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LEITURASCOMPARTILHADAS - Leia Brasil

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<strong>LEITURASCOMPARTILHADAS</strong><br />

<strong>LEITURASCOMPARTILHADAS</strong><br />

ANO 3 | FASCÍCULO 11 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

REVISTA DE (IN) FORMAÇÃO PARA AGENTES DE LEITURA | ANO 4 | FASCÍCULO ESPECIAL 1 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR | LEIABR@LEIABRASIL.ORG.BR | VENDA PROIBIDA<br />

JUVENTUDE<br />

& VIOLÊNCIA<br />

SONHOS PERDIDOS ENTRE<br />

ENTULHOS DA ENCHENTE<br />

MARIA APARECIDA RIBEIRO<br />

Em linhas gerais, o romance de<br />

Paulo Lins explora valores de uma<br />

coletividade. Mais do que a luta<br />

pelos meios de sobrevivência, o<br />

personagem Cidade de Deus orientase<br />

por um modelo de “vida feliz” que<br />

lhe é transmitido tanto pela máquina<br />

publicitária quanto pelo boca-a-boca<br />

cotidiano de suas esquinas.<br />

A população, a princípio<br />

constituída por flagelados de antigas<br />

enchentes cariocas, aflui de todos<br />

os bairros. O governo os aloca, às<br />

pressas e sem maiores cuidados, na<br />

região fronteiriça entre um bairro<br />

praiano, mas ainda pouco explorado,<br />

que começava a atrair os olhares dos<br />

investidores do mercado imobiliário<br />

– a Barra da Tijuca – e uma vasta<br />

região que, localizada na zona oeste<br />

da cidade, a aproximadamente trinta<br />

quilômetros do centro, ainda gozava<br />

de certo bucolismo e um ar de<br />

cidade do interior – Jacarepaguá. Os<br />

prédios de pequenos apartamentos,<br />

as casas pobres de edificação precária<br />

e serviços básicos improvisados,<br />

passam a receber depois centenas<br />

de milhares de pessoas, vindas das<br />

mais diversas áreas da cidade, por<br />

motivos outros que não apenas<br />

os constantes alagamentos. Na<br />

verdade, todo tipo de rejeitados<br />

chega à Cidade de Deus. Como a<br />

uma moderna “terra prometida”, as<br />

levas de pessoas sucedem umas as<br />

outras, pelos motivos mais variados:<br />

desavenças pessoais e familiares em<br />

outras comunidades, o sonho de<br />

“morar no que é seu”, a perda de<br />

emprego, filhos que se envolveram<br />

com a criminalidade em outros<br />

morros. Toda a população tem um<br />

motivo bem concreto para escolher<br />

a Cidade de Deus como endereço.<br />

E apesar da heterogeneidade dos<br />

grupos, todos têm em comum<br />

a busca por uma mudança de<br />

condição de vida. Todos querem, de<br />

alguma forma, alcançar suas metas, o<br />

que poderia significar desde o anseio<br />

por uma vida decente, num local<br />

mais próximo do emprego, com<br />

filhos estudando em boas escolas<br />

públicas e uma qualidade de vida<br />

superior à que tinham em outras<br />

localidades, até o desejo de controlar<br />

o tráfico de drogas numa região em<br />

que esses cargos ainda não se tinham<br />

distribuído. No entanto, mesmo<br />

no caso destes moradores que, de<br />

um modo ou de outro, praticam<br />

algum tipo de contravenção, ainda<br />

é de valores que se está tratando,<br />

os valores materiais, de consumo,<br />

que perseguem. Os sonhos mais<br />

prosaicos – dinheiro, fama e poder,<br />

sucesso com as mulheres, ostentação<br />

– são os que os motiva em suas<br />

ações criminosas:<br />

“<br />

O negócio era chegar à quadra do<br />

Salgueiro ou do São Carlos com uma<br />

beca invocada, um pisante maneiro,<br />

mandar descer cerveja pra rapaziada,<br />

(...)<br />

Comprar um apartamento em<br />

Copacabana, comer filha de doutor, ter<br />

telefone, televisão, dar um pulinho nos<br />

States de vez em quando, ...” 1<br />

continua<br />

1


<strong>LEITURASCOMPARTILHADAS</strong><br />

ANO 3 | FASCÍCULO 11 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

SONHOS PERDIDOS ENTRE<br />

ENTULHOS DA ENCHENTE<br />

IMAGEM DA CAPA: ARTE SOBRE FOTOGRAFIA DE JEAN MANZON.<br />

(continuação)<br />

Os valores imateriais, as crenças e<br />

medos, os sentimentos e superstições<br />

nascidos do sincretismo de diversas<br />

culturas encontram igualmente,<br />

naquele espaço, terreno fértil para<br />

se desenvolverem e arrastarem os<br />

personagens em manobras arriscadas<br />

na direção de suas metas:<br />

“Para se chegar ao céu tem que<br />

passar por todas as estrelas e as estrelas<br />

ficam longe pra caralho. Se o inferno é<br />

embaixo da terra ele está muito mais<br />

próximo. Temia a ira de Deus, mas<br />

