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Instituto Fernandes Figueira - Biblioteca Virtual em Saúde - Fiocruz

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Ministério da Saúde<br />

FIOCRUZ<br />

Fundação Oswaldo Cruz<br />

<strong>Instituto</strong> <strong>Fernandes</strong> <strong>Figueira</strong><br />

Miriam Schenker<br />

VALORES FAMILIARES E USO ABUSIVO DE DROGRAS<br />

Rio de Janeiro<br />

2005


VALORES FAMILIARES E USO ABUSIVO DE DROGRAS<br />

Miriam Schenker<br />

Tese apresentada ao Programa de Pós-<br />

Graduação <strong>em</strong> Saúde da Criança e da<br />

Mulher do <strong>Instituto</strong> <strong>Fernandes</strong> <strong>Figueira</strong> da<br />

Fundação Oswaldo Cruz para obtenção do<br />

título de Doutor <strong>em</strong> Ciências.<br />

Prof a<br />

Orientadora:<br />

Dr a Maria Cecília de Souza Minayo<br />

Rio de Janeiro<br />

2005


À m<strong>em</strong>ória de meu pai, hom<strong>em</strong> justo e correto, um Mensch, que me ensinou valores<br />

humanistas com afeto e autoridade.<br />

À m<strong>em</strong>ória de minha mãe, mulher de fibra, de onde retiro ex<strong>em</strong>plos de vida auxiliada<br />

pelo derramamento de seu afeto.<br />

A minha irmã Gisela, pela relação de intimidade e respeito que desenvolv<strong>em</strong>os na<br />

maturidade, apesar e por causa de nossas diferenças.<br />

Aos meus filhos, pelo simples fato de existir<strong>em</strong>.<br />

A Mateus, pela vivacidade, humor, curiosidade e cuidado, atributos <strong>em</strong> construção<br />

ao longo de sua bela vida.<br />

A Gabriel, pela garra, bom senso, afeto e zelo, com um misto de saudades e<br />

felicidade.


AGRADECIMENTOS<br />

A construção de minha tese de doutorado foi possível graças à participação efetiva<br />

de algumas pessoas. Com elas, inicio os meus agradecimentos. Lá nos primórdios<br />

de minhas reflexões, Cecília me sugeriu procurar um profissional que me auxiliasse<br />

com o t<strong>em</strong>a família. Isto porque eu queria ampliar meus horizontes para além da<br />

psicologia e adentrar o campo da antropologia e da sociologia. As indicações<br />

convergiram para o nome de Myriam Lins de Barros, a qu<strong>em</strong> devo conversas e<br />

sugestões de leituras importantes para a elaboração do meu estudo. Outra presença<br />

fundamental foi a de Suely Deslandes que me introduziu nos meandros da<br />

sociologia e me auxiliou com seus comentários argutos na época da qualificação do<br />

projeto.<br />

Os professores que escolhi para a composição dessa Banca, com anuência de<br />

minha orientadora, são dignos de meu reconhecimento. Fátima Gonçalves<br />

Cavalcante me auxiliou através da leitura de seu livro de histórias-de-vida sensíveis<br />

que me estimularam na forma de compor as histórias que aqui descrevo. Evelyn<br />

Eisenstein, médica de adolescentes com vasta experiência, pessoa sensível às<br />

questões deles e também de suas famílias. Marcelo Santos Cruz, colega de trabalho<br />

de longa data, atento à complexidade que envolve os adictos e suas famílias.<br />

Francisco Inácio Pinkusfeld Bastos fez parte da qualificação do meu projeto e antes<br />

mesmo daquela data, já me atendia nas dificuldades que eu enfrentava na tradução<br />

de expressões <strong>em</strong> inglês de artigos que lia para a construção de outros. Sua<br />

contribuição central na qualificação do projeto resultou na construção da parte<br />

teórica da metodologia de minha tese.


Por último quero afirmar que meu esforço ao longo do doutorado resultou na<br />

construção de três artigos e na elaboração dessa tese porque eu caí nas graças de<br />

Maria Cecília Minayo, minha orientadora, mulher inteligente, sensível, firme e que<br />

“coloca a mão na massa”, constrói junto com, que me auxiliou a refletir, flexibilizar,<br />

modificar rumos, com paciência, vontade e dedicação.<br />

Agradeço ao Nepad/Uerj, na figura de sua diretora Maria Thereza Aquino, por ter me<br />

permitido fazer o doutorado que, tenho certeza, muito irá contribuir para a prevenção<br />

e o tratamento das famílias com adictos. À Zélia Freire Caldeira, por ter<br />

compartilhado minha ansiedade com a construção das primeiras idéias do projeto e<br />

me auxiliado a pensar e operacionalizar, nos primórdios, a metodologia de<br />

investigação. Agradeço também à equipe de família do Nepad/Uerj, encabeçada por<br />

Ana Angélica Santos Carvalho e Virginia Barbosa, pelo seu genuíno interesse e<br />

também à Lígia Bittencourt, pela recomendação de uma das famílias desse estudo.<br />

Agradeço a toda a equipe do Centra-Rio, na figura de sua diretora Anna Simões, por<br />

ter “garimpado” com interesse e sensibilidade a maioria das famílias que compõ<strong>em</strong><br />

essa investigação.<br />

E às famílias do estudo que me abriram as portas de suas casas e de suas vidas<br />

para uma conversa permeada por uma intimidade sofrida, o meu agradecimento do<br />

coração.


Quero referir a paciência que vêm d<strong>em</strong>onstrando os meus clientes do consultório<br />

com os horários “espartanos” e as férias coletivas “compulsórias” que precisei lhes<br />

dar para a elaboração da tese.<br />

Agradeço a minha amiga Rosana Lanzelotte pelas reflexões quanto à forma de<br />

escrita de artigos e do projeto. E também a Nair Abreu, pelas horas que passamos<br />

juntas computando os dados de “minhas famílias” e por seus comentários<br />

pertinentes ao t<strong>em</strong>a. Agradeço à amiga Regina Jardim pela paciência e dedicação<br />

na consulta e <strong>em</strong>préstimo de livros na biblioteca da PUC. Por último, mas não <strong>em</strong><br />

importância, Bacy Bilyk, minha querida prima, que prontamente atendeu minhas<br />

solicitações de livros e sites sobre o assunto, o meu muito obrigada.<br />

Quero agradecer a minha família por ter suportado quatro anos de muitas ausências<br />

<strong>em</strong> sua vida. Ao Jorge Moraes, meu companheiro, meu “consultor para idéias<br />

inteligentes”, reconheço a paciência e a ajuda <strong>em</strong> momentos de angústia que foram<br />

desde a falta de t<strong>em</strong>po, real ou fantasiosa, passando pelos trajetos até à casa de<br />

quase todas as famílias do estudo, ao momento presente, um t<strong>em</strong>po de alegria pela<br />

quase conclusão da tese. Agradeço a Mateus, meu filho mais velho, pela<br />

compreensão e pelo bom humor <strong>em</strong> tratar a mãe que mais vivia <strong>em</strong> frente ao<br />

computador do que conversando com ele, atividade que nós dois gostamos muito,<br />

gerindo a casa ou acompanhando a sua trajetória profissional dos últimos t<strong>em</strong>pos; e<br />

a Gabriel, meu caçula, pela leveza no entendimento das “horas roubadas” de<br />

nosso convívio diário que, entretanto, acabamos privados quase que completamente<br />

devido ao seu vôo solo no exterior.


Agradeço também a minha irmã Gisela pelo carinho, dedicação e compreensão com<br />

a sua mana nesses últimos t<strong>em</strong>pos.


RESUMO<br />

Interessei-me por estudar nessa tese se os valores familiares influenciam o<br />

desenvolvimento da drogadição <strong>em</strong> um, ou mais de um, de seus m<strong>em</strong>bros.<br />

Privilegiei diferentes t<strong>em</strong>as, que constituíram minhas hipóteses, nas três categorias<br />

norteadoras do estudo: no âmbito dos valores familiares, os ensinamentos<br />

considerados importantes passar para filhos e netos, b<strong>em</strong> como o significado do<br />

conceito família. Na esfera do conflito entre gerações, pesquisei a forma de<br />

organização da família, os sonhos e os modelos de comportamento. Finalmente, no<br />

domínio do processo educativo, investiguei o estilo de educação, o estabelecimento<br />

de limites e as figuras de autoridade na família.<br />

As famílias pesquisadas pertenc<strong>em</strong> às camadas médias da população urbana e<br />

provêm de duas Instituições especializadas no atendimento à drogadição.<br />

Escolhi <strong>em</strong>preender a pesquisa dos valores familiares seguindo a narrativa das três<br />

gerações de algumas famílias do campo pesquisado e a partir de uma entrevista<br />

s<strong>em</strong>i-estruturada e gravada com o consentimento dos participantes, dentro do marco<br />

referencial sistêmico-cibernético. Utilizei alternadamente três dimensões para a<br />

operacionalização dos t<strong>em</strong>as: opinião, comportamento e expectativa.<br />

Os resultados dessa abordag<strong>em</strong> compreensiva da tecedura das histórias familiares<br />

são amplos e complexos e respond<strong>em</strong> afirmativamente à questão inicial porque:<br />

(a) Há uma inversão na hierarquia familiar que influencia o estilo de educação, a<br />

construção da autonomia e os modelos familiares todos eles fundamentais<br />

para a promoção dos valores familiares;


(b) Vínculos dependentes, de apego, que estimulam a infantilização dos filhos e<br />

netos não configuram condições de possibilidade para a internalização dos<br />

valores familiares no sentido almejado pelas famílias;<br />

(c) Há expectativas conflitantes através das gerações porque avós e pais, ao não<br />

perceber<strong>em</strong> a defasag<strong>em</strong> entre a idade cronológica e a <strong>em</strong>ocional de seus<br />

filhos e netos elaboram projetos distantes da realidade desses últimos;<br />

(d) Os atributos de avós e pais são de tal ord<strong>em</strong> que auxiliam a construção de<br />

modelos s<strong>em</strong> sustentação para os jovens;<br />

(e) Os estilos de criação autoritária e permissiva dos avós e pais não<br />

contribuíram para o desenvolvimento sócio-<strong>em</strong>ocional da maioria dos filhos e<br />

de todos os jovens, influenciando a aquisição dos valores pelos participantes<br />

da geração dos pais e dos filhos.<br />

A conclusão também contém reflexões sobre a prevenção e o tratamento do uso<br />

abusivo de drogas pautadas no trabalho com os valores familiares, de acordo como<br />

eles são descritos nessa tese. A educação para valores familiares deve ser incluída<br />

no tratamento do uso abusivo e na prevenção ao uso indevido de substâncias.<br />

ABSTRACT<br />

This thesis objective is to answer if the familiar values influence the development of<br />

drugaddiction in one, or more, of its m<strong>em</strong>bers. I have privileged different th<strong>em</strong>es that<br />

composed my hypothesis, on three categories that guided the study: on the family<br />

values domain, the instructions considered important to teach to children and<br />

grandchildren, as well as the meaning of the family concept. On the conflict between<br />

generations range I have searched for family organization form, dreams, and


ehavior models. Finally, on the educational process domain I have investigated<br />

educational style, limits setting and authority figures in the family.<br />

The research was made with families from urban middle-class population that came<br />

from two Institutions specialized in drugaddiction care.<br />

I have chosen to undertake family values research following a three generational<br />

narrative of some families, chosen from the researched field, using a s<strong>em</strong>i-structured<br />

interview taped with participants agre<strong>em</strong>ent, inside a syst<strong>em</strong>ic-cybernetic referential<br />

approach. I have used alternatively three dimensions to accomplish the th<strong>em</strong>es:<br />

opinion, behavior and expectation.<br />

The comprehensive approach results from the family stories <strong>em</strong>broidery are vast and<br />

complex and answer affirmatively the initial question. The main reasons are:<br />

(a) There is a family hierarchy inversion that influences educational style,<br />

autonomy construction and family models, all of th<strong>em</strong> fundamental to family<br />

values promotion;<br />

(b) Dependent, attachment bonds that stimulate children and grandchildren<br />

childishness don’t configure possibility circumstances to family values<br />

internalization in the sense aimed by the families;<br />

(c) There are conflicting expectations through generations because grandparents<br />

and parents elaborate projects that are distant from their children reality once<br />

they don’t perceive the difference between their children and grandchildren<br />

chronological and <strong>em</strong>otional age;<br />

(d) Grandparents and parents attributes are such that help construct models<br />

without sustenance to their youth;<br />

(e) Grandparents and parents authoritarian and permissive education style didn’t<br />

contribute to the children majority and all youth socio-<strong>em</strong>otional development,


thus having an influence on parents and children generation values<br />

acquisition.<br />

The thesis conclusion contains reflections about abusive drug use prevention and<br />

treatment based on family values work, in accordance with their description in this<br />

study. Family values education must be included on drug abuse use treatment and<br />

substance use prevention.


SUMÁRIO<br />

Introdução........................................................................... xiv<br />

Primeira Parte. Introdução ao marco referencial................ 1<br />

Categorias Centrais de Análise.......................................... 6<br />

Valores Familiares ............................................................ 7<br />

Conflito entre Gerações ................................................... 12<br />

Processo Educativo .......................................................... 18<br />

Segunda Parte. Abordag<strong>em</strong> metodológica e<br />

operacionalização............................................................... 24<br />

1. Fundamentação Teórica................................................. 24<br />

2. Natureza da Pesquisa ................................................... 37<br />

3. Método de Abordag<strong>em</strong>.................................................. 40<br />

4. Operacionalização ......................................................... 41<br />

Terceira Parte. Trajetórias das famílias............................. 44<br />

1. A Família Zoar .............................................................. 44<br />

2. A Família Mimar .......................................................... 70<br />

3. A Família Ciumeira .................................................... 96<br />

4. A Família Devanear .................................................... 124<br />

Conclusão........................................................................ 152<br />

Referências...................................................................... 170<br />

Apêndices....................................................................... 182


INTRODUÇÃO<br />

Este estudo trata dos valores familiares <strong>em</strong> famílias de camadas médias urbanas<br />

onde há ou houve uso abusivo de drogas no contexto sócio-cultural da cidade do Rio<br />

de Janeiro. Elaborei esta pesquisa a partir de uma visão ampla e compreensiva do<br />

universo desses valores e sua influência para a constituição do sujeito.<br />

O uso abusivo de drogas pode ser considerado um probl<strong>em</strong>a de saúde pública, por<br />

acarretar ônus ao sujeito, à família e à sociedade, na forma de: repetência na<br />

escola, perda de <strong>em</strong>prego, rupturas familiares e violência, crimes, acidentes e<br />

encarceramentos. Uma questão tão ampla e controversa como essa é aqui pensada<br />

do ponto de vista de prejuízos para os jovens, r<strong>em</strong>etendo ao fato de que o início do<br />

uso de drogas se dá, geralmente, na adolescência, fase de extr<strong>em</strong>a curiosidade, de<br />

movimentos de individuação, da especial valorização do grupo de amigos, e do<br />

conhecido comportamento rebelde, muitas vezes necessário para iniciar seu corte<br />

do cordão umbilical familiar.<br />

Geralmente, nessa etapa, muitas famílias estão atentas para o tamanho da crise<br />

existencial e de crescimento que se instaura, mas sent<strong>em</strong> uma certa impotência<br />

quanto à possibilidade de controle da situação. Como os atributos da mudança se<br />

combinam com a experimentação das drogas? O resultado poderá ser mais uma<br />

incorporação de experiência na vida do jov<strong>em</strong> ou resultar no início de um doloroso<br />

processo de dependência.<br />

xiv


Ser dependente significa consumir excessivamente qualquer substância psicoativa<br />

de forma que ela passe a acarretar danos físicos, psicológicos e/ou sociais para si<br />

próprio. O uso abusivo de drogas é assunto complexo, sendo estudado nos mais<br />

variados campos do conhecimento: antropologia, sociologia, política, educação e<br />

psicologia e outros.<br />

O presente estudo t<strong>em</strong> proximidade com minha experiência de vida. Trabalho há<br />

quase duas décadas no Núcleo de Estudos e Pesquisas <strong>em</strong> Atenção ao Uso de<br />

Drogas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEPAD/UERJ) como<br />

terapeuta de famílias com algum m<strong>em</strong>bro adicto, na sua maioria às drogas ilícitas<br />

– maconha e cocaína – conjugadas, ou não, às lícitas – álcool, tabaco ou<br />

tranqüilizantes. Nessa prática terapêutica s<strong>em</strong>pre me chamou atenção a<br />

dinâmica das inter-relações dessas famílias e como elas se organizam. A partir<br />

de tal interesse busquei formular uma questão básica a que tentarei responder:<br />

Será que os valores vivenciados na dinâmica interna dessas famílias<br />

influenciam o desenvolvimento da drogadição <strong>em</strong> algum de seus m<strong>em</strong>bros?<br />

Minha narrativa a seguir cont<strong>em</strong>pla a intimidade dos vínculos, da educação, das<br />

expectativas entre avós, pais e filhos que constitu<strong>em</strong> a dinâmica dessas famílias<br />

com adictos que reconheço a partir de minha prática clínica.<br />

Não se pode duvidar que a sociedade vive um t<strong>em</strong>po de transição <strong>em</strong> vários níveis,<br />

inclusive de um padrão de educação autoritária para uma forma mais d<strong>em</strong>ocrática<br />

(Zagury, 2000). Essa mudança se relaciona com as inúmeras transformações sociais<br />

que vêm ocorrendo desde a década de 60, imprimindo maior flexibilização e<br />

relativismo às práticas educativas. Entretanto, nessa transposição, vários probl<strong>em</strong>as<br />

xv


vão surgindo e tenho observado alguns bastante sérios nas famílias que atendo: os<br />

pais adotam uma postura indulgente ou permissiva quanto à colocação de limites e<br />

regras para seus filhos ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se questionam sobre a forma<br />

melhor de educá-los. Inúmeras vezes sent<strong>em</strong>-se culpados e inseguros. A<br />

insegurança desses adultos leva a que tudo ou nada seja conversado sobre as<br />

normas de dentro e de fora de casa; adicionada ao pouco t<strong>em</strong>po de que dispõ<strong>em</strong><br />

para dedicar aos filhos, por causa do trabalho ou por outros motivos. Daí v<strong>em</strong> a<br />

minha primeira hipótese:<br />

o estilo de criação dos pais, que se traduz nas práticas educacionais, influencia<br />

a aquisição dos valores familiares.<br />

Nesse processo de mudanças sociais, freqüent<strong>em</strong>ente se evidencia na família uma<br />

tendência à exacerbação do consumismo: os avós e os pais costumam não negar<br />

nada aos filhos e netos. Dessa forma, se estabelece uma espécie de elo entre o<br />

afeto e os bens de consumo, com pouca ênfase no valor pessoal do indivíduo. Não<br />

se trata de culpabilizar pais ou avós, uma vez que o saber que envolve as práticas<br />

das relações primárias é adquirido, principalmente, na experiência de relações na<br />

família e na sociedade, por mais livros informativos que os pais consult<strong>em</strong>. O mais<br />

dramático dessa situação é que a insegurança e a frouxidão ating<strong>em</strong> exatamente o<br />

núcleo e a fonte do processo sócio-educativo <strong>em</strong> que se dá a aquisição de valores<br />

importantes para a formação de uma sociedade ética.<br />

Outro aspecto intrigante que venho detectando nessas famílias é a discrepância<br />

entre as expectativas dos pais relativas à vida pessoal e profissional e as de seu<br />

filho adicto. Os progenitores costumam pensar que existe sintonia entre a idade<br />

xvi


cronológica e a idade <strong>em</strong>ocional de seu filho, quando na realidade isso não ocorre.<br />

Com base <strong>em</strong> tal pressuposto, esperam que ele cumpra expectativas para as quais<br />

não está preparado ou não são coincidentes com os seus desejos pessoais. Tais<br />

discrepâncias são regidas por um mecanismo de rejeição dos pais <strong>em</strong> relação à<br />

forma como o filho se vê. Isso alimenta uma revolta no adicto por não se perceber<br />

aceito e valorizado, frustrando-o <strong>em</strong> relação a suas ambições pessoais (Schenker,<br />

1993). A partir dessa reflexão formulo uma segunda hipótese:<br />

a expectativa dos pais quanto à realização pessoal e profissional do adicto são<br />

conflitantes.<br />

A percepção que os adultos significativos 1 têm de suas crianças e jovens contribui<br />

para a construção de sua auto-imag<strong>em</strong> (Nolte e Harris, 1998). A forma negativa que<br />

internalizam de como são percebidos pelos adultos contribui para a o<br />

desenvolvimento de uma relação de dependência do adicto. Mas essa relação<br />

poderá estar a serviço do não enfrentamento da solidão do ninho vazio (Haley,<br />

1980). Os pais, s<strong>em</strong> filhos para criar, costumam se voltar para questões de relações<br />

intra-familiares que causam sofrimento e com as quais é difícil lidar como, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, o enorme fosso aberto entre o casal ao longo dos anos; ou o fato da<br />

mulher sair <strong>em</strong> busca de novos relacionamentos adultos após a separação; ou ainda<br />

os pais do adicto ter<strong>em</strong> de lidar com a dependência <strong>em</strong>ocional e com a infantilização<br />

que eles próprios sofr<strong>em</strong> <strong>em</strong> relação a seus próprios pais. Nesse processo difícil, o<br />

adicto habitualmente não se esforça <strong>em</strong> conquistar a sua autonomia, conservandose<br />

também infantilizado na trama familiar. Trata-se de um jogo de interesses, cujo<br />

1 Adulto significativo refere-se àquele que cria os filhos sendo, por isso, por eles considerado como uma pessoa<br />

mais relevante e expressiva <strong>em</strong> sua vida (NA).<br />

xvii


objetivo primordial é a dependência <strong>em</strong>ocional entre as gerações, que se pauta nas<br />

dificuldades <strong>em</strong>ocionais desse sist<strong>em</strong>a familiar. Em relação a essa situação, levanto<br />

a minha terceira hipótese:<br />

a infantilização dos filhos contribui para a não internalização dos valores<br />

familiares.<br />

No exercício da clínica também t<strong>em</strong> me chamado atenção a forma como estas<br />

famílias se organizam. Apesar de cada caso ter as suas particularidades, percebo<br />

um ponto comum entre todas elas. Seria de se esperar que, na hierarquia familiar,<br />

os avós cumpriss<strong>em</strong> funções socialmente esperadas da primeira geração e os pais<br />

foss<strong>em</strong> os responsáveis das relações primárias com o adicto. Na realidade, porém,<br />

os papéis costumam ficar confusos. A segunda geração é desqualificada pela<br />

primeira nas funções materna e paterna; <strong>em</strong> conseqüência, esses pais continuam<br />

sendo mais filhos do que pais, seja porque precisam da aprovação constante da<br />

primeira geração, seja porque qu<strong>em</strong> acaba criando os netos são os avós. As<br />

justificativas são várias, dentre as quais, muitos pais [segunda geração] portam<br />

sintomas graves como depressão e alcoolismo. A partir de tais constatações,<br />

formulo minhas últimas duas hipóteses:<br />

a organização da hierarquia no sist<strong>em</strong>a familiar fornece informações sobre a<br />

forma como os valores familiares são construídos através das gerações e o uso<br />

de drogas por parte de um dos pais, ou por ambos, comunica valores<br />

conflitantes para os m<strong>em</strong>bros da família.<br />

xviii


Mesmo levando <strong>em</strong> conta as mudanças sociais profundas da sociedade atual,<br />

entendo que não há determinismo quanto aos valores culturais repassados nas<br />

relações primárias, <strong>em</strong>bora seu papel seja fundamental na formação dos jovens. Há<br />

s<strong>em</strong>pre a liberdade dos sujeitos frente a essa e as muitas outras influências que<br />

receb<strong>em</strong> do contexto social mais amplo: existe uma dialética nas relações entre<br />

indivíduo e sociedade e que também está presente no processo de drogadição.<br />

Elaborei junto com minha orientadora uma ampla e extensa revisão bibliográfica da<br />

literatura científica de 1995 a 2003, visando ao aprofundamento da probl<strong>em</strong>ática<br />

aqui tratada. Esse esforço redundou <strong>em</strong> três artigos: o primeiro aborda a interrelação<br />

entre a adolescência, a família e o uso indevido ou abusivo de drogas<br />

(Schenker e Minayo, 2003) 2 ; o segundo versa sobre uma vasta revisão dos diversos<br />

tratamentos baseados na família com adictos (Schenker e Minayo, 2004) 3 ; e o<br />

terceiro, contribui para o entendimento da prevenção ao uso indevido de drogas a<br />

partir de fatores individuais, familiares e sociais (Schenker e Minayo, 2005) 4 .<br />

No entanto, nesse material não encontrei artigos que se referiss<strong>em</strong> ao t<strong>em</strong>a que<br />

escolhi pesquisar: valores familiares. Portanto este estudo é original e configura um<br />

esforço teórico-metodológico e <strong>em</strong>pírico.<br />

Entendo que a tessitura dos valores na família se constrói diacrônica e<br />

sincronicamente. No primeiro caso, quando se refere aos valores da cultura e da<br />

sociedade como um movimento que acompanha os momentos históricos<br />

específicos. Neste sentido, a filósofa marxista Agnes Heller oferece uma excelente<br />

2 Apêndice I.<br />

3 Apêndice II.<br />

4 Apêndice III.<br />

xix


contribuição filosófica quando diz que “a moral [se configura] como uma relação<br />

entre atividades humanas”, e é por meio da ação que a moral “conecta a<br />

particularidade com a universalidade humana” (Heller, 2000, 5). No segundo caso,<br />

ou seja, do ponto de vista sincrônico, a família decodifica os valores sociais e a<br />

construção de novos valores por meio da educação (que se dá no seu seio), dos<br />

vínculos e modelos que segue. Aqui também é fundamental a contribuição de Heller<br />

que afirma, “os homens jamais escolh<strong>em</strong> valores... Escolh<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre idéias<br />

concretas, finalidades concretas, alternativas concretas. Seus atos concretos de<br />

escolha estão naturalmente relacionados com sua atitude valorativa geral, assim<br />

como seus juízos estão ligados à sua imag<strong>em</strong> de mundo. E reciprocamente: sua<br />

atitude valorativa se fortalece no decorrer dos concretos atos de escolha” (Heller,<br />

2000, 14).<br />

Por fim, ao encerrar esta introdução, considero que este estudo poderá contribuir<br />

para a prevenção e o tratamento do uso de drogas porque os valores constitu<strong>em</strong> os<br />

princípios que norteiam a família geração após geração, a partir de suas práticas<br />

sociais. Trabalhar valores das famílias nas suas formas diacrônica e sincrônica<br />

poderá resultar numa negociação dos inúmeros aspectos socialmente considerados<br />

positivos que precisam <strong>em</strong>ergir da insegurança que se instaurou <strong>em</strong> muitos desses<br />

núcleos, a favor da promoção de sua saúde e de sua qualidade de vida.<br />

Escolhi efetuar a busca e a compreensão dos valores a partir da narrativa de<br />

algumas famílias percorrendo os três eixos norteadores: valores familiares, conflito<br />

entre gerações e processo educativo. Na Parte 1 desenvolvo a introdução ao marco<br />

referencial onde cont<strong>em</strong>plo idéias de autores que discorr<strong>em</strong> sobre o uso abusivo de<br />

xx


drogas e sobre as três categorias básicas que compõ<strong>em</strong> essa investigação. A<br />

segunda parte comporta a abordag<strong>em</strong> metodológica, com a fundamentação da parte<br />

teórica pelo pensamento sistêmico-cibernético e a narração dos caminhos de<br />

operacionalização do estudo. Na terceira parte conto as histórias das famílias,<br />

privilegiando a hermenêutica, e efetuo uma tecedura com idéias dos autores do<br />

marco referencial e da parte teórica da metodologia. A conclusão, última parte desse<br />

estudo, contém minhas reflexões sobre as questões abordadas, retomando as<br />

hipóteses referidas na introdução.<br />

xxi


PRIMEIRA PARTE<br />

INTRODUÇÃO DO MARCO REFERENCIAL<br />

Decidi refletir sobre as trajetórias de famílias de jovens adictos seguindo os fios<br />

narrativos de algumas histórias geracionais a partir de três categorias que<br />

constituíram a coluna vertebral do estudo: Valores Familiares, Conflito entre as<br />

Gerações e Processo Educativo. O material colhido nas entrevistas com as nove<br />

famílias poderá referendar, ou não, as cinco hipóteses por mim formuladas no<br />

início do trabalho e sobre esse assunto é preciso ressalvar que todas elas não<br />

serão necessariamente cont<strong>em</strong>pladas integralmente por cada uma das famílias do<br />

estudo.<br />

O processo social do uso de drogas é o meu primeiro objeto de reflexão. O<br />

conceito droga será utilizado aqui para designar as substâncias psicoativas que<br />

alteram o funcionamento do sist<strong>em</strong>a nervoso central (SNC) do indivíduo, quer<br />

deprimindo-o, estimulando-o ou perturbando-o. Faço também um breve relato das<br />

representações do uso de drogas ao longo da história com o intuito de<br />

contextualizar a situação dos entrevistados. A UNESCO (Organização das Nações<br />

Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) propõe a seguinte classificação dos<br />

usuários:<br />

“a) Experimentador: limita-se a experimentar uma ou várias drogas,<br />

<strong>em</strong> geral por curiosidade, s<strong>em</strong> dar continuidade ao uso;<br />

1


) Usuário Ocasional: utiliza uma ou várias substâncias, quando<br />

disponível ou <strong>em</strong> ambiente favorável, s<strong>em</strong> rupturas nas relações<br />

afetivas, sociais ou profissionais;<br />

c) Usuário Habitual ou Funcional: faz uso freqüente, ainda que<br />

controlado, mas, no seu comportamento já se observam sinais de<br />

rupturas;<br />

d) Usuário Dependente ou Disfuncional também comumente<br />

designado toxicômano, drogadicto, adicto, dependente químico: vive<br />

pela droga e para a droga, de forma descontrolada, apresentando<br />

rupturas <strong>em</strong> seus vínculos sociais, e tendendo à marginalização e ao<br />

isolamento” (Bucher, 1995, 9).<br />

Ao proceder às narrativas, nenhuma família e nenhum de seus m<strong>em</strong>bros será<br />

identificado pelo nome. As denominações fictícias permit<strong>em</strong> mostrar os<br />

movimentos e dinâmicas entre interações, práticas e representações que, se são<br />

individuais, também diz<strong>em</strong> respeito a um universo muito mais abrangente. São<br />

tantas histórias! Em cada uma delas há aspectos recorrentes e singulares que<br />

deverão ser ressaltados.<br />

O uso abusivo de drogas constitui um t<strong>em</strong>a central desse estudo. Inicio<br />

privilegiando a descrição e a análise das representações desse fenômeno na<br />

geração dos pais e dos filhos das famílias. Dialogarei com autores que<br />

escreveram sobre o t<strong>em</strong>a <strong>em</strong> diferentes momentos, principalmente com Gilberto<br />

Velho, Joel Birman, Richard Bucher, Carlos Alberto Plastino e Gilberta Acselrad.<br />

2


A maioria dos pais dos usuários desse estudo viveu a juventude entre as décadas<br />

de 60 e 70. Nessa época, ocorria o que se convencionou chamar de movimento<br />

da contracultura nas camadas médias da população (Velho, 1997), <strong>em</strong> que o uso<br />

de drogas se caracterizava, de uma forma compl<strong>em</strong>entar, por uma rejeição frontal<br />

ao modo de vida convencional, e pela ênfase na liberdade sexual e na vida <strong>em</strong><br />

comunidade, <strong>em</strong> detrimento dos bens materiais. “Sua originalidade residia na<br />

ênfase que dava ao aperfeiçoamento e liberdade individuais associadas às<br />

preocupações sociais mais ou menos sist<strong>em</strong>áticas” (p. 11). Na década de 60 a 70<br />

(Birman, 1997, Bucher, 1992, Velho, 1993), os valores vigentes diziam respeito à<br />

contestação crítica da ord<strong>em</strong>, tanto familiar quanto social, e à descoberta e<br />

construção de um admirável mundo novo no dizer de Huxley (2001). As drogas,<br />

notadamente a maconha e o LSD, permitiram que os jovens experimentass<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

grupo novas percepções e sensações de vida, propondo uma possível alternativa<br />

ao modelo competitivo de vida heg<strong>em</strong>ônica no sist<strong>em</strong>a vigente. Elas também<br />

significavam a contra-cultura da guerra, especialmente a que se travava à época,<br />

a do Vietnam, com os slogans paz e amor; faça amor, não faça a guerra,<br />

configurando idéias pacifistas e de protesto. Naquele momento havia “uma<br />

absoluta convicção de engajamento no projeto de um modo de vida melhor”<br />

(Mourão, 2003, 110).<br />

Como b<strong>em</strong> situa Acselrad: “Em um mesmo momento histórico, as substâncias são<br />

legais <strong>em</strong> alguns países e proibidas <strong>em</strong> outros; <strong>em</strong> um mesmo território, usos<br />

tolerados, legais outrora, ficam obscurecidos; há tolerância diante do consumo de<br />

3


certas drogas lícitas, <strong>em</strong> que pes<strong>em</strong> os altos índices de danos à saúde e à<br />

sociedade, decorrentes de seu uso banalizado (caso do uso abusivo de bebidas<br />

alcoólicas); discut<strong>em</strong>-se pouco os prejuízos da auto-medicação, na medida da<br />

legalidade do produto”(2000,164).<br />

Fato é que a representação sobre o uso de drogas muda com o t<strong>em</strong>po. Portanto<br />

os seus significados são transitórios, passando pelo seu sentido recreativo,<br />

ocasional até ao de dependência. No registro cultural e antropológico seus valores<br />

simbólicos se modificam ao longo da história. Na cont<strong>em</strong>poraneidade o consumo<br />

se articula ao modo de ser e de pensar da sociedade ocidental globalizada, onde<br />

se localizam as famílias desse estudo.<br />

Conforme pontua Plastino: “a toxicomania não pode ser analisada como um<br />

fenômeno isolado, sendo conveniente considerá-la como um aspecto específico<br />

de um conjunto mais abrangente de comportamentos sociais caracterizados por<br />

um imaginário social fort<strong>em</strong>ente individualista” (2003,133).<br />

Um dos valores sociais também enfatizados na atualidade é o glamour, aliado ao<br />

brilho, ambos necessários para que os atores sociais vivam a vida b<strong>em</strong> e com<br />

prazer, este sim um imperativo nos t<strong>em</strong>pos atuais. Esses valores não se<br />

coadunam com tristeza ou depressão. Por isso, muitas pessoas buscam, entre<br />

outros, a medicalização, as pílulas da felicidade como uma forma de adequação<br />

ao modelo vigente. A droga de eleição, nesse caso, é a cocaína, codinome brilho.<br />

Também o ecstasy assegura a moda eletrizante do prazer.<br />

4


Descreverei quatro famílias ao longo de suas representações e ações relativas ao<br />

uso abusivo de drogas, concentrando-me nas palavras dos usuários uma vez que<br />

eles foram o foco principal da interlocução.<br />

Ao selecionar as quatro famílias para situar as minhas reflexões reparei que todos<br />

os usuários eram adolescentes. Os usuários de drogas das outras cinco, cujas<br />

histórias não foram aqui detalhadas, quatro são adultos jovens e um é<br />

adolescente, segundo o critério de idade cronológica. Entretanto, verifico uma<br />

adequação entre idade e maturidade <strong>em</strong> somente um dos usuários desse estudo.<br />

De qualquer forma, o início do uso de drogas ocorre neste grupo e, na maioria dos<br />

casos, na adolescência, podendo ainda aqui derivar para a dependência. Por isso,<br />

antes de passar às narrativas das famílias, me deterei nessa fase turbulenta de<br />

<strong>em</strong>oções na vida social.<br />

Neste estudo entendo a adolescência tendo <strong>em</strong> conta as observações de<br />

Eisenstein: “Devido às características de variabilidade e diversidade dos<br />

parâmetros biológicos e psicossociais que ocorr<strong>em</strong> nesta época [adolescência]<br />

denominadas de assincronia de maturação, a idade cronológica, apesar de ser o<br />

critério mais usado [pela OMS, ONU e ECA 1 ], muitas vezes não é o melhor critério<br />

descritivo <strong>em</strong> estudos clínicos, antropológicos e comunitários ou populacionais”<br />

(2004,1).<br />

1 OMS – Organização Mundial de Saúde; ONU – Organização das Nações Unidas; e ECA – Estatuto da<br />

Criança e do Adolescente (NA).<br />

5


A adolescência se caracteriza por mudanças biológicas, sociais e psicológicas e é<br />

marcada por uma labilidade <strong>em</strong>ocional decorrente das instabilidades do processo<br />

de transição (Bucher, 1992) vivido pelo adolescente entre o desejo de ainda<br />

querer ser criança pouco cobrada nas suas responsabilidades e deveres,<br />

protegida pelos adultos da família, e o adulto jov<strong>em</strong> que se desprende<br />

paulatinamente da casa dos pais e se lança para o mundo dos pares. Trata-se de<br />

um processo <strong>em</strong>ocionalmente doloroso porque ambivalente.<br />

O prazer invade o adolescente na descoberta da sexualidade, da afetividade, das<br />

amizades e também no compartilhar do uso de drogas. Essa é uma experiência<br />

que geralmente se dá <strong>em</strong> grupo, ou com um amigo. Os adolescentes estão <strong>em</strong><br />

busca de novas sensações e não têm, muitas vezes, noção dos perigos (Giddens,<br />

1991) que rondam a busca dos resultados almejados. Fato é que ao consumir<strong>em</strong><br />

drogas, eles buscam prazer, extroversão, compartilhamento grupal, diferenciação,<br />

autonomia e independência de sua família. O lado negativo da busca do prazer é<br />

o risco de se tornar adicto, comprometendo a sua trajetória de vida (Schenker e<br />

Minayo, 2005). A dependência às drogas é mediada pela interdependência de<br />

fatores de risco individuais, familiares e sociais. Nesse estudo, foco minha lente<br />

nos fatores familiares, a despeito de saber que eles faz<strong>em</strong> parte de um<br />

entrelaçamento de circunstâncias que explicam o uso abusivo de drogas pelo<br />

adolescente.<br />

Categorias Centrais de Análise.<br />

6


1. Valores Familiares<br />

São duas as questões centrais que desenvolvo neste tópico, assim resumidas:<br />

quais são os valores - princípios de comportamento e de ensinamentos –<br />

transmitidos para os filhos e netos, considerados importantes pelas famílias de<br />

usuários de drogas? Esses princípios são ensinados? São vivenciados? Como?<br />

Interesso-me pela construção do conceito família, perguntando aos entrevistados<br />

sobre o significado dessa instituição para eles. Dialogando também com alguns<br />

autores, privilegio a noção de desmapeamento e a ampliação que Nicolaci-da-<br />

Costa faz do conceito de socialização secundária desenvolvido por Berger e<br />

Luckmann.<br />

Numa perspectiva sociológica (Ribeiro e Ribeiro, 1993), a categoria valores é aqui<br />

compreendida no interior da relação entre princípios e práticas, acompanhando a<br />

movimentação do modelo de referência 2 familiar de camadas médias urbanas que<br />

apresentam um probl<strong>em</strong>a de adicção ao longo de sua história intergeracional.<br />

Então, nesta proposta de discussão de valores, enfoco a relação entre os<br />

princípios organizadores, conformadores e as propensões à permanência,<br />

juntamente com as práticas, as conjunturas e as alterações de diferentes períodos<br />

2 Utilizo a expressão Modelo de Referência no sentido de Ribeiro e Ribeiro, significando “instâncias<br />

respaldadoras ou referenciadoras dos princípios e das práticas que viabilizam a <strong>em</strong>ergência, a consolidação<br />

e a difusão dos Valores vigentes e/ou subjacentes, seja <strong>em</strong> direção às preservações ou às mudanças,<br />

enquanto processos desenrolados na vida cotidiana” (Ribeiro e Ribeiro, 1993, 39).<br />

7


e de diferentes fontes no interior das representações de modelos culturais da<br />

família e da sociedade.<br />

Do ponto de vista antropológico, Geertz e Velho articulam a discussão do conceito<br />

de valores ao debate existente sobre cultura, como um lugar privilegiado de<br />

realização da produção social e de manifestação da subjetividade. Geertz (1989)<br />

parte da idéia de que existe uma produção simbólica e um sist<strong>em</strong>a de símbolos –<br />

a cultura –, que fornec<strong>em</strong> indicações e contornos de grupos sociais e das<br />

sociedades específicas. Para Velho (1999c), os seres humanos <strong>em</strong> interação<br />

social participam de um sist<strong>em</strong>a de crenças, valores e visão de mundo que<br />

formam a sua rede de significados e “defin<strong>em</strong> a própria natureza humana”. As<br />

culturas são diversas, pois há inúmeros modos de construção social da realidade,<br />

que confirmam padrões e normas peculiares a cada cultura (Velho, 1999f).<br />

Dentre as várias maneiras de situar o conceito de cultura, Geertz escolhe a sua<br />

aproximação com a idéia de ethos 3 , que engloba “os aspectos morais e estéticos<br />

e os el<strong>em</strong>entos valorativos” e se refere à visão de mundo e aos “aspectos<br />

cognitivos e existenciais” (1989, 93). Velho chama a atenção para a dicotomia<br />

inscrita no conceito de cultura de Geertz – ethos e visão de mundo – pontuando<br />

que: “Parece-me que a noção de sist<strong>em</strong>a cognitivo é indissociável da de sist<strong>em</strong>a<br />

de crenças e esta, por sua vez, implica imediatamente <strong>em</strong>oção e sentimento”. O<br />

3 O ethos de um povo é o tom, o caráter, a qualidade de vida, seu estilo moral e estético; e sua disposição, é a<br />

atitude subjacente <strong>em</strong> relação a ele mesmo e ao seu mundo.<br />

8


que há é uma “indissolúvel vinculação entre conhecimento e <strong>em</strong>oção e<br />

afetividade” (Velho, 1999e, 51) 4 .<br />

Há, portanto, na definição de cultura de Gilberto Velho e também na de Geertz<br />

uma idéia de complexidade que vincula o meio sócio-cultural, os valores e a sua<br />

inscrição na subjetividade, apresentando-se estes el<strong>em</strong>entos indissociavelmente<br />

imbricados.<br />

Minayo e colaboradores defin<strong>em</strong> a versatilidade que dá corpo à família como “uma<br />

organização social complexa, um microcosmo da sociedade, onde ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po se viv<strong>em</strong> relações primárias e se constro<strong>em</strong> processos identificatórios. É<br />

também um espaço onde se defin<strong>em</strong> papéis sociais de gênero, cultura de classe e<br />

se reproduz<strong>em</strong> as bases do poder. É ainda o lócus da política misturada no<br />

cotidiano das pessoas, nas discussões dos filhos com os pais, nas decisões sobre<br />

o futuro, que ao mesmo t<strong>em</strong>po t<strong>em</strong> o mundo circundante como referência e o<br />

desejo e as condições de possibilidade como limitações. Por tudo isso, é o espaço<br />

do afeto e também do conflito e das contradições” (1999,89).<br />

O processo de identificação se organiza, no seio da família, através da<br />

socialização primária e da socialização secundária, conceitos enunciados por<br />

Berger e Luckmann (2002). A socialização primária t<strong>em</strong> lugar na infância, sendo<br />

mediada pelas pessoas significativas da família <strong>em</strong> sua interseção com o mundo<br />

4 Esta concepção de cultura aproxima-se da explicação que Maturana (Maturana et al, 2002b) propõe para o<br />

binômio <strong>em</strong>oção e razão.<br />

9


social; é a partir dela que o sujeito torna-se m<strong>em</strong>bro da sociedade. Desta forma o<br />

mundo social é filtrado para a criança que o interioriza como sendo o mundo único<br />

existente e concebível. Esse processo não é unilateral. Implica uma “dialética<br />

entre a identidade objetivamente atribuída e a identidade subjetivamente<br />

apropriada” (2002,177). A socialização secundária introduz o sujeito já socializado<br />

<strong>em</strong> novos setores do mundo objetivo da sociedade <strong>em</strong> que vive.<br />

O processo de tornar-se m<strong>em</strong>bro da sociedade implica num contexto carregado de<br />

<strong>em</strong>oção e de fortes laços afetivos, condição necessária para a internalização do<br />

sist<strong>em</strong>a simbólico de seus agentes socializadores. Por tudo isso, para Berger e<br />

Luckmann o sist<strong>em</strong>a simbólico internalizado por meio do processo de socialização<br />

primária é muito mais persistente e resistente à erradicação do que os mundos<br />

assimilados nos vários processos de socialização secundária. Estes últimos se<br />

refer<strong>em</strong> aos diferentes setores da sociedade aos quais o sujeito se liga durante a<br />

sua vida.<br />

Nicolaci-da-Costa (1985) expande a noção de socialização secundária. Pelo fato<br />

do sujeito se identificar com seus iniciais agentes socializadores que constitu<strong>em</strong> a<br />

sua família, o sist<strong>em</strong>a simbólico internalizado na socialização primária t<strong>em</strong> sua<br />

existência garantida. E os sist<strong>em</strong>as simbólicos derivados das socializações<br />

secundárias também estão presentes por ser<strong>em</strong> mais recentes e contar<strong>em</strong> com o<br />

apoio de um consenso razoável.<br />

10


Ora, do ponto de vista histórico, a instituição família paga um preço alto pelo fato<br />

da modernização na sociedade ocidental, <strong>em</strong> particular na sociedade brasileira,<br />

ocorrer <strong>em</strong> ritmo muito veloz; <strong>em</strong> planos dissociados, entrelaçando antigos e<br />

novos ideais e identidades. Os antigos, vistos como arcaicos, permanec<strong>em</strong><br />

invisíveis porque inconscientes <strong>em</strong> sua maior parte, mas muito eficazes <strong>em</strong> sua<br />

oposição ao modelo vigente. Essa dinâmica cambiante conforma a noção de<br />

desmapeamento, desenvolvida por <strong>Figueira</strong> <strong>em</strong> diferentes momentos (1981, 1985,<br />

1987). Tal conceito abarca o sujeito e sua família, ao sublinhar que, <strong>em</strong> ambos,<br />

conviv<strong>em</strong> valores e mapas conflitantes. Formas atuais e visíveis de organização<br />

familiar interag<strong>em</strong>, <strong>em</strong> estado de conflito potencial, com formas historicamente<br />

mais antigas 5 , supostamente abandonadas no decurso de mudanças sociais.<br />

Entretanto, estes antigos valores que permanec<strong>em</strong> invisíveis não são<br />

abandonados pelo sujeito que os internalizou <strong>em</strong> algum momento de seu<br />

desenvolvimento e de sua formação (<strong>Figueira</strong>, 1985, 1987).<br />

O conflito do e no sujeito, explica Ana Maria Nicolaci-da-Costa, “ocorre entre as<br />

suas representações primitivas de inserção no mundo adulto, cujas raízes se<br />

encontram no sist<strong>em</strong>a simbólico internalizado durante o processo de socialização<br />

primária, e suas representações mais recentes e concretas de participação real na<br />

reprodução da ord<strong>em</strong> social oriundas de sist<strong>em</strong>as simbólicos internalizados<br />

através de socializações secundárias” (1985,159). Cabe ressaltar que “o sujeito<br />

passa a se relacionar institucionalmente com um outro a partir de posições nas<br />

quais viu seus agentes socializadores estar<strong>em</strong> – isto é, <strong>em</strong> posições de<br />

5 Ver Heller (2000,10).<br />

11


eprodutores da ord<strong>em</strong> social” (Nicolaci-da-Costa, 1985, 157-158). É justamente<br />

neste momento que ele poderá experimentar conflitos entre as suas expectativas<br />

ou representações de inserção no mundo adulto e as que traz internalizadas e<br />

arraigadas do processo de socialização primária, porque “é forçado a definir uma<br />

linha de conduta coerente” (Nicolaci-da-Costa, 1985, 165).<br />

Ivete Ribeiro e Ana Clara Ribeiro (1993) destacam a relação necessária entre os<br />

valores e os processos sociais, culturais e históricos sublinhando que, “os níveis<br />

de inadequação entre valores referidos à Família e suas expressões históricas (as<br />

normas, as regras), as margens de não-correspondência de objetivos coletivos até<br />

então cristalizados como agentes socializadores (os princípios) e formas<br />

inovadoras de sociabilidade (as práticas), certamente alcançaram graus de<br />

visibilidade ampliados – a partir dos anos sessenta” (grifo meu, 1993,99). A<br />

velocidade dos processos sociais de mudança fragmentou os perfis heg<strong>em</strong>ônicos<br />

da família dando lugar à profunda quebra de padrões ocorrida nos anos setenta.<br />

