong>do</strong><br />
início da vida sexual. Assim, um trauma sexual entrou no lugar de um trauma<br />
comum e viu-se que o último devia sua significação etiológica a uma conexão<br />
associativa ou simbólica com o primeiro, que o precedera. Uma investigação de<br />
casos de nervosismo comum (incidin<strong>do</strong> nas duas classes da neurastenia e da<br />
neurose de angústia) empreendida simultaneamente levou à conclusão de que<br />
esses distúrbios podiam ser remonta<strong>do</strong>s a abusos contemporâneos na vida sexual<br />
<strong>do</strong>s pacientes e removi<strong>do</strong>s se esses fossem leva<strong>do</strong>s a um fim. Assim, foi fácil<br />
inferir que as neuroses em geral são expressão de distúrbios na vida sexual, em<br />
que as chamadas neuroses atuais são conseqüência (por inferência química) de<br />
da<strong>nos</strong> contemporâneos e as psiconeuroses, conseqüência (por modificação<br />
psíquica) de da<strong>nos</strong> passa<strong>do</strong>s (...)” (p. 260).<br />
Constata-se assim, na caracterização dessas distinções, que Freud estabeleceu<br />
relações sintomáticas nas psiconeuroses remetidas a conexões representativas de caráter<br />
infantil que sofreram o mecanismo <strong>do</strong> recalque e permaneceram distantes da<br />
consciência sob a forma de representações inconscientes. Os caminhos percorri<strong>do</strong>s por<br />
Freud para a concepção da psicanálise passaram contu<strong>do</strong> por constatações que se<br />
encontram na própria origem de sua invenção. A respeito disso, o caráter determinante<br />
<strong>do</strong> núcleo patógeno na psiconeurose foi revisto por Freud (1892-1899/1996) 4 quan<strong>do</strong>,<br />
segun<strong>do</strong> constatações clínicas, concluiu que as representações patogênicas que buscava<br />
não correspondiam a lembranças de fatos reais <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>; constituíam fantasias de<br />
sedução, ou seja, seduções sexuais realizadas por parte de adultos apenas supostos,<br />
remetidas a épocas remotas da infância, que apareciam no senti<strong>do</strong> de rechaçar os<br />
desejos sexuais <strong>do</strong> próprio indivíduo. A partir desta conclusão, Freud inferiu<br />
definitivamente que o sintoma psiconeurótico é o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> recalcamento de<br />
representações incompatíveis na consciência, ligadas à sexualidade. O aspecto<br />
dinâmico e associativo das representações revela que a sintomatologia encontrada nas<br />
psiconeuroses constitui formações da instância inconsciente, ligadas às representações<br />
recalcadas, as quais retornaram mediante processos de condensação – em que se<br />
verificam elementos representativos “condensa<strong>do</strong>s”, expressos pelos sintomas – e<br />
4 FREUD, S. (1892-1899/1996). Extratos de <strong>do</strong>cumentos dirigi<strong>do</strong>s a Filess, Carta n. 69. In: Obras<br />
Completas, vol. I. Rio de Janeiro: Imago.
deslocamento – em que se verifica séries de representações associadas as quais, por<br />
contiguidade, remetem às representações recalcadas (FREUD,1900/1996). No ínterim<br />
desta teoria, Freud inventou a psicanálise bem como o méto<strong>do</strong> da livre associação de<br />
idéias para o tratamento das psiconeuroses, em que o psicanalista leva o paciente a falar<br />
tu<strong>do</strong> o que lhe ocorre, sem restrições, julgamentos ou censura.<br />
Com isso, Freud inferiu para os sintomas psiconeuróticos uma estrutura de<br />
senti<strong>do</strong>, pois eles remetem a idéias inconscientes que se expressam por meio <strong>do</strong> que<br />
denominou solução de compromisso, formações simbólicas que conciliam forças<br />
antagônicas – aquelas ligadas à sexualidade, que têm como finalidade a satisfação<br />
mediante a descarga pelo princípio de prazer, e aquelas ligadas à cultura, que impedem<br />
que essas idéias ‘sexuais’, tomem livre curso na consciência. O sintoma psiconeurótico<br />
é então concebi<strong>do</strong> como uma formação de compromisso no senti<strong>do</strong> de conciliar essas<br />
forças.<br />
No caso das neuroses atuais a questão <strong>do</strong> deslocamento, da condensação, da<br />
formação de compromisso ou <strong>do</strong> ‘senti<strong>do</strong>’ <strong>nos</strong> sintomas, não está presente. Freud<br />
(1898/1996) atribuiu aos sintomas ‘atuais’ uma simples excitação somática que se<br />
acumula produzin<strong>do</strong> sintomas físicos e alterações de ordem orgânica (pressão<br />
intracraniana, dispnéia, arritmia cardíaca, palpitação, diarréia, constipação, prisão de<br />
ventre, dispepsia, etc.). Estes sintomas estão liga<strong>do</strong>s, segun<strong>do</strong> Freud (1895b/1996), a<br />
processos tóxicos diretos, causa<strong>do</strong>s pelo desvio insatisfatório da excitação sexual.<br />
Assim, o termo ‘atual’ é utiliza<strong>do</strong> por Freud – pela primeira vez em 1898 5 – no<br />
senti<strong>do</strong> de delimitar o fator de oposição entre os <strong>do</strong>is grupos de neuroses, a saber, a<br />
questão da historicidade, que constituía um impasse clínico para Freud na medida em<br />
que os sintomas da neurastenia e da neurose de angústia não eram claramente<br />
associa<strong>do</strong>s a fatores históricos, não eram ‘historiciza<strong>do</strong>s’ como no caso <strong>do</strong>s sintomas<br />
psiconeuróticos. Utilizan<strong>do</strong>-se de anamnese, Freud (1898/1996) encontrava na etiologia<br />
da neurastenia e da neurose de angústia um desvio no curso da excitação sexual,<br />
conforme dissemos, encontra<strong>do</strong> por ele de maneira mais fatual e objetiva em atividades<br />
como masturbação, coito interrompi<strong>do</strong> ou abstinência sexual.<br />
5 FREUD, S. (1898/1996) A sexualidade na etiologia das neuroses. In: Obras Completas, vol. III. Rio de<br />
Janeiro: Imago.
As características básicas da neurose atual, assim destacadas, serviram,<br />
conforme apontamos, como principal elemento teórico para a abordagem<br />
contemporânea das sintomatologias e <strong>do</strong>enças psicossomáticas que compõe os estu<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> Instituto de Psicossomática da Paris (IPSO), representa<strong>do</strong>s pelo nome de P. Marty<br />
(1993). As teorias de Marty não constituem contu<strong>do</strong> a única linha de pensamento em<br />
psicossomática que apareceram desde Freud no meio psicanalítico. Percebe-se<br />
claramente que, conforme abordaremos passo a passo, o percurso da psicossomática no<br />
campo psicanalítico não se deu de maneira linear, coerente e harmoniosa. As teorias<br />
relativas a esse tema encontram entre si divergências essenciais, que tomam a<br />
psicanálise como referência mas se afastam em seus mais fundamentais princípios. É<br />
importante portanto que, para estabelecermos a discussão aqui objetivada, exponhamos<br />
esse percurso segun<strong>do</strong> as diferentes linhas de pensamento que lhe concorrem.<br />
Começaremos pelas idéias de Groddeck, o qual apresenta-se como um médico<br />
investiga<strong>do</strong>r de <strong>do</strong>enças orgânicas que se interessou pelo discurso psicanalítico devi<strong>do</strong><br />
à sua inclinação a pensar o psicossoma, as relações entre o corpo e a mente,<br />
pioneirizan<strong>do</strong> assim as discussões sobre a psicossomática na psicanálise.<br />
1.2 Groddeck e sua concepção <strong>do</strong> “Isso”<br />
Groddeck foi um médico dedica<strong>do</strong> a investigar as <strong>do</strong>enças sob um prisma<br />
integral, levan<strong>do</strong> essencialmente em consideração que os fatores <strong>do</strong> a<strong>do</strong>ecimento, físico<br />
ou mental, estariam liga<strong>do</strong>s fundamentalmente a uma entidade que denominou como “o<br />
Isso”. Para situar esse inusita<strong>do</strong> pensamento na <strong>nos</strong>sa dissertação, encontramos uma<br />
passagem <strong>do</strong> “Livro dIsso” (1917a/1997), onde Groddeck introduz sua concepção<br />
particular acerca <strong>do</strong> humano e <strong>do</strong> Isso.<br />
“Acredito que o homem é vivi<strong>do</strong> por algo desconheci<strong>do</strong>. Existe nele um “Isso”,<br />
uma espécie de fenômeno que comanda tu<strong>do</strong> o que ele faz e tu<strong>do</strong> o que lhe<br />
acontece. A frase “Eu vivo...” é verdadeira apenas em parte; ela expressa apenas<br />
uma pequena parte dessa verdade fundamental: o ser humano é vivi<strong>do</strong> pelo Isso”<br />
(p. 9).<br />
O Isso integra a totalidade organismo-psiquismo e está na raiz tanto <strong>do</strong><br />
a<strong>do</strong>ecimento quanto da cura. Para Groddeck (1917a/1997) não há <strong>do</strong>ença psíquica ou<br />
orgânica que não seja originada no e pelo Isso. Ele diz: “Doença e saúde são formas de<br />
expressão <strong>do</strong> Isso” (idem, 1917a/1997, p. 147).
Delinean<strong>do</strong> <strong>do</strong>enças somáticas diversas de pacientes, Groddeck estabelecia uma<br />
relação intrínseca entre essas patologias e o inconsciente, caracterizan<strong>do</strong>-as como<br />
expressão <strong>do</strong> Isso, sob a afirmativa de que “(...) o Isso nada pode fazer além de<br />
simbolizar” (p. 68) e que “o Isso, o inconsciente, pensa através de símbolos (...)” (p.<br />
41). Groddeck aborda diversas <strong>do</strong>enças orgânicas defenden<strong>do</strong> idéias remetidas ao Isso a<br />
respeito de sua forma simbólica de expressão. A <strong>do</strong>ença, seja ela psíquica ou orgânica,<br />
expressa por meio de linguagem metafórica aquilo que o Isso quer. O Isso se expressa<br />
tanto no corpo quanto no psiquismo, segun<strong>do</strong> a linguagem na qual ele decide se uma<br />
enfermidade aparece ou não diante de um traumatismo ou precipitante interno.<br />
Groddeck (1917b/1997), numa carta a Freud, assinala:<br />
“O Isso, que se encontra liga<strong>do</strong> misteriosamente à sexualidade, ao Eros ou seja lá<br />
que nome se queira dar-lhe, forma tanto o nariz quanto a mão <strong>do</strong> homem, assim<br />
como os seus pensamentos e os seus sentimentos; manifesta-se tanto na<br />
pneumonia ou no câncer quanto na neurose obsessiva ou histeria; e, assim como<br />
a atividade mais evidente <strong>do</strong> Isso na forma de histeria ou neurose é objeto de<br />
tratamento psicanalítico, o é também a insuficiência cardíaca ou o câncer” (p. 5-<br />
6).<br />
Groddeck estende então a compreensão freudiana acerca das neuroses para as<br />
<strong>do</strong>enças orgânicas em geral. É importante assinalar que Groddeck localizou as <strong>do</strong>enças<br />
psicossomáticas <strong>do</strong> la<strong>do</strong> das psiconeuroses, com características similares a esta, sem se<br />
remeter em nenhum aspecto à abordagem de Freud sobre a neurose atual. Dessa forma,<br />
Groddeck defendeu uma característica simbólica concernente às patologias<br />
psicossomáticas. Assim como <strong>nos</strong> sonhos e nas conversões histéricas, o Isso se<br />
expressaria simbolicamente na esfera somática, as <strong>do</strong>enças somáticas como um to<strong>do</strong><br />
apresentariam um senti<strong>do</strong> na sua constituição, e estariam assim sujeitas a tratamento<br />
psicanalítico assim como as chamadas psiconeuroses. Por exemplo, hemorragias<br />
uterinas, ou nasais, pulmonares, retais estariam ligadas à idéia da gestação, ao desejo de<br />
gravidez, assim como, de acor<strong>do</strong> com Groddeck (1917a/1997), “(...) as hemorróidas,<br />
parecidas a vermes no reto (...) na maioria das vezes se originam da associação vermecriança<br />
(...)” (p. 14). Essas e outras afecções seriam formadas pelo Isso e devem<br />
segun<strong>do</strong> ele ser tratadas pela psicanálise. Groddeck (1917c/1969) assinalava, sobre o<br />
tratamento psicanalítico das <strong>do</strong>enças orgânicas, que é preciso ampliar o campo de<br />
investigação da análise à cirurgia, à oftalmologia, à otorrinolaringologia, à<br />
dermatologia, às <strong>do</strong>enças venéreas, e se convence da eficácia <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> de Freud para<br />
essas <strong>do</strong>enças. O autor defende em sua carta a Freud que o tratamento deve estar
volta<strong>do</strong> para o Isso, já que este é a raiz da enfermidade e de sua cura: “Uso o termo<br />
tratamento, porque não creio que a atividade <strong>do</strong> médico se estenda além <strong>do</strong> tratamento;<br />
a cura não é ele que proporciona, mas exatamente o Isso” (Groddeck, 1997b/1997, p.<br />
6).<br />
É interessante contu<strong>do</strong> frisar que as idéias de Groddeck acerca da constituição<br />
psíquica, <strong>do</strong> inconsciente, da sexualidade infantil, já estavam presentes em seu<br />
pensamento antes mesmo <strong>do</strong> contato com a psicanálise. Na mesma carta de 1917<br />
dirigida a Freud ele expôs claramente sua primeira reação quan<strong>do</strong> de seu contato com<br />
os textos freudia<strong>nos</strong>, expressan<strong>do</strong> uma certa decepção por não ter pioneiriza<strong>do</strong> a idéia<br />
<strong>do</strong> inconsciente. Sua admiração por Freud contu<strong>do</strong> era grande, o que o fez integrar-se<br />
ao meio psicanalítico, de maneira diferente entretanto da maioria <strong>do</strong>s psicanalistas, pois<br />
centrava-se especialmente na cura de <strong>do</strong>enças orgânicas. Groddeck (1917c/1969) expõe<br />
que sua inserção no meio psicanalítico não se deu pela investigação das “<strong>do</strong>enças<br />
nervosas”, como acontecia com muitos médicos, mas por sua atividade terapêutica<br />
física em <strong>do</strong>entes corporais crônicos, o que o levou à investigação psíquica e ao seu<br />
interesse pela psicanálise.<br />
Se Groddeck não pioneirizou a idéia <strong>do</strong> inconsciente, pioneurizou a discussão<br />
psicossomática na psicanálise. À sua maneira, com uma concepção peculiar acerca <strong>do</strong><br />
humano, Groddeck centralizou toda a discussão sobre os processos psíquicos e<br />
somáticos no Isso. Para ele, quem provoca a <strong>do</strong>ença é o Isso, e não propriamente um<br />
agente externo, ou um funcionamento orgânico inadequa<strong>do</strong>. O Isso é quem decide se o<br />
indivíduo vai ficar <strong>do</strong>ente, e se utiliza de agentes exter<strong>nos</strong> como meio de a<strong>do</strong>ecimento.<br />
Diante de um vento frio, por exemplo, o homem pode se resfriar, mas não se o Isso não<br />
quiser. Desta maneira, todas as <strong>do</strong>enças orgânicas são consideradas ‘psicossomáticas’.<br />
A idéia de Groddeck acerca <strong>do</strong> Isso rendeu a Freud importantes conseqüências<br />
teóricas num segun<strong>do</strong> momento de sua teoria. Freud (1923b/1996) utilizou-se <strong>do</strong> termo<br />
de Groddeck para designar uma instância psíquica inconsciente ligada<br />
fundamentalmente ao princípio de prazer. O ‘Isso’ na obra de Freud (id) tem contu<strong>do</strong><br />
características diferenciadas das de Groddeck, o qual concebia no Isso numa dimensão<br />
de totalidade organismo-psiquismo, uma entidade que se encontraria presente desde a<br />
concepção humana na fecundação (GRODDECK, 1917a/1997). Freud utilizou,<br />
contu<strong>do</strong>, o termo Isso para a explicação <strong>do</strong> aparelho psíquico e das neuroses, no senti<strong>do</strong>
de distinguir topicamente instâncias psíquicas diferentes, a saber, o Isso, o Eu e o<br />
Supereu (FREUD, 1923b/1996).<br />
A idéia de um “Isso” em Groddeck que determina os desti<strong>nos</strong> <strong>do</strong> humano, e que<br />
se enconta na origem desde a concepção, está segun<strong>do</strong> Birman (1980) diretamente<br />
remetida às imagens <strong>do</strong> Romantismo alemão e às filosofias da natureza. Ele coloca:<br />
“Seguramente, Freud partiu destas postulações imaginárias, realizan<strong>do</strong> uma<br />
crítica minuciosa de seus pressupostos para criar a Psicanálise. Nestes termos,<br />
esta mitologia romântica <strong>do</strong> inconsciente, totaliza<strong>do</strong>ra porque metafísica,<br />
antianalítica porque preocupada antes de mais nada com a síntese, corresponde<br />
ao negativo <strong>do</strong> trabalho de Freud. Com esta isomorfia <strong>do</strong> sonho e <strong>do</strong> sintoma<br />
orgânico, a concepção romântica de Groddeck atinge o seu ápice, rompen<strong>do</strong> toda<br />
uma elaboração positiva estabelecida por Freud, discriminan<strong>do</strong> estruturas<br />
psíquicas diversificadas, com seus mecanismos regula<strong>do</strong>res, no quadro de uma<br />
interpretação metapsicológica” (p. 102).<br />
As críticas a Groddeck e à linha de pensamento que se apoiam nessa isomorfia<br />
entre sintomas neuróticos e afecções psicossomáticas apareceram com força ainda<br />
maior <strong>nos</strong> desenvolvimentos teóricos de médicos psicanalistas que se voltaram para as<br />
investigações psicossomáticas, delinean<strong>do</strong> uma linha de pensamento essencialmente<br />
oposta à de Groddeck. Essa linha de pesquisa tem em Franz Alexander a principal<br />
referência, conjuntamente a F. Deutsch e F. Dunbar, os quais compunham a Escola de<br />
Chicago que se dedicou ao aprofundamento de pesquisas ligadas ao tema da<br />
psicossomática. A exposição dessas idéias é de suma importância no que se refere ao<br />
marco separatório nas concepções no campo psicanalítico entre afecções somáticas e<br />
sintomas psiconeuróticos.<br />
1.3 Alexander e a tipologia clínica da Escola de Chicago<br />
Orienta<strong>do</strong>s por F. Alexander, os pesquisa<strong>do</strong>res da escola de Chicago foram os<br />
primeiros a voltar sua atenção para a distinção freudiana entre psiconeuroses e neuroses<br />
atuais no movimento de investigação psicossomática (BIRMAN, 1980). Partin<strong>do</strong> desta<br />
distinção e centran<strong>do</strong>-se especificamente nesse aspecto da teoria freudiana, esses<br />
psicanalistas desenvolveram teorias concernentes às relações psique-soma, no senti<strong>do</strong><br />
de delimitar afecções orgânicas ligadas, segun<strong>do</strong> essa corrente, a esta<strong>do</strong>s emocionais<br />
que influiriam de maneira importante no funcionamento neuro-vegetativo<br />
(ALEXANDER, 1954). Basea<strong>do</strong> nessa distinção freudiana, Alexander (1954) faz uma
importante crítica ao pensamento de Groddeck, em específico ao ponto mais essencial<br />
de suas teorias sobre as relações entre o inconsciente e o organismo. Ele aponta:<br />
“Um grupo fundamentalmente diferente de transtor<strong>nos</strong> somáticos são aqueles<br />
que incluem os órgãos inter<strong>nos</strong>. Os primeiros autores psicanalistas tentaram<br />
repetidamente estender o conceito original de conversão histérica a todas as<br />
formas de transtor<strong>nos</strong> somáticos de origem psicógena, incluin<strong>do</strong> aquelas que<br />
ocorrem nas vísceras.<br />
“De acor<strong>do</strong> com tais pontos de vista, a elevação da pressão arterial tem um<br />
significa<strong>do</strong> simbólico igualmente a to<strong>do</strong> sintoma de conversão. Não se prestou<br />
nenhuma atenção ao fato de que as vísceras são controladas pelo sistema nervoso<br />
autônomo o qual não se encontra em relação direta com os processos ideativos.<br />
A expressão simbólica de conteú<strong>do</strong>s psicológicos se conhece somente no campo<br />
da inervação voluntária, na palavra, movimentos como a mímica facial, a<br />
gesticulação, o riso, o pranto, etc. Possivelmente pode-se incluir o rubor neste<br />
grupo. É muito mais improvável, não obstante, que os órgãos inter<strong>nos</strong> como o<br />
fíga<strong>do</strong> e as pequenas arteríolas <strong>do</strong> rim possam, simbolicamente, expressar idéias.<br />
Isso não significa que não possam ser influenciadas pelas tensões emocionais,<br />
conduzidas a qualquer parte <strong>do</strong> corpo através das vias córtico-talâmicas e das<br />
autônomas.” (p. 24-25) 6 .<br />
Alexander chama atenção então para estas distinções consideran<strong>do</strong> que o grupo<br />
das afecções psicossomáticas consiste em respostas viscerais a estímulos ou inibições<br />
emocionais: “(...) sempre que tal estimulação ou inibicão emocional de uma função<br />
vegetativa se faz crônica e excessiva, a denominamos ‘neurose de órgão’”. (p. 25) 7 .<br />
A neurose de órgão não se enquadra aos princípios das psiconeuroses de Freud,<br />
e inaugura uma nova forma de concepção psicossomática que leva em consideração o<br />
funcionamento neuro-vegetativo, ten<strong>do</strong> como referência a obra freudiana, sobretu<strong>do</strong> a<br />
distinção básica entre psiconeuroses e neuroses atuais. Contu<strong>do</strong>, esta distinção serve<br />
apenas como ponto teórico referencial na obra freudiana que não estende o simbolismo<br />
6 “Un grupo fundamentalmente diferente de transtor<strong>nos</strong> somáticos psicóge<strong>nos</strong> son aquellos que<br />
incluyen los órgãos inter<strong>nos</strong>. Los primitivos autores psicoanalistasintentaron repetidamente<br />
extender el concepto original de conversión histérica a todas las formas de transtor<strong>nos</strong> somáticos<br />
de origen psicógeno, incluiyen<strong>do</strong> aquéllos que ocurren em las víceras.<br />
De acuer<strong>do</strong> con tales puntos de vista, la elevación de la presión arterial o una hemorragia gástrica<br />
tiene un significa<strong>do</strong> simbólico al igual que to<strong>do</strong> sintoma de conversión. No se prestó ninguna<br />
atención al hecho de que las víceras son controladas por el sistema nervioso autónomo en qualno<br />
se encuentra en relación directa con los processos ideativos. La expressión simbólica de<br />
conteni<strong>do</strong>s psicológicos solamente se conoce en el campo de la inervación voluntaria, en la<br />
palabra, movimentos como la mímica, facial, la gesticulación, la riza, el llanto, etc. Possibelmente<br />
pueda incluirse el rubor en este grupo. Es mucho más improbable, sin embargo, que los órga<strong>nos</strong><br />
inter<strong>nos</strong> como el híga<strong>do</strong> o las pequeñasarteriolas del rino pueden, simbolicamente expressar ideas.<br />
Esto non significa que no pueden ser influenciadas por las tensiones emocionales, conducidas a<br />
cualquier parte del cuerpo a través de las vias córtico-talamicas y de las autónomas” (Tradução<br />
<strong>nos</strong>sa).<br />
7 “(...) siempre que tal estimulación o inhibición emocional de unaa función vegetativa se hace crônica y<br />
excessiva, la denominamos ‘órgano neurosis’” (Tradução <strong>nos</strong>sa).
das conversões histéricas e <strong>do</strong>s sonhos a patologias que se circunscrevem nas vísceras<br />
corporais. As neuroses de órgão não são propriamente “neuroses atuais”, mas o modelo<br />
de descarga das últimas serviu indubitavelmente como ponto de partida para essa linha<br />
de pensamento.<br />
Alexander (1954), conjuntamente aos pesquisa<strong>do</strong>res da escola de Chicago,<br />
desenvolveu então essas idéias, entenden<strong>do</strong> as <strong>do</strong>enças psicossomáticas essencialmente<br />
como respostas a movimentos emocionais, e ampliou este ponto de vista definin<strong>do</strong> na<br />
raiz dessas afecções esta<strong>do</strong>s emocionais específicos, característicos de tipos de<br />
personalidade determina<strong>do</strong>s. Para ele, alguns tipos de personalidade estão predispostos<br />
a sofrer determinadas enfermidades. Alexander (ibid.) definiu, assim, esses tipos<br />
clínicos, como a “personalidade coronariana”, “a personalidade asmática”, “a<br />
ulcerosa”, “a hipertensiva”, etc. O ulceroso, por exemplo, é um sujeito esforça<strong>do</strong> em<br />
realizar ambições. Para essa corrente teórica:<br />
“(...) A síndrome ulcerosa se desenvolve como uma reação à frustração <strong>do</strong>s<br />
veementes desejos de dependência por meio <strong>do</strong> trabalho árduo e de aspirações.<br />
Não obstante, a maioria eram passivos e afemina<strong>do</strong>s e expressavam seus desejos<br />
orais de um mo<strong>do</strong> aberto” (ALEXANDER,1954, p. 77) 8 .<br />
As pesquisas de Dunbar (1948) tentaram nessa linha de pensamento definir, a<br />
partir de estu<strong>do</strong>s estatísticos, previsões por probabilidade de aumento das <strong>do</strong>enças nas<br />
décadas subsequentes e justificavam, com base nesses apontamentos, o<br />
aprofundamento das pesquisas em psicossomática e a definição de perfis de<br />
personalidade que predisporiam essas <strong>do</strong>enças. Exames psiquiátricos de rotina foram<br />
utiliza<strong>do</strong>s e implementa<strong>do</strong>s para verificar dificuldades emocionais que supostamente<br />
originavam o curso das <strong>do</strong>enças, bem como para estabelecer correspondência entre o<br />
tipo de perfil de personalidade em cada caso e as <strong>do</strong>enças que apareciam (DUNBAR,<br />
1948).<br />
Apesar de serem ainda aplicadas atualmente as idéias de Alexander em muitas<br />
pesquisas no meio médico, essa concepção personalista da psicossomática passa a ser<br />
repensada por parte de alguns psicanalistas que empenham-se com a questão, devi<strong>do</strong> à<br />
experiência clínica que torna muitas vezes questionáveis essas teorias. A constatação de<br />
que “(...) um mesmo traço ou um conjunto de fatores de personalidade pode ser<br />
8<br />
“(...) El síndrome ulcerorose desarrolla como una reación a la frustración de los vehementes<br />
deseos de dependencia por medio del trabaho arduo y de aspiraciones. Sin embargo, a maioria eran<br />
passivos y afemina<strong>do</strong>s y expressaban sus deseos orales de un mo<strong>do</strong> abierto” (Tradução <strong>nos</strong>sa).
encontra<strong>do</strong> em quadros clínicos diferentes, não sen<strong>do</strong> específico a um único tipo ou<br />
grupo de <strong>do</strong>enças (...)” (VOLICH, 2000, p. 90), foi um ponto determinante de<br />
discordância sobre as concepções da Escola de Chicago. Dentre esses fatores, podemos<br />
refletir acerca dessas caracterizações personalistas e concluir que, apesar <strong>do</strong> apoio<br />
teórico na psicanálise, essas teorias se afastam essencialmente da mesma, na medida em<br />
que estabelecem perfis psicológicos promoven<strong>do</strong> uma profilaxia <strong>do</strong>s pacientes<br />
psicossomáticos e universalizan<strong>do</strong>, de maneira inconsistente (de acor<strong>do</strong> com o<br />
apontamento coloca<strong>do</strong> acima por Volich), a correspondência entre determinadas<br />
<strong>do</strong>enças e determina<strong>do</strong>s perfis psicológicos.<br />
Essas pesquisas, de pouca penetração na atualidade, constituíram assim uma das<br />
principais correntes teóricas que apareceram no campo psicanalítico, dispostas a abordar<br />
o tema da psicossomática. As teorias que vigem atualmente na psicossomática, contu<strong>do</strong>,<br />
são aquelas representadas por P. Marty, as quais serão tomadas nesse momento como<br />
objeto destaca<strong>do</strong> de discussão.<br />
1.4 As perspectivas atuais: O Instituto de Psicossomática de Paris<br />
As teorias em psicossomática têm, como apontamos anteriormente, diferentes<br />
referências, de várias linhas de pensamento. Diversos psicanalistas tentaram relacionar<br />
<strong>do</strong>enças somáticas com processos psíquicos e configuraram rumos teóricos específicos,<br />
liga<strong>do</strong>s a novas linhas de pesquisa.<br />
Surgiu então na França um grupo de médicos psicanalistas dispostos a tentar dar<br />
conta <strong>do</strong>s <strong>problemas</strong> somáticos que determina<strong>do</strong>s pacientes apresentavam, peculiares à<br />
clínica médica no que diz respeito aos contextos de sua manifestação – <strong>do</strong>enças que,<br />
como apontamos, apareciam sem uma causa aparente ou que apareciam dentro de uma<br />
seqüência de acontecimentos na vida da pessoa. Esse grupo de analistas, dentre os quais<br />
se destacam M’Uzan, Fain, David e cuja principal referência é P. Marty, formou então<br />
na França o Instituto de Psicossomática de Paris (IPSO), onde se pratica até hoje<br />
pesquisas e tratamentos a pacientes que apresentam porventura essas peculiaridades.<br />
Segun<strong>do</strong> esta corrente teórica, os pacientes em questão não são peculiares<br />
apenas <strong>do</strong> ponto de vista da <strong>do</strong>ença e da medicina, mas principalmente <strong>do</strong> ponto de<br />
vista da própria clínica psicanalítica. De acor<strong>do</strong> exposições teóricas <strong>do</strong> IPSO (Cf.
VOLICH, 1997) os pacientes em questão encontram grandes dificuldades em aplicar a<br />
regra fundamental da livre-associação de idéias e não apresentam uma demanda de<br />
análise consistente que justifique esse tipo de tratamento. As conclusões teóricas <strong>do</strong>s<br />
pesquisa<strong>do</strong>res implica<strong>do</strong>s com essas questões foram alcançadas fundamentalmente<br />
segun<strong>do</strong> um méto<strong>do</strong> de entrevistas de molde ‘psicanalítico’ em centros de atendimento<br />
receptores de indivíduos com patologias somáticas, <strong>do</strong>nde se circunscreveu<br />
caracterizações típicas a esses pacientes, específicas à clínica psicanalítica,<br />
diferentemente contu<strong>do</strong> daquelas atestadas por Alexander acerca <strong>do</strong>s perfis de<br />
personalidade. Para Marty (1993), esses pacientes encaixam-se numa tipologia clínica<br />
de outra ordem. O paciente psicossomático é segun<strong>do</strong> Marty (ibid.) um sujeito afasta<strong>do</strong><br />
de experiências subjetivas e apresenta um discurso cola<strong>do</strong> à objetividade, a<br />
experiências concretas, deixan<strong>do</strong> pouco espaço para uma intervenção psicanalítica –<br />
“clássica” segun<strong>do</strong> Marty (ibid.). Os desenvolvimentos teóricos <strong>do</strong> IPSO inferem para<br />
esses pacientes um déficit psíquico constitucional que se faria notar pela precariedade<br />
discursiva e pela dificuldade desses pacientes em associar livremente. Marty concebe<br />
nesse plano um empobrecimento da atividade fantasmática e uma incapacidade de<br />
simbolização. Isso indicaria para o autor, uma “dificuldade para pensar” (ibid., 1993, p.<br />
13) <strong>do</strong>s pacientes psicossomáticos. Atividades como devaneios, auto-reflexões,<br />
construções fantasmáticas, seriam quase inexistentes. Essas características, que<br />
apareceram em diversas experiências de tentativas de aplicação <strong>do</strong> dispositivo analítico<br />
aos pacientes com <strong>do</strong>enças de nível somático, levaram Marty a supor uma carência<br />
constitucional de representações, relativas a uma falha no desenvolvimento <strong>do</strong> aparelho<br />
psíquico que impede esses pacientes de estabelecer defesas psíquicas e produção de<br />
sintomas psiconeuróticos, “clássicos” segun<strong>do</strong> Marty (1993). Haveria nesses pacientes<br />
uma pobreza de nível representativo (idem, 1998), acarretan<strong>do</strong>-se, devi<strong>do</strong> a isso, uma<br />
grande dificuldade de associação de idéias, fato que interfere fundamentalmente, para<br />
os analistas <strong>do</strong> IPSO, no curso de uma análise dita “clássica” (MARTY, 1993).<br />
Nessa medida, foram delimita<strong>do</strong>s tipos clínicos característicos daquilo que<br />
Marty (1963a) denominou “pensamento operatório”, ao qual se atribui a referida<br />
pobreza discursiva e a fala pouco articulada. Marty definiu como pensamento<br />
operatório um tipo de funcionamento psíquico que não põe em jogo a dinâmica afetiva<br />
e que se reduz a um efeito puramente objetivo das idéias, em que não se verifica a
presença de conflitos psíquicos. Há nesses casos, para Marty (1993), uma limitação na<br />
atividade <strong>do</strong>s pensamentos, os quais estão sempre cola<strong>do</strong>s às experiências objetivas <strong>do</strong><br />
dia-a-dia, o que inviabilizaria para esses indivíduos o estabelecimento de defesas<br />
psíquicas (ibid.). O pensamento operatório se define assim por uma precariedade na<br />
atividade <strong>do</strong>s pensamentos e uma pobreza na verbalização, supostamente causada pelo<br />
déficit de representações psíquicas circunscrito aos pacientes psicossomáticos.<br />
O ponto nodal no qual Marty focaliza sua teoria psicossomática reside na<br />
incapacidade de assimilação satisfatória de uma irrupção das excitações internas (ibid.).<br />
Partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> princípio de que certas atividades mentais como pensamentos, sonhos e<br />
fantasias “(...) protegem a saúde física individual (...)” (ibid., p.17), Marty inferiu que a<br />
lesão ao nível <strong>do</strong> órgão se estabelece devi<strong>do</strong> à precariedade dessas atividades, as quais<br />
têm, para ele, função principal de promover elaboração das excitações internas e<br />
externas. O aparelho psíquico <strong>do</strong> ‘paciente somático’, por apresentar em sua<br />
constituição uma falha ao nível das representações, impossibilitaria a ligação das<br />
excitações somáticas com representações psíquicas, acarretan<strong>do</strong>-se, com isso, uma<br />
desorganização libidinal que se acumula e encontra as vísceras <strong>do</strong> corpo como único<br />
caminho possível para descarga (idem, 1993).<br />
Assim como o pensamento operatório está em jogo <strong>nos</strong> pacientes com pobreza<br />
representacional, podem aparecer nesses pacientes esta<strong>do</strong>s específicos característicos<br />
deste modelo teórico. A “depressão essencial”, conceito desenvolvi<strong>do</strong> pela corrente<br />
teórica martyniana, é um esta<strong>do</strong> clínico no qual há um “rebaixamento <strong>do</strong> tônus<br />
libidinal”, um desinteresse pelas coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> externo sem contu<strong>do</strong> haver<br />
referências objetais ou sentimentos de culpabilidade e autopunição. É uma pura perda<br />
de investimento e intensidades afetivas, desde as experiências, em princípio, mais<br />
alegres até os sentimentos mais trágicos (VIEIRA, 1997). Isso se traduz por uma certa<br />
‘indiferença’ relativa aos movimentos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> externo e às intensidades que esses<br />
movimentos provocam. Os acontecimentos para esses pacientes se esgotam em sua<br />
objetividade, e o paciente não estabelece conexões com outras esferas de sua vida,<br />
tampouco apresenta uma variação afetiva frente a esses acontecimentos. Tais<br />
conclusões foram tiradas a partir de entrevistas com tais pacientes (MARTY, 1963b)<br />
quan<strong>do</strong> esses apresentavam uma fala sucinta e pouco carregada de afeto. O paciente se<br />
mantém ‘indiferente’ e pouco tem a dizer a respeito de temas que causariam
sofrimentos e variações afetivas. J. McDougall (1983), que participou ativamente <strong>do</strong><br />
movimento psicossomático francês, fornece um importante relato que exemplifica essa<br />
fenomenologia:<br />
“Ainda guar<strong>do</strong> claramente a lembrança da primeira vez em que tive a ocasião de<br />
participar de uma entrevista desse tipo, clássica <strong>do</strong> gênero: a de uma jovem que<br />
viera consultar um especialista em psicossomática em conseqüência de uma<br />
retocolite hemorrágica. Num primeiro momento, a paciente negava qualquer<br />
possibilidade de que um fator psicológico pudesse estar relaciona<strong>do</strong> à <strong>do</strong>ença. Só<br />
depois de muita insistência por parte <strong>do</strong> analista-consultante, ela pôde relatar os<br />
dias que precederam a eclosão da <strong>do</strong>ença. Num tom de voz neutro, descreveu<br />
uma história de aban<strong>do</strong>no repentino durante uma gravidez em condições<br />
particularmente <strong>do</strong>lorosas e angustiantes. Era como se ela não devesse revelar<br />
nenhum traço de emoção nem dar a impressão de atribuir muita importância a<br />
um acontecimento verdadeiramente catastrófico, sobre o qual não podia exercer<br />
o menor controle. Na época, parecia-me que, por razões difíceis de esclarecer, a<br />
paciente era incapaz de engajar-se num processo de luto ou de reagir diante de<br />
uma situação pe<strong>nos</strong>a e complicada. Em vez disso, um pouco a exemplo <strong>do</strong><br />
lactante numa situação de aban<strong>do</strong>no catastrófico por parte <strong>do</strong> objeto materno,<br />
devi<strong>do</strong> à imaturidade de sua capacidade de pensar e reagir à perda, a paciente<br />
ficara fisicamente <strong>do</strong>ente” (p. 159).<br />
A leitura martyniana sobre esse tipo de disposição clínica demarca a questão <strong>do</strong><br />
déficit como elemento fundamental. Segun<strong>do</strong> tal concepção, o agravamento dessa<br />
conjuntura, causada fundamentalmente pela deficiência <strong>do</strong> plano representativo e<br />
ausência de atividades fantasmáticas leva a uma desorganização progressiva na<br />
“economia psicossomática” <strong>do</strong> indivíduo, o que resultaria nada me<strong>nos</strong> <strong>do</strong> que numa<br />
lesão de órgão (MARTY, 1993). Os conceitos de ‘pensamento operatório’ ‘depressão<br />
essencial’ e ‘desorganização progressiva’ estão igualmente relaciona<strong>do</strong>s à teoria <strong>do</strong><br />
déficit de representações mentais, circunscritas aos pacientes em questão.<br />
Marty (ibid.) classifica então esses pacientes como ‘pacientes somáticos’ e<br />
localiza-os num plano distinto, isola<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s psiconeuróticos, ou na<br />
linguagem de Marty (1993) “neuróticos mentais clássicos”. A expressão “neurose<br />
mental clássica” utilizada por Marty refere-se àquelas neuroses que apresentam um<br />
quadro sintomatológico referi<strong>do</strong> às investigações de Freud, pensadas por Marty como<br />
“clássicas”, em virtude da abordagem feita por Freud <strong>nos</strong> primórdios de suas teorias.<br />
Essas “neuroses clássicas” são as denominadas ‘psiconeuroses’ – histeria, fobia,<br />
obsessões. Tais neuroses são para Marty “mentais” justamente pelo fato de que a<br />
patologia se circunscreve ao plano mental. Dito de outra forma, na histeria, apesar de<br />
muitos de seus sintomas se situarem no corpo, os conteú<strong>do</strong>s psíquicos e a estrutura<br />
simbólica observada nesses sintomas são a chave de sua tessitura. Da mesma forma, as
patologias obsessivas e fóbicas encontram no inconsciente o arranjo de sua<br />
constituição. Para Marty, no caso de afecções psicossomáticas, o inconsciente não<br />
assume qualquer papel, permanecen<strong>do</strong> teoricamente como conceito secundário,<br />
implica<strong>do</strong> unicamente <strong>nos</strong> fenôme<strong>nos</strong> psiconeuróticos. Nessa direção, Marty (1998)<br />
caracteriza a questão <strong>do</strong> déficit representativo relativamente ao plano pré-consciente<br />
sob o ponto de vista de uma falha nas mentalizações.<br />
O tema das mentalizações refere-se a uma questão de capacidade <strong>do</strong> aparelho<br />
psíquico em promover descargas ao nível “mental”, e não somático; se refere também<br />
ao estabelecimento de defesas frente ao fator pulsional que exige trabalho psíquico,<br />
como coloca Freud (1915a/1996) acerca <strong>do</strong> conceito de pulsão. Para Marty (1993), os<br />
neuróticos “clássicos” são “ricos” psiquicamente, ou seja, seu aparelho psíquico tem<br />
ampla capacidade de abarcar movimentos pulsionais, promover ligação das excitações<br />
somáticas com representações mentais e produzir escoamentos psíquicos das excitações<br />
ou sintomas referi<strong>do</strong>s às psiconeuroses. Os sujeitos que apresentam discurso operatório<br />
são para Marty incapazes de estabelecer sintomas de nível “mental” (psiconeuroses), o<br />
que acarreta, como colocamos, uma descarga corporal gera<strong>do</strong>ra de patologias de nível<br />
somático. Os pacientes assim circunscritos ao quadro psicossomático são “neuróticos<br />
mal mentaliza<strong>do</strong>s” (MARTY, 1998).<br />
Assim Marty, de acor<strong>do</strong> com sua teoria das mentalizações, categoriza tipos<br />
diferentes de neurose, liga<strong>do</strong>s a essa concepção teórica. São elas as referidas neuroses<br />
mentais “clássicas”, às quais Marty atribui bom nível de mentalização, “protegen<strong>do</strong>” o<br />
indivíduo de descargas somáticas e patologias orgânicas; as neuroses de<br />
comportamento em que de verificam limitações na capacidade de pensar e refletir e, por<br />
isso, esses indivíduos “(...) não possuem outro recurso além da ação no seu<br />
comportamento para exprimir as diversas excitações exógenas e endógenas que a vida<br />
lhes propicia” (ibid., p. 30). Na irrupção de uma quantidade maior de excitações,<br />
sobreviriam nessas condições complicações somáticas diversas; as neuroses de<br />
mentalização incerta, nas quais Marty observa variações substanciais na quantidade das<br />
representações; e as neuroses mal mentalizadas, que se observa em indivíduos que<br />
apresentam ampla escassez discursiva frente à escuta clínica, supon<strong>do</strong>-se nisso um<br />
nível constitucional de pobreza <strong>do</strong> campo representativo (idem, 1993, 1998).