tinha vontade de conhecer o Diabo, faria<br />

um pacto com ele para ter tudo na terra .<br />

Ao perceber a proximidade da morte,<br />

se arrependeria de todos os pecados,<br />

ganharia dos dois lados.” 2<br />

As ações empreendidas pelos<br />

personagens passam pela interseção<br />

desses dois conjuntos de valores<br />

- os materiais e os imateriais. As<br />

peripécias em que se envolvem<br />

concentram-se numa zona de atrito<br />

entre aquilo que desejam e aquilo em<br />

que acreditam. Não esquecendo que,<br />

ao chegar nesse novo espaço, muitas<br />

trocas se estabelecem. Valores são<br />

negociados, novas formas de viver<br />

são apreendidas. A ntes de<br />

qualquer coisa, é preciso manter-se<br />

vivo e, para isso, todo cuidado é<br />

pouco, qualquer esforço é válido.<br />

“Uma população inteira a debater-se<br />

em busca de um equilíbrio possível,<br />

indispensável à sua sobrevivência,<br />

mas que a violência encobre e<br />

dissolve num círculo aparentemente<br />

infinito de crueldade, injustiça e<br />

medo.”<br />

Assim os editores resumem o<br />

personagem central do romance na<br />

contracapa do próprio volume. Mais<br />

do que sobreviver, o personagem<br />

Cidade de Deus procura, na<br />

verdade, formas de ser num espaçotempo<br />

que lhe é desfavorável.<br />

As agressões sofridas e praticadas<br />

pelo personagem-cidade nascem<br />

justamente desse atrito. Não é à<br />

toa que a narrativa investe fundo<br />

nas descrições d e cenário, nas<br />

marcações de tempo, na gênese dos<br />

seres que nascem junto com seus<br />

apelidos, seus feitos criminosos,<br />

sua convivência d ifícil e seus<br />

conflitos internos. Os moradores<br />

de Cidade de Deus inauguram um<br />

espaço e um tempo. São os pioneiros<br />

na ocupação de uma região inóspita.<br />

São os que dão origem a um outro<br />

perfil da cidade. Nesse sentido,<br />

são locais e são históricos. É de<br />

um conceito específico de favela<br />

que se está falando - a favela<br />

institucional, criada por uma<br />

deliberação do governo.<br />

Enjeitados de diversas espécies se<br />

cadastram, recebem uma senha e<br />

junto com ela uma nova identidade:<br />

um pedaço de chão para ocupar e<br />

nele tentar marcar seu território, um<br />

período de difícil acomodação, uma<br />

porção da história da cidade<br />

para tentar gerir como puder.<br />

Violência, crueldade, injustiça e medo<br />

não são simplesmente temas em<br />

Cidade de Deus, são os outros novos<br />

moradores com os quais se têm<br />

que conviver diariamente, porque<br />

também se mudaram para aquele<br />

espaço-tempo, em meio às pessoas e<br />

suas bagagens:<br />

“(...) lixo, latas, cães vira-latas,<br />

exus e pomba-giras em guias intocáveis,<br />

dias para se ir à luta, soco antigo para<br />

ser descontado, restos de raiva de tiros,<br />

noites para velar cadáveres, resquícios<br />

de enchentes, biroscas, feiras de quartafeira<br />

e as de domingos, vermes velhos<br />

em barrigas infantis, revólveres, ...<br />

pipas, lombos para polícia bater, moedas<br />

para jogar porrinha e força para tentar<br />

viver.” 3<br />

Dos valores da Cidade e de<br />

suas representações, é disso que<br />

trata Cidade de Deus. De uma<br />

cidade edificada com o entulho<br />

das enchentes e os sonhos de dias<br />

melhores, ainda que não se saiba<br />

exatamente o que esperar desses dias<br />

melhores. O personagem coletivo - de<br />

caráter tão fragmentário como seria<br />

um Macunaíma pós-moderno - se<br />

debate em busca de um equilíbrio muito<br />

pouco provável. Não sabendo o que<br />

de fato deseja, nem como recuperar<br />

o que na verdade nunca teve. Os<br />

valores, os códigos de moral e ética<br />

são tão cambiantes quanto instáveis<br />

são as relações entre os seres, o<br />

que se percebe nas informações<br />

subliminares que a narrativa acaba<br />

transmitindo.<br />

NOTAS<br />

1<br />

LINS, Paulo. Op. Cit. P. 50.<br />

2<br />

LINS, Paulo. Op. Cit. P. 29.<br />

3<br />

Idem e ibidem. P. 18.<br />

MARIA APARECIDA SILVA RIBEIRO é professora e<br />

pesquisadora de Língua, Literatura e Cultura<br />

<strong>Brasil</strong>eira. Doutora em Letras pela PUC-Rio, dá<br />

aulas na Faculdade de Comunicação Social da<br />

Universidade Estácio de Sá<br />

2


<strong>LEITURASCOMPARTILHADAS</strong><br />

ANO 3 | FASCÍCULO 11 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

CRIME E JUVENTUDE<br />

GLÁUCIO ARY DILLON SOARES<br />

Os jovens cometem mais<br />

