12.11.2014 Views

Leituras de nós – ciberespaço e literatura. Alckmar - Itaú Cultural

Leituras de nós – ciberespaço e literatura. Alckmar - Itaú Cultural

Leituras de nós – ciberespaço e literatura. Alckmar - Itaú Cultural

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

leituras <strong>de</strong> nós<br />

c i b e re s p a ç o e l i t e r a t u r a<br />

alckmar luiz dos santos


leituras <strong>de</strong> nó s<br />

c i b e r e s p a ç o e l i t e r a t u r a<br />

alckmar luiz dos santos


Catalogação Itaú <strong>Cultural</strong><br />

Santos, <strong>Alckmar</strong> Luiz dos.<br />

<strong>Leituras</strong> <strong>de</strong> nós: ciberespaço e <strong>literatura</strong>. — São Paulo: Itaú <strong>Cultural</strong>, 2003.<br />

148 p. : il. – (Rumos Itaú <strong>Cultural</strong> Transmídia).<br />

Índice Onomástico<br />

ISBN 85-85291-39-7<br />

1. Arte e Tecnologia 2. Literatura e Tecnologia 3. Ciberespaço 4. Narrativa<br />

5. I. Santos, <strong>Alckmar</strong> Luiz dos II. Título<br />

CDD 700.105


leituras <strong>de</strong> nó s<br />

c i b e r e s p a ç o e l i t e r a t u r a<br />

alckmar luiz dos santos


Para Daniel<br />

Para Ana Luíza


M.C. Escher Bond of Union c 2003 Cordon Art B.V. - Baarn - Holland. Todos os direitos reservados


Uma das mais importantes ações do Itaú <strong>Cultural</strong> se evi<strong>de</strong>ncia no programa Rumos, <strong>de</strong><br />

apoio à produção artística brasileira, que contempla cada área com a qual a instituição<br />

trabalha – artes visuais, cinema e ví<strong>de</strong>o, dança, <strong>literatura</strong>, mídia arte e música.<br />

Fincado sobre o tripé formação, fomento e difusão, Rumos caracteriza-se pelo<br />

mapeamento da nova produção em todo o território nacional.<br />

Rumos é formação quando proporciona a artistas, curadores e pesquisadores a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar <strong>de</strong> cursos, workshops e ativida<strong>de</strong>s que ampliem seus<br />

horizontes intelectuais e profissionais.<br />

Rumos é fomento porque abre espaço para a manifestação <strong>de</strong> novos artistas e<br />

linguagens, fornecendo condições necessárias ao seu <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Rumos é difusão, pois garante a circulação <strong>de</strong>ssa produção – via exposições, exibições,<br />

espetáculos, registros fonográficos e vi<strong>de</strong>ográficos e publicações impressas e eletrônicas.<br />

Formatado com base em editais <strong>de</strong> inscrição separados por área <strong>de</strong> expressão artística e<br />

com características próprias que se coadunam com a política cultural da instituição,<br />

Rumos já recebeu 7.007 projetos, dos quais 333 foram selecionados por equipes<br />

compostas <strong>de</strong> profissionais especializados.<br />

rumos itaú cultural transmídia<br />

A primeira edição do Rumos Itaú <strong>Cultural</strong> Transmídia, ocorrida em 2002, baseou-se<br />

no princípio <strong>de</strong> que arte tecnológica, arte eletrônica, arte digital e mídia arte são<br />

conceitos, e não <strong>de</strong>finições, <strong>de</strong> uma fronteira em contínuo movimento.<br />

O programa privilegiou como campos <strong>de</strong> atuação ambientes imersivos, arte biológica,<br />

arte telemática, computador como mídia, inteligência artificial, espetáculos multimídia<br />

e instalações interativas. O objetivo do mapeamento foi <strong>de</strong>tectar indícios da<br />

incorporação <strong>de</strong>ssas novas linguagens na produção artística. Entre 540 trabalhos


inscritos, foram contempladas 13 produções e pesquisas sobre a convergência <strong>de</strong><br />

linguagens, mídias e tecnologias, <strong>de</strong> realizadores <strong>de</strong> São Paulo, Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

Pernambuco, Santa Catarina e Distrito Fe<strong>de</strong>ral.<br />

Os projetos foram selecionados por uma comissão in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> acordo com três<br />

modalida<strong>de</strong>s: Produção, que apóia a execução <strong>de</strong> obras inéditas; Desenvolvimento<br />