Para a explicação dessa falha fundamental, Marty se remete aos estu<strong>do</strong>s das<br />
relações mãe-bebê no desenvolvimento infantil, e registra o princípio dessa falha<br />
mental <strong>do</strong> ‘paciente somático’ na função materna. Para a psicossomática martyniana, a<br />
mãe “(...) falha como função de pára-excitação <strong>do</strong> bebê, o que constitui um<br />
traumatismo vivencia<strong>do</strong> na primeira infância, antes mesmo da aquisição da palavra”<br />
(FERRAZ, 1997, p. 32). Marty (1998) delineia esse quadro, conceben<strong>do</strong> a existência de<br />
alguns tipos de falha, algumas vezes <strong>do</strong> la<strong>do</strong> da criança e na maioria das vezes <strong>do</strong> la<strong>do</strong><br />
da mãe:<br />
“As insuficiências básicas das representações encontram sua origem no início <strong>do</strong><br />
desenvolvimento <strong>do</strong> sujeito. Elas provêm: a) de uma insuficiência congênita ou<br />
acidental das funções sensório-motoras da criança, funções que constituem as<br />
bases perceptivas das representações (dificuldades visuais, auditivas ou motoras,<br />
por exemplo); b) de deficiências funcionais da mãe, da mesma ordem que as<br />
precedentes. Consideramos que uma mãe mais ou me<strong>nos</strong> surda ou cega, por<br />
exemplo, não possa assegurar uma comunicação clássica com seu bebê ou sua<br />
criança; c) ou, e este é de longe o caso mais freqüente, de uma carência ou de<br />
uma desarmonia das respostas afetivas da mãe em relação a seu filho” (p. 22).<br />
Tais fatores são aponta<strong>do</strong>s como razões básicas <strong>do</strong> déficit psíquico. Essa<br />
“desarmonia” nas comunicações mãe-bebê e nas respostas afetivas da mãe provocaria<br />
nessa concepção uma incapacidade de formações representativas no sujeito, devi<strong>do</strong> ao<br />
fato de que a mãe não fornece as possibilidades para tal disposição. A função de páraexcitação<br />
da mãe no desenvolvimento infantil, sen<strong>do</strong> ela falha, acarreta a<br />
impossibilidade de um manejo posterior de excitações e uma dificuldade de<br />
transformação de excitações somáticas em libi<strong>do</strong> psíquica, esta constituin<strong>do</strong> o plano<br />
representativo. A precariedade na articulação <strong>do</strong>s pensamentos (pensamento operatório)<br />
como resulta<strong>do</strong> da escassez <strong>do</strong> plano representativo seria, portanto, a causa<br />
fundamental para a ocorrência das patologias psicossomáticas.<br />
Os fenôme<strong>nos</strong> psicossomáticos são compreendi<strong>do</strong>s assim como resulta<strong>do</strong> de<br />
excitações que não passaram pelo escoamento psíquico. Marty centraliza a eclosão<br />
psicossomática no ponto de vista econômico, a partir <strong>do</strong> qual se pensa uma quantidade<br />
isolada que não encontra escoamento psíquico e produz descargas corporais,<br />
comprometen<strong>do</strong> o sistema somático e lesionan<strong>do</strong> o organismo como resulta<strong>do</strong> de um<br />
fracasso das funções psíquicas. Isso está diretamente liga<strong>do</strong> à idéia de traumatismo,<br />
utilizada por Marty (1993) para caracterizar esses fenôme<strong>nos</strong>.<br />
“A descoberta <strong>do</strong>s traumatismos que foram a origem das <strong>do</strong>enças somáticas (...)<br />
constitui uma fase rica de investigação. (...) Os traumatismos permanecem <strong>nos</strong><br />
quadros econômicos individuais que estabelecemos anteriormente. Oriun<strong>do</strong>s de
uma excitação excessiva <strong>do</strong>s instintos ou pulsões que a organização<br />
psicossomática <strong>do</strong>s sujeitos não pode encarar, os traumatismos se definem pela<br />
quantidade de desorganização que produzem e não pela qualidade <strong>do</strong><br />
acontecimento ou da situação que os produzem” (p. 53).<br />
A lesão somática é o resulta<strong>do</strong> de um traumatismo, entendi<strong>do</strong> como uma<br />
vertente econômica, quantitativa, <strong>do</strong>s movimentos libidinais. Diferentemente <strong>do</strong>s<br />
sintomas histéricos, <strong>nos</strong> quais não se constatam alterações orgânicas concretas, essas<br />
patologias são localizadas ao nível <strong>do</strong>s órgãos e vísceras e não apresentam qualquer<br />
relação de senti<strong>do</strong> como se verifica na análise <strong>do</strong>s sintomas histéricos. As afecções<br />
psicossomáticas não se circunscrevem numa esfera simbólica, não remetem a<br />
representações infantis, não são historicizáveis. Essas conclusões, relativas ao<br />
pensamento martyniano e à sua interpretação <strong>do</strong>s fenôme<strong>nos</strong> clínicos, conferem ao<br />
pensamento corrente <strong>do</strong> IPSO limites que dizem respeito à eficácia <strong>do</strong> dispositivo<br />
psicanalítico, o qual se baseia na livre associação de idéias e na atenção flutuante<br />
(FREUD, 1912b/1996). Marty (op. cit.) infere que os pacientes em questão não são<br />
acessíveis ao tratamento analítico, devi<strong>do</strong> à precariedade mental que os levaria a<br />
dificuldades em apresentar demanda de análise e aplicar a regra da associação livre.<br />
Diante dessas dificuldades, o IPSO desenvolve um tratamento clínico diferencia<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
da psicanálise, em que se verifica méto<strong>do</strong>s psicoterapêuticos de enriquecimento mental<br />
e reeducação <strong>do</strong> uso e equilíbrio das energias libidinais. O terapeuta deve assumir nesse<br />
contexto função de pára-excitação (gestual ou mímica), relacionada por Marty à função<br />
materna (ibid.). Segun<strong>do</strong> Volich (1997), “dessa posição [função maternal], pode-se<br />
esperar uma reanimação libidinal, uma melhora nas qualidades <strong>do</strong> pré-consciente e,<br />
portanto, um melhor tratamento psíquico da excitação” (p. 94). Marty considera então<br />
que “(...) as intervenções psicoterápicas são, de fato, destinadas, erguen<strong>do</strong> as barreiras<br />
existentes, a animar, ampliar e a enriquecer o funcionamento mental <strong>do</strong> paciente até o<br />
nível mais desenvolvi<strong>do</strong> possível” (ibid., p. 63) e recomenda que o terapeuta não espere<br />
pelo estabelecimento da transferência.<br />
Tais transposições clínicas, que se afastam radicalmente da configuração<br />
psicanalítica, se dão pela dificuldade de inserção de determina<strong>do</strong>s sujeitos ao processo<br />
de análise, o que é toma<strong>do</strong> pelo IPSO como natural devi<strong>do</strong> à precariedade psíquica<br />
desses pacientes, à dificuldade de associar e estabelecer conexões simbólicas e<br />
historicização. Esse ponto é fundamental para uma discussão no campo psicossomático,<br />
pelo fato de que isso remete indubitavelmente à ordem <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, <strong>do</strong> campo
epresentativo, <strong>do</strong> campo da linguagem, tomada como inexistente no fenômeno<br />
psicossomático, tampouco relacionada com ele. Nesse ínterim, a psicanálise é<br />
concebida como limitada aos alcances terapêuticos <strong>do</strong> fenômeno psicossomático e ao<br />
estabelecimento de sua técnica a esses pacientes.<br />
Ainda que considerada como disciplina distinta da psicanálise<br />
(KAMIENIECKI, 1993), a psicossomática martyniana mantém constante diálogo com<br />
a teoria psicanalítica, a qual se constitui como ancora<strong>do</strong>uro fundamental de suas<br />
abordagens. A psicossomática francesa constituiu-se como importante referência de<br />
grande penetração nas pesquisas contemporâneas, de mo<strong>do</strong> que ela é tomada hoje como<br />
uma das principais fontes teóricas para a abordagem psicossomática no campo<br />
psicanalítico. Diante da importância que ela toma hoje no estu<strong>do</strong> das patologias<br />
psicossomáticas, indubitavelmente obscuras para a psicanálise, avaliamos<br />
imprescindível colocar essas teorias em relevo, situá-las no quadro da teoria<br />
psicanalítica e verificar algumas de suas minúcias que possam dizer respeito às<br />
concepções fundamentais da psicanálise. As teorias martynianas têm <strong>nos</strong> leva<strong>do</strong> assim<br />
a refletir sobre as bases freudianas que a sustentam e a discutir a articulação <strong>do</strong>s<br />
conceitos freudia<strong>nos</strong> na sua construção 9 .<br />
Alguns conceitos específicos foram nessa direção evoca<strong>do</strong>s pela corrente<br />
martyniana na tentativa de se delimitar os processos em jogo na ocorrência <strong>do</strong>s<br />
fenôme<strong>nos</strong> psicossomáticos, tais como o conceito de pré-consciente e principalmente o<br />
de neurose atual, os quais foram amplamente utiliza<strong>do</strong>s como principais referências<br />
freudianas nas quais Marty pôde se apoiar. Nesse ínterim, avaliamos necessária a<br />
confrontação e a articulação entre a obra martyniana e esses conceitos freudia<strong>nos</strong> em<br />
específico.<br />
A obra freudiana ofereceu, deste mo<strong>do</strong>, pontos de apoio para o estabelecimento<br />
de parâmetros na constituição de teorias emergentes no campo psicanalítico. Tendemos,<br />
sob esse aspecto, a voltarmos <strong>nos</strong>sa atenção para esses conceitos e verificarmos o<br />
embasamento dessas teorias, à medida que <strong>nos</strong> deparamos com a fundamentação <strong>do</strong>s<br />
respectivos modelos teóricos em psicanálise. Esse é o ponto a partir <strong>do</strong> qual<br />
9 Essa pesquisa se iniciou com a revisão <strong>do</strong> conceito de neurose atual mediante o trabalho menciona<strong>do</strong><br />
(QUINTELLA, 2003) que indicou introdutoriamente <strong>problemas</strong> de ordem teórica para as concepções de<br />
Marty. O presente trabalho tem uma importância fundamental para o aprofundamento dessas questões e<br />
para a continuidade dessa pesquisa.
questionamos, na esfera da confrontação teórica, a explicação martyniana sobre os<br />
fenôme<strong>nos</strong> psicossomáticos (QUINTELLA, 2003). Marty infere, conforme apontamos,<br />
uma descarga corporal oriunda da excitação interna que não encontrou escoamento<br />
psíquico, atingin<strong>do</strong> sistemas orgânicos e produzin<strong>do</strong> patologias ‘psicossomáticas’. Esse<br />
modelo de descarga corporal, o qual se centra efetivamente no ponto de vista<br />
econômico, constitui fundamentalmente o processo em jogo delinea<strong>do</strong> por Freud no seu<br />
desenvolvimento teórico inicial referente às neuroses atuais.<br />
Marty categoriza determina<strong>do</strong>s tipos de pacientes que respondem<br />
preponderantemente aos traumatismos com complicações somáticas devi<strong>do</strong> à<br />
precariedade psíquica que os impede de estabelecer elaboração das excitações<br />
somáticas. Nesse senti<strong>do</strong>, defende a idéia de que um sujeito ‘rico’ de representações<br />
mentais, que apresenta exemplares atividades fantasmáticas, se encontra ‘protegi<strong>do</strong>’ de<br />
descargas corporais. Pela lógica, tal linha de pensamento leva a concluir que um<br />
psiconeurótico típico (histérico, fóbico ou obsessivo) estaria livre de <strong>do</strong>enças<br />
‘psicossomáticas’, o que Marty defende quan<strong>do</strong> afirma que as atividades psíquicas da<br />
neurose mental (psiconeurose) protege o sujeito das descargas de excitação e não se<br />
acha localizada em pacientes “psicossomáticos, estes sen<strong>do</strong> incapazes de desenvolvêlas<br />
(MARTY, 1993). Opera-se então a partir dessa idéia, uma demarcação tipológica<br />
para os pacientes psicossomáticos, estes se enquadran<strong>do</strong> num plano distinto <strong>do</strong>s sujeitos<br />
‘psiconeuróticos’.<br />
O modelo de descarga corporal apresenta<strong>do</strong> por Freud no início de suas teorias<br />
(FREUD, 1898/1996) revela contu<strong>do</strong> um problema para a teoria de Marty. Conforme o<br />
exposto na pesquisa que realizamos (op. cit.), baseada fundamentalmente na obra de<br />
Freud, a descarga corporal não se encontra desvinculada de questões psiconeuróticas,<br />
apesar de o movimento de circunscrição e delimitação de fronteiras entre neuroses<br />
atuais e psiconeuroses ter si<strong>do</strong> intenso. Em momento algum de suas reflexões,<br />
entretanto, Freud inferiu uma disparidade entre o fenômeno da psiconeurose e o<br />
fenômeno da neurose atual. Ao contrário, apesar das distinções e das fronteiras<br />
estabelecidas a respeito destes <strong>do</strong>is grupos de neuroses, constata-se na obra freudiana a<br />
permanente demonstração de que os sintomas das duas neuroses aparecem clinicamente<br />
mistura<strong>do</strong>s, combina<strong>do</strong>s e etiologicamente entremea<strong>do</strong>s (FREUD, 1893;1898/1996).<br />
Algumas importantes passagens <strong>do</strong> dizer de Freud são exemplares para configurar esse
apontamento: “Os casos mistos, em que os sinais de neurastenia se combinam com os<br />
de uma psiconeurose são de natureza muito freqüente (...)” (FREUD, 1898/1996; p.<br />
254). Essa passagem introduz a idéia fundamental de que, clinicamente as duas<br />
neuroses aparecem juntas, sem qualquer problema de contradição fenomenológica.<br />
Com relação à etiologia – localizada essencialmente <strong>nos</strong> movimentos libidinais tanto<br />
numa neurose como na outra – Freud (ibid.) afirma:<br />
“A razão por que as neuroses mistas ocorrem com tanta freqüência é que seus<br />
fatores etiológicos se acham muitas vezes entremea<strong>do</strong>s, às vezes apenas por<br />
acaso, outras vezes como resulta<strong>do</strong> de relações causais entre os processos de que<br />
derivam os fatores etiológicos das neuroses” (p. 275).<br />
Freud concebe nesse momento que as neuroses atuais estão entrecruzadas com<br />
as psiconeuroses em suas relações etiológicas. Esta afirmação se configura como da<br />
maior importância à medida que se vai colocan<strong>do</strong> em destaque as conseqüências<br />
teóricas da interação psiconeurose–nueorse atual, o que será desenvolvi<strong>do</strong><br />
posteriormente, quan<strong>do</strong> tratarmos desse assunto mais detalhadamente. De fato,<br />
contu<strong>do</strong>, isso já sinaliza algumas questões relativas à concepção psicossomática. Outra<br />
importante passagem na obra de Freud (1917c/1996) a respeito da ligação entre as duas<br />
neuroses diz respeito ao caráter eclosivo que as põe em relação mútua: “(...) um<br />
sintoma de uma neurose atual é freqüentemente o núcleo e o primeiro estágio de um<br />
sintoma psiconeurótico” (p. 391). Bem antes disso, em 1898, no mesmo senti<strong>do</strong>, ele<br />
afirmara: “Elas [psiconeuroses] aparecem em <strong>do</strong>is tipos determinantes, seja<br />
independentemente, seja no rastro das neuroses atuais” (idem, 1898/1996, p. 264).<br />
Essas são afirmações diversas que revelam uma ligação intrínseca e uma<br />
importante interação entre os fenôme<strong>nos</strong> concernentes aos <strong>do</strong>is grupos de neuroses.<br />
Freud (1917a/1996) chegou a falar em conexão entre as duas neuroses, mas não<br />
aprofun<strong>do</strong>u suas investigações sobre esse modelo da descarga corporal, tampouco<br />
sobre a conexão entre essas descargas e os fenôme<strong>nos</strong> (psico)neuróticos.<br />
O que avaliamos contu<strong>do</strong> imprescindível para uma discussão consistente sobre a<br />
neurose atual e a psicossomática é o fato de que, para Freud, não é necessária a<br />
inexistência de representações psíquicas para haver descargas corporais gera<strong>do</strong>ras de<br />
alterações orgânicas concretas. Tampouco os pacientes psiconeuróticos se acham<br />
‘protegi<strong>do</strong>s’ da neurose atual. Ao contrário, de acor<strong>do</strong> com Freud, grande número de<br />
pacientes psiconeuróticos apresentavam também neuroses ‘atuais’, a ponto de Freud<br />
localizar a última como complexo eclosivo da psiconeurose. Tais observações,
emetidas ao campo psicossomático e às teorias martynianas, se ampliam segun<strong>do</strong><br />
considerações de psicanalistas que, apesar de seguir o modelo teórico <strong>do</strong> IPSO, se<br />
confrontaram com fenôme<strong>nos</strong> clínicos desestabiliza<strong>do</strong>res das suas convicções. Dejours<br />
(1998) apresenta-<strong>nos</strong> por exemplo caso de um paciente com amplas e exemplares<br />
características psiconeuróticas o qual, em meio a manifestações típicas da neurose<br />
(sintomas, atos falhos, riqueza fantasmática e de associações de idéias), apresentou,<br />
segun<strong>do</strong> o autor, fenômeno psicossomático. Dejours caracteriza esse caso como uma<br />
‘tragédia clínica’ (ibid.; p. 39) no que se refere à teoria de Marty, da qual ele era<br />
segui<strong>do</strong>r. Nesse mesmo contexto, McDougall (1987) afirma: “Existem (...)<br />
polissomatizantes que não criaram essa carapaça ‘operatória’ (...) que caracteriza as<br />
estruturas psicossomáticas mais estudadas pela pesquisa psicanalítica” (p. 21).<br />
Essa constatação atesta para a abordagem martyniana uma importante<br />
problematização teórica, crucial para o núcleo de sua abordagem – a teoria <strong>do</strong> déficit<br />
psíquico – tanto diante de conformações clínicas que não batem com seu modelo,<br />
quanto diante da confrontação teórica aqui estabelecida acerca da introdução das<br />
reflexões sobre a neurose atual.<br />
As afirmações de Freud aqui expostas sobre as neuroses atuais deixa-<strong>nos</strong><br />
questões referentes à importância das relações entre os <strong>do</strong>is grupos de neuroses, o que<br />
leva-<strong>nos</strong> a indagar sobre o que significa dizer que um sintoma ‘atual’ pode ser o<br />
“primeiro estágio de uma psiconeurose”. A princípio, isso significa, no mínimo que,<br />
onde há por exemplo uma asma nervosa, há aí ligada uma psiconeurose.<br />
Diante desses fatores, faz-se necessária uma reflexão a respeito, não só da teoria<br />
martyniana e tu<strong>do</strong> o que ela traz para o campo psicanalítico, mas também a respeito <strong>do</strong><br />
ponto de articulação referi<strong>do</strong> ao enlace na neurose atual com a psiconeurose.<br />
A teoria martyniana apresenta <strong>problemas</strong> não apenas <strong>do</strong> ponto de vista de sua<br />
base principal – a neurose atual – mas também a respeito das concepções <strong>do</strong> campo das<br />
representações que, em linhas gerais, configuram importante elemento no quadro de<br />
seu modelo teórico.<br />
No que concerne à abordagem <strong>do</strong> pré-consciente, sentimo-<strong>nos</strong> aqui inclina<strong>do</strong>s a<br />
expor o resulta<strong>do</strong> de algumas pesquisas de confrontação entre o pensamento martyniano<br />
e o pensamento freudiano, sobretu<strong>do</strong> no que se refere à concepção de representação e à<br />
distinção que Freud (1915b/1996) estabelece entre representação de coisa e
epresentação de palavra. Nesse ínterim, faz-se necessário passar detalhadamente pela<br />
questão das representações e da localização <strong>do</strong> pré-consciente, tanto na abordagem<br />
martyniana, quanto nas concepções freudianas – estas constituin<strong>do</strong> a base <strong>do</strong><br />
pensamento psicanalítico.<br />
Marty (1993) localiza o pré-consciente como “(...) peça central da economia<br />
psicossomática” (p. 24), e afirma:<br />
“Poder-se-ia finalmente dizer que, quanto mais o pré-consciente de um sujeito se<br />
mostrar rico de representações permanentemente ligadas entre si, mais a<br />
patologia eventual correrá o risco de se situar na vertente mental. Quanto me<strong>nos</strong><br />
o pré-consciente de um sujeito se mostrar rico de representações, de ligações<br />
entre as que existem e de permanência das representações e suas ligações, mais a<br />
patologia eventual correrá o risco de se situar na vertente somática. É neste<br />
senti<strong>do</strong> que qualificamos o pré-consciente de ‘peça central’ da economia<br />
psicossomática.” (ibid., p. 28).<br />
Sob esse ângulo, uma patologia orgânica estará em causa quan<strong>do</strong> a constituição<br />
<strong>do</strong> pré-consciente apresentar pobreza de representações. Nesse contexto, Marty define a<br />
questão, evocan<strong>do</strong> a distinção freudiana entre as representações de palavra e as<br />
representações de coisa para o desenvolvimento dessas idéias. O estu<strong>do</strong> detalha<strong>do</strong> desse<br />
ponto é de fundamental importância para <strong>nos</strong>sa argumentação.<br />
Para Marty (1993), as representações de coisa devem ser entendidas como<br />
realidades vivenciadas, inscrições de percepções de pouca variação em relação à coisa<br />
percebida, pouco mobilizáveis mentalmente (ibid.).<br />
No campo das representações de palavra verifica-se apreensões psíquicas<br />
ligadas ao plano da verbalização. Marty (ibid.) define sua concepção:<br />
“Oriundas das comunicações inter-humanas (com a mãe em primeiro lugar), as<br />
representações de palavras mantêm e organizam essas comunicações, permitin<strong>do</strong><br />
simultaneamente comunicações internas, refletidas consigo mesmo. Facilmente<br />
mobilizáveis pelos afetos, atraentes e enriquecidas por novos afetos e também<br />
por valores simbólicos, à medida da multiplicação das trocas verbais, as<br />
representações de palavras constituem o essencial das associações de idéias” (p.<br />
25).<br />
Estas últimas são características <strong>do</strong> plano pré-consciente, as quais estabelecem<br />
ligações com as representações de coisas, “modifican<strong>do</strong> assim sua natureza” (ibid., p.<br />
25), ou seja, dan<strong>do</strong> a elas, segun<strong>do</strong> Marty (ibid.), possibilidades de associação e<br />
significação.<br />
Marty infere que, <strong>nos</strong> quadros psicossomáticos, as representações de palavras,<br />
no que diz respeito ao seu aspecto qualitativo, carecem de componentes afetivos e
simbólicos. Mais <strong>do</strong> que isso, <strong>do</strong> ponto de vista quantitativo, elas são escassas, ou seja,<br />
o pré-consciente acha-se pobre de representações de palavras. Assim, as representações<br />
de coisas se achariam insuficientemente vinculadas ao plano das palavras, devi<strong>do</strong> à<br />
escassez destas, impossibilitan<strong>do</strong> uma expressão de nível simbólico das coisas. Marty<br />
(1993) entende então que as representações de coisa aparecem como traços mnésicos<br />
puros pouco sujeitos a associações de idéias. Nesse ínterim, o paciente fala pouco,<br />
associa pouco e, quan<strong>do</strong> fala, apresenta um nível de verbalização escasso, o que<br />
impossibilitaria, conforme colocamos segun<strong>do</strong> Marty (1993), a ligação das excitações e<br />
a sua elaboração psíquica, sobrevin<strong>do</strong> com isso a somatização, segun<strong>do</strong> a concepção de<br />
que as representações de coisa são pouco sujeitas a associações.<br />
É importante sublinhar que as palavras são escassas, para Marty, não<br />
simplesmente <strong>do</strong> ponto de vista fenomênico da observação clínica, mas, como<br />
apontamos anteriormente, <strong>do</strong> ponto de vista da constituição psíquica, permanente<br />
desses pacientes. Nesse contexto verificamos em Marty a concepção de uma<br />
representação de coisa pura, desalojada e independente <strong>do</strong> plano das palavras,<br />
caracterizada como traço sem variação em relação à impressão, à imagem da coisa<br />
percebida e pouco sujeita a associações. Esta concepção da representação de coisa e sua<br />
relação com a representação de palavra diverge das idéias de Freud acerca deste assunto<br />
em específico. Isso, como dissemos, <strong>nos</strong> leva a rediscutir a questão das representações<br />
<strong>nos</strong> escritos freudia<strong>nos</strong> e a confrontar as suas inferências e conclusões com o discurso e<br />
as concepções martynianas que baseiam a abordagem psicossomática na psicanálise.<br />
A noção de representação no pensamento de Freud aparece antes mesmo <strong>do</strong><br />
advento da psicanálise, quan<strong>do</strong> ele escreveu um trabalho volta<strong>do</strong> para o meio médico<br />
que tinha como objetivo estabelecer concepções sobre a disfunção da linguagem que<br />
aparece no quadro das afasias. Este texto de Freud data de 1891 e é remeti<strong>do</strong> às<br />
questões fundamentais discutidas por renoma<strong>do</strong>s neurologistas como Wernicke,<br />
Lichtheim, Grashey e Meynert a respeito das localizações de lesões cerebrais<br />
causa<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s distúrbios das afasias. Consideramos assim importante a apresentação<br />
detalhada <strong>do</strong>s contextos <strong>nos</strong> quais Freud introduziu suas concepções sobre o campo das<br />
representações para que alcancemos o entendimento necessário e para que possamos<br />
<strong>nos</strong> fundamentar ao confrontarmos as idéias de Freud com as de P. Marty. Vejamos
então como Freud trabalha a questão das representações nesse texto, localizan<strong>do</strong>-a no<br />
contexto em que ela está inserida, ou seja, no estu<strong>do</strong> das afasias.<br />
1.4.1 Freud e o estu<strong>do</strong> das afasias<br />
A afasia é um distúrbio da linguagem que se divide, segun<strong>do</strong> a neurologia de<br />
Wernicke (FREUD, 1891/1977), entre afasia sensorial – perda da compreensão da<br />
linguagem, em que permanece contu<strong>do</strong> a fala articulada –, afasia motora – perda da<br />
capacidade de pronunciar as palavras, permanecen<strong>do</strong> a compreensão <strong>do</strong> que é dito pelos<br />
outros – e afasia de condução – resulta<strong>do</strong> de lesões das vias de condução entre os<br />
centros sensoriais e motores. (FREUD, 1891/1977).<br />
A posição de Freud a respeito da localização cerebral das afasias divergia da <strong>do</strong>s<br />
principais investiga<strong>do</strong>res de sua época. Diferentemente de Wernicke e Lichtheim, que<br />
consideravam a afasia decorrente da destruição de centros sensoriais (afasia sensorial) e<br />
motores (afasia motora) ou da destruição das vias de ligação entre esses centros (afasia<br />
de condução), Freud afirmava a necessidade de existência de relações <strong>do</strong> aparelho de<br />
linguagem com as demais áreas <strong>do</strong> cérebro, não apenas restritas a esses centros (área de<br />
Broca e área de Wernicke) 10 . Freud assim, posicionava-se numa visão não tão<br />
localizacionista na acepção das funções cerebrais da linguagem e <strong>do</strong>s seus distúrbios.<br />
Freud entende que as funções da linguagem não estão localizadas exclusivamente em<br />
partes isoladas <strong>do</strong> cérebro, mas estão ligadas a processos que tomam o cérebro como<br />
um to<strong>do</strong>. Essa noção de processo é congruente à concepção de Freud de que não pode<br />
haver distinção entre sensação e associação, de que a associação é imediata à sensação.<br />
Não pode haver, assim, uma localização cerebral diferente para cada um desses<br />
fenôme<strong>nos</strong>, já que eles se tratam de um mesmo processo. Nesse senti<strong>do</strong>, entende-se que<br />
não haja dualidade entre a impressão e a associação, ou seja, a associação é intrínseca à<br />
sensação, à impressão e à representação (GARCIA-ROZA, 1991a).<br />
Na mesma linha de pensamento, Freud (1891/1977) entende que “o psíquico é<br />
assim um processo paralelo ao fisiológico” (p. 56), concomitante e dependente, sem<br />
haver, contu<strong>do</strong>, relação de causalidade <strong>do</strong>s processos fisiológicos aos psíquicos. Dito de<br />
outra forma, o correspondente fisiológico das representações não está localiza<strong>do</strong> num<br />
10 A área de Broca é considerada como campo cerebral responsável pelas funções motoras, e a área de<br />
Wernicke é considerada como campo responsável pelas funções sensoriais.
ponto específico <strong>do</strong> cérebro. Sen<strong>do</strong> assim, a representação não está localizada numa<br />
célula nervosa, ou seja, o correspondente fisiológico de uma representação é justamente<br />
algo da natureza de um processo. Freud demonstra, portanto, por meio de observações<br />
clínicas, que a afasia tem muito mais a ver com uma perturbação funcional <strong>do</strong> cérebro<br />
<strong>do</strong> que com fatores anatômicos de lesões localizadas em centros determina<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
cérebro. Esse é o interesse fundamental de Freud neste trabalho. Contu<strong>do</strong>, ele introduz<br />
noções fundamentais sobre a idéia de representação que vieram a des<strong>do</strong>brar<br />
importantes reflexões teóricas posteriores no campo psicanalítico, fundamentais para a<br />
compreensão <strong>do</strong>s processos psíquicos.<br />
Já no seu estu<strong>do</strong> sobre as afasias Freud operou uma importante distinção entre as<br />
representações das coisas e as representações das palavras, no senti<strong>do</strong> de circunscrever<br />
como se dão as relações entre elas para a explicação <strong>do</strong>s distúrbios da linguagem nas<br />
afasias. No campo da palavra Freud aponta quatro elementos para sua composição: a<br />
imagem acústica, a imagem motora da linguagem, a imagem da leitura e a imagem<br />
motora <strong>do</strong> escrever, sen<strong>do</strong> a palavra constituída então de elementos acústicos, visuais e<br />
cinestésicos (ibid.). A associação desses elementos formam uma representação<br />
complexa, a qual se associa com outras representações de palavra caracterizan<strong>do</strong> o que<br />
Freud (ibid.) chamou de superassociação.<br />
As representações assim circunscritas ao plano das palavras ganham denotação<br />
quan<strong>do</strong>, por sua vez, associadas às representações de coisas, que Freud chamava nessa<br />
época de “representação objectual”. “(...) a representação objectual é um complexo<br />
associativo das mais diversas representações visuais, táteis, cinestéticas, etc.” (ibid., p.<br />
71). Freud defende a tese de que as representações de palavras se acham ligadas às<br />
representações objectuais através <strong>do</strong> elemento acústico da palavra com o elemento<br />
visual das associações de objeto. Uma representação se constitui, assim, como um<br />
complexo associativo entre elementos de diversos alcances cerebrais (visuais, táteis,<br />
cinestéticos). Essa idéia, como aponta Garcia-Roza (1991a) é “um aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong><br />
conceito de impressão” (p. 46), no senti<strong>do</strong> de que as representações objectuais não<br />
possuem um correspondente fisiológico ponto a ponto, mas constituem um complexo<br />
associativo que engloba diversos elementos sensoriais de diferentes campos cerebrais.<br />
Freud então assume, neste texto, suas posições como neurologista,<br />
demonstran<strong>do</strong> uma visão não localizacionista <strong>do</strong>s fenôme<strong>nos</strong> de linguagem. Assim para
Freud, as afasias podem ser delimitadas, não em afasia sensorial, motora e de condução,<br />
localizadas em áreas específicas segun<strong>do</strong> Wernicke e Lichtheim, mas em afasias de<br />
primeira ordem ou afasia verbal, em que a perturbação ocorre entre os elementos<br />
intrínsecos da representação da palavra; a afasia simbólica ou “assimbolia”, na qual<br />
aparece uma perturbação entre a representação da palavra e a representação objectual; e<br />
a ag<strong>nos</strong>ia, na qual se verifica uma perda de capacidade de se reconhecer as coisas <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> externo.<br />
O interesse de Freud pela noção de representação no seu estu<strong>do</strong> das afasias está<br />
relaciona<strong>do</strong> fundamentalmente com as concepções das funções cerebrais da linguagem e<br />
seus distúrbios, mas rendeu-lhe grandes des<strong>do</strong>bramentos e importantes bases para a sua<br />
posterior conceituação <strong>do</strong> inconsciente.<br />
Em seu artigo “O Inconsciente”, data<strong>do</strong> de 1915, Freud voltou a estabelecer a<br />
distinção entre a representação de palavra e representação de coisa (antiga<br />
representação objectual). Aqui, ele coloca que o que se pode apreender <strong>do</strong> inconsciente<br />
é que nele há apenas representações de coisas, as quais consistem de “(...) traços de<br />
memória mais remotos” (p. 206) deriva<strong>do</strong>s das imagens das coisas. De acor<strong>do</strong> com as<br />
colocações de Freud, as representações das coisas consistem, não da cópia da imagem<br />
da coisa, a impressão direta da coisa, mas de traços relativos a essa imagem, que<br />
tomam uma certa autonomia em relação à coisa percebida. O inconsciente – diz Freud<br />
(ibid.) – “(...) contém os investimentos da coisa <strong>do</strong>s objetos, os primeiros e verdadeiros<br />
investimentos objetais” (p. 206). Em contrapartida, no campo <strong>do</strong> pré-consciente,<br />
acham-se ligadas as representações das coisas com as representações das palavras que<br />
lhes correspondem.<br />
A noção de representação tomou assim, a partir <strong>do</strong> trabalho de Freud sobre as<br />
afasias, grande importância para a posterior apreensão <strong>do</strong> inconsciente e para a<br />
explicação <strong>do</strong>s processos psíquicos no campo psicanalítico. Essa noção des<strong>do</strong>brou-se<br />
ainda em concepções <strong>do</strong> aparelho psíquico <strong>nos</strong> estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s fenôme<strong>nos</strong> psicossomáticos<br />
realiza<strong>do</strong>s pela Escola de Psicossomática de Paris, orienta<strong>do</strong>s por Pierre Marty, o que<br />
constitui aqui o assunto central de <strong>nos</strong>sa argumentação. A confrontação entre Freud e<br />
Marty, exposta a seguir, <strong>nos</strong> fornece elementos para repensarmos a questão das<br />
“representações” no estu<strong>do</strong> da psicossomática e a discutir de maneira mais aprofundada
o modelo de ‘precariedade psíquica’ ofereci<strong>do</strong> por Marty para os quadros<br />
psicossomáticos.<br />
1.4.2 Freud e Marty<br />
O campo da linguagem é, como podemos ver, fundamental no que concerne à<br />
constituição da teoria psicanalítica, já que é sob uma perspectiva teórica das<br />
representações atrelada ao terreno da sexualidade que Freud estabeleceu seu arcabouço<br />
teórico. As concepções relativas aos estu<strong>do</strong>s das representações e da linguagem são<br />
contu<strong>do</strong> diversas, e remontam a pensa<strong>do</strong>res como Mill, Saussure, Jakobson, Lacan,<br />
Wittgenstein, etc. Reservamo-<strong>nos</strong> nesse momento a apresentar as confrontações<br />
concernentes à teoria de Freud e à utilização dela por Marty, numa tentativa de indicar<br />
caminhos no campo teórico possibilita<strong>do</strong>s por uma leitura consistente da obra freudiana.<br />
Para Marty, o aparelho psíquico é forma<strong>do</strong> de “(...) evocações de impressões de<br />
diferentes épocas que, inscritas e deixan<strong>do</strong> de várias maneiras traços mnésicos,<br />
assumem diversos valores de objetos de referências mentais individuais” (MARTY,<br />
1993, p. 25). Os pacientes circunscritos pela abordagem martyniana, como indicamos<br />
anteriormente, são “neuróticos mal mentaliza<strong>do</strong>s” e apresentam um discurso cola<strong>do</strong> a<br />
impressões, pouco associativo, relatos de puros registros de eventos, parecen<strong>do</strong> se<br />
mostrar desimplica<strong>do</strong>s de qualquer tipo de subjetivação ou demanda analítica. Operan<strong>do</strong><br />
uma circunscrição tipológica para esses sujeitos, Marty infere a eles uma dificuldade de<br />
estabelecer conexões representativas, deduzin<strong>do</strong> assim a existência de representações de<br />
coisa em um aspecto puro, desvincula<strong>do</strong> de representações de palavras, estas em amplo<br />
grau de escassez.<br />
Do ponto de vista teórico, no qual delimitamos <strong>nos</strong>sa presente discussão,<br />
verificamos que, no estu<strong>do</strong> das afasias, Freud apresenta uma estrutura da representação<br />
de coisa intrinsecamente ligada à representação de palavra. Isso se constata em<br />
importantes passagens de seu trabalho onde fica claramente demonstra<strong>do</strong> o caráter<br />
associativo referente à estrutura das representações, conforme apontamos anteriormente.<br />
Freud reverbera um não dualismo entre associação e representação, demonstran<strong>do</strong> que a<br />
primeira é constitutiva da estrutura mesma da segunda. Desde seus apontamentos a<br />
respeito <strong>do</strong>s processos que engendram o aparelho de linguagem – concepção que supera<br />
a teoria das localizações cerebrais – pode-se perceber que não cabe no pensamento de
Freud uma estrutura de representação desvinculada de suas características associativas,<br />
já que entende a função da linguagem atrelada a toda extensão cerebral. Freud (op. cit.)<br />
acentua:<br />
“Rejeitamos portanto as hipóteses segun<strong>do</strong> as quais o aparelho de linguagem é<br />
constituí<strong>do</strong> de centros distintos, separa<strong>do</strong>s por regiões corticais isentas de<br />
funções, e além disso as hipóteses segun<strong>do</strong> as quais as representações (imagens<br />
mnêmicas) que servem para a linguagem estejam acumuladas em determinadas<br />
áreas corticais denomináveis centros, ao passo que à sua associação procederiam<br />
exclusivamente as brancas massas fibrosas subcorticais. Só <strong>nos</strong> resta pois<br />
formular hipótese de que a região cortical da linguagem seja um articula<strong>do</strong><br />
teci<strong>do</strong> cortical dentro <strong>do</strong> qual as associações e as transmissões em que se apoiam<br />
as funções da linguagem procederiam com uma complexidade não propriamente<br />
compreensível” (p. 62).<br />
O que Freud <strong>nos</strong> demonstra é que a representação é um complexo de associações<br />
de diferentes níveis de elementos que alcançam toda a extensão cerebral, ligan<strong>do</strong><br />
imagens acústicas e motoras a impressões visuais, táteis, cinestésicas, etc. Essas últimas<br />
constituem as associações de objeto que, por sua vez, designarão as representações de<br />
coisa, ligadas às representações de palavra por meio <strong>do</strong> elemento acústico. Assim, uma<br />
representação não pode ser concebida como uma simples reprodução das coisas<br />
percebidas. Por ser um complexo associativo, as representações de coisa (ou objectual)<br />
não se reduzem à simples impressão. Segun<strong>do</strong> Garcia-Roza (1991a), “(...) a<br />
representação é entendida por Freud não como representação de um objeto, mas como a<br />
diferença entre duas séries de associações (p. 35). Cabe lembrar que, para Freud<br />
(1891/1977), a associação é imediata à impressão. Numa perspectiva aprofundada, isso<br />
significa dizer que a representação é algo da ordem de um complexo, e faz parte de um<br />
processo que o próprio Freud pondera nesse momento como incompreensível.<br />
Assim, as relações que Freud estabelece entre as duas categorias de<br />
representação <strong>nos</strong> revelam seu caráter intrínseco. No texto “O Inconsciente”<br />
(1915b/1996) Freud acentua, como vimos, a importante característica das<br />
representações de coisa, de que ela se constitui como traço deriva<strong>do</strong> da imagem da coisa<br />
o qual, segun<strong>do</strong> a leitura <strong>do</strong> texto das afasias, está mais liga<strong>do</strong> à representação da<br />
palavra <strong>do</strong> que à impressão direta da coisa. Em 1915 ele aborda o inconsciente como um<br />
complexo de representações de coisa e o pré-consciente como uma restauração de sua<br />
associação com as representações de palavra que lhes correspondem. Freud (ibid.)<br />
enfatiza que “o sistema pré-consciente ocorre quan<strong>do</strong> essa representação de coisa é<br />
hiperinvestida através da ligação com as representações de palavra que lhe
correspondem” (p. 206). Disso se conclui que a cada representação de coisa<br />
corresponde uma ou mais representações de palavra, atestan<strong>do</strong> nisso o caráter<br />
associativo de sua estrutura. Garcia-Roza (1991a) <strong>nos</strong> chama atenção dizen<strong>do</strong> que a<br />
representação de coisa “(...) não pode se constituir sem uma ligação prévia com a<br />
representação de palavra” (p. 64).<br />
Sob o teto dessas argumentações, levantamos a seguinte questão: há<br />
possibilidade de se pensar a existência de uma representação de coisa pura sem<br />
correspondência com as representações de palavra? A representação de coisa pura<br />
denota a concepção de que tal processo se constituiria numa reprodução icônica da coisa<br />
percebida, o que se estabeleceria como impressão pontual e independente das conexões<br />
com outras dimensões representativas. A concepção de Marty se afasta dessas<br />
importantes marcações de Freud, as quais viriam a constituir posteriormente seus<br />
principais postula<strong>do</strong>s. Marty aposta, contu<strong>do</strong>, na idéia de uma representação de coisa<br />
desalojada das palavras, como um ícone da coisa percebida, de pouca variação em<br />
relação à sua imagem, e pouco mobilizável psiquicamente – idéia que Freud combateu<br />
desde os primórdios de seu pensamento. Freud (1891/1977) deixa indica<strong>do</strong> que as<br />
representações de coisa assumem uma certa autonomia em relação à imagem da coisa<br />
percebida, quan<strong>do</strong> atesta sua estrutura de associação com outras representações 11 .<br />
Vimos ainda que não se pode pensar, em Freud, a representação de coisa de maneira<br />
pura, sem um correspondente na palavra, o que constitui um problema para a teoria de<br />
Marty e que <strong>nos</strong> leva a questionar sobre a possibilidade de se conceber um aparelho<br />
psíquico ‘pobre’ de representações de palavra na sua dimensão constitucional.<br />
O Campo das representações, introduzi<strong>do</strong> por Freud nas concepções das afasias,<br />
passa sem dúvida por importantes des<strong>do</strong>bramentos relativos a modelos de linguagem,<br />
os quais tomam hoje significativa importância no quadro teórico e clínico da<br />
psicanálise. As argumentações aqui colocadas remontam a uma discussão extensa, não<br />
apenas no campo psicanalítico, mas também no campo lingüístico, em se observa<br />
importantes reflexões a respeito da natureza <strong>do</strong> significante e <strong>do</strong> significa<strong>do</strong>, <strong>do</strong> plano<br />
11 Cabe aqui lembrar que, no decorrer de suas reflexões, Freud (1906/1996) pondera que as impressões<br />
traumáticas supostamente vividas pelas pacientes histéricas não passam de uma construção fantasmática<br />
complexa no senti<strong>do</strong> de rechaçar o próprio desejo sexual. Isso pontua que a representação de coisa,<br />
caracterizada por Freud (1915/1996) como “primeiros e verdadeiros investimentos objetais” (p. 206), tem<br />
uma autonomia em relação às impressões vividas ou percebidas, o que se apresenta como problema para<br />
a concepção de Marty, o qual considera a representação de coisa como simples reprodução das coisas<br />
vividas ou percebidas.
das expressões e <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s, e <strong>do</strong>s des<strong>do</strong>bramentos que esses elementos produzem<br />
(ARRIVÉ, 2001). Nosso intento contu<strong>do</strong> tem, no momento presente, o objetivo de<br />
estabelecer uma confrontação consistente entre o pensamento freudiano e o martyniano,<br />
sem entretanto deixar desde já indicada a importância <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s da linguagem para a<br />
reflexão psicanalítica atual.<br />
Fica-<strong>nos</strong>, no conjunto das considerações aqui delineadas a respeito da<br />
abordagem <strong>do</strong> IPSO e das teorias de Marty, a constatação de que o modelo<br />
psicossomático dessa corrente de pensamento apresenta importantes <strong>problemas</strong> que<br />
devem sem dúvida ser coloca<strong>do</strong>s a termo e provocar uma revisão nas concepções <strong>do</strong><br />
campo psicanalítico sobre a psicossomática, já que P. Marty e o IPSO aparecem hoje<br />
como principal referência nesse campo de investigação. A concepção de Freud sobre<br />
representação dificulta para nós a idéia de uma carência ou déficit representacional.<br />
Essa dificuldade, somada às questões ligadas ao modelo da neurose atual, leva-<strong>nos</strong> a<br />
problematizar o modelo martyniano para a psicossomática na conjuntura de sua própria<br />
crucialidade teórica.<br />
Colocadas essas ponderações, temos como intuito avançar no tema da<br />
psicossomática de maneira diversa, levan<strong>do</strong> em consideração algumas questões de<br />
aprofundamento teórico referidas às minúcias das relações etiológicas entre as<br />
psiconeuroses e as neuroses atuais. Além disso, é preciso colocar em pauta a relação<br />
que se estabelece entre o princípio da neurose atual e a evolução <strong>do</strong> pensamento<br />
freudiano a respeito de conceitos que a este se relacionam, cujas teorias passaram por<br />
importantes revisões no percurso de Freud. Buscamos, sob estes termos, investigar de<br />
maneira mais profunda o problema das neuroses atuais, colocan<strong>do</strong> em perspectiva um<br />
possível remanejamento de sua localização na leitura da obra de Freud. Não<br />
objetivamos uma abordagem das neuroses atuais em si (neurastenia, neurose de<br />
angústia, hipocondria), mas um aprofundamento centra<strong>do</strong> no modelo de descarga<br />
corporal das excitações, bem como nas relações corpo-mente que podem aparecer como<br />
des<strong>do</strong>bramento dessas reflexões. Esse caminho se centra no desenvolvimento da obra<br />
de Freud onde ele tende gradativamente a intensificar a relação entre as psiconeuroses e<br />
as neuroses atuais, apesar de ter se debruça<strong>do</strong> intensamente nas questões da<br />
psiconeurose, deixan<strong>do</strong> numa certa “estase” a abordagem teórica da neurose atual.