crimes do que as crianças e do que<br />

os maduros e idosos em todos os<br />

tempos e lugares sobre os quais<br />

há dados. Há quase dois séculos,<br />

um pesquisador chamado Quetelet<br />

“fuçou” as estatísticas de<br />

vários países europeus,<br />

sobretudo as francesas,<br />

que eram excelentes para<br />

a época. Concluiu que “é<br />

perto da idade de 25 anos que<br />

a propensão ao crime atinge o<br />

seu maximum”. Ele mostrou<br />

que homicídios, mortes,<br />

parricídios e envenamentos<br />

– todos – atingiam o seu<br />

número mais alto no<br />

intervalo entre 25 e 30<br />

anos, mas o maximum das<br />

mulheres era cinco anos maior do<br />

que o dos homens. O crime e a<br />

violência, em geral, e o homicídio,<br />

em particular, são fenômenos<br />

jovens, sendo jovens tanto as vítimas<br />

quanto os assassinos. Porém, a idade<br />

precisa na qual se observa o pico de<br />

freqüências varia de país para país, de<br />

época para época, e de acordo com o<br />

crime específico. No <strong>Brasil</strong>, os dados<br />

sobre a autoria dos crimes são muito<br />

precários, mas os sobre as vítimas<br />

de homicídio são razoáveis. Sua<br />

análise permite algumas conclusões:<br />

considerando as vítimas, a taxa de<br />

homicídio de ambos sexos, de 0<br />

a 14 anos por 100.000, é mínima<br />

por padrões brasileiros, mas ela<br />

salta dramaticamente na faixa de<br />

15 a 19 anos, particularmente entre<br />

os homens. As taxas de homicídio<br />

atingem o seu ápice na faixa de 20 a<br />

24 anos entre os homens e de 25 a 29<br />

entre as mulheres, sendo pequena a<br />

diferença entre as taxas da faixa de 20<br />

a 24 e a de 25 a 29 entre as mulheres.<br />

Há, também, diferenças de raça e cor<br />

da pele. Os negros têm uma taxa de<br />

vitimização bem mais alta do que<br />

os brancos, particularmente entre<br />

adolescentes e jovens adultos. Antes<br />

dos 15 e depois dos 55, as diferenças<br />

são pequenas.<br />

Além da idade e da raça, outros<br />

fatores contribuem para aumentar<br />

ou diminuir a probabilidade<br />

de vitimização. No <strong>Brasil</strong>, para<br />

cada mulher assassinada há,<br />

arredondando, dez homens. Nos<br />

países industrializados essa diferença<br />

é menor, mas em alguns países<br />

muçulmanos ela é ainda maior.<br />

Os solteiros também são mais<br />

vitimizados do que os casados. A<br />

explicação para isso tem que ver<br />

com as atividades de rotina e o risco<br />

que elas acarretam. Casados ficam<br />

mais em casa, onde o risco é baixo,<br />

e solteiros saem mais e freqüentam<br />

lugares mais perigosos, como<br />

biroscas, bares, bailes. A mesma<br />

lógica nos leva a concluir que os<br />

religiosos estão mais protegidos<br />

contra as situações de alto risco,<br />

ainda que os dados a respeito de<br />

religião sejam mais difíceis de<br />

coletar. Gênero, idade, estado civil<br />

e raça, variáveis individualizadas<br />

sobre as quais há dados (ainda que<br />

de qualidade variável), se combinam<br />

para explicar grandes<br />

diferenças na probabilidade<br />

de vitimização, que pode<br />

variar de altíssima entre<br />

homens, jovens, solteiros<br />

e negros a bem baixa entre<br />

mulheres, idosas, casadas<br />

e brancas. Essas diferenças<br />

não são apenas curiosidades<br />

estatísticas: elas significam<br />

vidas perdidas, cada ano,<br />

mês, semana ou dia, todos<br />

os anos. Se a taxa dos<br />

negros fosse igual à dos<br />

brancos, 8.201 negros deixariam de<br />

morrer em 2000; 37.809 homens<br />

deixariam de morrer se a taxa<br />

masculina de 49,6 fosse igual a das<br />

mulheres, de 4,3; 17.261 solteiros,<br />

cuja taxa é 39,2, deixariam de morrer<br />

se a taxa fosse igual a dos casados<br />

(16,2) e 23.185 solteiros deixariam<br />

de morrer se a taxa fosse igual a<br />

dos viúvos (8,3). Diferenças grandes<br />

também são observadas em relação<br />

à idade e se adolescentes e jovens<br />

adultos tivessem a mesma taxa de<br />

vitimização por homicídio que<br />

idosos e idosas, muitos milhares de<br />

vidas seriam salvas. Combinando<br />

diferentes variáveis relevantes,<br />

vemos que a diferença entre os<br />

extremos – homens negros, solteiros<br />

e jovens (20 a 24 anos) e mulheres<br />

casadas, idosas (mais de 60 anos) é<br />

imensa.<br />

continua<br />

3


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ANO 3 | FASCÍCULO 11 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