Tais dinâmicas se mostram através de “desenraizamentos expressos <strong>em</strong> fluxos<br />

migratórios para os espaços urbano-metropolitanos do país; transformações no<br />

mercado de trabalho urbano, com incorporação crescente do trabalho f<strong>em</strong>inino;<br />

rupturas do universo familiar <strong>em</strong> decorrência de novos Valores e do recuo <strong>em</strong><br />

matrizes culturais tradicionais” (Ribeiro e Ribeiro, 1993, 160).<br />

2. Conflito entre Gerações<br />

12


A questão central que desenvolvo neste tópico versa sobre os conflitos entre as<br />

gerações porque a forma como são negociados influencia a passag<strong>em</strong> dos valores<br />

familiares ao longo da história familiar. Terei acesso aos conflitos através das<br />

formas como, no interior da família, se desdobram os conceitos de hierarquia,<br />

infantilização e expectativa.<br />

A sociologia da organização familiar, de acordo com os postulados de Dumont<br />

(1970, 1974, 1985), apresenta uma classificação que ajuda a diferenciar seus<br />

modos de apresentação, que combinam aspectos diacrônicos e sincrônicos:<br />

modelos hierárquicos e igualitários. A família de organização hierárquica (<strong>Figueira</strong>,<br />

1987) prevalece nas camadas populares cont<strong>em</strong>porâneas. Relativamente<br />

organizada, mapeada, apesar de conflitos internos, este modelo de família se<br />

pauta pela diferença entre hom<strong>em</strong> e mulher, com formas de comportamentos<br />

próprios a cada sexo. As funções e papéis familiares são nitidamente delineados,<br />

prevalecendo tanto a superioridade do hom<strong>em</strong> devido à sua relação com o<br />

trabalho fora de casa, quanto à expectativa do exercício da monogamia ser<br />

somente referido à mulher. Do ponto de vista da autoridade, o indivíduo, nesse<br />

modelo, encontra-se incluído ou incorporado no grupo, que s<strong>em</strong>pre t<strong>em</strong><br />

precedência e preferência, se traduzindo, portanto, <strong>em</strong> sacrifícios dos desejos<br />

pessoais para o b<strong>em</strong> coletivo.<br />

Gilberto Velho sublinha, com propriedade, a dialética existente entre os ideais<br />

hierarquizantes e os individualistas: “insisto que mesmo nos sist<strong>em</strong>as<br />

hierarquizantes, holistas, tradicionais, mais fechados, pod<strong>em</strong> ocorrer fenômenos<br />

13


usualmente alocados à sociedade moderna. Creio que a tensão permanente entre<br />

a hierarquia e processos de individuação, que pod<strong>em</strong> estar associados a<br />

ideologias individualistas, surge nos diferentes segmentos sociais e culturais”<br />

(1999g,104-05).<br />

A família de organização igualitária (<strong>Figueira</strong>, 1987), que segue a ideologia do<br />

igualitarismo, veio a reboque de transformações históricas, econômicas e sóciopolíticas.<br />

Sua raiz é a Declaração Universal dos Direitos do Hom<strong>em</strong>. A aceleração<br />

da modernização t<strong>em</strong> impactos na organização da família brasileira <strong>em</strong> geral e<br />

das camadas médias <strong>em</strong> particular, aliados a vários outros fatores, conforme já<br />

apontados nesse estudo: crescimento e concentração de renda nas décadas de<br />

60 e 70, maior acesso ao ensino superior e mais escolarização, avanço do<br />

movimento f<strong>em</strong>inista e crescente influência da mídia na formação de valores<br />

sociais. A organização da família vai se fluidificando, aliada à aceitação do<br />

divórcio, da maternidade fora do casamento e do exercício libertário da<br />

sexualidade fora dos objetivos de uma relação estável (Heilborn, 2004, 108).<br />

Todos os aspectos citados contribu<strong>em</strong> para o crescimento do valor do indivíduo e<br />

da progressiva transformação da família extensa <strong>em</strong> nuclear. Tal modelo, que vai<br />

se firmando nas classes médias do Brasil industrial, paga o preço de uma<br />

instabilidade quanto às tradições anteriores, valorizando a igualdade como ideal<br />

regulador das relações formais entre pessoas diferentes. Na família igualitária,<br />

teoricamente, a identidade respeita as idiossincrasias, na medida <strong>em</strong> que hom<strong>em</strong><br />

e mulher são diferentes, mas iguais enquanto indivíduos e sujeitos de direitos.<br />

14


Nesta perspectiva, as estereotipias das diferenças entre hom<strong>em</strong> e mulher tend<strong>em</strong><br />

ao desaparecimento e as diferenças são marcadas como questão de gosto<br />

pessoal. A noção de desvio se esfumaça, já que a palavra de ord<strong>em</strong> é o respeito à<br />

individualidade. Mesmo que a família moderna, a caminho da pós-moderna, não<br />

siga à risca esses traços culturais, o modelo igualitário permanece para elas,<br />

como referência no plano ideal.<br />

É no interior da proposta de ideais igualitários que se instala a visão de que a<br />

família é uma instituição opressora e dominadora para os seus indivíduos, como<br />

Sônia, uma das “mães” entrevistadas, definiu a sua na década de 60 6 . No entanto,<br />

a tensão entre os dois ideais continua, pois o mecanismo que opera na hierarquia<br />

é o englobamento e a fragmentação no individualismo.<br />

A categoria hierarquia é importante para o estudo por dois motivos: <strong>em</strong> primeiro<br />

lugar tenho a hipótese de que a organização da hierarquia no sist<strong>em</strong>a familiar<br />

influencia a constituição dos valores familiares. Em segundo lugar, considero<br />

importante saber se houve conflitos entre as gerações na educação dos filhos e<br />

netos e, <strong>em</strong> caso afirmativo, como estes conflitos foram encaminhados e<br />

solucionados. Conforme apontei na Introdução, penso que a organização da<br />

hierarquia deve lançar luz sobre a forma como os valores são construídos através<br />

das gerações. Inicio a pesquisa dessa hipótese interessando-me por qu<strong>em</strong> da<br />

família cuidou dos jovens e os educou: a geração dos avós, a geração dos pais ou<br />

ambas? Que influências essa criação pode ter na aquisição dos valores<br />

6 Sônia é a mãe do primeiro grupo familiar descrito – a família Zoar.<br />

15


familiares? Que influências esses conflitos pod<strong>em</strong> ter na aquisição dos valores<br />

familiares pelos filhos e netos?<br />

Formulo a hipótese de que a infantilização dos filhos contribui para o não<br />

cumprimento dos valores familiares e sociais. Entendo infantilização como o<br />

processo <strong>em</strong> que os adultos significativos da família não estimulam o<br />

desenvolvimento autônomo de seus filhos. A infantilização também engloba a nãoelaboração<br />

e o não-cumprimento de metas para a vida pessoal e profissional ao<br />

longo do desenvolvimento do sujeito. A questão <strong>em</strong> pauta versa sobre o binômio<br />

responsabilidade e independência: consideram filhos, netos e si próprio(a)<br />

responsáveis? Alguma possibilidade de modificação ou transformação desse<br />

binômio?<br />

O conceito expectativa diz respeito aos projetos que os avós e os pais tinham ou<br />

têm para a vida pessoal, profissional e de amizades dos seus filhos e netos. A<br />

pergunta central gira <strong>em</strong> torno dos sonhos que pais e avós tiveram para seus<br />

filhos e netos e sobre as possibilidades de modificação ou transformação desses<br />

sonhos. A hipótese delineada é de que: a expectativa dos pais quanto à realização<br />

pessoal e profissional dos filhos é conflitante com a dos últimos.<br />

Gilberto Velho apóia-se <strong>em</strong> Schutz (1971) ao dizer que o projeto é “conduta<br />

organizada para atingir fins específicos” e não um fenômeno puramente interno e<br />

subjetivo (1999c,107). O projeto lida com des<strong>em</strong>penho e opções que se<br />

fundamentam <strong>em</strong> definições da realidade, s<strong>em</strong>pre negociadas e construídas,<br />

16


formando a trama da vida social conectada aos códigos culturais e aos processos<br />

históricos de longa duração. O projeto é elaborado dentro de um campo de<br />

possibilidades, circunscrito histórica e socialmente e com o potencial interpretativo<br />

da cultura (Velho, 1999d, 28).<br />

A época da geração dos avós foi marcada por uma certa estabilidade na visão<br />

generalizada da família. Partia do casamento monogâmico, da hierarquia definida<br />

<strong>em</strong> termos dos papéis de gênero e do código moral que ditava comportamentos.<br />

Já os anos 60 e 70 foram o t<strong>em</strong>po do milagre econômico brasileiro. Os pais tinham<br />

projetos de ascensão social para seus filhos, uma vez que existia forte vínculo<br />

entre a ideologia modernizante capitalista, que enfatizava o consumo e o sucesso<br />

material e o ideário das famílias das camadas médias nessas duas décadas.<br />

Os anos 80 foram marcados pela crise econômica e social, abalando os sonhos<br />

das classes médias e acirrando as diferenças sociais. Do ponto de vista cultural,<br />

porém, a família continua passando por transformações sobretudo na expansão e<br />

no aprofundamento da individualidade. A angústia da individualização, o próprio<br />

não saber o que querer é uma constatação da pouca clareza do projeto. E na<br />

sociedade moderna cada vez mais se cobra isso – é preciso definir e descobrir o<br />

que se quer (Velho, 1999a, 44). “Quão diferente são os valores que reg<strong>em</strong> a<br />

identidade de nossos cont<strong>em</strong>porâneos! Hoje, mal toleramos o peso dos papéis<br />

sociais 7 – as obrigações acarretadas pelo status de esposo e de filho. Considera-<br />

7 Papel social “é o conjunto de normas, direitos, deveres e expectativas que envolv<strong>em</strong> uma pessoa no<br />

des<strong>em</strong>penho de uma função junto a um grupo ou dentro de uma instituição” (Costa, 2001, 326).<br />

17


se que cada um t<strong>em</strong> o direito (senão a obrigação) de buscar a ‘auto-realização’, de<br />

desenvolver sua individualidade – de se descobrir enquanto ‘indivíduo singular,<br />

inimitável, insubstituível” (Fonseca, 1995, 76).<br />

3. Processo Educativo<br />

A terceira categoria norteadora desse estudo versa sobre o processo educativo<br />

que perpassa as gerações visto que os valores familiares são adquiridos através<br />

da educação. Encaminho essa discussão para a análise de vínculos, modelos,<br />

responsabilidades e limites.<br />

A educação é um processo que ocorre durante toda a vida e t<strong>em</strong> efeitos<br />

conservadores de longa duração que não se modificam facilmente, pois<br />

constitu<strong>em</strong> parte integrante do sist<strong>em</strong>a de formação dos sujeitos. “Todo sist<strong>em</strong>a é<br />

conservador naquilo que lhe é constitutivo, ou se desintegra” (Maturana, 1999,<br />

30). A congruência do sist<strong>em</strong>a familiar, o modo de viver com a família, provém de<br />

climas <strong>em</strong>ocionais diversos entre os seus m<strong>em</strong>bros: de aceitação (amor), rejeição<br />

(raiva), desconfirmação (indiferença) da forma como os m<strong>em</strong>bros do sist<strong>em</strong>a se<br />

perceb<strong>em</strong>. Esses momentos <strong>em</strong> família criam as diversas possibilidades de<br />

recepção dos ensinamentos familiares. Então, quando avós ou pais apontam para<br />

uma maior ou menor receptividade de seus filhos e netos, estão se referindo ao<br />

fluir de suas conversações num clima de maior ou menor aceitação e respeito<br />

mútuos. Nesse sentido a aprendizag<strong>em</strong> deriva de um compartilhamento dos<br />

sujeitos nela implicados.<br />

18


Se um adulto significativo vê a seu filho como bom ou mau e a relação se<br />

estabelece de acordo com essa visão, a criança se desenvolverá de acordo:<br />

respeitando-se ou não se aceitando, porque “seu devir depende de como surge –<br />

como criança boa, má, inteligente ou boba – na sua relação conosco” (Maturana,<br />

1999, 30). A criança que não foi ensinada a encarar os seus erros como<br />

oportunidades para a mudança, mas foi castigada por errar, não desenvolve o<br />

respeito e a aceitação de si.<br />

A categoria vínculo é uma das forças motrizes para a referência de transmissão de<br />

valores. A qualidade da relação que se estabelece entre avós, pais, filhos e netos<br />

influencia a orientação de princípios, atitudes e práticas familiares. A qualidade da<br />

relação se refere ao clima <strong>em</strong>ocional que flui das interações, o grau de aceitação,<br />

respeito, afeto mútuo e de diálogo entre os comunicantes, gerando intimidade,<br />

comunicação ou conflito. A aprendizag<strong>em</strong> deriva de um compartilhamento das<br />

experiências dos sujeitos nela implicados. No processo de entrevista pedi que<br />

cada m<strong>em</strong>bro da família falasse sobre como avaliava sua relação com cada<br />

m<strong>em</strong>bro da família.<br />

O vínculo entre pais e filhos se modifica durante o ciclo vital, mas permanece<br />

importante ao longo da vida. Ele reflete o grau de confiança do sujeito no outro<br />

significativo (geralmente, m<strong>em</strong>bros da família), pois se alimenta do apoio e da<br />

proteção que recebe, permanecendo próximo <strong>em</strong>ocionalmente (Liddle e Schwartz,<br />

2002). O vínculo baseado <strong>em</strong> envolvimento, apoio, afeto entre pais e filhos é uma<br />

19


pré-condição para que se identifiqu<strong>em</strong> com os valores dos pais, aumentando a<br />

probabilidade de tê-los como modelos de comportamento (Brook et al, 1990).<br />

Mesmo na adolescência, quando cresc<strong>em</strong> <strong>em</strong> autonomia e aprofundam os laços<br />

com os amigos, os adolescentes permanec<strong>em</strong> conectados com a sua família. É<br />

razoável que haja um afastamento maior dos pais nesse período porque sua<br />

atenção se volta para fora de casa. Contrariamente a um mito dessa fase, o<br />

aumento dos laços sociais do jov<strong>em</strong> e seu desejo por uma maior autonomia não<br />

imped<strong>em</strong> que as relações familiares permaneçam fortes (Brook et al, 1990). O que<br />

se modifica entre a infância e a adolescência é o grau de dependência <strong>em</strong>ocional<br />

que o jov<strong>em</strong> apresenta com relação aos pais.<br />

A categoria modelo refere-se à identificação dos filhos com os pais que ocorre, na<br />

maioria das vezes, de forma inconsciente. Os filhos absorv<strong>em</strong> quaisquer valores<br />

transmitidos pelos pais através de seu comportamento, suas atitudes, sua<br />

expressão de sentimentos na vida cotidiana (Nolte e Harris, 1998). Eles são o seu<br />

primeiro modelo influente. É sobejamente conhecido que uma das formas de<br />

transmissão de valores se dá através da educação familiar, que t<strong>em</strong> como um dos<br />

objetivos a socialização do sujeito. E também é verdade que o amplo universo de<br />

valores sociais é re-elaborado por cada família de forma específica e particular.<br />

Por ex<strong>em</strong>plo: a solidariedade humana pode ser vivida por meio de práticas sociais<br />

mais intensamente por umas famílias que por outras. Os que consideram<br />

relevante este valor tend<strong>em</strong> a (1) se ajudar<strong>em</strong>, se apoiar<strong>em</strong> na saúde e na<br />

doença; (2) respeitam-se mutuamente nas suas diferenças; (3) dão importância ao<br />

20


coletivo, escutam o grupo com respeito e costumam modificar seu ponto de vista a<br />

partir dos diálogos e argumentações.<br />

A questão levantada sobre esse t<strong>em</strong>a diz respeito à visão que os m<strong>em</strong>bros da<br />

família têm sobre isso: seus pais foram modelos de comportamento para você?<br />

Em caso negativo, qu<strong>em</strong> lhe serviu de modelo? Aqui cont<strong>em</strong>plo uma hipótese<br />

deste estudo: o uso de drogas por parte de um dos pais, ou por ambos, comunica<br />

valores familiares conflitantes para os m<strong>em</strong>bros da família.<br />

O estilo de criação dos pais reflete a sua orientação para a criação dos filhos, num<br />

determinado clima <strong>em</strong>ocional. As práticas de criação diz<strong>em</strong> respeito aos<br />

comportamentos que os pais realmente impl<strong>em</strong>entam para fazer valer o seu estilo<br />

de criação.<br />

Educar para a responsabilidade e dar limites são termos que apontam para a<br />

qualidade do uso da autoridade na relação de avós, pais, filhos e netos.<br />

A educação se processa na interação entre a criança, o jov<strong>em</strong> e o adulto <strong>em</strong><br />

convivência. Esse simples conviver transforma e forma as pessoas. A<br />

transformação estrutural 8 que se opera é contingente com essa história cotidiana<br />

intercalada de alguns momentos decisivos. Dois são os períodos fundamentais.<br />

Na infância, a aceitação e a legitimação da criança pelos pais ou pelos adultos<br />

substitutos é fundamental para que ela desenvolva mecanismos de aceitação e<br />

8 Estrutura entendida de acordo com a biologia de Maturana e Varela (1995).<br />

21


espeito a si mesma e a seus s<strong>em</strong>elhantes. Na adolescência, o mundo circundante<br />

é absorvido de forma singular, a partir das vivências no ambiente primário.<br />

O estilo de criação ‘com autoridade’, segundo a definição de Baumrind (1966), é<br />

uma combinação de comportamentos responsivos e d<strong>em</strong>andantes. As<br />

características desses últimos inclu<strong>em</strong>: (a) a colocação de comportamentos claros<br />

e dentro de uma norma familiar; (b) monitoramento e supervisão ativa das<br />

atividades dos filhos; (c) manutenção de uma estrutura e organização diária do<br />

seu cotidiano e (d) d<strong>em</strong>andas maduras voltadas para uma meta consistente com a<br />

fase do desenvolvimento dos filhos. As características dos comportamentos<br />

responsivos inclu<strong>em</strong> ser afetuoso e compreensivo, prover conforto e apoio, estar<br />

envolvido no desenvolvimento acadêmico e social dos filhos e reconhecer suas<br />

realizações (Baumrind, 1966).<br />

O estilo de criação autoritário é pouco responsivo e bastante d<strong>em</strong>andante no<br />

sentido de (a) controle do comportamento, das atitudes e da exigência de<br />

obediência; (b) uso de medidas punitivas usadas visando a restringir o<br />

comportamento e a autonomia como forma de limitar os desejos dos filhos; (c)<br />

pouca comunicação e uma postura comum entre os avós e pais de se julgar<strong>em</strong><br />

detentores da certeza e da autoridade.<br />

O estilo permissivo é muito responsivo e pouco d<strong>em</strong>andante. O progenitor não se<br />

coloca como agente ativo responsável por moldar ou alterar os comportamentos<br />

atuais ou futuros dos filhos. Permite que as próprias crianças regul<strong>em</strong> suas<br />

22


atividades, evita exercer o controle e não as encoraja a obedecer<strong>em</strong> às normas<br />

definidas socialmente. Maccoby e Martin (apud Jackson et al, 1998) subdivid<strong>em</strong> o<br />

estilo permissivo de educação <strong>em</strong> duas formas: o indulgente, <strong>em</strong> que os pais são<br />

mais responsivos que d<strong>em</strong>andantes, e o negligente, que se apresenta<br />

relativamente não d<strong>em</strong>andante e não responsivo.<br />

Minha hipótese é de que o estilo de criação <strong>em</strong>pregado pelos pais – controle ‘com<br />

autoridade’, autoritarismo e permissividade – influencia a aquisição dos valores<br />

familiares. É importante, pois estar atento a como são distribuídas as<br />

responsabilidades, os deveres dentro da família e a como cada um se comporta<br />

quanto a isso. Igualmente é relevante indagar sobre limites e autoridade familiar.<br />

23


SEGUNDA PARTE<br />

ABORDAGEM METODOLÓGICA E OPERACIONALIZAÇÃO<br />

1 – Fundamentação teórica<br />

A teoria básica que informará a análise do probl<strong>em</strong>a da drogadição e da influência<br />

da família será a sistêmico-cibernética. Esta se funda na confluência de diversas<br />

áreas do conhecimento: biologia, mat<strong>em</strong>ática, física, comunicação, entre outras. A<br />

visão sistêmico-cibernética t<strong>em</strong> sua orig<strong>em</strong> na teoria geral dos sist<strong>em</strong>as de<br />

Bertalanffy. Nos idos de 1930 esse biólogo buscou desenvolver princípios que<br />

pudess<strong>em</strong> ser aplicáveis aos sist<strong>em</strong>as <strong>em</strong> geral e à cibernética. Esse último termo<br />

foi cunhado pelo mat<strong>em</strong>ático Wiener, no final da década de 40, para pesquisar os<br />

processos de comunicação e controle, tanto da máquina quanto do animal. Coube<br />

ao grupo do antropólogo Gregory Bateson, que pesquisava o comportamento<br />

esquizofrênico no Mental Research Institute (MRI), na Califórnia, na década de 50,<br />

trazer para a terapia de família as idéias da teoria geral dos sist<strong>em</strong>as e da<br />

cibernética.<br />

Os pesquisadores observaram uma melhora na sintomatologia dos<br />

esquizofrênicos quando internados, situação que regredia quando retornavam a<br />

suas casas. Intrigados com esse comportamento que determinava um grande<br />

número de internações, centraram a atenção na comunicação que ocorria dentro<br />

da família. Constataram que a esquizofrenia era a única resposta possível a um<br />

sist<strong>em</strong>a de comunicação patológica <strong>em</strong> curso. A partir dessas pesquisas, estes<br />

24


pesquisadores mudaram o enfoque do tratamento do indivíduo para as interrelações<br />

da família, com ênfase nas interações e na comunicação entre seus<br />

m<strong>em</strong>bros. Constituíram assim um paradigma “sistêmico”, que enfatiza a<br />

importância fundamental do contexto na formação da doença ou da saúde mental.<br />

Para se entender o indivíduo é preciso observá-lo <strong>em</strong> seu contexto uma vez que<br />

ele se interliga à família, que por usa vez, se interliga ao social, formando assim<br />

uma rede de causalidades múltiplas (Schenker, 2003).<br />

Maurizio Andolfi apóia-se <strong>em</strong> Carter e McGoldrick (1995) ao explicar esta<br />

interligação, dizendo que:<br />

“Cada pessoa faz parte de um sist<strong>em</strong>a plurigeracional que se movimenta no t<strong>em</strong>po<br />

e é condicionado pela influência de eventos sócio-ambientais. O t<strong>em</strong>po do qual<br />

falamos é um t<strong>em</strong>po sócio-cultural, isto é, um período histórico no qual se suced<strong>em</strong><br />

eventos sócio/ambientais/culturais específicos. Este t<strong>em</strong>po movimenta-se sobre<br />

um eixo vertical e outro horizontal. O eixo vertical se compõe de mitos, tabus,<br />

dívidas de lealdade transmitidos de geração a geração. O eixo horizontal abarca o<br />

ciclo de vida familiar, ou seja, os estágios atravessados atualmente por uma família<br />

com eventos previsíveis e imprevisíveis com que a família pode deparar-se e os<br />

recursos que pode dispor no momento. S<strong>em</strong> dúvida alguma, o contexto históricosocial<br />

determina a cultura e por isto influencia a transmissão intergeracional de<br />

modelos culturais familiares” (1996, 23).<br />

Um novo aporte do paradigma sistêmico surge nos primórdios da década de 80,<br />

derivado da cibernética de segunda ord<strong>em</strong> e intitulado Construtivismo. A<br />

cibernética de primeira ord<strong>em</strong> interessa-se, num primeiro momento, pelos<br />

25


mecanismos de manutenção e regulação da estabilidade de organização do<br />

organismo, a homeostase, regida pela retro-alimentação negativa. Assim visto, “os<br />

sist<strong>em</strong>as funcionam com uma meta, um propósito de funcionamento ótimo que<br />

equivale ao equilíbrio” (Rapizo, 1996, 27). Neste sentido, são auto-regulados com<br />

o intuito de corrigir qualquer desvio da meta prevista. A manutenção ou o aumento<br />

do grau de organização de organismos, como o ser humano, ocorre para fazer<br />

face ao aumento da entropia e do caos que poderá levar ao rompimento da<br />

organização, no sentido definido por Maturana e Varela (1995). O padrão mantido<br />

pela homeostase é a pedra de toque da identidade pessoal (Wiener, 1954, 96).<br />

A família, sist<strong>em</strong>a aberto e estável, tendente à constância, funciona<br />

homeostaticamente, de forma que qualquer mudança no seu padrão básico de<br />

relação pode derivar para o caos. O aumento no desvio do padrão conhecido da<br />

família pode resultar <strong>em</strong> entropia, <strong>em</strong> caos, desord<strong>em</strong> e destruição. Os sintomas<br />

são vistos como indicadores homeostáticos. Num segundo momento, a cibernética<br />

de primeira ord<strong>em</strong> interessa-se pelos mecanismos que propiciam mudança e<br />

transformação nos sist<strong>em</strong>as, regidas pela retro-alimentação positiva.<br />

O sist<strong>em</strong>a vivo teria como função, além da homeostase, adaptar-se às situações<br />

de mudanças do meio:<br />

“A mudança, o desvio, a instabilidade foram vistos como o lugar de possíveis<br />

transformações para um sist<strong>em</strong>a, enfatizando-se o seu valor adaptativo como processos<br />

26


que desviam a organização familiar de suas formas habituais favorecendo novas<br />

aprendizagens” (Schnitman, 1987, 118).<br />

A família, sist<strong>em</strong>a aberto, <strong>em</strong> constante movimento, realiza mudanças<br />

espontâneas <strong>em</strong> sua dinâmica particular. Ao lidar com situações inusitadas, cria<br />

alternativas e novas opções, podendo reorganizar algumas de suas regras<br />

básicas. A homeostase é um dos modos da família funcionar. Aqui, o sintoma é<br />

visto como uma questão de coerência da família e de possibilidade de efetuar<br />

mudança. A crise gera um desequilíbrio necessário nos padrões familiares,<br />

aumentando a desord<strong>em</strong> e a incerteza que, <strong>em</strong> geral, costumam levar a um nível<br />

mais elevado de auto-organização.<br />

A compreensão dos sist<strong>em</strong>as familiares requer observar a integração dos<br />

processos de mudança e de manutenção (Schnitman, 1987). Se o observador<br />

estiver interessado nas permanências, “sua observação se volta para as pautas de<br />

interação atuais e para as constrições que mantêm relativa constância, identidade<br />

e predição, assim como aos contextos extra-familiares de estabilização”<br />

(Schnitman, 1987, 123). No caso dos processos de mudança, “a observação se<br />

concentra nas fontes de alternativas ao regime constante, os recursos para a<br />

mudança, as flutuações, a plasticidade, os contextos inovadores <strong>em</strong> que a família<br />

está imersa” (Schnitman, 1987, 123-124).<br />

Desta forma, as famílias se encontram <strong>em</strong> diferentes estágios, segundo o binômio<br />

estabilidade-mudança, que correspond<strong>em</strong> à dinâmica referente a pautas habituais<br />

27


e a flutuações. Nos sist<strong>em</strong>as familiares pod<strong>em</strong> coexistir ambas as pautas de<br />

interação. A transformação ocorre quando as condutas consistentes e regulares<br />

ultrapassam o limiar dado, seja por acaso, seja por intervenções específicas. Uma<br />

indagação importante é saber se os valores sociais e os familiares pod<strong>em</strong> estar a<br />

serviço de pautas de interações estáveis e de mudanças e se os primeiros pod<strong>em</strong><br />

apresentar saltos qualitativos de forma a divergir dos segundos.<br />

Os avanços da cibernética decorr<strong>em</strong> de sua utilização nas áreas humanas e<br />

sociais pela antropologia, sociologia, psiquiatria, neurofisiologia e comunicação,<br />

fazendo com que o seu objeto de estudo se desloque das máquinas artificiais,<br />

construídas pelas mãos humanas, para os sist<strong>em</strong>as auto-organizadores que não<br />

são e também não pod<strong>em</strong> ser organizados de fora (Rapizo, 1996). Von Foerster<br />

(1991) denomina esta nova conceituação teórica de cibernética de segunda<br />

ord<strong>em</strong>.<br />

Interessados no processo de conhecer o conhecer, ou seja, o processo através do<br />

qual o ser vivo conhece, os biólogos Maturana e Varela (1995) estudam o<br />

fenômeno da percepção, chamando a atenção para a sua descontinuidade: “não<br />

v<strong>em</strong>os que não v<strong>em</strong>os” (1995,63). Observam que a experiência de nossa<br />

percepção traz “a marca indelével de nossa própria estrutura” (1995,65). Para<br />

Maturana (1999), a experiência do mundo lá fora é validada pela estrutura<br />

humana, o que significa dizer que um observador participante <strong>em</strong>erge do sist<strong>em</strong>a<br />

enquanto m<strong>em</strong>bro do sist<strong>em</strong>a que observa. Conceituar os seres humanos dessa<br />

forma implica colocar a objetividade entre parênteses, porque a realidade é<br />

28


dependente do observador. Toda e qualquer explicação se baseia nas<br />

experiências que o investigador vivencia ao longo de seu desenvolvimento.<br />

A estrutura do sist<strong>em</strong>a vivo, segundo Maturana e Varela (1995), manifesta-se<br />

através de sua organização, entendida como o conjunto de relações entre os<br />

componentes do sist<strong>em</strong>a de tal forma que ele seja reconhecido como m<strong>em</strong>bro de<br />

uma classe específica: a do sist<strong>em</strong>a vivo, no caso. A estrutura materializa a<br />

organização e se constitui de componentes e de relações efetivas entre os<br />

componentes, numa unidade particular. Nos sist<strong>em</strong>as dinâmicos, como os<br />

sist<strong>em</strong>as vivos, a estrutura varia continuamente. Mudança e invariância refer<strong>em</strong>-se<br />

respectivamente à estrutura e à organização desse sist<strong>em</strong>a vivo. Os autores<br />

observam que os seres vivos – sist<strong>em</strong>as de organização circular – compõ<strong>em</strong>-se<br />

de redes e interações que se produz<strong>em</strong> continuamente a si mesmas,<br />

especificando os seus próprios limites. São, portanto, dotados de uma<br />

organização autopoiética. Uma das características principais dos seres vivos é a<br />

sua autonomia. São regidos por leis próprias, graças à sua organização<br />

autopoiética, onde o ser e o fazer são inseparáveis. Vale notar que pode haver<br />

mudanças estruturais numa determinada unidade, s<strong>em</strong> que a sua organização se<br />

perca. A mudança estrutural é desencadeada pelas interações com o meio <strong>em</strong><br />

que se encontra e pela sua dinâmica interna (Maturana e Varela, 1995).<br />

Uma determinada organização social, sustentada por seus preceitos, valores e<br />

paradigmas, permanece invariante durante um longo período de sua história,<br />

sendo instigada à mudança por meio de interferências efetuadas por seus<br />

29


m<strong>em</strong>bros, pelos mais variados motivos. Entretanto, essas interferências funcionam<br />

como agentes perturbadores e somente desencadeiam processos: não os<br />

determinam e n<strong>em</strong> os informam, não sendo, portanto, uma interação instrutiva que<br />

especifica o que ocorrerá no sist<strong>em</strong>a, já que não se pode determinar a sua direção<br />

a não ser desde a sua própria coerência. O mesmo vale com relação ao meio. As<br />

mudanças nesta interação são determinadas pela estrutura do sist<strong>em</strong>a<br />

perturbado. O ser vivo é uma fonte de perturbações e não de instruções.<br />

O resultado das interações estabelecidas a partir de um domínio de coordenações<br />

consensuais de ações será uma história de mudanças estruturais mútuas, um<br />

acoplamento estrutural. Este acoplamento ocorre a partir de interações com os<br />

el<strong>em</strong>entos que não destruam a autopoiese, ou seja, os el<strong>em</strong>entos que se<br />

coorden<strong>em</strong> com a filogenia, a história de transformações tanto do sist<strong>em</strong>a vivo<br />

quanto do meio. Para que o acoplamento estrutural se dê é necessário, também,<br />

uma compatibilidade, uma adaptação entre o ser vivo e o meio.<br />

É importante ressaltar que as mudanças estruturais ocorr<strong>em</strong> reciprocamente no<br />

ser vivo e no meio porque ambos mantêm uma congruência. O curso de<br />

mudanças estruturais espontâneas se constrói de forma contingente com a<br />

história das interações do ser vivo. Essa é a base para a aprendizag<strong>em</strong>. Por<br />

ex<strong>em</strong>plo, dependendo da escola que a criança freqüenta, ela crescerá de uma<br />

determinada maneira, evidenciando as habilidades que adquiriu. Criada <strong>em</strong> outras<br />

circunstâncias, outros atributos serão desenvolvidos (Maturana, 1999). É na<br />

história de convivência de um indivíduo que se constrói o seu “<strong>em</strong>ocionar”<br />

30


(conforme detalhado a seguir) e o seu viver congruente com o <strong>em</strong>ocionar dos<br />

outros seres com qu<strong>em</strong> convive.<br />

Toda variação resulta de formas diferentes de ser no mundo, uma vez que é a<br />

estrutura do ser vivo que determina a sua interação com o ambiente. Os sist<strong>em</strong>as<br />

autopoiéticos operam <strong>em</strong> clausura operacional à medida que sua identidade se<br />

especifica por meio de uma rede de processos dinâmicos que não sa<strong>em</strong> desta<br />

rede. Esta clausura também diz respeito à informação, que passa a funcionar<br />

como algo que faz sentido para um determinado sist<strong>em</strong>a, ao invés de ser algo prédefinido<br />

(Rapizo, 1996).<br />

Ao se conceituar os sist<strong>em</strong>as vivos como auto-organizadores cai por terra a<br />

distinção entre observador e observado (Rapizo, 1996). A partir desse<br />

pressuposto, a cibernética se transforma <strong>em</strong> epist<strong>em</strong>ologia, passando a se ocupar<br />

das possibilidades e limites do conhecimento. A característica principal dessa<br />

nova epist<strong>em</strong>ologia intitulada “Construtivismo” é a interdependência entre o<br />

observador e o universo por ele observado. Sendo uma teoria do conhecimento<br />

ativo, o construtivismo propõe a inseparabilidade entre o sujeito conhecedor e o<br />

objeto conhecido, uma vez que considera o significado não como propriedade<br />

inerente aos objetos, mas um produto da atividade humana (Grandesso, 2000,<br />

57).<br />

Os sist<strong>em</strong>as auto-organizadores, além de ser<strong>em</strong> autônomos, são auto-referentes,<br />

isto é, se refer<strong>em</strong> a si mesmos como objeto, voltando-se recursivamente sobre si<br />

31


próprios: tudo o que o observador conhece, conhece a partir de si e, portanto,<br />

quando descreve ou interpreta, também fala de si. “Tudo o que é dito é dito por um<br />

observador para outro que pode ser ele mesmo” (Maturana et al, 2002a, 34). Não<br />

há, pois, conhecimento como representação de algo externo: ele é uma<br />

construção para a qual o principal operador é o próprio sujeito. Entende-se que<br />

não há uma objetividade do conhecimento fora da subjetividade e as perguntas a<br />

ser<strong>em</strong> feitas diz<strong>em</strong> respeito àquele que conhece e não mais, apenas, à realidade.<br />

Desta forma, o observador t<strong>em</strong> certezas e faz afirmações a partir de si próprio, de<br />

dentro de seu campo e do compartilhar com seus pares. “Há tantos mundos<br />

quanto observadores... tantas configurações quanto comunidades de<br />

observadores que as definam e valid<strong>em</strong> como tal” (Rapizo, 1996, 38). Portanto, a<br />

observação do outro é tão legítima quanto a do próprio sujeito. E as explicações<br />

são reformulações da experiência aceitas por um observador. Então, “há tantos<br />

explicares diferentes quantos modos de escutar e aceitar reformulações da<br />

experiência” (Maturana, 2001, 30). “A cada um de nós acontece algo nas<br />

interações que diz respeito a nós mesmos, e não com o outro. E o que vocês<br />

escutam do que eu digo t<strong>em</strong> a ver com vocês e não comigo. Eu sou<br />

maravilhosamente irresponsável sobre o que vocês escutam, mas sou totalmente<br />

responsável sobre o que eu digo” (Maturana, 2001, 75).<br />

Nas perspectivas assinaladas, o conhecer é entendido como uma atividade<br />

circular que engloba ação e conhecimento, conhecedor e conhecido num círculo<br />

indissociável: “a ética, fundamentada desta forma, implica a legitimação da<br />

32


existência do outro e a responsabilidade pelo agir e interatuar com ele” (Rapizo,<br />

1996, 41).<br />

Nessa abordag<strong>em</strong> metodológica, sigo a concepção de Maturana (1999, 2002b),<br />

referente ao binômio razão e <strong>em</strong>oção: o humano se constitui no entrelaçamento<br />

do <strong>em</strong>ocional com o racional na linguag<strong>em</strong>: todo sist<strong>em</strong>a racional t<strong>em</strong> um<br />

fundamento <strong>em</strong>ocional. A <strong>em</strong>oção é entendida como disposições corporais que<br />

especificam domínios de ação que operam num determinado instante. O<br />

<strong>em</strong>ocionar é o fluir de um domínio de ações a outro 9 . É a <strong>em</strong>oção e não a razão<br />

que leva à ação. A mudança de <strong>em</strong>oção implica na mudança de domínio de ação<br />

(Maturana et al, 2002b, 170). Assim também funcionam as ideologias, já que se<br />

baseiam <strong>em</strong> pr<strong>em</strong>issas aceitas, de forma consciente ou inconsciente, como<br />

válidas. O campo de aceitação de tais princípios é o <strong>em</strong>ocional e não o racional.<br />

“Cada vez que escutamos alguém dizer que ele ou ela é racional e não <strong>em</strong>ocional,<br />

pod<strong>em</strong>os escutar o eco da <strong>em</strong>oção que está sob essa afirmação, <strong>em</strong> termos de<br />

um desejo de ser ou de obter” (Maturana, 1999, 23).<br />

Pr<strong>em</strong>issasEmoçãoDesejos. Ou ainda, por ex<strong>em</strong>plo, quando duas pessoas<br />

estão irritadas ou muito <strong>em</strong>ocionadas por algum impacto <strong>em</strong> suas vidas é possível<br />

dizer: “esqueçam o que disseram porque quando a situação ou a raiva passar, vão<br />

dizer outra coisa”.<br />

9 Nesta pesquisa haverá um ex<strong>em</strong>plo muito claro <strong>em</strong> que essas pr<strong>em</strong>issas se evidenciam, quando numa<br />

entrevista (descrita na terceira parte) Renato, um usuário de drogas, e sua irmã Ana, não consegu<strong>em</strong> mais<br />

verbalizar alternativas para seu futuro, por causa da raiva que se manifestou entre ambos.<br />

33


Com base na biologia, Maturana (1999,15-25) aponta para a <strong>em</strong>oção que funda o<br />

modo de vida na convivência: o amor. Ele constitui o domínio de ações que, a<br />

partir da interação recorrente com outra pessoa, a torna legítima na convivência.<br />

Já a agressão restringe a convivência. O autor ex<strong>em</strong>plifica: o sist<strong>em</strong>a imunológico<br />

de uma criança é conformado de acordo com as relações estabelecidas<br />

inicialmente com a mãe. As modificações imunológicas para a saúde geralmente<br />

se dão concomitant<strong>em</strong>ente com as mudanças na relação com a mãe ou com os<br />

adultos substitutos. As reconstituições irão depender da duração da história de<br />

rejeição impressa naquela relação (Maturana et al, 2002a, 49). A maior parte do<br />

sofrimento humano provém da negação do amor. Numa relação de apego ou<br />

desejo de posse, ocorre uma negação mútua dos atores. O amor é o nascedouro<br />

da linguag<strong>em</strong> porque permite uma história de interações suficient<strong>em</strong>ente<br />

recorrentes. E a linguag<strong>em</strong> ocorre no espaço das relações, no fluir das<br />

coordenações consensuais de ação, não se constituindo, portanto, como uma<br />

propriedade intrínseca do humano (Maturana, 2001, 13). O significado das<br />

palavras se refere às ações que elas coordenam. Basta olhar o dicionário para<br />

constatar que as palavras estão definidas no domínio das ações (Maturana, 2001,<br />

88).<br />

Os seres humanos conectam-se através da linguag<strong>em</strong> e cada um deles provém<br />

de um determinado contexto sócio-cultural. Mas de acordo com o conceito da<br />

auto-referência, o indivíduo constrói a linguag<strong>em</strong> e é construído por ela. Nesse<br />

paradigma, indivíduos e sociedade são “mutuamente gerativos” porque os<br />

primeiros, <strong>em</strong> interação, constitu<strong>em</strong> o social que, por sua vez, é o meio no qual<br />

34


eles se realizam como pessoas. A constituição do indivíduo e a dinâmica de<br />

constituição do social são interdependentes, no sentido de ser<strong>em</strong><br />

“interconstituintes”. “O ponto é que se é indivíduo na medida <strong>em</strong> que se é social, e<br />

o social surge na medida <strong>em</strong> que seus componentes são indivíduos”, no dizer de<br />

Maturana (Maturana et al, 2002a, 43). Portanto, tanto os indivíduos quanto o meio<br />

social operam reciprocamente como seletores de mudança estrutural mútua.<br />

“O ser humano é constitutivamente social. Não existe o humano fora do social. O<br />

genético não determina o humano, apenas funda o humanizável. Para ser humano<br />

é necessário crescer humano entre os humanos” (Maturana et al, 2002c, 205-<br />

206). Então, os valores impl<strong>em</strong>entados socialmente são seguidos pelos indivíduos<br />

e vice-versa.<br />

Por que é importante pensar a família nesse paradigma? Porque o que a define é<br />

a conservação de uma rede de conversações, ou seja, de coordenações de ações<br />

e <strong>em</strong>oções (Maturana et al, 2002d, 333). Os m<strong>em</strong>bros da família cresc<strong>em</strong> e se<br />

constro<strong>em</strong> a partir desse fluir de conversações, desse modo de existir<br />

compartilhado, onde o importante é como se vive no <strong>em</strong>ocionar e não o conteúdo<br />

do que se fala. Como se apresentam os momentos <strong>em</strong> família? Ternos,<br />

carinhosos ou distantes e frios? “Tudo isso vai ter conseqüências no<br />

desenvolvimento do sist<strong>em</strong>a nervoso, do sist<strong>em</strong>a imunitário do menino, da<br />

menina, do bebê” (Maturana et al, 2002d, 334). E esse ser <strong>em</strong> formação<br />

conservará, de alguma forma, essa parte da história no seu viver.<br />

35


Aliada a abordag<strong>em</strong> de Maturana, apóio-me, também, nas reflexões de Edgard<br />

Morin (1995,73) para qu<strong>em</strong> “há uma profunda consciência da distinção e ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po uma raiz comum entre conhecimento, cultura e sociedade”. O ser<br />

humano conhece por meio de si, para si e na dependência de si como também por<br />

meio, para e na dependência de sua família, suas raízes culturais e da sociedade<br />

onde vive.<br />

As pr<strong>em</strong>issas da cibernética de segunda ord<strong>em</strong> levam a uma reflexão sobre a<br />

responsabilidade e a ética. A auto-organização dos sist<strong>em</strong>as vivos implica uma<br />

autonomia e uma auto-referência, de forma que o sujeito descobre e co-constrói a<br />

realidade que o cerca, comprometendo-se e se responsabilizando pelas<br />

construções efetuadas. Enquanto ator participante da interação, vista como<br />

interdependente, só pode dizer a si mesmo, como pensar e atuar: e esta é a<br />

orig<strong>em</strong> da ética.<br />

Esta forma de encaixar-se no mundo revela uma postura respeitosa com todo e<br />

qualquer ser humano. Isso traz conseqüências, inclusive, para mim como<br />

pesquisadora. Ao investigar se há relação entre drogadição e valores familiares,<br />

estou ciente de que não exist<strong>em</strong> verdades, e sim, formas diversas de se perceber<br />

e estar no mundo s<strong>em</strong>pre co-construídas na interação com o outro. As interações<br />

e a linguag<strong>em</strong> compartilhada faz<strong>em</strong> a sociedade e fundamentam as relações entre<br />

os seres humanos. É desta forma que entro para analisar, pesquisar e extrair<br />

conclusões deste estudo, conclusões estas s<strong>em</strong>pre referentes ao contexto e ao<br />

momento histórico que compartilho com meus entrevistados.<br />

36


2. Natureza da Pesquisa<br />

Esse modo de olhar complexo e fundamentado na teoria sistêmica me foi,<br />

operacionalmente, propiciado pelo estudo qualitativo sobre os valores familiares<br />

de nove famílias que possu<strong>em</strong> um m<strong>em</strong>bro que faz ou tenha feito uso abusivo de<br />

drogas. Minha proposta original foi efetuar um estudo comparativo dessas famílias<br />

com outras que não tivess<strong>em</strong> entre seus m<strong>em</strong>bros um adicto, dentro das mesmas<br />

características sociais e culturais. No entanto, não consegui constituir esse “grupo<br />

controle”. Contactei famílias com adictos <strong>em</strong> alguns centros de tratamento para o<br />

uso abusivo de drogas.<br />

Quase a totalidade das famílias de que me aproximei num dos centros de<br />

tratamento, visando explicar os objetivos e avaliar a viabilidade de sua<br />

participação, interessou-se pelo meu estudo como uma forma de ser ajudada na<br />

sua questão com o adicto. Isto denota que as famílias entrevistadas encontravamse<br />

razoavelmente motivadas para a mudança. Foi assim que consegui o grupo de<br />

famílias que pretendia como foco da pesquisa.<br />

Sobre o “grupo controle”, desde o início encontrei dificuldades: onde localizar<br />

essas famílias? Iniciei meus esforços, conversando com pessoas conhecidas nos<br />

centros de tratamento e todas me falaram sobre a inviabilidade da aquiescência<br />

delas, a partir de três fatores: as famílias não percebiam o que poderiam lucrar,<br />

<strong>em</strong> benefício próprio, a partir de um estudo dessa natureza; elas não seriam<br />

37


<strong>em</strong>uneradas pela entrevista; e não há uma cultura de pesquisa fora do mundo<br />

acadêmico, de forma que não soa familiar a participação nesse tipo de estudo.<br />

Cheguei a ir à casa de uma família de classe média, s<strong>em</strong> adictos, para falar sobre<br />

a pesquisa. Mas a mãe só estava interessada <strong>em</strong> me mostrar os trabalhos que os<br />

filhos haviam feito sobre o assunto das drogas na escola. Por isso desisti e fiquei<br />

apenas com o grupo <strong>em</strong> que há ou houve jovens adictos. A desistência das<br />

famílias s<strong>em</strong> m<strong>em</strong>bros adictos impossibilitou possíveis comparações entre os dois<br />

grupos de famílias com relação às três categorias estudadas. Quais s<strong>em</strong>elhanças<br />

e quais diferenças eu encontraria?<br />

Voltei a minha atenção para o grupo de famílias com adictos. Inicialmente, minha<br />

intenção era realizar a investigação no Núcleo de Estudos e Pesquisas <strong>em</strong><br />

Atenção ao Uso de Drogas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro –<br />

Nepad/Uerj, Instituição pública <strong>em</strong> que trabalho como terapeuta de família. Um<br />

incêndio no prédio do Nepad fez com que saísse à procura de outra Instituição<br />

que tivesse uma clientela e uma organização do serviço s<strong>em</strong>elhante. Busquei o<br />

Centro Estadual de Tratamento e Reabilitação de Adictos da Secretaria de Estado<br />

de Saúde do Governo do Estado do Rio de Janeiro – Centra-Rio que, na figura de<br />

sua diretora Dra. Anna Simões, antiga colega de trabalho do Nepad, me abriu as<br />

portas para a pesquisa.<br />

Meu interesse era estudar famílias de camadas médias da população por se<br />

aproximar<strong>em</strong> do meu contexto sócio-cultural quanto aos valores e à sua<br />

impl<strong>em</strong>entação através das gerações. Entretanto, as famílias de camadas médias<br />