Desta forma, formulamos as seguintes indagações, as quais dizem respeito<br />
diretamente à <strong>nos</strong>sa pesquisa: a partir <strong>do</strong>s apontamentos realiza<strong>do</strong>s, como estabelecer<br />
novos parâmetros de discussão sobre a relação entre esses <strong>do</strong>is grupos de neuroses<br />
(neuroses atuais e psiconeuroses), levan<strong>do</strong>-se em consideração os levantamentos que<br />
procuramos expor? O sintoma ‘atual’ é afinal, o simples resulta<strong>do</strong> de uma sexualidade<br />
mal aplicada na atualidade, ou há interação com fatores históricos conferi<strong>do</strong>s às<br />
psiconeuroses nas quais, como vimos (op. cit.), estão aglutinadas as neuroses ‘atuais’?<br />
Quais as conseqüências teóricas da formulação <strong>do</strong> além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer para a<br />
discussão da neurose atual? Que perspectivas teóricas podem alavancar discussões<br />
aprofundadas sobre os <strong>problemas</strong> que a “psicossomática” coloca para a psicanálise?<br />
As questões aqui levantadas serão discutidas ponto a ponto na segunda parte <strong>do</strong><br />
presente trabalho, onde desejamos circunscrever a problemática trazida pela<br />
psicossomática ao campo psicanalítico, sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se constata que estamos<br />
lidan<strong>do</strong> com tipos de fenôme<strong>nos</strong> específicos que dizem respeito não apenas ao <strong>do</strong>mínio<br />
da psicanálise, mas que abarcam questões relativas aos estu<strong>do</strong>s da medicina e das<br />
funções fisiológicas. Tais são desde já as principais dificuldades para a psicanálise,<br />
sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se considera também os desafios teóricos que os fenôme<strong>nos</strong><br />
denomina<strong>do</strong>s “psicossomáticos” introduzem para o pensamento psicanalítico.
2 a PARTE<br />
PERSPECTIVAS CONCEITUAIS NO CAMPO PSICANALÍTICO
CAPÍTULO II – A NEUROSE ATUAL: UMA RELEITURA<br />
A psicanálise é um campo de teorização que abrange extensamente diversas<br />
linhas de pensamento, bem como formas de leitura as mais variadas relativas à obra<br />
freudiana e aos fenôme<strong>nos</strong> da psique humana. A exemplo disso, como vimos, o tema da<br />
psicossomática em psicanálise é até hoje discuti<strong>do</strong> como uma questão em aberto, cujas<br />
abordagens acenam para perspectivas não consensuais, principalmente a respeito das<br />
relações corpo-mente, e <strong>do</strong> seu desenvolvimento teórico no campo psicanalítico. No<br />
que se refere a P. Marty e o Instituto de Psicossomática de Paris, o ponto mais<br />
problemático aparece, conforme apontamos, na utilização <strong>do</strong> conceito de neurose atual<br />
e na separação/dissociação que faz entre os fenôme<strong>nos</strong> psiconeuróticos e os fenôme<strong>nos</strong><br />
“psicossomáticos”.<br />
A questão da ligação entre as psiconeuroses e as neuroses atuais, que aparece na<br />
obra freudiana, revela de saída uma coalescência entre aquilo que é da ordem de um<br />
fenômeno corporal intra-orgânico e aquilo que é da ordem de um fenômeno psíquico. 12<br />
Isso, todavia, não estava definitivamente resolvi<strong>do</strong> para Freud, pelo me<strong>nos</strong> no seu<br />
pensamento inicial. Os primeiros desenvolvimentos da hipótese freudiana da libi<strong>do</strong><br />
sexual encontram sem dúvida suas raízes, como demonstramos, <strong>nos</strong> <strong>problemas</strong> relativos<br />
à excitação sexual desencadea<strong>do</strong>ra de distúrbios corporais tais como a respiração, a<br />
inervação vasomotora, distúrbios da atividade cardíaca, diarréia, congestões,<br />
parestesias, prisão de ventre, etc. (FREUD, 1895/1996). O conceito de libi<strong>do</strong> foi<br />
inicialmente extraí<strong>do</strong> das concepções relativas ao campo da excitação sexual,<br />
localizada por Freud no sistema somático a partir da investigação sobre as neuroses<br />
atuais. Em meio a essas amarrações teóricas iniciais, Freud parecia, por um la<strong>do</strong>,<br />
separar aquilo que é da ordem <strong>do</strong> somático daquilo que é da ordem <strong>do</strong> psíquico e, por<br />
outro la<strong>do</strong>, positivar o campo da energia sexual como ponto central, um eixo, digamos,<br />
tanto para a explicação de fenôme<strong>nos</strong> somáticos quanto para a explicação de<br />
fenôme<strong>nos</strong> psíquicos.<br />
Freud fez inicialmente a distinção entre psiconeurose e neurose atual,<br />
delinean<strong>do</strong> as perspectivas de aprofundamento de estu<strong>do</strong> das primeiras, seu objeto<br />
principal de pesquisa. Para o autor, o termo ‘atual’ – como colocamos anteriormente –<br />
12 Este ponto será aprofunda<strong>do</strong> no desenvolvimento <strong>do</strong> presente trabalho.
circunscreve-se na relação de ‘oposição’ com a psiconeurose (FREUD, 1898/1996).<br />
Como vimos, a psiconeurose está remetida a questões históricas e subjetivas, ligadas à<br />
sexualidade. A neurose de angústia e a neurastenia apresentavam, em contrapartida,<br />
uma etiologia atual, também ligada contu<strong>do</strong> a <strong>problemas</strong> com a sexualidade, visto que<br />
aparecia articulada a fatores concernentes ao regime sexual. Nesse momento, podemos<br />
afirmar que a palavra atual não se refere a nada mais <strong>do</strong> que o próprio ato sexual, e a<br />
uma dimensão de contemporaneidade, relativa à etiologia de seus sintomas subjacentes.<br />
Como veremos, essa questão não permanece entretanto esgotada para Freud,<br />
tampouco para a própria teoria psicanalítica, na medida em que se sublinha a evolução<br />
<strong>do</strong> seu pensamento como fonte de novas reflexões sobre esse tema.<br />
Freud entendia nas suas conjecturas iniciais, que a neurose atual era o resulta<strong>do</strong><br />
de um processo puramente somático (FREUD, 1895b/1996), concepção que coloca a<br />
questão <strong>do</strong> dispêndio corporal da excitação sexual como separa<strong>do</strong> de qualquer<br />
implicação psíquica. Estabelecia nesse campo um desvio da libi<strong>do</strong> de sua aplicação<br />
satisfatória, atrela<strong>do</strong> a uma não consumação da excitação no ato sexual, concluin<strong>do</strong> que<br />
a excitação somática não se descarregava via coito. Havia também, para além dessa<br />
idéia, a consideração <strong>do</strong> autor a respeito da “elaboração” ou escoamento psíquico das<br />
excitações, ponto teórico sobre o qual se centra o <strong>nos</strong>so maior interesse. Freud afirma:<br />
A neurose de angústia é o produto de to<strong>do</strong>s os fatores que impedem a excitação<br />
sexual somática de ser psiquicamente elaborada. As manifestações da neurose de<br />
angústia aparecem quan<strong>do</strong> a excitação somática que foi desviada da psique é<br />
subcorticalmente despendida em reações totalmente inadequadas” (FREUD,<br />
1895b/1996, p. 110).<br />
A neurose atual aparece assim como uma energia não escoada, desviada da<br />
elaboração simbólica. A questão <strong>do</strong> recalque e <strong>do</strong>s fatores históricos liga<strong>do</strong>s à<br />
sexualidade na abordagem <strong>do</strong>s fenôme<strong>nos</strong> psiconeuróticos localiza inicialmente, como<br />
veremos, esse ponto de não determinação psíquica na neurose atual. Isso marca um<br />
primeiro elemento diferencial para o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s fenôme<strong>nos</strong> em questão – a saber, a<br />
oposição historicidade/atualidade introduzida por Freud. Devemos lembrar, contu<strong>do</strong>,<br />
que a idéia <strong>do</strong> “atual” em Freud foi pensada num perío<strong>do</strong> pré-psicanalítico, e que o<br />
percurso de criação da psicanálise demonstra que a concepção propriamente<br />
psicanalítica de história não se reduz à idéia de “passa<strong>do</strong>”, mas se complexifica com a<br />
introdução posterior <strong>do</strong> conceito de inconsciente (FREUD, 1900/1996). Tal perspectiva<br />
indica a importância de um estu<strong>do</strong> detalha<strong>do</strong> e de uma definição mais consistente sobre
o que se entende em psicanálise por historicidade e como se deu a evolução <strong>do</strong><br />
pensamento de Freud sobre esta questão, para que possamos situar o problema da<br />
“atualidade” em conformidade com o viés psicanalítico.<br />
2.1 A concepção de historicidade em psicanálise<br />
Percebe-se, no percurso de constituição <strong>do</strong> conceito de inconsciente, que to<strong>do</strong> o<br />
empenho de Freud na busca pelos fatores determinantes <strong>do</strong>s sintomas neuróticos<br />
centrava-se, desde o início, na história individual <strong>do</strong>s pacientes. Freud (1893/1996)<br />
questionava-se amplamente sobre “lembranças” <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> que estariam causan<strong>do</strong> a<br />
patogenia manifesta, idéias incompatíveis sobre fatos traumáticos da infância que<br />
pareciam encontrar-se na gênese de cada sintoma.<br />
Trabalhan<strong>do</strong> arduamente a respeito de casos trata<strong>do</strong>s através <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> da<br />
“pressão na testa” – como se constata em um de seus textos mais antigos, “A<br />
psicoterapia da histeria” (ibid.) – Freud iniciava sua trilha para a formulação <strong>do</strong><br />
conceito de inconsciente e para a criação da psicanálise. Segun<strong>do</strong> este méto<strong>do</strong>,<br />
persuadia seus pacientes a relatar as idéias que emergiam de sua mente no momento em<br />
que aplicava a pressão. A partir disso, destacava séries de elementos ideativos<br />
aparentemente desconexos e reconstituía-os de acor<strong>do</strong> com as lembranças e relatos que<br />
ouvia. Chegava à conclusão de que esses elementos estavam associa<strong>do</strong>s entre si e a<br />
fatores importantes da história <strong>do</strong> indivíduo, os quais eram concebi<strong>do</strong>s como<br />
“representações patogênicas” (ibid.), lembranças de traumas da infância ligadas a cenas<br />
de abuso sexual realiza<strong>do</strong> por parte de adultos, fatores que Freud acreditava estarem na<br />
raiz <strong>do</strong>s sintomas neuróticos.<br />
Conforme deixamos indica<strong>do</strong>, foi neste mesmo movimento inicial, quan<strong>do</strong> ainda<br />
a psicanálise estava em vias de ser criada, que Freud (1898/1996) fez as importantes<br />
distinções entre os fenôme<strong>nos</strong> diversos, basea<strong>do</strong> em constatações clínicas que o levaram<br />
a pensar o fator sexual como fonte principal dessas patogenias. Como vimos, concebeu<br />
as neuroses atuais como dispêndio somático da energia sexual e as psiconeuroses como<br />
resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> recalcamento de representações incompatíveis na consciência, ligadas<br />
também à sexualidade.<br />
No que concerne à psiconeurose, os textos iniciais de Freud <strong>nos</strong> revelam que a<br />
especificidade de sua teoria está centrada no nível de articulação entre as
epresentações (Vorstellungen, no alemão) manifestas na fala de seus pacientes, cujo<br />
senti<strong>do</strong> só poderia ser apreendi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> tomada uma representação em conjunto com<br />
outras representações. Basta realizar uma leitura atenta no texto “A psicoterapia da<br />
histeria” (op. cit.) para perceber que, na busca de Freud pela representação<br />
patogênica, os elementos ideativos que apareciam na incidência <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> de pressão<br />
na testa não apresentavam qualquer significação se toma<strong>do</strong>s isoladamente, mas apenas<br />
quan<strong>do</strong> articula<strong>do</strong>s a outros elementos que surgiam na incidência deste méto<strong>do</strong><br />
(FREUD, 1895b/1996). Nessa linha de pensamento, constatou-se que as representações<br />
estão ligadas entre si, forman<strong>do</strong> um elo, <strong>do</strong>nde se conclui que, no plano das<br />
Vorstellungen o que se apresenta é um caráter de contiguidade, forma<strong>do</strong>r de uma<br />
cadeia.<br />
“O que emerge sob a pressão de minha mão nem sempre é uma lembrança<br />
‘esquecida’; apenas <strong>nos</strong> casos mais raros é que as lembranças patogênicas reais<br />
acham-se tão freqüentemente à mão na superfície. É muito mais freqüente o<br />
surgimento de uma representação que é um elo intermediário na cadeia de<br />
associações entre a representação da qual partimos e a representação patogênica<br />
que procuramos” (FREUD, 1893/1996, p. 286).<br />
Se Freud estava interessa<strong>do</strong> na história <strong>do</strong>s pacientes, é de se concluir portanto<br />
que, no que se refere aos aponta<strong>do</strong>s fatores históricos liga<strong>do</strong>s à neurose, há uma<br />
dimensão de encadeamento <strong>do</strong> plano representativo. Esta dimensão de encadeamento<br />
era tomada por Freud como um aspecto constitutivo da própria representação, ou seja, a<br />
associação é intrínseca à representação, o que está de acor<strong>do</strong> com as considerações <strong>do</strong><br />
autor no estu<strong>do</strong> das afasias, conforme apresentamos no primeiro capítulo. Em “A<br />
psicoterapia da histeria” Freud considerava que, nessa relação em cadeia, a<br />
representação patogênica situava-se como um núcleo em torno <strong>do</strong> qual gravitavam as<br />
demais representações. Freud constatava que tal representação constituía-se como uma<br />
lembrança de um trauma vivi<strong>do</strong> num passa<strong>do</strong> absoluto e fatual.<br />
Observa-se, contu<strong>do</strong>, uma fundamental modificação no pensamento <strong>do</strong> autor<br />
que tira <strong>do</strong> eixo da concepção de história essa dimensão <strong>do</strong> ‘passa<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong>’. No que se<br />
refere ao caráter determinante <strong>do</strong> núcleo patógeno na psiconeurose, constata-se um<br />
importante salto teórico que se encontra na própria origem da invenção da psicanálise.<br />
Freud concluiu, segun<strong>do</strong> constatações clínicas, que as representações patogênicas que<br />
buscava não correspondiam a lembranças de fatos reais <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>; constituíam<br />
fantasias de sedução – realizadas por parte de um adulto apenas suposto – remetidas a
épocas remotas da infância, as quais apareciam no senti<strong>do</strong> de rechaçar a sexualidade <strong>do</strong><br />
próprio indivíduo. Numa carta dirigida a Fliess, Freud (1892-1899/1996) revela pela<br />
primeira vez essa conclusão, colocan<strong>do</strong> em pauta a questão da verdade e da ficção e<br />
apontan<strong>do</strong> como eixo da constituição da neurose a fantasia:<br />
“Confiar-lhe-ei de imediato o grande segre<strong>do</strong> que lentamente comecei a<br />
compreender <strong>nos</strong> últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica [teoria<br />
das neuroses]. Provavelmente, isso não é compreensível sem uma explicação;<br />
(...) veio a surpresa diante <strong>do</strong> fato de que, em to<strong>do</strong>s os casos, o pai, não<br />
excluin<strong>do</strong> o meu, tinha de ser aponta<strong>do</strong> como perverti<strong>do</strong> (...) Depois (...) a<br />
descoberta comprovada de que, no inconsciente, não há indicações de realidade,<br />
de mo<strong>do</strong> que não se consegue distinguir entre a verdade e a ficção que é<br />
catexizada com o afeto. (Assim, permanecia aberta a possibilidade de que a<br />
fantasia sexual tivesse invariavelmente os pais como tema).” (p. 310).<br />
Isso coloca em pauta a implicação e a participação <strong>do</strong> sujeito nessa<br />
problemática, <strong>do</strong> ponto de vista da construção fantasmática. Com esta conclusão, Freud<br />
inferiu que o sintoma psiconeurótico é o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> recalcamento de uma<br />
representação incompatível na consciência, ligada à sexualidade, que permanece no<br />
inconsciente e retorna, sob os processos de deslocamento e condensação, na formação<br />
<strong>do</strong>s sintomas (FREUD, 1900/1996). A partir deste ponto de vista, pôde lançar o<br />
conceito de inconsciente como instância psíquica (ibid.), concluin<strong>do</strong> que a base de toda<br />
a questão psiconeurótica centra-se na idéia de investimento e de recalque, o que levou<br />
Freud a conceituar a pulsão sexual como principal eixo de sua teoria.<br />
Esta operação teórica leva-<strong>nos</strong> a pensar sobre as relações de historicidade ao<br />
nível das conexões representativas, as quais, investidas da sexualidade, caracterizam<br />
uma concepção de história peculiar à psicanálise. Freud afirmou, como vimos, que os<br />
fatores sexuais envolvi<strong>do</strong>s <strong>nos</strong> sintomas psiconeuróticos estavam relaciona<strong>do</strong>s a<br />
questões <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> – em oposição às neuroses atuais (FREUD, 1906/1996). Com o<br />
desenvolvimento de sua obra, a questão que incide justamente na oposição<br />
passa<strong>do</strong>/presente deve ser, assim, rediscutida e repensada pois, como se constata, ao<br />
falar de questões da “infância” <strong>do</strong> paciente, Freud passou a se referir a algo que<br />
ultrapassa uma concepção simplista de “passa<strong>do</strong>”. Sua posição é clara quan<strong>do</strong> realiza<br />
uma pontuação fundamental quanto à natureza <strong>do</strong> termo “infantil”, referin<strong>do</strong>-se às<br />
apontadas mudanças teóricas relativas à questão <strong>do</strong> trauma e da sexualidade. Ele<br />
afirma: “(...) os ‘traumas sexuais infantis’ foram substituí<strong>do</strong>s, em certo senti<strong>do</strong>, pelo<br />
‘infantilismo da sexualidade’” (ibid., p. 261). A sexualidade assume portanto um
caráter infantil, no que se refere às questões <strong>do</strong> inconsciente. Acima de tu<strong>do</strong>, Freud não<br />
está se referin<strong>do</strong> a um “infantil” sob o ponto de vista simplesmente temporal, mas a<br />
uma sexualidade – humana – que não pode ser concebida de outra maneira na<br />
psicanálise senão como sexualidade infantil, à medida que a constituição <strong>do</strong><br />
inconsciente ocorre sob uma via sexual infantil ligada ao princípio de prazer (FREUD,<br />
1905/1996). O inconsciente apresenta assim, um caráter de atemporalidade, tal como<br />
aborda Freud no texto “O Inconsciente” (1915b/1996). Isso pontua que não se trata<br />
simplesmente de questões <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, mas de questões remetidas a um nível mais<br />
complexo, da ordem de uma trama de representações (Vorstellungen), e de sua<br />
articulação como cadeia de associações 13 .<br />
É importante que se situe aqui o conceito de libi<strong>do</strong> na caracterização dessas<br />
concepções. Em “Três ensaios sobre teoria da sexualidade” Freud (1905/1996) frisou<br />
que a libi<strong>do</strong> se caracteriza como elemento fundamental para a constituição da atividade<br />
psíquica. O termo “libi<strong>do</strong>” foi então emprega<strong>do</strong> por Freud para designar a energia que<br />
põe em marcha as atividades psíquicas. Essa energia, segun<strong>do</strong> ele, é oriunda da<br />
sexualidade infantil, das experiências de prazer-desprazer vividas pela criança <strong>nos</strong><br />
primeiros a<strong>nos</strong> de vida. A palavra “sexual” – base da libi<strong>do</strong> – designa, a partir de Freud,<br />
as fontes corporais de prazer experimentadas pelo indivíduo desde o seu nascimento. A<br />
exemplo disso, verifica-se que o ato de um bebê ao sugar o leite materno se mantém<br />
sem exigir mais alimento. Atribui-se a isso um prazer senti<strong>do</strong> pela criança<br />
simplesmente pelo ato de sugar. Freud esclarece: “Só podemos atribuir esse prazer a<br />
uma excitação das áreas da boca e <strong>do</strong>s lábios; a estas partes <strong>do</strong> corpo denominamos<br />
‘zonas erógenas’ e descrevemos como sexual o prazer deriva<strong>do</strong> da sucção” (1917/1996,<br />
p.319). A libi<strong>do</strong>, portanto, é a energia que circula pelo corpo no que se denomina<br />
“zonas erógenas”, base <strong>do</strong> funcionamento psíquico.<br />
A teoria da libi<strong>do</strong> se efetivou, contu<strong>do</strong>, com a introdução <strong>do</strong> conceito de<br />
narcisismo, o qual representa um marco no pensamento freudiano. Essa teoria centra o<br />
fator libidinal na idéia de investimento, na qual a constituição <strong>do</strong> eu se torna<br />
fundamental. Freud (1914/1996) define o narcisismo como uma ação psíquica que se<br />
adiciona ao auto-erotismo, e que toma o eu como objeto de investimento. Desse ponto,<br />
13 O termo “cadeia de associações” foi utiliza<strong>do</strong> por Freud em seu trabalho “A psicoterapia da histeria”<br />
(1893/1996) assim como “símbolos de seqüências de representações” (p. 292), “cadeias patogênicas de<br />
idéias” (p. 300) “cadeia de pensamentos” (p. 312).
os movimentos de investimento objetal se viabilizam, a partir <strong>do</strong> eu em direção ao<br />
mun<strong>do</strong> externo.<br />
A possibilidade de investimento no eu tem como pilar o movimento de<br />
composição narcísica relaciona<strong>do</strong> com a presença <strong>do</strong> outro, <strong>do</strong>s pais, no universo<br />
infantil. “Sua Majestade o Bebê” caracteriza fundamentalmente essa questão, em que se<br />
flagra o narcisismo <strong>do</strong>s próprios pais reinvesti<strong>do</strong>s na figura <strong>do</strong> infante. Percebemos<br />
assim que o júbilo da auto-imagem fornecida pelo olhar <strong>do</strong> outro se caracterizaria, sob<br />
esse aspecto, como ponto fundamental da constituição <strong>do</strong> narcisismo.<br />
A libi<strong>do</strong> passa, portanto, a ser concebida como movimento de investimento na<br />
relação com o outro, em primeira instância, com os pais. Nesse ínterim, o infantil, para<br />
Freud, se caracteriza justamente pelo aspecto narcísico em que, sob a égide <strong>do</strong> princípio<br />
de prazer, remete às experiências mais primárias <strong>do</strong> sujeito, experiências<br />
fundamentalmente sexuais. Mais <strong>do</strong> que tomar os fatos <strong>do</strong> “passa<strong>do</strong>” como questão<br />
crucial para a psicanálise, Freud frisou que tal constituição histórica passa<br />
necessariamente pela experiência sexual infantil, atravessada pelo narcisismo, e<br />
permanece como tal para o inconsciente. Tais experiências irão configurar toda uma<br />
trama de articulações representativas que constituirão, historicamente, os contextos sob<br />
os quais o sujeito irá se situar no mun<strong>do</strong>, na relação com o outro.<br />
A história deve, assim, ser pensada em primeira instância como resulta<strong>do</strong> de<br />
uma construção psíquica, que encontra na fantasia sua fonte causal. Como Freud<br />
constatou, no inconsciente não existem indicações de realidade, o que impossibilita<br />
nesse plano a distinção entre a realidade e a fantasia. Trata-se efetivamente, nessa<br />
concepção de história, de uma reconstituição das lacunas que se fazem sentir sob a<br />
marca <strong>do</strong> recalque – e seus rechaços fantasmáticos – sob fato de que, o que se apreende<br />
na historicização, é a cadeia associativa.<br />
O que concerne à história não se limita, contu<strong>do</strong>, apenas ao vínculo com o<br />
recalca<strong>do</strong> e com a sexualidade. Mais à frente, Freud realizou mudanças ainda mais<br />
radicais em sua teoria e trouxe, com isso, novas configurações teóricas as quais dizem<br />
respeito ao problema das manifestações clínicas que não se encontram subjugadas ao<br />
princípio <strong>do</strong> prazer. O autor constatou movimentos peculiares de seus pacientes<br />
característicos de uma compulsão que se apresenta pela repetição de experiências<br />
traumáticas, que Freud denominou compulsão à repetição. Freud percebia que seus
pacientes, ao invés de “recordarem” elementos importantes de sua história infantil,<br />
atuavam<br />
experiências essencialmente desprazerosas, como se elas em nada<br />
remontassem ao “passa<strong>do</strong>”. Mesmo assim, Freud frisava que essa compulsão à repetição<br />
estaria efetivamente vinculada ao “passa<strong>do</strong>”, ainda que não fosse imediatamente<br />
historicizada pelo paciente, mas atuada e atualizada como uma força maciça. Freud<br />
(1920/1996) considera:<br />
“(...) chegamos a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à<br />
repetição também rememora <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> experiências que não incluem<br />
possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram<br />
satisfação, mesmo para impulsos instintuais que desde então foram reprimi<strong>do</strong>s”<br />
(p. 31).<br />
Nessa direção, o autor concluiu que a compulsão à repetição não era<br />
condicionada pelo recalque, nem pelas forças da resistência a ele ligadas. Tal<br />
movimento de repetição está segun<strong>do</strong> Freud (1920/1996) condiciona<strong>do</strong> pela pulsão de<br />
morte, conceito introduzi<strong>do</strong> a partir de entraves teóricos liga<strong>do</strong>s a movimentos e<br />
fenôme<strong>nos</strong> clínicos que escapam ao princípio <strong>do</strong> prazer. Esse remanejamento teórico de<br />
Freud é de substancial importância para circunscrevermos a questão da historicidade no<br />
campo psicanalítico. A história deve também levar em conta movimentos que não<br />
aparecem ou não se apresentam imediatamente no discurso corrente <strong>do</strong> sujeito, nas suas<br />
associações, mas em fenôme<strong>nos</strong> circunscritos ao campo da repetição. 14<br />
Visto que a historicidade deve ser condicionada pela experiência sexual, ou pela<br />
repetição mortífera de experiências traumáticas, somos inclina<strong>do</strong>s a apontar a dimensão<br />
da alteridade que, pontuada pela idéia de narcisismo, se confirma no pensamento de<br />
Freud quan<strong>do</strong> introduz a pulsão de morte. No narcisismo, temos que a constituição <strong>do</strong><br />
eu implica, em si mesma, a dimensão da alteridade, visto que a operação psíquica que<br />
investe de libi<strong>do</strong> o eu deve ter como ponto de origem o investimento <strong>do</strong>s pais. Essa<br />
operação é essencialmente fundada no plano da alteridade, já que o eu se constitui a<br />
partir da presença <strong>do</strong> outro. No caso da pulsão de morte, percebe-se a implicação<br />
daquilo que aparece como de fundamental estranheza, mas que concerne ao próprio<br />
sujeito, como alteridade radical (FREUD, 1919 15 ; 1920/1996; CARDOSO, 2002).<br />
14 A teoria da pulsão de morte será retomada posteriormente, no último tópico deste capítulo, de maneira<br />
articulada com <strong>nos</strong>sas questões.<br />
15 FREUD, S. (1919/1996). O estranho. In: Obras Completas, vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago.
A história se estabelece na vida psíquica, portanto, quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> encontro com o<br />
outro, e só pode ser pensada na relação com o outro, no universo da alteridade.<br />
O enfoque na concepção de história se torna imprescindível, assim, à medida<br />
que o próprio Freud toma o ponto de vista histórico de maneira diferenciada daquele<br />
concebi<strong>do</strong> <strong>nos</strong> seus primeiros escritos, o que pode introduzir, como veremos, novas<br />
perspectivas para se pensar o problema da “atualidade” em psicanálise, quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> uso<br />
<strong>do</strong> termo “neurose atual”.<br />
2.2 A aglutinação neurose atual–psiconeurose<br />
As considerações de Freud passaram desde o início, como podemos ver, por<br />
constantes revisões e transformações. Isso indica de saída a constatação de que<br />
determina<strong>do</strong>s conceitos na obra de Freud devem abarcar modificações que apontam<br />
para a evolução e o aperfeiçoamento de suas concepções em conformidade com as<br />
conclusões decorridas de importantes reflexões teóricas. Verifica-se, a partir desta<br />
indicação, que o termo ‘atual’ apareceu pela primeira vez em 1898 16 , <strong>nos</strong> primórdios da<br />
constituição teórica de Freud, época em que este centrava ainda a concepção de história<br />
num passa<strong>do</strong> absoluto e fatual, ou não tinha ainda estabeleci<strong>do</strong> parâmetros teóricos para<br />
resolver o problema da constituição psicossexual centrada no caráter “infantil”. Nessa<br />
conjuntura, o termo ‘atual’ aparece como um marco fronteiriço entre os sintomas<br />
psiconeuróticos e aqueles circunscritos à neurastenia e à neurose de angústia. Como já<br />
frisamos, o prisma da atualidade não se refere, no início da obra freudiana, a nada mais<br />
que o ato sexual: na psiconeurose o “trauma” sexual (abuso) ocorria no passa<strong>do</strong>, e na<br />
neurose atual, o “trauma” (interrupção <strong>do</strong> coito, abstinência) ocorria no presente.<br />
Com o desenrolar da teoria psicanalítica, apesar da concepção da produção<br />
fantasmática na sintomatologia psiconeurótica – retiran<strong>do</strong> dela o eixo fatual <strong>do</strong><br />
“passa<strong>do</strong>” – a abordagem freudiana da neurose ‘atual’ permaneceu relativamente<br />
estática, visto que Freud se debruçou na investigação das psiconeuroses, dan<strong>do</strong> a estas<br />
um estatuto privilegia<strong>do</strong> de objeto de pesquisa. Freud abor<strong>do</strong>u de maneira mais sólida o<br />
tema da neurose atual em meio à costura de suas idéias mais primordiais. Depois disso,<br />
16 FREUD, S. (1898/1996) A sexualidade na etiologia das neuroses. In: Obras Completas. Rio de Janeiro:<br />
Imago.
abor<strong>do</strong>u o tema de maneira pouco aprofundada, dan<strong>do</strong> prioridade para as questões<br />
psiconeuróticas.<br />
Essa estase da teoria da neurose atual não significa contu<strong>do</strong> um aban<strong>do</strong>no<br />
completo de sua revisão na teoria psicanalítica. Como apontamos, a neurose atual era<br />
inicialmente concebida como um processo puramente somático (FREUD, 1895b/1996),<br />
em que se observava um dispêndio corporal das excitações, sem existência de qualquer<br />
mediação psíquica. Apesar de não avançar muito no tema das neuroses atuais, no<br />
desenvolvimento de suas conjecturas, Freud demonstrou, entretanto, a existência de<br />
uma ligação intrínseca entre a neurose atual e a psiconeurose, conforme apontamos no<br />
primeiro capítulo <strong>do</strong> presente trabalho, problematizan<strong>do</strong> as teorias mais recentes sobre a<br />
psicossomática. Para Freud, a neurose atual aparece como um complexo eclosivo da<br />
psiconeurose. Esse apontamento significa que, no surgimento de um sintoma ‘atual’,<br />
está ligada uma psiconeurose. Nas Conferências Introdutórias da Psicanálise, ele afirma:<br />
“(...) um sintoma de uma neurose atual é freqüentemente o núcleo e o primeiro<br />
estádio de um sintoma psiconeurótico. (...) Tomemos como exemplo o caso de<br />
uma <strong>do</strong>r de cabeça ou <strong>do</strong>r lombar histérica. A análise <strong>nos</strong> mostra que, pela<br />
condensação e pelo deslocamento, o sintoma tornou-se uma satisfação<br />
substitutiva de toda uma série de fantasias e recordações libidinais. Mas essa <strong>do</strong>r,<br />
em determinada época era também uma <strong>do</strong>r real e era, então, um sintoma sexualtóxico<br />
direto, expressão somática de uma excitação libidinal 17 ” (FREUD,<br />
1917c/1996, p. 391).<br />
A questão da ligação com a psiconeurose, apontada por Quintella (2003),<br />
aparece de maneira clara neste trecho, onde Freud articula a formação de um sintoma<br />
neurótico ao dispêndio corporal da excitação, o que revela importantes características.<br />
Em primeiro lugar, considera-se que esse núcleo somático é “convoca<strong>do</strong>” para a<br />
formação de um sintoma histérico, o que Freud (1912a/1996) caracterizou como um<br />
“grão de areia no centro da pérola” (p. 266). O fator ‘atual’ aparece como elemento<br />
nuclear <strong>do</strong> sintoma psiconeurótico, constituin<strong>do</strong>-se como uma ‘matéria-prima’ deste.<br />
Em segun<strong>do</strong> lugar, consideramos que a psiconeurose, por “preceder” a neurose atual em<br />
sua disposição sintomática articulada ao campo histórico, não está desvinculada desse<br />
fator ‘atual’ da neurose, e vice-versa. Sob esse prisma, a neurose atual é abordada como<br />
17 Grifo Nosso.
sen<strong>do</strong> intrínseca à psiconeurose. O que se coloca em pauta nesse caso é a existência de<br />
um ponto de articulação entre as duas neuroses.<br />
Na mesma conferência, Freud expõe suas questões quanto à neurose atual e ao<br />
seu estu<strong>do</strong> na psicanálise. Afirma:<br />
“(...) os senhores acertadamente esperarão que devamos dedicar também<br />
algum interesse às neuroses atuais. A íntima conexão clínica dessas neuroses<br />
com as<br />
psiconeuroses <strong>nos</strong> compeliria a fazê-lo. Posso afirmar-lhes, pois, que<br />
distinguimos três formas puras de neuroses ‘atuais’: neurastenia, neurose de<br />
angústia e hipocondria. Mesmo essa assertiva não é isenta de contradições.<br />
To<strong>do</strong>s os nomes estão em uso, é verdade; porém seu conteú<strong>do</strong> é impreciso e<br />
instável. Aliás, existem médicos que se opõem a qualquer linha divisória no<br />
mun<strong>do</strong> católico <strong>do</strong>s fenôme<strong>nos</strong> neuróticos, a qualquer separação das entidades<br />
clínicas ou das <strong>do</strong>enças individualizadas, e que nem sequer reconhecem a<br />
distinção entre as neuroses ‘atuais’ e as psiconeuroses. Penso que nisso se<br />
excedem e não escolheram o caminho que conduz ao progresso. As formas de<br />
neurose, que mencionei, ocasionalmente ocorrem em sua forma pura; mais<br />
freqüentemente, porém, estão mescladas umas com as outras e com algum<br />
distúrbio psiconeurótico. Isto não deve levar-<strong>nos</strong> a aban<strong>do</strong>nar a diferença entre<br />
elas” (FREUD, 1917c/1996, p. 390).<br />
Neste trecho, Freud estabelece a importância de se frisar que, apesar da conexão<br />
entre os sintomas, é necessária a sua distinção quanto ao caráter fenomenológico e<br />
etiológico. No que concerne ao ponto de vista fenomenológico, a neurose atual ocorre,<br />
na maioria das vezes, misturada com sintomas psiconeuróticos. Freud considera a<br />
“pureza” de um sintoma ‘atual’ <strong>do</strong> ponto de vista fenomenológico, ou seja, de sua<br />
manifestação clínica. Devemos lembrar e recolocar que a psiconeurose “precede” a<br />
neurose atual em sua disposição sintomática, já que está articulada diretamente ao<br />
campo histórico, mesmo não haven<strong>do</strong> em um da<strong>do</strong> momento um distúrbio<br />
sintomatológico evidente. Assim, a afirmação de que a neurose atual é freqüentemente<br />
o primeiro estágio da psiconeurose revela que o aparecimento de sintomas somáticos<br />
não exclui a presença de uma neurose propriamente dita, mas ao contrário, potencializa<br />
seus sintomas. Mais <strong>do</strong> que isso, o sintoma “atual” aparece como um condicionante<br />
auxiliar de uma psiconeurose que, potencialmente, já existia, o que coloca em destaque<br />
a idéia de uma importante conexão etiológica desses sintomas com a psiconeurose.<br />
Sob esse ponto de vista, o sujeito, ao apresentar sintomas somáticos (ou “atuais”), se<br />
encontraria imerso numa problemática que, se podemos afirmar, encontra suas raízes<br />
nas determinações da “história” sexual. Podemos entender, portanto, que a distinção
entre o ‘atual’ e o ‘histórico’ permanece, mas não a oposição entre os mesmos, visto<br />
que tais fenôme<strong>nos</strong> não são mutuamente excludentes e visto que, ao contrário, há uma<br />
interação entre eles.<br />
Essas considerações aparecem aqui como um questionamento a respeito da<br />
separação radical que se faz entre tais fenôme<strong>nos</strong> – leitura estabelecida pela Escola<br />
Francesa de Psicossomática. Verificamos assim que a distinção entre esses fenôme<strong>nos</strong><br />
não significa sua exclusão mútua, mas ao contrário, viabiliza sua articulação.<br />
Esse caminho leva-<strong>nos</strong> a colocar em questão a concepção de “atualidade”<br />
inicialmente enfatizada por Freud. Na constatação da interação entre a psiconeurose e a<br />
neurose atual, em muito enfatizada neste trabalho, percebe-se a necessidade de se<br />
colocar aspas no termo atual, visto que, no campo da neurose, o atual e o histórico se<br />
acham entrelaça<strong>do</strong>s. Nessa direção, pensamos que a questão da atualidade deve ser<br />
relativizada – pensamento que compartilhamos com Rocha (2000), ao apreciarmos uma<br />
menção sua à neurose “atual”:<br />
“Como quer que seja, vale a pena lembrar que, para Freud não existem as<br />
‘neuroses puras’, mas, sim, as ‘neuroses mistas’. Assim sen<strong>do</strong>, é quase<br />
impossível conceber uma neurose atual que se esgote no presente sem ligação<br />
alguma com o passa<strong>do</strong> e que seja puramente atual. Nem também se poderia<br />
pensar uma psiconeurose que não tivesse repercussão no aqui e agora <strong>do</strong> tempo<br />
presente” (p. 57).<br />
Ao concebermos, assim, as relações de historicidade como um arranjo psíquico<br />
fantasmático, desliga<strong>do</strong> de uma passa<strong>do</strong> fatual, mas liga<strong>do</strong> a uma construção psíquica<br />
que encontra na atemporalidade sua característica principal, não podemos mais pensar o<br />
‘atual’ e o ‘histórico’ como fatores dissocia<strong>do</strong>s, mas como fatores imbrica<strong>do</strong>s. No<br />
contexto dessas considerações, desejamos reconfigurar tais idéias sob o plano das<br />
questões concernentes à historicidade, na proposição de se relativizar o termo atual, ou<br />
relocalizá-lo na teoria psicanalítica em conformidade com a evolução <strong>do</strong> pensamento<br />
de Freud. Procuramos assim, reinserir o conceito de neurose atual na teoria<br />
psicanalítica como um conceito ainda em questão para o estu<strong>do</strong> da psicossomática e<br />
para os des<strong>do</strong>bramentos a ele subjacentes.