<strong>de</strong> Projeto, voltada à formatação <strong>de</strong> propostas; e Publicação <strong>de</strong> pesquisas já<br />

realizadas. Nesta modalida<strong>de</strong>, foram contemplados <strong>Leituras</strong> <strong>de</strong> Nós: Ciberespaço e<br />

Literatura, <strong>de</strong> <strong>Alckmar</strong> Luiz dos Santos; Arte Telemática: Dos Intercâmbios Pontuais aos<br />

Ambientes Virtuais Multiusuário, <strong>de</strong> Gilbertto Prado; e A Dança dos Encéfalos Acesos,<br />

<strong>de</strong> Maíra Spanghero.<br />

A comissão foi formada por profissionais <strong>de</strong> renome nos campos <strong>de</strong> atuação acima<br />

citados: André Lemos, professor da UFBA; Antonio Carlos Barbosa <strong>de</strong> Oliveira, diretor<br />

executivo do Itaú <strong>Cultural</strong>; Arlindo Machado, professor do programa <strong>de</strong> pós-graduação<br />

em comunicação e semiótica da PUC, São Paulo; Fernando Perez, diretor científico da<br />

Fapesp; Jézio Gutierre, editor executivo da Editora da Unesp; Jimmy Leroy, diretor <strong>de</strong><br />

arte da MTV Brasil; Helena Katz, crítica <strong>de</strong> dança; Loop B, DJ e produtor <strong>de</strong> música<br />

eletrônica; Lucia Santaella, professora do programa <strong>de</strong> pós-graduação em comunicação<br />

e semiótica da PUC, São Paulo; e Suzete Venturelli, professora da UnB.<br />

O ensaio <strong>Leituras</strong> <strong>de</strong> Nós: Ciberespaço e Literatura busca enten<strong>de</strong>r os caminhos da<br />

criação poética em computadores e em re<strong>de</strong>s, com base em um mapeamento dos<br />

hipertextos, dos programas e das páginas que veiculavam poemas e criações<br />

aparentemente literárias na internet. Acompanha o livro um poema a ser lido em<br />

ambiente hipertextual <strong>de</strong> navegação e publicado em forma <strong>de</strong> CD-ROM.<br />

Pós-doutorando na Université <strong>de</strong> Paris III (Sorbonne-Nouvelle), <strong>Alckmar</strong> Luiz dos<br />

Santos é professor da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina, vencedor do Prêmio<br />

Re<strong>de</strong>scoberta da Literatura Brasileira (revista Cult), do Prêmio Nacional <strong>de</strong> Poesia Visual<br />

Joan Brossa (Espanha), e obteve segundo lugar no Prêmio Scortecci <strong>de</strong> Poesia.


Prólogo, à guisa <strong>de</strong> advertência<br />

Este livro contém uma série <strong>de</strong> reflexões sobre a criação poética em meio digital. Elas foram organizadas<br />

em forma <strong>de</strong> ensaios, a que se quis impingir certo arremedo <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m argumentativa. Daí o apelo à<br />

silogística das premissas e das conclusões, que vão dando fio condutor à leitura <strong>de</strong> cada ensaio. Contudo,<br />

estaria faltando um elemento importante, se, ao exercício do campo teórico, não se somasse a prática da<br />

criação. Como resultado, se encontra anexo um ce<strong>de</strong>rrom contendo versos que foram dados à leitura em<br />

espaço digital, com ferramentas <strong>de</strong> navegação fornecidas pela informática. O mais é exercício <strong>de</strong> ousadias<br />

que cada leitor irá tratando <strong>de</strong> construir a seu modo, ao longo dos espaços que <strong>de</strong>ixo abertos a suas<br />

investidas e investigações.<br />

O autor<br />

Ilha <strong>de</strong> Santa Catarina, setembro <strong>de</strong> 2003


Sumário<br />

Introdução, à vera<br />

Premissa Maior: A Multiplicação dos Fragmentos<br />

Prolegômenos a uma Ciência do Assim Chamado<br />

Texto Literário em Meio Eletrônico 19<br />

I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e Subjetivida<strong>de</strong>s no Ciberespaço 24<br />

Saber o/no/do Ciberespaço 34<br />

Novas Estéticas Eletrônicas? 44<br />

Premissa Menor: Espaços <strong>de</strong> Escritas<br />

Uma Possível ou Pretensa Literarieda<strong>de</strong> 59<br />

O Texto Eletrônico como Produtivida<strong>de</strong>, ou as Relações entre Autor e Leitor 67<br />