38


não constitu<strong>em</strong> a maioria nos centros públicos de atendimento. Por isso, resolvi<br />

visitar também outras Instituições. S<strong>em</strong>pre fui b<strong>em</strong> recebida, mas não consegui<br />

ampliar minha amostra com as características de que precisava para a pesquisa.<br />

Consegui oito famílias no Centra-Rio e a nona família veio indicada pelo Nepad.<br />

Busquei homogeneizar o grupo para o estudo a partir das seguintes<br />

características: três gerações que tivess<strong>em</strong> pelo menos um dos avós, materno ou<br />

paterno, o casal parental ou no caso de pais separados, aquele com qu<strong>em</strong> os<br />

filhos moram, e os filhos, incluindo-se aí, o adicto. A investigação se deu com:<br />

a) famílias geridas por somente um dos pais.<br />

b) famílias cujos pais casaram-se uma vez e moram junto com os<br />

filhos.<br />

c) famílias cujos pais se separaram, recasaram e constituíram novas<br />

uniões nucleares.<br />

Tentei s<strong>em</strong>pre trazer o pai ou a mãe, mesmo quando separados de seus excônjuges,<br />

para a discussão. Entrevistei nove famílias obedecendo ao critério de<br />

saturação das informações necessárias para o estudo (Minayo, 2000).<br />

Identifiquei a família de camadas médias urbanas por meio das seguintes<br />

características:<br />

39


Renda familiar entre 10 a 20 salários mínimos, segundo o critério do<br />

<strong>Instituto</strong> Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE 10 . Considerei renda<br />

familiar a dos pais e dos avós no caso desse últimos contribuír<strong>em</strong> para o<br />

sustento da casa dos filhos e netos.<br />

Escolaridade – segundo grau completo ou incompleto para os usuários.<br />

Segundo grau ou universitário completo ou incompleto para os pais.<br />

Primeiro grau incompleto ou completo para os avós 11 .<br />

Ocupação – trabalho formal (incluindo aposentadoria) ou informal dos pais.<br />

3. Método de Abordag<strong>em</strong><br />

Desenvolvi o estudo a partir de uma entrevista s<strong>em</strong>i-estruturada com perguntas<br />

orientadas por um roteiro pré-estabelecido, construído a partir das hipóteses<br />

formuladas na pesquisa 12 . Gravei, com a permissão dos informantes, as<br />

entrevistas com todos os participantes da família reunidos, sendo que a maioria<br />

delas foi efetuada nos fins de s<strong>em</strong>ana na casa das famílias. Algumas tiveram<br />

como cenário o próprio Centra-Rio.<br />

10 Site: www.ibge.gov.br, acessado <strong>em</strong> 16 de nov<strong>em</strong>bro de 2002. Pesquisa Nacional por Amostra de<br />

Domicílios – 2001. O salário mínimo era de R$ 240,00 (duzentos e quarenta reais) no ano que efetuei as<br />

entrevistas <strong>em</strong> 2003.<br />

11 Entrevistei uma família <strong>em</strong> que o usuário tinha o primeiro grau incompleto buscando entender, se possível,<br />

o por quê daquela discrepância <strong>em</strong> sua família. O usuário, de 30 anos, considera que o uso abusivo das drogas<br />

o atrasou muito e diluiu o seu patrimônio. Diz: “quando eu acordei, eu já estava com 20 anos e estava na 5 a .<br />

série, 6 a . incompleta. Eu falei: caramba! não tinha muito que sonhar, tinha que trabalhar”.<br />

12 Vide o Apêndice IV. A entrevista estruturada da dissertação de mestrado de Caldeira (1999) me auxiliou na<br />

formulação das minhas perguntas. As entrevistas foram transcritas e pagas com o auxílio Capes para pósgraduação<br />

do IFF/<strong>Fiocruz</strong>, por duas profissionais e três estagiárias do Setor de Família do Nepad/Uerj e por<br />

uma profissional particular. Escutei as fitas e revi a transcrição de cada família.<br />

40


Antes do início da entrevista, solicitei o consentimento por escrito dos<br />

entrevistados de acordo com um termo de consentimento para cada participante<br />

das famílias 13 .<br />

4. Operacionalização<br />

Fiz as entrevistas pela abordag<strong>em</strong> sistêmica que me possibilitou: (1) Observar o<br />

clima <strong>em</strong>ocional entre os componentes de cada família, importante para a análise<br />

dos vínculos familiares. (2) Trabalhar com a dinâmica das interações entre os<br />

familiares quando as respostas sobre qualquer t<strong>em</strong>a se mostravam conflitantes,<br />

ou não; entrevistar o grupo familiar <strong>em</strong> sua relação sistêmica e não somente cada<br />

indivíduo. (3) Buscar contextualizar não só os valores familiares como melhor<br />

legitimar o discurso de cada m<strong>em</strong>bro da família quanto ao conteúdo do que eu<br />

perguntava e à forma que esse discurso ganhava quando incluído na circularidade<br />

das inter-relações familiares comigo.<br />

Privilegiei diferentes t<strong>em</strong>as nas três categorias norteadoras do estudo: com<br />

relação a valores familiares, os ensinamentos considerados importantes, a ser<strong>em</strong><br />

passados para filhos e netos, b<strong>em</strong> como os significados do conceito família. No<br />

âmbito do conflito entre gerações pesquisei a forma de organização da família, os<br />

sonhos e os modelos de comportamento. Finalmente, no domínio do processo<br />

educativo investiguei o estilo de educação, a colocação de limites e as figuras de<br />

autoridade na família.<br />

13 Vide o Apêndice V.<br />

41


Também analisei as informações através do <strong>em</strong>basamento sistêmico, por meio da<br />

hermenêutica, que na sua essência visa à compreensão e que abre espaço à<br />

interpretação (Minayo, 2000). A análise qualitativa dos resultados decorreu “do<br />

campo da intersubjetividade, na medida <strong>em</strong> que pod<strong>em</strong> ser definidos como<br />

produto da ação conjunta entre o pesquisador e os participantes da pesquisa”<br />

(Grandesso, 2000, 301).<br />

Na elaboração deste trabalho, descrevi os valores familiares a partir dos t<strong>em</strong>as<br />

relevantes <strong>em</strong>ergidos da comunicação interativa entre os participantes do sist<strong>em</strong>a<br />

familiar na conversa comigo. Esta análise é apresentada <strong>em</strong> eixos que<br />

cont<strong>em</strong>plam as hipóteses estudadas. Utilizei três dimensões 14 para a<br />

operacionalização dos t<strong>em</strong>as que compõ<strong>em</strong> o primeiro bloco da entrevista:<br />

Opinião – o que é pensado sobre os princípios do valor <strong>em</strong> questão.<br />

Comportamento – a prática dos princípios.<br />

Expectativa – antecipação quanto à mudança dos princípios.<br />

Nos dois blocos seguintes, utilizei as mesmas três dimensões alternadamente.<br />

Efetuei a coleta de informações no período de maio a dez<strong>em</strong>bro de 2003. As<br />

entrevistas foram realizadas por mim. Considerei importante não me valer de um<br />

auxiliar de pesquisa por causa das pr<strong>em</strong>issas do método que adotei para a<br />

investigação, cujos el<strong>em</strong>entos centrais explicitei anteriormente.<br />

14 Essas dimensões se ass<strong>em</strong>elham às estudadas por Ribeiro e Ribeiro (1993).<br />

42


Apesar de saber que os m<strong>em</strong>bros de cada família constro<strong>em</strong> um universo<br />

singular, a partir de seus princípios e práticas idiossincráticas, optei por descrever<br />

e analisar quatro das nove famílias obedecendo aos seguintes critérios:<br />

(a) Saturação das informações importantes para a pesquisa (Minayo, 2000).<br />

(b) Consideração das três organizações de família descritas na “Natureza da<br />

Pesquisa”.<br />

(c) Riqueza de informações e detalhes perpassando a dinâmica das três<br />

gerações.<br />

Além destes, excluí uma das famílias entrevistadas por não obedecer ao critério<br />

de “renda familiar” da pesquisa, por mais que eu procurasse somar, <strong>em</strong> vão, todos<br />

os rendimentos dos m<strong>em</strong>bros da família que compunham o sustento familiar.<br />

A análise das informações coletadas foi efetuada no período de março a set<strong>em</strong>bro<br />

de 2004. A elaboração final corresponde a esta tese, construída numa dialética<br />

entre o diálogo com as teorias, as intuições da prática com as hipóteses iniciais e<br />

as informações <strong>em</strong>ergidas da interação com as famílias.<br />

43


TERCEIRA PARTE<br />

TRAJETÓRIAS DAS FAMÍLIAS<br />

1. A Família Zoar<br />

1.1.Contextualização<br />

Escolhi nomear essa família como Zoar por ser esse termo uma forma freqüente<br />

do usuário (Renato) se referir ao que gosta de fazer na vida. Zoar significa para<br />

ele: “beber, jogar sinuca, conversar com os amigos no bar, conhecer gente nova,<br />

dançar, ir a um show é isso tudo, zoar”. Os gostos desse rapaz são o contraponto<br />

para as opiniões de sua mãe sobre o t<strong>em</strong>a.<br />

A família Zoar mora na zona sul do Rio de Janeiro e se constitui de uma avó<br />

materna, Dona Janina, com 89 anos, a mãe de 58 anos, Sônia, o usuário Renato<br />

de 18 anos e sua irmã de 17 anos, Ana. A família é de Manaus e parte dela<br />

migrou para o Rio de Janeiro à época da escolarização dos filhos. A partir daí<br />

houve uma cisão no casamento dos avós, tendo ela se mudado para o Rio e ele<br />

permanecido <strong>em</strong> Manaus. A avó vive atualmente mais t<strong>em</strong>po com a outra filha <strong>em</strong><br />

Niterói, no entanto, teve presença ativa na formação dos netos.<br />

A família me recebeu num fim de tarde de domingo, dia de um jogo de futebol,<br />

lazer que interessa muito ao usuário. Sentamo-nos ao redor da mesa de jantar<br />

para a entrevista. L<strong>em</strong>bro-me que à minha direita estava a irmã, a mãe colocou-se<br />

44


na cabeceira, a avó e o usuário, postaram-se à minha frente. Todos me acolheram<br />

de forma generosa, prontos a auxiliar<strong>em</strong> no desenvolvimento do trabalho.<br />

A avó me pareceu frágil pelo corpo pequenino, a mãe muito branca, de olhos<br />

claros e os filhos fisicamente distintos dela: mais morenos, de olhos escuros e de<br />

feições que a mim não l<strong>em</strong>bram o rosto da mãe. Renato é alto e corpulento: o<br />

corpo grande e a cabeça pequena.<br />

O grau de escolaridade dos m<strong>em</strong>bros da família é variado: a avó materna fez o<br />

curso normal; a mãe fez a faculdade de História; Renato t<strong>em</strong> o segundo grau<br />

incompleto porque parou de estudar; e sua irmã, Ana, cursa ainda o segundo<br />

grau.<br />

Família de classe média, sua renda gira <strong>em</strong> torno de R$ 3500,00 assim divididos:<br />

R$ 2000,00 são provenientes de aposentadoria da avó como professora;<br />

R$1500,00 se refer<strong>em</strong> à pensão que a mãe recebe do segundo companheiro, pai<br />

de Renato e Ana, e à venda de coco, atividade que a mãe pratica para completar<br />

o orçamento. O rapaz vende coco para a mãe nas manhãs de domingo ganhando<br />

por isso R$ 30,00.<br />

A pergunta que norteia o meu estudo é a influência, ou não, dos valores familiares<br />

sobre o uso abusivo de drogas. Por isso, é por este assunto que inicio a narrativa.<br />

45


Entre 12 e 13 anos, Renato começou a fumar maconha. Diz que usou essa droga<br />

por quase um ano, deu baforada <strong>em</strong> cola de sapateiro e <strong>em</strong> benzina. Mas não<br />

gostou dos inalantes. Experimentou, a seguir, haxixe e cocaína. Refere que, com<br />

17 anos, cheirava todos os dias, roubava dinheiro da mãe, que “dava mole”.<br />

Passou a roubar para cheirar e diz que pretendia montar um negócio de drogas<br />

com um amigo que acabou preso. Renato também foi preso com maconha e<br />

encaminhado pelo juiz para tratamento no Nepad, onde continua se tratando.<br />

Hoje, com 18 anos, usa cocaína uma vez por s<strong>em</strong>ana <strong>em</strong> quantidade b<strong>em</strong> menor<br />

do que antes. Mas bebe muito, hábito que iniciou aos 8 anos de idade e fuma<br />

muito tabaco. Comenta que gostaria de abandonar o cigarro.<br />

Logo no início, quando Renato tinha 12 anos, Sônia descobriu que seu filho usava<br />

maconha. Não coabitava com o pai dos meninos, mas chamou-o para interceder<br />

na questão. O pai, ao conversar com o filho, recolhe a droga, joga-a na privada,<br />

mas conta ao menino que ele próprio fumara maconha até os seus 20 anos de<br />

idade. Além de pedir auxílio do ex-companheiro, logo que percebeu os hábitos<br />

compulsivos do filho, a mãe procurou tratamento para ele no Centra-Rio. Mas<br />

Renato passou pouco t<strong>em</strong>po lá. Quando iniciou o uso de cocaína, a mãe quis<br />

interná-lo na Vila Serena. Mas não o fez porque – o filho informa – “não quis ficar<br />

enjaulado” na Instituição.<br />

Referindo-se à mãe, Renato diz que ela é careta <strong>em</strong> relação ao pessoal da<br />

geração dela que era “todo louco”. Tece comentários sobre o uso de drogas à<br />

época da juventude de Sônia, entre as décadas de 60 e 70, reproduzindo a “lenda”<br />

46


de um t<strong>em</strong>po áureo <strong>em</strong> que utopias se misturam a ideologias de paz e amor,<br />

conforme a descrição de Gilberto Velho (1993).<br />

Carlos Alberto Plastino sublinha que as conseqüências do imaginário social<br />

individualista da atualidade, época dos jovens das famílias do estudo, se<br />

configuram num “mal estar específico na sociedade cont<strong>em</strong>porânea” (2000,23),<br />

terreno fértil para a expansão de atitudes e condutas narcísicas que se<br />

contrapõ<strong>em</strong> às marcadas pela solidariedade. Uma idéia norteadora do<br />

consumismo é deixar o consumidor insatisfeito para que busque consumir mais;<br />

outra é criar outras necessidades subjetivas para que novas mercadorias possam<br />

ser apreciadas.<br />

Sob essa ótica, o consumo de drogas segue o modismo que varia de acordo com<br />

a importância ilusória da mercadoria mais valorizada no momento pela sociedade<br />

como, por ex<strong>em</strong>plo, uma profissão que dê prestígio e muito dinheiro,<br />

aparent<strong>em</strong>ente s<strong>em</strong> esforço próprio. Ao responder à pergunta sobre sua<br />

independência, Renato diz que se fosse para “se dar b<strong>em</strong> na vida logo direto” só<br />

se “ganhasse na loteria” para abrir um negócio, colocar pessoas trabalhando para<br />

ele, porque assim ficaria “só de patrão”.<br />

Para Renato, o mercado de drogas ilícitas também significa glamour, status e<br />

aventuras para ganhar muito dinheiro. Ele conta que inicialmente roubava no<br />

asfalto e trocava a mercadoria no morro por dinheiro para o consumo de drogas.<br />

Depois juntou-se a um amigo que praticava assalto à mão armada e que acabou<br />

47


preso. Sua afoiteza, no entanto, pára aí. Considera que foi bom não ter<strong>em</strong><br />

conseguido se aliar numa <strong>em</strong>presa para o crime, “porque a gente ia se meter num<br />

buraco maior ainda, ia começar um negócio de passar as drogas para ter um<br />

dinheiro mais forte. Tinha mina [garotas] no meio também, tudo no seu esqu<strong>em</strong>a”.<br />

Além dos comentários sobre o uso de drogas na geração de seus pais, no relato<br />

de Renato destacam-se dois pontos relativos a eles. O primeiro, a procura de<br />

ajuda por parte da mãe, buscando o apoio do marido e de instâncias de<br />

tratamento para o filho. No entanto, seu esforço só t<strong>em</strong> êxito quando a justiça<br />

ocupa o lugar da autoridade. À época da entrevista, mãe e usuário estavam<br />

engajados <strong>em</strong> terapia individual no Nepad. O segundo ponto diz respeito à figura<br />

do pai quase ausente. Sua imag<strong>em</strong> é invocada apenas uma vez, para dar<br />

continência ao filho num momento crucial da pré-adolescência. Seu gesto inicial<br />

de autoridade que “lança à privada o cigarro de maconha” é seguido pela<br />

confissão de queda num processo adictivo similar ao do filho. Com que intenção<br />

teria ele produzido essa identificação num momento tão crucial?<br />

1.2. Valores familiares<br />

No caso da família de Renato, qu<strong>em</strong> primeiro fala é sua avó. Dona Janina diz que<br />

s<strong>em</strong>pre considerou importante passar para seus filhos e netos os princípios do ser<br />

mais do que os do ter. Esse conceito é explicado por ela como o sentido da<br />

estética, da moral e dos atos que respeit<strong>em</strong> a vida. No entanto, acredita que não<br />

teve o êxito esperado: “efeitos econômicos e de estabilidade de vida”. Parece que<br />

o ter para a avó incluiu o trabalho como fonte de sofrimento, porque fala de sua<br />

48


vida difícil, de muito trabalho e comenta que ela própria não conseguiu colocar <strong>em</strong><br />

prática os princípios que quis transmitir aos filhos e netos. De um lado, o lugar<br />

instituído tradicionalmente da mulher cuidadora da casa e dos filhos lhe era muito<br />

penoso. E de outro, lamenta não ter conseguido que seus filhos atingiss<strong>em</strong><br />

independência financeira. Daí sua frustração quanto à distância entre seus sonhos<br />

e a realidade que vivencia: todos os seus filhos têm dificuldades <strong>em</strong> se manter por<br />

conta própria. Sua filha, Sônia, por ex<strong>em</strong>plo, é muito culta, formada <strong>em</strong> história.<br />

Porém nunca conseguiu sustentar n<strong>em</strong> a si e n<strong>em</strong> a casa. Quanto aos netos, a<br />

situação é pior.<br />

Sônia, a mãe de Renato, valoriza a honestidade consigo mesma e com os outros<br />

e o conhecimento, entendido como instrução, estudo e escolaridade. Entretanto,<br />

não foi b<strong>em</strong> sucedida: os filhos são o oposto do que ela gostaria que foss<strong>em</strong>.<br />

Comenta que lhes ensinou os princípios que preza, mas considera que não<br />

quiseram assimilá-los, como se essa “internalização” fosse conseqüência apenas<br />

de ensinamentos e conselhos.<br />

Ora, sobre esse t<strong>em</strong>a muito contribui a visão sistêmica de Maturana (1999, 2001)<br />

para qu<strong>em</strong> a base da aprendizag<strong>em</strong> explicita a congruência que se obtém entre os<br />

m<strong>em</strong>bros de um sist<strong>em</strong>a familiar <strong>em</strong> sua história de convivência a partir de<br />

mudanças estruturais recíprocas que ocorr<strong>em</strong> ao longo de sua história de<br />

interações. Sônia, por ex<strong>em</strong>plo, não compartilha essa visão na medida <strong>em</strong> que<br />

culpa seus filhos, pela não aprendizag<strong>em</strong> de seus princípios: “Eu não considero<br />

que eu tenha tido sucesso na educação [dos filhos]” por um “probl<strong>em</strong>a individual”<br />

49


deles. O critério que os filhos utilizam para aceitar ou rejeitar a explicação e a<br />

orientação da mãe é o que determina se eles a aceitam ou não. Trata-se de um<br />

processo inconsciente onde o critério de validação é da ord<strong>em</strong> do <strong>em</strong>ocional e não<br />

do racional (1999). Entretanto, fica a dúvida se essa mãe ensinou ativamente os<br />

princípios a seus filhos, ou seja, se explicou e, posteriormente, legitimou ou<br />

rejeitou a compreensão deles. Na entrevista, ela comenta que ensinou pelo<br />

ex<strong>em</strong>plo, portanto, propiciando a observação de seu comportamento. Educar t<strong>em</strong><br />

essas duas facetas: o modelo e a ação; o passivo e o ativo.<br />

Renato t<strong>em</strong> opinião distinta da mãe. Filosofa que os valores do t<strong>em</strong>po de sua mãe<br />

não são os de hoje. Considera que ele e a irmã viv<strong>em</strong> um novo milênio, “não tão<br />

cultural” – valor caro à mãe – e conviv<strong>em</strong> com pessoas de todas as classes e com<br />

toda classe de pessoas. Implicitamente considera que os valores se transformam<br />

de acordo com as mudanças sociais que ocorr<strong>em</strong> no contexto social mais amplo e<br />

operam simultaneamente da sociedade para os indivíduos e dos indivíduos para a<br />

sociedade por meio das práticas sociais. Por sua vez, Ana, a filha, comenta que a<br />

mãe “ainda não conseguiu” passar os valores, sugerindo a possibilidade de<br />

aprendê-los <strong>em</strong> alguma época de sua vida, como se fosse possível ocorrer que os<br />

princípios importantes para a sua mãe se propagu<strong>em</strong> no t<strong>em</strong>po, tornando possível<br />

sua assimilação. O sujeito oculto <strong>em</strong> quase todo o diálogo “o pai” também<br />

comparece aqui: a filha conjectura que, possivelmente, Sônia não tenha<br />

conseguido passar seus princípios porque o pai não tinha conhecimento<br />

[instrução].<br />

O pai, conforme vai se desvelando no discurso dos filhos, é um<br />

bronco, agressivo, porém uma figura a qu<strong>em</strong> Renato tenta se “agarrar” ao contar<br />

50


sobre as férias que passava com ele na infância, numa cidade onde a avó paterna<br />

morava.<br />

Na verdade, o discurso dos filhos acaba por revelar a qualidade do vínculo que<br />

têm com a mãe e com o pai e a importância que essa conexão possui para eles.<br />

Os valores, para ser<strong>em</strong> ensinados e assimilados, precisam de certas condições<br />

<strong>em</strong>ocionais do vínculo e das inter-relações familiares.<br />

Durante o diálogo com a família, interessei-me <strong>em</strong> saber sobre a expectativa dos<br />

vários m<strong>em</strong>bros <strong>em</strong> relação à possibilidade de modificação ou transformação dos<br />

princípios enunciados. A avó considera que eles devam se manter s<strong>em</strong>pre como<br />

um ideal, uma utopia que se persegue. A mãe discute a possibilidade de sua<br />

modificação, no sentido de se adequar<strong>em</strong> à época histórica. Renato julga que<br />

princípios não se transformam porque “já são do costume” e Ana crê que devam<br />

ser modificados com o t<strong>em</strong>po. Nesse conjunto de posições a avó e o neto se<br />

encontram, assim como mãe e filha, num conjunto de pares. O que pode ter<br />

ocorrido com essa questão, bastante abstrata, é sua escassa compreensão uma<br />

vez que Renato e Ana já disseram, <strong>em</strong> outro momento, que ele e a irmã viv<strong>em</strong> um<br />

novo milênio, com princípios diferentes aos da época da mãe. Por outro lado, não<br />

é de se estranhar que, por questão geracional, Dona Janina não discuta a<br />

mudança dos valores.<br />

Segundo Dona Janina, sua família “é o prêmio que eu ganhei da vida. Eu sou do<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que qu<strong>em</strong> não tinha família não tinha nada! Família representava a<br />

51


própria vida”. Sua visão v<strong>em</strong> da década de 50 do século passado, marcada pela<br />

idéia da instituição familiar estável e do casamento monogâmico e eterno.<br />

Posições e papéis eram b<strong>em</strong> definidos e obedeciam a um código moral que ditava<br />

os comportamentos certos e errados.<br />

Sônia, ao contrário, foi da geração Woodstock: “Bom, eu e minha geração<br />

achávamos que a família era uma instituição falida, falsa e os valores só eram<br />

montados para aquela família, para aquela instituição se perpetuar. De lá para cá,<br />

esses valores foram repensados. Então aquela estrutura hipócrita e careta, foi<br />

revista. Eu tenho 58 anos, isso há 40 anos atrás; então eu acho que hoje já se<br />

pensa de outra forma a família. Então eu acredito que as relações familiares são<br />

importantes porque até já são baseadas numa maior sinceridade, diferent<strong>em</strong>ente<br />

da hipocrisia <strong>em</strong> que a família era constituída. Hoje acho fundamental uma<br />

estrutura familiar para agüentar o tranco desse caos social que a gente está<br />

vivendo: a questão das drogas, des<strong>em</strong>prego, violência, fundamentalmente”.<br />

Na década de 60, <strong>em</strong> que essa mãe viveu os seus 18 anos, os jovens<br />

questionaram profundamente a segregação dos papéis conjugais, colocaram <strong>em</strong><br />

pauta a profissionalização da mulher, execraram a vigência de um único código<br />

moral baseado na falsidade, como o adultério proibido para as mulheres,<br />

pregaram o abandono de preceitos religiosos e o adiamento da reprodução<br />

biológica para a maior liberdade dos cônjuges. Entretanto, aspectos do ideário de<br />

casamento dos pais são mantidos <strong>em</strong> paralelo com os recém-adquiridos.<br />

52


No caso da família Zoar se configura uma situação de desmapeamento, na<br />

medida <strong>em</strong> que as representações mais primitivas e abstratas perd<strong>em</strong> as suas<br />

formas concretas de atualização, deslocando-se para um nível mais inconsciente,<br />

coexistindo com as mais recent<strong>em</strong>ente adquiridas, e constituindo um novo<br />

conjunto de concepções sociais (<strong>Figueira</strong>, 1985, 1987). O conflito, até então<br />

latente porque situado nas representações futuras, torna-se presente e atualizado<br />

na década de 70, porque, ao ingressar<strong>em</strong> na ord<strong>em</strong> conjugal e familiar, os jovens<br />

passam a participar dos mecanismos de reprodução da ord<strong>em</strong> social e se<br />

relacionam com os outros justamente a partir das posições que viram seus pais ou<br />

figuras substitutas ocupar<strong>em</strong> (Nicolaci-da-Costa, 1985).<br />

Sônia teve três filhos de duas relações diferentes. Não viveu maritalmente, seja na<br />

mesma casa ou <strong>em</strong> casas separadas, com nenhum dos dois companheiros.<br />

Entretanto, ao responder à pergunta sobre a possibilidade de modificação da<br />

forma como os seus dois filhos, presentes à entrevista, lidam com a autoridade e<br />

os limites <strong>em</strong> casa, a mãe diz: “mas eu tenho uma fantasia de modificação. Se eu<br />

casasse, porque essa figura masculina de uma certa forma, <strong>em</strong> algum momento<br />

faz falta”. Ela reflete, portanto, sobre um vazio constituído pela negação de algo<br />

que ela não foi capaz de preencher de outra forma.<br />

Para Sônia, o conceito de família, atualizado para o momento presente, se<br />

modificou e agregou, num certo sentido, ou tornou visível, a importância que a<br />

idéia do casal convivendo junto s<strong>em</strong>pre teve para a sua mãe. Pela sua narrativa,<br />

essa modificação não se dá n<strong>em</strong> de forma conflituosa para si, n<strong>em</strong> aparece à<br />

53


época <strong>em</strong> que concebeu os filhos. V<strong>em</strong> com a maturidade, levando-a a uma<br />

releitura de casamento e da família, ressaltando sua dificuldade <strong>em</strong> “agüentar o<br />

tranco” dos t<strong>em</strong>pos atuais e de se colocar como uma figura de autoridade para os<br />

filhos.<br />

Renato e Ana traz<strong>em</strong> novas versões do conceito de família: para ele, a instituição<br />

é como um “bolo com recheios variados”. Mas julga que nunca foi cont<strong>em</strong>plado<br />

com bons recheios por causa da violência física que sofreu do pai e da violência<br />

física e psicológica que sofreu e sofre da mãe dentro de casa. Já sua irmã<br />

subdivide a família <strong>em</strong> dois períodos: no primeiro, muito ruim, havia a presença do<br />

pai até os seus 10 anos. S<strong>em</strong> o pai, hoje a situação “é perfeita”, porque não está<br />

só e convive com pessoas que se importam com ela.<br />

Ao longo da entrevista, Renato se portou de forma agressiva. Intimidou a irmã e a<br />

mãe. Falou palavras obscenas, quase agrediu fisicamente sua irmã, chamando-a<br />

de X9. Parecia um “sócio-drama”. A mãe não mostrava o menor controle da<br />

situação. Foi preciso que eu própria separasse os irmãos para dar continuidade à<br />

entrevista. Relato isso para falar a respeito do processo identificatório desses<br />

filhos, nessa casa onde a violência, antes não citada, surge como uma forma de<br />

comunicação entre os pais, dos pais com os filhos e entre os irmãos. Parece que o<br />

hom<strong>em</strong> adquire, nessa família, um lugar de poder de força bruta. Enquanto isso,<br />

Ana não t<strong>em</strong> vocabulário suficiente para expressar seus pensamentos e <strong>em</strong>oções,<br />

pedindo auxílio à mãe para completar as suas frases. Pergunto-me, então, como<br />

54


essa mãe teria lidado com os seus ideais libertários na educação desses filhos. E<br />

mais, como se deu e se dá a relação entre a avó materna, o avô e sua filha.<br />

1.3. Conflito entre Gerações<br />

Dona Janina comenta que, praticamente, criou os seus filhos “dando o melhor que<br />

podia”. Seu marido era o típico pai-provedor de uma família originária de Manaus.<br />

Sônia conta que o pai decidiu mandá-la estudar no Rio porque Manaus era uma<br />

província que não oferecia cultura e conhecimento à altura do valor dado a esses<br />

aspectos por sua família. Com 14 anos veio estudar num colégio, ficando<br />

internada. Daí para frente acha que se deu “régua e compasso” 15 , no sentido de<br />

fazer sua própria vida. Sua mãe também veio morar no Rio um t<strong>em</strong>po depois da<br />

filha. O pai ficou no norte e ela só voltou a vê-lo quando grávida da primeira filha.<br />

Durante seis anos, Dona Janina tentou <strong>em</strong> vão trazer o marido.<br />

Sônia comenta que cuidou praticamente sozinha dos filhos, mas também relata<br />

que sua mãe morava ao lado, de forma que “ela dava assistência quando eu<br />

trabalhava”. Relata que, quando morava <strong>em</strong> Manaus, sua avó e uma tia materna<br />

ajudaram a criá-la e aos irmãos, evidenciando um papel matriarcal importante na<br />

sua formação. Num arroubo aventurista, conta que, quando os filhos eram<br />

pequenos, decidiu ver se “mudava o destino”: vendeu o pouco que tinha e mudouse<br />

com eles para a Rússia.<br />

15 Música “Aquele Abraço” de Gilberto Gil, 1969 (NA).<br />

55


Na geração da avó os filhos foram criados por duas gerações de mulheres: a dela<br />

e a de sua mãe, bisavó de Renato. É importante ressaltar nessa trajetória que a<br />

avó completou o curso normal, trabalhou como professora e vive de sua<br />

aposentadoria, e ainda auxilia financeiramente a filha. Na geração seguinte,<br />

novamente as mulheres (a mãe e avó) criam os filhos só que há também a<br />

presença ambígua (umas vezes amiga, a maioria das vezes como fator<br />

desestabilizador citado tanto pelo filho como pela filha) da figura masculina que<br />

traz para esse universo a marca da violência intrafamiliar.<br />

Dona Janina relata que, a seu ver, sua filha é muito responsável porque trabalha,<br />

cuida dos filhos e de sua própria vida. Porém, não a considera independente<br />

porque precisa de sua ajuda econômica. Julga que esse quadro pode mudar, mas<br />

à custa de “muito trabalho, porque a situação hoje é muito irregular e difícil”.<br />

Quanto aos netos, a avó considera Renato independente porque só faz o que<br />

quer. E a neta não é responsável porque depende da mãe para acordá-la para o<br />

colégio. São detalhes simbólicos do cotidiano, a partir dos quais essa senhora<br />

consegue conceituar independência e autonomia, dentro de sua visão das<br />

complicações da vida moderna: “a educação social e a educação de rua<br />

interfer<strong>em</strong> na educação doméstica”. E explica ainda que a neta é independente e<br />

livre fora de casa, mas ela e o irmão são irresponsáveis por causa de sua própria<br />

idade.<br />

Sônia julga seus filhos irresponsáveis e se pergunta “como não consegui formar<br />

os hábitos mais el<strong>em</strong>entares com eles?” Até hoje, diz, ela precisa mandar que<br />

56


escov<strong>em</strong> os dentes. Comenta que mesmo fazendo a lista dos afazeres de cada<br />

um, eles não são cumpridos. Considera que “só a vida” mostrará a realidade para<br />

os filhos, pois quando “eles começar<strong>em</strong> a levar umas lambadas” serão obrigados<br />

a aprender responsabilidade e independência, ou “vão se dar mal”. Preocupa-se<br />

com Renato que vive totalmente desocupado. O Diretor da escola onde o filho<br />

estudava a chamou porque ele repetiu o supletivo; aconselhou-a a não insistir com<br />

a escola porque ela pagava para ele não estudar. Ele saiu e Ana continuou. Sônia<br />

considera que seria melhor que Renato fizesse algum curso técnico. No entanto, o<br />

rapaz não dá um passo n<strong>em</strong> para se informar sobre um curso de cozinha que diz<br />

desejar fazer no Senac. No contexto da entrevista ocorre uma mútua<br />

culpabilização entre mãe e filho e ele encerra a questão dizendo: “Você já falou<br />

dois papo pra mim hoje, dessa entrevista aqui.” Sua reação é imediata: agressiva<br />

na postura corporal e no discurso verbal, com ameaças e xingamento.<br />

Renato concorda com a avó que vai conseguir, com o t<strong>em</strong>po, tornar-se<br />

responsável com a sua vida; discorda da mãe que espera que ele mude “do jeito<br />

dela, como ela quer e na hora que ela quiser”. Espera aprender à sua maneira. Diz<br />

que t<strong>em</strong> aprendido pouco porque “ainda estou naquela de zoar”. Mas t<strong>em</strong><br />

responsabilidades que são de trabalhar meio expediente aos domingos, na<br />

carrocinha de coco da mãe. Quando não vai porque quer zoar na noite de sábado,<br />

diz que paga alguém para ir <strong>em</strong> seu lugar por metade do meio expediente.<br />

Ana não se julga responsável <strong>em</strong> relação à maioria de suas obrigações, mas se<br />

considera responsável quando estuda para uma prova ou paga uma conta. Há<br />

57


uma diferença na compreensão e interpretação das perguntas entre os irmãos. Ele<br />

entende rápido e ela, inúmeras vezes, além de não entender, t<strong>em</strong> um vocabulário<br />

e uma argumentação <strong>em</strong>pobrecidos. Responde monossilabicamente ou pede<br />

auxílio à mãe. Quanto aos valores de responsabilidade e de independência, a<br />

auto-avaliação de ambos é complacente. O rapaz dá como ex<strong>em</strong>plo de<br />

responsabilidade o meio expediente de um trabalho com a mãe aos domingos. A<br />

irmã, com seus 17 anos, não dialoga como se tivesse essa idade cronológica.<br />

Parece mais nova, <strong>em</strong>ocionalmente.<br />

Em síntese, uma falta de autonomia fundamental para enfrentar a vida perpassa<br />

as duas gerações: os filhos depend<strong>em</strong> da mãe, desde os comportamentos<br />

básicos, como a higiene pessoal até à responsabilidade com estudos e trabalho. A<br />

mãe depende de sua mãe idosa financeiramente. Geração após geração, os<br />

adultos não consegu<strong>em</strong> contribuir para a aquisição da autonomia na geração<br />

seguinte; essa história vai num crescendo, culminando na terceira geração, a dos<br />

filhos, onde aparece, acoplada à dependência das drogas, uma irresponsabilidade<br />

social profunda.<br />

Falando das perspectivas, Dona Janina comenta que a sua filha realizou seu<br />

sonho porque é culta, responsável e trabalhadora. Mas, aparent<strong>em</strong>ente para os<br />

avós, o trabalho não constituiu um valor importante, e sim, a cultura. Apesar da<br />

filha ser qualificada pela avó como uma pessoa trabalhadora, ela, aos 58 anos,<br />

não conseguiu independência financeira. Esta situação de insegurança<br />

profissional que a atinge fica mais patente na geração atual dos jovens, fruto, <strong>em</strong><br />

58


parte, de uma séria crise econômica e de uma quebra de padrões, códigos e<br />

regras no mundo do trabalho, exigindo uma formação muito mais apurada e<br />

competitiva que no passado. Há hoje, no dizer de Zygmunt Bauman (2001,14),<br />

uma liquefação dos padrões de dependência e interação; a responsabilidade pelo<br />

fracasso ou sucesso recai, principalmente, sobre os ombros do indivíduo,<br />

resultado de uma versão individualizada de viver a vida.<br />

A mãe relata sua angústia pela falta de perspectiva dos filhos: “ele deveria ter<br />

estudado numa escola especial para desenvolver o seu lado criativo”. Isso não foi<br />

possível devido à distância e ao preço da escola que conhecia à época. Então, os<br />

estudos foram levados “aos trancos e barrancos”. O sonho dela é que ele<br />

estudasse para fazer maquete, porque t<strong>em</strong> aptidão e poderia ganhar dinheiro.<br />

Acha que se o filho se <strong>em</strong>penhasse mais, tanto a sua vida pessoal quanto os<br />

amigos seriam diferentes. Sonhou que sua filha fizesse faculdade e fosse culta.<br />

Tinha um projeto de vida (Velho, 1999c, 1999d, 1999g) para os filhos. No entanto,<br />

como assinala Gilberto Velho (1999g,101), “o projeto é a antecipação no futuro<br />

dessas trajetória e biografia, na medida <strong>em</strong> que busca, através do<br />

estabelecimento de objetivos e fins, a organização dos meios através dos quais<br />

esses poderão ser atingidos”. Ou seja, o que os filhos são hoje é fruto de um<br />

processo de desenvolvimento das condições da vida deles, dela e da relação de<br />

todos com o pai e a avó.<br />

Manter expectativas acima do que os filhos pod<strong>em</strong> satisfazer implica,<br />

possivelmente, <strong>em</strong> frustração, baixa auto-estima pessoal e imag<strong>em</strong> negativa do<br />

59


que realmente são. Não que a realização pessoal seja decorrente somente da<br />

expectativa que os pais têm sobre seus filhos, mas ela é fonte de alimento ou<br />

frustração para a forma como perceb<strong>em</strong> sua competência e sua capacidade<br />

<strong>em</strong>preendedora.<br />

Renato comenta que gostaria de servir o exército, porque t<strong>em</strong> “atração por armas<br />

bélicas”. Fala também <strong>em</strong> ser um gourmet. É possível que consiga entrar para o<br />

exército. T<strong>em</strong> que <strong>em</strong>agrecer e se reapresentar no início do próximo ano. Como<br />

seu interesse é duplo, acha que precisa da ajuda da mãe, dos “conhecimentos”<br />

dela para conseguir um curso de cozinha. Ele pessoalmente se envolve pouco.<br />

Tentou no Sesc, mas não havia alunos suficientes para iniciar o curso. Como não<br />

se <strong>em</strong>penha suficient<strong>em</strong>ente acaba repetindo que no cotidiano gosta mesmo é de<br />

“zoar”: “beber, jogar sinuca, conversar com os amigos no bar, conhecer gente<br />

nova, ir dançar, ir a um show”. É b<strong>em</strong> verdade que Renato é jov<strong>em</strong>, mas falta à<br />

mãe pulso e firmeza e a ele um direcionamento mais decisivo de suas<br />

potencialidades. Por isso está numa encruzilhada da sua trajetória.<br />

As atitudes da irmã titubeiam entre algumas expectativas: diz que hoje sonha<br />

entrar para a Polícia, pois t<strong>em</strong> um namorado que é policial. Mas ao considerar que<br />

sua vida “está perfeita”, comodamente envolve-se pouco <strong>em</strong> objetivos e metas<br />

que poderiam fazê-la vislumbrar uma profissionalização futura. Comenta que<br />

apenas a incomoda o uso de drogas pelo irmão. Sua idéia é de que ele deveria<br />

ser internado, “querendo ou não”, provocando-lhe muita ira. O irmão disse uma<br />

série de impropérios e ameaças, tornando o clima <strong>em</strong>ocional da entrevista muito<br />

60


tenso, conforme a formulação de Maturana (Maturana et al, 2002b) sobre como o<br />

<strong>em</strong>ocionar é responsável pelo fluir das relações de um domínio de ações a outro.<br />

Com a raiva de Renato invadindo todos os espaços, foi necessário retirar a irmã<br />

para dar continuidade à entrevista. Em seguida, a estratégia foi recolocá-la no<br />

grupo e dispensá-lo.<br />

Chama atenção o fato dos dois jovens explicitar<strong>em</strong> o desejo de seguir profissões<br />

que lidam com a lei: ele, o exército. E ela, a polícia. Estariam passando uma<br />

mensag<strong>em</strong> sobre a escassez de limites e orientações no ambiente de relações<br />

primárias? No caso de Renato seu desejo “liquefeito” de “se enquadrar” se esvai<br />

na vontade de zoar.<br />

1.4. Processo Educativo<br />

No caso da família Zoar, a avó acredita que t<strong>em</strong> boa relação com a filha, uma<br />

“relação de amor” e intimidade “dentro do respeito da intimidade e do diálogo<br />

pessoal”. Igualmente, considera boa sua relação, seu diálogo e até uma certa<br />

intimidade com o neto, sendo menos comunicativa com a neta: “ele é mais<br />

carinhoso. Ela é mais recolhida”.<br />

Ao contrário da opinião de Dona Janina, Sônia considera-se distante da mãe, não<br />

nutrindo intimidade com ela. Mas avalia que se aproxima dos filhos numa relação<br />

franca, dialógica e também conflitiva. Vê alguma possibilidade de modificação de<br />

sua relação com eles, naqueles aspectos que desaprova, a longo prazo.<br />

61


Renato reafirma a boa relação com a avó. “Se ela quiser dormir no meu quarto,<br />

como <strong>em</strong> outras épocas, ela será b<strong>em</strong> vinda”. Diz gostar muito de dona Janina:<br />

“Gosto muito da minha avó, muito, muito, muito, muito mesmo, muito mesmo”.<br />

Com a mãe, comenta que não t<strong>em</strong> intimidade para conversar “sobre sexo, se eu<br />

rodei [ser preso]”, porque ela o “rebaixa” por causa do uso de drogas. Com a irmã<br />

a relação é difícil porque brigam muito, mas também se falam muito. Comenta que<br />

têm idéias opostas, o que atribui ao fato dela namorar um policial há algum t<strong>em</strong>po.<br />

Acha que ela “piorou” de lá para cá.. Chegam a “sair na porrada”, “eu já dei<br />

porrada nela porque de vez <strong>em</strong> quando o sangue esquenta e aí já viu”. Ambos têm<br />

“pavio curto”. Diz que não t<strong>em</strong> intimidade com Ana e considera que sua relação<br />

tende a piorar.<br />

Por sua vez, Ana reconhece que não t<strong>em</strong> intimidade com a avó e com a mãe a<br />

relação, diz, “não é lá essas coisas”. Têm conflitos e pod<strong>em</strong> ficar s<strong>em</strong> se falar até<br />

15 dias, mas voltam a se comunicar. Não t<strong>em</strong> nenhum diálogo com o irmão: “com<br />

o meu irmão é um desastre”, s<strong>em</strong> “nenhuma possibilidade” de modificação.<br />

Salta à vista a aliança entre a avó e Renato. A relação entre eles é terna. Chama<br />

atenção a discordância entre a avó e a mãe na forma de perceber<strong>em</strong> a relação<br />

com o rapaz. Sônia t<strong>em</strong> com os filhos uma proximidade <strong>em</strong>ocional, porém é nítida<br />

a dificuldade de diálogo com eles. Isso se mostra na agressividade psicológica<br />

entre mãe e filho, e física entre os irmãos, reinante na casa. Sônia quando fala<br />

numa possibilidade de melhora no futuro, se refere à probabilidade de que Renato<br />

possa tomar novos rumos. A agressividade psicológica, muito presente na<br />

62


comunicação entre mãe e filho, apontada por Renato, é um peso a mais que<br />

humilha e mina a auto-estima e a auto-imag<strong>em</strong> de qu<strong>em</strong> já sofre muito com a<br />

drogadição.<br />

No caso dos irmãos vale aquela observação clássica sobre violência, segundo a<br />

qual qu<strong>em</strong> não consegue argumentar sobre conflitos e contradições, parte para o<br />

abuso físico. E, ao que tudo indica, ela v<strong>em</strong> sendo utilizada desde cedo na família,<br />

provavelmente com o intuito educativo ou para que os filhos cumpram as<br />

expectativas dos pais. Viver nesse clima <strong>em</strong>ocional e com essa qualidade de<br />

vínculo pode ter contribuído para a dependência que os filhos mostram com<br />

relação à mãe, desde os cuidados básicos, passando pela responsabilidade para<br />

com os estudos e com a profissão. A hostilidade materna faz com que os filhos se<br />

sintam vulneráveis. Há um efeito dominó na baixa qualidade das relações, dos<br />

vínculos e da intimidade entre as três gerações.<br />

Dona Janina relata que seus pais foram modelos de comportamento para si<br />

porque sua mãe, que casou aos 14 anos, criou as três filhas muito b<strong>em</strong> e o seu<br />

pai era “à moda antiga”, o que significa para ela que preservava a sua autoridade<br />

tradicional. Sônia, ao contrário, não considera que seus pais tenham sido modelo<br />

de comportamento. O pai s<strong>em</strong>pre teve uma relação com a cultura, “<strong>em</strong>bora não<br />

tenha passado isso”. Um dos sonhos dele era viajar para conhecer o mundo, coisa<br />

que não conseguiu fazer e ela cumpriu sua vontade, pois leva grupos de turistas<br />

para o exterior. Isso ela concretizou. Porém, diz que os pais sonharam que ela<br />

fizesse um concurso público, mas todos os quatro irmãos tiveram uma trajetória de<br />

63


trabalho “fora dos parâmetros”. Comenta que o modelo de mãe ficou restrito ao<br />

casamento e à família. Por isso considera que ela própria se deu “régua e<br />

compasso”.<br />

Renato t<strong>em</strong> muitas queixas do pai. Considera que ele não foi modelo de<br />

comportamento: é agressivo, gosta de ser “o rei da cocada preta”, é ausente e há<br />

t<strong>em</strong>pos que não o vê. Diz que a mãe “gosta de (se) fazer de intelectual” mas não<br />

t<strong>em</strong> nada de intelectual, expressando sua revolta. Por isso julga-se diferente dos<br />

pais pois não teve ninguém como modelo “eu sou eu, eu não me espelho <strong>em</strong><br />

ninguém”. Ana também t<strong>em</strong> uma opinião negativa do pai, uma vez que “nunca<br />

prestou ou deu atenção à mulher e aos filhos”. Comenta que se não foss<strong>em</strong> os<br />

homens da família, sua história seria diferente, seria melhor porque aprenderia<br />

mais e teria mais intimidade do que t<strong>em</strong> com a mãe. Considera que a falta de<br />

aproximação com Sônia v<strong>em</strong> do fato desta se enredar na interferência do pai e do<br />

irmão de forma a não cont<strong>em</strong>plá-la com a troca necessária a suas d<strong>em</strong>andas.<br />

Aparent<strong>em</strong>ente, os adultos significativos não conseguiram apresentar seus valores<br />

como modelos à geração seguinte. Entretanto, Renato conta que iniciou muito<br />

cedo, com 8 anos, a usar bebida alcoólica e seus pais s<strong>em</strong>pre gostaram muito de<br />

beber. O comportamento dos pais, nesse ponto, lhe serviu de referência.<br />

Dona Janina considera que na sua época os filhos tinham responsabilidade de<br />

estudar e se cuidar. O marido e ela respondiam pelo resto. De forma geral, os<br />

filhos cumpriam as suas tarefas. Ela dava limites, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre cumpridos, e era a<br />

64


figura de autoridade porque ficava mais dentro de casa. Já na casa da filha, a avó<br />

conta que Sônia distribui b<strong>em</strong> os deveres, mas poucos são cumpridos.<br />

Sônia considera que os acordos de participação dos filhos nas tarefas domésticas<br />

são s<strong>em</strong>pre transgredidos. Esses acordos são muitas vezes sugeridos por eles<br />

próprios. Dá um ex<strong>em</strong>plo: ela diz à filha que t<strong>em</strong> que estar na cama às 10 da noite<br />

para conseguir acordar cedo e ir à escola no dia seguinte. A filha se cala e<br />

aquiesce, mas não retorna da rua. Sônia a busca na noite e no dia seguinte a<br />

acorda para a escola. No caso do filho, ela comenta sobre a única<br />

responsabilidade que lhe atribui: ajudá-la no domingo na venda de água de coco.<br />