CRIME &<br />

JUVENTUDE<br />

JUVENTUDE E VIDA URBANA:<br />

CAMINHANDO COM (E CONTRA) SÍSIFO<br />

(continuação)<br />

A taxa dos primeiros é noventa<br />

e duas vezes a taxa das últimas, ou<br />

9.187%!<br />

Taxas de vitimização por homicídios<br />

por cem mil habitantes de grupos<br />

selecionados, <strong>Brasil</strong>, 2000.<br />

homem, negro,<br />

solteiro, com<br />

idade entre 20 e<br />

24 anos<br />

mulher, branca,<br />

viúva, com<br />

mais de 60 anos<br />

mulher, branca,<br />

casada, com<br />

mais de 60 anos<br />

137.8<br />

2.3<br />

1.5<br />

Esses dados mostram,<br />

muito além de qualquer dúvida<br />

estatística, que os homicídios não<br />

se distribuem aleatoriamente na<br />

estrutura social e demográfica do<br />

país. A Criminologia estuda essas<br />

regularidades e se propõe a conhecer<br />

melhor o fenômeno e, se possível,<br />

propor medidas que reduzam essas<br />

mortes desnecessárias.<br />

GLÁUCIO ARY DILLON SOARES é doutor em Sociologia<br />

pela Washington University e professor do Instituto<br />

Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).<br />

“Eduquem as crianças e<br />

não será necessário castigar<br />

os homens”.<br />

Pitágoras (século VI a.C.), filósofo<br />

e matemático Grego.<br />

JAILSON DE SOUZA E SILVA<br />

“Os deuses condenaram Sísifo a<br />

empurrar incessantemente uma rocha<br />

até o alto de uma montanha, de onde<br />

tornava a cair por seu próprio peso.<br />

Pensaram, com certa razão, que não<br />

há castigo mais terrível que o trabalho<br />

inútil e sem esperança. Se dermos crédito<br />

a Homero, Sísifo era o mais sábio e<br />

prudente dos mortais. Mas, segundo<br />

uma outra tradição, ele tendia para o<br />

ofício de bandido. Não vejo contradição<br />

nisso”. (Albert Camus) 1<br />

O tratamento dos vínculos<br />

existentes entre juventude e vida<br />

urbana suscita uma série de questões.<br />

Dentre elas, gostaria de tratar, nesse<br />

breve artigo, de pelo menos três: a<br />

identidade do jovem e sua inserção<br />

na cidade; os pressupostos dos<br />

discursos que vinculam juventude e<br />

violência; e, o mais significativo para<br />

o debate, as possíveis contribuições<br />

da juventude para a democratização<br />

da cidade.<br />

Em texto anterior sobre a<br />

juventude carioca 2 , afirmava que a<br />

população das grandes metrópoles,<br />

em geral, vem desenvolvendo<br />

uma progressiva presentificação e<br />

a particularização da existência. A<br />

particularização se caracteriza pela<br />

valorização da vivência em um<br />

território homogêneo, de “iguais”,<br />

sem parâmetros mais abrangentes<br />

de inserção na pólis. O lugar, físico<br />

e social, é o ponto de partida e de<br />

chegada para a inserção na cidade.<br />

A presentificação, por sua vez,<br />

expressa uma prática social que se<br />

manifesta como um “eterno agora”.<br />

Ela caracteriza o que Espinoza<br />

vai definir como prazer - a busca<br />

incessante do que oferece retorno<br />

imediato, termo antônimo, para<br />

o filósofo, da alegria - a busca<br />

do que oferece retorno mediato.<br />

O ser humano presentificado e<br />

particularizado é representado,<br />

por excelência, pelo Consumidor.<br />

Sem noção de passado ou de<br />

futuro, voltado para a aquisição<br />

de bens materiais e distintivos, ele<br />

não investe em projetos de longo<br />

prazo, tais como a educação, em seu<br />

sentido maior, não desenvolve uma<br />

maior preocupação ambiental e tem<br />

como referência ética fundamental a<br />

sua satisfação pessoal e, no limite, a<br />

de seu grupo familiar.<br />

Com isso, fragiliza-se a<br />

democracia e o exercício da<br />

cidadania, tornando-se cada vez<br />

mais raro o contato com a<br />

diversidade, com o outro. Há<br />

uma progressiva perda, então, do<br />

sentido da vida coletiva, fato que<br />

gera o aumento da intolerância, da<br />

sensação de insegurança, além da<br />

dificuldade em incorporar uma ética<br />

de responsabilidade em relação ao<br />

espaço público.<br />

Nesse jogo, no qual se disputa o<br />

futuro da Pólis, os jovens cumprem<br />

um papel fundamental. Com efeito,<br />

nenhuma figura expressa melhor<br />

a juventude – a atual e todas as<br />

outras – do que a mítica Esfinge,<br />

com seu eterno e dramático convite<br />

“decifra-me ou te devoro”. A razão de<br />

ser da juventude é devorar a geração<br />

anterior, reconstruindo, sob novas<br />

referências, a caminhada de Sísifo, o<br />

rei condenado pelos deuses pela falta<br />

continua<br />

4


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ANO 3 | FASCÍCULO 11 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