Interferências e Dualida<strong>de</strong>s 76<br />

Conclusão Primeira: Novida<strong>de</strong> e Repetição 97


Conclusão Segunda: Transbordos e<br />

Reformações do Texto Eletrônico<br />

Excesso e Excessivo 113<br />

Variações em Torno <strong>de</strong> um Tema Mesmo 116<br />

Resumindo: Dicotomias e Reversibilida<strong>de</strong>s 119<br />

Anexos<br />

Bibliografia 138<br />

Índice Onomástico 144


“A vida é muito discordada.<br />

Tem partes.<br />

Tem artes (...)<br />

e as vertentes do viver.”<br />

João Guimarães Rosa, Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas


introdução,à vera


Viver é <strong>de</strong> sempre, e muito, perigoso.<br />

E, entre os vários perigos que espreitam<br />

essa nossa empreita <strong>de</strong> percursos poéticos<br />

em ciberespaços, acrescentem-se dois:<br />

um primeiro, o refúgio no passado, na comodida<strong>de</strong><br />

das tradições e dos pensamentos já feitos e refeitos;<br />

um segundo, o encanto <strong>de</strong>smesurado com as<br />

técnicas, os processos e as ferramentas.<br />

Para escapar a ambos, a única possibilida<strong>de</strong> que se<br />

vislumbra, do ponto e da situação em que escrevo,<br />

é a <strong>de</strong> enveredar por um percurso <strong>de</strong> conhecimento:<br />

conhecimento do ciberespaço através do poético,<br />

do poético através do ciberespaço.<br />

Lembrando sempre que “poético”, aqui, quer indicar<br />

preferencialmente a poesia eletrônica.<br />

Ou digital. Ou telemática.<br />

Ou qualquer outro nome, que eles são legião.


premissa maior<br />

a multiplicação<br />

dos fragmentos


“Ours is essentially a tragic age,<br />

so we refuse to take it tragically.<br />

The cataclysm has happened, we are among<br />

the ruins, we start to build up new little<br />

habitats, to have new little hopes.<br />

It is rather hard work:<br />

there is now no smooth road into the future:<br />

but we go round, or scramble over the<br />

obstacles. We’ve got to live,<br />

no matter how many skies have fallen.” 1<br />

D. H. Lawrence, Lady Chaterley’s Love


Prolegômenos a uma Ciência do Assim Chamado<br />

Texto Literário em Meio Eletrônico<br />

Primeira cena: diante <strong>de</strong> uma tela, alguém imerso, o mais completamente que po<strong>de</strong>, em um ciberespaço<br />

imenso e falsamente reconhecível, teclando dados, apagando datas, andando em círculos <strong>de</strong> raio infinito;<br />

<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um apocalipse cotidiano e privado. Diante disso, po<strong>de</strong>mos dizer: são tempos <strong>de</strong> <strong>de</strong>riva, estes<br />

que vivemos. Vagamos à volta do próprio quarto como que percorrendo mundos e espaços e, após um dia<br />

inteiro <strong>de</strong> estafante imobilida<strong>de</strong>, retornamos ainda mais enclausurados <strong>de</strong> uma jornada aos confins do<br />

mesmo. Tempos <strong>de</strong> <strong>de</strong>riva e <strong>de</strong> vertigem. Tempos em que a vertigem do ser – aquela que nos individualiza<br />

e nos funda como sujeitos ainda não intelectualizantes – ce<strong>de</strong>u lugar e palco à vertigem <strong>de</strong> ser, essa<br />

voragem que nos multiplica e nos afunda em mero espetáculo. Tornamo-nos trama e drama <strong>de</strong> encenação<br />

que pretensamente interessa a outros por interessar apenas a nós mesmos. Paradoxo <strong>de</strong>ssa cena fechada<br />

que é o dia-a-dia fingindo ser aberto. Apenas fingindo, pois, nos chats, nos canais <strong>de</strong> discussão pela<br />

internete, nos imeios trocados e mal tocados, levemente roçados por alguma resposta mais consistente, na<br />

busca <strong>de</strong> arquivos e programas sem nomes, mas talvez com marcas registradas, nessas fímbrias <strong>de</strong> sentidos,<br />

nesses restos <strong>de</strong> significados, nesses vestígios <strong>de</strong> idéias, apenas catamos nossos pedaços espalhados pelo<br />

mundo virtual. Pedaços largados aqui e ali, mas recolhidos ao final <strong>de</strong> cada dia, sem que tragam resquícios<br />

ou interferências relevantes <strong>de</strong> outros. Passamos por cada dia, vivendo e morrendo e ressuscitando como<br />

um Osíris que pu<strong>de</strong>sse reunir suas partes que ele mesmo espalhou, mas sem apren<strong>de</strong>r nada com isso, sem<br />

avançar, nem mesmo um pouco que seja, para além <strong>de</strong>ssa nossa tragediazinha cotidiana <strong>de</strong> aparecer<strong>de</strong>saparecer-reaparecer<br />

para nós próprios. Estamos entregues ao reino da fragmentação e do <strong>de</strong>scaso.<br />