Consegue que ele não saia na noite de sábado: “Olha, não dá, você quer<br />

continuar trabalhando aos domingos, ganhando aí o seu troco, então você não<br />

pode sair aos sábados e chegar às 5 horas, 7 horas da manhã absolutamente<br />

alcoolizado e trabalhar às 9, entendeu?”.<br />

Sônia conclui que não logra êxito <strong>em</strong> colocar limites, por isso sua autoridade “está<br />

balançada”. Por isso, projeta a modificação desse quadro para num futuro de<br />

médio prazo, quando os filhos atingir<strong>em</strong> a maturidade e puder<strong>em</strong> conviver de<br />

forma mais harmoniosa e d<strong>em</strong>ocrática. Outra possibilidade que cogita é ela se<br />

casar, tendo um hom<strong>em</strong> a seu lado, capaz de impor limites e autoridade dentro da<br />

sua casa.<br />

Renato se refere à sua parte nas tarefas de casa e também considera que a figura<br />

de autoridade da mãe é “fraca”. Nesse momento revela que no t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

65


viviam com o pai ele a agredia fisicamente; hoje é Renato que agride a irmã.<br />

Comenta que “o pai gostava de agredir e a mãe passou a também gostar de<br />

agredir os dois filhos física e psicologicamente”. Quanto aos limites, há um<br />

desrespeito entre os três na forma de se tratar<strong>em</strong>, pois eles se xingam e se<br />

desrespeitam permanent<strong>em</strong>ente. Diz: “estamos todos errados. A base de tudo,<br />

tudo é no xingamento, quanto você mais deixar o outro para baixo, melhor”. Ao ser<br />

perguntado se há alguma possibilidade de modificação desse padrão de<br />

comportamento, Renato responde que: “querer é poder”. Mas só relata o quanto é<br />

difícil modificar. Diz que tenta, mas essa forma de destrato, de humilhação entre<br />

eles já “t<strong>em</strong> anos”. Acabam retornando para a agressão como forma de<br />

comunicação. Quando a violência é entendida como sinônimo de autoridade,<br />

existe o perigo de se utilizá-la como prova de que a família não pode existir exceto<br />

num quadro de referência autoritário (Arendt, 2001, 140-141).<br />

Ana diz que t<strong>em</strong> algumas responsabilidades e as cumpre “de vez <strong>em</strong> quando”.<br />

Comenta que a mãe é a figura de autoridade que tenta se fazer respeitar pelas<br />

pessoas da casa. Acha que todos da família deveriam contribuir para “melhorar o<br />

ambiente”, mas isso só seria possível entre as mulheres, “já que o hom<strong>em</strong><br />

atrapalha porque é preguiçoso... só quer fazer o que está a fim”, explicitando<br />

repetidamente a imag<strong>em</strong> negativa da figura masculina. No entanto, os<br />

comentários dos outros m<strong>em</strong>bros são de que ela também é preguiçosa com<br />

relação às suas obrigações e aos seus estudos.<br />

66


Conforme destaca Maturana (1999), essa família convive <strong>em</strong> congruência com a<br />

educação compartilhada ao longo do t<strong>em</strong>po. A agressão que impregna o<br />

ambiente, mina a auto-imag<strong>em</strong> porque, como aponta Renato, humilha, deslocando<br />

a visão de si para os porões da baixa auto-estima. E essa forma de convivência<br />

perpassa as gerações, o que denota uma dificuldade de escuta e aceitação do<br />

outro.<br />

Em resumo, na família Zoar predomina uma prática educacional de pouco<br />

respeito, atenção e afeto ao longo das últimas duas gerações. Já na geração da<br />

avó há indícios de visões de mundo aparent<strong>em</strong>ente irreconciliáveis, que<br />

permanec<strong>em</strong> no presente. Na família a solução de conflitos acaba por ser<br />

resolvida na base da agressão. A falta de firmeza da figura materna, desde muito<br />

cedo, contribuiu para falta de limites, de metas, de compartilhamento de<br />

responsabilidades com os filhos, fatores tão importantes para a construção de sua<br />

maturidade.<br />

1.5. Considerações finais<br />

O vínculo avó-mãe é narrado de forma oposta por ambas. É como se cada uma<br />

delas se relacionasse com um estranho, já que ambas não se reconhec<strong>em</strong> na<br />

descrição de vínculo da outra. É no vínculo da avó com o neto que escorre a<br />

ternura manifestada <strong>em</strong> carinho, atenção e preocupação mútua. Mas os valores<br />

caros à avó se distanciaram da construção do protagonismo dos filhos. Essa<br />

característica pouco pró-ativa perpassou as gerações.<br />

67


O vínculo mãe-filhos foi <strong>em</strong> parte construído na turbulência das mudanças<br />

culturais que, se atingiram e foram vividas por Sônia, não conseguiram se<br />

transformar <strong>em</strong> princípios sólidos de ação. Sobraram na criação dos filhos, críticas<br />

e humilhações, que fomentam a baixa auto-estima.<br />

A hipótese sobre a organização da hierarquia não é de todo cont<strong>em</strong>plada. Porém<br />

quero ressaltar que, na família, os cônjuges des<strong>em</strong>penham dois papéis sociais:<br />

formam um casal e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, são pais. Nesta família houve uma<br />

imbricação desses papéis, à medida que a relação muito conturbada do casal<br />

imiscuiu-se quase que completamente no des<strong>em</strong>penho de seus papéis sociais de<br />

pais, responsáveis por cuidar de seus filhos. Um casal que se agride física e<br />

psicologicamente, além de instaurar um clima <strong>em</strong>ocional de agressividade e medo<br />

dentro de casa, pouco t<strong>em</strong>po t<strong>em</strong> de sobra e de qualidade para dispensar aos<br />

filhos.<br />

Vivendo sob a égide do medo e da insegurança, Ana e Renato não tiveram o<br />

apoio necessário para o seu crescimento e aprendizag<strong>em</strong>. O vínculo <strong>em</strong>ocional é<br />

o alimento da auto-imag<strong>em</strong>. Não se trata aqui de desprezar a estrutura biológica<br />

do ser humano, mas de enfatizar que é a partir da relação com o contexto e dos<br />

acoplamentos estruturais, que se materializam as tendências pessoais. Viver<br />

episódios de agressão na infância, seja presenciando a agressão física e<br />

psicológica entre os pais, seja os adultos perpetrando agressões com as crianças,<br />

traz conseqüências danosas para a construção do sujeito. A raiva muitas vezes<br />

esconde o imenso sofrimento sentido, individualmente, por todos da casa.<br />

68


A qualidade do vínculo influencia o estilo de criação. A mãe ressalta a dificuldade<br />

<strong>em</strong> ensinar tarefas básicas e dar o sentido de responsabilidade aos filhos, mas<br />

sua imag<strong>em</strong> é a de qu<strong>em</strong> reclama, xinga e acaba fazendo por eles. E os filhos se<br />

comportam de acordo. Confirma-se a hipótese de que o estilo de educação<br />

influencia a aquisição dos valores familiares transmitidos de forma ativa e passiva.<br />

Nessa família não se processa uma combinação de afeto, compreensão e apoio<br />

com práticas educativas de colocação de limites claros, d<strong>em</strong>andas consistentes e<br />

adequadas à fase do desenvolvimento dos filhos. Como valorar cultura e<br />

educação nesse clima <strong>em</strong>ocional <strong>em</strong> que a auto-imag<strong>em</strong> é pouco valorizada?<br />

Por outro lado, os sonhos da mãe a respeito dos filhos não foram construídos no<br />

diálogo, no respeito e na valorização de suas potencialidades. Conflitam com os<br />

deles próprios. Além disso, suas expectativas estão, no momento, além do que<br />

eles poderiam cumprir, caso tivess<strong>em</strong> os mesmos interesses. A resultante dessas<br />

relações primárias é a produção de dois filhos imaturos para sua idade e que<br />

buscam atenção. Infantilizados, não teriam como praticar os valores caros à mãe:<br />

são iletrados no amor, <strong>em</strong>oção básica para a constituição dos laços sociais.<br />

Concluindo, depreendo do relato da família Zoar que os valores familiares pod<strong>em</strong><br />

influenciar o uso abusivo de drogas porque sua transmissão e sua prática são<br />

atravessadas pela qualidade do vínculo <strong>em</strong>ocional entre os adultos m<strong>em</strong>bros da<br />

família que, por sua vez, influencia a educação dos filhos e a constituição da sua<br />

maturidade. As expectativas maternas não se coadunam com o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong>ocional<br />

69


dos filhos, que também não encontram modelos que lhes sirvam como<br />

sustentação. A presença fugaz do pai carrega o ambiente familiar de violência,<br />

fator importante para o incr<strong>em</strong>ento dos ingredientes necessários a um uso abusivo<br />

de drogas no futuro dos filhos.<br />

2. A Família Mimar<br />

2.1. Contextualização<br />

Escolhi nomear essa família como Mimar por ser o mimo o seu estilo de educação<br />

recorrente. O mimo é aqui entendido com “paparico” e excesso de zelo.<br />

A família Mimar mora na zona norte do Rio de Janeiro e se constitui de avó<br />

paterna, Dona Luiza, de 75 anos; Mário, o pai de 58 anos, Celina, a mãe de 51<br />

anos, e os filhos, Arnaldo, 27 anos, Patrícia, 25 anos e o usuário de drogas,<br />

Rodrigo, 20 anos. Dona Luiza, a avó, se separou do marido, que se mudou para<br />

outro Estado quando Mário, seu único filho, era ainda pequeno. O avô faleceu<br />

novo. Mário e Celina estão separados há aproximadamente 13 anos. Ela se casou<br />

novamente, mas não t<strong>em</strong> filhos do segundo casamento. Mário não constituiu outra<br />

família e mora sozinho. Dona Luiza reside com o neto mais velho. Celina vive com<br />

Patrícia e Rodrigo.<br />

A família me recebeu, acolhedora, perto do horário do almoço de um domingo, na<br />

casa da avó.Tiv<strong>em</strong>os que aguardar o pai por meia hora, dando início, a seguir, à<br />

entrevista. Mário, o pai, pareceu-me um jov<strong>em</strong> pela forma como estava vestido: de<br />

70


oné, bermuda e chinelo. Apesar de não ser necessária a sua presença, os dois<br />

irmãos, Arnaldo e Patrícia, quiseram participar da entrevista. Ambos são<br />

corpulentos, maiores do que Rodrigo, o centro de nossas atenções. Sentamo-nos<br />

ao redor da mesa de jantar e iniciamos a conversa.<br />

Começamos levantando o grau de escolaridade dos m<strong>em</strong>bros da família: a avó<br />

paterna t<strong>em</strong> o primeiro grau incompleto; o pai e Arnaldo têm o segundo grau<br />

completo; a mãe, o segundo grau incompleto; Patrícia formou-se <strong>em</strong> pedagogia e<br />

Rodrigo ainda cursa o segundo grau.<br />

Família de classe média, sua renda gira <strong>em</strong> torno de R$ 3000,00, assim divididos:<br />

R$ 480,00 da avó, <strong>em</strong>bora Dona Luiza não contribua para as despesas da família;<br />

R$1200,00 referentes à contribuição do padrasto; R$ 300,00 dos ingressos da<br />

mãe com artesanato; R$ 1250,00 do pai, aposentado como técnico <strong>em</strong><br />

administração pelo Ministério da Saúde (ele contribui pouco para o sustento da<br />

família); R$ 900,00 do trabalho <strong>em</strong> tel<strong>em</strong>arketing, de Arnaldo (que <strong>em</strong>bora não<br />

more com a mãe, contribui para as despesas do irmão mais novo); e R$ 480,00 do<br />

trabalho de Patrícia como recepcionista de um consultório médico.<br />

Inicio fazendo considerações sobre a história do uso abusivo de drogas de<br />

Rodrigo e, <strong>em</strong> seguida, falo da mesma trajetória de seu pai, Mário, sugerindo que<br />

haveria repercussão de tal hábito do pai no contexto familiar. Falo também sobre a<br />

importância da contribuição da família para a análise das hipóteses do estudo.<br />

71


Rodrigo usa maconha e cocaína desde os 16, 17 anos. Conseguiu livrar-se das<br />

duas substâncias por seis meses. Bebe e fuma muito tabaco. Voltou a consumir<br />

maconha no carnaval desse ano, quase todos os dias. O uso de cocaína depende<br />

do dinheiro que t<strong>em</strong>, mas é intenso: por volta de 30 papelotes durante 3 a 4 dias.<br />

Consome uma droga de cada vez.<br />

Mário, o pai, iniciou o uso de maconha aos 13 anos e a cocaína veio mais tarde.<br />

Diz: “a cocaína, infelizmente essa maldição, eu conheci com meus trinta e sete<br />

anos”. Fez uso de cocaína junto com Rodrigo até há poucos meses. Também<br />

Arnaldo iniciou-se na maconha aos 19 anos, usando direto durante três anos.<br />

Parou há meses, quando começou a namorar.<br />

Os significados simbólicos do uso de drogas por Mário não se ass<strong>em</strong>elham aos de<br />

Sônia da família Zoar, <strong>em</strong>bora os dois sejam da mesma geração. Deve-se, <strong>em</strong><br />

parte, à falta de limites que imperou na prática educativa de seu núcleo familiar. A<br />

forma permissiva de criar os filhos da primeira para a segunda geração permeia a<br />

maioria das famílias desse estudo. Nesse sentido, é importante l<strong>em</strong>brar que a lei<br />

organiza a convivência dos homens <strong>em</strong> sociedade a partir das normas e regras<br />

sociais (Bucher, 1992, 35-36). A família é a célula primeira de absorção e<br />

ensinamento das normas sociais. Ela é a primeira instituição que lida com a<br />

transgressão de seus m<strong>em</strong>bros. Os adultos da família são responsáveis por impor<br />

sanções quando as regras básicas de convivência são infringidas. Dessa forma, a<br />

criança e, posteriormente, o jov<strong>em</strong>, aceitam as limitações externas e<br />

compreend<strong>em</strong> seus limites e o dos outros. Nesse processo, o sujeito interioriza a<br />

72


lei simbólica que lhe permite lidar com a lei externa. A adolescência é um período<br />

de novas e secretas experimentações e a transgressão é uma delas. Quando a lei<br />

simbólica não é devidamente interiorizada, o sujeito corre o risco de enveredar<br />

para a exploração de transgressões diversas que ultrapassam os limites da<br />

razoabilidade social. O uso abusivo de drogas é uma delas. É o caso de Mário.<br />

O pai esteve afastado dos filhos durante anos por causa do consumo ilegal de<br />

substâncias. Por ter compartilhado principalmente a cocaína com Rodrigo, culpase<br />

pelo que está ocorrendo com seu filho. A culpa permeia suas expressões na<br />

entrevista. Atribui a si todo o mal que se abateu sobre a família. No entanto, não<br />

questiona o uso de drogas por Arnaldo, o filho mais velho. Esse o agrediu<br />

fisicamente porque se tornava “inconveniente” quando se drogava.<br />

2.2. Valores familiares<br />

Dona Luiza considerou importante passar para seu único filho e seus netos o<br />

respeito pelos mais velhos, o estudo, entendido como instrução, e o trabalho, de<br />

forma a prepará-los para o futuro. Considera que ensinou esses princípios, mas<br />

que seu filho não aprendeu, porque “fez tudo ao contrário”. Porém, na realidade,<br />

Mário concluiu o segundo grau e trabalhou ininterruptamente, mesmo fazendo uso<br />

abusivo de drogas. A avó, no entanto, se r<strong>em</strong>ete a outro valor que relatou<br />

posteriormente quando respondia sobre seus sonhos para a família. Não queria<br />

que seu filho e a nora se separass<strong>em</strong>; que ele “fosse causador da divisão da<br />

família, cada um ir para um canto. Mas aconteceu. Fiz tudo, tudo, tudo, tudo”. Por<br />

isso considera que Mário “fez tudo ao contrário”. Suas preocupações de que nada<br />

73


faltasse à família s<strong>em</strong>pre foram tantas que pagava o aluguel da casa do Mário,<br />

s<strong>em</strong> que a nora soubesse. Ainda que de forma inconsciente, dona Luiza contribuiu<br />

s<strong>em</strong>pre para acobertar a irresponsabilidade do filho, invadindo a relação marital.<br />

No entanto, diz que se manteve fiel a seus valores, entendidos por ela como<br />

balizas para julgar, escolher e orientar seu comportamento a partir do modelo<br />

social de sua época (Costa, 2001).<br />

Dona Luiza é de uma geração marcada fort<strong>em</strong>ente pela representação social de<br />

família estável e de casamento monogâmico e eterno (<strong>Figueira</strong>, 1987). Entretanto,<br />

ela própria se separou do marido. Segundo sua avaliação, o seu ex-marido era um<br />

“vagabundo” porque boêmio e seresteiro, por isso fez tudo para preservar unida a<br />

família de seu filho. Ela também não perdoa Celina, a nora, pela separação e,<br />

acima de tudo, por ter se casado novamente: “eu não aceito certas coisas como<br />

são hoje, porque eu acho que mãe não pode deixar os filhos e depois também<br />

com filho vivo, ir morar com outra pessoa”.<br />

Mário não quis falar sobre valores porque <strong>em</strong> sua consciência predomina a culpa<br />

pela ausência: esteve afastado dos filhos durante o crescimento deles. Considerase<br />

“um mau pai” porque não os criou. Comenta que sua ex-mulher foi uma<br />

sofredora por tudo o que passou e é sofredora pelo que vive hoje com o uso de<br />

drogas de Rodrigo. Durante a entrevista, como numa catarse, Mário estava<br />

interessado <strong>em</strong> falar sobre o seu próprio uso abusivo de substâncias,<br />

evidenciando a consciência da lacuna deixada pela falta de participação na<br />

família.<br />

74


Celina valoriza o respeito a si e aos outros como a base do amor e se considera<br />

b<strong>em</strong> sucedida no ensinamento desses valores para os filhos mais velhos e para<br />

Rodrigo até os 16 anos. Comenta que procura colocar <strong>em</strong> prática os princípios nos<br />

quais acredita, apesar de algumas vezes ser “mal interpretada”. Dá como ex<strong>em</strong>plo<br />

a sua relação com Rodrigo: “eu procuro mostrar para ele o amor que eu tenho por<br />

ele; isso às vezes confunde a família, o irmão, a irmã, que é questão de paparico,<br />

e não é por aí”.<br />

Os filhos, porém, contradiz<strong>em</strong> a mãe e contam que, no momento delicado <strong>em</strong> que<br />

viv<strong>em</strong> atualmente, só há tensão e não respeito entre eles, por causa da situação<br />

de Rodrigo. O amor e a união da família, enaltecidos por Arnaldo, de fato, não se<br />

concretizam.<br />

Interessei-me <strong>em</strong> saber sobre a expectativa dos m<strong>em</strong>bros da família com relação<br />

à possibilidade de transformação ou modificação do que consideram negativo na<br />

adoção dos princípios enunciados. Dona Luiza é b<strong>em</strong> clara: os seus valores não<br />

se transformam. Dar lugar a novas práticas sociais seria para ela um modismo e a<br />

negação do que aprendeu <strong>em</strong> sua geração. Celina não responde à pergunta e<br />

comenta sobre a possibilidade de transformação do comportamento de Rodrigo,<br />

seu foco constante de atenção. Patrícia espera que esse momento de desrespeito<br />

e desunião na família se modifique, mas confessa ter pouca esperança, já que a<br />

vida familiar gira <strong>em</strong> torno do irmão caçula e suas drogas.<br />

75


Os filhos mais velhos provavelmente sent<strong>em</strong> a ausência da mãe que há t<strong>em</strong>pos se<br />

encontra submersa nas questões de Rodrigo. Consideram que ela expressa mais<br />

afeto para com o filho “probl<strong>em</strong>ático” e menos com relação aos outros, gerando<br />

ciúmes entre os irmãos. Para eles, “a base do amor está oca”. Também Mário<br />

passa a dedicar afeto e preocupação a Rodrigo, quando retorna ao convívio<br />

familiar. Assim, Arnaldo e Patrícia ficam privados da atenção que, julgam, lhes<br />

seria devida pelos pais.<br />

Está claro que o uso abusivo de drogas de Rodrigo contaminou a prática dos<br />

valores familiares na geração de seus pais. De qualquer maneira é um contrasenso<br />

pedir ao caçula que tenha respeito, que pare de consumir drogas se, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, encontra no pai um modelo desse comportamento, inconscient<strong>em</strong>ente<br />

acobertado por Dona Luiza e Celina. As mensagens interacionais desse grupo são<br />

muito contraditórias. A família Mimar paga um preço pela forma como lidou com o<br />

abuso de drogas de Mário. Possivelmente, esse contexto exerceu fascínio <strong>em</strong><br />

Rodrigo, seja pela curiosidade de experimentar novas sensações, seja pela<br />

identificação com o pai e com Arnaldo, o irmão mais velho. A cultura dos homens<br />

da família Mimar inclui o uso de drogas. Pode ser que Rodrigo se valha desse<br />

ex<strong>em</strong>plo para argumentar e contestar a excessiva vigilância que hoje todos<br />

exerc<strong>em</strong> sobre ele.<br />

Ao falar da família, Mário não quer teorizar. Diz que a sua é aquela que está<br />

reunida na sala de jantar hoje. Não t<strong>em</strong> mais ninguém além deles. Já Dona Luiza<br />

repete s<strong>em</strong>pre que na família deve haver “respeito” como base para a “união”.<br />

76


Celina concorda com a sogra, dizendo que família representa “união” no sentido<br />

dos familiares “ajudar<strong>em</strong> um ao outro a levantar”. Esse é seu objetivo atual com<br />

Rodrigo. Ao responder à pergunta sobre a criação dos filhos, comenta que o<br />

antídoto para as dificuldades que viv<strong>em</strong> hoje teria sido ela e Mário continuar<strong>em</strong><br />

casados, talvez assumindo a culpa pelos probl<strong>em</strong>as explicitados na drogadição de<br />

seu caçula, e concordando com Dona Luiza de que ela deveria ter se sacrificado<br />

pelo b<strong>em</strong> do grupo familiar. Diz isso, apesar de estar casada novamente, da má<br />

qualidade da relação com o ex-marido e das turbulências familiares que<br />

mencionou. Assim, Celina conserva aspectos do ideário de casamento e família<br />

da geração anterior, o que se configura na noção de desmapeamento (<strong>Figueira</strong>,<br />

1985, 1987).<br />

Arnaldo, Patrícia e Rodrigo traz<strong>em</strong> versões diversificadas do conceito de família. O<br />

irmão mais velho considera que família engloba união, respeito e convivência<br />

amorosa: inclui laços de afinidade e auxílio mútuo <strong>em</strong> todas as situações. A irmã<br />

julga que família é a “base de tudo, é a sua formação”. Gostaria que a convivência<br />

na sua família fosse harmônica porque o aprendizado nesse núcleo serve como<br />

escudo para possíveis desvios de caminho fora de casa. Patrícia corrobora a idéia<br />

de que é necessário um ambiente de confiança e respeito, permeado pelo afeto,<br />

para que não se instal<strong>em</strong> probl<strong>em</strong>as de conduta, como o uso abusivo de drogas<br />

(Schenker e Minayo, 2003). Já para Rodrigo família é o lugar de respeito, valor<br />

que, na sua opinião, sua família não professa desde os seus sete anos, momento<br />

<strong>em</strong> que a aliança dos pais se desfez.<br />

77


Os pais se separaram na década de 80 e deixaram marcas profundas na vida das<br />

três gerações. Celina saiu de casa e os filhos ficaram, num primeiro momento,<br />

com Dona Luiza e Mário, até o momento <strong>em</strong> que este também os deixou, com a<br />

avó. A atitude de Celina se passa <strong>em</strong> plena época da valorização da igualdade<br />

como ideal regulador das relações, onde se busca o modelo igualitário de família<br />

(<strong>Figueira</strong>, 1987). Ela sai <strong>em</strong> busca de outra vida, pois já não suportava a<br />

desarmonia existente <strong>em</strong> sua própria família, arranjo que os adultos conseguiram<br />

fazer do grupo familiar. Essa solução, no entanto, resultou numa série de<br />

atropelos nas três gerações. Apesar disso, os m<strong>em</strong>bros da família d<strong>em</strong>onstram<br />

uma certa nostalgia do t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que moravam juntos.<br />

A saída de Celina de casa, e não o seu recasamento, constitui um marco<br />

traumático para todos. Os filhos reag<strong>em</strong> buscando a mãe que, à medida que se<br />

desvela na conversa, representa o ponto de referência, carinho, autoridade e<br />

presença para os filhos. No entanto, os filhos ficam à deriva após a separação dos<br />

pais, pois passam a viver com a avó, sendo por ela proibidos de ver a mãe. Dona<br />

Luiza até hoje não perdoa Celina pelo término do casamento e por ter refeito sua<br />

vida amorosa “com filho vivo”.<br />

2.3. Conflito entre Gerações<br />

Dona Luiza explica que seu filho s<strong>em</strong>pre foi “muito<br />

paparicado...mimado...escangalhado” pelas mulheres que o criaram: ela própria, a<br />

avó e as tias-avós maternas. E Mário tece um comentário: “dei sorte”. Será? Ato<br />

contínuo, Rodrigo diz que “está indo pelo mesmo caminho [o do paparico do pai]”.<br />

78


A avó esclarece que, inicialmente, seu auxílio foi mais do que financeiro para a<br />

família do filho porque costurava para seus netos e os levava para a escola.<br />

Também cuidou deles após a separação do casal. Inicialmente, com algum auxílio<br />

de Mário. Num dado momento, ele também sai de casa deixando as crianças aos<br />

seus cuidados exclusivos. Dona Luiza abrigou e tomou conta sozinha dos netos<br />

durante cinco anos.<br />

Mário teve pequena participação na criação dos filhos porque nunca se julgou<br />

capaz de assumir responsabilidades familiares “eu s<strong>em</strong>pre andei no lado errado;<br />

eu me envolvi com drogas também. Fiz sofrer a minha mãe. Então não tive t<strong>em</strong>po<br />

de olhar para o lado bom”.<br />

Celina relata que criou a família com a ajuda financeira (alimentação, colégio e o<br />

aluguel) da sogra, “a parte que o pai teria que fazer”. Separou-se quando Rodrigo<br />

tinha sete anos, e como já foi dito, a separação teve um peso muito grande nas<br />

relações intrafamiliares. Celina contribuiu, também, para a imaturidade do marido,<br />

aceitando a ajuda financeira da sogra desde o início do casamento. Indignou-se<br />

tardiamente contra essa dependência na qual Mário já entrava no casamento<br />

desqualificado no seu papel de adulto que deveria prover e educar seus filhos.<br />

Retomando a hipótese da organização da hierarquia, Mário estaria localizado na<br />

geração dos filhos e não na dos pais. O adulto que cuidava dos filhos era Celina<br />

que, ao separar do marido e sair de casa, deixa-os à deriva, com 14, 12 e 7 anos,<br />

idades cruciais para a formação de identidade. O filho mais velho se rebela<br />

batendo <strong>em</strong> Mário por causa de “seu comportamento inconveniente”, que levou a<br />

79


mãe ao desespero, invertendo-se a hierarquia: o filho torna-se a autoridade,<br />

assumindo o lugar de pai de seu pai.<br />

Dona Luiza não considera o seu filho, Mário, responsável e independente, porque<br />

apesar de morar sozinho, “está s<strong>em</strong>pre precisando de uma coisa [de sua mãe]”.<br />

Julga os netos mais velhos responsáveis <strong>em</strong> algumas coisas e irresponsáveis <strong>em</strong><br />

outras. Arnaldo cuida de si, mas não auxilia a avó financeiramente e nas tarefas<br />

domésticas. Mas dona Luiza concede e confessa o quanto lhe é difícil sair s<strong>em</strong><br />

deixar a comida pronta para o neto. Quanto à neta, que trabalha, está s<strong>em</strong>pre<br />

precisando de “um real” para a passag<strong>em</strong>. Apesar disso, dona Luiza a considera<br />

independente porque, “essas besteirinhas [o um real da condução] isso é até<br />

carinho de avó”. Quanto a Rodrigo, a avó julga sua irresponsabilidade e<br />

imaturidade como parte das circunstâncias do uso de drogas, o que o torna<br />

dependente. Dona Luiza acha possível que Mário (apesar de já ter 58 anos) e os<br />

netos se torn<strong>em</strong> responsáveis e independentes. Rodrigo pode reverter o quadro<br />

de uso abusivo de drogas: “nós estamos aqui para isso [na entrevista]. Há<br />

possibilidade”.<br />

Mário espanta-se ao ouvir que dona Luiza não o considera responsável e<br />

pergunta: “n<strong>em</strong> agora?” referindo-se ao fato de ter parado de usar drogas há<br />

alguns meses. Fica patente que, até o presente momento, Mário busca a<br />

aprovação da mãe, revelando sua imaturidade afetiva. Ele próprio considera seus<br />

filhos mais velhos responsáveis, <strong>em</strong>bora ainda não independentes<br />

completamente: “n<strong>em</strong> Jesus foi 100% (independente), que ele bateu, ele tomava<br />

80


seu vinhozinho, essas coisas”. Na sua opinião, Rodrigo se tornará independente<br />

por meio do esforço próprio.<br />

Celina comenta que Arnaldo sofre a influência da criação da avó até hoje. Acredita<br />

que a sogra, ao tentar oferecer o melhor, “fez” o neto “assim meio inseguro”,<br />

dependente da opinião dos outros para tomar atitudes. No entanto, julga-o<br />

responsável porque trabalha e cumpre os seus compromissos. Já Patrícia é o<br />

oposto do irmão: independente, cuida de suas coisas. Porém, a mãe diz que ela é<br />

irresponsável financeiramente, porque gasta mais do que ganha. Rodrigo sabe se<br />

alimentar, cuidar de si, mas o uso de drogas torna-o dependente <strong>em</strong>ocional e<br />

financeiramente.<br />

Celina atribui a insegurança de Arnaldo à criação de sua sogra, esquecendo-se do<br />

quanto ela também o influenciou já que moraram juntos até ele completar 14 anos.<br />

Vale l<strong>em</strong>brar que o sujeito se constitui na convivência com os outros, ou seja, a<br />

avó não teria poderes para fazer o neto de tal ou qual forma. Arnaldo recebeu<br />

influências de e influenciou todas as pessoas significativas da família <strong>em</strong> sua<br />

dinâmica de mudanças estruturais recíprocas (Maturana, 1999, Maturana, 2001,<br />

Maturana e Varela, 1995). Arnaldo sabe disso quando tece comentário sobre a<br />

relação com a sua avó: “é uma dependência criada <strong>em</strong> cima de mim, e de certa<br />

forma me acomodei”.<br />

Celina comenta que Arnaldo t<strong>em</strong> condições de se tornar independente. Relata que<br />

Rodrigo pode se tornar responsável quando quiser parar de usar drogas. Ele fará<br />

81


21 anos <strong>em</strong> breve e terá de assumir os seus atos “o que eu pude fazer eu fiz, o<br />

que acontecer daqui para frente, qu<strong>em</strong> é responsável é ele mesmo”. Esse<br />

comentário se baseia na crença de que os 21 anos funcionarão como um passe<br />

de mágica para um estágio de maior responsabilidade.<br />

Arnaldo e Patrícia concordam com o que a família pensa sobre eles, quando se<br />

trata de autonomia e responsabilidade. A insegurança de Arnaldo é um t<strong>em</strong>a<br />

constante de sua própria reflexão e Patrícia considera que se tornará<br />

independente quando for viver sozinha. Rodrigo julga-se dependente da família<br />

“para tudo” e precisa encontrar meios para ser mais autônomo ou, como diz, “mais<br />

dependente de si próprio”.<br />

Como se depreende, a autonomia dos indivíduos dessa família não foi incentivada<br />

ao longo das três gerações. Os mimos e paparicos se transformaram <strong>em</strong> aliados<br />

do descumprimento das responsabilidades condizentes com a etapa do ciclo vital<br />

de cada um dos participantes do grupo.<br />

Falando das perspectivas para os filhos, Dona Luiza comenta que Mário não<br />

realizou seu sonho: é irresponsável com a família e não conseguiu manter o<br />

casamento. Quanto aos netos, ela gostaria que estudass<strong>em</strong>, trabalhass<strong>em</strong> e<br />

tivess<strong>em</strong> responsabilidade para cuidar de suas vidas. Dona Luiza conviveu com<br />

eles t<strong>em</strong>po suficiente para uma s<strong>em</strong>eadura de seus sonhos. A vida conturbada<br />

das relações não auxiliou o plantio: ela assumiu inicialmente o papel de paiprovedor<br />

e, posteriormente, de mãe dos netos. Deslocada do lugar de avó, seus<br />

82


ensinamentos sofreram distorções, nas formas ativa e passiva. Em contrapartida,<br />

seu próprio filho, Mário, comenta que não teve sonhos, n<strong>em</strong> para si e n<strong>em</strong> para os<br />

seus.<br />

Celina comenta que, na família, a única a realizar os sonhos dela, como mãe, foi<br />

Patrícia. Ela formou-se <strong>em</strong> Pedagogia, carreira que Celina gostaria de seguir.<br />

Arnaldo entrou numa faculdade que não queria cursar e saiu. E para Rodrigo ela<br />

gostaria da carreira militar, o que coincide com o desejo dele. Os amigos dos filhos<br />

mais velhos são da melhor qualidade, considera ela. O mesmo não se pode dizer<br />

dos de Rodrigo, desde que se iniciou nas drogas. Celina percebe que seus filhos<br />

Arnaldo e Patrícia carregam uma tristeza cotidiana enquanto Rodrigo se manifesta<br />

verbalmente agressivo quando frustrado <strong>em</strong> algo. É sua forma de dimensionar as<br />

reações dos filhos frente aos conflitos e contradições familiares que vivenciam. É<br />

também uma forma de falar sobre sua tristeza e frustração com relação ao seu<br />

des<strong>em</strong>penho como mãe dessa família.<br />

Arnaldo ecoa as palavras de sua mãe: “às vezes eles sonham uma coisa que<br />

colocam como referência e a gente até sofre uma cobrança de um sonho que você<br />

não t<strong>em</strong> culpa deles ter<strong>em</strong> sonhado”. Hoje <strong>em</strong> dia, Arnaldo e também Patrícia<br />

diz<strong>em</strong> que almejam construir uma família e trabalhar.<br />

Rodrigo sonha parar de usar drogas e tentar novamente a carreira militar porque<br />

“quando eu comecei a usar drogas fui desistindo de todos os sonhos, fui parando<br />

de sonhar, porque fui parando de dormir, então já n<strong>em</strong> sonhava”. Seus amigos,<br />

83


diz, são “descartáveis, são amigos de droga”. Provavelmente, Rodrigo está<br />

vinculado estritamente ao grupo de pares e às satisfações produzidas pelo<br />

envolvimento num estilo de vida adicto (Oetting et al, 1998).<br />

O casamento e a manutenção da família são valores caros, uma cantilena da avó<br />

e de todos os m<strong>em</strong>bros da família Mimar. No entanto, o uso de drogas por parte<br />

de Mário tornou-se abusivo após o casamento. Ele não foi educado e n<strong>em</strong> estava<br />

preparado para cumprir os compromissos de um casamento e da constituição de<br />

uma família. Infantilizado pelas mulheres, acomodou-se, da mesma forma que<br />

Arnaldo e Rodrigo. A única expectativa que Mário enuncia é parar de usar drogas,<br />

sonho caro à dona Luiza.<br />

Celina influenciou a escolha profissional da filha e a entrada na faculdade de<br />

Arnaldo. Hoje <strong>em</strong> dia, no entanto, Patrícia considera importante somente o fato de<br />

estar formada. Uma relação amorosa de qualidade, lugar de acolhimento,<br />

intimidade e diálogo, conforme Arnaldo esclarece ao longo de nossa conversa, o<br />

leva a sonhar outra vez, buscando transcender a apatia e a tristeza que tomou<br />

conta de sua vida. Em síntese, a família não criou condições para que seus<br />

m<strong>em</strong>bros alçass<strong>em</strong> vôos <strong>em</strong> busca dos projetos estruturadores dos caminhos<br />

presentes e futuros.<br />

2.4. Processo Educativo<br />

84


Dona Luiza comenta que ainda t<strong>em</strong> conflitos com o filho e com a nora por causa<br />

da conduta de ambos no processo de separação conjugal. Igualmente considera<br />

conflituosa a relação com os netos mais velhos. Arnaldo não aceita mais as suas<br />

sugestões: “o paparico que eu tinha com ele, ele atualmente não aceita”, para a<br />

sua tristeza. Patrícia é “muito brigona, mal criada”. Mas há, também, na sua<br />

relação com os netos mais velhos, um transbordamento de afeto. Rodrigo é o que<br />

ela “adotou” quando Celina saiu de casa. Sente tristeza pelo que está passando<br />

porque o considera muito inteligente, “um menino muito bom, carinhoso” e t<strong>em</strong>e<br />

que não consiga parar de usar drogas, prejudicando assim, uma carreira que<br />

poderia ser brilhante.<br />

Mário, como já foi dito, ainda vive com a mãe uma relação de filho carente de<br />

afeto. Com Celina a relação é boa hoje <strong>em</strong> dia: conversam sobre a questão do<br />

filho <strong>em</strong> relação ao uso de drogas. Para algo t<strong>em</strong> servido o uso de drogas de<br />

Rodrigo. T<strong>em</strong> pouco contato com Arnaldo e, portanto, pouco diálogo. Esse filho<br />

lhe faz l<strong>em</strong>brar que t<strong>em</strong> responsabilidade quanto ao uso de drogas de Rodrigo.<br />

Patrícia e Rodrigo receb<strong>em</strong> mais carinho: “ela é a minha namorada” e ele a sua<br />

preocupação.<br />

Celina concorda com a descrição de dona Luiza e Mário sobre a qualidade do<br />

vínculo entre eles. Sublinha que entra <strong>em</strong> conflito quando o ex-marido retorna às<br />

drogas e faz uso junto com o filho, o que, l<strong>em</strong>bra, não acontece há alguns meses.<br />

Ultimamente, eles têm procurado, juntos, um tratamento para o filho. É mais ligada<br />

a Arnaldo e Rodrigo. Considera Patrícia mais próxima à família do pai.<br />

85


Salta à vista a aliança amorosa entre o pai e sua filha, <strong>em</strong> contraposição à relação<br />

distante entre mãe e filha. Celina encantou-se com os filhos homens, restando a<br />

Patrícia um sentimento de rejeição da mãe e um laço estreito com o pai. Celina e<br />

Arnaldo têm uma cumplicidade e uma intimidade próximas às de marido e mulher.<br />

O encaixe final se mostra no reconhecimento de Arnaldo do seu lugar de pai para<br />

Rodrigo.<br />

Pela primeira vez a mãe comenta sobre seu estado de saúde, que inspira<br />

cuidados “sei que ele [Rodrigo] t<strong>em</strong> muita preocupação com relação a mim, devido<br />

ao probl<strong>em</strong>a de saúde [dela] que veio e está se agravando muito; então espero<br />

que, seja até por causa disso (grifo meu) que ele esteja buscando uma melhora<br />

para ele”. Celina fala de um acordo inconsciente entre ela e Rodrigo: a saúde dela<br />

depende da saúde dele. Ou seja, se explicita mais um equívoco, como forma<br />

possível de alívio do sofrimento: ele deve se cuidar <strong>em</strong> função da mãe e não por<br />

si. Enredado com o projeto de sua genitora, há poucas perspectivas de<br />

protagonismo para Rodrigo.<br />

Arnaldo entende que a relação de conflito com a avó é o preço que paga pela sua<br />

independência. Reafirma a sua proximidade da mãe e o conflito com o pai.<br />

Inclusive, sua namorada comenta que ele às vezes se porta como se fosse pai de<br />

Rodrigo. E Arnaldo se sente “o centro de todos esses probl<strong>em</strong>as” no sentido de se<br />

julgar o responsável pela solução dos probl<strong>em</strong>as familiares. No entanto, diz que<br />

v<strong>em</strong> percebendo que ela depende das “próprias pessoas”.<br />

86


Patrícia concorda com a opinião de seus pais e de sua avó. Comenta que, nos<br />

últimos t<strong>em</strong>pos, passou a se dar b<strong>em</strong> com Arnaldo, que ficou “mais calmo” depois<br />

que começou a namorar. Rodrigo s<strong>em</strong>pre foi o seu “xodó”, mas ultimamente<br />

brigam muito por causa do comportamento dele. Ela t<strong>em</strong>e pela saúde desse<br />

irmão.<br />

Rodrigo explica que já teve intimidade com a avó: até dormia na cama com ela.<br />

Atualmente, não t<strong>em</strong> intimidade com ninguém da família mas, sim, atrito com<br />

todos, <strong>em</strong> menor intensidade com a mãe. Avalia que a sua relação com a família<br />

mudará quando parar de usar drogas.<br />

Não deve ter sido fácil para os filhos e netos viver<strong>em</strong> um vínculo tenso, com<br />

mágoas e acusações mútuas entre Dona Luiza e Celina, porque ambas<br />

des<strong>em</strong>penham o papel de mãe para eles. Apesar de se considerar “o hom<strong>em</strong> da<br />

casa”, o movimento de independência <strong>em</strong>ocional que Arnaldo iniciou é complexo<br />

para ele, porque se refere a uma forte ligação afetiva com Dona Luiza. O rito de<br />

passag<strong>em</strong> da adolescência para o adulto jov<strong>em</strong> é doloroso para pais e filhos, que<br />

dirá para uma avó que t<strong>em</strong> o neto como seu filho!<br />

Em síntese, dona Luiza é mãe de Mário, filho infantilizado e de Arnaldo, neto mais<br />

velho que luta por sua independência. Celina usa uma aliança com Arnaldo, seu<br />

filho mais velho, que t<strong>em</strong> Rodrigo, o caçula, como filho. Mário, o pai, t<strong>em</strong> uma<br />

87


aliança com Patrícia, filha a qu<strong>em</strong> chama de namorada. Essa organização de<br />

hierarquia familiar peculiar configura a complexidade das relações dessa família.<br />

Dona Luiza comenta que o seu próprio pai não foi um modelo de conduta<br />

masculina porque abandonou sua mãe quando ela tinha cinco anos. A mãe, sim,<br />

foi modelo de amor e cuidado pelos filhos. A história mostra que o mesmo ocorreu<br />

com ela: seu marido a abandonou.<br />

Mário relata que sua mãe foi um modelo de dedicação: trabalhava até altas horas<br />

na máquina de costura para lhe dar estudo. Viu pouco o pai, que se separou da<br />

mãe quando ele era pequenino e não morava no Rio. Não conviveu com ele, um<br />

boêmio e seresteiro que indiretamente lhe serviu de modelo. Considera que o avô<br />

paterno foi seu modelo de afeto.<br />

Celina comenta que a mãe foi modelo de dona de casa e de mãe. O pai, um<br />

hom<strong>em</strong> trabalhador, sustentou 7 filhos e lhes dava respeito, amor, carinho e era<br />

muito alegre. Ensinou-lhes a dividir as despesas e viver com o que tinham. Por<br />

tudo isso, foi um modelo de comportamento.<br />

Rodrigo avalia com carinho sua mãe. Diz que s<strong>em</strong>pre foi um modelo de<br />

determinação, apesar dele ainda não segui-la. O pai, ao contrário, representou<br />

s<strong>em</strong>pre para ele o “negativo”, do que não se deve fazer: “Eu era para ser o oposto<br />

dele”. Arnaldo e Patrícia admiram a mãe porque é obstinada, “(uma) pessoa<br />

lutadora, de fibra, forte”, nas palavras de Patrícia. Entretanto, Arnaldo e Rodrigo<br />

88


não conseguiram ou não seguiram as qualidades maternas, enquanto Patrícia<br />

absorveu o seu ex<strong>em</strong>plo de organização. Arnaldo e Patrícia também avaliam o<br />

pai como um modelo negativo de comportamento. Arnaldo comenta que foi<br />

aprendendo “com a vida, conhecendo pessoas, os amigos”, para criar para si um<br />

modelo masculino que tenta transmitir a Rodrigo.<br />

A educação dos filhos, na sua forma passiva, r<strong>em</strong>ete à identificação com os pais e<br />

adultos significativos. O uso abusivo de drogas por parte de Mário permeou a vida<br />

toda de Arnaldo, Patrícia e Rodrigo com repercussões negativas. Mário é mais<br />

filho de Dona Luiza do que pai dos seus filhos; não acompanhou a criação e o<br />

crescimento deles, criando um vazio da figura paterna, ausência acobertada<br />

inconscient<strong>em</strong>ente pelas mulheres, Dona Luiza e Celina. O estabelecimento do<br />

vínculo é uma das condições para que os pais se constituam <strong>em</strong> modelos de<br />

comportamento (Brook et al, 1990). Embora se indigne posteriormente, Celina<br />

soube do uso de drogas por Mário aos três meses de casada e sua união marital<br />

durou o t<strong>em</strong>po suficiente para gerar<strong>em</strong> três filhos. E se houve, por parte dela,<br />

estabelecimento de normas sobre o uso de drogas, estas não foram<br />

impl<strong>em</strong>entadas, já que diz com todas as letras que Rodrigo vai parar de usá-las<br />

<strong>em</strong> consideração a sua saúde.<br />

Arnaldo conta que estava perdido até começar a namorar: a relação o colocou no<br />

prumo. No entanto, é preciso considerar essa insegurança crônica, que coloca<br />

suas decisões interiores s<strong>em</strong>pre na dependência do “outro”. Precisa do outro<br />

89


como alavanca. Porém, mostra-se mais amadurecido do que Mário, cuja alavanca<br />

<strong>em</strong>ocional é a mãe, Dona Luiza, na altura de seus 58 anos!<br />

O uso que a família faz do amor é digno de nota por ser utilizado como paparico e<br />

mimo, que mais incr<strong>em</strong>entam a dependência <strong>em</strong>ocional do que o amor dado na<br />

forma de afeto, aprovação, atenção, que poderiam contribuir para o<br />

desenvolvimento <strong>em</strong>ocional e o protagonismo dos filhos.<br />

Mário nada teve a comentar sobre deveres, responsabilidades e a figura de<br />

autoridade na sua família nuclear, porque foi s<strong>em</strong>pre uma figura ausente. Celina<br />

argumenta sobre isso, assumindo o papel de pai e mãe: os deveres eram<br />

cumpridos quando os filhos eram pequenos porque senão “o pau comia”: cobrava<br />

tarefas e castigava os descasos e a inadimplência. O marido, diz, “só chegava <strong>em</strong><br />

casa devagar quase parando. Entrava, tomava banho, ia para a rua e quando<br />

voltava, voltava já num estado que ele sabe”.<br />

Dona Luiza estabelece a vinculação do presente de Mário com os t<strong>em</strong>pos de sua<br />

infância: “sua única responsabilidade era estudar”. Os dois netos, quando<br />

moraram com ela, tratou da mesma forma que ao pai. Patrícia, por ser mulher,<br />

tinha que ajudar <strong>em</strong> casa. Rodrigo se l<strong>em</strong>bra: “eu ficava só na rua”. Dona Luiza<br />

avalia hoje que agiu mal por não impor limites: “tinha pena [dos netos], só chorava.<br />

Tudo que eles queriam, eu fazia”. “Eu errei, errei mesmo”.<br />

90


Arnaldo fala do assunto, l<strong>em</strong>brando que aos 14 anos, <strong>em</strong> pleno início da<br />

adolescência, faltou-lhe a figura de autoridade, concordando com Patrícia que, à<br />

época da separação, os irmãos ficaram “perdidos”, uma vez que Celina, até então,<br />

representava a figura de autoridade. Voltando a viver com a mãe após os cinco<br />

anos <strong>em</strong> que permaneceram com a avó, Patrícia e Rodrigo tiveram afeto, limites e<br />

exigências de responsabilidade colocados por ela e pelo padrasto. No entanto, a<br />

figura do atual marido de Celina <strong>em</strong> nenhum momento foi objeto de comentário<br />

por parte dos filhos dela. Uma das hipóteses sobre essa ausência seria o fato de<br />

que a nova relação de Celina não é assunto para ser comentado na frente de<br />

dona Luiza.<br />

Em resumo, observa-se uma discrepância estruturante nos pais Celina e Mário.<br />