JUVENTUDE E VIDA URBANA:<br />

CAMINHANDO COM (E CONTRA) SÍSIFO<br />

(continuação)<br />

de temor ao seu poder.<br />

A pena de Sísifo é viver o<br />

cotidiano, como labuta e com poucas<br />

pausas para a reflexão - reduzidas ao<br />

momento de liberdade em que ele<br />

desce da montanha para retomar sua<br />

sina. Como os deuses, os discursos<br />

adultocêntricos continuam a afirmar<br />

que a principal característica da<br />

juventude é sua incompletude. Ela<br />

não estaria preparada para viver na<br />

cidade, nos espaços de poder. Seus<br />

espaços são limitados, controlados<br />

e, no caso dos jovens pobres da<br />

periferia e das favelas, são, cada vez<br />

mais, do tamanho de um caixão.<br />

Cabe aos jovens construírem<br />

suas caminhadas de forma distinta<br />

das traçadas por seus antecessores, ou<br />

não. Nesse processo de escolha, há<br />

várias formas de um novo presente<br />

ser construído. O primeiro passo é<br />

reconhecer que os jovens formam<br />

em territórios múltiplos, marcados<br />

pela diversidade, diferentes redes<br />

sociais, variados mecanismos para<br />

a expressão dos desejos, temores e<br />

crenças – da subjetividade. Mesmo<br />

manifestas, muitas vezes, em “tribos”,<br />

“galeras” e/ou grupos restritivos,<br />

essas redes podem ser referências<br />

preliminares para a inserção social<br />

mais abrangente. Mais do que<br />

materializar produtos concretos,<br />

as redes dos jovens, vistos como<br />

cidadãos e, portanto, constituídos<br />

de poder, podem estimular que<br />

diferentes grupos se encontrem,<br />

partilhem suas experiências e<br />

tenham possibilidade, de acordo<br />

com suas características e interesses,<br />

de articular iniciativas comuns.<br />

A palavra-chave continua sendo<br />

o encontro. E, a esse respeito, os<br />

jovens têm muito a ensinar. Em<br />

uma cidade marcada pela segregação<br />

e insegurança, eles são os que mais<br />

buscam novas experiências, construir<br />

novos vínculos, abrir-se para a<br />

diferença. No cotidiano na cidade,<br />

das mais variadas formas, entre os<br />

jovens e/ou os seus grupos diferentes<br />

encontros estão ocorrendo.<br />

O que eles precisam, no plano do<br />

poder, é deixar de ser considerados<br />

como objetos de políticas públicas.<br />

De ouvir palavras, proferidas com<br />

ótimas intenções, de que eles<br />

devem ser retirados das drogas, da<br />

violência e de uma vida sem projetos.<br />

Isso porque, mesmo quando se fala<br />

em torná-los protagonistas, a lógica é<br />

modelar, enformar, enquadrar.<br />

Até agora, os discursos<br />

adultocêntricos buscaram apenas<br />

exigir dos jovens das cidades - e<br />

dos campos - que subam a rocha<br />