Segunda cena: diante <strong>de</strong> uma tela, alguém imerso, nunca totalmente, em um ciberespaço in<strong>de</strong>finidamente<br />

aberto, mas localmente mapeável pelo teclar seqüencial <strong>de</strong> dados, pelo elencar <strong>de</strong> datas, projetando<br />

percursos <strong>de</strong> sentido incerto, mas <strong>de</strong>finidos passos; narrativa <strong>de</strong> uma opera philosophorum dos tempos<br />

atuais. Isso nos permite dizer: são mesmo tempos <strong>de</strong> <strong>de</strong>riva estes nossos, em que temos <strong>de</strong> improvisar<br />

instrumentos com que esboçar rotas, com que evitar <strong>de</strong>masiados <strong>de</strong>svios, com que propor caminhos. Não<br />

mais serviçais da fragmentação e do <strong>de</strong>scaso, mas mestres da pluralida<strong>de</strong> e artífices do acaso. Tempos em<br />

que po<strong>de</strong>mos passear à volta <strong>de</strong> nosso quarto sem repetir o percurso <strong>de</strong> sempre, levando até mesmo esse<br />

nosso quarto a outras pessoas, resgatando um sentido plural da vida, esse que aponta sempre para o outro<br />

e que, em nós, é ausência e lacuna a suprir. Tempos em que a vertigem <strong>de</strong> ser é pretexto e motivo para<br />

resgatarmos a vertigem do ser, para buscarmos nos outros, em seus restos, confundidos e misturados aos<br />

nossos, uma alterida<strong>de</strong>, e mais uma, e ainda outra, impedindo-nos <strong>de</strong> ficar presos à rigi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> sermos<br />

in<strong>de</strong>finidamente iguais a nós mesmos. Não mais um Osíris a recompor-se obsessivamente, igual a si próprio,<br />

ao fim <strong>de</strong> cada dia, mas um Simorg reunindo em si cada vez mais presenças e ausências <strong>de</strong> outros, como<br />

essas frases epigramáticas <strong>de</strong>ixadas em rodapés <strong>de</strong> imeios, e que são retomadas e retramadas por outros, e<br />

que po<strong>de</strong>m um dia ou outro apresentar-se diante <strong>de</strong> nós, talvez até mesmo irreconhecíveis. Como um<br />

“Recado do Morro”, em muito semelhante ao <strong>de</strong> João Guimarães Rosa, mas em que cada frase fosse<br />

recolhida por uma pessoa diferente e cujo sentido total pu<strong>de</strong>sse ser vislumbrado <strong>de</strong> diferentes modos, em<br />

diferentes instâncias por cada uma das pessoas que, em algum momento, ajudaram em sua construção.<br />

19


* * *<br />

É assim então que, entre a fragmentação e a pluralida<strong>de</strong>, se joga o sentido <strong>de</strong>stes nossos tempos. Aliás, <strong>de</strong><br />

quaisquer tempos. Mas parece que estamos inseridos numa dialética <strong>de</strong> estranha fatura: escolher uma<br />

pluralida<strong>de</strong> sem fragmentação comprometeria a própria pluralida<strong>de</strong>, pois ela não saberia nem po<strong>de</strong>ria ser<br />

multíplice; conformar-se com a fragmentação significaria confortar-se com o singular e o limitado que nos<br />

cercam mas nada ensinam. Daí essa esdrúxula dialética sem síntese, em que, para que a pluralida<strong>de</strong> domine<br />

a cena, exige-se a presença e o risco da fragmentação. E, nesse caso, argumentos e silogismos talvez não<br />

convencessem ninguém, o que nos obriga a recorrer seja à covardia do exemplo empírico, seja à construção<br />

<strong>de</strong> uma mitologia contemporânea. Vamos, então, a essa mitologia!<br />

Imaginemos um oceano coalhado <strong>de</strong> ilhas, cada uma com seu náufrago habitando-a solitariamente; cada um<br />