Ele foi educado num ambiente de mimo por uma leva de mulheres e nunca<br />

assumiu a função paterna. Ela, inicialmente, educa com firmeza os seus filhos,<br />

com uma prática mais repressiva do que compreensiva. O marido não apanhava,<br />

mas se eximia, abusando das drogas. Dona Luiza foi mais coerente <strong>em</strong> sua<br />

trajetória. Mimou a todos, tanto o filho quanto os netos. Esses últimos passaram<br />

por estilos educativos diversos, contrastantes e incoerentes ao longo da infância e<br />

da adolescência, tendo como ponto significativo os preceitos da geração de dona<br />

Luiza, onde a família de organização hierárquica tinha papéis socialmente<br />

definidos (<strong>Figueira</strong>, 1987). Dentre os costumes, reafirmou as desigualdades de<br />

gênero: punha a neta para auxiliar nas tarefas domésticas. Os meninos só tinham<br />

que estudar e brincar. Os três oscilaram entre uma experiência educativa<br />

permissiva da avó e uma s<strong>em</strong>i-autoritária da mãe. Digo s<strong>em</strong>i-autoritária ou<br />

91


contraditória, porque havia um acordo inconsciente entre Celina e Mário, <strong>em</strong><br />

decorrência do qual ele tudo podia. Isso era assistido pelos filhos que, no<br />

cotidiano, tinham que agir segundo práticas educativas autoritárias e andar na<br />

linha.<br />

2.5. Considerações finais<br />

Dona Luiza valora o estudo e o trabalho para a construção de um futuro para seu<br />

filho e seus netos. Entretanto, mima, superprotege inicialmente o filho e,<br />

posteriormente, os netos, prejudicando-os na construção da autonomia. Celina<br />

inclui o amor e o respeito a si e ao próximo como prioridade valorativa. Mas toma<br />

a atitude de abandonar o lar onde viv<strong>em</strong> os filhos, à época da separação de Mário.<br />

Como interpretar os valores que lhe são caros nessa situação?<br />

Não resta dúvida de que o sofrimento permeou a família àquela hora e a atitude<br />

de Celina, até então presente na vida de seus filhos, representou uma ruptura<br />

muito profunda na estrutura das relações familiares. Hierarquicamente, Arnaldo, o<br />

filho mais velho, é inseguro <strong>em</strong> parte porque está deslocado do seu lugar,<br />

cumprindo o papel de “hom<strong>em</strong> da casa”, enquanto seu pai, Mário, encontra-se na<br />

geração dos filhos, juntamente com Patrícia e Rodrigo. Os valores caros à família<br />

se distanciam da prática, na medida <strong>em</strong> que os adultos significativos e os filhos<br />

não des<strong>em</strong>penham as tarefas concernentes ao seu lugar na constelação familiar.<br />

O vínculo que se estabelece entre os familiares segue a organização hierárquica<br />

da família. O conflito, quando permeia as gerações, compromete a chance de<br />

92


negociação. O amor é vivenciado mais como superproteção do que como<br />

ingrediente para a autonomia. Há também uma relação quase incestuosa entre<br />

irmãos – Mário e Patrícia –, que viv<strong>em</strong> agarrados um no outro <strong>em</strong> oposição a uma<br />

relação de rejeição entre mãe e filha. Os mais mimados, Mário e Rodrigo, são<br />

mais atrasados com relação ao desenvolvimento <strong>em</strong>ocional. Desta forma, os<br />

m<strong>em</strong>bros da família estão distantes de uma internalização dos valores<br />

fundamentais necessários ao desenvolvimento <strong>em</strong>ocional e intelectual.<br />

Sob a ótica dos processos de permanência e mudança na família Mimar ocorre<br />

uma contínua constrição das pautas de interação, com o intuito de manter uma<br />

constância e uma previsibilidade que não ameac<strong>em</strong> a convivência já conhecida<br />

(Schnitman, 1987). A inovação e plasticidade que levam a novas formas de se<br />

comportar são t<strong>em</strong>idas e por isso afastadas, na maioria das vezes. Configura-se<br />

um processo impeditivo do crescimento, tendo como conseqüência uma parada no<br />

ciclo vital. O processo de crescimento biológico continua, mas o <strong>em</strong>ocional<br />

estaciona, resultando <strong>em</strong> aberrações <strong>em</strong>ocionais que se expressam através da<br />

dependência e da infantilização de seus m<strong>em</strong>bros. Por ex<strong>em</strong>plo: Patrícia<br />

simbolicamente esmola, dia a dia, um real, possivelmente mendigando o amor de<br />

mãe, resultante de sua carência <strong>em</strong>ocional. Ela precisa de pouco (afeto), contanto<br />

que seja cotidianamente. Não resta dúvida de que há angústia quando cada<br />

m<strong>em</strong>bro da família entra <strong>em</strong> contato com o seu próprio reflexo.<br />

Essa constatação conduz à disparidade entre as expectativas para a vida pessoal<br />

e profissional dos integrantes da segunda e da terceira gerações. Se as pessoas<br />

93


não são criadas de acordo com preceitos para um crescimento saudável não têm<br />

como estabelecer expectativas para si e n<strong>em</strong> que elas sejam condizentes com o<br />

desenvolvimento integral do outro. Em suma, Dona Luiza e Celina construíram um<br />

projeto de vida (Velho, 1999d) para seus filhos s<strong>em</strong> a co-participação e a<br />

negociação com os possíveis interessados.<br />

Das nove famílias entrevistadas para o estudo, <strong>em</strong> duas há um pai que fez uso<br />

abusivo de drogas. Em ambas, os resultados no âmbito da interação familiar são<br />

devastadores. Na família Mimar, Mário revela a sua ausência como adulto para a<br />

sua mãe, sua ex-mulher e seus filhos. Sua vida resumiu-se ao abuso das drogas<br />

de forma que tanto o trabalho quanto o cuidado com os filhos não foram<br />

prioritários. Arnaldo e Rodrigo desde s<strong>em</strong>pre tiveram essa referência masculina.<br />

Arnaldo, sentindo-se perdido, começa a usar maconha à época da escolha de sua<br />

vida profissional, no momento <strong>em</strong> que configura o primeiro grande passo para a<br />

vida adulta. Rodrigo inicia o consumo abusivo de drogas aos 16 anos, com<br />

cocaína e maconha, quando, <strong>em</strong> geral, a droga ilícita mais experimentada por<br />

adolescentes é a maconha (Carlini et al, 2002). Suponho que Rodrigo utilizou a<br />

cocaína junto com ou influenciado por Mário. Hoje, sua formação escolar marca<br />

passo no segundo grau na altura de seus 20 anos. Sonha com a carreira militar,<br />

mas está enredado com as drogas. Constrói suas próprias regras de uso dentro<br />

de casa e se afasta da lei e da ord<strong>em</strong> militar que internamente almeja.<br />

O abuso de drogas do pai influenciou de formas diversas os dois filhos segundo as<br />

características físicas, <strong>em</strong>ocionais e sociais de cada um. Arnaldo desfrutou da<br />

94


mãe e do pai por mais t<strong>em</strong>po do que Rodrigo. O caçula era ainda b<strong>em</strong> pequeno<br />

quando os pais se separaram e viveu uma ruptura radical do convívio com a mãe.<br />

Se os três filhos ficaram órfãos de pais vivos, as conseqüências dessa separação<br />

foram mais traumáticas para o caçula, como se depreende da história de vida de<br />

cada um, já narrada aqui. Desta forma é preciso entender que o uso abusivo de<br />

drogas é um dos fatores que o auxilia a lidar com as dificuldades da vida, ainda<br />

que não se possa estabelecer uma relação linear entre os fatos. A adicção do pai<br />

des<strong>em</strong>penha um papel mediador na transmissão intergeracional desses<br />

comportamentos. Schor (1996) sublinha que as interações familiares e os padrões<br />

de comportamento dos pais, aliados à adicção do adulto, influenciam <strong>em</strong> grande<br />

medida o comportamento dos filhos. Tal como ocorre na família Mimar.<br />

Os valores são conflitantes nessa família porque os adultos pregam coerência na<br />

sua impl<strong>em</strong>entação pelos filhos e não dão o ex<strong>em</strong>plo. Celina valora o amor, mas<br />

não o distribui igualmente entre os três filhos. Dona Luiza espera que a família<br />

permaneça unida e não chama o seu filho à responsabilidade adulta. É<br />

contraditória a permissividade frente ao uso abusivo de drogas e os valores<br />

enunciados por ela.<br />

O estilo e a prática de criação são díspares de geração para geração. Dona Luiza<br />

baseia-se mais no amor s<strong>em</strong> limites e Celina <strong>em</strong> medidas punitivas que restring<strong>em</strong><br />

o comportamento e a autonomia dos filhos. Esses estilos foram oferecidos<br />

alternadamente para a terceira geração e influenciaram no desenvolvimento de<br />

uma insegurança básica nos três jovens. É importante ressaltar que o crescimento<br />

95


sócio-<strong>em</strong>ocional do adolescente é facilitado pela comunicação aberta com a<br />

família quando os pais explicam as suas afirmações, permit<strong>em</strong> que todos fal<strong>em</strong>,<br />

ouçam e facilitam o processo de diferenciação, no ambiente interativo (Liddle et al,<br />

1992).<br />

De acordo com o aqui exposto, concluo que os valores familiares pod<strong>em</strong> ser tidos<br />

como um fator de influência do uso abusivo de drogas sobre a família Mimar<br />

porque sua transmissão e prática foram perpassadas concomitant<strong>em</strong>ente por: um<br />

modelo de pai ausente ainda que presente, também adicto; vínculos repletos de<br />

mágoas, muitas advindas da contradição entre os princípios que são valorizados e<br />

a sua prática; a expectativa de realização pessoal e profissional dos filhos é uma<br />

projeção de sonhos não realizados pelos adultos; o processo de criação dos<br />

jovens é influenciado pela turbulência de <strong>em</strong>oções e rupturas familiares.<br />

3. A Família Ciumeira<br />

3.1. Contextualização<br />

Escolhi nomear essa família como Ciumeira por ser esse sentimento uma marca<br />

das relações entre os componentes da família. Os ciúmes têm impedido a<br />

construção de interações promotoras de crescimento familiar.<br />

A família Ciumeira, como a anteriormente analisada, mora na zona norte do Rio de<br />

Janeiro e se constitui do avô paterno, o Sr. Felício, de 71 anos, o pai, Michael, de<br />

96


49 anos, a mãe, Laura, de 44 anos, o usuário, Alexandre, de 20 anos, e seu irmão<br />

Maurício, com 18 anos. O avô vive numa casa ao lado da do filho.<br />

A família me recebeu numa manhã de sábado. Sentamo-nos ao redor da mesa de<br />

jantar para a entrevista. Na cabeceira estavam o avô e a mãe. Alexandre se<br />

posicionou ao lado dela e do irmão, Maurício. Em frente a mim estava o pai. Todos<br />

me acolheram generosamente. Para essa família era nítido, desde o início, o<br />

interesse na entrevista, na expectativa de que ela pudesse colaborar na solução<br />

das dificuldades que o grupo vive. Os dois rapazes me pareceram b<strong>em</strong> meninos<br />

fisicamente, sendo que Alexandre aparenta menos idade do que seu irmão de 18<br />

anos.<br />

O grau de escolaridade dos m<strong>em</strong>bros da família é bastante elevado: o senhor<br />

Felício t<strong>em</strong> curso superior completo; Michael e Laura, superior incompleto;<br />

Alexandre cursa o segundo grau, e Maurício, a faculdade.<br />

Família de classe média, sua renda gira <strong>em</strong> torno de R$ 4000,00, proveniente do<br />

salário dos pais. O pai trabalha numa firma de prestação de serviços na área de<br />

petróleo e a mãe é professora numa escola particular. O avô recebe R$ 3000,00<br />

de aposentadoria do Ministério da Marinha. Mas esse valor não é revertido para o<br />

sustento da família de seu filho.<br />

Alexandre iniciou o uso de maconha <strong>em</strong> roda de amigos por volta dos 16 anos.<br />

Fumava de 8 a 9 baseados por dia. Comenta que os parceiros de droga, que<br />

97


começaram a consumir já mais velhos, com a “cabeça formada” conseguiram<br />

administrar o uso da maconha. Já ele “não teve cabeça boa e tudo era festa”. De<br />

dois anos para cá t<strong>em</strong> consciência da quantidade de maconha que consome e diz:<br />

“não faço nada que eu não saiba que eu esteja fazendo”. Em seguida concede:<br />

“situações impensadas” também ocorr<strong>em</strong>, <strong>em</strong>bora raramente. Repetiu duas vezes<br />

a sétima série. A entrada no consumo de maconha coincide com a segunda<br />

repetência. Comenta que vivenciou a situação de ver seus amigos andar<strong>em</strong> para<br />

frente e ele estacionar na mesma série e assim, ficar para trás.<br />

O uso de maconha poderia protegê-lo, alienando-o enquanto desfrutava da<br />

companhia de amigos mais velhos. O consumo abusivo de drogas t<strong>em</strong> essa dupla<br />

face: dá ao sujeito a impressão de autonomia e de independência da família,<br />

porém conjugada à imaturidade e à dependência familiar. Há evidências de que os<br />

adolescentes não são cooptados por amigos anti-sociais, mas estes se tornam<br />

atraentes pelo fato de o meio familiar, como o de Alexandre, ser permeado por<br />

conflitos, aliados a práticas educativas que não equilibram afeto e limites para os<br />

seus filhos (Oetting e Donnermeyer, 1998).<br />

Alexandre e seus pais encontram-se <strong>em</strong> tratamento no Centra-Rio. Ele, há dois<br />

anos, e seus pais, há poucos meses.<br />

3. 2. Valores familiares<br />

O senhor Felício considera importante ensinar aos filhos e netos valores morais,<br />

religiosos e sociais, sendo que os últimos dev<strong>em</strong> ser exercitados dentro e fora da<br />

98


casa. Enfatiza que ensinou os princípios mais pelo ex<strong>em</strong>plo do que pela palavra.<br />

“Independente de qualquer orientação externa, isso [os princípios] estava dentro<br />

de mim, era imanente”. Comenta que pode não ter sido correto ao impl<strong>em</strong>entar<br />

algum princípio, evidenciando que também educou ativamente os seus filhos.<br />

Ex<strong>em</strong>plo: considera que foi muito rigoroso com os estudos porque fazia com que<br />

os filhos realizass<strong>em</strong> mais deveres do que o necessário e castigava-os caso isso<br />

não ocorresse. “Mas o objetivo s<strong>em</strong>pre era fazer uma aplicação correta”.<br />

Michael e Laura valorizam o respeito <strong>em</strong> família e às outras pessoas. Foi mais<br />

fácil para ambos ensinar através do ex<strong>em</strong>plo e “de palavras”, quando os filhos<br />

eram menores porque “podíamos carregar na saia da mãe”, segundo Michael, que<br />

diz colocar <strong>em</strong> prática os princípios, de modo s<strong>em</strong>elhante ao seu pai, com um<br />

tanto de exagero nas cobranças e exigências.<br />

Laura entende o respeito como o direito do outro de ser diferente: “agora com<br />

essa questão do Alexandre, da gente respeitar que n<strong>em</strong> todos são iguais e que<br />

n<strong>em</strong> por isso têm que ficar à marg<strong>em</strong> da sociedade. Isso foi difícil; não é uma<br />

prática tranqüila; não é porque ele é diferente de nós que ele não merece o nosso<br />

respeito, que ele não merece o convívio social”.<br />

No entanto, de forma incoerente, a mãe considera Alexandre diferente do resto da<br />

família, discriminando-o e classificando-o de adicto, d<strong>em</strong>onstrando uma postura<br />

contraditória com o princípio do respeito e da aceitação das diferenças. Ela não se<br />

implica, n<strong>em</strong> à sua família, na drogadição de Alexandre. Não percebe a família<br />

99


como uma co-participante do uso abusivo da maconha por parte do filho. Howard<br />

Becker, por ex<strong>em</strong>plo, l<strong>em</strong>bra que a idéia de desviante, comumente colada à figura<br />

do dependente precisa ser desconstruída. Afirma que “o desvio não é uma<br />

qualidade que existe no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa<br />

que comete um ato e aqueles que respond<strong>em</strong> a ela” (Becker, 1977a, 64). Assim,<br />

“estas atividades requer<strong>em</strong> a cooperação aberta ou tácita de muitas pessoas e<br />

grupos para acontecer<strong>em</strong>” (Becker, 1973, 183).<br />

Continuando a expressar seus princípios, Laura diz que a fé <strong>em</strong> si ou <strong>em</strong> algo é<br />

um valor importante para ela, impulsiona seus sonhos. Valoriza o ser mais que o<br />

ter, principalmente a união da família. No entanto, considera tudo isso muito difícil<br />

na atualidade. Concorda com Michael que ensinaram os princípios <strong>em</strong> que<br />

acreditam aos filhos, ressaltando que “n<strong>em</strong> tudo que a gente faz, fala e tenta<br />

passar é absorvido pelo outro”.<br />

Conforme já visto <strong>em</strong> Maturana (1999, 2001), a condição primeira para que haja<br />

aprendizag<strong>em</strong> são mudanças estruturais recíprocas entre os m<strong>em</strong>bros da família.<br />

Os familiares absorv<strong>em</strong> os princípios ensinados, procedendo a uma tradução de<br />

acordo com a sua estrutura individual. Isso ocorreu com Alexandre e também com<br />

Maurício.<br />

Interesso-me <strong>em</strong> saber a respeito da relação entre a enunciação e a prática dos<br />

princípios e Laura cita ex<strong>em</strong>plos sobre a socialização e o respeito, para explicar<br />

quão conflituosa é essa situação. Diz que seu objetivo “é por <strong>em</strong> prática [socializar<br />

100


com o outro], mas eu ainda estou <strong>em</strong> processo, dentro daquilo que eu julgo ser<br />

correto”. Considera-se exigente e pouco tolerante, porque como se dá “por inteiro”<br />

numa relação, exige uma reciprocidade. No entanto, comenta, “eu não estou<br />

respeitando e aceitando o outro como ele é; então eu me contradigo”.<br />

A simples enunciação de um valor não garante a sua existência, que só se<br />

concretiza na ação. Compreender como as contradições maternas repercut<strong>em</strong> na<br />

formação de valores dos filhos constitui uma pergunta importante na análise desta<br />

família. Alexandre se mostra mais refratário aos ensinamentos dos princípios,<br />

enquanto Maurício se mostra mais permeável.<br />

Durante a conversa com a família interessei-me <strong>em</strong> saber a opinião dos seus<br />

m<strong>em</strong>bros sobre as expectativas <strong>em</strong> relação à possibilidade de assimilação,<br />

modificação ou transformação dos seus princípios. O senhor Felício pondera que<br />

os valores são herdados do meio social, por isso são internalizados e vivenciados.<br />

Cita um ex<strong>em</strong>plo de sua época: “na minha geração nós herdamos o cigarro, a<br />

bebida usada conscient<strong>em</strong>ente; era permissível. Mas nós como indivíduos que<br />

assimilávamos determinado valor, a gente, pelo menos na minha geração, não<br />

admitia que um filho meu fumasse, mas com o t<strong>em</strong>po eu admiti, porque era uma<br />

coisa que acontecia. O que eu quero dizer é que os valores não se transformam,<br />

mas a gente se adequa ao não uso de um determinado valor”. Essa frase<br />

transmite a idéia de que os valores são, ao mesmo t<strong>em</strong>po, perenes e anteriores a<br />

nós, e o máximo que faz<strong>em</strong>os é adequá-los. Ou seja, ela veicula a crença de que<br />

a ação humana na produção de valores se define apenas através de uma “certa<br />

101


tolerância” à mudança. Completa seu raciocínio dizendo que nunca pensou <strong>em</strong><br />

conviver com um neto que usasse drogas e que “marginalizaria” alguém de sua<br />

família que se tornasse um adicto. Sua postura de repúdio a esse tipo de<br />

consumo, aplica-se, continua o mesmo, mas “eu sou impotente, não posso mudar<br />

a cabeça de outra pessoa”. Assim vive a divisão interior de amar o neto e não<br />

admitir que use droga. Em síntese, o senhor Felício estabelece uma dissociação<br />

entre os valores <strong>em</strong> que acredita e a operacionalização deles por meio da cultura.<br />

Na sua prática de vida, esse senhor cede à pressão das modificações das práticas<br />

sociais movido, porém, pela <strong>em</strong>oção do amor pelos seus filhos e neto.<br />

Michael concorda com o pai sobre sua representação de valores, dando sua<br />

opinião: “Não matar, isso é um princípio imutável”; mas se for <strong>em</strong> legítima defesa<br />

poderá haver uma adequação desse comportamento àquela situação particular.<br />

Laura é “mais radical” ao enunciar que os valores não deveriam ser alterados,<br />

porque sua transformação ao longo do t<strong>em</strong>po gera um desrespeito entre os<br />

familiares. “A sociedade vai de mal a pior de tanto que se mexe nesses princípios.<br />

A gente tinha que ser mais enérgico nesse ponto”. Ela está s<strong>em</strong>pre referida ao<br />

probl<strong>em</strong>a e ao desconforto da adicção às drogas pelo filho, como se a “frouxidão<br />

de valores” da sociedade fosse responsável pela situação desse jov<strong>em</strong> que ela<br />

tentou manter dentro da teoria e da prática de vida <strong>em</strong> que acredita. Por isso,<br />

considera que a transformação dos valores tradicionais pela juventude atual<br />

prejudica os indivíduos. Sua opinião, s<strong>em</strong>elhante à do senhor Felício e de Michael,<br />

está na contramão do que Ribeiro e Ribeiro (1993) discut<strong>em</strong>: os princípios se<br />

102


alteram <strong>em</strong> diferentes períodos históricos, correspondendo às mudanças das<br />

práticas sociais e dos modelos culturais da família e da sociedade.<br />

Alexandre reforça que os princípios não dev<strong>em</strong> ser modificados. Maurício<br />

concorda com o irmão e compl<strong>em</strong>enta: deve-se tentar “aperfeiçoar” os princípios.<br />

Dentre os valores fundamentais todos mencionam a família. O senhor Felício<br />

classifica a família como uma união de pessoas cujos laços de parentesco são<br />

consangüíneos e de afinidade.<br />

Para Michael, a família é a célula-base da sociedade. Representa união, respeito<br />

e ajuda mútua. Comenta que, nos dias de hoje, as relações amorosas são<br />

efêmeras, tornando difícil a manutenção do casamento. Mas, diz: “a cada século<br />

que passa os valores mudam, mas o conceito básico eu acho que é a família”.<br />

Laura também considera que tudo gira <strong>em</strong> torno da família. Explica que o sogro<br />

soube educar os filhos de forma que, hoje <strong>em</strong> dia, todos constituíram seu núcleo e<br />

conviv<strong>em</strong> b<strong>em</strong>. A sogra, já falecida, também aglutinava a família. Relata que os<br />

agregados foram “contaminados” por essa forma de condução positiva e amorosa,<br />

porque os sogros colocaram <strong>em</strong> prática a convivência e o auxílio mútuo.<br />

Emociona-se com a história que me conta e finaliza dizendo estar casada com<br />

Michael há um quarto de século.<br />

Ao descrever o que entende por família, Laura menciona que viveu na família de<br />

Michael a união entre os seus m<strong>em</strong>bros. Ingressou num contexto <strong>em</strong> que a<br />

103


convivência era a prática social e não somente uma pr<strong>em</strong>issa teórica. Essa é uma<br />

observação importante porque, ainda segundo Laura, é necessário haver uma<br />

coerência entre o que se pensa (o princípio) como valor importante para si com a<br />

prática desse valor.<br />

Alexandre, fazendo coro a seus pais, comenta que família é o lugar seguro onde<br />

se processam as identificações. Maurício também concorda que ela é a “base de<br />

tudo” porque a pessoa conta com ela para qualquer situação <strong>em</strong> sua vida.<br />

Comenta que se considera querido por todos. Não resta dúvida de que o conceito<br />

família configura o alicerce desse conjunto de pessoas.<br />

3.3. Conflito entre Gerações<br />

O senhor Felício comenta que seus filhos foram criados por ele e a mulher para<br />

ter<strong>em</strong> bons modos, instrução e limites na compra de qualquer coisa de que<br />

necessitass<strong>em</strong>. Conviveram com a avó paterna que não mantinha uma relação<br />

muito estreita com os netos.<br />

Laura relata que os filhos estudavam um turno na escola e no outro ficavam com a<br />

sua mãe para que ela e Michael pudess<strong>em</strong> trabalhar. Este esqu<strong>em</strong>a vigorou até<br />

os 12 anos de Alexandre e 10 de Maurício, a despeito da mudança da família anos<br />

antes para o local onde moram atualmente, que fica distante da casa da avó<br />

materna. A mãe pondera que seus filhos dev<strong>em</strong> mais à avó a educação quanto<br />

aos princípios morais e religiosos nessa fase, do que a eles, os pais. Laura e<br />

Michael concordam sobre a necessidade que tiveram de lançar mão da avó<br />

104


materna para cuidar dos filhos enquanto trabalhavam. O trabalho da mulher fora<br />

de casa deriva de uma época de reivindicações ocorridas entre as décadas de 60<br />

e 70 e que se tornou, hoje <strong>em</strong> dia, uma necessidade para a sobrevivência de um<br />

casal de classe média.<br />

Discorrendo sobre essas contingências, Michael comenta que a avó materna<br />

superprotegeu os netos e ainda brigava com ele, caso lhes desse palmadas.<br />

Referindo-se ao mundo de seu t<strong>em</strong>po, avalia que era mais fácil educar os filhos à<br />

época <strong>em</strong> que as famílias não tinham TV, carro e tantas opções. Diz: “reuniam-se<br />

para conversar <strong>em</strong> casa e os pais conseguiam passar informações positivas”.<br />

Hoje, pondera, raramente a família se senta junto à mesa. Fala do acesso à<br />

internet como um <strong>em</strong>pecilho, pois torna quase impossível coibir os excessos: há<br />

liberdade e informação <strong>em</strong> d<strong>em</strong>asia. Considera que s<strong>em</strong>pre foi enérgico porque<br />

colocou limites quanto ao horário dos filhos, mas havia um mundo de comparação<br />

com os amigos que chegavam tarde. Explica que julga “cansativo” hoje <strong>em</strong> dia<br />

para os pais manter<strong>em</strong> o filho na escola, dar<strong>em</strong> uma boa formação. “Às vezes dá<br />

vontade de desistir mas, se não for você, qu<strong>em</strong> fará?”<br />

Michael se mostra atordoado com a questão de como oferecer uma orientação<br />

durável, uma educação para valores num t<strong>em</strong>po fragmentado, de ofertas de<br />

trabalho e divertimento de curta duração, esquecendo-se de que a continência do<br />

afeto, do apoio e da relação são permanentes. Conforme expõe Sennett (2001,<br />

27), “<strong>em</strong> lugar dos valores de camaleão da nova economia, a família deve<br />

105


enfatizar, ao contrário, a obrigação formal, a confiança, o compromisso mútuo e o<br />

senso objetivo. Todas essas são virtudes de longo prazo”.<br />

O senhor Felício avalia positivamente seus filhos. Julga-os, de uma forma geral,<br />

responsáveis. Comenta que eles são independentes, mas aponta para uma<br />

dependência afetiva saudável no interior das famílias: “qualquer um saber que<br />

pode contar com o outro”, confiança que se expressa num laço afetivo construído<br />

ao longo do t<strong>em</strong>po. Sennett (2001,169) esclarece: “A vergonha da dependência<br />

t<strong>em</strong> uma conseqüência prática. Corrói a confiança e o compromisso mútuos, e a<br />

ausência desses laços ameaça o funcionamento de qualquer <strong>em</strong>preendimento<br />

coletivo”. O senhor Felício ressalta que seus filhos são independentes<br />

materialmente. Só teria que se preocupar <strong>em</strong> assisti-los por motivo de doença, por<br />

ex<strong>em</strong>plo.<br />

Referindo-se aos netos Alexandre e Maurício, o avô expressa que gostaria de ser<br />

mais freqüent<strong>em</strong>ente solicitado pelo filho e pela nora a falar sobre o<br />

comportamento deles. Considera Maurício responsável para com as suas<br />

amizades, mas não para com os seus estudos e Alexandre irresponsável, porque<br />

traz para casa amigos que não são sociáveis. Conclui dizendo: “independência <strong>em</strong><br />

d<strong>em</strong>asia é prejudicial. Dependência e independência nos extr<strong>em</strong>os geram o<br />

probl<strong>em</strong>a da responsabilidade ou irresponsabilidade”.<br />

Laura e Michael avaliam que Alexandre e Maurício têm respeito e carinho pelos<br />

outros. Porém, julgam Alexandre irresponsável com relação à sua saúde porque<br />

106


dorme e acorda <strong>em</strong> hora errada, alimenta-se mal e usa drogas. Diz<strong>em</strong> que<br />

Maurício sabe se cuidar e t<strong>em</strong> boas amizades. Entretanto, é irresponsável para<br />

com os estudos porque não é aplicado. Michael pensa que Maurício ainda não<br />

“despertou” para o mundo competitivo da atualidade. Referindo-se a Maurício,<br />

Laura fala: “ele é responsável, é b<strong>em</strong> responsável, não é meu filhinho? O<br />

Alexandre, meu menino maluquinho, digamos assim, ele precisa crescer mesmo<br />

para eu poder dizer: ele é responsável (grifo meu)”.<br />

Os pais concordam que os filhos são independentes nas atividades de lazer, mas<br />

não nas de trabalho. A forma como Laura se refere aos filhos (atentar para o grifo)<br />

me faz l<strong>em</strong>brar o início da entrevista quando, olhando para Alexandre e Maurício,<br />

achei-os mais jovens do que sua idade cronológica. E com uma disparidade<br />

adicional: Alexandre parece ainda mais menino do que o seu irmão adolescente.<br />

Pais e filhos se constro<strong>em</strong> numa rede de conversações a partir de um modo de<br />

existir compartilhado e conservado ao longo do t<strong>em</strong>po (Maturana et al, 2002d).<br />

Maurício encontra-se num estágio de bela adormecida dos contos de fada. O que<br />

o despertará? Na prática, esses jovens precisam ser l<strong>em</strong>brados sobre as suas<br />

responsabilidades. Falta-lhes motivação. Os pais comentam que Alexandre se<br />

mostra independente com relação ao uso de drogas. Mas Michael define essa<br />

atitude como uma “independência irresponsável”. O uso da maconha por parte de<br />

Alexandre pode ser visto como uma tentativa de buscar autonomia e<br />

independência <strong>em</strong> relação à família (Schenker e Minayo, 2005).<br />

107


Alexandre não se considera responsável porque “não atingi essa maturidade de<br />

poder falar que sou responsável”. Comenta que é dependente, tanto<br />

financeiramente quanto a ter de viver com a família <strong>em</strong> harmonia. Já Maurício se<br />

julga dependente financeiramente e precisa dos pais para saber “que direção<br />

tomar”. Mas também é independente com relação aos amigos e t<strong>em</strong> noção do<br />

mercado de trabalho. Sabe se portar, tanto quando fica só <strong>em</strong> casa como se for<br />

viajar sozinho. Os dois jovens avaliam que pod<strong>em</strong> se tornar responsáveis,<br />

divergindo quanto à independência pessoal. Alexandre acredita que o indivíduo<br />

nasce e cresce dependente e sobrevive independente. E Maurício comenta que<br />

seu objetivo é ter uma grande parcela de independência, de modo s<strong>em</strong>elhante ao<br />

avô.<br />

É evidente a disparidade de maturidade desses irmãos adolescentes. O mais novo<br />

está na faculdade, apesar de ainda ter dúvidas sobre a carreira (o que é<br />

totalmente compreensível), t<strong>em</strong> amigos e mostra competência social. Alexandre<br />

está com 20 anos e cursa o segundo grau, t<strong>em</strong> necessidade de amalgamar-se<br />

com a família, um indício de baixa auto-confiança. Investe pouco <strong>em</strong> seu futuro,<br />

diferente de Maurício que, apesar de ainda depender das orientações dos pais, o<br />

que é esperado na adolescência, está mais antenado com o investimento <strong>em</strong> seu<br />

futuro.<br />

A aposta na modificação ou na transformação impulsiona a família para a busca<br />

de novos caminhos. O senhor Felício comenta que “sonhou de pés no chão” para<br />

os seus filhos. Ele e a esposa deram condições, com sacrifício, para que seus<br />

108


desejos se realizass<strong>em</strong>. Na idade atual de seus netos, os filhos estudavam e<br />

colhiam frutos de sua dedicação. O avô considera que, principalmente, Alexandre<br />

precisa amadurecer e tornar-se mais responsável.<br />

O senhor Felício explica que os projetos de seus netos dev<strong>em</strong> ser modificados,<br />

porém para que isso aconteça, “a vontade t<strong>em</strong> que vir de dentro para fora. O outro<br />

pode colaborar na mudança, mas não ser responsável por ela”. Pondera que a<br />

modernidade da tecnologia atrapalha e diminui a influência dos pais. Por outro<br />

lado, avalia que falta iniciativa aos netos: “já são grandes para assumir<strong>em</strong><br />

responsabilidades s<strong>em</strong> precisar<strong>em</strong> ser monitorados pelos pais”. Embora bastante<br />

reflexivo sobre a situação da família, sugere ser pouco d<strong>em</strong>andado para as<br />

discussões dessa família. Explicita, portanto, que poderia colaborar com os netos<br />

se houvesse oportunidade de conversas com a família reunida, como nessa<br />

ocasião propiciada pela entrevista.<br />

Falando de seus projetos para os filhos, Laura discorre sobre o desejo de que<br />

estud<strong>em</strong>, tenham amigos e progridam na vida. Comenta que Maurício está no<br />

caminho certo e só não está mais à frente por causa do ex<strong>em</strong>plo de Alexandre.<br />

Avalia que “hoje <strong>em</strong> dia, meus sonhos são homeopáticos”, explicando que variam<br />

de acordo com o que os filhos pod<strong>em</strong> dar. Cita como ex<strong>em</strong>plo o fato de Maurício<br />

ter passado para uma faculdade particular quando ela sonhou que ele estudasse<br />

numa pública. Ressalta, comovida e consolando-se, que os filhos têm um forte<br />

sentido de família; “é prazeroso para eles viver <strong>em</strong> família”.<br />

109


Reafirmando seu afeto e o processo de mudança abrangente por que passou,<br />

Laura tece um comentário sobre as amizades de Alexandre: “Eu já passei dessa<br />

fase de pensar que todo mundo fazia mal para ele; isso aí eu já sei que não existe,<br />

mas que eles acabam se aproximando por s<strong>em</strong>elhança, por identidade (grifo<br />

meu). Então todos que estão com ele dev<strong>em</strong> estar passando por processo<br />

s<strong>em</strong>elhante, não são marginais. São pessoas que têm uma família estruturada,<br />

tanto quanto ele, que por algum motivo buscaram na droga um suporte”.<br />

A idéia expressa por essa mãe de que o usuário de drogas se aproxima do grupo<br />

por s<strong>em</strong>elhança (grifo acima) está de acordo com estudos que abordam esse<br />

t<strong>em</strong>a (Oetting e Donnermeyer, 1998, Schenker e Minayo, 2003). Porém Laura<br />

explica que seu filho deve ter algum probl<strong>em</strong>a que o r<strong>em</strong>eteu à droga e a um<br />

grupo que dela faz uso, novamente reagindo à visão de que a família possa ter<br />

alguma influência sobre o comportamento de dependência dele.<br />

Michael comenta que seu sonho para os filhos nunca foi grandioso: estudar e<br />

cursar uma faculdade para poder entrar no mercado de trabalho que, hoje <strong>em</strong> dia,<br />

é muito exigente. Mostra-se verdadeiramente preocupado com o futuro dos dois<br />

jovens. Sua consciência aguçada das modificações do mundo do trabalho e das<br />

causas do des<strong>em</strong>prego estrutural que assolam o país, levam-no a t<strong>em</strong>er por uma<br />

postura mais passiva de seus filhos.<br />

Alexandre explica que seu sonho é ser feliz e “eu gosto de fazer todo mundo feliz<br />

que esteja a minha volta. Se todo mundo [basicamente a sua família] estiver feliz<br />

110


ao meu redor eu também fico feliz”. A importância da família, enunciada<br />

primeiramente pelo senhor Felício, encontra eco na terceira geração. O sonho de<br />

Alexandre é fazer a sua família feliz. Será essa a sua missão? Pais e filhos ficam<br />

comovidos quando o assunto é família. Alexandre comenta que seus sonhos são<br />

fáceis de modificar: “eu tenho 20 anos, mas meus sonhos são de criança de 4<br />

anos, 5 anos, só bobeira”. Tinha um sonho “antigamente” de que toda a família<br />

morasse num condomínio, para s<strong>em</strong>pre ter as pessoas que gosta do seu lado.<br />

Maurício ainda é inseguro quanto ao futuro e não sabe se quer trabalhar com<br />

administração, faculdade que cursa na atualidade. Só o fato de estar numa<br />

faculdade, configura para ele um grande passo. Comenta que t<strong>em</strong> boas e antigas<br />

amizades e sente-se feliz. Mas, denuncia, a união de outrora não é a mesma na<br />

família.<br />

Fica muito evidente a defasag<strong>em</strong> entre a idade cronológica e <strong>em</strong>ocional de<br />

Alexandre. O seu desejo é o b<strong>em</strong> estar da família. Todo o resto é secundário.<br />

Guardião dessa união, ele se nutre do amálgama familiar que auxiliou a construir.<br />

Olhando-se criticamente o prazer da vida <strong>em</strong> família, conforme dito por Laura,<br />

pode ter se tornado uma prisão domiciliar para Alexandre, como um sufocamento<br />

progressivo e sutil que o enreda <strong>em</strong> seus sonhos imaturos, cujos limites são a<br />

própria fronteira da casa.<br />

3.4. Processo Educativo<br />

111


O senhor Felício considera boa a relação que nutre com o filho primogênito,<br />

Michael, <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> depositou “todos os seus sonhos”, sendo correspondido. Pai e<br />

filho se admiram mutuamente. Ocorr<strong>em</strong> atritos, principalmente agora que<br />

conviv<strong>em</strong> mais amiúde, mas vêm trabalhando para suplantar as diferenças.<br />

Gostaria de se aproximar da nora, “ela teria que se abrir mais comigo, talvez<br />

confiar mais <strong>em</strong> mim” para poder<strong>em</strong>, por ex<strong>em</strong>plo, conversar sobre os netos. Com<br />

relação a eles, acha que pelo fato de ter<strong>em</strong> morado com a avó materna por tanto<br />

t<strong>em</strong>po, a “nossa afetividade não é muito usada” no carinho e contato corporal.<br />

Gosta muito dos dois e pensa que “deveria haver uma aproximação maior”.<br />

Michael comenta que s<strong>em</strong>pre se deu b<strong>em</strong> com o pai. Houve um estr<strong>em</strong>ecimento<br />

na relação deles com a morte da mãe, figura central para a família. Mas s<strong>em</strong>pre<br />

trocaram idéias: sab<strong>em</strong> dos gostos um do outro. Comenta que vive uma fase<br />

madura com Laura, num casamento de 24 anos. Respeitam-se, conversam,<br />

conflitam aqui e acolá, mas nada que comprometa o envolvimento com a família.<br />

Revela que se relaciona de forma s<strong>em</strong>elhante com os dois filhos: não têm<br />

paciência para sentar e conversar, mas talvez ele próprio não tenha exercitado a<br />

conversa com eles. Entretanto, relata que Alexandre teve o “mérito” de tê-los<br />

colocado a par do seu “vício”. Comenta que, quando pequenos, convivia mais com<br />

os filhos, pois hoje <strong>em</strong> dia estar perto do pai é “pagar mico”. Queixa-se, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, que Alexandre namora uma menina há dois anos e nunca o chamou<br />

para conversar. “O hom<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre se identifica melhor com o pai”, mas seus<br />

filhos nunca perguntaram nada sobre sexo, apesar de Michael puxar esse<br />

assunto.<br />

112


Laura concorda com os comentários do marido sobre a relação deles: estão num<br />

momento feliz. Conversam, são companheiros e ela não mais esconde assuntos<br />

dos filhos para não aborrecê-lo ou com medo de sua reação. Relata, comovida,<br />

que com os dois a relação é de muito carinho e amor: são os filhos que ela<br />

gostaria de ter, apesar das dificuldades que atravessam. Com o sogro, conforme<br />

esclarecido por Alexandre, ela sentiu, e sente até hoje, muitos ciúmes por ele ter<br />

se relacionado com outra mulher <strong>em</strong> seguida à morte da sogra. Por isso, fechouse<br />

para a convivência e a interação com ele. Admira-o muito, mas considera-se<br />

também muito exigente. Sofre com esse afastamento do senhor Felício, criado por<br />

ela própria.<br />

Alexandre comenta que não teve muito contato com o avô na infância e eles vêm<br />

tentando chegar a um ponto de conversa e troca de idéias, apesar das<br />

dificuldades. Fala que s<strong>em</strong>pre teve ciúmes de sua família e levanta uma questão<br />

que afeta os seus familiares. Quando a avó faleceu há 11 anos, o avô teve outras<br />

mulheres e, naquela época, segundo Alexandre, a mentalidade da família era de<br />

que o avô tinha que ser “só da minha avó”. Isso contribuiu para que a relação<br />

deles fosse pouco intensa. Com o t<strong>em</strong>po entendeu que o avô tinha lá as suas<br />

necessidades a ser<strong>em</strong> satisfeitas. Comenta que s<strong>em</strong>pre se deu b<strong>em</strong> com a mãe.<br />

“Minha mãe é tudo; da família é que (com qu<strong>em</strong> eu) sou mais agarrado”. Relata<br />

que com o pai, apesar de não ter muita conversa, s<strong>em</strong>pre se deram b<strong>em</strong> da forma<br />

deles. Atribui seu relativo fechamento com o pai ao fato de ainda ser adolescente.<br />

113


Com o irmão s<strong>em</strong>pre brigou, inclusive havendo agressões físicas entre eles. Hoje<br />

discut<strong>em</strong>, mas brigam menos.<br />

Maurício relata que pelo fato de ter sido cuidado pelas duas avós sente<br />

dificuldades na relação com o avô. Não têm um bom diálogo; quando ele se<br />

aproxima, não sente vontade de conversar. Considera que a relação está mais<br />

amigável ultimamente, podendo mudar para melhor, fato importante porque, para<br />

ele, a família v<strong>em</strong> <strong>em</strong> primeiro lugar. Considera seu pai um “ex<strong>em</strong>plo” de força de<br />

vontade. Comenta que ele se preocupa com a inserção profissional dos filhos. O<br />

relacionamento é difícil mais por culpa sua, que não consegue “abrir os<br />

pensamentos”. Relata que a mãe é a pessoa “que mais ama no mundo”, sendo<br />

que o seu “relacionamento (com ela) é 10”. Com Alexandre, as brigas eram<br />

constantes quando pequenos: “não sei se era normal de irmão”. Já hoje, está<br />

melhor e começa a haver interesse de um saber da vida do outro.<br />

Os vínculos nessa família são mais tensos entre os homens: avô com os netos e<br />

pai com filhos. Alexandre e Maurício foram criados basicamente pelas duas avós e<br />

pela mãe. Apesar do pai estar presente, era Laura qu<strong>em</strong> sabia dos probl<strong>em</strong>as<br />

deles, como no caso do uso de drogas por parte de Alexandre, s<strong>em</strong> compartilhálos<br />

com Michael, t<strong>em</strong>endo a reação dele ou para poupá-lo.<br />

Vale ressaltar que a avó materna, segundo a visão do casal, superprotegia os<br />

netos. As mulheres das duas gerações construíram um ninho de amor e proteção<br />

do qual Alexandre e Maurício têm dificuldade de sair. Alexandre mostra-se mais<br />

114


comprometido <strong>em</strong> zelar pela família como um cão de guarda. Agrega-se a isso a<br />

imposição de uma distância, aparent<strong>em</strong>ente por parte de Laura, <strong>em</strong> relação ao<br />

senhor Felício, por ciúmes dele se aventurar para fora do ninho após a morte de<br />

sua mulher. Chama a atenção que o casal não se valha do auxílio do avô, que se<br />

mostra um hom<strong>em</strong> lúcido e desejoso de ajudar. Talvez porque, como o senhor<br />

Felício ressalta, Laura não estabeleça com ele um vínculo de confiança. E cabe a<br />

ela abençoar, ou não, a entrada do avô, e mesmo do pai, na relação com os filhos.<br />

Alexandre evidencia uma mágoa do avô, o que revela uma maior susceptibilidade<br />

às influências adversas aqui representadas pelos ciúmes, enquanto Maurício<br />

apresenta-se mais resistente. Isso significa que os irmãos apresentam<br />

características físicas, <strong>em</strong>ocionais e sociais diversas, que interag<strong>em</strong> na dinâmica<br />

da socialização, onde se inclui a familiar, promovendo a metabolização subjetiva<br />

dos fatores externos (Oetting et al, 1998).<br />

Os irmãos d<strong>em</strong>onstram um t<strong>em</strong>or ao pai, que é admirado com reverência. É<br />

importante l<strong>em</strong>brar que o vínculo estabelecido com os adultos significativos da<br />

família constitui uma pré-condição para a identificação com eles (Brook et al,<br />

1990). Na família Ciumeira, a referência de apoio e afeto com relação à figura<br />

masculina está abalada.<br />

O senhor Felício conta que a mãe não foi uma figura marcante quanto à<br />

orientação de seus valores existenciais, e que viu o pai apenas três vezes na vida.<br />

Relata situações traumáticas vividas na infância pela ausência do pai e pela<br />

115


condição muito humilde de sua mãe. Interessei-me por saber qu<strong>em</strong> poderia ter<br />

sido seu modelo de comportamento. Ele se <strong>em</strong>ocionou, comentando que<br />

encontrou tais modelos de comportamento <strong>em</strong> sua trajetória. Sua motivação para<br />

ultrapassar seus medos e vergonhas o tornou o que considera “uma fênix que<br />

renasceu das cinzas”, sobrevivendo e se auto-construindo, apesar das condições<br />

adversas. Essa é a base da resiliência, conceito que versa sobre a capacidade de<br />

se proteger contra os fatores danosos à pessoa e à sua identidade, como é o caso<br />

do uso abusivo de drogas. A discussão <strong>em</strong> torno desse conceito está relacionada<br />

aos atributos individuais, familiares e ambientais que possibilitam o<br />

desenvolvimento de uma vida sadia, apesar de experiências de vida traumáticas<br />

(Schenker e Minayo, 2005). A capacidade de se transcender ficou patente,<br />

durante a entrevista, pela postura e pelas respostas cheias de vivacidade,<br />

interesse e inteligência do senhor Felício.<br />

Michael reconhece a riqueza da vivência familiar que teve a felicidade de partilhar,<br />

evidenciando que seus pais foram modelos de comportamento para ele. Sua mãe<br />

lhe ensinou a ter o carinho com a família e identifica-se com o pai na forma de ser<br />

e de agir e de enfrentar as adversidades.<br />

Laura também ressalta sua vivência com a experiência dos pais, modelos na<br />

forma de amar. Diz, <strong>em</strong>ocionada, que viu o pai namorar a mãe “até a sua morte”.<br />

A partir de então Laura, pela primeira vez, ressalta a ligação estreita de sua mãe<br />

com os netos. Após a morte de seu pai, relata que ela caiu num “estado profundo<br />

de depressão” e foi o nascimento do neto que a tirou desta profunda prostração.<br />