montanha acima e cumpram sua<br />

pena, como novos Sísifos. Cabe,<br />

todavia, estimular a construção de<br />

um novo discurso hegemônico.<br />

Nele, repetindo a ousadia do nosso<br />

mítico transgressor, tão humano,<br />

espaços serão propostos para<br />

garantir-se uma ação protagonista<br />

e abrangente dos jovens nas ações<br />

públicas da pólis.<br />

Nesse momento, os jovens, na<br />

sua diversidade, serão reconhecidos<br />

como elementos centrais na produção<br />

de políticas, sejam as sociais,<br />

ambientais, culturais e educacionais;<br />

deixarão de ser identificados<br />

como objetos das ações ou como<br />

problemas a serem controlados.<br />

Passarão a ser reconhecidos como<br />

parceiros na construção de uma<br />

nova cidade, mais solidária e justa.<br />

Nesse momento, a cidade estará, em<br />

seu cotidiano, sendo revolucionada.<br />

E Sísifo poderá, então, no mundo<br />

da utopia coletiva, ser libertado<br />

de sua pena e premiado por sua<br />

ousadia maior, a de ser humano,<br />

simplesmente humano.<br />

NOTAS<br />

1<br />

Albert Camus - O Mito de Sísifo. Ed. Record,<br />

2004, São Paulo.<br />

2<br />

Cf. Boletim Trabalho e Sociedade - Jovens<br />

- N º 1 - Março 2001 - IETS - Rio de Janeiro.<br />

JAILSON DE SOUZA E SILVA é professor da UFF/RJ<br />

e diretor do Centro de Estudos e Ações Solidárias<br />

da Maré - CEASM. Geógrafo pela UFRJ, é Mestre<br />

e Doutor em Sociologia da Educação pela PUC/RJ.<br />

Publicou em livro sua tese de doutorado: Por que<br />

uns e não outros?.<br />

EXPEDIENTE<br />

Editor: Jason Prado<br />

Subeditora: Ana Claudia Maia<br />

Redação: César Guerra Chevrand<br />

Direção de arte e produção gráfica: Pedro Fraga<br />

Revisão: Sueli Rocha<br />

Tiragem: 4.000 exemplares<br />

<strong>Leia</strong> <strong>Brasil</strong><br />

- Organização Não Governamental de Promoção da Leitura<br />

Praia do Flamengo, 100/902 - Flamengo<br />

Rio de Janeiro CEP. 22210-030<br />

Tel/Fax: (21) 22245-7108<br />

leiabr@leiabrasil.org.br<br />

www.leiabrasil.org.br<br />

Leituras Compartilhadas é uma publicação do <strong>Leia</strong> <strong>Brasil</strong><br />

distribuída gratuitamente às escolas conveniadas.<br />

Todos os direitos foram cedidos pelos autores para os<br />

fins aqui descritos. Quaisquer reproduções (parciais ou<br />

integrais) deverão ser autorizadas previamente.<br />

Os artigos assinados refletem o pensamento de seus<br />

autores.<br />

<strong>Leia</strong> <strong>Brasil</strong> e Leituras Compartilhadas são marcas<br />

registradas<br />

Impresso na Ediouro Gráfica e Editora S.A<br />

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<strong>LEITURASCOMPARTILHADAS</strong><br />

