A psicossomática nos confins do sentido: problemas e reflexões ...
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sofrimentos e variações afetivas. J. McDougall (1983), que participou ativamente <strong>do</strong><br />
movimento psicossomático francês, fornece um importante relato que exemplifica essa<br />
fenomenologia:<br />
“Ainda guar<strong>do</strong> claramente a lembrança da primeira vez em que tive a ocasião de<br />
participar de uma entrevista desse tipo, clássica <strong>do</strong> gênero: a de uma jovem que<br />
viera consultar um especialista em psicossomática em conseqüência de uma<br />
retocolite hemorrágica. Num primeiro momento, a paciente negava qualquer<br />
possibilidade de que um fator psicológico pudesse estar relaciona<strong>do</strong> à <strong>do</strong>ença. Só<br />
depois de muita insistência por parte <strong>do</strong> analista-consultante, ela pôde relatar os<br />
dias que precederam a eclosão da <strong>do</strong>ença. Num tom de voz neutro, descreveu<br />
uma história de aban<strong>do</strong>no repentino durante uma gravidez em condições<br />
particularmente <strong>do</strong>lorosas e angustiantes. Era como se ela não devesse revelar<br />
nenhum traço de emoção nem dar a impressão de atribuir muita importância a<br />
um acontecimento verdadeiramente catastrófico, sobre o qual não podia exercer<br />
o menor controle. Na época, parecia-me que, por razões difíceis de esclarecer, a<br />
paciente era incapaz de engajar-se num processo de luto ou de reagir diante de<br />
uma situação pe<strong>nos</strong>a e complicada. Em vez disso, um pouco a exemplo <strong>do</strong><br />
lactante numa situação de aban<strong>do</strong>no catastrófico por parte <strong>do</strong> objeto materno,<br />
devi<strong>do</strong> à imaturidade de sua capacidade de pensar e reagir à perda, a paciente<br />
ficara fisicamente <strong>do</strong>ente” (p. 159).<br />
A leitura martyniana sobre esse tipo de disposição clínica demarca a questão <strong>do</strong><br />
déficit como elemento fundamental. Segun<strong>do</strong> tal concepção, o agravamento dessa<br />
conjuntura, causada fundamentalmente pela deficiência <strong>do</strong> plano representativo e<br />
ausência de atividades fantasmáticas leva a uma desorganização progressiva na<br />
“economia psicossomática” <strong>do</strong> indivíduo, o que resultaria nada me<strong>nos</strong> <strong>do</strong> que numa<br />
lesão de órgão (MARTY, 1993). Os conceitos de ‘pensamento operatório’ ‘depressão<br />
essencial’ e ‘desorganização progressiva’ estão igualmente relaciona<strong>do</strong>s à teoria <strong>do</strong><br />
déficit de representações mentais, circunscritas aos pacientes em questão.<br />
Marty (ibid.) classifica então esses pacientes como ‘pacientes somáticos’ e<br />
localiza-os num plano distinto, isola<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s psiconeuróticos, ou na<br />
linguagem de Marty (1993) “neuróticos mentais clássicos”. A expressão “neurose<br />
mental clássica” utilizada por Marty refere-se àquelas neuroses que apresentam um<br />
quadro sintomatológico referi<strong>do</strong> às investigações de Freud, pensadas por Marty como<br />
“clássicas”, em virtude da abordagem feita por Freud <strong>nos</strong> primórdios de suas teorias.<br />
Essas “neuroses clássicas” são as denominadas ‘psiconeuroses’ – histeria, fobia,<br />
obsessões. Tais neuroses são para Marty “mentais” justamente pelo fato de que a<br />
patologia se circunscreve ao plano mental. Dito de outra forma, na histeria, apesar de<br />
muitos de seus sintomas se situarem no corpo, os conteú<strong>do</strong>s psíquicos e a estrutura<br />
simbólica observada nesses sintomas são a chave de sua tessitura. Da mesma forma, as