116


Teve plena consciência de que sua filha precisava de sua ajuda. “A vontade de<br />

viver dela surgiu com o nascimento dos meus dois filhos”.<br />

Assim a avó, possivelmente, transferiu todo o amor, que outrora dedicara ao<br />

marido, para o exercício de superproteção aos netos. Faz agora sentido o relato<br />

de Michael de que a sogra não lhe permitia ralhar ou bater nos filhos. Laura<br />

reforça essa idéia ao comentar que ela e Michael tiveram probl<strong>em</strong>as na colocação<br />

dos limites para as crianças, à época <strong>em</strong> que moraram mais t<strong>em</strong>po com a sua<br />

mãe.<br />

Essas duas famílias muito fortes geraram profundos sentimentos gregários, a<br />

ponto de Alexandre relatar que espelha o seu comportamento e o seu pensamento<br />

naquilo que acha que o pai, o avô e a avó pensariam ou fariam <strong>em</strong> diversas<br />

situações de sua vida. Da mesma forma, Maurício pondera que tenta assimilar o<br />

que os pais lhe ensinaram, enfatizando que os ensinamentos passam de geração<br />

a geração, sendo aperfeiçoados de acordo com a mudança da sociedade.<br />

Considera o pai um “ex<strong>em</strong>plo” de força de vontade.<br />

No entanto, mesmo valorizando essa força ancestral que informa o<br />

comportamento dos dois jovens, o comentário de Alexandre, citado acima, revela<br />

sua imaturidade pessoal, pois não se sente um autor de seus próprios atos e sua<br />

identidade ainda é atribuição da família. Falta-lhe acreditar <strong>em</strong> si e na forma como<br />

percebe o mundo para começar a agir de uma maneira assertiva. Uma das<br />

estratégias <strong>em</strong> que os pais pod<strong>em</strong> auxiliá-lo a se desenvolver é acreditando nele.<br />

117


Estimular sua própria competência lhe confere um sentido sólido de segurança,<br />

que se desdobrará para quando se tornar adulto (Nolte e Harris, 1998).<br />

O avô comenta que trouxe para a criação dos filhos a sua cultura militar.<br />

Considera que mesmo que não tivesse essa formação sua conduta seria a de<br />

naturalmente repartir os afazeres domésticos, <strong>em</strong> comum acordo com sua mulher.<br />

Entretanto, ficava alerta para que ela não acobertasse comportamentos indevidos<br />

dos filhos. Cobrava os deveres da escola; se tivesse um trabalho mais pesado<br />

dentro de casa, fazia com que os dois filhos mais velhos, ao invés de ir<strong>em</strong> brincar,<br />

ajudass<strong>em</strong> o pai. Ele e sua mulher estabeleceram princípios de responsabilidade.<br />

A autoridade era repartida entre ambos porque tiveram filhos homens e mulheres<br />

e os filhos ligam-se mais ao genitor do mesmo sexo. Na decisão sobre o<br />

comportamento dos quatro filhos, ele era a autoridade: “o limite era a minha<br />

autoridade”.<br />

Ressalta que t<strong>em</strong> acesso à forma como, na prática, se dá a divisão de<br />

responsabilidades com seus netos por parte dos pais, mas observa que, a seu ver,<br />

eles não souberam se impor. Comenta que Laura “s<strong>em</strong>pre achou que não estava<br />

usando a autoridade certa”. Talvez esse fosse o seu probl<strong>em</strong>a. O comportamento<br />

de Michael também ficou a desejar porque esperava dos filhos a “autocompreensão”<br />

ao invés de se investir da autoridade de pai e determinar o que<br />

deveria ser feito <strong>em</strong> casa. E termina dizendo: “os pais têm que se conscientizar<br />

que são figuras de autoridade para os seus filhos”.<br />

118


Michael concorda com Laura dizendo que falharam na atribuição de<br />

responsabilidade aos filhos, com o intuito de poupá-los. Conseqüent<strong>em</strong>ente, hoje<br />

<strong>em</strong> dia eles se sent<strong>em</strong> desobrigados no campo pessoal e doméstico. Quanto à<br />

questão da autoridade, Michael explica que o casal conversa, mas ele assume a<br />

responsabilidade de colocação de limites, de “certas regras básicas”, talvez<br />

porque os filhos sejam homens. A mulher o apóia. Acha que consegue uma<br />

razoável eficácia, na maioria das vezes.<br />

Laura s<strong>em</strong>pre se sentia culpada por passar tanto t<strong>em</strong>po fora de casa trabalhando<br />

e isso a levou a mimar os filhos. Considera que falhou porque centralizou as<br />

responsabilidades da casa, poupando inclusive o marido. Concorda que Michael<br />

exerce melhor a autoridade com os filhos, mas ressalta que ela também é<br />

autoridade, <strong>em</strong>bora n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre eficaz, porque reflete e reformula a partir da<br />

argumentação dos filhos. Não sabe se esse é o seu grande erro ou sua maior<br />

virtude, porque “aí a coisa afrouxa”. Já o pai diz que t<strong>em</strong> que ser de tal forma<br />

porque ele assim quer e ponto: não se discute ou argumenta.<br />

Alexandre e Maurício comentam que não foram habituados a cumprir afazeres<br />

domésticos, se mostrando imaturos nesse aspecto.Os dois reafirmam que mais o<br />

pai do que a mãe coloca os limites <strong>em</strong> casa, porém, os pais não se mostram muito<br />

eficazes nessa tarefa. Alexandre ressalta que quando discorda dos pais, age<br />

conforme o que pensa como no caso do uso que ele faz do fumo (tabaco) à noite,<br />

após os pais ter<strong>em</strong> ido dormir, apesar da proibição de fazê-lo <strong>em</strong> casa. “Eu não<br />

respeito isso [não fumar dentro de casa] não por não querer, mas sim por causa<br />

119


de ser um vício e tipo assim: eu estou no computador jogando as coisas, eu não,<br />

eu não consigo sair lá fora fumar e depois jogar, eu perco a vontade de jogar,<br />

perco a vontade de fazer o que eu estava fazendo; é mais isso”.<br />

Interessei-me <strong>em</strong> saber a possibilidade de modificação desse padrão doméstico.<br />

Michael considera que os filhos dev<strong>em</strong> se conscientizar de que precisam<br />

colaborar, pois seus esforços nesse sentido têm sido <strong>em</strong> vão. Insiste que não se<br />

pode tirar a responsabilidade dos filhos que já estão grandes. E como a mãe<br />

continua “fraquejando sobre o assunto”, inclusive durante a entrevista, sugere que<br />

façam um organograma das tarefas domésticas a ser afixado na geladeira.<br />

Os dois jovens concordam que os pais deveriam delegar tarefas, o que seria uma<br />

mudança do quadro atual. Entretanto, Maurício não sabe se ainda está <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po<br />

de mudar, porque “a gente já está numa idade avançada, no caso 20 anos ele, 18<br />

eu”.<br />

Reproduzo a fala do senhor Felício sobre a intercessão entre os conceitos família,<br />

união, responsabilidade, organização porque considero que reúne, de forma<br />

sucinta e inteligente, o entrelaçamento desses conceitos para a formação pessoal<br />

dos m<strong>em</strong>bros da família:<br />

“Eles [os netos] são muito desarrumados, conforme os pais falaram, com<br />

relação ao que com<strong>em</strong>, às roupas, ao que vest<strong>em</strong>. O ambiente <strong>em</strong> si,<br />

durante a s<strong>em</strong>ana, não fica como deveria ficar. Porque, para nós, união,<br />

120


união significa uma série de coisas: família é a base de tudo, ter felicidade<br />

significa ter, além do sentimento, também condições materiais e isso<br />

implica dinheiro. Então, é necessário que eu não tenha que lavar muita<br />

roupa, porque lavando muita roupa eu vou gastar muita energia, é<br />

necessário que eu não estrague os móveis dentro de casa, porque vai ter<br />

que ser reposto o móvel e isso vai ter que puxar dinheiro do meu pai, da<br />

minha mãe; eu tenho que estudar, que é para o mais breve possível eu<br />

poder ajudar meu pai e minha mãe, colaborar. Voltando ao caso dos meus<br />

filhos, o Michael com 18 anos de idade já estava <strong>em</strong>pregado, ganhando<br />

mais do que o pai. E o outro, ao completar os 20, também estava na<br />

mesma situação, a ponto de eu ter pena dele tão jov<strong>em</strong> com uma<br />

responsabilidade muito grande. Agora isso veio de certo modo<br />

naturalmente, mas também foi devido ao fato que eu me referi há pouco; ao<br />

fato da dificuldade que uma pessoa encontra na vida. Essa dificuldade pode<br />

levar a pessoa mais para o fundo do poço, mas pode também botar a<br />

pessoa para cima”.<br />

Aquilo que não foi ensinado ao longo do desenvolvimento dos filhos e por eles<br />

aprendido t<strong>em</strong> repercussões no seu viver <strong>em</strong> comunidade, <strong>em</strong> sociedade. Um<br />

estilo permissivo de educação (Baumrind, 1966) infantiliza os filhos, e não os<br />

prepara para o exercício de uma cidadania compartilhada com os pares, na<br />

medida <strong>em</strong> que eles permanec<strong>em</strong> autocentrados, à espera de que façam por eles<br />

o que deveria ser de sua própria competência. Ceder à argumentação dos filhos e,<br />

com isso, não exercer a autoridade, é um corolário dessa idéia. Outro é ter uma<br />

121


postura autoritária nas decisões. Encontrar uma medida que harmonize o<br />

autoritarismo e a permissividade constitui um caminho para a mudança.<br />

3.5. Considerações finais<br />

Alexandre e Maurício foram criados com mimos e superproteção da avó materna –<br />

a primeira geração –, durante os dez primeiros anos de vida. Os meninos foram o<br />

seu elixir de retorno à vida, após a morte do marido. Os netos foram dados de<br />

presente para a avó materna com o intuito de aliviar a sua dor, o que fez crescer<br />

sua influência na criação deles. Ela não admitia a interferência do genro, que<br />

poderia colocar limites aos caprichos de Alexandre e Maurício.<br />

Mas também Laura e Michael protegeram <strong>em</strong> d<strong>em</strong>asia os filhos por sentir<strong>em</strong>-se<br />

culpados pela constante ausência no seu cotidiano. Assim, Maurício e Alexandre<br />

foram criados com excesso de amor e superprotegidos, principalmente pelos<br />

vínculos com a figura f<strong>em</strong>inina. Laura, durante anos, escondeu de Michael, para<br />

não aborrecê-lo, probl<strong>em</strong>as da vida dos meninos, ao contrário do que fizeram o<br />

senhor Felício e sua esposa, que tinham um pacto de nada ocultar entre os dois,<br />

sobre os filhos. Hoje, avaliando esses anos de formação dos jovens, Michael<br />

reconhece, no momento da entrevista, que ter uma vida corrida não pode mais<br />

justificar sua falta de aproximação com Alexandre e Maurício.<br />

O respeito a si e ao outro foi passado para filhos mimados, acostumados a ser<strong>em</strong><br />

servidos pelos adultos das duas gerações. Acrescenta-se a isso a ambigüidade<br />

materna relativa à impl<strong>em</strong>entação dos valores como, por ex<strong>em</strong>plo, o respeito e a<br />

122


socialização. Formou-se um bom caldo: a educação voltada para os valores se<br />

deu de forma contraditória da parte da mãe para os filhos, criados de forma mais<br />

permissiva (avó materna e mãe) do que autoritária (pai). A ambivalência de Laura<br />

esconde uma outra faceta da infantilização dos jovens: o valor t<strong>em</strong> que ser<br />

impl<strong>em</strong>entado da forma como ela quer, não respeitando ou dando voz ao outro.<br />

Hoje <strong>em</strong> dia esses adultos se queixam do pouco respeito que os filhos<br />

d<strong>em</strong>onstram para com a casa, com os pais e consigo próprios. Mas não perceb<strong>em</strong><br />

com clareza o quanto estão implicados no comportamento deles.<br />

Os sonhos e as expectativas das três gerações são desencontrados. Alexandre<br />

ainda sonha como um menino e Maurício parece ter entrado na faculdade para<br />

satisfazer os desejos dos pais. Não por convicção. Os filhos continuam imaturos<br />

para propor e conduzir projetos adultos. Chama atenção a displicência com que<br />

Maurício julga a si próprio e ao irmão “velhos” para se corrigir<strong>em</strong> e começar<strong>em</strong> a<br />

auxiliar dentro de casa. Prevê que não conseguirão agir de outra forma: por parte<br />

de ambos há pouca motivação e ambição.<br />

Salta à vista o deslocamento que a família Ciumeira fez <strong>em</strong> direção à mãe, na<br />

criação dos filhos. Pouco pesou a figura masculina durante o crescimento deles. A<br />

dificuldade de crescimento da família, como ficou d<strong>em</strong>onstrado pela explicitação<br />

dos ciúmes que sent<strong>em</strong> do avô, t<strong>em</strong> barrado, inclusive, a benéfica influência e<br />

experiência de vida desse senhor que “conseguiu renascer das cinzas”, como um<br />

resiliente.<br />

123


Michael mostra-se impaciente com os filhos, atribuindo suas dificuldades de<br />

construir projetos ao t<strong>em</strong>po fluido e fragmentado da atualidade. Talvez ele tenha<br />

se escorado durante um t<strong>em</strong>po da vida nas mulheres, que amaciaram a sua tarefa<br />

de pai. Hoje, revendo, percebe que eles criaram um modelo positivo de pai a<br />

seguir, porém um modelo como uma mirag<strong>em</strong> longínqua: um pai t<strong>em</strong>ido e não<br />

amigo, com qu<strong>em</strong> compartilhar.<br />

A transmissão e a prática dos valores familiares pod<strong>em</strong> influenciar o uso abusivo<br />

de drogas na família Ciumeira por vínculo de apego, resultante possível do amor<br />

<strong>em</strong> excesso. Isso resultou na infantilização dos filhos, na sua falta de autonomia e<br />

de gerenciamento próprio; nas expectativas díspares entre os adultos e os<br />

filhos/netos, congruentes com a imaturidade desses últimos. Maurício e Alexandre<br />

se espelham <strong>em</strong> modelos incipientes para a formação do adulto jov<strong>em</strong>, num estilo<br />

de criação <strong>em</strong> que o pai se vê como figura de autoridade, mas os filhos não<br />

atestam a eficácia desta autoridade.<br />

4. A Família Devanear<br />

4.1. Contextualização<br />

Escolhi nomear essa família como Devanear pela tendência fantasiosa de sua<br />

forma de comunicação enquanto grupo.<br />

124


A família Devanear se constitui de avô paterno, o senhor Pedro, com 68 anos; a<br />

avó paterna, Dona Tereza, também com 68 anos; a mãe, Regina, com 47, e o<br />

usuário de drogas, Bruno, filho único, com 20 anos. Seu pai, Márcio, não<br />

compareceu à entrevista. A família mora <strong>em</strong> lugares distintos. O senhor Pedro,<br />

Dona Tereza e Regina viv<strong>em</strong> <strong>em</strong> Paquetá e Bruno, num quarto alugado de<br />

Mariana, <strong>em</strong> Santa Teresa. Por causa da separação dos pais, Bruno foi criado<br />

pelos avós paternos desde a infância até os 14 anos. Daí <strong>em</strong> diante alternava sua<br />

moradia entre a casa dos avós, onde seu pai também morava, e a casa de<br />

Regina, sua mãe. Ela casou-se novamente e t<strong>em</strong> um filho, padrasto e irmão de<br />

Bruno, respectivamente. Ele mudou-se há três meses para o apartamento <strong>em</strong><br />

Santa Teresa.<br />

O encontro para entrevista deu-se <strong>em</strong> casa de Mariana, onde Bruno reside<br />

atualmente. Ele é um jov<strong>em</strong> falante, bonito e sedutor. Sua aparência está de<br />

acordo com os t<strong>em</strong>pos atuais: bermuda, chinelos e brincos numa orelha. Era a<br />

primeira vez que a família visitava o seu espaço de forma que ele estava ansioso<br />

pela chegada de todos. Os avós <strong>em</strong>pertigados, com boa aparência, e a mãe com<br />

um quê de hippie na forma de se vestir. Mariana precisou se programar com os<br />

seus dois filhos para que a entrevista fosse efetuada.<br />

O grau de escolaridade dos m<strong>em</strong>bros da família assim se distribui: o senhor Pedro<br />

t<strong>em</strong> o segundo grau incompleto e Dona Tereza o segundo grau completo. Regina<br />

o superior completo e Bruno cursa engenharia de produção.<br />

125


Família de classe média, sua renda gira <strong>em</strong> torno de R$ 4200,00: R$ 900,00 da<br />

aposentadoria do avô como bancário, e R$ 900,00 provenientes da aposentadoria<br />

que a avó recebe do Estado; aproximadamente R$2000,00 da mãe, professora de<br />

uma escola, e R$ 400,00 da mesada de Bruno.<br />

Bruno inicia o uso de álcool e maconha com 14 anos e privilegia o consumo de<br />

álcool porque diz, “dá menos probl<strong>em</strong>as”. Quando começou, bebia até cair sexta,<br />

sábado, nas festas e eventos. Inicia o uso compulsivo de bomba aos 17 anos, mas<br />

sente dores de cabeça estranhas e resolve parar. A partir dos 17 anos, inicia o uso<br />

das drogas ilícitas, fumando maconha diariamente, <strong>em</strong> torno de 50 gramas por<br />

s<strong>em</strong>ana. Refere que toma ácido e usa ecstasy com alguma freqüência.<br />

Experimentou key (um anestésico de cavalo), cocaína, benzina, cheirinho da loló,<br />

lança perfume, xarope e chá de cogumelo. Sua droga de eleição é a maconha.<br />

Relata que não usa drogas há 76 dias e está <strong>em</strong> tratamento numa “Irmandade”<br />

(Narcóticos Anônimos) e no Centra-Rio.<br />

Inicia o uso abusivo e compulsivo de drogas com 14 anos, momento <strong>em</strong> que se<br />

afasta do jugo autoritário e aprisionador dos avós, passando a ser regido pela<br />

autoridade dos pais. Relata que não se submete integralmente a eles porque não<br />

foi criado n<strong>em</strong> por Márcio, o pai, e n<strong>em</strong> por Regina, a mãe. Ao responder à<br />

pergunta sobre seus sonhos, Bruno explica que usa drogas para afastar-se da<br />

realidade inóspita configurada pelas exigências e limites impostos pelo mundo<br />

adulto. Ao final de nossa conversa, explica para a avó que a adicção é uma<br />

126


doença, ao que o senhor Pedro contrapõe que o uso abusivo de drogas está<br />

“dentro da sua cabeça”.<br />

É importante compreender as representações sociais que autoridades, famílias e a<br />

própria juventude estabelec<strong>em</strong> como anteparo ao consumo desenfreado e a visão<br />

que projetam sobre os que se tornam dependentes. Em primeiro lugar, o drogado<br />

é visto como um doente pelo poder médico, mas de uma forma muito específica:<br />

enquanto a doença dos que padec<strong>em</strong> enfermidades biológicas é vista como um<br />

fenômeno externo a ele e sobre a qual não t<strong>em</strong> controle, no caso da dependência,<br />

ele é acusado do ponto de vista moral, é estigmatizado socialmente, fato que t<strong>em</strong><br />

o poder de contaminar a sua vida <strong>em</strong> todos os aspectos, portanto, globalmente.<br />

Aqui, “o aspecto doença já é dado, faz parte da própria categoria” (Velho, 1999b,<br />

60), já que o drogado é considerado um doente, um viciado.<br />

Considerar o adicto como um indivíduo desviante de uma forma geral e não de<br />

forma específica carrega <strong>em</strong> si uma dinâmica que captura o indivíduo a se<br />

comportar de acordo com a imag<strong>em</strong> que os outros têm de si – “uma profecia que<br />

se auto-realiza” – (Becker, 1977b, 80). Ex<strong>em</strong>plo desse ponto de vista traz Bruno<br />

ao considerar sua adicção uma “doença”, acreditando na força de um poder<br />

superior e na prática dos 12 passos para lhe auxiliar a lidar com a compulsão que<br />

é incapaz de controlar. Essas explicações estão de acordo com o paradigma que<br />

considera possível a existência de uma realidade independente do observador.<br />

127


O uso abusivo de drogas afasta Bruno de suas angústias e inseguranças,<br />

“prometendo” o esquecimento delas. Ele fala de sua incapacidade de enfrentar os<br />

probl<strong>em</strong>as e desenvolver estratégias ativas na forma de lidar com eles. Essas<br />

dificuldades denotam falta de confiança, habilidades pessoais e interpessoais e<br />

controle <strong>em</strong>ocional (Schenker e Minayo, 2005). Vivendo numa época <strong>em</strong> que o<br />

prazer e o consumismo são valores imperativos, Bruno procura o paraíso no uso<br />

compulsivo de drogas. Essa é a forma como consegue se manter <strong>em</strong> formol para<br />

evitar o crescimento.<br />

A idéia da adicção como uma doença enfatiza a substância psicoativa mais do que<br />

a relação que o adicto estabelece com a droga <strong>em</strong> seus múltiplos contextos de<br />

relação, num espaço sócio-cultural determinado (Schenker e Minayo, 2003). O<br />

pensamento sistêmico confere ao adicto a autoria de seus atos. Nesse sentido, a<br />

adicção de Bruno se torna compreensível quando inserida na teia de relações que<br />

conforma a sua existência.<br />

4.2. Valores familiares<br />

Contando sua forma de criação, o senhor Pedro comenta que quis passar para<br />

seu único filho e para seu neto os princípios da educação entendida como modos<br />

(saber se apresentar, falar e lidar com as pessoas), instrução (escolaridade) e o<br />

amor dedicado ao próximo. Comenta que lhes ensinou esses valores, <strong>em</strong> parte<br />

b<strong>em</strong> aproveitados. O neto, diz, estudou nos melhores colégios particulares,<br />

enquanto seu pai, Márcio, se formou <strong>em</strong> colégio público. O filho formou-se, é<br />

professor, e o neto passou <strong>em</strong> duas faculdades. O avô fica triste e comovido,<br />

128


d<strong>em</strong>onstrando esses sentimentos na entrevista, <strong>em</strong> decorrência do abuso de<br />

drogas por parte de Bruno, para ele um filho.<br />

Dona Tereza enumera os princípios que reg<strong>em</strong> sua vida, <strong>em</strong> tudo s<strong>em</strong>elhantes<br />

aos do marido: amor, educação entendida como modos e um certo grau de<br />

instrução. Relata que os ensinou ao neto, mas não foi b<strong>em</strong> sucedida. Bruno era<br />

rebelde, só fazia o que queria. “Mesmo tendo diálogo (grifo meu) e tudo, mas<br />

s<strong>em</strong>pre fez o que quis”. O neto irá contestar a visão de dona Tereza acerca dessa<br />

relação dialógica, num momento posterior da entrevista. Para os dois avós, os<br />

princípios enunciados objetivam o convívio familiar.<br />

Regina comenta que seu filho foi criado pelos avós e que só voltaram a ter contato<br />

com ele quando tinha 11 anos. Acrescenta que do ano de 2000 até março do<br />

presente ano Bruno morou com ela. Regina valoriza a alegria de viver, a<br />

honestidade consigo e o compartilhar, para poder dividir como a base do amor.<br />

Reflete sobre o princípio da aprendizag<strong>em</strong>, ao dizer que “a gente só apreende o<br />

que pode. Não adianta eu querer passar, ele [o filho] vai fazer uma seleção”.<br />

Considera que a alegria de viver e o compartilhar com o outro, “era um<br />

componente da personalidade dele [de Bruno] já, da natureza dele. Ele quando<br />

percebia (que) uma pessoa tinha um carinho muito grande (por ele), queria fazer<br />

melhor”.<br />

Regina separa ensino e aprendizag<strong>em</strong>, que segundo a visão sistêmica estão<br />

indissociavelmente interligados. Sustenta que determinados comportamentos são<br />

129


um componente da natureza ou da personalidade do filho. Os comportamentos<br />

mencionados por ela diz<strong>em</strong> respeito ao processo de identificação de Bruno com<br />

ela, uma co-construção da relação mãe e filho. O afeto que as pessoas<br />

d<strong>em</strong>onstram pelo outro também influencia a construção de sua natureza.<br />

Maturana (Maturana et al, 2002d, 331-332) faz uma reflexão s<strong>em</strong>inal sobre a<br />

herança dos padrões de comportamento na entrevista que concede à Cristina<br />

Magro: o que define a família é uma rede de conversações por ele denominada de<br />

coordenações de ações (comunicação) e de <strong>em</strong>oções. Os sujeitos aprend<strong>em</strong>, de<br />

forma inconsciente, um modo de estar 16<br />

na convivência com os m<strong>em</strong>bros da<br />

família a partir do fluir na rede de conversações, não importa qual o conteúdo<br />

enunciado. Essas redes pod<strong>em</strong> variar ao longo da interação e do espaço de<br />

convivência dos familiares, evidenciando modificações na forma de ser do<br />

indivíduo. A identificação de Bruno com sua mãe expressa a s<strong>em</strong>elhança do modo<br />

de estar no mundo de ambos.<br />

Regina coloca <strong>em</strong> prática os princípios por ela enunciados, “não dentro do rigor<br />

quanto a gente gostaria”. Bruno explica que o padrasto e o irmão são “dois<br />

er<strong>em</strong>itas”, de forma que fica difícil o contato <strong>em</strong>ocional, o companheirismo.<br />

Formulei a pergunta sobre a expectativa de transformação da situação de Bruno.<br />

Dona Tereza finaliza: “A nossa palestra [a entrevista] é <strong>em</strong> cima da sua<br />

recuperação, <strong>em</strong> cima de tudo o que há de melhor para você. Se não, não adianta<br />

16 O modo de estar enunciado por Maturana ass<strong>em</strong>elha-se ao ethos e visão de mundo de Gilberto Velho<br />

(1999e), já referido nesse estudo.<br />

130


a finalidade, n<strong>em</strong> estarmos conversando”. Regina tece um comentário sobre<br />

“transformação pessoal”, contando que pessoas <strong>em</strong> sua família abusaram do<br />

álcool e ela se manteve afastada da questão. Somente a partir do uso abusivo de<br />

drogas pelo filho procurou saber mais sobre o assunto “por que isso está<br />

acontecendo, onde está essa identificação, para não vê-lo s<strong>em</strong>pre como o que<br />

está criando probl<strong>em</strong>a”. A mãe ressalta que se esforça para não discriminar o filho<br />

como adicto. Busca entender o seu comportamento compulsivo inserido no<br />

contexto sócio-familiar.<br />

O senhor Pedro comenta que para ele, família é “amor ao próximo”, sendo<br />

formada por laços de sangue e de afinidade, “a convivência já é uma família”.<br />

Dona Tereza explica a convivência como o “respeito” e uma “preocupação com o<br />

outro” e inclui o “amor” na sua definição de família. Regina compartilha da idéia do<br />

senhor Pedro de que a família é constituída por laços de afinidade. Perdeu os<br />

avós e o pai muito cedo e “aí foram vindo os agregados. Família é com qu<strong>em</strong> você<br />

se sente <strong>em</strong> casa”.<br />

Bruno relata que recebe dos avós a noção de “família fechada”, definida como a<br />

convivência com poucas pessoas da família consangüínea. “Eu não recebia<br />

amigos <strong>em</strong> casa e não ia para a casa de ninguém”. Por isso, não sabia falar com<br />

as pessoas e s<strong>em</strong>pre teve dificuldade de se relacionar na escola. A idéia de<br />

“família aberta”, para além dos umbrais da casa, v<strong>em</strong> da mãe. Explica os diversos<br />

significados de família para ele. É o “lugar de segurança” para se voltar e ter qu<strong>em</strong><br />

se “importe com as suas necessidades”. Essa é exatamente a forma como Dona<br />

131


Tereza descreve o que entende por amor. Por outro lado, família também significa<br />

“limite”: “Eu tenho uma dificuldade absurda com limite, absurda”. Explica que essa<br />

dificuldade advém de sua adicção/compulsão, ou seja, para “aparecer, ser bom<br />

para caramba” abandona todo o resto e parte para um comportamento obcecado,<br />

muitas vezes não aceito pelos adultos, “como levantar a bandeira de ‘legalize a<br />

maconha’”.<br />

Para Bruno, família também significa uma identificação com a forma como foi<br />

criado pelos avós: com a “liberdade cerceada”, porém com “todas as vontades<br />

atendidas”. Esse era o salvo conduto para garantir a sua permanência dentro de<br />

casa. Um possível corolário dessa vivência é Bruno não suportar ouvir um “não”.<br />

Sublinha que a sua compulsão inicial foi com a comida: comia o que queria, vestia<br />

o queria e tinha os brinquedos que queria. “Mas eu ficava <strong>em</strong> casa. Eu não<br />

verificava que eu tinha limite, porque eu tinha todas as minhas vontades imediatas<br />

(atendidas). Então eu não tinha vontade de ver as pessoas”. Com a entrada na<br />

adolescência sentiu necessidade de se relacionar. Foi quando a mãe, Regina,<br />

reaparece o que, segundo Bruno, lhe deu “a possibilidade de ter duas casas, para<br />

poder fazer praticamente o que queria”. É expulso da escola e vai viver “só o meu<br />

social”, ou seja, afasta-se do jugo dos avós, com qu<strong>em</strong> já não morava, e não se<br />

submete à autoridade dos pais, com a “desculpa” de não ter sido criado por eles.<br />

“Então eu fiquei a minha adolescência inteira s<strong>em</strong> nenhum pátrio poder possível”.<br />

Viver num ambiente protegido de sons externos como o de Bruno <strong>em</strong> casa dos<br />

avós transforma-se numa fonte de dificuldades na entrada da adolescência, com o<br />

132


surgimento do seu interesse <strong>em</strong> relacionar-se socialmente. Menino tímido, s<strong>em</strong> a<br />

vivência das brincadeiras infantis com amigos, atrapalha-se ao sair da casa dos<br />

avós <strong>em</strong> busca do novo mundo. Isto só foi possível porque conseguiu driblar seus<br />

pais como figuras de autoridade. Ficou s<strong>em</strong> eira n<strong>em</strong> beira, desafiando a<br />

autoridade constituída por meio de slogans relacionados às drogas. Bruno definese<br />

como rebelde, impulsivo, compulsivo na busca do prazer s<strong>em</strong> limitações dos<br />

adultos. Algumas investigações apontam essas características individuais, aliadas<br />

a outras familiares e aos ambientes sociais, como possíveis fatores de risco para o<br />

uso abusivo de drogas (Brook et al, 1986, 1990).<br />

4.3. Conflito entre Gerações<br />

Os avós cuidaram do filho, Márcio, e do neto, Bruno, após a separação dos pais. A<br />

casa era regida por dona Tereza. Bruno comenta que “nunca tive o costume de<br />

mexer no andamento da casa”. Dona Tereza confirma: “Lavo, passo, cozinho, boto<br />

mesa, levanto às quatro da manhã, boto café”. Assim, Bruno optou por professar<br />

o “valor mais cômodo” do nada fazer. No entanto, muda o comportamento quando<br />

está fora de casa.<br />

Dona Tereza e o senhor Pedro encaixam-se na família de organização hierárquica<br />

(<strong>Figueira</strong>, 1987), com papéis familiares nitidamente delineados. Criaram Márcio e<br />

Bruno de acordo. O neto irá observar que essa prática de criação teve algumas<br />

conseqüências prejudiciais para o seu pai. E para ele também.<br />

133


Bruno e os avós discut<strong>em</strong> e discordam sobre a responsabilidade de Márcio para<br />

com a família e as finanças. O neto considera seu pai irresponsável <strong>em</strong> ambas,<br />

com o beneplácito dos avós e pergunta: “Até que ponto o que vocês faz<strong>em</strong> com o<br />

meu pai [auxílio financeiro] é ajudar ou facilitar para ele manter os mesmos<br />

defeitos de caráter que ele t<strong>em</strong> há 40 anos? Porque preguiça, procrastinação é um<br />

defeito de caráter meu e dele”. A avó replica: “É, de repente a culpa foi minha”.<br />

Quanto à responsabilidade de Márcio com a família, Bruno ressente-se da<br />

ausência paterna desde a separação dos pais. Os avós rebat<strong>em</strong>, acobertando a<br />

incompetência paterna do filho, dizendo que Márcio “quando está longe não<br />

procura, mas quando está perto, dá (atenção para o filho): é o jeito dele”. Bruno<br />

relata que quando o pai “bebe no ano novo” sente-se culpado por não ter ficado<br />

mais próximo dele, principalmente se “eu faço uma merda muito grande”. Acha<br />

que sua avó tende a assumir a responsabilidade sua e de seu filho. E dona Tereza<br />

aquiesce dizendo: “Ainda sou assim até hoje”.<br />

Na casa de Mariana, Bruno t<strong>em</strong> que acordar sozinho. Não era assim quando<br />

morava com os avós. Pondera que a pessoa não se torna responsável enquanto<br />

t<strong>em</strong> qu<strong>em</strong> faça por ele. Durante a entrevista, mostra-se indignado com a conduta<br />

de seus avós de castrar<strong>em</strong> a sua autonomia e a de seu pai. Porém, numa etapa<br />

posterior da narrativa, ele explicará a sua co-participação na construção de sua<br />

infantilização.<br />

134


A avó, num primeiro momento, é sarcástica <strong>em</strong> seus comentários sobre a<br />

mudança de conduta do neto quanto a acordar sozinho, por ex<strong>em</strong>plo, na casa de<br />

Mariana. No momento seguinte, julga que esse é um movimento positivo de<br />

Bruno, destacando que irá auxiliá-lo no que precisar ao longo da vida. O neto<br />

agradece porque considera que o auxílio dos avós não promove o crescimento.<br />

Chama a atenção a atribuição de Bruno <strong>em</strong> relação à preguiça e à procrastinação<br />

como defeitos de caráter. Essa linguag<strong>em</strong> é aprendida <strong>em</strong> linhas de tratamento da<br />

drogadição que consideram o dependente um doente, com defeitos de fabricação<br />

que pod<strong>em</strong> engendrar adicção. Nunca é d<strong>em</strong>ais l<strong>em</strong>brar que o ser humano se<br />

constrói num processo de acoplamentos estruturais recursivos com o contexto<br />

familiar e sócio-cultural, ao longo de sua história (Maturana e Varela, 1995). E<br />

Bruno também explica essa visão ao implicar a conduta de seus avós na preguiça<br />

que ele e seu pai apresentam.<br />

Regina considera que Bruno t<strong>em</strong> instrumental para se tornar responsável porque é<br />

honesto. Considera seu filho “um guerreiro”. É corajoso e obstinado na<br />

consecução daquilo que decide para si: decidiu <strong>em</strong>agrecer, não ter medo do<br />

escuro e até mesmo se drogar, e agiu. “Tudo ele resolveu fazer com muita<br />

corag<strong>em</strong>”. Regina não <strong>em</strong>ite um juízo de valor quanto ao uso de drogas por parte<br />

de Bruno.<br />

O senhor Pedro e dona Tereza consideram seu filho, o pai de Bruno, uma pessoa<br />

independente, porque estuda e trabalha. Márcio casou-se pela segunda vez e t<strong>em</strong><br />

135


duas filhas. Apesar de dar aulas de física, recebe o auxílio financeiro de seus pais<br />

e de uma tia. Segundo os avós, ela o considera como a um filho. Os pais não<br />

perceb<strong>em</strong> Márcio como “um explorador” da tia, conforme a opinião de Bruno. O<br />

neto acrescenta que o pai “só não sabe viver com quanto ele ganha”.<br />

Falando da família, os avós se reportam ao conceito de dependência saudável: “a<br />

família toda ela é dependente, no mínimo uma palavra de conforto, de amor”. O<br />

senhor Pedro compl<strong>em</strong>enta: “eu acho que (na) família (todo mundo) depende um<br />

do outro. Eu acho que ninguém é independente”. Comentam que são chamados a<br />

fazer inúmeras tarefas burocráticas e domésticas para o filho e para outros<br />

m<strong>em</strong>bros da família. Mas o senhor Pedro diz que se sente explorado, por vezes.<br />

Regina explica que ela e os seus filhos depend<strong>em</strong> <strong>em</strong>ocionalmente uns dos<br />

outros: “Acho que a gente t<strong>em</strong> uma coisa de cordão umbilical muito forte ainda”.<br />

Logo a seguir, Bruno comenta que t<strong>em</strong> descoberto <strong>em</strong> terapia que é um codependente:<br />

“eu me alimento realmente do <strong>em</strong>ocional das pessoas”. Coloca-se<br />

como incapaz <strong>em</strong> áreas <strong>em</strong> que sabe que o outro irá suprir. Ao agir dessa<br />

maneira, reafirma a construção de sua infantilização <strong>em</strong> parceria com os avós e a<br />

mãe. Ressalta que t<strong>em</strong> procurado saber: “aonde é que foi o meu modelo chavefechadura,<br />

para eu estar repetindo isso agora!”<br />

Ponderei <strong>em</strong> outra ocasião (Schenker, 2003, 211) que o vínculo de dependência<br />

perpassado às gerações pode ser letal para a individualização dos m<strong>em</strong>bros do<br />

sist<strong>em</strong>a familiar porque paralisa o seu crescimento. A droga anestesia os<br />

136


familiares, alienando-os da angústia referente à ultrapassag<strong>em</strong> das etapas do ciclo<br />

vital da família que inclui o crescimento e a saída dos jovens de casa, e culmina<br />

com a assunção dos pais no lugar de avós a partir do ninho vazio deixado por<br />

seus filhos. A família Devanear encontra-se estacionada na etapa da préadolescência<br />

do ciclo vital.<br />

Regina considera possível a transformação nas relações familiares porque “se a<br />

gente muda, o outro acaba mudando e vai se fazendo esse deslocamento de<br />

papéis”. Diz que “t<strong>em</strong>e” o binômio: cooperação e independência pessoal e explica<br />

que já foi independente a ponto de achar que qualquer aproximação do outro<br />

implicaria no cerceamento de sua liberdade. Posteriormente, percebeu que<br />

precisava e dependia do amor e do afeto das pessoas. Porém, ela própria chama<br />

a atenção para a sua vivência do que considera o amor que mutila: “A pior coisa é<br />

você precisar de si mesmo e não poder contar consigo. A pior ausência e o pior<br />

abandono é o que você faz a si mesmo”.<br />

Regina viveu situações de apego <strong>em</strong> alguma relação, e não de amor, porque na<br />

relação de amor há compreensão, afeto, cooperação com o outro. O amor<br />

concede liberdade e se interessa pelo b<strong>em</strong> estar do outro. Diferente da mutilação<br />

enunciada por Regina, que t<strong>em</strong> numa letra de Chico Buarque uma bela<br />

ilustração 17 . Regina também aponta para o paradigma do individualismo vigente,<br />

17 Pedaço de Mim, 1979: “Ó pedaço de mim, ó metade amputada de mim, leva o que há de ti, que a saudade<br />

dói latejada, é assim como uma fisgada, no m<strong>em</strong>bro que já perdi”.<br />

137


que confunde a possibilidade do sujeito viver plenamente as suas capacidades<br />

individuais e de ser solidário com o outro.<br />

Bruno considera que o grupo 12 passos e as irmandades funcionam para<br />

promover transformações. E que comece por si, conforme o l<strong>em</strong>a da irmandade<br />

(os Narcóticos Anônimos), porque “você não pode agir no outro”. Confia no<br />

tratamento como possibilidade de transformação pessoal, tendo uma percepção<br />

acurada dos preceitos terapêuticos.<br />

Referindo-se ao filho, Dona Tereza comenta que Márcio não cumpriu seu sonho<br />

de ser um oficial da marinha. “Trabalhei, investi, trabalhei, tudo sobre esse lado,<br />

mas não se realizou”. Já o senhor Pedro incentivou o neto para estudar medicina,<br />

mas ele queria a diplomacia, expectativa de dona Tereza, que também não se<br />

concretizou. Os avós consideram que Márcio e Bruno não construíram um bom<br />

círculo social e que as amizades do neto eram boas, de uma forma geral, na<br />

infância. Nessa fala não se articula o que Bruno chamou de “família fechada”, <strong>em</strong><br />

que o isolamento social, com intuito de preservação do neto, não o preparou para<br />

o convívio com os outros. A saída abrupta da casa dos avós, na busca de outros<br />

ambientes, coincide com o repúdio ao fechamento, o enfrentamento das<br />

dificuldades de convívio social e o refúgio nas drogas.<br />

Regina admira muito seu filho. Considera que ele “veio pronto” mental e<br />

<strong>em</strong>ocionalmente porque é um “intelectual aberto”, com facilidade para lidar com<br />

questões humanas, não tradicionais. Esses são atributos valorizados e sonhados<br />

138


por ela <strong>em</strong> relação a Bruno. No convívio dos últimos 4 anos, diz que gosta de<br />

alguns amigos dele que usam droga, não de outros. Apesar das qualidades e<br />

potencialidades que admira, julga-o muito desorganizado e preocupou-se <strong>em</strong> dar<br />

limites quanto ao não uso de drogas <strong>em</strong> casa, durante o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que viveram<br />

juntos. Esse t<strong>em</strong>a se impôs como o centro da relação entre eles, de tal forma que<br />

só conversavam sobre isso e brigavam. Bruno está limpo das drogas há pouco<br />

mais de 2 meses sendo que saiu da casa materna há 3 meses.<br />

Dona Tereza deseja que seu neto termine engenharia e tente entrar para a<br />

carreira diplomática. A avó se mostra muito surpresa, ao longo da conversa, com a<br />

falta de desejo de realização de Bruno, o que a deixa s<strong>em</strong> esperanças quanto a<br />

seus sonhos profissionais com relação a ele. O avô espera que o neto se<br />

modifique para melhor, ultrapassando esse momento de vivência abusiva de<br />

drogas.<br />

A resposta aos avós e à mãe v<strong>em</strong> afiada: Bruno não considera ter sonho algum.<br />

Diz ser desprovido de ideais. “Comprou a idéia” de ser diplomata a partir de<br />

comentários da avó com um porteiro de que o neto gostaria de seguir essa<br />

carreira. Hoje estuda engenharia de produção, mas gosta “das coisas mais puras”,<br />

como mat<strong>em</strong>ática ou física. Pensa <strong>em</strong> ser professor ao terminar a faculdade. Mas<br />

os seus sonhos giram <strong>em</strong> torno de coisas fantasiosas: “vampiro, lobisom<strong>em</strong>, super<br />

herói. Tudo o que ficar próximo do real d<strong>em</strong>ais para mim é ruim. Eu não tenho<br />

sonho, eu tenho delírios. Eu fico delirando com coisas que me tir<strong>em</strong><br />

completamente da realidade. E a droga vai muito aí também”.<br />

139


O jov<strong>em</strong> diz que gostaria de compactuar da “ideologia” da mãe: “a vontade de<br />

ensinar e ajudar”. Considera que vive na fantasia. Ao se interessar por algo, inicia<br />

o processo de conhecimento, mas logo desiste. Intitula-se “engenheiro de obras<br />

inacabadas, como qualquer adicto”. Só não entende por que “com a droga a gente<br />

não cansa, a gente morre e não cansa, a gente é preso e não cansa, a gente é<br />

internado e não cansa”. Considera, finalmente, que ele poderá encontrar uma<br />

nova forma de viver. É para isso que está <strong>em</strong> tratamento.<br />

Dona Tereza não conseguiu e não consegue entender a subjetividade e as<br />

angústias de seu neto. Os sonhos da avó para o neto também são fantasiosos.<br />

Por sua vez, Regina idealiza o filho: considera que já veio pronto, fazendo tabula<br />

rasa do sofrimento que t<strong>em</strong> significado para ele a conquista da autonomia. Bruno<br />

precisaria que os avós, a mãe e, principalmente, o pai o auxiliass<strong>em</strong> a lidar com o<br />

cotidiano da vida, visando seu desenvolvimento. Desta forma, esse contexto<br />

familiar favorece o surgimento de expectativas conflitantes, uma vez que Bruno<br />

não se reconhece <strong>em</strong> muitas das descrições de sua constelação familiar. Ele trava<br />

uma luta com os seus super-heróis para deixar de se considerar super,<br />

provavelmente como uma forma de lidar com o oposto: enxergar-se pequeno,<br />

frustrado por estar distante do que os adultos almejaram e ele próprio almeja para<br />

si.<br />

4.4. Processo Educativo<br />

140


Os avós estão casados há 46 anos e mantêm uma relação de diálogo, intimidade<br />

e conflitos.<br />

Dona Tereza considera que não t<strong>em</strong> uma boa comunicação com o neto, a<br />

começar pelo fato de não aceitar a forma como ele se veste: “quando ele está de<br />

pano na cabeça ou de brinco”. Pressiona e briga com Bruno e t<strong>em</strong> vontade de<br />

levá-lo na loja para vesti-lo de acordo com os seus padrões. E o neto “devolve<br />

com agressividade”. O senhor Pedro comenta que não briga com Bruno, mas não<br />

deixa de <strong>em</strong>itir a sua opinião sobre seu comportamento.<br />

Bruno comenta que, hoje <strong>em</strong> dia, se esforça para falar mais abertamente com os<br />

avós depois que entrou <strong>em</strong> processo de recuperação. Relata ter começado a se<br />

afastar deles, a “fechar o diálogo”, quando a avó queria comandar o seu jeito de<br />

vestir e de se apresentar. Explica que a sua forma de vestir reflete seus<br />

sentimentos e denuncia o que lhe vai na alma. Usar o lenço na cabeça é<br />

decodificado como drogado pelo pai, por ex<strong>em</strong>plo. O filho rebate dizendo que<br />

“coisa de drogado é usar drogas”. “De acordo com o que eu estou vestindo, o<br />

meu comportamento muda, meu vocabulário muda, meu comportamento muda, eu<br />

fecho o pacote completo s<strong>em</strong>pre”. Portanto, passou a classificar como besteira<br />

“tudo” o que a avó falava, considerando-o implicância. Hoje <strong>em</strong> dia, busca filtrar e<br />

consegue “não explodir”. Mas também há diálogo com os avós. Respeita seu avô<br />

e gosta de conversar com ele.<br />

141


Na entrevista, o t<strong>em</strong>a das vestimentas tomou corpo. Bruno explica a discriminação<br />

que os seus familiares estabelec<strong>em</strong> a partir da forma como se veste. Diz que<br />

estão preocupados com a aparência e o estigmatizam como drogado, ao invés de<br />

julgar<strong>em</strong> seus atos. Ele se sente aviltado, o que é compreensível, pois de acordo<br />

com sua lógica “fecha o pacote completo”, uma vez que seu jeito de vestir<br />

explicita, também, o seu momento com relação ao uso de drogas. A forma como a<br />

família expressa a angústia de uma possível recaída de Bruno é reprimindo o seu<br />

estilo, o que definitivamente não o auxilia. Dona Tereza, por ex<strong>em</strong>plo, insiste que<br />

“você podia não estar num dia bom [porque sentia necessidade de usar drogas],<br />

mas direitinho [usando as roupas adequadas]”. Bruno sugere que o grupo procure<br />

fazer uma terapia de família <strong>em</strong> instituições que lidam com a questão do uso<br />

abusivo de drogas.<br />

A forma autoritária de dona Tereza educar Bruno teve, como troco, rebeldia.<br />

Conforme visto <strong>em</strong> Maturana (1999), o modo de viver <strong>em</strong> família provém de climas<br />

<strong>em</strong>ocionais diversos. No caso da família Devanear, dona Tereza rejeita a forma<br />

como o neto se percebe, gerando raiva. Ora, a qualidade de recepção dos<br />

ensinamentos da avó deriva desse filtro <strong>em</strong>ocional. Está claro que eles passaram<br />

a ser questionados por Bruno. Inclusive, parte de seu comportamento transgressor<br />

possivelmente se apóia no autoritarismo com que foi educado por ela, durante<br />

muitos anos. Ao contrário, o avô aparece como uma figura mais benévola e<br />

compreensiva, mesmo tendo dificuldades para entender a forma de agir de seu<br />

neto. Por isso, Bruno introjetou a lei simbólica a partir de comandos de seu avô.<br />

Se, por um lado, Bruno transgredia e se “permitia fazer pequenos exageros ou<br />

142


fazer omissão de pequenas coisas”, por outro, insistia <strong>em</strong> ser aceito apesar, ou<br />

por causa, de seus atos. A reação de seu avô, por ex<strong>em</strong>plo, era de não<br />

reconhecê-lo como neto, dizendo: “Eu me arrependo amargamente do dia que eu<br />

peguei você para criar”. Essa fala do avô reforça a insegurança de Bruno,<br />

afetando sua auto-estima. Rejeitado pelo avô, para a casa de qu<strong>em</strong> ele seria<br />

mandado?<br />

O avô, que t<strong>em</strong> uma presença marcante na vida de Bruno, traz-lhe seu estilo<br />

como a única figura masculina adulta com qu<strong>em</strong> lidou durante a infância e início<br />

da adolescência. Márcio é visto como infantilizado ou como pai ausente por Bruno.<br />