2.3 O “atual” em questão<br />
Nossa problemática se configura por meio de questionamentos a respeito<br />
daquilo que constantemente frisamos: a evolução <strong>do</strong> pensamento de Freud e as<br />
transformações conceituais que isso abarca. Quan<strong>do</strong> Freud trabalhou a questão da<br />
neurose atual em 1898, fazen<strong>do</strong> distinção entre ela e a psiconeurose, ficou claro que seu<br />
empenho estava em frisar que a questão sexual é o ponto central em todas as<br />
manifestações neuróticas, com a ressalva de que na neurose atual trata-se de um desvio<br />
da libi<strong>do</strong> para a esfera somática, e na psiconeurose trata-se de uma formação<br />
sintomática substitutiva à libi<strong>do</strong> recalcada.<br />
A construção teórica assim definida a partir das articulações freudianas abre-<strong>nos</strong><br />
questões a respeito <strong>do</strong>s fatores presentes nesses processos. Quan<strong>do</strong> Freud afirma que a<br />
neurose atual é o resulta<strong>do</strong> de um desvio da libi<strong>do</strong> de sua elaboração psíquica, localiza<br />
inicialmente esta questão no simples ato sexual e numa aplicação “insatisfatória” das<br />
excitações. Para resolver essas questões, localiza no “coito interrompi<strong>do</strong>” a principal<br />
raiz desse desvio, ao la<strong>do</strong> da abstinência sexual e da masturbação excessiva. Contu<strong>do</strong>,<br />
tais concepções permanecem para nós passíveis de revisão, na medida em que o sexual<br />
em psicanálise passa posteriormente a não se limitar apenas ao coito, tampouco a uma<br />
simples aplicação da libi<strong>do</strong>, boa ou ruim, <strong>nos</strong> diversos níveis de relação <strong>do</strong> sujeito com<br />
o objeto de satisfação. Cabe pensar se se pode estipular efetivamente a existência de<br />
uma relação sexual absolutamente satisfatória, sem entraves para o sujeito na sua<br />
relação com o objeto. Conforme demonstrou o próprio Freud no desenvolvimento de<br />
sua obra, o objeto da pulsão é aquilo que há de mais variável (FREUD, 1915a/1996) e o<br />
sujeito, em meio à constituição civilizatória, tem de abrir mão e renunciar parcialmente<br />
às exigências da sexualidade – fator localiza<strong>do</strong> como constitutivo da própria existência<br />
humana no mun<strong>do</strong> civiliza<strong>do</strong>, e ao mesmo tempo como problema fundamental de toda<br />
a neurose (FREUD, 1930/1996). Nessa perspectiva, corrobora-se a idéia de que não há<br />
como opor fatores “atuais” e “históricos” no que concerne ao campo sexual. Assim<br />
como Freud (1906/1996) substituiu a idéia de “trauma sexual infantil” por “infantilismo<br />
da sexualidade”, propomos que a idéia de “coito interrompi<strong>do</strong>” seja substituída pela<br />
idéia de “excesso libidinal impedi<strong>do</strong> de escoamento”, ou “interrupção no curso da<br />
excitação”. Isso deixa por um momento de la<strong>do</strong> a concepção fatual <strong>do</strong> coito, e exige
uma reconfiguração teórica sobre o que se concebe como ‘atual’ em psicanálise.<br />
Portanto, ainda se faz necessária a distinção entre sintomas efetivamente orgânicos ou<br />
somáticos e sintomas que não apresentam qualquer alteração bio-estrutural, como na<br />
histeria. Mas tal distinção não aban<strong>do</strong>na a concepção <strong>do</strong> ‘atual’ e <strong>do</strong> ‘histórico’ como<br />
fatores imbrica<strong>do</strong>s.<br />
Sob esse prisma, tendemo-<strong>nos</strong> a pensar a questão da ‘atualidade’ para além da<br />
idéia fatual <strong>do</strong> coito interrompi<strong>do</strong>, ou da aplicação da libi<strong>do</strong>. Essa idéia, na verdade,<br />
não era definitiva nem mesmo para Freud. A determinação de uma sintomatologia<br />
somática não era necessariamente localizada na “forma” como o indivíduo praticava o<br />
coito. Numa carta dirigida a Fliess, Freud (1892-1899/1996) demonstra seu entusiasmo<br />
quanto à conclusão acerca <strong>do</strong> coito interrompi<strong>do</strong>, mas introduz dúvidas quanto às<br />
circunstância em que essa prática poderia ser realmente lesiva:<br />
“As coisas se complicam cada vez mais, à medida que chega a<br />
confirmação. Ontem por exemplo, vi quatro casos cuja etiologia, como<br />
evidencia<strong>do</strong> pelos da<strong>do</strong>s cronológicos, só poderia ser o coitus interruptus. Talves<br />
eu possa mantê-lo interessa<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> um breve relato desses casos. Eles estão<br />
longe de ser uniformes. (...)<br />
(3) Homem, 42 a<strong>nos</strong>: filhos de 17, 16 e 13 a<strong>nos</strong>. Esteve bem até há seis<br />
a<strong>nos</strong>. Aí, com a morte <strong>do</strong> pai, súbito ataque de angústia com palpitações, temores<br />
hipocondríacos de câncer da língua; vários meses depois, um súbito ataque com<br />
cia<strong>nos</strong>e, pulso intermitente, me<strong>do</strong> de morrer, etc.; a partir de então, fraqueza,<br />
vertigem, agorafobia, alguma dispepsia. Este é um caso de neurose de angústia<br />
pura, acompanha<strong>do</strong> de sintomas cardíacos subsequentes a uma emoção; contu<strong>do</strong><br />
o coitus interruptus foi aparentemente tolera<strong>do</strong> com facilidade durante dez a<strong>nos</strong>”<br />
(p. 230).<br />
Nessa pequena passagem, encontrada nas primeiras considerações da busca<br />
teórica de Freud, localiza-se uma questão que ultrapassa as dimensões simplistas <strong>do</strong><br />
coito interrompi<strong>do</strong>. Fica claro que a disposição subjetiva desse indivíduo na sua relação<br />
com o pai representa talvez um importante elemento para os des<strong>do</strong>bramentos da<br />
sintomatologia somática, sem dúvida atrelada ao problema “atual” da excitações<br />
corporais, mas também remetida a questões históricas da relação <strong>do</strong> sujeito com o<br />
outro. Freud, contu<strong>do</strong>, permaneceu ao longo <strong>do</strong> tempo deti<strong>do</strong> na problemática <strong>do</strong> ato<br />
sexual, pura e simplesmente, como fator principal <strong>do</strong>s sintomas somáticos, como um<br />
fenômeno puramente “mecânico”. Esse fato confirma que o desenvolvimento <strong>do</strong><br />
conceito de neurose atual permaneceu numa certa estagnação, e revela claramente a<br />
necessidade <strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r em estabelecer desde o princípio o divisor de águas necessário<br />
entre o ‘atual’ e o ‘histórico’, para então, legitimar sua empreitada na solução das
neuroses “psíquicas” (psiconeuroses). Tal “divisor”, Freud estabeleceu como sen<strong>do</strong> a<br />
prática sexual em sua objetividade. A partir disso, pôde delimitar aquilo que concerne a<br />
uma ‘neurose atual’ e aquilo que concerne a uma ‘psiconeurose’. Essa delimitação<br />
inicial não dissipa, contu<strong>do</strong>, a revisão <strong>do</strong> conceito de neurose atual que aparece no<br />
pensamento <strong>do</strong> próprio Freud, apesar de não ter si<strong>do</strong> aprofundada. Como colocamos, a<br />
idéia de uma “aglutinação” entre a psiconeurose e a neurose atual traz para nós a<br />
possibilidade de leituras renovadas sobre esses aspectos.<br />
Essas possibilidades de renovação teórica <strong>nos</strong> levam a retomar a discussão<br />
relativa à teoria de P. Marty, que se baseia no princípio da neurose atual. Conforme<br />
apontamos no primeiro capítulo, a separação entre psicossomática e psiconeurose<br />
estabelecida pelo Instituto de Psicossomática de Paris não condiz com as questões<br />
concernentes ao problema da descarga somática na obra de Freud. Para Marty, a<br />
descarga somática está subsumida a um mal funcionamento <strong>do</strong> aparelho psíquico,<br />
modelo que aparece como fundamental na sua teoria. Para esta corrente (Cf. MARTY,<br />
1993), há um “desligamento” da atividade fantasmática, pelo fato da carência de<br />
recursos psíquicos, que resulta numa impossibilidade de elaboração das excitações e da<br />
formação de sintomas efetivamente psiconeuróticos, ou da apresentação de<br />
características que competem à psiconeurose. Marty (1998) infere, nessa direção, a<br />
inexistência de conflitos psíquicos em pacientes “psicossomáticos”. A questão da<br />
atividade psíquica, supostamente desligada na neurose atual, bem como <strong>nos</strong> fenôme<strong>nos</strong><br />
psicossomáticos, permanece para nós, entretanto, como um problema. Na evolução <strong>do</strong><br />
pensamento de Freud, fica claro que a atividade psíquica não se contradiz ao<br />
aparecimento de uma sintomatologia somática, mas ao contrário, a esta se articula.<br />
Destacamos, nesse contexto, um apontamento de Freud num momento muito posterior,<br />
em 1925, que avaliamos imprescindível para esta discussão. Em “Estu<strong>do</strong><br />
Autobiográfico” (1925/1996), referin<strong>do</strong>-se aos primórdios de suas teorizações, ele<br />
afirma:<br />
“Desde aquela época não tive oportunidade de voltar à pesquisa das ‘neuroses<br />
atuais’, nem essa parte <strong>do</strong> meu trabalho foi continuada por outro. Se hoje lanço<br />
um olhar retrospectivo aos meus primeiros acha<strong>do</strong>s, eles me surpreendem como<br />
sen<strong>do</strong> os primeiros delineamentos toscos daquilo que é provavelmente um<br />
assunto muito mais complica<strong>do</strong>. Mas no to<strong>do</strong>, ainda me parecem váli<strong>do</strong>s. Teria<br />
fica<strong>do</strong> muito satisfeito se tivesse si<strong>do</strong> capaz, posteriormente, de proceder a um<br />
exame psicanalítico de mais alguns <strong>do</strong>s casos de neurastenia juvenil, mas<br />
infelizmente não surgiu a ocasião. A fim de evitar concepções errôneas, gostaria
de esclarecer que estou longe de negar a existência de conflitos mentais e de<br />
complexos neuróticos na neurastenia. 18 Tu<strong>do</strong> que estou afirman<strong>do</strong> é que os<br />
sintomas desses pacientes não são mentalmente determina<strong>do</strong>s ou removíveis pela<br />
análise, mas devem ser considera<strong>do</strong>s como conseqüências tóxicas diretas de<br />
processos químicos sexuais” (p. 32).<br />
Freud faz questão nesse trecho de dizer que não nega a existência de “conflitos<br />
mentais” e “complexos neuróticos” na neurose atual, o que é diametralmente oposto à<br />
lógica estabelecida por Marty (1998), já que este infere a inexistência de conflitos <strong>nos</strong><br />
pacientes “psicossomáticos”.<br />
Analisan<strong>do</strong>, assim, de maneira mais aprofundada o pensamento de Freud, este<br />
diz, por outro la<strong>do</strong>, que a neurose atual não é “mentalmente determinada”. Pensemos se<br />
isto não deve ser examina<strong>do</strong> com cuida<strong>do</strong>. A neurose atual, como ele aborda, é o<br />
resulta<strong>do</strong> de um processo que não passou pelo recalque nem pelas operações de<br />
condensação e deslocamento tal como ocorre na histeria, na neurose obsessiva e na<br />
fobia (Cf. FREUD, 1917/1996). Ora, se há na lógica da psiconeurose uma questão<br />
histórica, é porque esses referi<strong>do</strong>s processos se fazem sentir claramente no sintoma<br />
psiconeurótico. Em outras palavras, poderíamos dizer que os sintomas psiconeuróticos<br />
imprimem ao sujeito uma historicidade, ali mesmo, em sua própria estrutura, o que não<br />
aparece nas “neuroses atuais”. Isso não invalida a hipótese de que o sintoma “atual”<br />
esteja vincula<strong>do</strong> efetivamente a “conflitos”, “complexos neuróticos” ou “atividades<br />
psíquicas”, conforme “não nega” Freud. A relativização <strong>do</strong> termo “atual” significa, sob<br />
esse prisma, conceber uma “descarga” corporal vinculada não apenas a fatores atuais. É<br />
preciso indagar até que ponto a neurose “atual” não estaria também vinculada, de uma<br />
forma mais complexa, a questões históricas e à experiência <strong>do</strong> sujeito na sua relação<br />
com o outro. Se, conforme expomos, a historicidade significa um arranjo de conexões<br />
associativas <strong>do</strong> plano fantasmático, ou a repetição de experiências traumáticas<br />
condicionadas pela pulsão de morte, <strong>nos</strong> encontramos portanto inclina<strong>do</strong>s a pensar a<br />
questão da atualidade como algo que integra efetifamente o campo histórico, em que<br />
passa<strong>do</strong> e presente tomam uma configuração unívoca. Nessa configuração, temos que o<br />
“atual” na neurose deve ser recontextualiza<strong>do</strong>, sob o fato de que a neurose atual se acha<br />
entrelaçada com a psiconeurose e de que se coloca em pauta a idéia de um vínculo<br />
desses fenôme<strong>nos</strong> com fatores históricos. Sob esse aspecto, <strong>nos</strong> afastamos da idéia de<br />
um funcionamento psíquico constitucional para pacientes com fenôme<strong>nos</strong> ditos<br />
18 Grifo Nosso
“psicossomáticos”. A neurose atual é núcleo da psiconeurose e fica claro, nesse âmbito,<br />
que a atividade psíquica está longe de constituir uma “proteção” para o sistema<br />
somático. Mais <strong>do</strong> que isso, a neurose “atual” passa a ser concebida unicamente na sua<br />
ligação com a dinâmica e os sintomas psíquicos, os quais abarcam necessariamente<br />
questões subjetivas e atividades psíquicas cuja riqueza não aparece como fator de<br />
oposição para um sintoma somático, mas conforme frisamos, como fator de interação.<br />
Procuramos assim pensar essas questões sob o ponto de vista da própria cadeia<br />
associativa e de sua relação com a idéia de escoamento e descarga, visto que o<br />
problema da neurose “atual” reside num impedimento no escoamento das excitações.<br />
Essa questão <strong>nos</strong> remete irremediavelmente ao empenho de Freud para resolver<br />
o problema <strong>do</strong> funcionamento psíquico no “Projeto para uma psicologia científica”<br />
(1895a/1996), trabalho no qual o autor inclinou-se a delinear os processos mentais<br />
circunscritos ao modelo de arco reflexo, a partir de especulações sobre o<br />
funcionamento neuronal. A constituição <strong>do</strong> aparelho psíquico foi minuciosamente<br />
pensada por Freud nesse escrito, o qual aparece-<strong>nos</strong> como fundamental para se pensar a<br />
idéia de escoamento, já que o autor circunscreve na função primeira <strong>do</strong> aparelho mental<br />
a descarga das excitações pela via da facilitação no sistema de memória. É importante<br />
que se coloque em destaque esse escrito, portanto, no senti<strong>do</strong> de avançar nessa temática<br />
e de articular os princípios <strong>do</strong> seu pensamento com as questões aqui introduzidas.<br />
O “atual”, portanto, é ainda um termo em questão, visto que se coloca em<br />
destaque a imbricação entre os sintomas neuróticos em geral, e que se pensa, a partir<br />
<strong>do</strong> dizer de Freud, “atualidade” e “historicidade” como fatores contínuos, e não,<br />
opostos. Desejamos nesse contexto delinear o pensamento <strong>do</strong> autor <strong>nos</strong> escritos liga<strong>do</strong>s<br />
a essa questão, com o intuito de se abordar o problema da “atualidade” para além <strong>do</strong><br />
contexto objetivo e mecânico <strong>do</strong> ato sexual.<br />
2.4 Escoamento e descarga no Projeto para uma Psicologia científica<br />
Partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> princípio da ‘inércia neuronal’, Freud (1895a/1996) estabeleceu um<br />
esquema para a compreensão <strong>do</strong>s processos de memória que viriam a se des<strong>do</strong>brar em<br />
implicações complexas <strong>do</strong> aparato psíquico. O princípio da inércia neuronal de Freud
diz que os neurônios tendem a se livrar das cargas de estimulação, representadas pelo<br />
autor pela letra Q. Q representa a distinção entre a atividade e o repouso, o fluxo da<br />
energia, as quantidades de excitação e estimulação, sen<strong>do</strong> que Freud designou o<br />
símbolo Q para as quantidades referidas ao mun<strong>do</strong> externo, e Qn para as quantidades<br />
referidas aos estímulos endóge<strong>nos</strong>.<br />
Para Freud, o estu<strong>do</strong> da psicologia deve ter como centro das questões o<br />
problema da memória, o que justifica o motivo de seu empenho ao classificar diferentes<br />
designações para os processos psíquicos com a idéia de um sistema pensa<strong>do</strong> a partir da<br />
teoria <strong>do</strong> funcionamento neuronal. Ele afirma:<br />
“Uma teoria psicológica digna de consideração precisa fornecer uma explicação<br />
para a “memória”. Ora, qualquer explicação dessa espécie se depara com a<br />
dificuldade de admitir, por um la<strong>do</strong>, que, depois de cessar a excitação, os<br />
neurônios fiquem permanentemente modifica<strong>do</strong>s em relação ao seu esta<strong>do</strong><br />
anterior, ao passo que, por outro la<strong>do</strong>, não se pode negar que as novas<br />
excitações, em geral, encontrem as mesmas condições de recepção que<br />
encontraram as excitações precedentes” (FREUD, 1895a/1996, p. 351).<br />
Partin<strong>do</strong> desse princípio, Freud introduziu a idéia de neurônio catexiza<strong>do</strong>, ou<br />
seja, investi<strong>do</strong> de energia, “excita<strong>do</strong>”. Para solucionar então o problema da memória,<br />
Freud estabelece, a princípio, duas classes de neurônios: aquela que tem a característica<br />
da permeabilidade e aquela que tem a característica da impermeabilidade,<br />
respectivamente representadas por ele com os símbolos e . Para esse esquema, o<br />
autor introduziu a idéia da existência de vias de condução e de barreiras de contato,<br />
que estariam ligadas à segunda função principal <strong>do</strong> sistema nervoso: estabelecer<br />
resistência à passagem da excitação. Concomitante à característica de cessação <strong>do</strong>s<br />
estímulos – função primeira – encontram-se as resistências balizadas pela distinção<br />
entre os neurônios permeáveis e impermeáveis. As barreiras de contato se fariam sentir<br />
no terreno <strong>do</strong>s neurônios impermeáveis, que só permitem a passagem da Qn com<br />
dificuldade ou parcialmente. Os neurônios (permeáveis) estariam assim liga<strong>do</strong>s às<br />
estimulações externas, enquanto que os neurônios (impermeáveis) estariam liga<strong>do</strong>s<br />
às estimulações endógenas. A partir desse princípio, a memória seria caracterizada por<br />
facilitações (Bahnung, no alemão) produzidas pela passagem das quantidades de<br />
excitação no sistema . Essas quantidades deixariam impressões permanentes que<br />
facilitariam novas passagens de Qn no sistema impermeável. A memória seria definida<br />
pela diferença entre as facilitações, atestan<strong>do</strong> as peculiaridades <strong>do</strong>s elementos
característicos da memória, já que, se fossem as facilitações idênticas entre si, não<br />
haveria o fenômeno da memória. As passagens das cargas de estimulação produziriam<br />
assim diferentes impressões, permanentes no sistema , produzin<strong>do</strong> trilhas para a<br />
passagem de novas quantidades de estimulação. A facilitação serve, segun<strong>do</strong> Freud, ao<br />
princípio fundamental <strong>do</strong> sistema nervoso, que é promover a descarga dessas<br />
quantidades.<br />
O esquema da memória seria então representa<strong>do</strong> pela diferença entre as<br />
facilitações no sistema impermeável, bem como pela freqüência com que a impressão<br />
se repete nesse sistema. A facilitação é o resulta<strong>do</strong>, assim, da quantidade (Qn) que<br />
passa pelo neurônio no processo excitativo e <strong>do</strong> número de vezes que isso se repete.<br />
Freud diz: “Daí se vê, portanto, que Qn é o fator operativo e que a quantidade mais a<br />
facilitação são ao mesmo tempo algo capaz de substituir Qn” (p. 353). Nessa<br />
perspectiva entende-se que a memória constitui-se como uma evocação das marcas<br />
deixadas pelo estímulo que substituem o próprio estímulo – ou seja, seu fator causal.<br />
É importante ainda frisar um ponto fundamental a respeito <strong>do</strong> princípio da<br />
inércia neuronal. O sistema nervoso não pode extinguir de to<strong>do</strong> a Qn já que, a isso,<br />
sobreviria a extinção de to<strong>do</strong> o aparelho. Nesse senti<strong>do</strong>, o sistema deve funcionar de<br />
mo<strong>do</strong> que se mantenha um certo nível de Qn, reduzin<strong>do</strong> ao máximo, contu<strong>do</strong>, a<br />
quantidade de estimulação. Com essa idéia, Freud deu seu primeiro passo para<br />
introduzir o princípio fundamental <strong>do</strong> psiquismo, a saber, o princípio de prazer. O<br />
princípio de prazer circunscreve-se pela característica de manter o mais baixo possível<br />
o nível da tensão, e assume a função de regulação da quantidade e da passagem da<br />
excitação, sem permitir sua descarga total.<br />
Freud caracteriza to<strong>do</strong> o esquema da impermeabilidade, da permeabilidade e da<br />
facilitação, na sua implicação com a quantidade. O problema da qualidade contu<strong>do</strong>,<br />
aparece como questão para Freud. Ele se pergunta: “Onde se originam as qualidades?”<br />
(p. 360). À questão da qualidade, é designa<strong>do</strong> então um outro sistema neuronal, o<br />
sistema . Assim, este último, liga<strong>do</strong> ao campo da consciência e das sensações, estaria<br />
sujeito a quantidades reduzidas de Qn, e seria caracteriza<strong>do</strong> pela permeabilidade. As<br />
passagens de Qn não poderiam, contu<strong>do</strong>, deixar marcas no sistema – visto que este se<br />
caracteriza pela permeabilidade e pela inexistência de barreiras de contato. Qn seria<br />
então aproveitada mediante sua segunda característica: a característica temporal.
Assim, a passagem de Qn não teria apenas a característica quantitativa, mas também<br />
temporal, em que, na consciência, se verificaria o efeito, <strong>nos</strong> neurônios ,<br />
perío<strong>do</strong>s de passagem da Qn em . Tal efeito caracterizaria <strong>nos</strong> sistemas psíquicos a<br />
chamada qualidade, ligada ao campo da consciência. Freud esclarece:<br />
“A hipótese (...) presume que os neurônios sejam incapazes de receber Qn,<br />
mas que, em compensação, se apropriem <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> de excitação, e que nesse<br />
esta<strong>do</strong> de serem afeta<strong>do</strong>s por um perío<strong>do</strong> enquanto são enchidas de um mínimo<br />
de Qn constitui a base fundamental da consciência. É claro que os neurônios <br />
também possuem o seu perío<strong>do</strong>; mas ele é desprovi<strong>do</strong> de qualidade ou, mais<br />
corretamente, monótono. Os desvios desse perío<strong>do</strong> psíquico que lhes é específico<br />
chegam à consciência como qualidades” (p. 362).<br />
As qualidades seriam definidas então pela categoria tempo. Os processos<br />
quantitativos em chegam a como qualidades por meio <strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s da excitação<br />
em . Dito de outra forma, as sensações, por exemplo, de prazer e desprazer são<br />
caracterizadas como expressão qualitativa em <strong>do</strong> aumento ou diminuição das<br />
quantidades em . O prazer seria a sensação de descarga em . No sistema encontrase<br />
a característica da promoção da descarga, o princípio fundamental <strong>do</strong> aparelho de<br />
Freud. Nesse sistema, não existem qualidades, mas trilhamentos por onde passam<br />
cargas de Qn – <strong>nos</strong> quais se localizam os fenôme<strong>nos</strong> de recordação.<br />
O aparelho psíquico se constituiria nessa montagem, o que acentua o caráter<br />
específico das relações entre as imagens mnêmicas e as quantidades de excitação.<br />
Pode-se concluir com esse arranjo teórico que as imagens mnêmicas são resulta<strong>do</strong> da<br />
passagem de excitação em , no qual se localizam impressões permanentes. Tais<br />
impressões assumem caráter associativo posto que constituem trilhamentos através <strong>do</strong>s<br />
quais são escoa<strong>do</strong>s os excedentes de excitação.<br />
No ínterim dessas especulações, Freud estabeleceu, então, uma teoria da relação<br />
objetal, relacionada à experiência de satisfação. A questão da descarga é analisada por<br />
Freud como um movimento que não implica apenas um indivíduo, mas que inclui um<br />
outro indivíduo. Segun<strong>do</strong> o autor, a descarga pode apenas ocorrer mediante uma<br />
alteração <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> externo, posto que o organismo, no prima<strong>do</strong> de suas experiências,<br />
não pode exercer por si só uma ação que provoque essa descarga. Marca<strong>do</strong> pelo<br />
desamparo, o infante depende da ação específica de um outro semelhante experiente<br />
em sua direção, promoven<strong>do</strong> a descarga e a satisfação. Tal experiência deixa marcas no<br />
sistema , representadas pela imagem mnêmica <strong>do</strong> objeto agradável. Na ativação <strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s
desejo, a imagem <strong>do</strong> objeto será evocada, o que coloca em movimento to<strong>do</strong> o aparelho<br />
psíquico. Na ausência <strong>do</strong> objeto, ou na sua impossibilidade, o aparelho psíquico é<br />
impeli<strong>do</strong> a trabalhar no senti<strong>do</strong> de alcançar a satisfação, ainda que parcial, pela via da<br />
associação ideacional por semelhança ou contiguidade. Tal é o trabalho <strong>do</strong> aparelho<br />
psíquico pensa<strong>do</strong> por Freud: buscar o objeto fundamental de satisfação.<br />
Freud estabelece então que o funcionamento <strong>do</strong> aparelho psíquico parte de um<br />
princípio fundamental, o “princípio de prazer” articula<strong>do</strong> ao que ele denominou<br />
“processos primários” e “processos secundários”. Tais processos se relacionam à<br />
capacidade <strong>do</strong> aparelho psíquico em fazer distinção entre aquilo que é da ordem da<br />
percepção e aquilo que é da ordem de uma idéia, ou lembrança. Assim, a lembrança de<br />
um objeto agradável em pode aparecer como percepção real para o sujeito se não<br />
houver uma indicação de realidade no sistema , ou seja, se não houver a indicação<br />
qualitativa da diferença entre uma lembrança (idéia) e uma percepção. A lembrança é<br />
reproduzida por alucinação, até que o sistema forneça a indicação, no campo das<br />
qualidades, da diferença entre uma imagem mnêmica e uma percepção. Os processos<br />
primários seguem, portanto, a orientação da descarga das excitações em : ali não há<br />
distinção entre o que é uma idéia e o que é uma percepção.<br />
Os processos que indicam qualitativamente os elementos ideativos são aqueles<br />
descritos como secundários, os quais aparecem submeti<strong>do</strong>s a movimentos de inibição<br />
no ego – defini<strong>do</strong> nesse momento por Freud como uma organização que interfere nas<br />
passagens de Qn e que representa um grupo de neurônios constantemente catexiza<strong>do</strong>. A<br />
existência <strong>do</strong> ego resultaria na inibição <strong>do</strong>s processos psíquicos primários, na medida<br />
em que ele interfere nas passagens da quantidade, como catexias “colaterais” que não<br />
permitem o livre acesso das quantidades entre os neurônios.<br />
A indicação de realidade será fornecida quan<strong>do</strong> tais investimentos representam<br />
versões “atenuadas”, por meio da inibição, ou seja, quan<strong>do</strong> a catexia encontra barreiras<br />
ou inibições para sua descarga total. Os processos secundários estão relaciona<strong>do</strong>s a essa<br />
indicação de realidade, ou seja, indicações de que a idéia <strong>do</strong> objeto (Vorstellung, no<br />
alemão) não corresponde à sua percepção. O parelho psíquico trabalha, portanto, no<br />
senti<strong>do</strong> de se livrar das cargas de estimulação; em outras palavras, no senti<strong>do</strong> de<br />
encontrar o objeto primordial da experiência de satisfação, capaz de fornecer a descarga<br />
das excitações internas. O princípio de prazer, se define então, pela propensão <strong>do</strong>
aparelho psíquico em regular a tensão interna, manten<strong>do</strong>-a no mais baixo nível<br />
possível.<br />
Essa montagem teórica define basicamente o funcionamento <strong>do</strong> aparelho<br />
psíquico em sua constituição primária. A partir disso, Freud desenvolveu hipóteses<br />
articuladas a essa teoria, concernentes às psicopatologias, bem como ao funcionamento<br />
normal <strong>do</strong> aparelho.<br />
Uma questão importante, que aparece nesse escrito e que <strong>nos</strong> chama atenção,<br />
concerne à menção <strong>do</strong> autor à experiência que, se podemos afirmar, vai na contramão<br />
da satisfação mediante a descarga: a experiência da <strong>do</strong>r. Tal experiência está ligada a<br />
quantidades excessivas de excitação e estimulação (Qn) que “rompem os dispositivos<br />
de tela em ” (FREUD, 1895/1996, p. 372), ou seja, ultrapassam as proteções <strong>do</strong>s<br />
órgãos de percepção de maneira violenta. Freud então afirma:<br />
“Quan<strong>do</strong> a imagem mnêmica <strong>do</strong> objeto hostil é renovadamente catexizada por<br />
qualquer razão – por nova percepção, digamos – surge um esta<strong>do</strong> que não é o da<br />
<strong>do</strong>r, mas que, apesar disso, tem certa semelhança com ela. Esse esta<strong>do</strong> inclui o<br />
desprazer e a tendência à descarga que corresponde à experiência da <strong>do</strong>r. Como o<br />
desprazer significa aumento de nível, deve-se perguntar qual a origem dessa Qn.<br />
(...). Na reprodução da experiência (da <strong>do</strong>r) a única Q adicional é a que catexiza<br />
a lembrança (...)” (p. 372).<br />
Para esta questão, Freud lança mão da idéia de que “o desprazer é libera<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
interior <strong>do</strong> corpo 19<br />
neurônios “secretores”. O autor esclarece:<br />
e de novo transmiti<strong>do</strong>” (p. 372). Supõe então a existência de<br />
“(...) devem também existir neurônios “secretores” que, quan<strong>do</strong> excita<strong>do</strong>s,<br />
provocam no interior <strong>do</strong> corpo o surgimento de algo que atua como estímulo<br />
sobre as vias endógenas de condução de – neurônios que, dessa forma,<br />
influenciam a produção de Qn endógena e, consequentemente, não descarregam<br />
Qn, mas fornecem-nas por vias indiretas. A esses neurônios chamaremos de<br />
“neurônios-chave” (...). Como resulta<strong>do</strong> da experiência da <strong>do</strong>r, a imagem<br />
mnêmica <strong>do</strong> objeto hostil adquiriu uma facilitação excelente para esses<br />
neurônios-chave, em virtude da qual [a facilitação] libera então desprazer no<br />
afeto” (ibid., p. 373).<br />
Os neurônios-chave aparecem como elemento crucial no que se refere à questão<br />
da descarga, na medida em que produzem excitação (Qn endógena) ao invés de<br />
descarregá-la. Isso <strong>nos</strong> remete inevitavelmente ao campo das neuroses ‘atuais’, na<br />
medida em que a excitação aparece como um excedente inarticula<strong>do</strong>, inviabiliza<strong>do</strong><br />
psiquicamente. Tal conclusão está ligada à linha de raciocínio na qual se localizam<br />
19 Grifo Nosso.
essas considerações. Freud coloca então: “Essa hipótese intrigante (<strong>do</strong>s neurônioschave),<br />
mas indispensável, é confirmada pelo que ocorre no caso da liberação sexual”<br />
(ibid.). Tal indicação refere-se a nada mais <strong>do</strong> que a liberação de excitação sexual,<br />
excessiva nas neuroses atuais.<br />
A questão toma relevância capital ao concluirmos que, no jogo das conexões<br />
representativas, a Qn, ao invés de ser escoada pela via da facilitação em , é<br />
novamente produzida, chegan<strong>do</strong> a atingir níveis traumáticos. No “Projeto para uma<br />
psicologia científica”, o caso da <strong>do</strong>r aparece como ponto central desse processo.<br />
Caberia a nós, estabelecer uma articulação entre a <strong>do</strong>r, o trauma e o excedente de<br />
excitação o qual, se podemos afirmar, se acha impossibilita<strong>do</strong> de ligação psíquica, ou<br />
seja, de conexão com outros conteú<strong>do</strong>s mnemônicos por associação no plano<br />
representativo. Nosso interesse no “Projeto” de Freud se circunscreve à idéia de que o<br />
aparelho psíquico possa conter em si mesmo um excesso impossível de abarcar. É<br />
importante que se coloque em pauta, ainda, os avanços de Freud concernentes à questão<br />
<strong>do</strong> trauma, que reaparece em 1920 em “Além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer”, texto no qual<br />
Freud afirma o problema da pulsão de morte como fundamental para o avanço <strong>do</strong> seu<br />
pensamento. Tais questões serão reintroduzidas a seguir na articulação desses<br />
baliza<strong>do</strong>res teóricos.<br />
2.5 Trauma, neurose atual e violência psíquica: além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer<br />
Podemos então, partin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s delineamentos estabeleci<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong> o discurso<br />
freudiano, fazer uma articulação entre a idéia de “trauma” em Freud e o conceito de<br />
“neurose atual”, colocan<strong>do</strong> em pauta a questão da “atualidade”, no senti<strong>do</strong> de reinserir<br />
<strong>nos</strong>sa problemática.<br />
A idéia de trauma aparece <strong>nos</strong> primeiros escritos de Freud (1893/1996), quan<strong>do</strong><br />
este tecia investigações clínicas sobre os fenôme<strong>nos</strong> histéricos. O trauma aparecia,<br />
contu<strong>do</strong>, de maneira articulada à histeria, referenciadamente a acontecimentos <strong>do</strong>s<br />
quais as histéricas seriam vítimas. Conforme já apontamos no presente trabalho, os<br />
sintomas histéricos eram para Freud, nessa época, uma conversão “somática” <strong>do</strong> “afeto<br />
estrangula<strong>do</strong>” de um trauma supostamente vivi<strong>do</strong> na infância, sen<strong>do</strong> este caracteriza<strong>do</strong>
por um abuso de natureza sexual realiza<strong>do</strong> por parte de um adulto. A inferência de que<br />
as histéricas sofriam de reminiscências atestava que Freud se situava, desde o início,<br />
numa linha de investigação psíquica, e não neurológica. Desse feito, o autor se referia a<br />
um “corpo” atravessa<strong>do</strong> pelas representações psíquicas. O corpo histérico é, assim, um<br />
corpo inseri<strong>do</strong> num universo de senti<strong>do</strong>, de linguagem, e os sintomas corporais<br />
histéricos, não estan<strong>do</strong> liga<strong>do</strong>s a nenhuma implicação fisiológica, constituem<br />
expressões simbólicas de conflitos intrapsíquicos, liga<strong>do</strong>s à experiência infantil.<br />
O “trauma” na histeria é constituí<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> uma rede de significações, e Freud<br />
propôs que ele se dá em <strong>do</strong>is tempos, introduzin<strong>do</strong> a idéia de posteridade: o segun<strong>do</strong><br />
tempo <strong>do</strong> trauma é a resignificação <strong>do</strong> primeiro (FREUD, 1895a/1996). Assim, o<br />
trauma, para se inscrever psiquicamente, necessita de um segun<strong>do</strong> tempo, posterior, que<br />
dá significação à ocorrência traumática, ou seja, o trauma é inseri<strong>do</strong> num universo de<br />
senti<strong>do</strong>.<br />
A questão <strong>do</strong> trauma em Freud passou, contu<strong>do</strong>, por abordagens diferenciadas,<br />
sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> o autor introduziu o “além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer” na teoria<br />
psicanalítica, produzin<strong>do</strong> indubitavelmente um campo frutífero de retificações teóricas.<br />
O trauma propriamente dito não seria mais aborda<strong>do</strong> da mesma forma que no<br />
sintoma histérico. O campo <strong>do</strong> trauma se definiu em sua especificidade na<br />
complexificação das constatações de Freud. A psicanálise, tanto no desenvolvimento de<br />
sua teoria quanto no de sua práxis, foi atingin<strong>do</strong>, nesse senti<strong>do</strong>, a dimensão <strong>do</strong><br />
“inefável”, <strong>do</strong>s pontos mais obscuros que ultrapassam a apreensão <strong>do</strong> inconsciente e<br />
trazem sua característica mais inassimilável – aquela que concerne ao campo da pulsão<br />
de morte. E foi nesse mesmo campo que Freud localizou sua idéia sobre o trauma<br />
propriamente dito, não mais <strong>do</strong> ponto de vista de uma “traumatologia” suposta que se<br />
faz notar no discurso histérico.<br />
Assim, ao deparar-se com situações clínicas que não correspondiam à<br />
organização <strong>do</strong> princípio de prazer, pontos que não abarcavam qualquer possibilidade<br />
de ligação com as inclinações <strong>do</strong> sujeito à satisfação sexual, Freud (1920/1996)<br />
concluiu que algo de uma natureza distinta da prevalência <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer no<br />
funcionamento psíquico se apresentava, o que o levou a curvar-se à idéia de que a libi<strong>do</strong><br />
sexual não é a única corrente pulsional a ter privilégio sobre o psiquismo. Um impulso<br />
mortífero, manifesta<strong>do</strong> principalmente no que Freud denominou compulsão à repetição,
impunha-se às suas concepções acerca <strong>do</strong> humano. Isso levou-o a reorganizar sua teoria<br />
de acor<strong>do</strong> com esse dualismo pulsional – caracteriza<strong>do</strong> por ele (ibid.) como pulsão de<br />
vida e pulsão de morte. A pulsão de morte se acha <strong>nos</strong> termos <strong>do</strong> excesso pulsional que<br />
não se ligou à trama das representações e permaneceu como energia não ligada que<br />
insiste e repete.<br />
Verifica-se que, na abordagem das ‘neuroses traumáticas’, Freud (1920/1996)<br />
localizou o campo <strong>do</strong> trauma como sen<strong>do</strong> o eixo da compulsão à repetição,<br />
consideran<strong>do</strong> que o excesso não vincula<strong>do</strong> psiquicamente se repete no sonho de maneira<br />
irredutível, não distorcida e maciça. O traumático apresenta-se nesse texto como algo<br />
que não passou pela elaboração simbólica, e a pulsão de morte, princípio fundamental<br />
da repetição, é então introduzida por Freud e colocada como distinta da pulsão de vida,<br />
que é da ordem <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer.<br />
Freud esbarrou assim, nas razões fronteiriças da representação, em que se<br />
verifica algo de disruptivo, daquilo que não entra no jogo das associações psíquicas. O<br />
trauma é aborda<strong>do</strong> por Freud como algo da ordem <strong>do</strong> excesso, que rompe qualquer<br />
mecanismo de antecipação ou de proteção no aparelho psíquico. Essa idéia de excesso<br />
reinsere-se como elemento fundamental para discutirmos questões anteriormente<br />
colocadas no <strong>nos</strong>so trabalho, visto que ela constitui sem dúvida tema central para as<br />
“neuroses atuais”. É importante que se coloque em relevo a articulação entre neurose<br />
traumática e neurose atual, para que se estabeleça um parâmetro mais consistente na<br />
abordagem da última.<br />
Freud considerou que, no caso das neuroses traumáticas (resulta<strong>do</strong> de acidentes<br />
que envolvem risco de vida), o excesso traumático não vincula<strong>do</strong> psiquicamente produz<br />
um esta<strong>do</strong> sintomático que se diferencia da histeria, na medida em que dá sinais de uma<br />
“indisposição subjetiva”, assemelhada à melancolia. Adiante, no avanço de suas<br />
considerações sobre o traumático, Freud (1920/1996, p. 43-44) afirma: “(...) um grande<br />
dano físico causa<strong>do</strong> simultaneamente pelo trauma diminui as possibilidades de que uma<br />
neurose se desenvolva (...)”.<br />
Essa afirmação, relativa à corporeidade, apresenta-se como eixo de toda uma<br />
série de conclusões. Em primeira instância, Freud aponta para a dimensão <strong>do</strong> excesso<br />
traumático articula<strong>do</strong> a um ‘dano físico’, frisan<strong>do</strong> a relação entre a corporeidade e a<br />
psicopatologia. As conclusões referidas a essa afirmação estão relacionadas à <strong>nos</strong>sa
pesquisa sobre as neuroses atuais, e <strong>nos</strong> remete aos efeitos da sintomatologia orgânica<br />
na vida psíquica.<br />
Toman<strong>do</strong> aqui o primeiro ponto, o estu<strong>do</strong> das neuroses atuais levou-<strong>nos</strong> a pensar<br />
o problema <strong>do</strong>s excessos em justaposição aos avanços <strong>do</strong> pensamento de Freud.<br />
Procura-se conceber, diante de tal evolução teórica, a questão <strong>do</strong> fator “atual” como um<br />
excesso não vincula<strong>do</strong>, traumático, ao la<strong>do</strong> das patologias e <strong>do</strong>s movimentos clínicos<br />
circunscritos ao campo da repetição. Concebemos, nesse contexto, o excesso traumático<br />
como o fator atual por excelência, onde se localiza o campo da pulsão de morte e <strong>do</strong>s<br />
efeitos a ela subjuga<strong>do</strong>s.<br />
Essa leitura está condicionada pelas perspectivas de recontextualização <strong>do</strong> termo<br />
“atual”, visto que sua caracterização inicial, colada simplesmente à idéia de um presente<br />
sexual e objetivo, vai sen<strong>do</strong> revista, conforme procuramos demonstrar anteriormente.<br />
Nesse contexto, a neurose “atual” se revela não mais como algo simplesmente <strong>do</strong><br />
“presente”, conforme se pensou a respeito <strong>do</strong> coito interrompi<strong>do</strong>, mas como uma<br />
presentificação, ligada a fatores que se afirmam pela categoria <strong>do</strong> traumático, <strong>do</strong> ponto<br />
de vista <strong>do</strong> além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer. O corpo aparece aqui, nesse contexto, como<br />
reduto primordial <strong>do</strong> traumático, onde se des<strong>do</strong>brariam possivelmente patologias<br />
orgânicas, essencialmente vinculadas com essa questão <strong>do</strong> além <strong>do</strong> princípio de prazer,<br />
conforme se verifica na neurose atual.<br />
Car<strong>do</strong>so (2002), no trabalho “Violência, <strong>do</strong>mínio e transgressão” introduz o<br />
termo “transgressão pulsional”, o qual parece-<strong>nos</strong> importante na abordagem dessas<br />
questões. A palavra transgressão é utilizada por Car<strong>do</strong>so (ibid.) num senti<strong>do</strong> que se<br />
encontra no campo da pulsão. Car<strong>do</strong>so assinala que, <strong>nos</strong> casos de passagem ao ato e <strong>nos</strong><br />
casos de esta<strong>do</strong>s-limite – <strong>nos</strong> quais se observam quadros melancólicos, angústia de<br />
separação, angústia de intrusão – o que há é uma transgressão pulsional. A angústia de<br />
intrusão, referida ao objeto, aponta para uma ameaça de desvanecimento das fronteiras<br />
egóicas, no “(...) risco de não se poder ligar o excesso pulsional” (ibid., p. 162).<br />
Car<strong>do</strong>so (ibid.) coloca: “A existência dessas vias de passagem incide diretamente <strong>nos</strong><br />
limites entre as duas dimensões <strong>do</strong> pulsional: a exterioridade e a interioridade, fronteira<br />
na qual se constitui a própria pulsão” (p. 166). A autora demonstra ainda que a<br />
transgressão pulsional no terreno egóico se dá num momento específico quan<strong>do</strong> o ego<br />
se vê num ‘esta<strong>do</strong> de desamparo’ diante da angústia de intrusão ou separação, relativa
ao objeto: “Diante da ameaça de separação, de perda <strong>do</strong> amor, há o risco de desamparo,<br />
de passividade ante a invasão <strong>do</strong> outro interno (...)” (p. 162).<br />
Freud aponta para esse desvanecimento das fronteiras egóicas ao tratar das<br />
neuroses atuais: “Constitui ainda um fato inegável que (...), na interferência imprópria<br />
no curso da excitação sexual, ou se esta for desviada de ser elaborada psiquicamente<br />
(...), o ego fica reduzi<strong>do</strong> a um esta<strong>do</strong> de desamparo em face de uma tensão excessiva<br />
(...)”. (ibid., p. 139). Transgressão e trauma assumem, assim, uma relação direta, em que<br />
se verifica fenôme<strong>nos</strong> de desvanecimento psíquico frente ao excesso pulsional que<br />
desponta, poden<strong>do</strong>-se identificar lesões de ordem orgânica ligadas a essa questão <strong>do</strong><br />
traumático.<br />
A questão da neurose atual toma, nessa perspectiva, uma configuração remetida<br />
essencialmente ao além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer. O que se apreende <strong>do</strong> arranjo teórico da<br />
neurose atual é que, lá onde se “cristaliza” a passagem da energia libidinal, o princípio<br />
de prazer passa a não exercer sua <strong>do</strong>minância, visto que, ao invés de ser escoada<br />
psiquicamente, a excitação aumenta, ou seja, há um represamento excessivo de<br />
excitação. O traumático, assim, se articula com o “atual”, de acor<strong>do</strong> com a seguinte<br />
afirmação <strong>do</strong> próprio Freud (1920/1996): “(...) a violência mecânica <strong>do</strong> trauma liberaria<br />
uma quantidade de excitação sexual que, devi<strong>do</strong> à falta de preparação para a ansiedade,<br />
teria um efeito traumático” (p.44).<br />
Esta inferência <strong>nos</strong> remete à teoria <strong>do</strong>s ‘neurônios-chave’ no “Projeto para uma<br />
psicologia científica”, bem como às considerações delineadas a partir de estu<strong>do</strong>s<br />
relativos às neuroses atuais. Na articulação desta inferência com os “neurônios-chave”,<br />
podemos concluir que a liberação excessiva da energia – quan<strong>do</strong> da lembrança <strong>do</strong><br />
objeto hostil na experiência da <strong>do</strong>r 20 – não sen<strong>do</strong> abarcada pelo trabalho de elaboração e<br />
escoamento psíquico, ou da satisfação pelo princípio de prazer, é então descarregada no<br />
sistema somático, justamente por seu caráter excessivo, liga<strong>do</strong> ao traumático,<br />
comprometen<strong>do</strong> as diversas funções orgânicas, como se os órgãos inter<strong>nos</strong> fossem os<br />
únicos meios de “descarga” das excitações. Aponta-se assim o problema da <strong>do</strong>r e <strong>do</strong><br />
trauma como elementos cruciais para o entendimento dessas questões.<br />
20 FREUD, S. (1895a/1996). Projeto para uma psicologia científica. In: Obras Completas, vol. I. Rio de<br />
Janeiro: Imago, 1996.