ANO 3 | FASCÍCULO 11 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

DE CONVERSA EM<br />

CONVERSA<br />

MARIA HELENA RIBEIRO<br />

Para mobilizar os alunos sobre<br />

o tema Juventude e Violência,<br />

começamos sugerindo que vocês,<br />

professores, iniciem com a leitura<br />

de raps do MV BILL, como por<br />

exemplo, Cidadão Comum Refém;<br />

ou de Meu Guri, música de Chico<br />

Buarque; ou ainda de uma notícia<br />

de jornal sobre o envolvimento de<br />

jovens de classe média e alta em<br />

brigas e agressões graves nas boates<br />

e festas; ou talvez, de um assassinato<br />

de um jovem negro de alguma<br />

favela por aí; de uma entrevista<br />

com um jovem, vítima de Bulling;<br />

com a exibição de um DVD ou<br />

vídeo sobre Carandiru ou Cidade<br />

de Deus; finalmente, com a leitura<br />

de um texto ficcional que mostre,<br />

por exemplo, as agressões de bruxas,<br />

madrastas, “demônios” ou as de<br />

algum mito.<br />

Apresentar e ler em sala de aula<br />

esse pequeno acervo de textos sobre<br />

violência, em diversas linguagens<br />

e discursos, fazendo com eles as<br />

devidas análises e correlações, é<br />

uma forma de abrir uma discussão<br />

sobre o tema, dando aos alunos um<br />

conhecimento mínimo suficiente<br />

para provocar criação, partir<br />

para uma produção, coletiva ou<br />

individual, de seus próprios textos,<br />

suas próprias histórias. O ato de<br />

criar deve ser o grande barato de uma<br />

Unidade de Leitura.<br />

Começar lendo, na narrativa de<br />

ficção ou na atualidade, situações<br />

de violência pode ser uma boa<br />

estratégia para que os alunos sintamse<br />

desafiados a encontrar outras<br />

situações que se contraponham a<br />

essas realidades.<br />

Ao contrário de começar<br />

lendo a violência na violência, por<br />

que não começar com o inverso?<br />

Acreditamos que mobilizar,<br />

mexendo com valores positivos,<br />

talvez seja mais interessante!<br />

Podemos também chegar a uma<br />

reflexão sobre a violência, optando<br />

por textos que versem sobre a<br />

cultura da Paz: o amor, a amizade,<br />

a solidariedade, a esperança, a<br />

alegria, a tolerância e o respeito às<br />

características individuais de cada<br />

pessoa.<br />

Dando ênfase ao<br />

desenvolvimento de habilidades<br />

sociais e ao respeito aos direitos<br />

humanos fundamentais no cotidiano<br />

das pessoas e coletividades, estamos<br />

gerando condições para que os<br />

jovens e adolescentes sejam capazes<br />

de viver juntos, compartilhar, saber<br />

ouvir, respeitar diferenças, saber<br />

argumentar e zelar uns pelos outros.<br />

Desafiemos os alunos a buscarem<br />

esses textos em jornais (que pouco<br />

exploram esses valores), façamos<br />

um contrato de trabalho para que<br />

pesquisem histórias, escritas ou<br />

orais, antigas ou contemporâneas,<br />

sobre a convivência humana, sobre<br />

as relações de pais e filhos, de irmãos<br />

e de amigos, promovamos jogos que<br />

ensinem a produzir ficção em grupo,<br />

oralmente, como, por exemplo, o<br />

RPG, cujos subsídios poderemos<br />

buscar no livro “saidinho do forno”<br />

Roleplaying Game e a Pedagogia<br />

da Imaginação no <strong>Brasil</strong>, de Sônia<br />

Rodrigues, da Editora Bertrand<br />

<strong>Brasil</strong>.<br />

Com essa perspectiva,<br />

num segundo momento - o<br />

desenvolvimento da Unidade,<br />

propriamente dito - a sugestão é<br />

de promover leituras coletivas;<br />

trabalhos de grupo, em sala de<br />

aula, bem entendido; contar e ler<br />

histórias; conversar sobre diversos<br />

assuntos, dando oportunidade a<br />

todos de falarem, de se expressarem;<br />

fazer painéis com fotos de famílias<br />

ou da comunidade onde os<br />

alunos vivem, tirar fotos deles em<br />

momentos de alegria e união e,<br />

posteriormente, colocá-las no painel;<br />

ler, sobre a PAZ, poesias que podem<br />

ser pesquisadas (existem muitas de<br />

diversos poetas), buscar nos livros<br />

(hoje existem muitos) cartas de<br />

amor entre amantes, entre amigos e<br />

parceiros, entre pais e filhos, como,<br />

por exemplo, as do historiador Joel<br />

Rufino ao filho, apresentadas em<br />

livro publicado pela Editora Rocco;<br />

promover passeios a lugares calmos<br />

e bucólicos, onde os alunos possam<br />

se ouvir, ouvir os colegas ou os<br />

barulhos da natureza.<br />

Criar situações – momentos<br />

culturais – nas quais os alunos<br />

mostrem seus talentos e habilidades,<br />

alguma coisa produzida por eles:<br />

um texto, uma história contada,<br />

um brinquedo confeccionado,<br />

um desenho ou pintura, uma<br />

dança, uma poesia, enfim qualquer<br />

produção deles que possa ser<br />

valorizada e estimulada. Este tipo<br />

de atividade desenvolve a autoestima<br />

e a sociabilidade dos jovens,<br />

podendo minimizar o fenômeno<br />

do comportamento agressivo, pelo<br />

menos na Escola, entre os colegas.<br />

Tudo isso entremeado com<br />

continua<br />

6


<strong>LEITURASCOMPARTILHADAS</strong><br />

ANO 3 | FASCÍCULO 11 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR<br />