Regina considera que t<strong>em</strong> diálogo fácil com o filho, s<strong>em</strong>pre pronto para uma<br />

prosa. Ela comenta que seu atual companheiro e seu outro filho, fruto do segundo<br />

casamento, gostam mais de ficar “na deles” enquanto Bruno gosta de socializar,<br />

promovendo o encontro dos quatro.<br />

O jov<strong>em</strong> reage dizendo que t<strong>em</strong> intimidade e diálogo aberto com a mãe, desde<br />

que não estejam falando sobre “falta de limites”. Eles têm interesses comuns: “a<br />

minha mãe, a gente fica mais falando de viag<strong>em</strong>. A gente viaja, eu e a minha mãe,<br />

a gente viaja na astrologia”. Mesmo considerando-se querido, Bruno discorre<br />

sobre a sua mágoa por não ter sido criado por seus pais e como a transforma <strong>em</strong><br />

rebeldia contra a autoridade de ambos. Cobra dos avós o cerceamento de sua<br />

autonomia.<br />

143


Revolvendo o baú do passado, buscando os fios que envolv<strong>em</strong> a família, Dona<br />

Tereza relata que sua mãe morreu quando tinha um ano e que seu pai não foi<br />

modelo de comportamento porque não trabalhava e gostava só de passear. Ela foi<br />

criada pelos irmãos. Já o senhor Pedro comenta que seu pai, que era italiano, foi<br />

um modelo para sua vida porque era trabalhador, honesto e muito exigente com<br />

os filhos. Sobre sua mãe, que faleceu recent<strong>em</strong>ente, só consegue dizer: “mãe não<br />

t<strong>em</strong> defeito. Mãe é uma dádiva. Mãe é mãe”.<br />

Regina explica que sua mãe morreu quando tinha 7 anos, porém pessoas que a<br />

conheceram vê<strong>em</strong> s<strong>em</strong>elhanças entre as duas. O pai foi um modelo de<br />

comportamento porque era <strong>em</strong>preendedor, inteligente e dedicado à família.<br />

Bruno admira alguns atributos da mãe, como o dom artístico, a capacidade de<br />

argumentação e o idealismo. Mas cobra por ela ter se mantido afastada dele por<br />

um t<strong>em</strong>po significativo para a construção da sua identidade. Considera que seu<br />

pai t<strong>em</strong> muita facilidade de se relacionar e “t<strong>em</strong> porte”, de tal forma que “às vezes<br />

parece maior do que ele é”. Ao longo da entrevista, Bruno se referiu às<br />

impressões negativas que t<strong>em</strong> de seu pai: imaturo, egoísta, explorador dos avós.<br />

Mesmo quando descreve atributos positivos dos pais, Bruno não os vê como<br />

modelos de comportamento. A ausência deles num momento de grande<br />

importância <strong>em</strong> sua vida constitui uma lacuna sentida e verbalizada por ele.<br />

A vida familiar se faz também de compartilhamento de atividades e afazeres. Dona<br />

Tereza assim resume suas considerações sobre as responsabilidades e os<br />

144


deveres <strong>em</strong> sua casa: “Para mim todas [as responsabilidades] para eles [os<br />

homens da casa] nada”. O senhor Pedro, comodamente, considera uma virtude<br />

essa forma de dona Tereza se comportar e pondera que “ela habitua a gente a<br />

isso”, inclusive interferindo na roupa que ele irá vestir. Dona Tereza não cogita<br />

modificar esse comportamento, uma vez que acredita ser sua a obrigação de<br />

cumprir as tarefas domésticas. O senhor Pedro comenta que na sua família de<br />

orig<strong>em</strong>, a autoridade era da avó, a matriarca, e na sua família nuclear é a mulher<br />

que manda <strong>em</strong> casa.<br />

Regina apresenta dois modelos de educação para as responsabilidades: uma<br />

negociação entre as pessoas que conviv<strong>em</strong> na casa para se chegar a um<br />

consenso na distribuição das tarefas domésticas, ou fazer as tarefas pelos outros.<br />

Considera a primeira a forma correta de educar nos dias atuais, porque visa a uma<br />

quebra do paradigma que prega a existência de deveres diferentes para homens e<br />

mulheres. Entretanto, exercita a segunda, dizendo: “tenho um pouco essa<br />

tendência assim de poderosa”. Isto significa que se adianta e faz as tarefas pelos<br />

outros porque considera que irá executá-las melhor. No entanto, t<strong>em</strong> conflitos com<br />

essa forma de agir e tenta modificar tal postura, tão questionada pela sua geração.<br />

Regina está verbalizando que nela, apesar das mudanças culturais, prevalece,<br />

internalizado, o processo de socialização primária sobre os papéis de gênero<br />

(Nicolaci-da-Costa, 1985).<br />

Regina impõe certas regras <strong>em</strong> sua casa, como não usar droga, não fazer sexo<br />

com menores que, quando infringidas por Bruno, “é um quebra pau”. Ele afrontava<br />

145


esses limites quando fumava sentado no portão da casa, por ex<strong>em</strong>plo. Regina<br />

considera que se não fosse uma figura de autoridade e estabelecesse limites para<br />

o filho, eles seriam grandes amigos.<br />

O jov<strong>em</strong> comenta, concordando com a avó, que as primas de sua idade, até hoje<br />

são criadas para servir, ainda quando trabalham fora de casa. Entende, apesar de<br />

não agir assim, a não ser agora que t<strong>em</strong> sua própria moradia, que viver <strong>em</strong><br />

comunidade significa dividir. Bruno considera confortável a situação de ser<br />

servido que aprendeu <strong>em</strong> casa dos avós e posteriormente da mãe. Cita um<br />

ex<strong>em</strong>plo: “Eu estou com uma namorada de 15 anos, se ela tivesse 25, assim, eu<br />

casava, porque ela faz tudo direitinho, bonitinho, sabe até costurar”. Reclama da<br />

forma autoritária de sua avó, porém aceita s<strong>em</strong>pre de bom grado ser servido por<br />

ela, “porque ela quer assim”. Entretanto, participa dos afazeres domésticos na<br />

casa de Mariana ajudando, inclusive, a cuidar dos filhos dela. Ultimamente t<strong>em</strong><br />

sido mais difícil tanto “ficar limpo quanto estar inserido numa atividade diária que<br />

parece que me ajuda a estar <strong>em</strong> recuperação”.<br />

O rapaz comenta que vive num matriarcado junto aos avós já que “(na casa dos<br />

avós) a gente conversa, conversa, conversa, no final você (a avó) faz o que quer”.<br />

A avó pensa diferente: o neto age s<strong>em</strong>pre com o intuito de agredir as pessoas. Ele<br />

concorda. Bruno considera que precisa encontrar uma forma de conseguir aceitar<br />

os limites “s<strong>em</strong> querer matar os outros de facada”. Não suporta ser frustrado:<br />

explode. Torna a comentar que dava alterações <strong>em</strong> casa dos avós porque não<br />

146


aceitava os limites impostos por Dona Tereza. Regina acrescenta: ele “s<strong>em</strong>pre<br />

quis fazer o que se dizia para não fazer”.<br />

Na casa da mãe todos têm mais voz, porque já eram adultos quando foram morar<br />

juntos. Em contraposição à avó, ela não toma decisões pelos integrantes da casa<br />

porque “não quer pegar o ônus de assumir a responsabilidade”, diz Bruno. Ela<br />

escuta os argumentos da família e geralmente muda de opinião.<br />

Ao descrever detalhadamente as atribuições da mulher e do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua<br />

geração dos anos 50 – cabendo às mulheres a autoridade na esfera privada e ao<br />

hom<strong>em</strong> na pública – Dona Tereza revela uma postura arrogante atrás do modelo<br />

hierárquico. Ela e Regina estão convencidas de que executam as tarefas melhor<br />

do que ninguém, desconsiderando a competência dos homens e promovendo,<br />

assim, uma acomodação, b<strong>em</strong> vinda para eles.<br />

4.5. Considerações finais<br />

Essa família devaneia na percepção que t<strong>em</strong> de Bruno e Márcio, configurando<br />

expectativas que se distanciam da subjetividade de cada um deles. Os avós<br />

perceb<strong>em</strong> seu filho Márcio como independente, mas sustentam-no e cumpr<strong>em</strong><br />

tarefas da responsabilidade dele. Bruno t<strong>em</strong> uma visão oposta à dos avós e mais<br />

realista do estilo de vida de seu pai. Os avós perceb<strong>em</strong> o neto de uma maneira<br />

frontalmente oposta à forma como Bruno se apresenta para a vida. Regina,<br />

companheira de “viagens” do filho, devaneia, considerando que ele “já veio<br />

pronto”. E Bruno afasta-se da realidade, buscando abrigo nos seus super-heróis.<br />

147


Seu estilo de vida, sua subjetividade <strong>em</strong> construção, negados pelos avós e<br />

enaltecidos pela mãe, auxiliam a tornar o seu caminho árduo e complexo. No<br />

mundo fantástico dos super-heróis e também das drogas, ele se refugia e se recria,<br />

<strong>em</strong> conversas solitárias. Busca sentidos para si, ainda enredado na malha<br />

familiar dos diversos olhares que, num certo sentido, lhe cobram posturas com as<br />

quais não se identifica, ou busca corresponder para ganhar o prêmio maior que é<br />

a aceitação de si por parte do outro.<br />

O estilo de criação autoritário é um aliado da expectativa conflitante de realização<br />

pessoal porque suas práticas educativas visam moldar o sujeito da forma que o<br />

adulto considera correta (Baumrind, 1966). Em decorrência, a percepção que<br />

Bruno t<strong>em</strong> de si, do seu eu, é rejeitada por seus avós, o que lhe provoca muita<br />

raiva, manifestada por meio de acessos de irritação, principalmente com a avó,<br />

figura central na sua criação.<br />

A relação de Bruno com os avós é complexa: foi adotado por eles, sendo ambos<br />

os pais vivos. Aliás, com o pai inicialmente morando na mesma casa. O senhor<br />

Pedro foi um modelo masculino para a formação identitária de Bruno, porém se<br />

escondia sob os comandos de sua mulher: o mundo privado pertencia a ela. Além<br />

disso, Bruno reagia à rejeição de seu avô cometendo pequenos delitos que, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po, desafiavam e clamavam pela sua aceitação.<br />

Regina, figura relativamente recente na vida familiar do filho, prima pela<br />

contradição na prática educacional: confunde o ser amiga de Bruno com a sua<br />

148


posição de autoridade na relação com ele. Há um agravante: o filho se rebela<br />

porque não a aceita no lugar de autoridade. Os valores familiares são cozinhados<br />

nesse clima <strong>em</strong>ocional de pouca aceitação mútua, influenciando a deficiente<br />

assimilação dos mesmos.<br />

Sob a égide da autoridade dos avós, Bruno passou a infância e parte da<br />

adolescência num espaço disciplinar fechado, s<strong>em</strong>elhante a um Panóptico<br />

(Foucault, 2003, 163), tendo os seus movimentos controlados pelo poder<br />

hierárquico contínuo dos avós. Cerceado <strong>em</strong> sua autonomia, com um modelo de<br />

pai infantilizado, Bruno cresceu num ambiente de excesso de valores do ter como<br />

garantia para a sua permanência na dulcíssima prisão 18<br />

da casa dos avós.<br />

Construiu castelos de figuras míticas e, com a entrada dos pais no circuito,<br />

explodiu <strong>em</strong> indignação. Praticou atos que “fizeram esse mundo acordar, para que<br />

onde os pais estivess<strong>em</strong>, soubess<strong>em</strong> que Bruno rasteja, pedindo para eles o<br />

adotar<strong>em</strong>” 19 .<br />

A organização hierárquica nessa família se compõe de: os avós paternos na<br />

geração dos pais, Márcio, o pai, na geração dos filhos, e Regina, que busca se<br />

manter no papel de mãe de Bruno. Não há coerência entre o lugar que cada um<br />

dos m<strong>em</strong>bros ocupa na família Devanear com os valores que pregam.<br />

18 “O Quereres”, 1984, música de Caetano Veloso.<br />

19 A partir da letra de “Um Favor”, 1972, de Lupicínio Rodrigues.<br />

149


Os avós consideram a educação um valor importante, mas lograram obter pouco<br />

sucesso com o filho e o neto, criados como irmãos. Bruno não teve <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> se<br />

mirar. Além disso, a educação baseou-se, de uma forma geral, no autoritarismo<br />

dos avós e na rebeldia do neto. Regina entra na vida de Bruno quase como uma<br />

fonte de socialização secundária. Mas todos os adultos são cúmplices,<br />

principalmente no devanear. Não conseguiram compartilhar para poder dividir,<br />

princípio caro a Regina, que ela t<strong>em</strong> dificuldades <strong>em</strong> cumprir e frente ao qual ela<br />

própria se atrapalha. A educação ativa e passiva de Bruno não lhe forneceu<br />

subsídios para a absorção dos valores familiares teoricamente estabelecidos e<br />

queridos.<br />

O princípio da honestidade, caro à mãe e ensinado pelo avô, é apreendido por<br />

Bruno <strong>em</strong> meio a pequenas transgressões e mentiras. Essa é, entre outras, uma<br />

maneira de d<strong>em</strong>onstrar a não aceitação do estilo de educação dos avós. As<br />

transgressões visam a se fazer notar pelos seus pais, assim como a sua forma<br />

sedutora de se portar objetiva angariar a atenção das pessoas: desta forma se<br />

assegura de que não está só. Serve-se das mentiras para se vangloriar e parecer<br />

um outro ser, aos olhos do outro.<br />

O vínculo de envolvimento, afeto e apoio dos pais com seus filhos é pré-condição<br />

para a identificação com os valores e com os modelos de comportamento que dão<br />

sustentação aos filhos (Brook et al, 1990). A família Devanear não propiciou um<br />

estilo de vida e de crescimento saudável. O ambiente cotidiano esteve s<strong>em</strong>pre<br />

carregado de mensagens contraditórias, exigentes e imperativas. A percepção<br />

150


equivocada de seus m<strong>em</strong>bros quanto ao desenvolvimento e à autonomia de cada<br />

um auxiliou a construção de modelos infantilizados, s<strong>em</strong> sustentação. Estimularam<br />

a dependência <strong>em</strong>ocional através das gerações, já que a busca do protagonismo<br />

é entendida como uma quebra, quiçá a destruição da família. Por tudo isso,<br />

concluo que os valores familiares não foram ensinados e praticados de forma<br />

coerente e consistente pela família Devanear, o que contribuiu para o uso abusivo<br />

de drogas numa pessoa da terceira geração.<br />

151


CONCLUSÃO<br />

Empreendi nesse estudo uma análise das interações intrafamiliares, devidamente<br />

contextualizadas <strong>em</strong> seu momento sócio-histórico referente à relação entre os<br />

valores familiares e o uso abusivo de drogas. Procurei estabelecer os elos entre<br />

os m<strong>em</strong>bros das famílias <strong>em</strong> termos de divisão de papéis, poder e autoridade, a<br />

partir das relações de parentesco e aliança, gênero e idade (Bilac, 1995),<br />

privilegiando as três categorias que deram corpo a essa investigação. Nesse<br />

processo de bordadura, preocupei-me <strong>em</strong> correlacionar o material <strong>em</strong>pírico com o<br />

teórico para descrever, analisar e concluir sobre as questões que deram orig<strong>em</strong> à<br />

tese aqui defendida.<br />

O uso abusivo de drogas, de acordo com as falas dos m<strong>em</strong>bros das famílias<br />

desse estudo, acompanha as representações sociais do uso de substâncias da<br />

década de 60 e 70 da geração dos pais e dos últimos vinte anos, que compõ<strong>em</strong> a<br />

geração dos filhos, com diferenças marcantes entre elas. Velho (1993, 1997),<br />

Bucher (1992) e Birman (1997) apontam para a ideologia de reformar o mundo da<br />

geração dos pais e Plastino (2003) avalia a combinação dos ideais individualistas,<br />

narcisistas com o uso abusivo de drogas dos jovens, na atualidade.<br />

Todos os usuários cont<strong>em</strong>plados neste estudo apresentam probl<strong>em</strong>as com a lei<br />

externa e com sua introjeção sob a forma de lei simbólica. Bucher (1992) explica,<br />

com propriedade, que essa transformação é fundamental para o convívio <strong>em</strong><br />

152


sociedade. A falta de limites eficazes e de figuras de autoridade efetivas nessas<br />

famílias muito contribuiu para as questões aqui apresentadas.<br />

A idéia de que a família é plasmada por laços consangüíneos e de afinidade<br />

perpassou as narrativas. Lévi-Strauss (1981) conceitua esta instituição de forma<br />

s<strong>em</strong>elhante, ao retirar o foco da família biológica, ampliando-o para o sist<strong>em</strong>a de<br />

parentesco como um todo. Os laços de parentesco transformam-se <strong>em</strong> fato social<br />

subsumindo a realidade natural, uma vez que são duas as unidades familiares que<br />

se comunicam através do casamento, numa relação de troca e de reciprocidade.<br />

Essa forma de conceituar a família abre espaço para o seu entendimento na<br />

intimidade da rede social pessoal (Sluzki, 1997), foco desse estudo. Essa rede é<br />

composta por vínculos com as pessoas significativas para o sujeito e contribui<br />

para a formação de sua auto-imag<strong>em</strong>. Ora, a família é a célula primeira de<br />

socialização, um microcosmo da sociedade onde se constro<strong>em</strong> os processos<br />

identificatórios (Minayo et al, 1999). É <strong>em</strong> seu seio que <strong>em</strong>erge o sujeito, por isso,<br />

é a partir dela que inicio a minha pesquisa.<br />

Berger e Luckmann (2002) constitu<strong>em</strong> referência indispensável para o estudo da<br />

família porque a traduz<strong>em</strong> como fonte de socialização primária do sujeito. Ela<br />

constitui a base inicial e de influência permanente para a constituição identitária de<br />

seus m<strong>em</strong>bros a partir da internalização do sist<strong>em</strong>a simbólico de seus agentes<br />

socializadores, conforme se depreende ao longo dessa narrativa.<br />

153


A família é descrita pelos entrevistados como: base, esteio, porto seguro; lugar do<br />

exercício de: amor, apoio, união, compreensão e conflitos; o locus de formação da<br />

identidade de seus m<strong>em</strong>bros. Essas diversas visões conformam a definição de<br />

Minayo e colaboradores (1999) sobre a versatilidade da família, conforme<br />

enunciada nas Categorias Centrais de Análise deste estudo.<br />

A formação familiar é diversa: a família Zoar é gerida somente pela mãe, a Mimar<br />

se constitui de pais que se separaram, tendo um deles se recasado, a Ciumeira,<br />

de pais casados somente uma vez que moram com os filhos e a Devanear se<br />

ass<strong>em</strong>elha à Mimar <strong>em</strong> sua forma de organização.<br />

As famílias Zoar e Mimar revelam claramente um desmapeamento, noção<br />

desenvolvida por <strong>Figueira</strong> (1981, 1985, 1987), <strong>em</strong> que formas atuais e visíveis da<br />

organização familiar interag<strong>em</strong> de uma maneira conflitante com as historicamente<br />

mais antigas, invisíveis, porém não abandonadas no decurso das mudanças<br />

sociais. Nicolaci-da-Costa (1985) especifica os conflitos decorrentes da noção de<br />

desmapeamento na socialização primária e secundária do sujeito, sublinhando<br />

que eles vêm à luz no momento <strong>em</strong> que o sujeito se torna um reprodutor da ord<strong>em</strong><br />

social, ao se relacionar com o outro a partir de posições vividas e observadas <strong>em</strong><br />

seus agentes socializadores. Entretanto, não é isso que se depreende na análise<br />

das duas famílias apontadas, onde uma das mães sonha com o casamento<br />

tradicional <strong>em</strong> decorrência dos probl<strong>em</strong>as que t<strong>em</strong> com os seus segundo e<br />

terceiro filhos e a outra relata que teria sido melhor a manutenção do primeiro<br />

casamento, a despeito da péssima relação que tinha com o ex-marido. Porém<br />

154


esse fenômeno ocorre na família Devanear, no momento <strong>em</strong> que a mãe discorre<br />

sobre os seus referenciais de educação de conotação hierárquica ou igualitária. É<br />

no exercício do papel de mãe, inserida na dinâmica desta família, que se revela o<br />

conflito entre os dois modelos.<br />

Os padrões de comportamento e de relações relatados nesse estudo não<br />

promov<strong>em</strong> o uso de drogas por parte dos m<strong>em</strong>bros das famílias descritas e n<strong>em</strong><br />

de qualquer outra família. Esse é um pensamento simplista e linear da relação<br />

entre causa e conseqüência. O objetivo desse estudo é mostrar como essas<br />

vivências são tecidas no cotidiano de cada família, geração após geração, e<br />

chamar a atenção para a força de determinados comportamentos, atitudes e<br />

práticas no interior de culturas familiares: eles dão forma aos seus valores,<br />

influenciando o uso de drogas por parte de alguns de seus m<strong>em</strong>bros. Os valores<br />

familiares não são uma entidade existente fora dos sujeitos e de suas relações<br />

primárias. Alguns são decodificados a partir da cultura e outros são reinventados<br />

pela família, num processo permanente de co-construção.<br />

A passag<strong>em</strong> dos valores está ancorada nas três categorias relatadas nesse<br />

estudo: valores familiares, conflito entre as gerações e processo educativo. As<br />

hipóteses referentes a: organização da hierarquia, infantilização e expectativas,<br />

encontram-se na categoria “conflito entre gerações” e as hipóteses concernentes<br />

a: modelo, responsabilidade e limites, na categoria “processo educativo”. Os<br />

valores familiares e a noção de família situam-se na primeira categoria.<br />

155


Conflito entre gerações<br />

A hierarquia das famílias apresenta-se, ao mesmo t<strong>em</strong>po, diversa e s<strong>em</strong>elhante.<br />

Na maioria delas, a organização familiar da geração dos avós para os pais é<br />

<strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente hierárquica, no que tange à criação dos filhos, com os papéis de<br />

gênero definidos como pai-provedor e mãe-zelosa, conforme descrito por <strong>Figueira</strong><br />

(1987). Essa forma de criação onde a mulher t<strong>em</strong> o predomínio, de acordo com<br />

um modelo matriarcal, é passada através das gerações. As avós des<strong>em</strong>penham<br />

um papel fundamental na educação de seus netos que se pauta, de uma forma<br />

geral, <strong>em</strong> mimos e superproteção da infância à adolescência, devido a um<br />

conjunto de fatores tais como: os pais trabalhar<strong>em</strong> <strong>em</strong> regime integral, as<br />

dificuldades <strong>em</strong>ocionais das famílias a partir da separação dos casais, os conflitos<br />

familiares não negociados, entre outros.<br />

Em decorrência disso, há uma inversão hierárquica na maioria das famílias: as<br />

avós ocupam o lugar dos pais, que desc<strong>em</strong> para a posição dos filhos sendo<br />

desqualificados, <strong>em</strong> inúmeras situações, no papel de pais. Numa dessas famílias<br />

configurou-se o que se denomina criança parental (Andolfi, 1996, 55), ou seja, o<br />

filho mais velho assumiu o posto que caberia a seu pai, do lado da mãe. Em outra,<br />

ao invés da modificação da estrutura hierárquica, os filhos sofreram agressões<br />

físicas e psicológicas e, portanto, muito pouco desfrutaram de uma relação<br />

saudável com os pais.<br />

<strong>Figueira</strong> (1987) chama a atenção para a formação dos ideais igualitários nas<br />

famílias na segunda metade do século passado <strong>em</strong> diante, que contribui para a<br />

156


transformação da família extensa <strong>em</strong> nuclear. Esses ideais revelam-se na<br />

segunda geração quando os pais privilegiam uma forma d<strong>em</strong>ocrática de<br />

convivência, porém não s<strong>em</strong> conflitos intensos intra e inter-relacionais que,<br />

inúmeras vezes, barram a sua consecução. Cabe ressaltar que nos grupos aqui<br />

estudados prevalece uma configuração de família extensa, onde as avós cuidam<br />

dos e educam os netos, algumas vezes <strong>em</strong> conjunto com os pais, e são mais do<br />

que “simples” rede de apoio para os seus filhos.<br />

Gilberto Velho (1999c) concebe uma dialética tensa entre os ideais hierarquizantes<br />

e os igualitários nos segmentos sociais e culturais. Essa mesma dinâmica se<br />

mostra nesse estudo porque a organização da hierarquia descrita é construída<br />

com conflitos, tensões e sofrimento, principalmente entre a primeira e a segunda<br />

geração.<br />

As famílias primam por vínculos dependentes que barram o processo de<br />

protagonismo e o <strong>em</strong>preendedorismo de seus m<strong>em</strong>bros. A dependência<br />

<strong>em</strong>ocional é construída sob a forma de: (a) mimos e paparicos; (b) suprimento, <strong>em</strong><br />

d<strong>em</strong>asia, dos desejos dos filhos e netos; (c) críticas e humilhações incorporadas à<br />

auto-estima dos sujeitos. Essas três formas favorec<strong>em</strong> o descumprimento das<br />

responsabilidades condizentes com o lugar na organização da hierarquia familiar<br />

de cada um dos participantes. Esses modos de relacionamento configuram uma<br />

parada no ciclo vital, salvo-conduto para a manutenção do amálgama familiar,<br />

garantia para o não enfrentamento das dificuldades e conflitos intra-geracionais e<br />

da solidão da “casa vazia” de filhos e netos, entre outros.<br />

157


Por outro lado, algumas famílias comentam sobre a dependência saudável que se<br />

traduz nos movimentos de solidariedade familiar possíveis através da confiança e<br />

do laço afetivo construído ao longo do t<strong>em</strong>po.<br />

É digna de nota a esperança que a maioria das famílias nutre pela mudança no<br />

quadro de dependência entre os seus m<strong>em</strong>bros.<br />

Somente numa família, um avô relata sua satisfação com relação ao cumprimento<br />

dos projetos por parte do filho. Nesse caso, a prole foi criada com metas possíveis<br />

de ser<strong>em</strong> cumpridas, já que adequadas à consecução. Os adultos das famílias<br />

estudadas nutr<strong>em</strong> sonhos para seus filhos e netos que são incompatíveis com o<br />

nível de maturidade deles. Alguns também desejam que sua prole realize os<br />

sonhos que não conseguiram realizar na vida. Por tudo isso, as expectativas dos<br />

avós e pais estão <strong>em</strong> conflito com as dos filhos e netos.<br />

Gilberto Velho (1999c, 1999d) evidencia que há uma imbricação entre a<br />

construção do projeto de vida do sujeito, o seu momento sócio-cultural e os<br />

processos históricos de longa duração. Os achados deste estudo ampliam a<br />

noção de Velho ao revelar<strong>em</strong> que a construção e execução de projetos pessoais<br />

precisam se adequar ao grau de maturidade de seus m<strong>em</strong>bros. O<br />

amadurecimento, por sua vez, está vinculado, nos seus primórdios, à maneira<br />

como a criança, e, posteriormente, o adolescente, são legitimados pelos adultos<br />

significativos na forma como se perceb<strong>em</strong> nessa interação. A aceitação de si, de<br />

158


seu eu pelo outro constitui o primeiro alimento <strong>em</strong>ocional para a formação de<br />

sujeitos saudáveis, com auto-imag<strong>em</strong> adequada e auto-estima <strong>em</strong> harmonia,<br />

conforme salientam Maturana (1999) e também Watzlawick e colaboradores<br />

(1967). Filhos e netos imaturos <strong>em</strong>ocionalmente são rejeitados pelos pais e avós<br />

na forma como se perceb<strong>em</strong>, provocando raiva e ressentimento (Schenker, 1993).<br />

Aliás, a rejeição é um dos elos que compõ<strong>em</strong> a dependência <strong>em</strong>ocional. Sujeitos<br />

criados para a autonomia têm como base a aceitação de si pelos outros que lhes<br />

são significativos e constitutivos.<br />

Nas famílias estudadas observa-se que, <strong>em</strong> geral, não se criaram condições de<br />

possibilidade para que seus m<strong>em</strong>bros desenvolvess<strong>em</strong> projetos para a sua vida.<br />

Mas há esperança de reversão desse quadro, expressa pelos entrevistados,<br />

<strong>em</strong>bora a complexidade estrutural das dificuldades <strong>em</strong>ocionais que enfrentam<br />

indique a necessidade de um trabalho terapêutico que favoreça o crescimento dos<br />

diversos sist<strong>em</strong>as familiares.<br />

A sociedade atual, cada vez mais, cobra uma definição do que se quer ser,<br />

conforme alerta Gilberto Velho (1999a). Porém, o mundo cont<strong>em</strong>porâneo exige<br />

uma formação mais apurada e competitiva do que no passado. A postura passiva<br />

ou confusa por parte dos filhos e netos, concernente ao mundo do trabalho, um<br />

reflexo de sua imaturidade e dependência <strong>em</strong>ocional, é fonte de preocupação para<br />

avós e pais.<br />

159


A divisão dos papéis e as obrigações entre pais e filhos são objeto de constantes<br />

negociações na atualidade. Pela falta de padrões d<strong>em</strong>arcados, essas negociações<br />

implicam opções por novos estilos de vida. Se nas sociedades tradicionais o<br />

sujeito, de uma forma geral, não precisava escolher, tampouco conhecia a<br />

angústia de ter que escolher, um fenômeno da cont<strong>em</strong>poraneidade. Giddens<br />

(1993) traz uma reflexão interessante ao considerar que a exposição da<br />

subjetividade à fluidez de suas escolhas abre espaço para o comportamento<br />

compulsivo, que representa a perda da autonomia, da capacidade de refletir e<br />

escolher, pela falência de controle sobre o eu. Esse comportamento configura um<br />

contraponto à busca de <strong>em</strong>ancipação na cont<strong>em</strong>poraneidade, portanto, de um<br />

projeto igualitário de família, já que o sujeito compulsivo estabelece uma relação<br />

de dependência do outro, buscando, com isso, manter a sensação de segurança<br />

ontológica. Cabe reforçar a observação sobre a angústia que provoca a escolha<br />

profissional e de vida pessoal para os usuários desse estudo. Acresce-se a isso, a<br />

dificuldade crônica e recursiva que o sist<strong>em</strong>a familiar t<strong>em</strong> de promover um<br />

processo de diferenciação e de <strong>em</strong>ancipação de seus m<strong>em</strong>bros.<br />

Processo educativo<br />

Maturana (1999) enfatiza que as possibilidades de recepção dos ensinamentos<br />

familiares derivam da forma como os diversos climas <strong>em</strong>ocionais são vividos entre<br />

os m<strong>em</strong>bros da família. Aprende-se de forma congruente com o que se vivencia<br />

dentro de casa, através dos vínculos que se estabelec<strong>em</strong> entre os m<strong>em</strong>bros da<br />

família.<br />

160


Os vínculos <strong>em</strong>ocionais tecidos nas relações primárias constitu<strong>em</strong> uma referência<br />

primordial para a transmissão e o aprendizado dos valores. Nas famílias<br />

estudadas predominam dois tipos de comunicação: de um lado, os conflitos,<br />

mesmo que veladamente, <strong>em</strong> alguns casos. Com pouca possibilidade de<br />

negociação, o que <strong>em</strong>erge são relações marcadas por dependência <strong>em</strong>ocional.<br />

Do outro lado, são relevantes os vínculos de apego. Em vários casos, a relação de<br />

amor entre os avós e netos não t<strong>em</strong> facilitado a construção da autonomia, seja<br />

porque os avós estão deslocados de seu lugar na hierarquia, seja por causa da<br />

interferência de climas <strong>em</strong>ocionais candentes, exaltados e irrefletidos, entre a<br />

primeira e a segunda geração.<br />

Os vínculos apresentados pelas famílias estudadas não se têm modificado, de<br />

forma geral, ao longo do ciclo vital, resultando <strong>em</strong> relações marcadas antes pelo<br />

apego do que pela construção da confiança mútua. Essa confiança é o ingrediente<br />

básico para que o sujeito possa pertencer a seu núcleo primário e, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, ser autônomo, como enfatizam Liddle e Schwartz (2002). A identificação<br />

com os valores dos adultos significativos baseia-se <strong>em</strong> referências de afeto e de<br />

autoridade, de acordo com Brook e colaboradores (1990). Porém, nas famílias<br />

estudadas, não foi essa a qualidade de entrelaçamento encontrada.<br />

Vínculos saudáveis “sustentam” a identificação de filhos com seus pais e avós,<br />

favorecendo a aquisição dos valores e aumentando a probabilidade de tê-los<br />

como modelos de comportamento (Brook e colaboradores, 1990). É b<strong>em</strong> verdade<br />

que a questão de ter pais e avós como modelos de comportamento para as<br />

161


gerações seguintes é complexa. De forma geral, os progenitores que não<br />

primaram por um comportamento saudável e não desenvolveram vínculos de boa<br />

qualidade com os seus filhos constitu<strong>em</strong>, ainda assim, modelos de<br />

comportamento, conforme apontam Nolte e Harris (1998). Esses autores<br />

sublinham que os pais são o primeiro modelo influente para seus filhos, que<br />

absorv<strong>em</strong> quaisquer valores transmitidos por eles no cotidiano.<br />

A adicção a drogas por parte do pai da família Mimar, desde a tenra infância de<br />

sua prole, influenciou o comportamento de seus dois filhos homens de tal forma<br />

que fez com que o caçula se veja às voltas com a dependência. A congruência<br />

dessa família, que se manifesta no cotidiano de suas vivências, revela<br />

contradições. Em primeiro lugar, a adicção do pai foi inconscient<strong>em</strong>ente<br />

acobertada pela mãe e ex-mulher <strong>em</strong> detrimento de sua exigência de que o caçula<br />

interrompa o uso abusivo das drogas. Segundo, essa mesma mãe usa seu estado<br />

precário de saúde para induzir o filho a sair da dependência, <strong>em</strong> lugar de estimular<br />

seu desenvolvimento autônomo. De certa forma, tudo se encaixa: o pai é mimado<br />

e infantilizado pelas mulheres e o caçula não é instado a refletir sobre a sua<br />

adicção, para dela se liberar.<br />

A qualidade do vínculo influencia o estilo de criação que, por sua vez, reflete os<br />

valores familiares. As famílias aqui analisadas, de uma forma geral, educam seus<br />

filhos através de uma combinação de um estilo autoritário e permissivo, ou utilizam<br />

cada um destes estilos separadamente.<br />

162


Apóio minhas conclusões sobre os três estilos de educação na classificação de<br />

Baumrind (1966). O estilo de educação autoritária cerceia a liberdade e a<br />

autonomia dos m<strong>em</strong>bros da família porque a dinâmica da sua vida pessoal e<br />

familiar deve ser vivida de acordo com os preceitos determinados por aquele que<br />

é a figura de autoridade na casa. O estilo de educação permissivo desloca o<br />

des<strong>em</strong>penho da autoridade para a geração seguinte, o que não contribui para<br />

educar os filhos para o cumprimento de responsabilidades, deveres e limites. Os<br />

dois referenciais de criação não auxiliam a promover o crescimento, a autonomia e<br />

o protagonismo do grupo familiar por não instituír<strong>em</strong> uma combinação de<br />

comportamentos responsivos, baseados no afeto, na compreensão e no apoio; e<br />

d<strong>em</strong>andantes, com o estabelecimento de normas claras, monitoramento e<br />

supervisão ativa das atividades dos filhos.<br />

É sabido que viv<strong>em</strong>os um t<strong>em</strong>po de mudanças relacionadas ao sentido de<br />

tradição e de autoridade, como situa Hannah Arendt (2001): de papéis<br />

preestabelecidos na família, no casamento e na sexualidade rumo a um projeto<br />

onde a individualidade adquire maior relevância social.<br />

A contestação da autoridade tradicional dos pais sobre os filhos resulta numa<br />

confusão entre a autoridade necessária para a formação social da criança, o<br />

autoritarismo e a permissividade, conforme se evidencia nas famílias aqui<br />

analisadas. A educação permissiva gera filhos que ignoram as regras porque não<br />

internalizam o sentido do outro e n<strong>em</strong> prestam atenção às suas necessidades. E,<br />

no modelo autoritário, os filhos não desenvolv<strong>em</strong> o sentido de si, não defin<strong>em</strong> os<br />

163


limites pessoais, porque as regras e os limites são impostos, s<strong>em</strong> o seu prévio<br />

entendimento (Sarti, 2002).<br />

A questão da autoridade e dos limites está vinculada à organização da hierarquia<br />

familiar, outra hipótese, agora tese, desse estudo. Em três famílias, cada uma de<br />

sua forma, os avós e os pais encontram-se deslocados, uma geração abaixo, de<br />

seu lugar apropriado. Inclusive, na família Mimar, o filho mais velho desloca-se<br />

para a segunda geração. E os pais da família Zoar, enredados <strong>em</strong> seus próprios<br />

conflitos e agressões, deixam seus filhos à deriva.<br />

Esses deslocamentos dos papéis familiares, b<strong>em</strong> como as agressões constantes<br />

na família Zoar, conectam-se, <strong>em</strong> sua maioria, à: inconsistência, ambivalência,<br />

distanciamento, inadequação dos avós e pais como modelos de comportamento<br />

para seus filhos e netos.<br />

É digna de nota a inconsistência da figura masculina nas famílias estudadas,<br />

ainda quando presente. Observa-se, de forma geral, uma correlação de forças: o<br />

mando <strong>em</strong> casa é das mulheres e os homens se acomodam; as mulheres não são<br />

generosas porque não abr<strong>em</strong> a porta para a figura masculina e o hom<strong>em</strong> também<br />

não insiste; cuidados pelas mulheres, os homens permanec<strong>em</strong> infantilizados e é<br />

desta forma que se comportam na relação adulta. O fato é que a ausência do pai e<br />

do avô na vida de seus filhos e netos gera um vazio de autoridade e afeto que não<br />

é preenchido por mais ninguém.<br />

164


Valores familiares<br />

Nas narrativas sobre os valores da maioria dos m<strong>em</strong>bros da primeira e segunda<br />

geração das famílias surge a idéia de que ensinar e aprender constitu<strong>em</strong><br />

operações distintas, cabendo uma culpabilização a filhos e netos pela não<br />

assimilação dos princípios passados por seus avós e por seus pais. Humberto<br />

Maturana (1999, 2001) sustenta, <strong>em</strong> diferentes momentos, que a aprendizag<strong>em</strong><br />

decorre da história de convivência do sist<strong>em</strong>a familiar a partir de mudanças<br />

estruturais recíprocas que ocorr<strong>em</strong> ao longo do percurso de interações de seus<br />

m<strong>em</strong>bros. Aqui só cabe falar <strong>em</strong> culpa se esta for dirigida à relação recorrente<br />

entre dois ou mais comunicantes.<br />

De uma forma geral, os avós entrevistados não consideram a possibilidade de<br />

mudança dos princípios enquanto os pais se encontram divididos: há aqueles que<br />

enunciam a possibilidade de transformação dos princípios ao longo do t<strong>em</strong>po,<br />

conforme a colocação de Ivete Ribeiro e Ana Clara Ribeiro (1993), e outros que<br />

estão na contramão desse pensamento, sublinhando que os valores não dev<strong>em</strong><br />

ser modificados. A opinião dos filhos se ass<strong>em</strong>elha à de suas figuras de<br />

identificação.<br />

O ensinamento dos valores ancora-se nas três categorias aqui descritas e<br />

analisadas. Desta forma, concluo a partir das hipóteses formuladas, agora, teses<br />

deste estudo, que a transmissão e a prática dos valores familiares pod<strong>em</strong> ser<br />

consideradas como fatores de influência no uso abusivo de drogas porque foram<br />

concomitant<strong>em</strong>ente perpassados por:<br />

165


(a) Uma inversão da hierarquia familiar que, ao deslocar avós, pais e filhos de<br />

seus lugares apropriados, influencia a construção dos valores de forma a<br />

promover uma disparidade entre o que se gostaria de ensinar como valor, e<br />

o que pode ser ensinado e aprendido pelas gerações seguintes. Essa forma<br />

de se organizar influencia o estilo de educação, a construção da autonomia<br />

e os modelos familiares, todos eles fundamentais para a promoção dos<br />

valores familiares;<br />

(b) Vínculos dependentes, de apego, que estimulam a infantilização dos filhos<br />

e netos, motor gerador da falta de autonomia e gerenciamento próprio.<br />

Esses vínculos não configuram condições de possibilidade para a<br />

internalização dos valores familiares no sentido almejado pelas famílias. A<br />

falta de protagonismo revela sujeitos inseguros, vulneráveis e frágeis que<br />

precisam do adulto para lhes servir de guia;<br />

(c) Infantilização dos jovens, motor que paralisa a construção e a consecução<br />

de projetos de vida.Ter metas a cumprir é fundamental para a criança e<br />

para o adolescente <strong>em</strong> formação. Nesse sentido, há expectativas<br />

conflitantes através das gerações, porque avós e pais, ao não<br />

reconhecer<strong>em</strong> as aberrações <strong>em</strong>ocionais decorrentes da defasag<strong>em</strong> entre<br />

a idade cronológica e a <strong>em</strong>ocional de seus filhos e netos, elaboram projetos<br />

distantes da realidade desses últimos ou, ainda, projetam nos filhos a<br />

realização de sonhos que não conseguiram materializar;<br />

(d) Ausência, inconsistência, autoritarismo, falta de intimidade, prática de<br />

agressão, amor <strong>em</strong> d<strong>em</strong>asia, na criação dos filhos. Estes atributos<br />

166


vivenciados nas relações primárias entre adultos significativos e os jovens,<br />

uma vez absorvidos por esses últimos, transformam-se <strong>em</strong> práticas<br />

educativas reais, ativas e passivas. Há um importante agravante nessas<br />

situações, <strong>em</strong> todos os casos estudados: a ausência masculina, mesmo<br />

quando o pai está presente nos lares, constitui um vácuo na vida dos filhos<br />

e na configuração da constelação familiar. No caso da família Mimar, foco<br />

das reflexões sobre modelo, a permissividade dos adultos frente ao uso<br />

abusivo de drogas por parte do pai comunica valores conflitantes para os<br />

seus m<strong>em</strong>bros;<br />

(e) Estilos de criação exercitados pelas famílias que não contribu<strong>em</strong> para o<br />

desenvolvimento <strong>em</strong>ocional e social da maioria dos filhos, já que pautados<br />

pelos princípios do autoritarismo e da permissividade. Essa forma de<br />

educar influencia a aquisição dos valores por parte dos participantes da<br />

geração dos pais e dos filhos.<br />

El<strong>em</strong>entos para prevenção e tratamento do uso abusivo de drogas<br />

Inúmeros estudos evidenciam como fatores que proteg<strong>em</strong> o adolescente contra o<br />

uso abusivo de drogas (Schenker e Minayo, 2005, 9) alguns dos aspectos tratados<br />

neste estudo, <strong>em</strong>bora os apresent<strong>em</strong> de forma isolada: (a) a relevância dos<br />

vínculos familiares fortes (Hoffmann e Cerbone, 2002, Kandel et al, 1978,<br />

Schenker e Minayo, 2003, Swadi, 1999, Werner et al, 1999); (b) o apoio da família<br />

no processo de aquisição da autonomia por parte do adolescente (Tuttle et al,<br />

2002); (c) o monitoramento parental dos diversos processos de crescimento e<br />

desenvolvimento (Brook et al, 1990, Chilcoat e Anthony, 1996, Patton, 1995,<br />

167


Steinberg et al, 1994, Swadi, 1999, Werner, 1999); (d) o estabelecimento de<br />

normas claras para os comportamentos sociais, incluindo-se aí o uso de drogas<br />

(Oetting e Donnermeyer, 1998).<br />

A partir das constatações deste estudo, considero que programas de prevenção<br />

para o uso indevido ou abusivo de drogas devam incluir a educação para os<br />

valores familiares. As famílias <strong>em</strong> tratamento precisam ser cont<strong>em</strong>pladas com a<br />

reflexão sobre e a elaboração de seus referenciais. A importância de trabalhar<br />

esse assunto se relaciona ao investimento <strong>em</strong> aprimorar a qualidade dos vínculos<br />

e à criação para a autonomia, no estilo de educação e de práticas sociais dessa<br />

instituição de raiz.<br />

Desta forma, entendo que os programas de prevenção dev<strong>em</strong> se orientar para o<br />

estímulo à reflexão dos participantes da família, <strong>em</strong> relação a e sobre a relação de<br />

cada m<strong>em</strong>bro no conjunto, no que tange ao desenvolvimento individual e coletivo.<br />

Por ex<strong>em</strong>plo, seria importante agrupar famílias <strong>em</strong> escolas, sob a orientação de<br />

profissionais de saúde capacitados para essa prevenção, estimulando a reflexão<br />

sobre as coerências e incoerências dos princípios e das práticas de seus valores.<br />

Em encontros subseqüentes, os grupos seriam convidados a refletir sobre o leque<br />

de possibilidades que se abre a partir dos diferentes estilos de criação,<br />

perpassando a organização da hierarquia da família; a construção dos modelos<br />

familiares; a educação para a autonomia; e a elaboração de metas e de projetos<br />

de vida para filhos e netos. Não se pode esquecer que valores são ensinados<br />

desde o útero.<br />

168


A promoção dos relacionamentos, dos vínculos e das relações saudáveis é a<br />

melhor forma de prevenir o uso abusivo de drogas, pois estimula a autonomia e o<br />

protagonismo dos jovens. No entanto, quando a drogadição ocorre, a família<br />

precisa ser engajada na prevenção e no tratamento, uma vez que esse sintoma<br />

que aparece num de seus m<strong>em</strong>bros denuncia probl<strong>em</strong>as no sist<strong>em</strong>a familiar,<br />

conforme se mostra ao longo desta tese.<br />

169


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181


APÊNDICES<br />

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abusivo de drogas: uma revisão crítica. Revista Ciência & Saúde Coletiva 2003; 8:<br />

299-06.<br />

APÊNDICE II – Schenker M e Minayo MCS. A importância da família no<br />

tratamento do uso abusivo de drogas: uma revisão da literatura. Cadernos de<br />

Saúde Pública 2004; 20: 649-59.<br />

APÊNDICE III – Schenker M e Minayo MCS. Fatores de risco e de proteção para o<br />

uso de drogas na adolescência. Revista Ciência & Saúde Coletiva 2005; 10:<br />

[próxima publicação].<br />

APÊNDICE IV – Roteiro para a Entrevista<br />

APÊNDICE V – Termo de Consentimento<br />

182


Fatores de risco e de proteção para o uso de drogas na adolescência<br />

Risk and protective factors to drug use in adolescence<br />

Miriam Schenker 1<br />

Maria Cecília de Souza Minayo 2<br />

1 Núcleo de Estudos e Pesquisa <strong>em</strong> Atenção ao Uso de Drogas/Uerj, Pós-Graduação <strong>em</strong> Saúde da Criança e<br />

da Mulher do <strong>Instituto</strong> <strong>Fernandes</strong> <strong>Figueira</strong>/<strong>Fiocruz</strong>. Rua Fonseca Teles 121/4. andar. 20940-200 São<br />

Cristóvão. Rio de Janeiro RJ. schenkerbrasil@hotmail.com<br />

2 Centro Latino-Americano de Estudos da Violência e Saúde, <strong>Fiocruz</strong>.


2<br />

Resumo<br />

Este artigo apresenta uma visão compreensiva da complexidade dos fatores de risco e de<br />

proteção para o uso de drogas na adolescência. Discorre sobre a interdependência dos<br />

diversos contextos – individual, familiar, escolar, grupo de pares, midiático e comunidade<br />

de convivência – propícios tanto ao risco quanto à proteção ao uso das drogas lícitas e<br />

ilícitas, fornecendo, por último, algumas estratégias de prevenção.<br />

Palavras-chave Adolescência, fatores de risco, fatores de proteção, uso de drogas,<br />

prevenção.<br />

Abstract<br />

This article presents a comprehensive view of the risk and protective factors complexity to<br />

drug use in adolescence. Discusses the interdependence of various contexts – individual,<br />

familiar, school, peer group, midia and community – favourable either to risk or protection<br />

of licit and illicit drug use, providing, finally, some prevention strategies.<br />

Key words Adolescence, risk factors, protective factors, drug use, prevention.<br />

Introdução<br />

Neste artigo discute-se a prevenção ao uso indevido de drogas por adolescentes.<br />

Analisam-se os fatores de risco e os fatores de proteção, conceitos que serv<strong>em</strong> de base<br />

para o diálogo com os diferentes contextos sociais como a família, os pares, a escola, a<br />

comunidade e a mídia.