O traumático na dinâmica psíquica produz ainda outros efeitos quan<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
surgimento de uma lesão corporal. Retoman<strong>do</strong> a frase de que “(...) um grande dano<br />
físico causa<strong>do</strong> simultaneamente pelo trauma diminui as possibilidades de que uma<br />
neurose se desenvolva (...)”, percebe-se que Freud aponta para o fato de que o dano<br />
físico liga<strong>do</strong> ao trauma promove, em contrapartida, um efeito na distribuição da libi<strong>do</strong>,<br />
levan<strong>do</strong>-a a um investimento narcísico a partir <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong>ente, produzin<strong>do</strong> um<br />
rearranjo das organizações egóicas e afastan<strong>do</strong> contingencialmente o sujeito de um<br />
quadro psiconeurótico, ou melancólico. Freud (ibid.) então conclui:<br />
“(...) por outro la<strong>do</strong>, o dano físico simultâneo, exigin<strong>do</strong> uma hipercatexia<br />
narcisista sobre o órgão prejudica<strong>do</strong>, sujeitaria o excesso de excitação. É<br />
também bem conheci<strong>do</strong>, embora a teoria da libi<strong>do</strong> ainda não tenha feito uso<br />
suficiente <strong>do</strong> fato, que distúrbios graves na distribuição da libi<strong>do</strong>, tal como a<br />
melancolia, são temporariamente interrompi<strong>do</strong>s por uma moléstia orgânica<br />
intercorrente (...)” (p. 44).<br />
Freud está, sob esses termos, no terreno <strong>do</strong> além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer, em que<br />
se localizam excessos de excitação que não se vinculam, assumin<strong>do</strong> por um la<strong>do</strong> um<br />
caráter traumático e, por outro la<strong>do</strong> produzin<strong>do</strong>, a partir de uma <strong>do</strong>ença física, uma<br />
sujeição desse excesso e uma redistribuição da libi<strong>do</strong> por meio de um investimento<br />
narcísico a partir <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong>ente. Em meio aos efeitos <strong>do</strong> trauma, o sujeito está<br />
momentaneamente afasta<strong>do</strong> de uma sintomatologia psiconeurótica, bem como de<br />
características que a ela competem.<br />
Também na abordagem das neuroses de guerra e sua relação com a neurose<br />
traumática, Freud aponta esse efeito de recomposição subjetiva. Demonstra que uma<br />
neurose de guerra é uma neurose traumática que inclui um conflito no ego e que coloca<br />
o sujeito num quadro de a<strong>do</strong>ecimento psíquico. Quan<strong>do</strong> há um dano físico, o sujeito não<br />
desenvolve a<br />
neurose, o que coloca contingencialmente em segun<strong>do</strong> plano a<br />
sintomatologia psiconeurótica, mas não exclui a psiconeurose em si. Isso reverbera a<br />
afirmação de Valentim e Mattos (1999) a respeito de que o ser humano troca sem<br />
demora um sofrimento psíquico por um sofrimento físico.<br />
Retoman<strong>do</strong> a questão da articulação entre neurose atual e psiconeurose,<br />
podemos entender que o aparecimento de distúrbios somáticos reais não significa a<br />
impossibilidade de existência da sintomatologia psiconeurótica, ou da associação <strong>do</strong>s<br />
sintomas somáticos com fatores efetivamente psiconeuróticos. O simples fato de num<br />
da<strong>do</strong> momento uma sintomatologia psiconeurótica não se apresentar não exclui
necessariamente a existência de suas características potenciais. Visto que a neurose<br />
atual aparece associada à psiconeurose, podemos hipotetizar a existência de atividade<br />
psíquica <strong>nos</strong> fenôme<strong>nos</strong> psicossomáticos, o que <strong>nos</strong> leva ao distanciamento definitivo<br />
<strong>do</strong> modelo de déficit psíquico tal qual <strong>nos</strong> é apresenta<strong>do</strong> pelas principais teorias que<br />
abordam esse tema na atualidade (Cf. MARTY, 1993).<br />
Diante dessa problemática, remetemo-<strong>nos</strong> aos delineamentos aqui estabeleci<strong>do</strong>s<br />
a respeito da imbricação historicidade/atualidade e da superposição neurose<br />
atual/psiconeurose, trazen<strong>do</strong> a termo as especificações a respeito da relação entre a<br />
cadeia associativa e as quantidades a elas articuladas. Nesse plano, enfoca-se o caráter<br />
determinante <strong>do</strong> movimento das Vorstellungen freudianas a partir das considerações <strong>do</strong><br />
autor, no senti<strong>do</strong> de des<strong>do</strong>brá-las em hipóteses que talvez possam <strong>nos</strong> direcionar a<br />
novas conclusões para o avanço da investigação sobre fenôme<strong>nos</strong> hoje denomina<strong>do</strong>s<br />
“psicossomáticos”.<br />
Como vimos, segun<strong>do</strong> Freud (1895a/1996), não se pode pensar o campo das<br />
excitações, da energia que se impõe como exigência de trabalho psíquico, de maneira<br />
separada <strong>do</strong> campo <strong>do</strong> trilhamento (Bahnung), das conexões representativas e da<br />
própria linguagem. Essa excitação é o condicionante da constituição <strong>do</strong> aparelho de<br />
memória pensa<strong>do</strong> por Freud, visto que é ela que produz o trilhamento. Da mesma<br />
forma, o campo da energia deve ser toma<strong>do</strong> como intrínseco às inscrições de que ela<br />
mesma é capaz, ou seja, os trilhamentos. A idéia de um funcionamento puramente<br />
basea<strong>do</strong> na descarga de excitações é aban<strong>do</strong>nada pelo próprio Freud quan<strong>do</strong> o mesmo<br />
coloca que o aparelho de memória é um aparelho de retar<strong>do</strong> <strong>do</strong> estímulo, e não<br />
simplesmente de resposta reflexa. Isso será confirma<strong>do</strong> <strong>nos</strong> escritos da segunda tópica,<br />
onde Freud não mais se refere ao psíquico <strong>do</strong> ponto de vista simplista e econômico da<br />
descarga, mas <strong>do</strong> ponto de vista de um campo plural de instâncias psíquicas (isso, eu e<br />
supereu), condiciona<strong>do</strong> por um universo de senti<strong>do</strong>, de linguagem.<br />
O que se coloca em pauta é algo de peculiar nesse trilhamento que impede o<br />
escoamento da excitação ao nível da simbolização efetuada pelo trabalho psíquico. Esse<br />
é o motivo pelo qual insistimos na ênfase de uma apreensão <strong>do</strong> fenômeno “atual”<br />
liga<strong>do</strong> à idéia de impedimento no escoamento da libi<strong>do</strong>: a neurose “atual” se localiza<br />
num ponto da cadeia associativa em que a libi<strong>do</strong> foi impedida de escoamento, ou de<br />
elaboração simbólica.
Sain<strong>do</strong>, assim, de uma leitura eminentemente economicista da neurose atual,<br />
convém refletir sobre a importância de sua aglutinação com a psiconeurose e pensar<br />
que algo de muito peculiar deve ocorrer na cadeia associativa para que a excitação não<br />
prossiga na passagem das Vorstellungen, acarretan<strong>do</strong>, num determina<strong>do</strong> ponto,<br />
aumento da tensão corporal, o que poderia resultar em respostas de nível somático<br />
vinculadas essencialmente ao caráter patológico desta conjuntura. Levan<strong>do</strong> em<br />
consideração que a excitação não encontraria nesses termos escoamento e elaboração<br />
simbólica, cabe então indagar que peculiaridade é essa na articulação da cadeia<br />
associativa, dimensionan<strong>do</strong> a relação <strong>do</strong> sujeito com o outro nessas manifestações.<br />
Caberia questionar que pontos da história <strong>do</strong> sujeito não entram na ordem da<br />
condensação e <strong>do</strong> deslocamento quan<strong>do</strong> da incidência de uma neurose “atual”. A partir<br />
disso, frisa-se a importância de se pensar que tipo de relação de alteridade estaria<br />
implicada na ocorrência de fenôme<strong>nos</strong> “psicossomáticos”, ao invés de se tomar pelo<br />
negativo tal problemática 21 .<br />
O pensamento freudiano parece constantemente aberto a novas possibilidades de<br />
compreensão, o que permite a renovação teórica no campo de estu<strong>do</strong> da psicopatologia<br />
humana. No desenvolvimento da teoria psicanalítica percebe-se, portanto, que as<br />
concepções freudianas podem se reconstituir positivamente, aparecen<strong>do</strong> como campo<br />
fecun<strong>do</strong> de reflexões e teorizações. Podemos concluir <strong>nos</strong>so capítulo frisan<strong>do</strong> que a<br />
idéia daquilo que se refere como sen<strong>do</strong> da ordem <strong>do</strong> ‘atual’ nas articulações freudianas é<br />
irremediavelmente reconfigura<strong>do</strong> ao plano <strong>do</strong> além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer. Nele se<br />
localiza o campo <strong>do</strong> trauma liga<strong>do</strong> aos excessos de excitação, à impossibilidade de<br />
ligação no campo das conexões representativas bem como à questão da produção<br />
excessiva de excitação que aparece no fenômeno da neurose ‘atual’. O traumático na<br />
neurose atual constitui justamente esse ponto de irrupção pulsional, que está além <strong>do</strong><br />
princípio <strong>do</strong> prazer, no desvanecimento das fronteiras egóicas e na impossibilidade <strong>do</strong><br />
aparelho psíquico sujeitar o excesso. Parafrasean<strong>do</strong> Car<strong>do</strong>so, os fenôme<strong>nos</strong> da neurose<br />
atual não seriam da ordem daquilo que se representa, mas daquilo que se apresenta.<br />
Nessa direção, <strong>nos</strong> inclinamos a conceber o fenômeno da ‘neurose atual’ como um<br />
21 Esse último comentário faz referência ao modelo de déficit <strong>do</strong> plano representativo, que toma como<br />
eixo fundamental para a explicação da eclosão psicossomática o ponto de vista econômico (Cf. MARTY,<br />
1993).
excesso não vincula<strong>do</strong> que convoca o corpo a responder em determinadas condições<br />
com alterações concretas e lesões observáveis 22 .<br />
A questão da peculiaridade psíquica que promove uma “cristalização” e<br />
aumento da excitação, será articulada no próximo capítulo, onde abordaremos o<br />
problema sob o ponto de vista <strong>do</strong> avanço da teoria psicanalítica, bem como de<br />
perspectivas teóricas que concernem ao estu<strong>do</strong> aqui proposto.<br />
22 Esses remanejamentos teóricos se entrecruzam ainda com a questão relacionada ao ato sexual<br />
vincula<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> Freud à neurose atual. Caberia pensar, levan<strong>do</strong>-se em consideração a existência de tais<br />
atividades sexuais tomadas inicialmente por Freud como “inapropriadas” (coito interrompi<strong>do</strong>,<br />
masturbação excessiva), se não estaria aí presente um ato dito compulsivo, caracteriza<strong>do</strong> especialmente<br />
pela repetição de uma questão fundamentalmente desprazerosa, em que se localizaria algo que escapa ao<br />
princípio <strong>do</strong> prazer. Nesse senti<strong>do</strong>, a pulsão de morte estaria previamente entrelaçada aos sintomas<br />
somáticos, e nós tenderíamos a localizar o ato compulsivo da atividade sexual “insatisfatória” como um<br />
simples co-participante das liberações excessivas de excitação, e não como causa fundamental deste<br />
fenômeno. Essas considerações serão ainda retomadas posteriormente, onde procuraremos introduzir o<br />
pensamento de outros autores, como Ferenczi, Lacan e Torok.
CAPÍTULO III – PERSPECTIVAS E PROBLEMATIZAÇÕES: A<br />
“PSICOSSOMÁTICA” EM QUESTÃO<br />
3.1 Freud e Ferenczi<br />
As teorias primordiais da psicossomática, por nós apresentadas desde os<br />
delineamentos de Groddeck em sua relação peculiar com a psicanálise, teceram<br />
caminhos os mais varia<strong>do</strong>s, os quais visavam constituir pla<strong>nos</strong> específicos de<br />
abordagem “psicossomática”, segun<strong>do</strong> princípios diferencia<strong>do</strong>s. Vimos no pensamento<br />
de Groddeck uma clara apropriação <strong>do</strong> modelo sintomatológico da histeria e uma<br />
isomorfia entre os fenôme<strong>nos</strong> concernentes ao “retorno <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>” e os fenôme<strong>nos</strong><br />
de a<strong>do</strong>ecimento orgânico. Com Alexander, que fundamenta sua crítica ao pensamento<br />
isomórfico centran<strong>do</strong>-se na idéia de uma interferência de ordem emocional no<br />
funcionamento neuro-vegetativo, identificamos um pensamento categorizante no que se<br />
refere ao ponto de vista personalista liga<strong>do</strong> a afecções orgânicas predeterminadas pela<br />
configuração psicológica de cada indivíduo. Na contramão desses <strong>do</strong>is pensamentos, P.<br />
Marty declara uma insuficiência psíquica, característica de um funcionamento<br />
deficitário das “proteções” e <strong>do</strong> “equilíbrio” psicossomático relaciona<strong>do</strong> ao que<br />
denominou “economia psicossomática” (MARTY, 1993).<br />
Basea<strong>do</strong>s no modelo da neurose atual, tanto Alexander quanto Marty<br />
correlacionaram descargas subcorticais <strong>do</strong> sistema neurofisiológico ao funcionamento<br />
psíquico, de forma, contu<strong>do</strong>, fundamentalmente diferenciada. A teoria <strong>do</strong>s perfis de<br />
personalidade delinea<strong>do</strong>s pela escola de Chicago que, como vimos (Cf. VOLICH,<br />
2000), não condizem com o que a prática clínica revela, parece se distanciar<br />
radicalmente da questão freudiana da neurose atual e da problemática fundamental da<br />
neurose propriamente dita no que diz respeito aos processos inconscientes. A teoria de<br />
Freud concerne a uma linha de pensamento que não parece visar explicações <strong>do</strong><br />
aparelho psíquico sob aspectos psicológicos basea<strong>do</strong>s em “perfis de personalidade”,<br />
mas colocar em pauta os embates <strong>do</strong> conflito psíquico humano na civilização, marca<strong>do</strong><br />
pela frustração relativa à renúncia das exigências pulsionais (FREUD, 1930/1996).<br />
De uma forma diferenciada, Marty definiu, por sua vez, o modelo de descarga<br />
psicossomática apoia<strong>do</strong> no princípio de que a riqueza de atividade psíquica “protege” a
saúde física, o que contradiz radicalmente as considerações de Freud sobre as questões<br />
etiológicas das neuroses atuais, e das neuroses em geral.<br />
A psicossomática, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> formalizada pela Escola de Chicago como campo<br />
específico de investigação (ALEXANDER, 1954), encontrou suas referências não<br />
apenas na obra freudiana, mas também nas considerações de um importante autor,<br />
contemporâneo a Freud, que surgiu em meio ao desenvolvimento das idéias<br />
psicanalíticas. Ferenczi, na sua colaboração aos avanços da teoria freudiana, foi o<br />
primeiro psicanalista a falar de “neurose de órgão”, poden<strong>do</strong>-se identificar nisso seu<br />
interesse relativo à dinâmica pulsional que se encontra em jogo em determinadas<br />
manifestações orgânicas (FERENCZI, 1926/1993). Esse termo – “neurose de órgão” –<br />
não se refere a nada mais <strong>do</strong> que a manifestações relativas à neurastenia, bem como à<br />
neurose de angústia, anteriormente circunscritas por Freud ao paradigma da ‘neurose<br />
atual’. É interessante contu<strong>do</strong> notar que Ferenczi não contradiz em nenhum aspecto as<br />
considerações de Freud e, na mesma linha de pensamento, contribui para o avanço<br />
dessas questões, principalmente no que diz respeito às relações entre as neuroses em<br />
geral. Este autor inicia o texto “As neuroses de órgão e seu tratamento” afirman<strong>do</strong> que<br />
“Numerosas <strong>do</strong>enças correntes têm origem psíquica mas manifestam-se por uma<br />
disfunção real de um ou de vários órgãos” (p. 377). Sua visão sobre determina<strong>do</strong>s<br />
movimentos clínicos que atestam uma relação entre o psíquico e o somático, se<br />
circunscreve pelo ponto de vista das conexões entre as neuroses, tal como abor<strong>do</strong>u<br />
Freud. Ferenczi (1926/1993) coloca:<br />
“A psicanálise foi a primeira a demonstrar que uma grande parte <strong>do</strong>s quadros<br />
clínicos ditos neurastênicos era formada por distúrbios puramente psíquicos e<br />
que era possível curá-los por meios psíquicos. Entretanto, após ter elimina<strong>do</strong><br />
to<strong>do</strong>s os esta<strong>do</strong>s suscetíveis de receber uma explicação psíquica, subsistiu um<br />
grupo a que ainda hoje chamamos neurastenia. Os neurastênicos fatigam-se<br />
física e psiquicamente muito depressa, são muito suscetíveis aos estímulos<br />
exter<strong>nos</strong> e sofrem de cefaléias e distúrbios intestinais” (p. 378).<br />
Isso se refere efetivamente às distinções estabelecidas por Freud no que diz<br />
respeito à psiconeurose e à neurose atual (na delimitação entre histeria, neurastenia,<br />
neurose de angústia, etc.). Tais distinções, contu<strong>do</strong>, não excluem a conexão existente<br />
entre esses fenôme<strong>nos</strong>. Ferenczi (ibid.) considera que, para além de uma problemática<br />
no regime sexual, encontram-se fatores diretamente relaciona<strong>do</strong>s a conflitos psíquicos:<br />
“Com efeito, a masturbação representa uma etapa normal <strong>do</strong><br />
desenvolvimento sexual de to<strong>do</strong> ser humano. Só se tornam neurastênicos aqueles
indivíduos que permanecem por tempo demais nessa etapa, aqueles que<br />
continuam pratican<strong>do</strong> a masturbação, muitas vezes de maneira compulsiva,<br />
muito depois de atingida a maturidade. Entretanto, mesmo nesses casos, a<br />
neurastenia não se explica apenas pelo processo físico da masturbação; na grande<br />
maioria <strong>do</strong>s casos, associam-se-lhe processos psíquicos, como a obsessão e o<br />
sentimento de culpa” (p. 378).<br />
Assim, partin<strong>do</strong> das teorias freudianas da sexualidade, Ferenczi chega a dispor o<br />
termo “erotismo de órgão”, atestan<strong>do</strong> a eficácia erótica centrada no prazer retira<strong>do</strong> de<br />
determinadas atividades orgânicas que se estabelecem pela erogeinização de uma<br />
atividade corporal – o prazer, por exemplo, em deglutir, engolir, mastigar, digerir; ou o<br />
prazer da criança por uma alegria “lúdica” obtida pela atividade orgânica. Poderíamos<br />
colocar em pauta, diante disso, a idéia de que o caráter excessivo nesse processo afetaria<br />
o sistema orgânico, e é esse mesmo o pensamento lógico de Ferenczi:<br />
“Algumas pessoas auferem esse prazer orgânico com particular intensidade, às<br />
vezes quase patológica. Não podem reprimir sua excitação em ingerir e seu<br />
prazer na retenção das fezes. A palavra “excitação” já traduz o prazer que se liga<br />
ao processo patológico. Estu<strong>do</strong>s psicanalíticos constataram que precisamente nas<br />
neuroses de órgão esse funcionamento erótico ou lúdico de um órgão pode<br />
adquirir uma importância excessiva, ao ponto de perturbar até sua atividade útil<br />
propriamente dita! Em geral, isso produz-se quan<strong>do</strong> a sexualidade é perturbada<br />
por razões psíquicas” (ibid., p. 380).<br />
No ínterim dessa questão, destacamos também uma importante consideração <strong>do</strong><br />
próprio Freud a respeito da relação entre a neurose atual e o ato masturbatório, o qual<br />
foi por muito tempo defendi<strong>do</strong> por Freud como principal fonte causal para os sintomas<br />
neurastênicos. Contu<strong>do</strong>, no texto “Contribuições a um debate sobre a masturbação”, ele<br />
coloca:<br />
“A masturbação não é nada definitivo – somática ou psicologicamente – não é<br />
um ‘agente’ real, mas simplesmente o nome para certas atividades. Entretanto,<br />
por mais que remontemos atrás, <strong>nos</strong>sa opinião sobre a causação da <strong>do</strong>ença<br />
continuará, não obstante, adequadamente ligada a essa atividade” (FREUD,<br />
1912a/1996, p. 269).<br />
De certa forma, Freud desloca <strong>do</strong> eixo “ato masturbatório” a etiologia<br />
fundamental da neurose atual (neurastenia), dizen<strong>do</strong> que a “masturbação” é o nome que<br />
se dá para certas atividades, não representan<strong>do</strong> um paradigma definitivo para tais<br />
atividades. Na falta de outro, Freud parece permanecer contu<strong>do</strong> com o termo<br />
“masturbação”. Podemos entretanto apontar que essa questão pode ser lida de uma<br />
outra maneira, como algo que se configura pelo plano compulsivo, não estan<strong>do</strong><br />
necessariamente vincula<strong>do</strong> com a masturbação em si, o ato masturbatório strictu sensu,
mas a fatores vincula<strong>do</strong>s essencialmente com a psiconeurose. A masturbação não é um<br />
“agente real”, Freud afirma. Como frisamos no capítulo anterior quan<strong>do</strong> da discussão<br />
sobre as atividades “sexuais” tomadas por Freud como “insatisfatórias”, o autor se volta<br />
para a idéia de masturbação por não poder lançar mão de um termo mais preciso. O<br />
apontamento de Freud acima exposto abre, contu<strong>do</strong>, possibilidades de se pensar a<br />
questão sob o prisma da dimensão erógena que pode assumir determinada parte <strong>do</strong><br />
corpo, ou determina<strong>do</strong> órgão, de maneira que se coloque em pauta a dimensão<br />
excessiva que poderia ser característica dessas patologias. Isso pode ser concebi<strong>do</strong>, <strong>do</strong><br />
ponto de vista da idéia da “masturbação”, como um fazer que não diz respeito<br />
necessariamente ao ato masturbatório strictu sensu, mas a atividades erógenas que,<br />
conforme apontou Ferenczi <strong>nos</strong> trechos acima, extrapolam e excedem os níveis de<br />
prazer. Ferenczi sublinha ali que o recalque dessa experiência de excesso fica<br />
impossibilita<strong>do</strong>, justamente por seu caráter excessivo, o que deve caracterizar<br />
preponderantemente a incidência de uma neurose “atual” (ou neurose de órgão).<br />
Percebe-se no trecho de Ferenczi, assim, a ênfase dada pelo autor à questão <strong>do</strong><br />
excesso, o que condiz diretamente com a linha de pensamento que visa <strong>nos</strong>sa pesquisa<br />
na abordagem dessas questões. No capítulo anterior, procuramos detalhar o conceito de<br />
neurose “atual” <strong>do</strong> ponto de vista de um remanejamento teórico circunscrito à evolução<br />
<strong>do</strong> pensamento de Freud e das concepções psicanalíticas. Chegamos à conclusão de que<br />
esses fenôme<strong>nos</strong> deveriam ser reintroduzi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ponto de vista da segunda teoria das<br />
pulsões, ao além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer, relativamente ao excesso traumático que se<br />
encontra em jogo nessas patologias. Na leitura das considerações de Ferenczi, notamos<br />
a congruência de pensamento entre este e Freud, a partir das articulações que<br />
procuramos aqui estabelecer. A leitura renovada da neurose atual leva<br />
irremediavelmente a colocarmos em pauta o caráter de excesso que se encontra em<br />
algumas psicopatologias e das implicações psíquicas, intrínsecas ao corpo.<br />
Quanto a essa questão da interação corpo-mente, é importante destacar<br />
considerações de Ferenczi a respeito de determinadas manifestações relacionadas a<br />
experiências corporais intensas. Ferenczi (1917/1992) denomina “patoneurose” a<br />
“fixação” da libi<strong>do</strong> num determina<strong>do</strong> órgão, o que se relaciona segun<strong>do</strong> o autor com o
auto-erotismo e com o narcisismo 23 . Uma sensação corporal <strong>do</strong>lorosa pode segun<strong>do</strong> o<br />
autor fixar a libi<strong>do</strong> em um órgão, como por exemplo, uma <strong>do</strong>r de dente. Nela o sujeito<br />
concentra toda a sua cota de libi<strong>do</strong> para obter algum tipo de satisfação. Esses fatores<br />
tomam, contu<strong>do</strong>, dimensões que ultrapassam o princípio de prazer. É preciso sublinhar<br />
que nesse momento <strong>do</strong> texto de Ferenczi (1917/1992)a idéia de uma pulsão de morte<br />
não tinha ainda si<strong>do</strong> elaborada por Freud. Podemos contu<strong>do</strong> salientar que, desde já,<br />
Ferenczi verifica nesses casos uma confluência entre as duas classes de pulsão, em que<br />
se constata uma espécie de ‘masoquismo de órgão’, que o autor denominava “estase da<br />
libi<strong>do</strong> de órgão” (FERENCZI, 1921/1993). O autor, contu<strong>do</strong>, diferencia esses<br />
fenôme<strong>nos</strong> das neuroses atuais (ou neuroses de órgão), nas quais a patologia somática<br />
correspondente seria secundária, e no caso das patoneuroses, a lesão de órgão seria<br />
primária, ou seja, seria o ponto de origem das patoneuroses. Pensamos, entretanto, na<br />
hipótese de esses processos se darem em razões mútuas. Como colocamos acima, a<br />
concepção <strong>do</strong> “além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer” não tinha si<strong>do</strong> ainda desenvolvida quan<strong>do</strong><br />
Ferenczi introduziu essa idéia. Além disso esses fenôme<strong>nos</strong> podem aparecer articula<strong>do</strong>s<br />
entre si, como se articulam psiconeuroses com neuroses atuais. A noção ferencziana de<br />
“estase” da libi<strong>do</strong> de órgão carrega assim uma concepção que leva em conta a<br />
importante interação entre o psíquico e o somático, ponto no qual procuramos<br />
centralizar <strong>nos</strong>sas questões.<br />
No que concerne à ‘neurose de órgão’, é interessante frisar – e nós fazemos<br />
questão de pensar sobre isso – que Ferenczi (1926/1993), ao invés de falar em “neurose<br />
atual” falou em “neurose de órgão”. Já está claro que se trata em Ferenczi da mesma<br />
fenomenologia concernente à neurose atual de Freud. Na leitura <strong>do</strong> texto de Ferenczi,<br />
entretanto, chegamos à conclusão de que este abre mão de pensar a questão <strong>do</strong> ponto de<br />
vista puramente relativo ao ato sexual, tenden<strong>do</strong> a positivar a “neurose de órgão” (ou<br />
neurose “atual”) como uma questão fundamental para a psicanálise. A idéia inicial de<br />
Freud (1895b/1996) de um processo “puramente somático” na neurose atual, a qual,<br />
como vimos, foi superada pelo próprio Freud, é desde já caracterizada por Ferenczi<br />
como infecunda. Como apresentamos acima, o autor considera a interação desses<br />
23 Essa noção de “fixação” da libi<strong>do</strong> de órgão não corresponde à idéia de fixação utilizada por Freud. Este<br />
faz menção especificamente à idéia de desenvolvimento da libi<strong>do</strong>, o qual estaria comprometi<strong>do</strong> por um<br />
contexto neurótico em que a libi<strong>do</strong> permaneceria “fixada” num determina<strong>do</strong> estágio de seu<br />
desenvolvimento (FREUD, 1917b/1996). Aqui, Ferenczi parece se referir à estagnação da libi<strong>do</strong> no<br />
sistema orgânico, algo que se interpõe à sua fluidez psíquica.
fenôme<strong>nos</strong> com a atividade psíquica, o que confirma <strong>nos</strong>sa constatação. No capítulo<br />
anterior, frisamos que Freud parecia, <strong>nos</strong> primórdios de sua teoria, inclina<strong>do</strong> a<br />
estabelecer o divisor de águas necessário para legitimar a investigação de determina<strong>do</strong>s<br />
fenôme<strong>nos</strong> – os psiconeuróticos – como sen<strong>do</strong> <strong>do</strong> interesse direto da psicanálise.<br />
Ferenczi demonstra no texto aqui trabalha<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, que as neuroses “de órgão” são<br />
também <strong>do</strong> interesse fundamental da teoria e da prática psicanalítica. Mais <strong>do</strong> que isso,<br />
poderíamos supor que a preferência pelo termo “neurose de órgão” incide diretamente<br />
no problema da idéia da “atualidade” desses sintomas, ou de sua relação com os<br />
conflitos psíquicos liga<strong>do</strong>s efetivamente a questões históricas. Ferenczi parece retificar<br />
seu mestre de maneira simples e magistral ao abordar esse tema sem ferir seus<br />
princípios, e ao mesmo tempo, colaboran<strong>do</strong> para o avanço de seu entendimento. Tanto<br />
não feriu as idéias de Freud que este último considerou posteriormente, como vimos, a<br />
existência de conflitos psíquicos na neurose “atual” (FREUD, 1925/1996). Essas<br />
considerações constituem uma importância fundamental para <strong>nos</strong>sa pesquisa e para o<br />
estabelecimento de um caminho lógico na questão “psicossomática”, coerentemente aos<br />
princípios psicanalíticos.<br />
Na seqüência de pensamento que procuramos estabelecer por meio de uma<br />
releitura da neurose atual, pudemos perceber que a “superposição” entre a psiconeurose<br />
e a neurose atual leva a concebermos a idéia de uma coalescência e de uma interação<br />
entre conflitos psíquicos e o funcionamento orgânico, e leva também a uma<br />
relativização <strong>do</strong> termo “atual”, no senti<strong>do</strong> de se pensar a descarga corporal atual<br />
vinculada à relação <strong>do</strong> sujeito com o outro na sua história.<br />
No que diz respeito ao campo <strong>do</strong> trauma nessas considerações, apontamos no<br />
capítulo anterior, assim, a necessidade de se pensar o “atual” sob a ótica <strong>do</strong> “além <strong>do</strong><br />
princípio <strong>do</strong> prazer”, em que se concebe a idéia de “trauma” ligada à irrupção de um<br />
excesso, inviabiliza<strong>do</strong> de estabelecer ligação no aparelho psíquico (FREUD,<br />
1920/1996).<br />
Ferenczi aborda o problema <strong>do</strong> trauma em conformidade com a necessária<br />
articulação que se deve estabelecer entre trauma e <strong>do</strong>r. O autor entra nessa questão<br />
colocan<strong>do</strong> o problema sempre de maneira subsumida à experiência <strong>do</strong> sujeito com o<br />
outro. No trauma ferencziano, a impossibilidade de integrar, ou incluir no sistema<br />
psíquico o evento traumático na infância, se estabelece segun<strong>do</strong> a inviabilidade na
tradução da mensagem <strong>do</strong> adulto, que desmente o evento traumático (PINHEIRO,<br />
1995). A teoria elaborada por Ferenczi se centraliza na idéia de que o trauma é<br />
desestruturante, diferentemente <strong>do</strong> complexo de castração (FREUD, 1926/1996), que<br />
inclui as instâncias ideais como recurso indispensável para a estruturação <strong>do</strong> aparelho<br />
psíquico. Pinheiro diz: “O resulta<strong>do</strong>, nesse caso, é uma verdadeira mutilação <strong>do</strong> ego” (p.<br />
66). Diante disso, a questão <strong>do</strong> desvanecimento das fronteiras <strong>do</strong> ego deve ser retomada,<br />
na medida em que, ao re<strong>do</strong>r da experiência traumática, a composição de uma conexão<br />
associativa fica comprometida, ou seja, o movimento de historicização é dificulta<strong>do</strong>.<br />
Knobloch (1998) aborda esses elementos teóricos remeti<strong>do</strong>s à teoria de Ferenczi, que<br />
<strong>nos</strong> chama atenção na articulação entre o trauma, a <strong>do</strong>r, e o excesso excitativo:<br />
“O trauma segun<strong>do</strong> Ferenczi, é o problema da <strong>do</strong>r, da <strong>do</strong>r vinculada à<br />
experiência de morte, <strong>do</strong>r-morte. Dor é a impossibilidade de representação. O<br />
sujeito fica impacta<strong>do</strong> pela presença da morte, ele está “em presença” da morte.<br />
Insisto na expressão “em presença”, pois aí não atua o contraste passa<strong>do</strong>presente-futuro,<br />
está-se diante de uma experiência bruta (de um excesso) que não<br />
foi temporalizada, ou seja, não teríamos aí uma temporalidade historicizada” 24<br />
(p. 112-113).<br />
Pode-se chamar atenção, com isso, para o fato de que a marca <strong>do</strong> trauma não faz<br />
elo com as representações circunscritas ao movimento da cadeia associativa 25 . Esse<br />
ponto aparece como sen<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>nos</strong>so maior interesse, à medida que correlacionamos o<br />
problema da “atualidade” com o excesso traumático na circunscrição desses baliza<strong>do</strong>res<br />
teóricos. A articulação entre a neurose atual e o campo <strong>do</strong> trauma <strong>nos</strong> leva a caracterizar<br />
o excesso traumático como estan<strong>do</strong> situa<strong>do</strong> no entrelaçamento entre o “atual” e o<br />
“histórico”, ou seja, na delimitação daquilo que se articula e daquilo que não se articula<br />
ao nível das representações.<br />
Retoman<strong>do</strong> assim a questão <strong>do</strong> movimento de historicização e das articulações<br />
teóricas entre tais fatores e o campo <strong>do</strong> trauma propriamente dito, procuramos destacar<br />
importantes apontamentos feitos por Freud, a respeito de movimentos clínicos que não<br />
apareciam diretamente no discurso <strong>do</strong> paciente, relativos ao campo da repetição. No<br />
24 Grifo Nosso<br />
25 Faz-se necessária aqui a distinção entre traço, marca e impressão. Conforme Garcia-Roza (1991b), o<br />
traço (eindrücke) é resulta<strong>do</strong> da inscrição, no campo da memória, das impressões relativas às intensidades<br />
corporais. A noção de marca (prägung) designa algo que não se inscreveu e que permanece como pura<br />
intensidade. Como aponta Viana (2003): “Freud se deteve no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s traços porque nesse momento<br />
[primeira tópica] ele estava preocupa<strong>do</strong> com o sistema associativo-representativo. (...). Esses <strong>do</strong>is âmbitos<br />
[traço e marca] coexistem no psiquismo e se Freud priorizou o limite <strong>do</strong> representável na primeira parte<br />
de sua teoria foi para dar conta das psicopatologias de sua época, ou seja, as chamadas psiconeuroses de<br />
defesa, caracterizadas por um sintoma neurótico cuja via de formação é simbólica” (p. 63).
texto “Recordar, repetir , elaborar” (1914a/1996) o autor emitiu seus primeiros<br />
comentários a respeito das manifestações da compulsão à repetição, localizan<strong>do</strong> a<br />
questão das experiências desagradáveis <strong>do</strong> ponto de vista <strong>do</strong> acting out. Certos pontos<br />
da cadeia associativa, inviabiliza<strong>do</strong>s de conexão e remeroração, se manifestam sob a<br />
forma de um ato, não temporaliza<strong>do</strong>, como se a força nele impressa tivesse toda sua<br />
carga centrada na atualidade. Freud diz:<br />
“Aprendemos que o paciente repete ao invés de recordar e repete sob as<br />
condições da resistência. (...) E podemos agora ver que, ao chamar atenção para<br />
a compulsão à repetição, não obtivemos um fato novo, mas apenas uma visão<br />
mais ampla. Só esclarecemos a nós mesmos que o esta<strong>do</strong> de enfermidade <strong>do</strong><br />
paciente não pode cessar com o início de sua análise, e que devemos tratar sua<br />
<strong>do</strong>ença não como um acontecimento <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, mas como uma força atual.<br />
Esse esta<strong>do</strong> de enfermidade é coloca<strong>do</strong>, fragmento por fragmento, dentro <strong>do</strong><br />
campo e alcance <strong>do</strong> tratamento e, enquanto o paciente o experimenta como algo<br />
real e contemporâneo, temos de fazer sobre ele <strong>nos</strong>so trabalho terapêutico, que<br />
consiste, em grande parte, em remontá-lo ao passa<strong>do</strong>” 26 (FREUD, 1914a/1996,<br />
p. 167).<br />
Nessa época Freud ainda não dispunha da idéia de pulsão de morte para localizar<br />
o terreno no qual se dá a compulsão à repetição. É importante frisar, contu<strong>do</strong>, que desde<br />
já Freud chamou atenção para o fato de que esse fator “atual” – que se verifica por uma<br />
presença maciça da força atuante – se localiza efetivamente numa constituição infantil<br />
da relação <strong>do</strong> sujeito com o outro, mesmo que não fosse imediatamente historicizada.<br />
Em 1920, Freud coloca:<br />
“(...) chegamos a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à<br />
repetição também rememora <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> experiências que não incluem<br />
possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram<br />
satisfação, mesmo para impulsos instintuais que desde então foram reprimi<strong>do</strong>s”<br />
(p. 31).<br />
Como colocamos, em meio aos remanejamentos conceituais de sua teoria, Freud<br />
(1920/1996) reintroduz essa questão ao campo <strong>do</strong> além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer.<br />
Verifica-se aí que a experiência infantil, em nada carregada de prazer, é relançada tal<br />
qual uma compulsão quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> (re)encontro com o outro (psicanalista). Aqui, Freud<br />
(ibid.) conclui que essa compulsão não está condicionada pelo recalque nem pelas<br />
forças a ele subjugadas – está condicionada pelos auspícios da pulsão de morte. No<br />
mesmo campo, temos que aquilo que é efetivamente da ordem <strong>do</strong> traumático configura-<br />
26 Grifo Nosso
se como o fator atual por excelência, mas não redunda numa oposição com aquilo que é<br />
da ordem <strong>do</strong> histórico, <strong>do</strong> “passa<strong>do</strong>” freudiano.<br />
Diante dessas considerações, a neurose “atual” não pode mais, em definitivo, se<br />
circunscrever de maneira absoluta na atualidade, visto que o encontro com o outro deve<br />
ser sempre toma<strong>do</strong> como histórico, ainda que sua força atuante se presentifique na<br />
brutalidade da carga traumática atual. A atualidade é nesse senti<strong>do</strong> caracterizada pelo<br />
que há de real nessa presentificação. A excitação que encontra impedimento de fluidez<br />
via cadeia associativa convoca assim o corpo a presentificá-la.<br />
A relação entre trauma, corpo e psiquismo não é contu<strong>do</strong>, simples de resolver. A<br />
questão “psicossomática”, como podemos ver, não constitui um terreno acaba<strong>do</strong>, e está<br />
longe de ser realmente soluciona<strong>do</strong>. A própria palavra “psicossomática” (psique/soma)<br />
se encontra em posição de questionamento, na medida em que se coloca em pauta a<br />
discussão sobre a separação corpo/mente, influenciada pelo dualismo cartesiano<br />
(COTTINGHAM, 1995). Nesse contexto, a “psicossomática” se apresenta como um<br />
campo extremamente passível de indagações, já que introduz para a psicanálise<br />
importantes impasses, visto que esse tema acena para as fronteiras de conhecimento, as<br />
quais se relacionam a outras disciplinas tais como a fisiologia, a biologia, a medicina.<br />
Essas considerações não excluem, entretanto, a perspectiva de se positivar<br />
efetivamente a existência de uma interação corpo-mente <strong>do</strong> ponto de vista da teoria<br />
psicanalítica. Procuramos, assim, na proposta de uma releitura <strong>do</strong> modelo da neurose<br />
atual, estabelecer caminhos que possam talvez servir de parâmetro para confrontarmos<br />
perspectivas diferenciadas no campo “psicossomático” as quais tentam solucionar estas<br />
questões.<br />
A teoria lacaniana, por exemplo, aparece hoje como um campo articula<strong>do</strong> na<br />
pesquisa psicanalítica, e apresenta também na sua constituição teórica uma abordagem<br />
<strong>do</strong>s fenôme<strong>nos</strong> “psicossomáticos”. O pensamento de Lacan segue uma linha de<br />
raciocínio própria a qual, fundamentada nas razões <strong>do</strong> pensamento freudiano, reinsere o<br />
arcabouço teórico psicanalítico ao ponto de vista <strong>do</strong> estruturalismo da linguagem. A<br />
teoria lacaniana será nesse momento <strong>nos</strong>so enfoque, pois se apresenta como uma<br />
perspectiva destacada na abordagem <strong>do</strong> que se denomina hoje “psicossomática”.