DE CONVERSA EM<br />

CONVERSA<br />

(continuação)<br />

muitos textos ficcionais, de<br />

preferência, sempre à disposição dos<br />

alunos, para que possam escolher<br />

os melhores para eles. Lembramos<br />

que vocês, professores, devem lê-los<br />

também, para dialogar com seus<br />

alunos e ajudá-los na produção<br />

de sentido nas leituras. Todas as<br />

estratégias devem ser usadas para<br />

que eles leiam. Facilitar, estimular<br />

sim, contanto que leiam. Não sejam<br />

condescendentes. Mostrem como a<br />

leitura é importante na construção<br />

de um projeto de vida.<br />

A próxima etapa da Unidade,<br />

a produção. Produzir idéias, textos,<br />

histórias é de suma importância para<br />

o processo de leitura, principalmente<br />

quando se trata de jovens. Essa é<br />

uma atividade para ser realizada de<br />

preferência em forma de jogo e em<br />

grupo.<br />

Lembro-me bem de quando<br />

ainda dava aulas: fazia uma roda de<br />

alunos, lançava o nome de uma pessoa<br />

na roda e eles, a partir desse nome,<br />

começavam a produzir<br />

uma história. Cada aluno era<br />

convidado a dar continuidade<br />

ao texto produzido pelo colega<br />

anterior, e a roda rodava, rodava, até<br />

que a história terminava. Era ótima<br />

essa forma coletiva de criar textos!<br />

Depois eles passavam pro<br />

caderno, com orgulho, a história<br />

produzida. Ríamos muito durante<br />

o jogo, mas tudo o que eles falavam<br />

era aproveitado e respeitado.<br />

Na época, era a atividade que<br />

mais gostavam, apesar de algumas<br />

vezes discordarem do final dado<br />

pelos últimos alunos. Quando<br />

escreviam no caderno, davam outros<br />

encaminhamentos para a história,<br />

seus próprios encaminhamentos.<br />

Fazíamos muito esse tipo de<br />

produção coletiva e, com isso, eles<br />

foram melhorando o próprio texto.<br />

Debates em sala de aula sobre<br />

acontecimentos da atualidade<br />

também dão oportunidade para<br />

produzirem idéias. Ao final dos<br />

debates, convide-os a escreverem<br />

sobre o assunto.<br />

Finalmente a avaliação<br />

– última etapa da Unidade. De posse<br />

dessas várias leituras e narrativas<br />

produzidas, com essa bagagem toda<br />

de idéias, sentidos, conclusões e<br />

mesmo dúvidas, os alunos devem ser<br />

desafiados a identificar argumentos<br />

ou elementos, nos textos de<br />

natureza oposta, que interferem<br />

ou justificam tudo aquilo que se<br />

falou durante a Unidade. Podem ser<br />

desafiados também, a reconhecer, na<br />

comunidade em que vivem, pessoas<br />

que têm diferentes posturas, ou<br />

projetos de vida diferentes dos seus<br />

e a tentar descobrir as causas disso.<br />

Enfim, devemos trazer para a sala<br />

de aula, outros textos, ficcionais ou<br />

não, que tenham a ver com aquilo<br />

que se discutiu em sala e aula.<br />

A Leitura pode não ser a<br />

panacéia para todos os males, como<br />

se diz nos discursos acadêmicos.<br />

Mas se descobre o quanto ela<br />

é importante para trabalhar<br />

sentimentos emoções, habilidades<br />

e aptidões, para aumentar a autoestima,<br />

romper com preconceitos,<br />

diminuir tensões, dar segurança<br />

e alimentar a esperança, o jovem<br />

pode vir a ser o melhor dos leitores<br />

e construir seu projeto de vida longe<br />

da violência e do medo.<br />

Em tempo lembramos que,<br />

quando ele se apaixona pela leitura,<br />

é o melhor agente multiplicador de<br />

práticas leitoras, consegue mobilizar<br />

outros jovens e se sente muito<br />

importante nesse trabalho.<br />

MARIA HELENA RIBEIRO é educadora e<br />

promotora de leitura.<br />

RPBC<br />

ONG DE PROMOÇÃO DA LEITURA<br />

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