3<br />

A adolescência constitui um período crucial no ciclo vital para o início do uso de drogas,<br />

seja como mera experimentação seja como consumo ocasional, indevido ou abusivo. Esse<br />

estudo privilegia a discussão da prevenção, l<strong>em</strong>brando que a utilização das drogas lícitas e<br />

ilícitas permeia a cultura da adolescência à velhice e, no caso do Brasil, notadamente por<br />

meio do consumo de álcool, fumo e maconha.<br />

A família, pelo papel de inserir seus m<strong>em</strong>bros na cultura e ser instituidora das relações<br />

primárias, influencia a forma como o adolescente reage à ampla oferta de droga na<br />

sociedade atual. Relações familiares saudáveis desde o nascimento da criança serv<strong>em</strong><br />

como fator de proteção para toda a vida e de forma muito particular, para o adolescente.<br />

No entanto, probl<strong>em</strong>as enfrentados na adolescência, plantados na infância têm um<br />

contexto de realização muito mais ampliado. Buscar-se-á, portanto, neste texto, realizar<br />

uma discussão do contexto familiar e outros ambientes importantes para a prevenção do<br />

uso indevido de drogas como é o caso do grupo de pares, da escola, da comunidade e da<br />

mídia.<br />

Material e Método<br />

A elaboração deste artigo foi precedida de pesquisas nas bases de dados PubMed, Medline<br />

e de outros textos requisitados diretamente aos autores, entre os anos de 1995 a 2003, a<br />

partir das seguintes palavras-chave: adolescência (adolescence), fatores de risco (risk<br />

factors), fatores de proteção (protective factors), uso de drogas (drug use), prevenção<br />

(prevention). Outras obras e artigos são citados apenas quando relevantes ao t<strong>em</strong>a <strong>em</strong><br />

questão. Os 67 textos de referência foram analisados, comparados e avaliados na íntegra,<br />

dentro do escopo do presente estudo.


4<br />

O ponto de vista metodológico aqui adotado é o da teoria sistêmica/ecológica, coincidente<br />

com o de praticamente todos os autores de referência. O foco da análise se detém nas<br />

relações intrafamiliares e interpessoais, contextualizadas sócio-culturalmente.<br />

Discussão Teórica<br />

Este artigo se elabora <strong>em</strong> torno de dois conceitos centrais: risco e proteção. E ao redor<br />

deles, trabalham-se as noções de adolescência, família, escola, grupo de pares,<br />

comunidade e mídia como espaços fundamentais para a construção de risco e de proteção.<br />

Risco e Fatores de Risco – Risco é uma conseqüência da livre e consciente decisão de se<br />

expor a uma situação na qual se busca a realização de um b<strong>em</strong> ou de um desejo, <strong>em</strong> cujo<br />

percurso se inclui a possibilidade de perda ou ferimento físico, material ou psicológico. De<br />

acordo com Pieper & Pieper (1999) “o ser humano que possui a virtude cardeal da<br />

fortaleza expõe-se ao perigo da morte por um b<strong>em</strong>”(1999,179). Segundo McCrimmond &<br />

Werhrung (1986) , exist<strong>em</strong> três condições para a definição de risco: (1) possibilidade de<br />

haver perda: (2) possibilidade de ganho e (3) possibilidade de aumentar ou de diminuir a<br />

perda ou os danos. Segundo grandes filósofos como Heidegger, o risco é inerente à vida<br />

(1980), ao movimento, e à possibilidade de escolha. Viver é correr risco e por isso a<br />

incerteza é um componente essencial da existência e igualmente do conceito de risco.<br />

Giddens (1990) faz uma distinção interessante entre risco e perigo. Comenta o autor que<br />

esses dois termos não são sinônimos <strong>em</strong>bora seu significado se aproxime. Perigo diz


5<br />

respeito a ameaças que rondam a busca dos resultados desejados. Risco constitui uma<br />

estimativa a cerca do perigo.<br />

Na área de saúde, risco é um conceito que envolve conhecimento e experiência acumulada<br />

sobre o perigo de alguém ou a da coletividade ser acometida por doenças e agravos. Sendo<br />

um termo central da epid<strong>em</strong>iologia, diz respeito a situações reais ou potenciais que<br />

produz<strong>em</strong> efeitos adversos e configuram algum tipo de exposição. Definidos a partir de<br />

análises coletivas, os alertas trazidos à população pela epid<strong>em</strong>iologia se aplicam a<br />

cuidados e evitação.<br />

A expressão consagrada, fatores de risco designa condições ou variáveis associadas à<br />

possibilidade de ocorrência de resultados negativos para a saúde, o b<strong>em</strong> estar e o<br />

des<strong>em</strong>penho social (Newcomb et al., 1986; Jessor, 1991; Jessor et al., 1995). Alguns<br />

desses fatores se refer<strong>em</strong> a características dos indivíduos; outros, ao seu meio micro-social<br />

e outros ainda, a condições estruturais e sócio-culturais mais amplas (Zweig et al., 2002),<br />

mas geralmente estão combinados quando uma situação considerada social, intrapsíquica e<br />

biologicamente perigosa se concretiza. Por ex<strong>em</strong>plo, no caso do uso de drogas: ao fumar<br />

maconha, o adolescente pode aumentar a probabilidade de desenvolver uma doença<br />

pulmonar, e também sofrer conseqüências psicossociais ou sanções legais, conflitos com<br />

os pais, perda de interesse na escola ou culpa e ansiedade.<br />

Sobretudo quando se trabalha com adolescentes, o conceito de risco tal como visto pela<br />

epid<strong>em</strong>iologia não é suficiente, uma vez que nessa ótica é entendido, apenas, segundo suas<br />

conseqüências negativas. No ex<strong>em</strong>plo dado acima, está claro que um adolescente que usa<br />

maconha <strong>em</strong> princípio busca prazer e não dor e sofrimento. Em geral está a cata de


6<br />

extroversão, prazer, novas sensações, compartilhamento grupal, diferenciação, autonomia<br />

e independência <strong>em</strong> relação à família, dentre outros efeitos. E nessa procura faz um<br />

cálculo do perigo a que se expõe. Os profissionais que atuam na prevenção precisam saber<br />

desse outro lado da questão, sob pena de não desenvolver<strong>em</strong> uma compreensão<br />

suficient<strong>em</strong>ente ampla e profunda do fenômeno do uso de drogas.<br />

O lado negativo do desejo juvenil de obter prazer com o uso de drogas é o risco que ele<br />

corre de se tornar dependente e comprometer a realização de tarefas normais do<br />

desenvolvimento; o cumprimento dos papéis sociais esperados; a aquisição de habilidades<br />

essenciais; a realização de um sentido de adequação e competência e a preparação<br />

apropriada para a transição ao próximo estágio na trajetória da vida: o adulto jov<strong>em</strong>. O<br />

termo comportamento de risco aqui, portanto, refere-se às ameaças ao desenvolvimento<br />

b<strong>em</strong> sucedido do adolescente. Uma preocupação básica da educação para a saúde seria,<br />

pois, discutir com os adolescentes os riscos associados aos comportamentos nos quais se<br />

engajam (Jessor, 1991), mas tendo o cuidado de não desconhecer o lado prazeroso desse<br />

engajamento. A necessidade de se olhar os dois lados, o do desejo e o do dano, no caso do<br />

uso de drogas leva a considerar alguns aspectos citados a seguir.<br />

(1) Um deles diz respeito aos efeitos cumulativos das substâncias tóxicas e sua relação<br />

com a vulnerabilidade do indivíduo. De um lado sabe-se que a probabilidade de<br />

desenvolvimento de determinado distúrbio aumenta <strong>em</strong> função do número, da duração e<br />

da ‘toxicidade’ dos fatores de risco envolvidos (Coie et al. 1993). Por isso, quanto mais<br />

intenso o uso de drogas, mais fatores de risco há (Bry et al., 1982, Newcomb et al., 1986).<br />

Por outro lado, vários estudos mostram que o perigo difere de acordo com os indivíduos e<br />

seu contexto. Kandel et al. (1978) enfatizam que os adolescentes <strong>em</strong> certo estágio e


7<br />

freqüência de consumo não necessariamente irão usar drogas mais pesadas. Essa<br />

constatação vai contra a idéia de que haveria uma certa seqüência na gravidade do risco,<br />

indo do envolvimento sucessivo com substâncias mais leves para uma escalada rumo às<br />

mais nocivas. Alguns estudos chegam a sugerir que cigarro e álcool funcionariam como<br />

ponte (gateway) para um caminho progressivo de envolvimento com drogas cada vez mais<br />

pesadas (De Micheli & Formigoni, 2002). Essa teoria t<strong>em</strong> conseqüência para a prática<br />

educativa que busca dissuadir os adolescentes de usar substâncias mais leves, visando a<br />

prevenir o uso de outras (Botvin, 1986). No entanto, na atualidade, mesmo os estudiosos<br />

que continuam a afirmar o risco de exposição crescente, diz<strong>em</strong> que a relação é de<br />

probabilidade e não causal ( Ellickson & Morton, 1999).<br />

(2) Um segundo aspecto importante a ser considerado é o que se refere ao risco que<br />

constitui a atitude positiva da família com relação ao uso de drogas, reforçando a iniciação<br />

dos jovens (Kandel et al., 1977). Hoje se sabe que as relações familiares constitu<strong>em</strong> um<br />

dos fatores mais relevantes a ser considerado, mas de forma combinada com outros. Por<br />

ex<strong>em</strong>plo, Schor (1996) aponta que não há uma relação linear entre o abuso de álcool dos<br />

pais e de seus filhos. Sugere que os padrões de comportamento dos pais e as interações<br />

familiares, e não só o fato deles beber<strong>em</strong>, são <strong>em</strong> boa parte responsáveis pelas atitudes dos<br />

filhos. O alcoolismo t<strong>em</strong> uma influência destrutiva no funcionamento familiar e essa<br />

disfunção des<strong>em</strong>penha um papel mediador na transmissão intergeracional de<br />

comportamentos. Mas, o que está <strong>em</strong> questão não é a droga <strong>em</strong> si, e sim, a relação que o<br />

indivíduo estabelece com ela, que por sua vez, influencia e é influenciada fort<strong>em</strong>ente pelo<br />

universo de interações. Embora o consumo de drogas pelos pais esteja relacionado a maior<br />

risco dos filhos se tornar<strong>em</strong> usuários, uma vez que o comportamento parental serve-lhes de


8<br />

modelo, é a atitude permissiva dos genitores o que mais pesa nessa equação (Hawkins et<br />

al, 1992; Brown et al, 1993).<br />

Estudos têm mostrado que os fatores parentais de risco para o uso de drogas pelo<br />

adolescente inclu<strong>em</strong>, de forma combinada: (a) ausência de investimento nos vínculos que<br />

os un<strong>em</strong> pais e filhos (Hawkins et al, 1992, Patton, 1995, Kodjo & Klein, 2002); (b)<br />

envolvimento materno insuficiente (Tarter et al, 2002); (c) práticas disciplinares<br />

inconsistentes ou coercitivas (Friedman, 1989, Brook et al, 1990; Hawkins et al, 1992;<br />

Patton, 1995); (d) excessiva permissividade, dificuldades de estabelecer limites aos<br />

comportamentos infantis e juvenis e tendência à superproteção; (e) educação autoritária<br />

associada a pouco zelo e pouca afetividade nas relações (Tuttle et al, 2002; Patton, 1995);<br />

(f) monitoramento parental deficiente (Hawkins et al, 1992); (g) aprovação do uso de<br />

drogas pelos pais (Friedman, 1989; Hawkins et al, 1992); (h) expectativas incertas com<br />

relação à idade apropriada do comportamento infantil (Tarter et al, 2002); (i) conflitos<br />

familiares s<strong>em</strong> desfecho de negociação (Hawkins et al, 1992; Patton, 1995; Kodjo &<br />

Klein, 2002).<br />

(3) O envolvimento grupal t<strong>em</strong> sido visto como um dos maiores prenúncios do uso de<br />

substâncias (Kandel et al, 1978; Botvin, 1986; Brook et al, 1990; Hawkins et al, 1992;<br />

Oetting & Donnermeyer, 1998; Fergusson & Horwood, 1999; Swadi, 1999; Hoffmann &<br />

Cerbone, 2002). No entanto, essa relação interpares também precisa ser qualificada. Ela se<br />

configura como fator de risco quando os amigos considerados modelo de comportamento<br />

(Jessor et al, 1995, Hoffmann & Cerbone, 2002; Swadi, 1999), d<strong>em</strong>onstram tolerância,<br />

aprovação (Kodjo & Klein, 2002) ou consom<strong>em</strong> drogas (B<strong>em</strong>an, 1995). Observam os<br />

estudiosos que há uma sintonia, no caso dos pares: os adolescentes que quer<strong>em</strong> começar


9<br />

ou aumentar o uso de drogas procuram colegas com valores e hábitos s<strong>em</strong>elhantes (Tuttle<br />

et al, 2002). Ou seja, mesmo no caso de amigos e colegas, a questão não pode ser vista de<br />

forma simplista, pois o desenvolvimento de afiliações a pares tolerantes e que aprovam as<br />

drogas representa o final de um processo onde fatores individuais, familiares e sociais<br />

adversos se combinam de forma a aumentar a probabilidade do uso abusivo (Fergusson &<br />

Howood, 1999). O mito que supervaloriza a influência dos pares durante a adolescência<br />

provavelmente decorre, <strong>em</strong> algum nível, de uma certa desresponsabilização, sobretudo por<br />

parte dos pais e dos educadores, de probl<strong>em</strong>as freqüentes nas relações intra-familiares ou<br />

institucionais. É muito difícil, portanto, como já se referiu tomando por base outros<br />

fatores, separar e isolar os efeitos que o grupo de pares t<strong>em</strong> sobre os adolescentes, <strong>em</strong>bora<br />

se saiba que seu poder é importante no caso do uso de drogas (Schor, 1996).<br />

(4) Muito se t<strong>em</strong> falado também no papel da escola seja como agente transformador seja<br />

como lócus propiciador do ambiente que exacerba as condições para o uso de drogas.<br />

Ninguém desconhece que essa instituição é hoje alvo do assédio de traficantes e<br />

repassadores de substâncias proibidas, prevendo-se o aliciamento por pares. Pois a escola é<br />

o espaço privilegiado dos encontros e interações entre jovens. No entanto, mesmo no<br />

âmbito educacional, exist<strong>em</strong> fatores específicos que predispõ<strong>em</strong> os adolescentes ao uso de<br />

drogas, como por ex<strong>em</strong>plo, a falta de motivação para os estudos, o absenteísmo e o mau<br />

des<strong>em</strong>penho escolar (Kandel et al, 1978); a insuficiência no aproveitamento e a falta de<br />

compromisso com o sentido da educação; a intensa vontade de ser independente,<br />

combinada com o pouco interesse de investir na realização pessoal (Friedman, 1989); a<br />

busca de novidade a qualquer preço e a baixa oposição a situações perigosas; a rebeldia<br />

constante associada à dependência a recompensas (Swadi, 1999).


10<br />

(5) A disponibilidade e a presença de drogas na comunidade de convivência têm sido<br />

vistas como facilitadoras do uso de drogas por adolescentes, uma vez que o excesso de<br />

oferta naturaliza o acesso (Jessor, 1991, Patton, 1995, Wallace, Jr, 1999). Quando a<br />

facilidade da oferta se junta à desorganização social e aos outros el<strong>em</strong>entos predisponentes<br />

no âmbito familiar e institucional, produz-se uma sintonia de fatores (Kodjo & Klein,<br />

2002). A observação sobre esse el<strong>em</strong>ento, privilegiando-o e ao mesmo t<strong>em</strong>po associandoo<br />

aos outros é importante pois permite correlacionar fatos como gravidez precoce e evasão<br />

escolar (Hawkins et al., 1992), acidentes de carro, homicídios e suicídios (Kodjo & Klein,<br />

2002).<br />

(6) Outra tendência muito comum quando se fala de drogas é a absolutização do papel<br />

mídia como fator de risco. É certo que, sobretudo no caso das drogas lícitas, os meios de<br />

comunicação geralmente mostram imagens muito favoráveis. O uso do álcool e do tabaco<br />

costuma vir associado, por meio da publicidade, a imagens de artistas, ao glamour da<br />

sociabilidade e à sexualidade. Freqüent<strong>em</strong>ente os anúncios glorificam as substâncias,<br />

retratando-as como mediadoras de fama e sucesso (Patton, 1995, Kodjo & Klein, 2002;<br />

Minayo et al, 1999; Njaine, 2004). Mas não se pode, teoricamente, d<strong>em</strong>onizar a mídia: de<br />

um lado ela reflete e refrata a cultura vigente. E, de outro, seria um erro menosprezar a<br />

capacidade crítica dos jovens e a sinergia de vários outros el<strong>em</strong>entos com os meios de<br />

comunicação. Nenhuma propaganda por si só atinge efeito d<strong>em</strong>oníaco de persuasão,<br />

quando fatores protetores atuam <strong>em</strong> direção contrária. O desenvolvimento de um espírito<br />

crítico e reflexivo na família, na escola e com os pares serve de base para uma atitude<br />

criteriosa do adolescente quanto às mensagens relativas às drogas lícitas, veiculadas pelos<br />

meios de comunicação.


11<br />

Os diversos el<strong>em</strong>entos tratados acima levam a concluir que não se pode pensar os fatores<br />

de risco de forma isolada, independente e fragmentada. Determinado fator de risco<br />

raramente é específico de um distúrbio único, porque seus contextos formadores tend<strong>em</strong> a<br />

espalhar os efeitos dele derivados sobre uma série de funções adaptadoras ao longo do<br />

desenvolvimento. E a exposição ao perigo que potencializa os riscos ocorre de diversas<br />

formas e <strong>em</strong> vários contextos, como por ex<strong>em</strong>plo: exacerbando fatores individuais,<br />

educação infantil insatisfatória, fracassos escolares, relações sociais probl<strong>em</strong>áticas entre os<br />

pares ou com desorganização da comunidade (Newcomb et al, 1986, Coie et al, 1993,<br />

Hawkins et al, 1992, Patton, 1995). Mesmo a mais elevada carga genética é menos<br />

provável de se constituir <strong>em</strong> alto fator de risco numa sociedade onde a exposição ao álcool<br />

seja severamente restrita, comenta Swadi (1999). A postura uni-causal, tão freqüente, é<br />

responsável por práticas, orientações e criação de instituições inócuas ou nocivas, às quais<br />

falta uma lógica compreensiva e sistêmica.<br />

Ressaltando a necessidade metodológica de levar <strong>em</strong> conta a complexidade das formas de<br />

adesão ao uso abusivo de drogas na adolescência é relevante pensar que há uma estrutura e<br />

uma organização dos diferentes fatores, formando uma síndrome do comportamento de<br />

risco, o que r<strong>em</strong>ete às pr<strong>em</strong>issas do paradigma sistêmico: os comportamentos de risco covariam<br />

e estão inter-relacionados. Nessa perspectiva, os esforços preventivos dev<strong>em</strong> visar<br />

a modificar as circunstâncias que sustentam tais síndromes: o estilo de vida que sintetiza<br />

um padrão organizado de comportamentos interrelacionados, dentro de uma ecologia<br />

social (Jessor, 1991) e <strong>em</strong> relações complexas com distúrbios clínicos.<br />

Proteção e Fatores de Proteção – Proteger é uma noção que faz parte do contexto das<br />

relações primárias e do universo s<strong>em</strong>ântico das políticas sociais. Significa, sobretudo


12<br />

oferecer condições de crescimento e de desenvolvimento, de amparo e de fortalecimento<br />

da pessoa <strong>em</strong> formação. No caso brasileiro, a doutrina da proteção integral se encontra no<br />

Estatuto Brasileiro da Criança e do Adolescente (ECA) que a resume definindo esse grupo<br />

social como (a) cidadão; (b) sujeito de direitos; (b) capaz de protagonismo; (c) merecedor<br />

de prioridade de atenção e (d) de cuidados.<br />

Dentro dessa pr<strong>em</strong>issa de proteção, uma das tarefas de qu<strong>em</strong> atua na atenção aos<br />

adolescentes que usam drogas é determinar que fatores pod<strong>em</strong> ser evidenciados pela<br />

técnica e pela experiência como relevantes para promover seu crescimento saudável e<br />

evitar que corram riscos de dependências e de acirramento de probl<strong>em</strong>as sociais (Hawkins<br />

et al, 1992; Coie et al, 1993; Jessor et al, 1995, Pettit et al, 1997). Cabe ressaltar que os<br />

fatores de risco e de proteção dev<strong>em</strong> ser tratados como variáveis independentes, pois<br />

pod<strong>em</strong> afetar o comportamento s<strong>em</strong> que haja, necessariamente, uma compl<strong>em</strong>entaridade<br />

entre eles (Jessor et al, 1995).<br />

O desenvolvimento dos estudos sobre fatores protetores, atualmente, tende a enfatizar o<br />

processo de formação da resiliência, num progressivo abandono das abordagens centradas<br />

nos fatores de risco. Busca-se dar ênfase aos el<strong>em</strong>entos positivos que levam um indivíduo a<br />

superar as adversidades. Esse novo paradigma é certamente otimista, principalmente por<br />

que leva a acreditar que é possível, por meio de ações e programas, promover o b<strong>em</strong> estar<br />

do adolescente, atuando no fortalecimento e no desenvolvimento de habilidades pessoais e<br />

sociais (Munist et al, 1998; Bloom, 1996; Assis, 1999; Assis & Constantino, 2001).<br />

Embora as definições de resiliência sejam ainda bastante variadas, toda a discussão a<br />

respeito desse conceito está relacionada aos fatores ou processos intrapsíquicos e sociais<br />

que possibilit<strong>em</strong> o desenvolvimento de uma vida sadia, apesar de experiências de vida


13<br />

traumáticas. A compreensão do conceito envolve o entendimento da interação entre a<br />

adversidade e fatores de proteção internos e externos ao sujeito, assim como do<br />

desenvolvimento de competências que permitam a uma pessoa obter sucesso diante da<br />

adversidade (Rutter, 1987; Assis, 1999).<br />

Frente a eventos traumáticos, os el<strong>em</strong>entos de proteção assum<strong>em</strong> papel facilitador no<br />

caminho da construção da resiliência. Os estudiosos têm identificado três categorias de<br />

fatores de proteção <strong>em</strong> crianças e adolescentes resilientes: (a) individuais: t<strong>em</strong>peramento<br />

que favoreça o enfrentamento do probl<strong>em</strong>a, auto-imag<strong>em</strong> positiva e a capacidade de criar e<br />

desenvolver estratégias ativas na forma de lidar com probl<strong>em</strong>as. Esses atributos denotam<br />

auto-eficácia, auto-confiança, habilidades sociais e interpessoais, sentimentos de <strong>em</strong>patia,<br />

controle <strong>em</strong>ocional, humor e relacionamento com os pares. Os estudos mostram que<br />

exist<strong>em</strong> especificidades de gênero, de idade e de raça nas formas de d<strong>em</strong>onstração da<br />

resiliência; (b) familiares: que se traduz<strong>em</strong> <strong>em</strong> suporte, segurança, bom relacionamento e<br />

harmonia com pais e no ambiente de relações primárias; (c) extrafamiliares ou ambientais,<br />

quando se refer<strong>em</strong> ao suporte de pessoas significativas e experiências escolares positivas<br />

(Emery & Forehand, 1996; Werner, 1996; Assis, 1999; Assis & Constantino, 2001).<br />

A forma como o indivíduo lida com as adversidades, <strong>em</strong> psicologia é chamada coping<br />

termo que agrega o conjunto de estratégias utilizadas pelas pessoas frente às circunstâncias<br />

adversas ou estressantes. O coping positivo é construído ao longo do t<strong>em</strong>po e do processo<br />

de crescimento e desenvolvimento individual. Tal como a resiliência, as estratégias de<br />

coping depend<strong>em</strong> de atributos individuais, familiares e ambientais para se consolidar<strong>em</strong> no<br />

indivíduo. Uma vez estabelecidas, as estratégias funcionam como importante fator de<br />

proteção ao risco, proporcionando resiliência, caso sejam predominant<strong>em</strong>ente ativas no<br />

sentido da resolução dos probl<strong>em</strong>as (Garmezy & Rutter, 1988). Ao contrário, quando o<br />

indivíduo vai consolidando estratégias de fuga e evitação dos probl<strong>em</strong>as, elas se tornam<br />

fatores prejudiciais ao seu desenvolvimento saudável. Ambos diz<strong>em</strong> respeito a como os<br />

fatores familiares, micro e macro-sociais e estruturais ating<strong>em</strong> o indivíduo e o transformam


14<br />

<strong>em</strong> mais suscetível às influências adversas, ou mais resistente a seus influxos. No caso do<br />

uso de drogas essa perspectiva de resiliência deve ser adotada para buscar formas de<br />

reduzir a vulnerabilidade do indivíduo (Hawkins et al,1992; Swadi, 1999).<br />

O estudo de Brook e colaboradores (1990) aborda dois mecanismos através dos quais os<br />

fatores de proteção reduziram o risco do uso de drogas pelo adolescente. O primeiro é um<br />

mecanismo risco/proteção por meio do qual a exposição aos fatores de risco é moderada<br />

pela presença de fatores de proteção. Em estudo <strong>em</strong>pírico os autores mostram que o risco<br />

colocado por amigos que usavam drogas foi moderado pela forte inter-relação entre os<br />

pais e os adolescentes e pelo comportamento convencional e formal dos pais. O segundo é<br />

um mecanismo proteção/proteção segundo o qual um fator potencializa outro, tornando o<br />

seu efeito mais forte. Por ex<strong>em</strong>plo, os autores observaram que o vínculo entre o<br />

adolescente e seu pai intensificou os efeitos protetores tais como o comportamento formal<br />

do adolescente, as características maternas positivas e a harmonia marital, atuando<br />

positivamente na prevenção ao uso de droga.<br />

Fatores de proteção são identificados nos seis domínios da vida já tratados quando se<br />

discutiu a questão dos riscos: individual: atitudes e predisposições; meio familiar: relações<br />

familiares e atitudes parentais; escola: clima seguro ou inseguro; amigos: envolvimento ou<br />

não com drogas; sociedade: tendências econômicas, falta de <strong>em</strong>prego; comunidade:<br />

organização ou desorganização (Zweig et al, 2002).<br />

Olhando os aspectos da individualidade, é preciso ressaltar que os adolescentes não são<br />

um recipiente passivo ou objeto controlado por influências familiares ou sociais e n<strong>em</strong> por<br />

determinações externas. São participantes ativos do processo de formação de vínculos e de


15<br />

transmissão de normas. Suas características físicas, <strong>em</strong>ocionais e sociais interag<strong>em</strong> na<br />

dinâmica de socialização (Oetting et al, 1998), permitindo a metabolização subjetiva dos<br />

fatores externos. Por ex<strong>em</strong>plo: <strong>em</strong> geral as crianças com nove ou 10 anos valorizam a<br />

companhia dos amigos, as atividades de grupo, o sucesso na escola, a boa relação com os<br />

pais. Porém, cada menino ou menina avalia de forma diferente a rejeição dos amigos ou<br />

sua exclusão de um grupo. Para uma a experiência da rejeição pode ter efeitos deletérios<br />

imediatos na cognição social, na auto-imag<strong>em</strong> e na auto-estima. Para outra a mesma<br />

experiência pode ter efeitos saudáveis no ajustamento de longo prazo, motivando-a a se<br />

posicionar de forma a ser aceita no futuro (Parker & Asher,1987; Tarter et al, 2002).<br />

Os adolescentes que têm objetivos definidos e invest<strong>em</strong> no futuro apresentam<br />

probabilidade menor de usar drogas, porque o uso interfere com os seus planos (Kodjo &<br />

Klein, 2002). Igualmente, a elevada auto-estima, os sentimentos de valor, orgulho,<br />

habilidade, respeito e satisfação com a vida pod<strong>em</strong> servir de proteção contra a<br />

dependência de drogas pelos jovens quando combinada com outros fatores protetores do<br />

seu contexto de vida (Hoffmann & Cerbone, 2002). Sendo assim se conclui que crianças e<br />

adolescentes que viv<strong>em</strong> <strong>em</strong> ambientes familiares ou <strong>em</strong> comunidades onde há uso abusivo<br />

de drogas e consegu<strong>em</strong> não se deixar influenciar por esse contexto apresentam<br />

características individuais protetoras conjugadas ao convívio com outros adultos<br />

cuidadores escolhidos por eles, fora do ambiente familiar. Os programas de prevenção<br />

dev<strong>em</strong> levar <strong>em</strong> conta a importância das atividades de mentores e de outros programas de<br />

desenvolvimento da juventude (Kodjo & Klein, 2002).<br />

O âmbito familiar t<strong>em</strong> um efeito potencialmente forte e durável para o ajustamento<br />

infantil. O vínculo e a interação familiar saudável serv<strong>em</strong> de base para o desenvolvimento


16<br />

pleno das potencialidades das crianças e dos adolescentes. Inúmeros estudos mostram que<br />

os padrões de relação familiar, a atitude e o comportamento dos pais e irmãos são modelos<br />

importantes para os adolescentes, inclusive no caso do uso de drogas. (Kandel et al, 1977;<br />

Brook et al, 1990; Hawkins et al, 1992; Patton, 1995; Schor, 1996; Kodjo & Klein, 2002).<br />

Tec (1974) descobriu que uma interação familiar gratificante é um forte fator protetor,<br />

mesmo no caso dos pais adictos, quando esses são capazes de prover um contexto<br />

amoroso, afetuoso e de cuidado.<br />

No âmbito da família, estudos evidenciam como fatores que proteg<strong>em</strong> o adolescente do<br />

uso de drogas: (a) a relevância dos vínculos familiares fortes (Kandel et al, 1977, Swadi,<br />

1999, Werner et al1999, Hoffmann & Cerbone, 2002; Schenker & Minayo, 2003); (b) o<br />

apoio da família ao processo de aquisição da autonomia pelo adolescente (Tuttle et al,<br />

2002); (c) o monitoramento parental aos diversos processos de crescimento e<br />

desenvolvimento (Steinberg et al 1994; Chilcoat & Anthony, 1996; Swadi, 1999; Patton,<br />

1995; Werner et al, 1999; Brook et al, 1990); (d) o estabelecimento de normas claras para<br />

os comportamentos sociais, incluindo-se o uso de drogas (Oetting & Donnermeyer, 1998).<br />

Raramente os estudos sobre drogas dão realce às amizades entre os jovens como<br />

protetoras, uma vez que, <strong>em</strong> geral todas as intervenções focam a superação das influências<br />

negativas das amizades e não o estabelecimento ou manutenção de influências positivas<br />

dos amigos (Tuttle et al, 2002). No entanto, sabe-se que grupos de amigos com objetivos e<br />

expectativas de realização na vida e movimentos que levam ao protagonismo juvenil e à<br />

solidariedade têm papel fundamental numa etapa existencial onde as influências dos pares<br />

são cruciais.


17<br />

A escola é um poderoso agente de socialização da criança e do adolescente, ressaltando-se<br />

uma certa mística e identidade do tipo de educandário com o comportamento daqueles que<br />

o freqüentam (Kandel, 1977). Por juntar <strong>em</strong> seu interior a comunidade de pares e por ter<br />

<strong>em</strong> suas mãos fortes instrumentos de promoção da auto-estima e do auto-desenvolvimento,<br />

o ambiente escolar pode ser um fator fundamental na potencialização de resiliência dos<br />

adolescentes.<br />

No que concerne aos fatores estressantes da vida, como morte, doenças ou acidentes<br />

entre m<strong>em</strong>bros da família e amigos; mudanças de escola ou de residência; separação,<br />

divórcio ou novos casamentos dos pais; probl<strong>em</strong>as financeiros na família (Hoffmann &<br />

Cerbone, 2002), muitos estudos mostram que eles pod<strong>em</strong> influenciar o uso abusivo de<br />

drogas quando associados a outros fatores predisponentes, incluindo-se disposições<br />

individuais. No entanto, conforme as circunstâncias individuais e ambientais eles<br />

permit<strong>em</strong> elaboração e crescimento interior dos jovens, constituindo-se <strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos de<br />

fortalecimento e de amadurecimento.<br />

Os adolescentes são consumidores ávidos da mídia escrita e áudio-visual. As mensagens<br />

recebidas desses meios geralmente influenciam sua tomada de decisão frente a vários<br />

assuntos <strong>em</strong> sua vida. Entretanto, a reflexão crítica deles entre pares e com pais e<br />

educadores moderam o risco potencial da exposição e potencializam a comunicação e o<br />

amadurecimento frente aos vários probl<strong>em</strong>as, inclusive sobre o uso de substâncias ilícitas.<br />

Por tudo o que foi dito até então é preciso refletir sobre a inocuidade, do ponto de vista<br />

protetor, do slogan que se repete por toda parte “diga não às drogas”. A falta de adesão<br />

dos jovens torna evidente a falha <strong>em</strong> reconhecer a inadequação das propostas moralistas e


18<br />

autoritárias que não se fundam na visão complexa dos fatores de risco e de proteção<br />

analisados. É preciso não se esquecer que as drogas cumpr<strong>em</strong> funções importantes para os<br />

adolescentes, tanto do ponto de vista pessoal quanto social. Pesquisas mostram que os<br />

comportamentos de enfretamento de risco são funcionais, intencionais, instrumentais e<br />

dirigidos para o desenvolvimento normal do adolescente. Fumar, beber, dirigir<br />

perigosamente ou exercer atividade sexual precoc<strong>em</strong>ente pod<strong>em</strong> ser atitudes tomadas pelo<br />

jov<strong>em</strong> visando a ser aceito e respeitado pelos pares; conseguir autonomia <strong>em</strong> relação aos<br />

pais; repudiar normas e valores da autoridade convencional; lidar com ansiedade,<br />

frustração e antecipação do fracasso; afirmação rumo à maturidade e à transição da<br />

infância para um status mais adulto. Não há nada de perverso, irracional ou<br />

psicopatológico nesses objetivos: eles são característicos do desenvolvimento<br />

psicossocial. A campanha “diga não às drogas” por não oferecer alternativas à promoção<br />

de comportamentos saudáveis, revela-se moralmente cínica (Shedler e Block, 1990,<br />

Jessor, 1991, 598) e teoricamente contraditória, na medida que omite as normas sociais<br />

que favorec<strong>em</strong> o uso de drogas (B<strong>em</strong>an, 1995).<br />

Estratégias de prevenção<br />

O adolescente que faz uso de drogas responde b<strong>em</strong> às intervenções contextualizadas. Os<br />

contextos dominantes para ele são seus pares e a escola e, numa proporção menor, o<br />

entorno da comunidade. Para crianças menores, o contexto principal é a família, que<br />

continua igualmente importante na adolescência (Schor, 1996).<br />

O uso ocasional de droga por adolescentes pode ser entendido como manifestação de uma<br />

experimentação apropriada para sua etapa de desenvolvimento e busca de direção para a


19<br />

vida. Estudo de Shedler e Block (1990), ao diferençar entre adolescentes que se abstêm,<br />

que experimentam e que abusam de drogas conclui que, dada a quase onipresença e uma<br />

certa aceitação da maconha na cultura dos pares, não é surpreendente que, com 18 anos,<br />

indivíduos psicologicamente saudáveis, sociáveis e curiosos se sintam tentados a<br />

experimentar o produto. Não se espera que adolescentes saudáveis abus<strong>em</strong> da droga<br />

porque apresentam baixa necessidade de utilizá-la para aplacar a angústia <strong>em</strong>ocional ou<br />

como meio de compensar a falta de relações importantes. Os autores comparam o sentido<br />

do uso da maconha entre adolescentes de hoje com o significado social e psicológico que a<br />

bebida alcoólica teve para gerações anteriores (Shedler & Block, 1990). Levando <strong>em</strong> conta<br />

essa reflexão, os esforços preventivos precisam ser muito mais abrangentes e voltados para<br />

os precursores dos riscos e da resiliência (Coie et al, 1993).<br />

Estudos indicam que as condições de formação de uma personalidade resiliente são: (a)<br />

colocar expectativas claras relativas ao comportamento; (b) monitorar e supervisionar as<br />

crianças; (c) reforçar com consistência atividades que favoreçam a socialização; (d) criar<br />

oportunidades para o envolvimento familiar; (d) promover o desenvolvimento das<br />

habilidades acadêmicas e sociais dos jovens (Hawkins et al., 1992).<br />

No entanto, as habilidades para a formação de crianças e jovens freqüent<strong>em</strong>ente deveriam<br />

fazer parte de um processo de formação de pais e educadores. A aquisição e o uso dessas<br />

habilidades na administração da família ou dos contextos educativos reduz<strong>em</strong> probl<strong>em</strong>as<br />

de comportamento das crianças nos primeiros anos, promove o bom des<strong>em</strong>penho escolar e<br />

as fortalece para lidar<strong>em</strong> com condições adversas (Hawkins et al, 1992).


20<br />

Pela força da escola e da família nessa etapa da vida, para os pré-adolescentes e<br />

adolescentes é fundamental que pais e educadores estejam atentos a alguns parâmetros<br />

relacionais: (a) uma comunicação livre e fluente com os pais ou com adultos que lhes<br />

serv<strong>em</strong> de modelo fortalece <strong>em</strong>ocionalmente o jov<strong>em</strong> (b) e evita o engajamento <strong>em</strong><br />

comportamentos de risco (Friedman, 1989, Kodjo & Klein, 2002; Tuttle, 2002); (c)<br />

elogios dos pais às conquistas dos filhos e dos educadores a seus estudantes são o<br />

alimento da auto-estima; (d) a colocação de expectativas claras por parte dos pais e<br />

professores, aliada a uma educação com autoridade, que envolve afeto, controle e trato<br />

d<strong>em</strong>ocrático favorece o desenvolvimento psicológico saudável e o sucesso escolar do<br />

adolescente (Steinberg et al, 1989, Steinberg et al, 1992); (e) o monitoramento das<br />

atividades dos jovens, seja por pais ou educadores mostra que eles estão investindo na<br />

segurança dos jovens; (f) o compartilhamento de valores, atitudes e crenças sobre as<br />

drogas (é o caso <strong>em</strong> pauta aqui) é fundamental para o amadurecimento das decisões e da<br />

responsabilização: (g) conhecer os amigos e os pais dos amigos dos filhos é crucial, uma<br />

vez que a pressão dos pares é uma das principais influências para o uso de drogas; (h)<br />

igualmente exigências e expectativas quando ao des<strong>em</strong>penho na escola funciona como um<br />

tipo de monitoramento e de proteção, na medida que se junta ao encorajamento de<br />

atividades <strong>em</strong> que o jov<strong>em</strong> possa ter sucesso; e por fim, (i) o incentivo ao engajamento nas<br />

atividades da escola, da comunidade e de movimentos sociais ou de solidariedade é um<br />

potente fator protetor.<br />

Para Hawkins e colaboradores (1992), os quatro el<strong>em</strong>entos do vínculo social que se<br />

mostram inversamente correlacionados com o uso de drogas são: (a) vínculo forte com os


21<br />

pais; (b) compromisso com a escola; (c) envolvimento regular com atividades da igreja ou<br />

de outros movimentos e (d) crença nas expectativas gerais, normas e valores da sociedade.<br />

Metodologicamente essas intervenções requer<strong>em</strong> intercomunicação com a criança, os pais,<br />

a família e a comunidade. Já que a influência dos pais diminui à medida que as crianças<br />

cresc<strong>em</strong>, o dito popular quanto mais cedo melhor deve guiar os programas de intervenção.<br />

A ênfase no estilo de vida nunca deve ser traduzida como se esse estilo fosse de<br />

responsabilidade exclusiva do indivíduo: tal abordag<strong>em</strong> tenderia a culpar a vítima (Jessor,<br />

1991, 604). O risco precisa ser entendido, como já foi dito, de forma a incluir a<br />

complexidade dos fatores e, portanto, a redução do risco requer tanto mudanças subjetivas<br />

quanto sociais.<br />

Pode-se esperar um maior sucesso dos programas de prevenção que explicitamente<br />

maximizam o ajuste adaptativo entre indivíduos e contextos. Para tal, é necessário ter<br />

sensibilidade para compreender e valorizar a história pessoal, o estágio de vida do<br />

indivíduo, as normas culturais, as crenças e práticas no que concerne ao uso de drogas<br />

(Tec, 1974; Johnson et al, 1984; Coie et al, 1993), b<strong>em</strong> como os contextos sociais e da<br />

comunidade onde esse uso ocorre ou é proscrito (Wallace, Jr,1999).<br />

Conclusão<br />

O uso de drogas é uma questão complexa que perpassa inúmeros sub-sist<strong>em</strong>as da vida<br />

individual e social. As representações sociais que levam à adesão ou à condenação<br />

depend<strong>em</strong> do contexto sócio-cultural. Os constrangimentos impostos numa determinada


22<br />

cultura são diversos <strong>em</strong> outras. Então, é necessário compreender os códigos do contexto e<br />

a rede de significados que envolv<strong>em</strong> a sociedade <strong>em</strong> geral, os grupos específicos dentro de<br />

determinado t<strong>em</strong>po histórico. Muitos estudos têm mostrado como a atribuição de valor<br />

positivo ou proscritivo depend<strong>em</strong> de configurações geográficas e históricas (Velho, 1998)<br />

Esse artigo inicialmente privilegiou o papel da família na prevenção e na promoção da<br />

resiliência, porque ela é a primeira célula mater responsável pela socialização dos<br />

indivíduos. Mas como se viu neste texto, a probl<strong>em</strong>ática não se reduz ao contexto familiar.<br />

O indivíduo, inserido numa rede de relações, vive no contexto sócio-cultural e histórico.<br />

Mas a família t<strong>em</strong> um papel crucial: quando cuidadora, afetiva, amorosa e comunicativa<br />

possui mais chances de promover condições de possibilidades para o desenvolvimento<br />

saudável dos filhos. Por isso, os programas de prevenção de uso de drogas precisam<br />

prever aplicações práticas de orientação familiar. Papel fundamental pode ser exercido<br />

pelos pediatras que acompanham o desenvolvimento e o crescimento da criança (Patton,<br />

1995).<br />

A idéia, quase uma ideologia subentendida no slogan, “diga não às drogas” é um<br />

americanismo que não condiz com a proposta de redução de danos e de promoção da<br />

resiliência. Experimentar drogas lícitas ou ilícitas e usá-las socialmente são atitudes que<br />

faz<strong>em</strong> parte de culturas milenares e é um fato na atualidade. Segundo Lewin (1924) pelo<br />

menos 1/4 da humanidade usa algum tipo de drogas.<br />

Um programa compreensivo e voltado à promoção da saúde precisa entender essa quase<br />

inevitabilidade com a qual convive o ser humano de buscar algum tipo de prazer <strong>em</strong><br />

substâncias que produz<strong>em</strong> algum tipo de sensação. E também entender que a prevenção do


23<br />

abuso de drogas é sinônima de vida saudável, <strong>em</strong>preendimento tão importante para os<br />

jovens que deve incluir a família, a escola, o grupo de pares, a comunidade e a mídia. Tal<br />

abordag<strong>em</strong> requer uma difícil mais factível articulação dos serviços social, educacional e<br />

de saúde, numa visão multidisciplinar e como responsabilidade da sociedade também. O<br />

“combate às drogas” termo militarista proveniente da ideologia americana, como único<br />

foco obsessivo da ação não deveria prevalecer. Promover um crescimento e<br />

desenvolvimento saudáveis, maior igualdade social e de oportunidades, atuar contra a<br />

pobreza e o racismo, voltar-se para o desenvolvimento do protagonismo juvenil são<br />

propostas que converg<strong>em</strong> para o cumprimento do ECA e a favor da d<strong>em</strong>ocracia.<br />

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APÊNDICE IV<br />

Roteiro para a entrevista<br />

Dados Pessoais<br />

1 – Sexo<br />

3 – Com qu<strong>em</strong> mora<br />

5 – Qual é a renda<br />

7 – Você trabalha?<br />

atualmente?<br />

familiar?<br />

2 – Idade 4 – Casa própria ou 6 – Qual é o seu grau 8 − Em quê?<br />

alugada?<br />

de escolaridade?<br />

9 – Para o usuário –<br />

Me fale sobre o seu<br />

uso de drogas.<br />

A – Valores Familiares<br />

Todos Avós e Pais Filhos<br />

Nos dias de hoje, quais<br />

princípios<br />

(de<br />

comportamento) vocês<br />

consideram importantes<br />

ensinar para os filhos e<br />

netos?<br />

Ou: Nos dias de hoje,<br />

quais ensinamentos<br />

vocês consideram<br />

importantes passar para<br />

os filhos e netos?<br />

Vocês os ensinaram?


Coment<strong>em</strong>.<br />

Vocês os colocam <strong>em</strong> prática?<br />

Como?<br />

O que é família para vocês?<br />

Quando necessário, para cada pergunta acrescentar: Vocês vê<strong>em</strong> alguma<br />

possibilidade de modificação? Qual?<br />

B - Conflitos ou Dificuldades entre as Gerações<br />

Hierarquia<br />

Todos Avós e Pais Filhos<br />

Qu<strong>em</strong> criou e cuidou dos<br />

jovens? Como?<br />

Infantilização<br />

Todos Avós e Pais Filhos<br />

Vocês consideram os<br />

seus filhos responsáveis?<br />

E independentes? Como<br />

isso aparece?<br />

O que vocês acham do<br />

que os avós e pais<br />

disseram?<br />

Quando necessário, para cada pergunta acrescentar: Vocês vê<strong>em</strong> alguma<br />

possibilidade de modificação? Qual?


Expectativa<br />

Todos Avós e Pais Filhos<br />

Os sonhos que vocês<br />

sonharam para seus<br />

filhos – profissão, vida<br />

pessoal, amigos – se<br />

parec<strong>em</strong> com os sonhos<br />

que os seus filhos<br />

sonharam para eles?<br />

Fal<strong>em</strong> sobre isso.<br />

Como é o cotidiano da<br />

vida deles com relação à<br />

profissão, vida pessoal e<br />

aos amigos?<br />

Quando necessário, para cada pergunta acrescentar: Vocês vê<strong>em</strong> alguma<br />

possibilidade de modificação? Qual?<br />

C- Educação<br />

Vínculo<br />

Todos Avós e Pais Filhos<br />

Fal<strong>em</strong> um pouco sobre a<br />

relação de vocês com cada<br />

m<strong>em</strong>bro da família – relação<br />

como sendo diálogo,<br />

intimidade, comunicação e<br />

conflito.<br />

Quando necessário, para cada pergunta acrescentar: Vocês vê<strong>em</strong> alguma


possibilidade de modificação? Qual?<br />

Modelo<br />

Todos Avós e Pais Filhos<br />

Vocês acham que os seus<br />

pais foram e/ou são um<br />

modelo de comportamento<br />

(aqui cont<strong>em</strong>plo a hipótese do<br />

‘uso de drogas por um dos<br />

pais’) para ser seguido por<br />

vocês? Fal<strong>em</strong> sobre isso.<br />

Qu<strong>em</strong> você acha que foi o seu<br />

modelo?<br />

Responsabilidades e Limites<br />

Todos Avós e Pais Filhos<br />

Como são distribuídas as<br />

responsabilidades/deveres<br />

dentro da família?<br />

Como cada um se comporta<br />

com relação às<br />

responsabilidades e aos<br />

deveres?<br />

Como é exercida a autoridade<br />

na família? Qu<strong>em</strong> coloca os<br />

limites? Fal<strong>em</strong> sobre isso.<br />

Quando necessário, para cada pergunta acrescentar: Vocês vê<strong>em</strong> alguma<br />

possibilidade de modificação? Qual?


APÊNDICE V<br />

Termo de Consentimento<br />

Número da Família:...........<br />

Trabalho no Núcleo de Estudos e Pesquisa <strong>em</strong> Atenção ao Uso de Drogas<br />

da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Nepad/Uerj, desde a sua fundação<br />

<strong>em</strong> 1986, como terapeuta de famílias que têm probl<strong>em</strong>as de uso abusivo de<br />

drogas. Ao longo desse convívio terapêutico, inúmeras questões passaram a me<br />

inquietar. Preciso de sua colaboração, e da de sua família, para pesquisar uma<br />

delas: quais são os valores importantes para a vida de vocês, por que eles são<br />

importantes e como esses valores são impl<strong>em</strong>entados na prática cotidiana da vida<br />

de vocês. A entrevista, que manterá o sigilo total de sua identidade, será feita por<br />

mim mesma ou pela minha auxiliar de pesquisa.<br />

Preciso gravar a entrevista porque é com este material que vou trabalhar a<br />

minha pesquisa. Então, preciso que você assine esta folha de consentimento de<br />

gravação da entrevista, caso aceite participar da pesquisa.<br />

Se, após termos começado a entrevista, você quiser que algum trecho da<br />

conversa seja apagado é só dizer que assim será feito.<br />

Muito obrigada pela sua participação!

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