3.2 Lacan: cadeia significante, gozo e holófrase<br />
Seguiremos, então, na apresentação da teoria de Lacan para o fenômeno<br />
psicossomático. À guisa de definirmos o campo sobre o qual iremos abordar,<br />
procuraremos tecer um recorte e uma circunscrição <strong>do</strong> pensamento de Lacan, para<br />
possibilitarmos a localização de <strong>nos</strong>sas questões referentes à idéia de uma teorização<br />
“psicossomática”. Dessa maneira, poderemos então enfocar indagações que se remetem<br />
diretamente com o percurso teórico que seguimos até este momento.<br />
Lacan propõe a tese de que o inconsciente é forma<strong>do</strong> de uma estrutura de<br />
linguagem que tem como efeito primeiro o sujeito. O sujeito na teoria lacaniana toma<br />
um lugar peculiar, já que, segun<strong>do</strong> Lacan (1964/1985), o sujeito se constitui a partir da<br />
operação da linguagem.<br />
A tese de Lacan traz à psicanálise uma leitura da teoria freudiana centrada na<br />
idéia de que o inconsciente funciona segun<strong>do</strong> as leis da linguagem, mas não uma<br />
linguagem qualquer – uma linguagem estrutural, que tem na lógica <strong>do</strong> significante sua<br />
principal referência. O estruturalismo lingüistico serviu para Lacan como referência<br />
para que este apontasse a importância de se centrar na linguagem a idéia <strong>do</strong><br />
inconsciente, sob o fato de que a dinâmica psíquica não estaria condicionada por algo da<br />
ordem <strong>do</strong> “instinto”, ou das determinações biológicas, mas a uma lógica que pode<br />
apenas ser concebida na medida em que se entende que o ser humano é um ser habita<strong>do</strong><br />
pela linguagem (LACAN, 1964/1985).<br />
Na sua leitura da obra de Freud, Lacan enfatizou a idéia <strong>do</strong> autor de que a<br />
constituição psíquica está subjugada à categoria da pulsão. No texto sobre “As pulsões e<br />
suas vicissitudes” (1915a/1996), Freud deixa claro que o registro da pulsão não poderia<br />
ser aborda<strong>do</strong> como uma ontologia isolada, mas apreendi<strong>do</strong> por meio <strong>do</strong>s seus<br />
representantes psíquicos. Sob o prisma da inscrição da energia corporal no universo da<br />
representação, Freud constituiu seu campo de estu<strong>do</strong>s, centra<strong>do</strong> na idéia de que o<br />
universo psíquico é um universo inseri<strong>do</strong> no campo da Vorstellung (idéia,<br />
representação). Segun<strong>do</strong> Birman (1993a), o aparelho psíquico de Freud funciona como<br />
incessante interpretação <strong>do</strong> movimento pulsional, sen<strong>do</strong> que o representanterepresentação<br />
(Vorstellungsrepräsentanz) é o que fixa a energia pulsional no campo da<br />
representação (ibid.).
Segun<strong>do</strong> Lacan, tal inscrição pode apenas ser condicionada a partir da relação<br />
com o Outro primordial, o grande Outro, situa<strong>do</strong> na figura materna, já que a energia<br />
pulsional não se inscreve de maneira espontânea, mas quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> encontro da criança<br />
com esse Outro. O Outro para Lacan é caracteriza<strong>do</strong> com lugar a partir <strong>do</strong> qual o sujeito<br />
pode se constituir; não significa uma pessoa, um semelhante, mas um lugar, que<br />
promove a inserção <strong>do</strong> infante no universo da linguagem. O “grande Outro”,<br />
diferencia<strong>do</strong> <strong>do</strong> “pequeno outro” segue, nessa direção, a distinção realizada por Lacan<br />
acerca <strong>do</strong>s três registros que concernem a experiência subjetiva – o registro <strong>do</strong><br />
simbólico, <strong>do</strong> imaginário e <strong>do</strong> real (LACAN, 1955/1985).<br />
Lacan toma o sujeito como “barra<strong>do</strong>” na medida em que não pode ser total, mas<br />
apenas concebi<strong>do</strong> na sua abertura, que convoca o Outro à organização. O sujeito<br />
lacaniano é alguém que não sabe o que diz, que não tem <strong>do</strong>mínio sobre sua fala, um<br />
sujeito descentra<strong>do</strong>, determina<strong>do</strong> pela linguagem, e não “possui<strong>do</strong>r” desta. Do ponto de<br />
vista <strong>do</strong> sujeito, o Outro é quem detém o código da linguagem, é quem a possui. Da<br />
mesma forma, o sujeito não pode se identificar ou se ver no Outro, mas na relação<br />
especular com o pequeno outro (semelhante). Com este, o sujeito se comunica, e pode<br />
imprimir, a partir de sua imagem, uma integralidade, uma unidade “imaginária” através<br />
da qual o sujeito, descentra<strong>do</strong> por princípio, pode se ver a si mesmo e consigo se<br />
relacionar (LACAN, 1955/1985). O registro <strong>do</strong> imaginário se distingue <strong>do</strong> simbólico no<br />
ponto mesmo em que se constata a constituição <strong>do</strong> eu como uma integração a partir da<br />
imagem <strong>do</strong> outro (LACAN, 1936/1990).<br />
O simbólico, por sua vez, é o registro que tem por função primeira delimitar o<br />
lugar no qual o sujeito se localizará nessa relação imaginária com o outro. É a partir <strong>do</strong><br />
simbólico que o sujeito passa a tomar seu lugar como separa<strong>do</strong> <strong>do</strong> pequeno outro e<br />
como captura<strong>do</strong> pelas determinações da linguagem. Na fala, o sujeito está sempre se<br />
remeten<strong>do</strong> ao grande Outro, ainda que se dirija imaginariamente ao um outro<br />
semelhante qualquer (op. cit.). Assim, para além da comunicação entre <strong>do</strong>is, o Outro se<br />
instauraria como alteridade radical, como um terceiro, cuja função principal da operação<br />
simbólica é o significante <strong>do</strong> nome-<strong>do</strong>-pai, aquele que instaura no campo <strong>do</strong> sujeito as<br />
condições de possibilidade para que se efetivem as operações da linguagem. O nome<strong>do</strong>-pai<br />
incide como operação de substituição, condição de metáfora em que, a partir <strong>do</strong><br />
recalque, possibilita a constituição fantasmática como uma resposta ao enigma <strong>do</strong>
desejo – desejo materno como “Outro primordial”, aquele que introduz o circuito<br />
pulsional pela erogeneização <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> infante (LACAN, 1958/1999). Segun<strong>do</strong><br />
Lacan (ibid.), o pai é uma metáfora, que inscreve no campo <strong>do</strong> Outro a Lei, no senti<strong>do</strong><br />
da impossibilidade de incesto. Isso, através da linguagem, possibilita a inserção <strong>do</strong><br />
sujeito na ordem da cultura e o introduz no campo da simbolização, caracterizada pela<br />
articulação e pela amarração entre os elementos significantes.<br />
Essa apresentação da teoria lacaniana <strong>nos</strong> possibilita algumas primeiras<br />
articulações com as idéias de Freud, a partir <strong>do</strong> qual se pôde pensar um sujeito marca<strong>do</strong><br />
pelas determinações <strong>do</strong> inconsciente e das relações de alteridade. O recalque, como<br />
podemos ver, é o baliza<strong>do</strong>r de toda uma constituição psíquica que encontra nas<br />
operações de deslocamento e condensação a possibilidade de satisfação, ainda que<br />
<strong>do</strong>lorosa para a instância egóica ao nível <strong>do</strong> sintoma psiconeurótico. O sintoma<br />
neurótico, como apontamos no primeiro capítulo, é uma tentativa de solucionar um<br />
conflito que se instaura no ego, por meio de operações simbólicas que Freud<br />
caracterizou como condensação e deslocamento e que Lacan, caracterizou como<br />
metáfora e metonímia (LACAN, 1957/1966). A fantasia, retoman<strong>do</strong> o assunto sobre a<br />
incidência <strong>do</strong> significante na experiência humana, é tomada assim como uma construção<br />
subjetiva em resposta e rechaço à questão <strong>do</strong> desejo sexual, como <strong>nos</strong> mostrou o próprio<br />
Freud (1905/1996), ao falar das fantasias de abuso sexual por parte de adultos.<br />
O registro <strong>do</strong> real na teoria de Lacan aparece como conceito que sofreu enormes<br />
reformulações, as quais acompanham a evolução <strong>do</strong> pensamento deste autor. A<br />
concepção de Lacan acerca <strong>do</strong> real concerne ao “inefável”, àquilo que não entra no jogo<br />
das articulações simbólicas delimitadas pelo campo <strong>do</strong> significante (VALAS, 2001). É o<br />
que não foi capta<strong>do</strong> pela estrutura significante. O real constitui a falta primordial de<br />
objeto pulsional, o impossível no campo da satisfação, o fato mesmo de que não há<br />
objeto de satisfação absoluta para a pulsão. O real é aquilo que, <strong>do</strong> objeto, é impossível<br />
de representar, ou simbolizar. Esse real insiste contu<strong>do</strong>, como repetição, à inscrição pelo<br />
representante pulsional, mas também insiste como um “a mais” irrepresentável, um<br />
“resto” que resulta da operação mesma da linguagem (LACAN, 1964/1985).<br />
Ao apresentarmos assim, sucintamente, a teoria lacaniana <strong>do</strong>s três registros,<br />
podemos situar as questões referentes ao que se denomina “fenômeno psicossomático”,<br />
a partir <strong>do</strong> pensamento de Lacan, de maneira que possamos articular e confrontar os
caminhos já traça<strong>do</strong>s em <strong>nos</strong>sa pesquisa em convergência com alguns pontos<br />
demarca<strong>do</strong>s por Freud em sua obra e com apontamentos situa<strong>do</strong>s em <strong>nos</strong>sa dissertação.<br />
Os primeiros apontamentos de Lacan sobre o fenômeno psicossomático<br />
enfatizam a importância de se pensar o auto-erotismo como peça fundamental para se<br />
abordar esse tema. Lacan (1955/1985) frisou, nesse momento, que para pensar estas<br />
patologias se faz necessário levar em consideração a relação narcísica em jogo em<br />
fenôme<strong>nos</strong> como esses, e os abor<strong>do</strong>u como “reações psicossomáticas <strong>do</strong>s órgãos”. Ele<br />
coloca, levantan<strong>do</strong> algumas questões:<br />
“Trata-se de saber quais são os órgãos que entram em jogo na relação narcísica,<br />
imaginária, com o outro onde o eu se forma, bildet. A estruturação imaginária <strong>do</strong><br />
eu se efetua em torno da imagem especular <strong>do</strong> próprio corpo, da imagem <strong>do</strong><br />
outro. Ora, a relação <strong>do</strong> olhar e <strong>do</strong> ser olha<strong>do</strong> envolve justamente um órgão, o<br />
olho, para chamá-lo pelo seu nome. Podem ocorrer aí coisas espantosas. Como<br />
abordá-las, quan<strong>do</strong> reina a maior confusão em to<strong>do</strong>s os temas da psicossomática?<br />
(...) O importante é que determina<strong>do</strong>s órgãos estejam envolvi<strong>do</strong>s na relação<br />
narcísica, visto que ela estrutura ao mesmo tempo a relação <strong>do</strong> eu ao outro e a<br />
constituição <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s objetos. Por detrás <strong>do</strong> narcisismo, vocês têm o autoerotismo,<br />
isto é, uma massa investida de libi<strong>do</strong> <strong>do</strong> interior <strong>do</strong> organismo, <strong>do</strong> qual<br />
direi que as relações internas <strong>nos</strong> escapam tanto quanto a entropia” (p. 125-126).<br />
Tanto quanto sobre entropia, o conhecimento psicanalítico sobre o<br />
funcionamento orgânico escapa, o que não justifica o seu recuo teórico e clínico quanto<br />
a movimentos que deflagram a interação psique-soma. Lacan começava a circunscrever<br />
as questões que concerniam à “psicossomática”, de maneira que se colocasse em pauta<br />
os investimentos “intra-orgânicos”, em jogo no que Freud denominou “auto-erotismo”.<br />
O auto-erotismo é um movimento <strong>do</strong> corpo no qual as pulsões parciais estão separadas<br />
entre si, momento em que não há integração dessas pulsões. O narcisismo, como<br />
colocamos, é um ação psíquica que se adiciona ao auto-erotismo na função de integrar,<br />
a partir <strong>do</strong> investimento <strong>do</strong>s pais, uma unidade corporal que serve de suporte à formação<br />
<strong>do</strong> eu. Nessa direção, Lacan localiza no seminário II a importância de se pensar que tipo<br />
de investimento auto-erótico está em jogo para a irrupção de uma lesão orgânica.<br />
Lacan (ibid.) localiza então:<br />
“Os investimentos intra-orgânicos que na análise se denominam auto-eróticos,<br />
desempenham um papel certamente muito importante <strong>nos</strong> fenôme<strong>nos</strong><br />
psicossomáticos. A erotização de tal ou tal órgão é a metáfora que sobreveio<br />
mais freqüentemente, devi<strong>do</strong> à impressão que <strong>nos</strong> dá a ordem de fenôme<strong>nos</strong> que<br />
se trata <strong>nos</strong> fenôme<strong>nos</strong> psicossomáticos. E a sua distinção entre a neurose e o<br />
fenômeno psicossomático está justamente marcada por esta linha divisória<br />
constituída pelo narcisismo” (p. 126-127).
Lacan enfatiza contu<strong>do</strong> que, tanto quanto as neuroses, as reações<br />
psicossomáticas se encontram além da estrutura narcísica, o que não leva, por outro<br />
la<strong>do</strong>, à isomorfia entre psiconeurose e psicossomática, justamente por estas se<br />
distinguirem das construções psiconeuróticas. Para ele, os fenôme<strong>nos</strong> psicossomáticos<br />
estão “(...) no limite de <strong>nos</strong>sas elaborações conceituais (...)” (ibid., p. 127). Esta<br />
assertiva aponta para os limites teóricos da psicanálise, a qual não abrange o terreno da<br />
fisiologia.<br />
É preciso, a partir disso, delinear tal diferenciação, indagan<strong>do</strong> em que senti<strong>do</strong><br />
tais fenôme<strong>nos</strong> se encontram além da idéia de narcisismo. Na abordagem, portanto, das<br />
considerações <strong>do</strong> seminário II, chega-se à conclusão inicial de que o fenômeno<br />
psicossomático apareceria como um “acidente” no investimento libidinal, um<br />
investimento no próprio corpo que, por sua vertente excessiva, causaria uma lesão real<br />
(CARNEIRO, 1996). Essa caracterização difere <strong>do</strong> sintoma neurótico, que apresenta na<br />
sua própria formação, uma estrutura de linguagem, um endereçamento ao Outro. Cabe<br />
pensar, no caso da lesão de órgão, contu<strong>do</strong>, o que levaria a um excesso de investimento<br />
auto-erótico. Lacan diz nesse momento que “Não se trata de uma relação ao objeto” (p.<br />
127). O autor parece querer frisar que tais manifestações não dizem respeito à libi<strong>do</strong> de<br />
objeto, mas a um investimento puramente auto-erótico, que atinge um campo<br />
desconheci<strong>do</strong> da psicanálise e deflagra os seus limites conceituais: o funcionamento<br />
orgânico.<br />
Mas as idéias de Lacan começaram a tomar maior força quan<strong>do</strong> o mesmo<br />
promoveu, em 1956 27 uma importante articulação entre o estruturalismo e a psicanálise.<br />
Os postula<strong>do</strong>s de Lacan, apoia<strong>do</strong>s em Saussure, Levi-Strauss e Freud, seriam<br />
configura<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ponto de vista <strong>do</strong> plano <strong>do</strong> significante, que envolveria a dinâmica e a<br />
estrutura <strong>do</strong> inconsciente. Verifica-se, nesse contexto, a idéia de que a inscrição da<br />
energia corporal – por meio <strong>do</strong> representante pulsional (Vorstellungsrepräsentanz) – no<br />
universo da representação, tem como condição de possibilidade a operação <strong>do</strong><br />
significante – veiculada pelo encontro com o universo da alteridade. Na leitura <strong>do</strong><br />
pensamento freudiano, Lacan, como vimos, defende que o sujeito é um efeito da<br />
operação <strong>do</strong> significante, um sujeito barra<strong>do</strong>, sob o ponto de vista de que o significante<br />
se estabelece como uma potência de significação, não esgotan<strong>do</strong> em si mesmo, contu<strong>do</strong>,<br />
27 LACAN, J. (1956/1985). O Seminário, livro 3, As psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
a significação. Um significante, sob esses termos, não contém um senti<strong>do</strong> em si mesmo,<br />
mas está sempre remeti<strong>do</strong> a outros significantes, e apenas nessa combinação o senti<strong>do</strong><br />
pode advir. O “senti<strong>do</strong>”, sob esses termos, desliza pela cadeia significante, o que<br />
promove uma abertura dialética no campo <strong>do</strong> sujeito, uma abertura à significação. Para<br />
Lacan (1956/1985, p. 209), “(...) to<strong>do</strong> verdadeiro significante é, enquanto tal, um<br />
significante que não significa nada”. Contu<strong>do</strong>, “(...) é na cadeia <strong>do</strong> significante que o<br />
senti<strong>do</strong> insiste, mas que nenhum <strong>do</strong>s elementos da cadeia consiste na significação de<br />
que ele é capaz nesse mesmo momento”, como definiu Lacan (1957/1966, p. 506) no<br />
texto “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”.<br />
Lacan proporcionou à teoria freudiana elementos para se pensar o aparelho<br />
psíquico sob o ponto de vista das leis da linguagem, promoven<strong>do</strong> no discurso freudiano<br />
uma renovação que, segun<strong>do</strong> o próprio Lacan (1954/1986) constitui-se como um<br />
“retorno” aos postula<strong>do</strong>s fundamentais da psicanálise. A idéia freudiana de que as<br />
representações devem ser concebidas como complexos de impressões associadas entre<br />
si, constituin<strong>do</strong> um universo de conexões intrínsecas, aparecia desde o trabalho de<br />
Freud (1891/1977) sobre afasias, o qual, como vimos, teve uma grande importância para<br />
o desenvolvimento subsequente da psicanálise. Conforme apontamos no primeiro<br />
capítulo, a representação <strong>do</strong> objeto não constitui uma reprodução pura e simples da<br />
coisa, não é, segun<strong>do</strong> Garcia-Roza (1991b), uma representação icônica da coisa, e seu<br />
senti<strong>do</strong> não é da<strong>do</strong> pela coisa, mas pela representação de palavra. Garcia-Roza comenta:<br />
“Isto quer dizer que as Vorstellungen, as representações, sejam elas<br />
representação-palavra ou representação-objeto, remetem-se umas às outras de tal<br />
maneira que formem entre si uma trama ou uma rede de articulações, de sig<strong>nos</strong> –<br />
sig<strong>nos</strong> que na sua função significante remetem a sig<strong>nos</strong> e não a coisas. E isto,<br />
bem antes de Saussure, e muito antes de Lacan” (ibid., p. 42).<br />
A idéia de “cadeia associativa” que, como também apontamos, já aparece no<br />
texto sobre “A psicoterapia da Histeria” (FREUD, 1893/1996) faz sem dúvida toda<br />
referência a esse modelo teórico e parece ter aberto um campo que levou<br />
irremediavelmente à instauração definitiva <strong>do</strong> dispositivo clínico fundamental – a regra<br />
da livre-associação de idéias. A função significante se define pelo fato mesmo de que as<br />
representações não remetam a nenhum referente, mas a outras representações, ponto<br />
fundamental <strong>do</strong> pensamento de Freud, resgata<strong>do</strong> por Lacan a partir <strong>do</strong> pensamento<br />
estruturalista.
No contexto em que se inserem tais postulações, procuramos seguir a rota de<br />
raciocínio que se confere pelo plano das articulações de Lacan. O fenômeno<br />
psicossomático foi novamente aborda<strong>do</strong> em 1964, no seminário XI. Este é um<br />
seminário onde Lacan expôs seu ponto de vista a respeito das especificidades <strong>do</strong> campo<br />
psicanalítico, ao mesmo tempo em que promoveu uma ruptura com determinadas<br />
correntes psicanalíticas (Cf. FELDSTEIN et al, 1997). Nossa questão, que se detém na<br />
problemática introduzida pela idéia de existência de um “fenômeno psicossomático”,<br />
procura voltar-se para os pontos em que este pensa<strong>do</strong>r o articulou, de maneira que<br />
possamos rastrear suas colocações sobre o assunto, em confrontação com os postula<strong>do</strong>s<br />
freudia<strong>nos</strong>.<br />
Em 1964, Lacan define o fenômeno psicossomático como um fenômeno<br />
articula<strong>do</strong> ao significante. E, por meio de uma leitura <strong>do</strong> Vorstellungsrepräsentanz<br />
como campo fundamental da articulação <strong>do</strong>s significantes, define o caminho lógico no<br />
qual se inserem essas manifestações psicossomáticas. Nessa amarração teórica, Lacan<br />
frisa que o campo da sexualidade pode apenas ser concebi<strong>do</strong> como algo atrela<strong>do</strong> ao<br />
significante, na medida em que a sexualidade humana não pode ser definida por meio de<br />
uma lógica biologicista, não se restringin<strong>do</strong> à função da reprodução, muito me<strong>nos</strong> sen<strong>do</strong><br />
por ela determinada. Lacan reverbera que é nas razões <strong>do</strong> deslizamento da cadeia<br />
significante que se pode apreender o que é efetivamente da ordem <strong>do</strong> sexual no humano.<br />
O sintoma neurótico que, para Freud é o substituto da sexualidade recalcada no campo<br />
da representação, para Lacan é o resulta<strong>do</strong> da articulação significante que se instaura a<br />
partir <strong>do</strong> recalque. O sintoma neurótico é para Lacan um significante, na medida em que<br />
se compõe na e pela articulação da linguagem, e apresenta um endereçamento ao Outro.<br />
Para formalizar a idéia de uma articulação significante, Lacan constrói um<br />
matema que circunscreve esse campo pela letra “S”. Denomina “S1” o primeiro<br />
elemento da dupla significante S1 – S2, aquele que funciona como um traço, algo que se<br />
passa ao nível <strong>do</strong> recalque primário, que fixa o campo da pulsão e dá início a uma série<br />
significante, ou seja, inaugura uma nova série de articulações simbólicas para o sujeito.<br />
Dito de outra forma, o significante 1, que representa o sujeito em seu caráter pulsional,<br />
não esgota em si mesmo a possibilidade de significação, e convoca toda uma série<br />
significante, formalizada por Lacan como S2. O Vorstellungsrepräsentanz, denomina<strong>do</strong>
por Lacan (ibid.) como “significante binário”, representa o primeiro par de toda uma<br />
rede de significantes que se articulam entre si e dão movimento à cadeia.<br />
Lacan frisa, contu<strong>do</strong>, a possibilidade de a articulação não se dar desta maneira,<br />
mas de uma outra maneira, que estaria na raiz de alguns fenôme<strong>nos</strong>, inclusive o<br />
“psicossomático”. Nesses termos a dupla significante S1 – S2 se apresentaria<br />
“solidificada”, e não convocaria outros significantes, não se remeteria a outros<br />
significantes. Permanecen<strong>do</strong> solidifica<strong>do</strong>s, esses significantes produziriam patologias<br />
que se circunscrevem num plano diferencia<strong>do</strong> daquelas que encontramos nas<br />
psiconeuroses. Lacan coloca: “Chegaria até a formular que, quan<strong>do</strong> não há intervalo<br />
entre S1 e S2, quan<strong>do</strong> a primeira dupla de significantes se solidifica, se holofraseia,<br />
temos o modelo de toda uma série de casos – ainda que em cada um o sujeito não ocupe<br />
o mesmo lugar” (p. 225).<br />
Assim, Lacan coloca no mesmo patamar fenôme<strong>nos</strong> de delírio psicótico, de<br />
demência e de lesão psicossomática. No caso da psicossomática – <strong>nos</strong>so fundamental<br />
interesse – a lesão orgânica se apresentaria como resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> impedimento da abertura<br />
dialética na relação com o Outro, por não haver deslizamento significante. O<br />
significante articula<strong>do</strong> ao fenômeno psicossomático se apresentaria de maneira absoluta,<br />
como um signo que pudesse esgotar em si mesmo toda a significação.<br />
Para efeito de compreensão acerca da implicação <strong>do</strong> significante nesses<br />
fenôme<strong>nos</strong>, encontramos uma passagem de Pontalis (1981/1988), que talvez possa<br />
ilustrar essa questão. Abordan<strong>do</strong> o tema da reação no contexto <strong>do</strong> sujeito, ele coloca:<br />
“Encontramos na história infantil desses pacientes – uma história pobre de<br />
lembranças e revivescências –, principalmente, palavras proferidas, na maioria<br />
das vezes pela mãe. Esses ditos têm valor de atos. Como veredictos sem<br />
apelação, sentenças recebidas como negações de justiça, eles não são passíveis<br />
de nenhuma recomposição que os relativize e que, ao mesmo tempo, relativize a<br />
imagem e o poder daquele ou daquela que os enuncia. Absolutos, só podem<br />
suscitar, em contrapartida, uma reação. Por isso, não raro vemos sobrevir na<br />
análise desses pacientes um ‘agir’ externo ou somático” (p. 62).<br />
Lacan (1964/1985) aponta então: “Essa solidez, esse apanhar a cadeia<br />
significante primitiva em massa, é o que proíbe a abertura dialética que se manifesta no<br />
fenômeno da crença” (p. 225). Ou seja, o sujeito não responde no nível da construção<br />
fantasmática ao desejo <strong>do</strong> Outro. Este não se apresenta como enigma, mas se impõe ao<br />
sujeito, impedin<strong>do</strong>-o de dialetizar. Lacan defende que o significante se solidifica na<br />
cadeia, impedin<strong>do</strong> o deslizamento e a articulação com outros significantes – o que seria
esulta<strong>do</strong> da dialética <strong>do</strong> sujeito frente ao enigma <strong>do</strong> desejo. A “holófrase” diz respeito<br />
justamente à solidificação <strong>do</strong> par significante S1 – S2 , entre os quais não há intervalo e,<br />
portanto, não há passagem. ‘Holófrase’ designa uma palavra ou uma frase que “diz<br />
tu<strong>do</strong>”, uma palavra absoluta, irredutível 28 . Nesse senti<strong>do</strong>, podemos entender que, a<br />
respeito de uma palavra absoluta que se impõe pelo Outro – já que tu<strong>do</strong> já está dito – o<br />
sujeito nada tem a produzir ou nada tem a dizer.<br />
Segun<strong>do</strong> Carneiro (op. cit.) os significantes holofrasea<strong>do</strong>s se imaginarizam, pois<br />
perdem seu valor simbólico, e tornam-se um signo. Questionamos, contu<strong>do</strong>, o que<br />
levaria à lesão de órgão um significante solidifica<strong>do</strong>, ou “cristaliza<strong>do</strong>”, e se o registro <strong>do</strong><br />
imaginário é suficiente para a explicação dessa ocorrência.<br />
Essa questão <strong>nos</strong> remete ao delineamento que procuramos estabelecer a respeito<br />
de uma visada à leitura da “neurose atual”, conceito que consideramos central em <strong>nos</strong>sa<br />
pesquisa.<br />
A neurose “atual”, como vimos, está relacionada à excitação corporal não<br />
“descarregada”, ou seja, seus sintomas são resulta<strong>do</strong> direto de uma excitação que não<br />
foi psiquicamente escoada ou não passou pela elaboração simbólica, não se articulou a<br />
uma série psíquica. São conseqüências diretas oriundas da excitação que produzem<br />
sintomas corporais concretos. Na linha de pensamento que procuramos seguir, a<br />
questão <strong>do</strong> excesso nesses fenôme<strong>nos</strong> tornou-se crucial, na medida em que focalizamos<br />
algo que não se encontra subjuga<strong>do</strong> ao princípio de prazer, ou ao campo das<br />
elaborações simbólicas.<br />
Assim, procuramos tecer um caminho lógico que pode condicionar uma melhor<br />
compreensão das concepções freudianas. Como vimos no “Projeto para uma Psicologia<br />
científica”, o campo das quantidades aparece para Freud intimamente correlaciona<strong>do</strong><br />
ao campo <strong>do</strong>s trilhamentos (Bahnung) e das representações (Vorstellungen), na medida<br />
em que a imagem mnêmica se constitui como resulta<strong>do</strong> de um complexo associativo de<br />
impressões deixadas pela passagem da excitação no sistema . Conforme também<br />
apontamos – para aqui retomar essas questões – as neuroses atuais estão entrecruzadas<br />
com as psiconeuroses em suas relações etiológicas. Vimos que se faz necessário<br />
questionar até que ponto a neurose atual não estaria também vinculada, de uma forma<br />
28 Na etimologia, “holo” significa “tu<strong>do</strong>”. Holofrase significa, assim, frase ou palavra que se encerra em<br />
si mesma, que “diz tu<strong>do</strong>”.
mais complexa, a questões históricas e à experiência <strong>do</strong> sujeito com o campo da<br />
alteridade. Não podemos pensar esse modelo de descarga corporal, portanto, de<br />
maneira desmembrada de questões “psiconeuróticas”, e <strong>do</strong> campo da historicidade.<br />
A idéia de que algo de peculiar deve ocorrer na articulação das<br />
Vorstellungsrepräsentanzen – como apontamos no segun<strong>do</strong> capítulo – para que a<br />
passagem de excitação se “cristalize” e exceda os níveis de possibilidade de elaboração,<br />
é redefinida a partir <strong>do</strong> momento em que se toma a questão sob o ponto de vista da<br />
cadeia associativa, ou da cadeia significante. A noção de “holófrase” <strong>do</strong> significante,<br />
que produz sua “gelificação” no campo da articulação da linguagem, se remete de<br />
maneira importante a essa questão. Assim, diferentemente <strong>do</strong> sintoma neurótico, o<br />
fenômeno psicossomático não apresentaria uma estrutura de linguagem em si, mas<br />
estaria para Lacan, condiciona<strong>do</strong> por um efeito de linguagem. Lacan localiza o<br />
fenômeno psicossomático, não como um significante, mas como um efeito na indução<br />
significante, no trilhamento que compõe a cadeia associativa. Isso diz respeito, <strong>do</strong> ponto<br />
de vista de Freud, ao escoamento das excitações ao nível da articulação significante e <strong>do</strong><br />
princípio de prazer, ou seja, da sexualidade. A “cristalização” <strong>do</strong> significante seria o<br />
ponto crucial naquilo que apontamos como sen<strong>do</strong> da ordem <strong>do</strong> excesso, <strong>do</strong> “além <strong>do</strong><br />
princípio <strong>do</strong> prazer” no campo da experiência humana – em outras palavras, o<br />
traumático por excelência.<br />
Esse assunto deve ser toma<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, sob o ponto de vista <strong>do</strong> universo<br />
corporal que, como podemos constatar, se acha intrinsecamente vincula<strong>do</strong> com o<br />
psiquismo, na medida em que a experiência subjetiva é condicionada pela participação<br />
da “energia” corporal, aquela que faz exigência de elaboração, de trabalho psíquico,<br />
conforme apontou Freud (1915a/1996) a respeito da pulsão.<br />
O pensamento de Lacan, contu<strong>do</strong>, se centralizou fundamentalmente no caráter<br />
linguareiro <strong>do</strong> inconsciente, ponto em muito critica<strong>do</strong> por autores que trataram da<br />
importância <strong>do</strong> corpo, <strong>do</strong> afeto e das intensidades na dimensão da experiência subjetiva<br />
(Cf. SCHNEIDER, 1993; BIRMAN, 1999). A teoria de Lacan que, sob muitos ângulos,<br />
seguiu a lógica freudiana, foi entretanto efetivada pela noção de gozo, o que apareceu de
certa maneira como uma resposta às críticas sobre essa questão (Cf. BIRMAN,<br />
1993b) 29 .<br />
A noção de gozo se remete à leitura das implicações <strong>do</strong> corpo no contexto das<br />
teorias de Lacan. É importante que façamos aqui uma circunscrição desse conceito, na<br />
medida em que ele se apresenta na teoria lacaniana como fundamental para se abordar<br />
os fenôme<strong>nos</strong> “psicossomáticos”, os quais, passam a ser concebi<strong>do</strong>s como algo que<br />
concerne um gozo corpóreo (WARTEL et al, 1990).<br />
Valas (2001), autor que se volta aprofundadamente para as teorias lacanianas,<br />
localiza a dimensão de excesso característica <strong>do</strong> gozo. Segun<strong>do</strong> ele, o fato de que nem<br />
tu<strong>do</strong> é significante representou justamente a necessidade da introdução da noção de<br />
gozo por Lacan. O gozo, assim, concerne à dimensão <strong>do</strong> real, <strong>do</strong> indizível.<br />
Valas frisa que o próprio Freud, apesar de não ter desenvolvi<strong>do</strong> nenhuma<br />
conceituação mais formal sobre o gozo, percorreu caminhos lógicos que apontaram para<br />
essa dimensão. O autor afirma que “Freud leva a sua reflexão até os <strong>confins</strong> <strong>do</strong> prazer”<br />
(ibid., p. 24). O gozo estaria, nesse aspecto, numa dimensão que ultrapassa o princípio<br />
<strong>do</strong> prazer e se confere essencialmente por aquilo que insiste em não se inscrever<br />
psiquicamente. Em Freud, a palavra gozo (Genuss, no alemão) aparece como aquilo que<br />
está em excesso em relação ao prazer (ibid.). 30<br />
A questão seria retomada por Freud, segun<strong>do</strong> Valas (2001), na abordagem <strong>do</strong><br />
masoquismo primário, o que constitui um campo de reflexões que se inserem no<br />
contexto da noção lacaniana de gozo. No masoquismo, verifica-se o atrelamento<br />
segun<strong>do</strong> Freud (1924) entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, pelo fato de que a<br />
última não pode se manifestar em esta<strong>do</strong> puro. A <strong>do</strong>r é aí sentida como prazer, e Freud<br />
circunscreve o campo <strong>do</strong> masoquismo como sen<strong>do</strong> fundamental para a constituição da<br />
própria sexualidade. A erogenicidade torna-se, por definição, atrelada ao masoquismo e<br />
segun<strong>do</strong> o autor, é essencial para a vida a coalescência entre as duas classes de pulsões<br />
(vida e morte). Dessa forma, afirma que<br />
“A libi<strong>do</strong> tem a missão de tornar inócuo o instinto destrui<strong>do</strong>r e a realiza<br />
desvian<strong>do</strong> esse instinto, em grande parte, para fora no senti<strong>do</strong> de objetos <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> externo. O instinto é então chama<strong>do</strong> de instinto destrutivo, instinto de<br />
29 Retomaremos essa discussão posteriormente, visto que traz à psicanálise o problema da separação<br />
corpo/mente, o que iremos abordar como problematização para o próprio campo psicanalítico.<br />
30 Isso se localiza no texto sobre o Homem <strong>do</strong>s ratos, onde Freud (1909) parece utilizar a palavra gozo<br />
numa denotação circunscrita a algo que ultrapassa as fronteiras <strong>do</strong> prazer (Cf. VALAS, 2001).
<strong>do</strong>mínio ou vontade de poder. Uma parte <strong>do</strong> instinto é colocada diretamente a<br />
serviço da função sexual, onde tem um papel importante a desempenhar. Esse é o<br />
sadismo propriamente dito. Outra porção não compartilha dessa transposição<br />
para fora; permanece dentro <strong>do</strong> organismo e, com auxílio da excitação sexual<br />
(...), lá fica libidinalmente presa. É nessa porção que temos de identificar o<br />
masoquismo original, erógeno” (FREUD, 1924/1996, p. 181).<br />
Valas (ibid.) discorre sobre essa idéia de “gozo” em Freud, articulan<strong>do</strong>-a com o<br />
pensamento de Lacan:<br />
“Ao longo da sua obra, Freud mostra como são complexas as relações entre a<br />
satisfação, o prazer e outras sensações que os excedem em força e em<br />
intensidade. São os prazeres extremos, a alegria intensa, o júbilo, o êxtase ou a<br />
volúpia, para os quais ele usa em geral o termo Genuss (traduzi<strong>do</strong> como gozo),<br />
mais <strong>do</strong> que Lust (prazer), e sublinha o seu caráter de excesso em relação ao<br />
princípio de prazer, cuja barreira é atravessada, nesses casos. Essas<br />
manifestações podem ser sentidas como sensações <strong>do</strong>lorosas, in<strong>do</strong> até a repulsa,<br />
o asco ou o horror, na medida em que o sujeito não consegue destacar-se delas.<br />
Sem dúvida alguma, há na elaboração da pulsão de morte uma abordagem <strong>do</strong><br />
gozo que Freud não conceitua, mas cujo campo ele delineia, traçan<strong>do</strong> a fronteira<br />
que o situa mais-além <strong>do</strong> prazer. É isso que constituirá o ponto de partida de<br />
Lacan para definir o gozo” (p. 25).<br />
O gozo na teoria lacaniana se apresenta, assim, em três vertentes: gozo fálico,<br />
gozo como “resto”, que ele definiu como “mais gozar”, e gozo <strong>do</strong> Outro.<br />
O gozo “fálico” se circunscreve por sua vertente de prazer. É, segun<strong>do</strong> Lacan,<br />
aquilo que, <strong>do</strong> gozo, faz ligação, ou seja, se articula ao nível <strong>do</strong>s representantes<br />
psíquicos da sexualidade. É o campo de regulação <strong>do</strong> gozo, aquilo que o fixa gozo ao<br />
nível <strong>do</strong> recalque e que o rearticula ao campo das conexões significantes. É também o<br />
gozo tal qual encontra-se <strong>nos</strong> sintomas neuróticos, a satisfação retirada pela “descarga”<br />
da energia pulsional pela via <strong>do</strong> sintoma e, portanto <strong>do</strong> significante mesmo. Esse gozo<br />
participa das ligações no campo simbólico e tem como registro fundamental de<br />
significação o falo, o significante que instaura a falta no sujeito e que o introduz no<br />
campo <strong>do</strong> desejo. O falo como significante tem segun<strong>do</strong> essa vertente a função de<br />
regular o gozo, na medida em que o torna algo passível de elaboração ao nível das<br />
significações (LACAN, 1960/1966).<br />
O gozo como “resto” (mais gozar) é aquilo que se situa ao nível <strong>do</strong> registro real,<br />
aquilo que, da operação da linguagem, permanece indizível, que não se inscreve e que<br />
não se localiza no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer. É representa<strong>do</strong> por Lacan como<br />
objeto a, objeto para sempre perdi<strong>do</strong>, impossível, que escapa à articulação significante,<br />
mas que, em contrapartida, a sustenta, a põe em movimento e se encontra na
causalidade <strong>do</strong> desejo. O objeto a é, para Lacan, algo que não se confunde com o<br />
desejo, não é o objeto <strong>do</strong> desejo, mas sua causa, um mais-gozar que dá sustentação ao<br />
movimento <strong>do</strong> desejo, da cadeia significante (LACAN, 1964/1985).<br />
O gozo <strong>do</strong> Outro, terceira categoria de gozo e principal para a abordagem <strong>do</strong>s<br />
fenôme<strong>nos</strong> “psicossomáticos”, se caracteriza por um tipo de gozo que tem como reduto<br />
o corpo próprio <strong>do</strong> sujeito. Valas (op. cit.) define:<br />
“O gozo <strong>do</strong> Outro é o <strong>do</strong> corpo. O corpo goza de si mesmo. Mas, para que a vida<br />
seja possível, as tensões corporais devem ficar em limites que dependem da<br />
homeostase <strong>do</strong> corpo próprio, modulan<strong>do</strong> a lei natural <strong>do</strong> prazer. Nesse registro,<br />
to<strong>do</strong> excesso de tensão participa <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> Outro, que se manifesta como<br />
sofrimento, desde a <strong>do</strong>r “refinada” até as <strong>do</strong>res lancinantes das grandes<br />
patologias orgânicas. As variações da <strong>do</strong>r em intensidade e duração são mais<br />
tributárias da subjetividade <strong>do</strong> que traduzem a realidade da patologia em causa.<br />
Essa participação subjetiva mostra como a <strong>do</strong>r é, antes de tu<strong>do</strong>, como enfatizava<br />
Freud, manifestação de auto-erotismo, antes de ser sinal de lesão corporal” (p.<br />
46).<br />
Não <strong>nos</strong> cabe aqui adentrar de maneira mais profunda no conceito de gozo, visto<br />
que ele não se traduz como questão fundamental de <strong>nos</strong>sa pesquisa, mas aparece como<br />
elemento importante para se abordar o fenômeno psicossomático no pensamento de<br />
Lacan.<br />
Retoman<strong>do</strong>, portanto, essa questão, podemos delimitar, sob o ponto de vista da<br />
teoria lacaniana, o universo no qual se situam os fenôme<strong>nos</strong> “psicossomáticos”.<br />
Segun<strong>do</strong> esta abordagem, o significante “gelifica<strong>do</strong>” ocasiona um gozo impossibilita<strong>do</strong><br />
de se inscrever psiquicamente. Esse significante não remete a nenhuma significação,<br />
pois está impedi<strong>do</strong> de se ligar a outros.<br />
Segun<strong>do</strong> Carneiro (op. cit.), esses fenôme<strong>nos</strong> estão diretamente liga<strong>do</strong>s ao<br />
trauma, visto que eles são difíceis de se diferenciar <strong>do</strong> próprio trauma. A autora expõe,<br />
por outro la<strong>do</strong>, que o sintoma neurótico resulta de um esvaziamento <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> corpo<br />
pela inscrição fálica, limitan<strong>do</strong> o gozo ao que Freud denominou “zonas erógenas”, ou<br />
seja, sexualizan<strong>do</strong>-o. Ela coloca: “O gozo <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong> pelo significante torna-se fálico<br />
(...).” (p. 277). Essa idéia se articula diretamente com o que expomos a respeito da<br />
confluência que ocorre entre as pulsões de vida e de morte no masoquismo erógeno. O<br />
corpo, sen<strong>do</strong> toma<strong>do</strong> pelas leis <strong>do</strong> significante, é esvazia<strong>do</strong> em sua dimensão de gozo.<br />
No fenômeno psicossomático, em contrapartida, verificar-se-ia um “retorno <strong>do</strong><br />
gozo ao corpo fora da regulação fálica” (ibid., p. 277). Tratar-se-ia de um gozo <strong>do</strong><br />
corpo, um gozo que estrapola as possibilidades de ligação psíquica, disruptivo,
absoluto, além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer – o qual se poderia verificar na sua articulação<br />
com o campo <strong>do</strong> trauma. O corpo é toma<strong>do</strong> na sua radical alteridade, como Outro<br />
absoluto, não se bastan<strong>do</strong> como corpo erógeno. Não seria, assim, um gozo regula<strong>do</strong> pela<br />
Lei da castração, ou pelo falo, mas um gozo que ultrapassaria todas as barreiras da<br />
satisfação parcial, e assumiria um caráter traumático – excesso que se estipula pela<br />
transgressão <strong>do</strong> corpo como gozo <strong>do</strong> Outro.<br />
Constata-se clinicamente, de acor<strong>do</strong> com alguns autores lacania<strong>nos</strong> (Cf.<br />
WARTEL et al, 1990), a existência de experiências históricas <strong>do</strong> sujeito que não<br />
apareceriam remetidas ao campo da significação, da articulação significante, mas seriam<br />
“diretamente inscritas no corpo” (CARNEIRO, op. cit., p. 277). Essas marcas<br />
assumiriam a característica de um significante “gelifica<strong>do</strong>” e se “cristalizariam”,<br />
assumin<strong>do</strong> um caráter traumático. Segun<strong>do</strong> Valas, em “Horizontes da psicossomática”<br />
(1990, p. 83): “Tu<strong>do</strong> se passaria de certo mo<strong>do</strong> como se o sujeito sentisse a imposição<br />
sobre si das significações confusas <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> Outro que, à força de se repetir,<br />
causaria trauma”.<br />
Cabe indagar o que significa essa afirmação de que algo é “diretamente inscrito<br />
no corpo”. Entendemos que essa idéia diz respeito ao fato de o significante não fazer<br />
ligação a nenhum outro significante, não haven<strong>do</strong> inscrição psíquica. Em outras<br />
palavras, a energia impedida de escoamento psíquico se cristaliza e encontra, pela via da<br />
tensão corporal, seu destino possível.<br />
Tal perspectiva se articula com a seqüência de pensamento que procuramos<br />
estabelecer no capítulo II e no início <strong>do</strong> capítulo III acerca da ligação entre as<br />
especificidades das reações somáticas na neurose “atual” e o campo que se circunscreve<br />
pela categoria <strong>do</strong> traumático. Como vimos, a marca <strong>do</strong> trauma, que não faz elo com as<br />
representações circunscritas ao movimento da cadeia associativa, pode promover um<br />
“represamento” e um excesso nas excitações, e pode tomar o corpo destino possível. Em<br />
outras palavras, concebe-se a existência de marcas que, ao invés de chamarem à<br />
significação, assumiriam um valor de trauma e ocasionariam um excesso<br />
impossibilita<strong>do</strong> de ligação. O problema da <strong>do</strong>r, que como vimos aparece no “Projeto” de<br />
Freud circunscrito à idéia de neurônios “secretores” (neurônios-chave), já indicava<br />
naquela época a importância de se enfatizar a liberação excessiva de excitação, a qual se<br />
articula irremediavelmente com o campo <strong>do</strong> trauma tal como retoma<strong>do</strong> por Freud
(1920/1996) em “Além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer”, e com o campo <strong>do</strong> gozo, tal como<br />
introduzi<strong>do</strong> por Lacan.<br />
A partir dessas amarrações teóricas, inclinamo-<strong>nos</strong> a avançar nesses temas, de<br />
mo<strong>do</strong> que possamos estabelecer articulações teóricas que possam configurar-se como<br />
fecundas para <strong>nos</strong>sa questão. Percebemos no meio psicanalítico a existência noções<br />
conceituais que perpassam e se entrecruzam com o campo <strong>do</strong> qual estamos tratan<strong>do</strong>. A<br />
noção de trauma aparece também, de maneira bastante trabalhada, em textos de<br />
importantes autores como Ferenczi e outros que remeteram suas investigações a partir<br />
<strong>do</strong> pensamento <strong>do</strong> mesmo. Questionamos, nesse ínterim, se as idéias aqui apresentadas<br />
não podem ser aproximadas da noção de “Incorporação” e de “Cripta” delineadas por<br />
Abraham e Torok (1995), que seguem o pensamento de Ferenczi, <strong>nos</strong> textos “A Tópica<br />
Realitária” e “Luto ou Melancolia”.<br />
Procuraremos assim, introduzir um delineamento da idéia de incorporação e de<br />
cripta em Abraham e Torok para que possamos estabelecer algumas articulações ao<br />
nível de <strong>nos</strong>sa pesquisa. A seguir, serão expostas essas noções, já que elas dizem<br />
respeito diretamente ao problema <strong>do</strong> trauma na teoria psicanalítica.<br />
3.3 “Incorporação” e “Cripta” em Abraham e Torok: aproximações<br />
Antunes (2003) define a “cripta” como um “(...) enquistamento ou enterro de<br />
uma determinada situação vivida como traumática” (p. 55). Para a melhor definição<br />
deste conceito, faz-se necessário reportar-se à distinção entre “introjeção” e<br />
“incorporação”, temas centrais desse campo teórico.<br />
O conceito de introjeção aparece nas teorias de Ferenczi como um <strong>do</strong>s<br />
principais no seu pensamento, se não o principal. A introjeção se define, segun<strong>do</strong><br />
Ferenczi (1912/1991), em primeira instância, como um “alargamento” <strong>do</strong> ego pela<br />
inclusão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s objetos no ego e pela extensão <strong>do</strong> interesse auto-erótico para o<br />
exterior. Com essa idéia, o autor começa desde então a delinear o que Freud chamou de<br />
narcisismo. Para o autor, introjetar é tu<strong>do</strong> o que o aparelho psíquico sabe fazer<br />
(FERENCZI, 1909/1991), e é só a partir disso que se pode conceber o universo de<br />
linguagem. Pinheiro (1995) aponta: “(...) unicamente através da introjeção é que um
senti<strong>do</strong> torna-se passível de ser apropria<strong>do</strong>. Dito de outra maneira, é a introjeção que,<br />
pela inclusão <strong>do</strong> objeto, começa a povoar de representações o aparato psíquico” (p. 45).<br />
Segun<strong>do</strong> a autora, a introjeção é o processo através <strong>do</strong> qual se dará a inserção <strong>do</strong> sujeito<br />
no universo de linguagem. Mais <strong>do</strong> que isso, o objeto é defini<strong>do</strong> por ela como o suporte<br />
<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> que será introjeta<strong>do</strong>. Assim, frisa-se que a introjeção não é <strong>do</strong> objeto, mas <strong>do</strong><br />
senti<strong>do</strong> que ele suporta:<br />
“(...) trata-se de trazer para a esfera psíquica os sentimentos <strong>do</strong> objeto, este<br />
funcionan<strong>do</strong> apenas como suporte das representações já investidas que traz<br />
consigo. Essas representações carregadas de senti<strong>do</strong> possibilitam ao aparelho<br />
psíquico apropriar-se <strong>do</strong> que lhe falta: o senti<strong>do</strong>. Se tomarmos como exemplo a<br />
introjeção <strong>do</strong> seio, o fundamental neste processo será a inclusão da noção de<br />
prazer ou desprazer deste seio em amamentar. O objeto seio nada mais é que<br />
suporte <strong>do</strong>s sentimentos 31 , <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s que traz consigo, estes sim, essenciais”<br />
(p. 46).<br />
A incorporação se apresentaria na subjetividade como algo que se passa, ao nível<br />
<strong>do</strong> ego, na sua relação com o objeto. Nessa ocorrência, o objeto, liga<strong>do</strong> à experiência<br />
traumática, fica impossibilita<strong>do</strong> de se incluir, de se articular psiquicamente, e aparece de<br />
forma maciça, não convocan<strong>do</strong> o campo das representações para sua inscrição. Há nesse<br />
ponto uma ausência de introjeção que Torok (1968/1995) denominou incorporação (o<br />
que Ferenczi denominava “introjeção <strong>do</strong> agressor”). Torok enfatiza que a introjeção<br />
propriamente dita não aconteceu, ficou impossibilitada. Ou seja, a instauração <strong>do</strong><br />
senti<strong>do</strong> que se inscreveria numa determinada ocorrência referida a um objeto, não<br />
funcionaria. O trauma adviria desse impedimento na <strong>do</strong>tação de senti<strong>do</strong> referi<strong>do</strong> ao<br />
objeto hostil (segun<strong>do</strong> Ferenczi, “agressor”). Pinheiro (op. cit.) esclarece:<br />
“A introjeção não se realiza ou porque o objeto de interesse desapareceu, ou<br />
porque o objeto não possui as condições necessárias para servir de media<strong>do</strong>r. E é<br />
aí, neste último, que reside a própria causa <strong>do</strong> trauma. O mecanismo de<br />
incorporação <strong>nos</strong> dá a dimensão dramática <strong>do</strong> que é, num determina<strong>do</strong> momento,<br />
a não realização da introjeção, a interrupção neste processo” (p. 53).<br />
A fantasia da incorporação seria, segun<strong>do</strong> Abraham e Torok, uma recusa da<br />
introjeção. Ao invés de introjetar o objeto perdi<strong>do</strong>, dan<strong>do</strong>-lhe senti<strong>do</strong> e introduzin<strong>do</strong>,<br />
nesse ponto, a metaforização desse objeto, o que há é uma incorporação maciça desse<br />
objeto (hostil), por fantasia, não haven<strong>do</strong> rechaço de senti<strong>do</strong> para tal, ou seja, não<br />
haven<strong>do</strong> recomposição no campo da linguagem, e permanecen<strong>do</strong> indizível. Pinheiro<br />
(ibid,) aponta:<br />
31 Grifo Nosso
“Se o processo de introjeção inicia<strong>do</strong> não pode ir até o fim, o fantasma da<br />
introjeção (a incorporação), por seu caráter mágico e instantâneo, acalmará os<br />
perigos possíveis de uma não-introjeção.<br />
(...) Não se trata também <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong> da histérica que é suscetível de lembrança.<br />
A incorporação seria, segun<strong>do</strong> Torok, algo que é nomea<strong>do</strong>, mas proibi<strong>do</strong> de ser<br />
dito. Ferenczi dirá mesmo que não existe nenhum traço <strong>do</strong> trauma, a<br />
incorporação ou a identificação com o agressor é aquilo que ocupa o lugar dessa<br />
não inscrição. A proposta de Torok é de que a incorporação se distingue da<br />
introjeção pelo fato de não consistir num processo, mas num fantasma cuja<br />
característica primeira é o imediato de sua realização 32 . De alguma maneira<br />
mantida em segre<strong>do</strong>, nela o objeto não traz consigo os senti<strong>do</strong>s que enriquecem o<br />
ego” (p. 53).<br />
Assim, a incorporação tem por principal característica o fato de que algo foi<br />
posto em realização na relação com o outro, há um imediato de realização, que não<br />
passou pelo recalque, não foi interdita<strong>do</strong>, mas “sepulta<strong>do</strong>” e manti<strong>do</strong> em segre<strong>do</strong>. Tal<br />
realização pode apenas permanecer enquistada, e é a partir dessa idéia, ligada à<br />
incorporação, que Abraham e Torok desenvolvem sua noção de cripta.<br />
Os autores dirão sobre a incorporação:<br />
“Este é o caso apenas para as perdas [narcísicas] que não podem – por alguma<br />
razão – se confessar enquanto perdas. Nesse único caso, a impossibilidade da<br />
introjeção chega a proibir até que se faça uma linguagem com sua recusa <strong>do</strong> luto,<br />
a proibir que se signifique que se está inconsolável. Na falta dessa saída de<br />
socorro, só resta opor ao fato da perda uma denegação radical, fingin<strong>do</strong> não ter<br />
ti<strong>do</strong> nada a perder. Não se trata mais de relatar diante de um terceiro o luto de<br />
que se é porta<strong>do</strong>r. Todas as palavras que não puderam ser ditas, todas as cenas<br />
que não puderam ser rememoradas, todas as lágrimas que não puderam ser<br />
vertidas, serão engolidas, assim como, ao mesmo tempo, o traumatismo, causa<br />
da perda. Engoli<strong>do</strong>s e postos em conserva. O luto indizível instaura no interior<br />
<strong>do</strong> sujeito uma sepultura secreta”(ABRAHAM & TOROK, 1972/1995, p. 249).<br />
A cripta se define como essa sepultura que “esconde” o indizível, e que não faz<br />
elo no campo das representações:<br />
“Seja lá como for, esse conteú<strong>do</strong> tem a particularidade de não poder se exibir sob<br />
a forma de palavras. No entanto, é de palavras que se trata, precisamente. E<br />
incontestavelmente no ventre da cripta se mantêm indizíveis, semelhantes às<br />
corujas numa vigilância sem descanso, palavras enterradas vivas. O fato<br />
realitário consiste nessas palavras cuja existência oculta se atesta em sua<br />
ausência manifesta. O que lhes confere realidade é serem desafetadas de sua<br />
função costumeira de comunicação. Por quê? Provavelmente porque, em<br />
oposição às palavras <strong>do</strong> histérico, que designam desejo pelo interdito, aquelas<br />
adquiriram, de algum mo<strong>do</strong>, um valor de positividade” (ABRAHAM &<br />
TOROK, 1975/1995, p. 240).<br />
Antunes (op. cit.) aponta então que “No lugar da palavra que dá o senti<strong>do</strong>, o que<br />
se vê é uma proliferação de significantes que têm por finalidade obstruir o acesso ao<br />
32 Grifo Nosso.
senti<strong>do</strong> oculta<strong>do</strong>.” Nesse plano, a cripta se definiria como “(...) um obstáculo à<br />
emergência <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> ‘enterra<strong>do</strong>’” (p. 99).<br />
Em que ponto dessa construção teórica não poderíamos localizar a idéia de<br />
holófrase, como aquilo que, no limiar da significação, diz tu<strong>do</strong>, e que contém em si toda<br />
a carga da experiência traumática? As palavras que, no plano e no núcleo <strong>do</strong> trauma, são<br />
tomadas como significa<strong>do</strong> intransponível, não conceden<strong>do</strong> ao sujeito a possibilidade de<br />
se relativizar, podem apenas, sob o ponto de vista de Abraham e Torok, permanecer<br />
enquistadas, indizíveis. Ou se ditas, deixadas de la<strong>do</strong>, como sig<strong>nos</strong> que pudessem em si<br />
mesmos esgotar todas as possibilidades de significação 33 . É o que se percebe em muitos<br />
<strong>do</strong>s pacientes que apresentam melancolia, depressões graves (que escapam ao<br />
enquadramento histérico), e <strong>problemas</strong> orgânicos circunscritos ao sistema imunológico<br />
(PINHEIRO & VERTZMAN, 2002).<br />
Cabe aqui fazer uma importante menção à pesquisa teórico-clínica que vem<br />
sen<strong>do</strong> realizada no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ,<br />
coordenada pela professora Teresa Pinheiro, da qual fazemos parte hoje 34 . Essa pesquisa<br />
diz respeito a uma visada teórica de estabelecimento metapsicológico próprio da<br />
melancolia, onde se procura, a partir da observação clínica, dimensionar e positivar um<br />
determina<strong>do</strong> tipo de organização psíquica que não se circunscreve ao modelo da histeria<br />
tal como aquele delinea<strong>do</strong> por Freud na sua teorização. É interessante notar a freqüência<br />
com que aparecem pacientes cuja forma discursiva não se insere, pelo me<strong>nos</strong> em<br />
primeira instância, ao paradigma histérico. Percebe-se isso, não apenas em pacientes<br />
melancólicos ou deprimi<strong>do</strong>s, mas também em pacientes com disfunções orgânicas<br />
graves, tal como <strong>do</strong>enças auto-imunes. Tais pacientes apresentam, numa primeira<br />
caracterização, pobreza fantasmática, baixo nível de associação de idéias, em que as<br />
metáforas são precárias e as palavras visam a senti<strong>do</strong> unívoco, tal como os fatos. A<br />
partir desse ponto, contu<strong>do</strong>, a pesquisa avança não permanecen<strong>do</strong> apenas no plano<br />
negativo das observações, ou seja, delimitan<strong>do</strong> características “não neuróticas” ou<br />
deficitárias no seu aspecto psíquico – como se constata em Marty (1993). A pesquisa<br />
33 Nesta concepção, permaneceriam “indizíveis”, na medida em que o dizer se efetua pela abertura de<br />
senti<strong>do</strong> e pelo seu deslizamento, o qual não se esgotaria num plano isola<strong>do</strong>, ao contrário <strong>do</strong> que ocorre<br />
<strong>nos</strong> fenôme<strong>nos</strong> em pauta.<br />
34<br />
PINHEIRO, T. & VERTZMAN, J. Projeto integra<strong>do</strong> de pesquisa – Comparação clínica e<br />
metapsicológica entre pacientes melancólicos e porta<strong>do</strong>res de Lúpus eritematoso sistêmico. Rio de<br />
Janeiro, UFRJ, 2002.
procura, ao invés disso, alcançar um nível que ultrapassa as comparações com as<br />
características típicas das psiconeurose, encontran<strong>do</strong> possibilidades de positivação. Na<br />
abordagem da melancolia, principal objeto dessa pesquisa, concebe-se uma forma<br />
peculiar de identificação, de relação com o corpo e com a temporalidade (ibid.).<br />
No caso de <strong>nos</strong>so assunto central, os fenôme<strong>nos</strong> “psicossomáticos”, a questão se<br />
remete cada vez mais para a relação que se estabelece entre a corporeidade e o campo<br />
<strong>do</strong> trauma. A noção de “cripta”, que tem como elemento central o traumático, parece se<br />
aproximar da noção de “gelificação” <strong>do</strong> significante, a qual aparece nas teorias<br />
lacanianas a respeito <strong>do</strong> fenômeno psicossomático. Não é <strong>nos</strong>sa intenção, contu<strong>do</strong>,<br />
transpor diretamente um ponto de vista para outro, mas destacar, em caráter de<br />
pesquisa, a relação entre o trauma, os excessos corporais, e os elementos de linguagem<br />
que se acham “cristaliza<strong>do</strong>s” na cadeia associativa.<br />
A questão especificamente “psicossomática” permanece sem sombra de dúvida<br />
longe de ser esgotada, conforme já frisamos, na medida em que se coloca a termo<br />
indagações intrínsecas ao campo das teorizações que a circundam e que, apesar de em<br />
primeira instância apresentarem uma conciliação com as propostas fundamentais da<br />
psicanálise, guardam em si escolhos que talvez não tenham si<strong>do</strong> ainda transpostos. Tais<br />
questionamentos colocaremos a seguir, na tentativa de tecermos caminhos e<br />
introduzirmos indagações para uma discussão aprofundada neste terreno.<br />
3.4 Questionamentos e perspectivas<br />
O caminho que procuramos tecer na apresentação das idéias que dizem respeito<br />
à psicossomática, ou na lógica que procuramos enfocar a respeito da relação entre o<br />
trauma e a corporeidade, aponta para questões inseridas na problemática relativa àquilo<br />
que se concebe hoje em psicanálise por “psicossomática”. A teoria de Lacan abriu, sem<br />
dúvida, caminho para se pensar a importância da linguagem e de seus efeitos quan<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
encontro <strong>do</strong> sujeito com o universo da alteridade. Ao dar ênfase ao fato de que é na<br />
indução significante que se deve conceber o fenômeno psicossomático, Lacan colocou<br />
em pauta a importância de se pensar a relação <strong>do</strong> sujeito com o Outro nesse campo. A<br />
idéia de existência de uma lesão orgânica implicada por fatores de linguagem chama<br />
atenção ao fato de que o gozo lesivo em causa estaria condiciona<strong>do</strong> por uma relação que<br />
se estabelece num da<strong>do</strong> momento com o Outro, relação esta que se peculiariza na
medida em que é situada de maneira diversa daquela que encontramos na formação <strong>do</strong>s<br />
sintomas psiconeuróticos. Lacan coloca, desse mo<strong>do</strong>, que o fenômeno psicossomático<br />
está num patamar correlato a fenôme<strong>nos</strong> de demência e de delírio psicótico (LACAN,<br />
1964/1985). Para Lacan a holófrase se situa como uma característica fundamental<br />
desses fenôme<strong>nos</strong>, “(...) ainda que em cada um o sujeito não ocupe o mesmo lugar”<br />
(ibid., p. 225).<br />
Essa colocação, a respeito <strong>do</strong> lugar ocupa<strong>do</strong> pelo sujeito, <strong>nos</strong> é contu<strong>do</strong><br />
extremamente obscura, na medida em que, ao mesmo tempo que Lacan aponta para a<br />
existência de diferença que fundamentaria cada um desses fenôme<strong>nos</strong>, não indica de<br />
pronto o que definiria efetivamente uma lesão orgânica e não um delírio psicótico. Guir<br />
(1988), apoia<strong>do</strong> nas teorias de Lacan, deixa claro que um psicótico pode apresentar<br />
fenômeno psicossomático, assim como um neurótico. Nesse âmbito, verifica-se que o<br />
fenômeno psicossomático não se limitaria a um ou outro tipo determina<strong>do</strong> de<br />
organização psíquica, ou de estrutura clínica, visto que, além de tu<strong>do</strong>, o fenômeno<br />
psicossomático aparece muitas vezes associa<strong>do</strong> com um sintoma neurótico (Cf.<br />
CARNEIRO, op. cit.; GUIR, 1998).<br />
Na conferência de Genebra, Lacan (1975/1988) aponta para a importância <strong>do</strong><br />
registro imaginário nesses fenôme<strong>nos</strong> e diz: “O psicossomático é algo que, de to<strong>do</strong>s os<br />
mo<strong>do</strong>s, está em seu fundamento, profundamente enraiza<strong>do</strong> no imaginário”. 35 (p. 139-<br />
140). Lacan aborda nessa conferência a dimensão de escritura que pode assumir um<br />
significante, quan<strong>do</strong> da ocorrência de sua “cristalização”. A repetição desse significante<br />
solidigica<strong>do</strong> na cadeia e, portanto, isola<strong>do</strong> <strong>do</strong>s demais, assume um efeito traumático,<br />
que tensiona o corpo na sua dimensão orgânica, como um gozo inscrito no corpo.<br />
(CARNEIRO, op. cit.). O significante cristaliza<strong>do</strong> seria <strong>do</strong> registro <strong>do</strong> imaginário, e não<br />
<strong>do</strong> simbólico, este último aparecen<strong>do</strong> como absolutamente desimplica<strong>do</strong> e ineficaz.<br />
Nesse plano, o significante, ao invés de ter um efeito de abertura de senti<strong>do</strong>,<br />
remeten<strong>do</strong>-se a outros significantes, teria um efeito de trauma, por esgotar-se em sua<br />
significação (pelo registro <strong>do</strong> imaginário) e por “entravar” o gozo, remeten<strong>do</strong>-o ao<br />
corpo (pelo registro <strong>do</strong> real).<br />
35 “Lo psicosomático es algo que, de to<strong>do</strong>s os mo<strong>do</strong>s, está en su fundamento profundamente arraiga<strong>do</strong> en<br />
lo imaginario.” (Tradução <strong>nos</strong>sa).
De toda forma, haveria nesses casos uma relação peculiar com o outro em que,<br />
no plano fundamental da posição <strong>do</strong> sujeito, o efeito dialético se acharia<br />
impossibilita<strong>do</strong>, pois as palavras seriam tomadas como significa<strong>do</strong> intransponível.<br />
Contu<strong>do</strong>, a questão dialética também se acha comprometida no delírio psicótico, visto<br />
que, para o psicótico, as palavras se acham fundamentalmente coladas com o plano <strong>do</strong><br />
significa<strong>do</strong>, já que são tomadas como coisas (FREUD, 1915b/1996).<br />
Caberia indagar: que lugar assume esse outro na história <strong>do</strong> sujeito, cuja palavra<br />
assume um caráter tão absoluto que o impede à dialética, levan<strong>do</strong> a lesões orgânicas sob<br />
a forma de um gozo corporal, um excesso que não entra na rede associativa de<br />
representações? Esse lugar deve sem dúvida ser fundamentalmente diferencia<strong>do</strong> daquele<br />
ocupa<strong>do</strong> pelo psicótico, ou pelo demente, ou até pelo melancólico, ainda que não<br />
constitua uma posição estrutural que caracterizaria um “sujeito psicossomático”. A<br />
questão da “estrutura”, conforme apontamos, não pode ser tomada como fundamental<br />
nesses fenôme<strong>nos</strong>, visto que um neurótico se acha também extremamente passível de<br />
apresentar <strong>problemas</strong> orgânicos relaciona<strong>do</strong>s com traumatismos (WARTEL et al, 1990;<br />
DEJOURS, 1998).<br />
Para avançar nessa questão da relação com o outro, inclinamo-<strong>nos</strong> aqui a <strong>nos</strong><br />
reportarmos ao delineamento realiza<strong>do</strong> por Abraham e Torok, circunscrito ao campo <strong>do</strong><br />
trauma. No ínterim das questões sobre o trauma, apresentamos a teoria da<br />
“incorporação”, a qual diz respeito justamente a significantes – ou um conjunto de<br />
fatores de linguagem – que podem se encontrar essencialmente vincula<strong>do</strong>s à categoria<br />
<strong>do</strong> trauma. A idéia de “cripta” designa, como vimos, a “incorporação” ou o<br />
“enquistamento” de uma situação traumática. Os autores se servem desta noção para<br />
trabalhar situações clínicas vinculadas à melancolia e, entretanto, acenam para<br />
possibilidades de se pensar outros fenôme<strong>nos</strong> que poderiam estar liga<strong>do</strong>s a esses fatores<br />
de linguagem. No plano da cripta, pensa-se uma situação em que o caráter traumático<br />
desses fatores se fundamentaria por uma pulsionalidade sem vasão, e isso se pode<br />
verificar nas situações em que a perda <strong>do</strong> objeto (morte de um ente muito próximo)<br />
provoca uma irrupção libidinal imprevista (TOROK, 1968/1995). São perdas que não<br />
podem se confessar enquanto perdas, o que impossibilita a introjeção, ou seja, a
inclusão <strong>do</strong> objeto no campo das significações, das representações, e permanecem como<br />
palavras “desmetaforizadas” 36 (ABRAHAM & TOROK, 1975/1995).<br />
Trazen<strong>do</strong> esses elementos para <strong>nos</strong>sa questão. Devemos lembrar que Ferenczi<br />
denominava “introjeção <strong>do</strong> agressor” a impossibilidade mesma de introjetá-lo, por seu<br />
estatuto traumático. O sujeito se acharia identifica<strong>do</strong> ao agressor e isso seria<br />
desestruturante para o ego, ou seja, a integralidade narcísica estaria comprometida.<br />
Como vimos, <strong>do</strong> ponto de vista de Ferenczi, “(...) não existe nenhum traço <strong>do</strong> trauma, a<br />
incorporação ou a identificação com o agressor é aquilo que ocupa o lugar dessa não<br />
inscrição (Pinheiro, 1995, p. 53). Este é um fenômeno aponta<strong>do</strong> por Ferenczi na sua<br />
investigação sobre pacientes que apresentam características similares à melancolia. Nos<br />
chama atenção, contu<strong>do</strong>, o fato da inscrição psíquica ter si<strong>do</strong> impossibilitada.<br />
Poderíamos pensar que, ao invés de um fenômeno de identificação com o agressor – ou<br />
de incorporação – em seu lugar poderia advir uma reação de nível efetivamente<br />
orgânico, quan<strong>do</strong> da “lembrança” <strong>do</strong> objeto hostil, agressor? Cairíamos, dessa maneira,<br />
nas mesmas questões suscitadas acima e até agora não solucionadas no campo<br />
psicanalítico. Seria o caso de pensar justamente o que determinaria, ou definiria, uma<br />
lesão de órgão no lugar da não inscrição, ao invés de uma identificação com o agressor.<br />
Pensamos que não se trata, contu<strong>do</strong>, de solucionar a questão apoia<strong>do</strong> na idéia de<br />
precariedade <strong>do</strong> plano representacional – déficit de recursos psíquicos – que levaria à<br />
lesão orgânica, como propõe P. Marty. Caberia, sim, indagar: que posição ocupa o<br />
sujeito na relação com o outro para a ocorrência desses fenôme<strong>nos</strong>? Seria preciso<br />
definir que tipo de relação está estabelecida com o outro para a injunção de significantes<br />
cuja inscrição estaria impedida de se dar no plano da linguagem a ponto de ferir o<br />
sistema somático.<br />
No que se refere à posição <strong>do</strong> sujeito no caso da identificação com o agressor<br />
(para estabelecer aqui sua especificidade), o que se verifica, segun<strong>do</strong> Ferenczi<br />
(1933/1992), é algo da ordem <strong>do</strong> desmenti<strong>do</strong>, na relação com o outro (adulto), a respeito<br />
da experiência traumática. No desmentir de uma experiência bruta, há o que se pode<br />
36 Nesse ínterim, os autores apontam para um caso de cleptomania em que um garoto pôs-se a roubar<br />
roupas íntimas femininas. Nessa época, sua irmã – já falecida – teria, se viva, a idade de catorze a<strong>nos</strong>,<br />
idade em que, no dizer <strong>do</strong> próprio paciente, ela precisaria efetivamente de sutiã. A irmã teria, antes de<br />
morrer, o “seduzi<strong>do</strong>”. Esse evento, segun<strong>do</strong> os autores, permanece como cripta, e a impossibilidade de<br />
introjetar o objeto fez com que ele fosse “incorpora<strong>do</strong>” (ABRAHAM & TOROK, 1972/1995).
chamar “perda da certeza de si” (Cf. PINHEIRO & VERTZMAN, 2002), configurada<br />
por uma peculiaridade que se encontra sem dúvida no comprometimento da<br />
consistência identificatória, evidente na melancolia. A “incorporação” <strong>do</strong> objeto, nesse<br />
senti<strong>do</strong>, converge para a idéia freudiana de que “a sombra <strong>do</strong> objeto recai sobre o eu”,<br />
característica própria <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> melancólico. (FREUD, 1915c/1996). Defini<strong>do</strong> isso,<br />
questionamos, justamente, o que marcaria a diferença para os determinantes de um<br />
fenômeno psicossomático, a respeito da relação e posição subjetiva <strong>do</strong> sujeito frente ao<br />
outro, até hoje pouco definida para a psicossomática. No caso deste último fenômeno, a<br />
questão da relação com outro e <strong>do</strong> determinante da lesão somática permanece, portanto,<br />
indefinida pelas teorias que dela tratam.<br />
Para deixarmos essas questões mais sintetizadas: vimos que o campo <strong>do</strong> trauma<br />
deve ser profundamente estuda<strong>do</strong> para se pensar a questão das lesões de órgão ligadas à<br />
dinâmica psíquica. Nessa linha, verificamos que a marca <strong>do</strong> trauma propriamente dito<br />
não faz elo com as representações e se vincula a movimentos circunscritos ao “além <strong>do</strong><br />
princípio <strong>do</strong> prazer”. A teoria lacaniana, aqui circunscrita, apresenta para o fenômeno<br />
psicossomático a dimensão <strong>do</strong>s efeitos de linguagem, os quais assumiriam um estatuto<br />
traumático. Aponta além disso para a relação que se estabelece em determina<strong>do</strong><br />
momento com o outro, cujas palavras não acedem ao plano <strong>do</strong> deslizamento<br />
significante, mas têm um efeito de trauma, produzin<strong>do</strong> um gozo corpóreo. Como coloca<br />
Valas (2001, p. 83): “Tu<strong>do</strong> se passaria de certo mo<strong>do</strong> como se o sujeito sentisse a<br />
imposição sobre si das significações confusas <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> Outro que, à força de se<br />
repetir, causaria trauma”. O campo <strong>do</strong> trauma se estende contu<strong>do</strong> a patologias diversas,<br />
não apenas ao fenômeno psicossomático, mas também à melancolia, e às depressões da<br />
contemporaneidade (Cf. PINHEIRO & VERTZMAN, 2002). Questionamos o que<br />
define a diferença na relação com o outro para a ocorrência <strong>do</strong> fenômeno<br />
“psicossomático” 37 , concomitantes ou não a quadros psicóticos ou melancólicos.<br />
Estas questões circunscrevem um delineamento que abre caminho para<br />
perspectivas efetivas de aprofundamento teórico cujo campo deve se estabelecer pelas<br />
questões concernentes à problemática <strong>do</strong> corpo na psicanálise. Tal perspectiva deve ter<br />
como base as implicações <strong>do</strong>s apontamentos aqui expostos, bem como a investigação<br />
37 Os quais podem aparecer sobretu<strong>do</strong> num neurótico típico.
sobre o tema da corporeidade, o qual se mostra como um problema, pois acena para<br />
abordagens teóricas não consensuais no campo psicanalítico.<br />
A teoria de Lacan sobre o fenômeno psicossomático como um efeito de<br />
linguagem encontra sua principal definição (LACAN, 1964/1985) num momento em<br />
que o autor teceu linhas de raciocínio ligadas a críticas relativas à ênfase dada à<br />
estrutura de linguagem no seu ensino. A crítica à teoria de Lacan em seu conjunto veio<br />
por parte de autores que procuraram redimensionar a teoria freudiana a linhas de<br />
pensamento não estruturalistas, sem deixar de valorizar, por outro la<strong>do</strong>, a importância<br />
das contribuições de Lacan para o avanço da leitura da obra de Freud e da<br />
especificidade das idéias <strong>do</strong> mesmo. Esses autores denunciaram, contu<strong>do</strong>, o fato de que<br />
o significante, enquanto estrutura, tomou primazia nas idéias psicanalíticas a partir de<br />
Lacan, em privilégio de outros registros freudia<strong>nos</strong> (Cf. SCHNEIDER, 1993; Cf.<br />
BIRMAN, 1999). Os registros <strong>do</strong> afeto, e <strong>do</strong> corpo, foram toma<strong>do</strong>s como elementos<br />
mais problematiza<strong>do</strong>s por esses autores, pelo fato de terem si<strong>do</strong> descontextualiza<strong>do</strong>s por<br />
Lacan, quan<strong>do</strong> este deu ênfase ao estu<strong>do</strong> da estrutura significante como elemento<br />
central para a abordagem psicanalítica.<br />
Birman (1999) aponta: “Foram os impasses da análises das psicoses, das<br />
perversões, <strong>do</strong>s ditos esta<strong>do</strong>s-limite e da psicossomática que colocaram em questão uma<br />
prática da psicanálise em que corpo e afeto eram coloca<strong>do</strong>s entre parênteses” (p. 69).<br />
A questão <strong>do</strong>s afetos na teoria psicanalítica é profundamente abordada por<br />
Schneider, numa obra na qual a autora procura indicar a importância <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> da<br />
linguagem, contu<strong>do</strong> de maneira intrinsecamente articulada à questão <strong>do</strong> afeto. Nessa<br />
obra, Schneider (1993) enfatiza o campo <strong>do</strong>s afetos como algo de essencial para a teoria<br />
psicanalítica, toman<strong>do</strong> como base as teorias pragmáticas da linguagem, as quais<br />
parecem superar escolhos que o estruturalismo coloca para a psicanálise. Um deles, é a<br />
separação entre o significante como estrutura de linguagem, e o campo <strong>do</strong>s afetos, em<br />
que se deu primazia ao representante-representação (Vorstellungsrepräsentanz) da<br />
pulsão, retiran<strong>do</strong> da discussão psicanalítica o representante afetivo (Affekt) (Cf.<br />
BIRMAN, 1993b). Segun<strong>do</strong> Schneider (ibid.), há um estatuto mútuo entre o<br />
Vorstellungsrepräsentanz e o Affekt. Na mesma linha de pensamento, Birman defende<br />
que é questionável a separação entre o representante-representação e o representante<br />
afetivo e diz: “(...) os registros <strong>do</strong> significante e <strong>do</strong> afeto não são substancialidades
diferentes, mas matizações <strong>do</strong> inconsciente” 38 . Nesse campo, aponta para a necessidade<br />
de se ter como fundamento uma referência teórica e um modelo de linguagem diferente<br />
daquele que Lacan enfatizou como sen<strong>do</strong> da ordem da estrutura. 39<br />
O estu<strong>do</strong> da linguagem em conformidade com a importância que se dá ao afeto<br />
na psicanálise abre sem dúvida perspectivas fecundas de pesquisa, sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se<br />
enfatiza a importância da corporeidade na abordagem psicanalítica e da relação entre o<br />
afeto e a linguagem. Como aborda Birman (1999), o afeto possui tanto a vertente <strong>do</strong><br />
sentimento, como da intensidade, <strong>do</strong>s excessos, <strong>do</strong> quantum que mobiliza o<br />
funcionamento psíquico. Segun<strong>do</strong> o autor, o registro <strong>do</strong> afeto foi quase aboli<strong>do</strong> na<br />
psicanálise em virtude de sua circunscrição ao campo da representação, <strong>do</strong> significante,<br />
bem como da decifração. Ele coloca: “Em contrapartida, tu<strong>do</strong> que não é decifrável é<br />
expulso como não-analisável, para um campo situa<strong>do</strong> além da experiência analítica”<br />
(ibid., p. 54)<br />
Birman aponta Lacan como autor que mais contribuiu para a exclusão <strong>do</strong> afeto e<br />
<strong>do</strong> corpo da cena teórica da psicanálise. Coloca contu<strong>do</strong> que, em meio às críticas à<br />
ênfase no significante, Lacan deu um outro tom à sua teoria, abordan<strong>do</strong> o registro <strong>do</strong><br />
real como fundamental para se pensar a psicanálise (BIRMAN, 1999). A primazia <strong>do</strong><br />
simbólico como estrutura que sobrepuja a substancialidade <strong>do</strong> corpo, é reconstituída de<br />
maneira articulada ao registro <strong>do</strong> real e <strong>do</strong> gozo como campo específico que escapa à<br />
estrutura de linguagem, mas que opera efeitos no campo <strong>do</strong> sujeito. Birman (ibid.)<br />
localiza a problemática <strong>do</strong> afeto e <strong>do</strong> corpo como ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> retomada por Lacan<br />
quan<strong>do</strong> este desenvolveu suas idéias sobre o real e o gozo. Essa conjuntura levou o<br />
próprio Lacan a visitar referências diferenciadas no campo da filosofia da linguagem,<br />
como a pragmática de Austin (Cf. BIRMAN, 1993b).<br />
Essa discussão é de grande valor, na medida em que se frisa a importância de se<br />
conceber um modelo de linguagem em psicanálise que não opere uma separação radical<br />
entre o corpo e a psique. As considerações de Schneider nessa obra apontam para o fato<br />
de que o modelo de linguagem sob a primazia <strong>do</strong> significante não dá conta de explicar a<br />
38 BIRMAN, J. (1993). O afeto como linguagem (prefácio). In SCHNEIDER, M. Afeto e linguagem <strong>nos</strong><br />
primeiros escritos de Freud. São Paulo: Escuta.<br />
39 Bezerra (1994) circunscreve três dimensões fundamentais <strong>do</strong> campo de abordagem da linguagem na<br />
psicanálise, a saber: o mentalismo, o estruturalismo e o pragmatismo. As questões aqui colocadas,<br />
relativas ao modelo de linguagem, referem-se à perspectiva de um estu<strong>do</strong> mais aprofunda<strong>do</strong> dessas<br />
abordagens, importante para o avanço da concepção <strong>do</strong> corpo e de suas implicações em psicanálise.
questão <strong>do</strong>s afetos. Pode-se apontar, a partir disso, que este modelo não dá conta<br />
também de explicar as interações entre o corpo e o psíquico. Pensamos que se faz<br />
necessário recuperar na psicanálise a teoria <strong>do</strong> afeto para se pensar essas interações,<br />
visto que o afeto se encontra, segun<strong>do</strong> Schneider (op. cit.), nas intermediações da<br />
linguagem, mas também, se podemos afirmar, na marginalidade <strong>do</strong> corpo, pelo seu<br />
aspecto quantitativo, de intensidade. A questão de Schneider se remete efetivamente<br />
para os fatores intrínsecos que compõem o plano da linguagem e <strong>do</strong> afeto. Para a autora,<br />
a linguagem é algo capaz não apenas de significar, mas também de efetuar. A<br />
linguagem teria uma dimensão também de descarga, em que, no plano quantitativo, seu<br />
exercício se faria valer como ação. Concebe-se, assim, o plano da impressão e o plano<br />
da expressão como categorias não separadas, mas como características intrínsecas ao<br />
próprio afeto. A autora expõe:<br />
“(...) seria necessário, então, evitar colocar sistematicamente o afeto ao la<strong>do</strong> da<br />
passividade, ao la<strong>do</strong> da impressão que faz, sobre o eu, a realidade. A própria<br />
terminologia, na medida em que ela desposa a etimologia latina, convida a<br />
operar esta gradação entre o afeto e a impressão, da qual seria preciso se libertar<br />
por uma expressão. Se esta passagem da impressão à expressão, encobrin<strong>do</strong> a<br />
passagem da excitação à reação, permite efetivamente dar conta <strong>do</strong> processo<br />
catártico, não é necessário relacionar esta dupla de movimentos a uma obra:<br />
passividade afetiva–atividade representativa que logo seria colocada como<br />
paralelo. O afeto está, ao mesmo tempo, ao la<strong>do</strong> da passividade e ao la<strong>do</strong> da<br />
atividade e a tarefa terapêutica consiste me<strong>nos</strong> em trabalhá-lo, com a ajuda <strong>do</strong><br />
esclarecimento que trariam a lembrança e a representação, <strong>do</strong> que em liberar o<br />
trabalho deste. Se o afeto se inscreve, então, como uma ferida, ele pode também<br />
se tornar sua expressão, realizan<strong>do</strong>, nisto, um esboço de terapêutica espontânea.<br />
Não haveria, desta forma, lugar para reintroduzir um tipo de maniqueísmo no<br />
interior <strong>do</strong> registro afetivo para melhor separar o que aliena <strong>do</strong> que liberta, como<br />
também não seria conveniente introduzir semelhante corte entre o balbucio e a<br />
linguagem. Seria preciso, talvez, ao nível <strong>do</strong> afeto-impressão procurar os<br />
primeiros esforços para traduzir a experiência e não somente vivenciá-la” (p. 28).<br />
Esta localização <strong>do</strong> afeto feita por Schneider implica extensas discussões no<br />
campo <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s da linguagem, da relação entre a corporeidade e a experiência <strong>do</strong><br />
senti<strong>do</strong> (Cf. BEZERRA, 2001), e da leitura da filosofia pragmática <strong>nos</strong> seus enlaces<br />
com a psicanálise (Cf. COSTA et al, 1994). O que <strong>nos</strong> interessa, neste momento, é a<br />
importância de se conceber o registro <strong>do</strong>s afetos – os quais carregam em si toda a<br />
dimensão das intensidades e <strong>do</strong> campo das excitações – de maneira intrínseca aos<br />
processos da linguagem. Nessa direção, pensamos que seria preciso recuperar a questão<br />
<strong>do</strong> afeto também para se pensar especificamente questões relativas ao que hoje se
denomina “psicossomática” já que, embasa<strong>do</strong>s em Freud, apontamos a questão da <strong>do</strong>r e<br />
<strong>do</strong> trauma como elementos fundamentais nesta abordagem.<br />
Tivemos assim, como linha de raciocínio, a idéia de que fatores intrínsecos à<br />
categoria <strong>do</strong> trauma, seja pelo ponto de vista da relação com o outro, seja pelo ponto de<br />
vista <strong>do</strong> caráter de excesso nele implica<strong>do</strong>, devem estar intimamente liga<strong>do</strong>s aos<br />
fenôme<strong>nos</strong> em questão. Pudemos trilhar esse caminho desde a retomada <strong>do</strong> modelo da<br />
neurose atual, vista sob um ângulo renova<strong>do</strong>, até as aproximações feitas entre o<br />
traumático e os fatores de linguagem nele implica<strong>do</strong>s. Este estu<strong>do</strong> está contu<strong>do</strong> longe de<br />
ser esgota<strong>do</strong>, visto que as concepções de linguagem acenam para modelos<br />
diferencia<strong>do</strong>s, o que abre caminho para se perspectivar uma pesquisa mais aprofundada<br />
sobre esse tema, bem como sobre o problema da relações entre o corpo e o psiquismo.<br />
Foi nesse contexto que tomamos o conceito de “neurose atual” nas suas minúcias para<br />
tentar circunscrever um campo cuja fecundidade deve, sem dúvida, ter como ponto de<br />
origem o pensamento de Freud. A “psicossomática”, termo utiliza<strong>do</strong> até hoje para<br />
designar <strong>problemas</strong> orgânicos supostamente relaciona<strong>do</strong>s com fatores psíquicos, teve<br />
como elemento central para as mais importantes teorias, justamente o modelo da<br />
neurose atual. Vimos que este modelo pode se complexificar, à medida que se coloca<br />
em destaque os avanços das concepções freudianas. Pensamos, assim, que a evolução<br />
<strong>do</strong> pensamento de Freud, carregada de importantes modificações ao longo de sua obra,<br />
deve ser sempre levada em ampla consideração para o desenvolvimento de abordagens<br />
que tenham como referência o campo psicanalítico.
CONCLUSÃO<br />
Nosso estu<strong>do</strong> se baseou na tentativa de estabelecer caminhos teóricos para se<br />
pensar a questão “psicossomática” a partir de uma localização mais aprofundada <strong>do</strong><br />
conceito freudiano da neurose atual, modelo teórico que serviu como base para<br />
importantes teorias que nesse campo surgiram. Tentan<strong>do</strong> situar o modelo da neurose<br />
atual na obra de Freud, procuramos estabelecer uma confrontação com as concepções de<br />
P. Marty, confrontação essa que consideramos relevante, visto a importância que tem<br />
hoje o Instituto de Psicossomática de Paris e que, apesar disso, apresenta concepções<br />
teóricas problemáticas <strong>do</strong> ponto de vista da própria neurose atual. Desse ponto,<br />
trilhamos os caminhos relaciona<strong>do</strong>s a este conceito, com a perspectiva de uma leitura<br />
<strong>do</strong>s avanços <strong>do</strong> pensamento de Freud, reinserin<strong>do</strong>-o sob a perspectiva de relativizá-lo no<br />
campo das concepções psicanalíticas, em específico, acerca das noções de<br />
“historicidade” e de “atualidade”. Trilhan<strong>do</strong> assim os caminhos que podem recompor<br />
esta questão, procuramos enfocar que a neurose atual não poderia ser concebida de<br />
maneira desmembrada de questões e conflitos próprios da psiconeurose, visto que esses<br />
fenôme<strong>nos</strong> interagem entre si, e que as duas classes de neuroses (psiconeurose e neurose<br />
atual) acham-se aglutinadas umas com as outras. O conjunto de sintomas referi<strong>do</strong>s à<br />
descarga somática das excitações internas deve assim ser intimamente relaciona<strong>do</strong> com<br />
o campo histórico <strong>do</strong> sujeito, haja visto a concepção global daquilo que concerne ao<br />
campo da sexualidade, bem como ao campo <strong>do</strong> traumático, ou <strong>do</strong> mortífero. A história,<br />
como pudemos ver, não se define como um passa<strong>do</strong> absoluto, mas como uma<br />
configuração de elementos psíquicos imersos em contextos fantasmáticos que situam a<br />
posição <strong>do</strong> sujeito ocupada na relação com o outro, ou com o mun<strong>do</strong>.<br />
Como vimos, Rocha, num estu<strong>do</strong> sobre “Os desti<strong>nos</strong> da angústia na psicanálise<br />
freudiana” (2000) tece relevante menção à neurose atual cuja pertinência é central para<br />
esse assunto. O autor coloca:<br />
“(...) será que se pode falar de um “atual” que se esgote no “aqui e agora” <strong>do</strong><br />
tempo presente, como pretendia Freud, quan<strong>do</strong> se referia às neuroses atuais? No<br />
“acontecer”, que é o existir humano, não há futuro sem presente, nem presente<br />
sem passa<strong>do</strong>. Presente, passa<strong>do</strong> e futuro relacionam-se entre si de um mo<strong>do</strong><br />
inextricável. O homem não pode se projetar no futuro sem assumir o presente,<br />
porque é no presente que se projeta o futuro, mas, de outra parte, para assumir o<br />
presente, ele tem que estar reconcilia<strong>do</strong> com o passa<strong>do</strong>, porque o passa<strong>do</strong> de hoje<br />
foi o presente de ontem”(p. 57).
Concluiu-se, nessa direção, que o “atual” na psicanálise deve ser concebi<strong>do</strong> na<br />
sua relação com a carga traumática que se estabelece pela irrupção de um excesso<br />
inviabiliza<strong>do</strong> de reconstrução no plano da linguagem, mas que não se esgota no tempo<br />
presente, achan<strong>do</strong>-se imerso numa contextualidade histórica, ainda que ultrapasse o<br />
princípio <strong>do</strong> prazer. Nesse plano, o atual e o histórico aparecem como fatores<br />
imbrica<strong>do</strong>s, e não opostos.<br />
No avanço dessas concepções, localizamos a questão <strong>do</strong> trauma como elemento<br />
indispensável no <strong>nos</strong>so estu<strong>do</strong>, apontan<strong>do</strong> que a marca <strong>do</strong> trauma pode permanecer<br />
isolada da rede de associações <strong>do</strong> sujeito, o que a teoria lacaniana concebe pelo o plano<br />
<strong>do</strong> significante. Essa teoria aborda o problema pelo prisma de uma solidificação de<br />
determina<strong>do</strong>s significantes, que assumiriam um estatuto traumático pelo impedimento<br />
na dialetização, referida ao desejo <strong>do</strong> Outro. Sob essa perspectiva, o campo histórico<br />
não estaria fora de questão, à medida que se focaliza, no terreno da articulação<br />
significante, a eclosão de uma lesão “psicossomática”.<br />
O problema <strong>do</strong> conflito psíquico, também em muito relaciona<strong>do</strong> com estas<br />
questões, se acha nesses termos recoloca<strong>do</strong> pelo próprio Freud quan<strong>do</strong> diz que “não<br />
nega” a existência de conflitos psíquicos na neurose atual, “(..) a fim de evitar<br />
concepções errôneas (...)” (p. 32). Articula<strong>do</strong> a esta questão, encontramos uma<br />
importante passagem de Courel (1996), que aponta:<br />
“A ausência de dialética não implica necessariamente a inexistência das<br />
complexidades e conflitos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> símbolo. Se encontra já ali a idéia de<br />
Lacan de que o psicossomático não é uma estrutura simples ou elementar,<br />
assemelhan<strong>do</strong>-se, pelo contrário, a um complexo hieroglífico.” (p. 68) 40 .<br />
O próprio Lacan já havia sinaliza<strong>do</strong>, desde suas primeiras menções sobre o<br />
psicossomático, a idéia de conflito, presente também nessas patologias, mesmo que de<br />
forma distinta <strong>do</strong> sintoma neurótico: “Há não sei qual impressão ou inscrição direta de<br />
uma característica, até, em certos casos, de um conflito” (p. 352).<br />
A afirmação de Courel, que diz respeito à perspectiva da holófrase desenvolvida<br />
posteriormente por Lacan, aponta para a importante concepção de que a ocorrência<br />
“psicossomática” não se insere num quadro estrutural que isolaria o sujeito de outras<br />
40 “La ausencia de dialéctica no implica necesariamente la inexistencia de las complejidades y conflictos<br />
proprios del mun<strong>do</strong> del simbolo. Se encuentra ya allí la idea de Lacan de que lo psicosomático no es uma<br />
estructura simple o elemental, asemejan<strong>do</strong>se, por el contrario, a un complejo jeroglífico” (Tradução<br />
<strong>nos</strong>sa).
características psicopatológicas. O psicossomático é concebi<strong>do</strong> como um fenômeno que<br />
se encontra numa questão pontual, e não estrutural, razão pela qual Lacan (1975/1988)<br />
compara tal ocorrência a um “complexo hieróglifo”. Isso sinaliza que tais fenôme<strong>nos</strong><br />
ocorrem num plano impossibilita<strong>do</strong> de leitura, de interpretação. Lacan pensa essa<br />
questão sob o ponto de vista <strong>do</strong> número, já que o número é algo que se esgota em si<br />
mesmo e que, diferentemente da letra, não lança a outros elementos a possibilidade de<br />
inscrição. Como vimos, a repetição <strong>do</strong>s significantes em questão estaria inserida num<br />
contexto de trauma, e não, de significação. Nesse terreno, Lacan coloca: “Qual é a<br />
espécie de gozo que se encontra no psicossomático? Se evoquei uma metáfora como a<br />
<strong>do</strong> gela<strong>do</strong>, é porque há certamente essa espécie de fixação”. 41 (p. 139). Sem dúvida,<br />
temos aqui uma pensamento que se registra no plano de uma “fixação” <strong>do</strong> gozo. Tal<br />
ocorrência não implica nenhuma perspectiva estrutural, apesar da necessidade teórica,<br />
por nós enfatizada, de se definir o que levaria à solidificação pontual de um<br />
significante.<br />
A colocação de Courel se refere sobretu<strong>do</strong> ao fato de que o impedimento de<br />
dialética numa determinada conjuntura psíquica não implica inexistência de conflito, já<br />
que o sujeito não se acha necessariamente afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> símbolo, das suas<br />
complexidades e das suas conseqüências no campo subjetivo. Isso reverbera a idéia de<br />
que pensar uma ‘estrutura psicossomática’ se afirma como infrutífera. A idéia de<br />
ausência de conflito <strong>nos</strong> ‘pacientes somáticos’ é essencialmente presente contu<strong>do</strong> na<br />
teoria de Marty (1998), a qual se baseia na precariedade discursiva desses pacientes<br />
para defendê-la. Para Marty, como vimos, a insuficiência <strong>do</strong> plano representativo seria<br />
a raiz dessa problemática, bem como, da própria ocorrência psicossomática.<br />
Nesse ínterim caberia lançar a seguinte questão: o que leva, então, a essa<br />
opacidade no discurso, tão característica de pacientes que apresentam <strong>do</strong>enças<br />
somáticas, já que problematizamos a linha de pensamento martyniana?<br />
No avanço das concepções sobre o traumático na história subjetiva, chegamos à<br />
conclusão de que a marca <strong>do</strong> trauma apresenta no seu interior uma experiência bruta,<br />
um excesso não temporaliza<strong>do</strong>, não imediatamente historiciza<strong>do</strong> (Cf. KNOBLOCH,<br />
1998). Assim, pensa-se que ao re<strong>do</strong>r da experiência traumática, a composição de uma<br />
41 “(...) cuál es la suerte de goce que se encuentra en el psicosomático? Si evoqué una metáfora como la<br />
de lo congela<strong>do</strong>, es porque hay efectivamente esa especie de fijación” (Tradução <strong>nos</strong>sa).
conexão associativa fica comprometida e o sujeito, imerso em determina<strong>do</strong> momento<br />
nessa contextualidade, encontra importantes dificuldades no movimento de<br />
historicização. Como vimos também, Freud aponta para o fato de que o excesso<br />
traumático produz um esta<strong>do</strong> que dá sinais de uma “indisposição subjetiva” (FREUD,<br />
1920/1996, p. 23). Isso reverbera o fato de que nas questões relativas ao campo <strong>do</strong><br />
trauma propriamente dito, a possibilidade de surgir uma “pobreza discursiva” se<br />
potencializa. Isso não indica carência de representação, tampouco ausência de conflito<br />
psíquico. Não indica necessariamente, também, uma impossibilidade radical de<br />
historicização (o que se constata efetivamente na melancolia). Parece indicar,<br />
entretanto, uma cristalização pontual nas conexões associativas, que se acha subjugada<br />
a um patamar além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer. A questão da “holófrase” indica também a<br />
existência de palavras que se impõem de maneira absoluta, impedin<strong>do</strong> a dialetização e a<br />
resposta fantasiada ao enigma <strong>do</strong> desejo. Se tu<strong>do</strong> já está dito pelo Outro num<br />
determina<strong>do</strong> ponto, e se o desejo <strong>do</strong> Outro não vem como enigma, mas se impõe numa<br />
determinada conjuntura psíquica, o sujeito nada tem a produzir, ou nada tem a dizer. Tal<br />
conclusão acena sem dúvida para repercussões clínicas, o que leva-<strong>nos</strong> também a<br />
concluir que o chama<strong>do</strong> “pensamento operatório” – que seria melhor defini<strong>do</strong> como<br />
discurso operatório – é apenas um resulta<strong>do</strong> e não uma causa fundamental para a lesão<br />
psicossomática.<br />
Adentran<strong>do</strong> outros pla<strong>nos</strong> conclusivos neste trabalho, percebemos que o<br />
caminho teci<strong>do</strong> por Freud para chegar às suas principais inferências acerca <strong>do</strong><br />
psiquismo teve na sua base a importância da sexualidade, cujo conceito se presentificou<br />
no termo libi<strong>do</strong>. A noção de libi<strong>do</strong> passou, como pudemos notar, por importantes<br />
revisões, as quais proporcionaram para Freud a especificidade de seu campo. No início,<br />
a libi<strong>do</strong> era considerada no seu fundamento concreto, somático, o que se faz verificar<br />
claramente <strong>nos</strong> primórdios das idéias de Freud (1898/1996), quan<strong>do</strong> este dispunha-se a<br />
investigar as neuroses atuais. Como colocamos anteriormente, o conceito de libi<strong>do</strong> foi<br />
extraí<strong>do</strong> inicialmente das concepções relativas à excitação sexual no seu aspecto<br />
somático. Essas concepções foram de grande influência para que Freud pensasse que a<br />
questão sexual englobava também as psiconeuroses (FREUD, 1898/1996).
Essa idéia da libi<strong>do</strong> tinha como fundamento o fisicalismo relativo ao campo das<br />
implicações químicas no que denominou “metabolismo sexual” (FREUD, 1912a/1996).<br />
A libi<strong>do</strong> era concebida quase como uma substância, idéia que encontra precedentes<br />
numa concepção “hidráulica” e mecanicista <strong>do</strong> ponto de vista econômico (ASSOUN,<br />
1983), com a qual Freud (1914b/1996) parece ter rompi<strong>do</strong> ao introduzir o conceito de<br />
narcisismo. A noção de investimento, que toma a função <strong>do</strong> eu como condição de<br />
possibilidade, parece acenar para uma perspectiva de libi<strong>do</strong> me<strong>nos</strong> mecanicista, visto<br />
que compete ao registro <strong>do</strong> ego e <strong>do</strong>s movimentos objetais a sua eficácia. É o momento<br />
em que Freud passa a tomar a constituição subjetiva como algo que passa<br />
necessariamente pelo encontro com o outro, centralizan<strong>do</strong> a idéia <strong>do</strong> “sexual” na noção<br />
de investimento. Esse salto teórico se confirma em “Além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer”<br />
(1920/1996) quan<strong>do</strong>, então, passa-se a tomar a libi<strong>do</strong> como aquilo que da pulsão faz<br />
ligação e favorece à assunção da vida. De outro la<strong>do</strong>, a pulsão de morte seria<br />
introduzida como campo em que se verificam movimentos que escapam ao princípio <strong>do</strong><br />
prazer, como força que insiste e repete pela categoria <strong>do</strong> “não liga<strong>do</strong>”. O que desejamos<br />
frisar nessa articulação conceitual é que o que se apresenta como fundamental na<br />
perspectiva teórica de Freud não se reduz a uma descrição mecanicista <strong>do</strong>s processos<br />
psíquicos, mas tem como proposta essencial colocar em pauta os entraves <strong>do</strong> conflito<br />
humano quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> encontro com o outro e quan<strong>do</strong> das conseqüências de sua inserção<br />
na ordem da cultura. A perspectiva de uma teoria “psicossomática” centrada no ponto<br />
de vista econômico revela-se mecanicista, como demonstramos, nas caracterizações<br />
descritivas e topológicas de um aparelho deficitário no plano representativo, conforme<br />
propõe Marty (1998). Não estamos afirman<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, que, em alguns momentos, o<br />
projeto de Freud não tendia ao mecanicismo e ao dualismo, mas se tomarmos a obra de<br />
Freud no seu conjunto, podemos defender a idéia de que, se não era sua intenção inicial<br />
apontar a descentralização <strong>do</strong> eu na esfera da conduta humana, essa foi uma das suas<br />
principais conclusões.<br />
Outras importantes conclusões se interpõem em <strong>nos</strong>sa pesquisa, as quais podem<br />
ser enumeradas a seguir:<br />
1. As teorias apresentadas no primeiro capítulo (Groddeck, Alexander, Marty)<br />
aparecem como modelos de abordagem das questões “psicossomáticas”
fundamentalmente diferencia<strong>do</strong>s entre si. Percebe-se que essas linhas de<br />
pensamento divergiram não apenas no que diz respeito às suas superfícies<br />
teóricas, ou nas extremidades de suas concepções, mas divergiram na própria<br />
essência de suas reflexões, o que levou-<strong>nos</strong> a problematizar seus<br />
fundamentos a partir de uma confrontação com o pensamento freudiano.<br />
2. No pensamento lacaniano verifica-se uma importante renovação das<br />
concepções de Freud, com a ênfase dada à importância <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> da<br />
linguagem para a circunscrição <strong>do</strong> campo psicanalítico. A idéia de<br />
solidificação significante converge em muitos pontos com os caminhos<br />
percorri<strong>do</strong>s em <strong>nos</strong>sa pesquisa, os quais se des<strong>do</strong>braram na concepção de<br />
uma articulação entre o trauma e fatores de linguagem que podem estar<br />
relaciona<strong>do</strong>s com <strong>problemas</strong> de ordem orgânica. A ênfase no estruturalismo<br />
da linguagem, por outro la<strong>do</strong>, aboliu da discussão psicanalítica o registro <strong>do</strong><br />
representante afetivo, bem como o campo das intensidades na vida psíquica,<br />
o que levou Lacan a avançar formulan<strong>do</strong> o conceito de real como aquilo que<br />
escapa à estrutura ou à significação (Birman, 1999). O registro <strong>do</strong> afeto deve<br />
ser, nessa direção, resgata<strong>do</strong> no caso de se colocar como pauta de estu<strong>do</strong>s o<br />
tema “psicossomática”.<br />
3. Defendemos que a questão sobre o que determina a implicação de <strong>problemas</strong><br />
somáticos precisa ser pensada pelo la<strong>do</strong> das posições ocupadas pelo sujeito<br />
no seu campo subjetivo, e não simplesmente pela suposta falta de recursos<br />
psíquicos. Esta questão está contu<strong>do</strong> longe de ser resolvida, mas podemos<br />
sinalizar a sua importância para pesquisas mais aprofundadas.<br />
4. A questão da corporeidade é um ponto a ser aprofunda<strong>do</strong> no contexto<br />
teórico, visto que ela também permaneceu por muito tempo colocada entre<br />
parênteses quan<strong>do</strong> da destituição <strong>do</strong> registro <strong>do</strong>s afetos (Cf. BIRMAN,<br />
1999).<br />
O ponto nevrálgico de <strong>nos</strong>sa discussão incide e converge, contu<strong>do</strong> ainda, para o<br />
problema da separação mente/corpo, não soluciona<strong>do</strong> de maneira positivada por<br />
nenhuma das correntes que se dispuseram a tratar da questão “psicossomática”. A<br />
questão “psicossomática” não encontra <strong>problemas</strong> apenas no que diz respeito aos
desenvolvimentos teóricos relativos à sua abordagem. Ela introduz para a psicanálise,<br />
sem dúvida, importantes impasses, não apenas teóricos, mas também epistemológicos, a<br />
começar pelo dualismo e pela separação que se faz entre o psíquico e o somático.<br />
No pensamento de Marty, pode-se localizar um pensamento dualista quan<strong>do</strong> este<br />
define o “paciente somático” como um sujeito cliva<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> subjetivo. A idéia de<br />
uma “estrutura psicossomática” carrega em si uma separação, já que o paciente, ao não<br />
poder produzir sintomas psíquicos, produz lesões somáticas. Marty coloca o soma como<br />
o receptáculo das descargas de excitação, estas desvinculadas da representação.<br />
Representação e excitação encontram-se, nessa perspectiva, em campos essencialmente<br />
diferentes, a saber: psique de um la<strong>do</strong>, soma de outro.<br />
A questão da separação não aparece, contu<strong>do</strong>, apenas nas correntes martynianas.<br />
Como dissemos anteriormente, a própria idéia de uma patologia “psicossomática”, ou<br />
de uma “somatização” já sugere uma separação, na sua própria terminologia. Tal parece<br />
ser o projeto da psicossomática, cuja concepção aponta para a produção “psíquica” de<br />
um fenômeno “somático”, este último aparecen<strong>do</strong> como um produto mesmo <strong>do</strong><br />
primeiro. Enfatizamos as palavras “produção” e “produto” de maneira proposital, para<br />
enfocar que o que se estabelece nesse campo é uma concepção de supremacia da mente<br />
sobre o corpo, ou seja, a mente exercen<strong>do</strong> um poder sobre o corpo como um agente<br />
separa<strong>do</strong>, ou como um “ente” capaz de provocar uma lesão. Essa idéia sugere um<br />
psíquico que, afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> somático, direciona seus ditames, sem haver qualquer<br />
contextualidade não psíquica que determine a efetividade da lesão. Desejamos afirmar<br />
que não compartilhamos dessa idéia, visto que os determinantes de um problema<br />
orgânico não podem ser defini<strong>do</strong>s strictu sensu pelo arcabouço teórico da psicanálise.<br />
Mais <strong>do</strong> que isso, a idéia de uma causalidade psíquica sobre o soma é defensora <strong>do</strong><br />
dualismo, na medida em que coloca a psique numa relação de supremacia sobre o corpo,<br />
apontan<strong>do</strong> para um modelo monocausal vertical e linear que deflagra sem dúvida a<br />
separação mente/corpo.<br />
Cabe, contu<strong>do</strong>, frisar que a idéia de “fenômeno psicossomático” se apresentaria<br />
como um primeiro avanço a respeito deste campo. Apareceram na psicanálise categorias<br />
de “<strong>do</strong>enças psicossomáticas” (Cf. ALEXANDER, 1954), as quais, em seu fundamento<br />
mesmo, seriam essencialmente de origem psíquica, predefinidas como <strong>do</strong>enças<br />
“psíquicas”. Nessa terminologia se verifica uma tentativa efetiva de se listar <strong>do</strong>enças
predefinidas como psicossomáticas, como se elas só pudessem ser concebidas na sua<br />
causalidade psíquica. Pensamos que essa idéia deve ser a primeira a ser combatida neste<br />
campo.<br />
No caso de se entender o psicossomático como um fenômeno, verificar-se-iam<br />
nesse plano lesões não predefinidas como “psicossomáticas”, mas concebidas dentro de<br />
uma contextualidade clínica. Entretanto, a idéia de fenômeno psico-somático aponta<br />
para <strong>problemas</strong> similares, ainda que não seja entendi<strong>do</strong> como “<strong>do</strong>ença” psicossomática,<br />
mas como “fenômeno”. Mesmo assim, a idéia de “fenômeno psicossomático” tem si<strong>do</strong><br />
abordada como um campo de pura causalidade psíquica, em que se concebe algo de<br />
psíquico ocasionan<strong>do</strong> por si só uma determinada patologia orgânica. Nas teorias<br />
lacanianas verifica-se também um pensamento dualista quan<strong>do</strong> os autores apontam para<br />
uma causalidade psíquica nesses fenôme<strong>nos</strong> (Cf. GUIR, 1988; WARTEL et al, 1990). O<br />
modelo monocausal se confere nesse âmbito como fruto da separação mente/corpo,<br />
conforme definiu Dejours (1998).<br />
Sob esse aspecto, estamos de acor<strong>do</strong> com Dejours (ibid.) quan<strong>do</strong> diz que não<br />
acredita na somatização enquanto causalidade psíquica, motivo pelo qual preferimos<br />
colocar a palavra “psicossomática” sempre entre aspas quan<strong>do</strong> de <strong>nos</strong>sa menção direta<br />
sobre este tema no presente trabalho. Dejours (ibid.) coloca: “Aceitar o termo<br />
somatização seria dar uma resposta sobre as relações entre biologia e psicanálise, à qual,<br />
justamente, eu não adiro. Quer dizer um dualismo entre psique e soma” (p. 39).<br />
No contexto dessas considerações, problematizamos não apenas as questões<br />
teóricas a respeito desse tema, mas também a idéia de separação que se faz clara desde a<br />
utilização <strong>do</strong> termo “psicossomática”. É preciso colocar em destaque, entretanto, que,<br />
apesar de <strong>nos</strong> posicionarmos contra a idéia de causalidade psíquica, não podemos negar<br />
a clara relação entre eclosões de lesões orgânicas e contextos subjetivos <strong>nos</strong> quais se<br />
encontram imersos determina<strong>do</strong>s sujeitos. Esse posicionamento não redunda numa<br />
negação da interação psique-soma. Tal negação levaria também à separação, pois<br />
ficaria indicada a idéia de que o psíquico não tem nada a ver com o somático. Como<br />
colocamos anteriormente, tais considerações não excluem a perspectiva de se positivar<br />
efetivamente a existência de uma interação corpo-mente. Do contrário, to<strong>do</strong> o <strong>nos</strong>so<br />
trabalho em estabelecer uma leitura da neurose atual, em conformidade com<br />
perspectivas que se articulam à questão <strong>do</strong> traumático, estaria invalida<strong>do</strong>. Faz-se
necessário indagar, avançan<strong>do</strong> nesse tema, se é possível conceber a questão <strong>do</strong> trauma<br />
de maneira desvinculada da abordagem <strong>do</strong> corpo. Nos inclinamos a considerar, nessa<br />
perspectiva, que não há trauma sem corpo, e que o psiquismo pode apenas ser pensa<strong>do</strong><br />
na presença <strong>do</strong> corpo e das manifestações a ele subjacentes. Pensar, assim, uma<br />
interação psique-soma parece-<strong>nos</strong> um caminho fecun<strong>do</strong>, pois, sem dúvida, é visível que<br />
a evolução de determinadas patologias orgânicas, ou a eclosão de uma lesão que<br />
potencialmente já se configurava por outros fatores, está muitas vezes relacionada com<br />
os contextos psíquicos <strong>nos</strong> quais o sujeito se acha num determina<strong>do</strong> momento inseri<strong>do</strong>.<br />
Isso significa apontar para o fato de que não se pode, em psicanálise, procurar<br />
determinantes puramente psíquicos para estas ocorrências. Para deixar mais claro,<br />
supomos que a existência, por exemplo, de um ou mais significantes “cristaliza<strong>do</strong>s” na<br />
cadeia, não determina necessariamente a ocorrência de lesões orgânicas. Para tal<br />
ocorrência, pensamos que seria preciso uma série de contextos não psíquicos envolvi<strong>do</strong>s<br />
nessa fenomenologia. Também não aderimos à idéia de que, a relação entre uma lesão e<br />
a “holófrase” significa que a primeira foi produzida pela segunda. Pode-se apontar<br />
apenas que a “holófrase” encontra-se no rastro desta lesão orgânica, o que indica a<br />
interação entre ambas. Esse raciocínio não exclui a importante interação <strong>do</strong>s fatores<br />
presentes, característicos de “solavancos” psicossomáticos que sem dúvida existiriam e<br />
contribuiriam para tal descompensação somática. Caberia pensar, retoman<strong>do</strong> a questão<br />
da posição <strong>do</strong> sujeito, o que acarretaria, na relação com o outro, a injunção de<br />
determina<strong>do</strong>s significantes, os quais permaneceriam solidifica<strong>do</strong>s na cadeia.<br />
A psicanálise não contém recursos teóricos para positivar uma causalidade<br />
psicossomática, nem para explicar processos psico-fisiológicos que supostamente<br />
acarretariam efetivamente lesões, <strong>do</strong> ponto de vista de um modelo monocausal linear.<br />
Circunscrita em seu campo, ela não atinge os níveis de interação neuro-fisiológica.<br />
Tampouco pertence à psicanálise esta função. Pensamos, contu<strong>do</strong>, que ela pode ir a<br />
algum lugar nesta discussão, pois dá possibilidades de se pensar efetivamente uma<br />
interação psique-soma. Nessa concepção, a psicanálise não empregaria uma supremacia<br />
da psique sobre o soma (conflagrada pelo pensamento dualista), mas apontaria níveis de<br />
interação condiciona<strong>do</strong>s pelo conflito humano, os quais poderiam ser constata<strong>do</strong>s na<br />
evolução desta ou daquela <strong>do</strong>ença, ou na eclosão desta ou daquela lesão orgânica que<br />
potencialmente já existia. A positividade <strong>do</strong> <strong>nos</strong>so campo atesta, assim, a dimensão da
pulsionalidade humana e pode atingir – a circunscrever os limites <strong>do</strong> seu território – os<br />
<strong>confins</strong> <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, esses sim, da competência teórica da psicanálise.<br />
Podemos enfocar também, nessa direção, a existência de uma relação muito<br />
próxima entre <strong>do</strong>enças orgânicas e a evolução de determinadas psicopatologias. Na<br />
pesquisa teórico-clínica que mencionamos a respeito de pacientes deprimi<strong>do</strong>s,<br />
melancólicos e com <strong>do</strong>enças auto-imunes (PINHEIRO & VERTZMAN, 2002), verificase<br />
uma apropriação peculiar da <strong>do</strong>ença orgânica, bem como <strong>do</strong> corpo próprio <strong>do</strong>ente,<br />
relação que se revela como relevante na organização psíquica desses sujeitos. O corpo é<br />
muitas vezes o palco principal <strong>do</strong>s fenôme<strong>nos</strong> psíquicos que se interpõem na relação<br />
narcísica. Pacientes que apresentam <strong>problemas</strong> na constituição identificatória<br />
encontram, nas amarrações de um discurso sobre o corpo, uma forma de integração<br />
egóica mais consistente. Uma paciente atendida pela equipe 42 , com graves distúrbios<br />
depressivos, por exemplo, se queixava de “<strong>do</strong>r de dente”, mas não sabia definir muito<br />
bem onde se situava sua <strong>do</strong>r. Descobriu depois de um tempo uma úlcera estomacal, a<br />
partir <strong>do</strong> quê pôde definir: a <strong>do</strong>r vinha <strong>do</strong> estômago. É importante frisar que sua<br />
experiência subjetiva encontrava-se intimamente relacionada com suas sensações<br />
corporais. A paciente era incapaz de circunscrever o local de sua sensação corpórea, o<br />
que confirma que a constituição narcísica deve passar necessariamente pelas imediações<br />
<strong>do</strong> corpo e <strong>do</strong> próprio organismo.<br />
Encontra-se, em meio a esses fatores, uma descompensação somática que pode<br />
ser colocada aqui em relevo. Essa mesma paciente estava às voltas com questões de<br />
emagrecimento, ligadas a fatores de beleza, e ligadas a conflitos relaciona<strong>do</strong>s à sua<br />
posição frente à mãe, o que a fez pensar num determina<strong>do</strong> momento em realizar uma<br />
cirurgia para redução <strong>do</strong> estômago. A úlcera intermitente aparece em meio a essas<br />
questões, as quais se acham claramente impossibilitadas de dialetização, de<br />
relativização e de metaforização. Poderíamos localizar aí uma descompensação<br />
somática ligada a esses fatores? Pensamos que sim, contu<strong>do</strong> não podemos afirmar como<br />
psicanalistas que esses foram os elementos determinantes para o aparecimento da<br />
úlcera. É importante frisar que devem existir fatores que não são <strong>do</strong> conhecimento da<br />
42 Essa paciente é atendida pela equipe da pesquisa denominada “Comparação clínica e metapsicológica<br />
entre pacientes melancólicos e porta<strong>do</strong>res de Lúpus eritematoso sistêmico”, especificamente por Fernanda<br />
Ferreira Montes, psicoterapeuta e membro da pesquisa. O caso trata<strong>do</strong> aparece como exemplo relevante<br />
para se abordar esses temas.
psicanálise, mas da medicina, da epidemiologia, ou até da genética, para a efetivação de<br />
uma lesão como essa. Isso não inviabiliza pensar, entretanto que, nesse caso, se conceba<br />
um gozo corporal liga<strong>do</strong> ao aparecimento da lesão orgânica.<br />
A noção de Ferenczi acerca de uma “estase da libi<strong>do</strong> de órgão” é extremamente<br />
frutífera para que se especifique que tipo de implicação se estabelece numa relação<br />
corpo-mente desta ordem. Ferenczi, desde já, não opera separação, e aborda as questões<br />
da libi<strong>do</strong> de órgão como algo da maior relevância psíquica. Lacan, por outro la<strong>do</strong>,<br />
avançou indubitavelmente com a idéia de gozo. Em 1975 (Conferência de Genebra), o<br />
autor localiza o gozo como algo fundamentalmente vincula<strong>do</strong> à linguagem, em que, no<br />
fenômeno “psicossomático”, se verificaria um gozo gelifica<strong>do</strong> pelo significante. Esta<br />
concepção mais avançada <strong>do</strong> gozo parece dar sem dúvida possibilidades mais concretas<br />
para se pensar a relação psique-soma dentro da teoria lacaniana. Contu<strong>do</strong>, como<br />
colocamos, é preciso ainda buscar modelos de linguagem que indiquem de maneira<br />
mais consistente a importância <strong>do</strong> corpo no campo das operações de linguagem (Cf.<br />
BEZERRA, 2001).<br />
A relação da paciente mencionada com as sensações corpóreas deflagra, ainda, a<br />
dificuldade de organização egóica, bem como de nomeação e atribuição de existência<br />
desse corpo, o qual se apresenta como algo que não integra uma unidade narcísica<br />
amarrada. Isso se confere quan<strong>do</strong> verificamos que essa paciente não sabia definir o local<br />
de sua <strong>do</strong>r, pois aparentava uma “<strong>do</strong>r de dente”, ao invés de uma <strong>do</strong>r no estômago.<br />
Depois dessa definição por parte da medicina, a paciente passa a sentir fortes <strong>do</strong>res no<br />
estômago. Assim, uma sensação corporal pode apenas se definir quan<strong>do</strong> as operações de<br />
linguagem permitem sua circunscrição (PINHEIRO, 2004). Essa paciente demonstra<br />
claramente que a sensação de <strong>do</strong>r só pôde se circunscrever quan<strong>do</strong> da intervenção de um<br />
outro (médico) que definiu o local de sua <strong>do</strong>r. Na maioria dessas pacientes, além disso,<br />
há uma ampla dificuldade de historicização e de temporalização, bem como uma<br />
importante problemática na dimensão identificatória. Contu<strong>do</strong>, as especificações<br />
relativas à <strong>do</strong>ença, sua nomeação por parte <strong>do</strong>s médicos, a definição de prontuários e a<br />
definição de uma rotina de tratamento contribuem de maneira importante para uma<br />
amarração egóica e uma constituição histórica mais eficaz. Essas pacientes passam, com<br />
o tempo, a associar de maneira mais fluida, a metaforizar, e a apresentar conteú<strong>do</strong>s<br />
oníricos, o que no início <strong>do</strong> tratamento parecia ser impossível (Cf. PINHEIRO, 2004).
A interação entre corpo e psiquismo fica clara quan<strong>do</strong> dispomos <strong>do</strong> material<br />
clínico da pesquisa mencionada. Precisamos, nessa direção, aprofundar a questão da<br />
interação psique-soma, colocan<strong>do</strong> como perspectiva a importância de estu<strong>do</strong>s da<br />
atualidade que tomam corpo e psiquismo como categorias inseparáveis, conforme<br />
aponta Bezerra (op. cit.) acerca da importância <strong>do</strong> pensamento pragmático para a<br />
psicanálise e para o avanço desse tema. Não <strong>nos</strong> é, contu<strong>do</strong>, possível desenvolver aqui<br />
tal assunto, fican<strong>do</strong> este indica<strong>do</strong> como tema de pesquisa futura. Sob esse aspecto,<br />
levantamos as seguintes indagações:<br />
1. De que maneira e sob que contextos aparecem as abordagens sobre o corpo<br />
na psicanálise? Quais os seus <strong>problemas</strong> e quais são seus des<strong>do</strong>bramentos?<br />
2. Qual a participação efetiva <strong>do</strong> corpo na constituição da subjetividade? Como<br />
se deu historicamente a produção <strong>do</strong> pensamento dualista e saperatório<br />
corpo/mente na filosofia e como isso se reflete no campo psicanalítico?<br />
3. Como conceber efetivamente a questão <strong>do</strong>s afetos de maneira intrínseca ao<br />
campo da linguagem? Que modelo de linguagem pode melhor caracterizar a<br />
abordagem de um monismo corpo-mente na psicanálise?<br />
Essas indagações aparecem como um des<strong>do</strong>bramento natural de <strong>nos</strong>so percurso,<br />
o qual não se esgota aqui, mas ao contrário, abre possibilidades de se pensar questões e<br />
temas mais aprofunda<strong>do</strong>s.<br />
Para tecer <strong>nos</strong>sas últimas reflexões, colocamos em pauta a questão da<br />
especificidade da clínica psicanalítica para o tratamento <strong>do</strong>s pacientes envolvi<strong>do</strong>s nas<br />
questões <strong>do</strong> presente trabalho. Faz-se notar nesse campo o problema da analisabilidade,<br />
bem como da definida inoperância <strong>do</strong> dispositivo analítico nesses casos, conforme<br />
abordam as correntes martynianas (VOLICH, 1997). Consideramos necessário colocar a<br />
termo as especificidades e funções <strong>do</strong> tratamento analítico para essa discussão. É<br />
importante indicar essa problemática, visto que a “psicossomática”, além <strong>do</strong>s impasses<br />
epistemológicos e teóricos, coloca para a clínica psicanalítica desafios que muitos<br />
autores caracterizam como insolúveis no terreno da denominada psicanálise “clássica”<br />
(Cf. MARTY, 1993). Esse contexto deve também aceder para uma perspectiva de<br />
pesquisa aprofundada, que precisa levar em conta as concepções atuais sobre a
especificidade da teoria e da clínica psicanalítica, sua função e finalidade no campo da<br />
psicopatologia humana.
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