<strong>de</strong>les largando à <strong>de</strong>riva incontáveis garrafas, todas levando mensagens <strong>de</strong>ntro. Mas seriam mensagens <strong>de</strong><br />

especial feitio, pois, tendo cada náufrago um estoque limitado <strong>de</strong> papel (ou <strong>de</strong> outro material qualquer que<br />

sirva à escrita), ele produziria uma só e única longa mensagem, rasgando-a, a seguir, em tiras e colocando<br />

cada pedaço em uma garrafa diferente. Nos anos que se seguissem, a cada ilhota chegariam velhas garrafas,<br />

fatigadas e fartas <strong>de</strong> tanto oceano, carregadas <strong>de</strong> cracas e <strong>de</strong> marcas, mas ainda trazendo no interior, mesmo<br />

precariamente, esses pedaços escritos. Como recompor, a partir disso, as mensagens inteiras que outros<br />

escreveram? Como retomar até mesmo a própria mensagem que algum náufrago <strong>de</strong> uma dada ilha enviou,<br />

ele mesmo, mas que com o passar dos dias acabou esquecendo em boa parte? E como enten<strong>de</strong>r o que os dias,<br />

os sóis, as tempesta<strong>de</strong>s, as rochas, as umida<strong>de</strong>s e os <strong>de</strong>tritos modificaram nessas mensagens? Falei, não por<br />

acaso, em Osíris (e, observem bem, não em Penteu). O <strong>de</strong>us <strong>de</strong>spedaçado, que se torna senhor do reino dos<br />

mortos, po<strong>de</strong> ser também aquele que ensina os caminhos da ressurreição. Ao ter seu corpo repartido e<br />

espalhado, mostra como ele po<strong>de</strong> ser retramado e recosturado, tornando-se diferente e maior do que era.<br />

Daí se po<strong>de</strong>r afirmar que ele aponta, nessa perspectiva <strong>de</strong> agora, não para uma fragmentação insuperável e<br />

inelutável, mas para uma pluralização <strong>de</strong> nós que nos resgata <strong>de</strong>ssa primeira e necessária fragmentação.<br />

Como se, para chegarmos à pluralida<strong>de</strong>, tivéssemos que passar obrigatoriamente por uma espécie <strong>de</strong> morte<br />

alquímica, a obra a negro que é essa fragmentação. Osíris seria então, por outro viés, como que o texto dado<br />

a tal leitor mítico, capaz <strong>de</strong> resgatar nesses pedaços esparsos e casuais um sentido que talvez (ainda) nem<br />

estivesse na inteireza da mensagem quando ela foi feita, antes <strong>de</strong> ser fragmentada.<br />

Mas há um <strong>de</strong>talhe importante a ser explorado: na tentativa <strong>de</strong> recompor alguma história, qualquer um<br />

<strong>de</strong>sses náufragos po<strong>de</strong> hesitar in<strong>de</strong>finidamente entre reescrever a própria história ou retomar a <strong>de</strong> outros.<br />

Em outras palavras, ele po<strong>de</strong> escolher retramar uma das mensagens originárias e primeiras, a sua própria ou<br />

a <strong>de</strong> outros. Nesse caso, ele só terá mesmo uma única história a contar: a <strong>de</strong> seu fracasso, pois, como já<br />

admitia Bentinho, <strong>de</strong> D. Casmurro, “não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é<br />

igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos das<br />

pessoas que per<strong>de</strong>; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”. E o que falta é justamente a mensagem<br />

primeira e primordial, perdida nessa auto-expulsão <strong>de</strong> seu paraíso particular. Ou a totalida<strong>de</strong> das mensagens<br />

escritas por outros, mas que também não chegam nunca, inteiras, a sua ilha. O náufrago vai se sentir como<br />

um outro Adão, terá <strong>de</strong> admitir uma queda que nenhuma narrativa mítica consegue, nem ao menos,<br />

20


substituir. O que sobra, então? Apenas um tartamu<strong>de</strong>io insolente, a encenação <strong>de</strong> um arremedo <strong>de</strong><br />

sabedoria, o contar <strong>de</strong> uma história, a única que ele consi<strong>de</strong>ra possível ainda tecer, essa narrativa <strong>de</strong> como<br />

foi incapaz <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> seu círculo <strong>de</strong> idéias e métodos, <strong>de</strong> tentativas <strong>de</strong> leituras, <strong>de</strong> perspectivas <strong>de</strong><br />

interpretação. A narrativa <strong>de</strong> como ele, não tendo como voltar à origem das mensagens e dos tempos,<br />

encerrou-se na contemplação narcísica <strong>de</strong> si próprio, justamente para não ver seu fracasso. Talvez, uns poucos<br />

<strong>de</strong>sses náufragos, aqui e ali, consigam vislumbrar uma estratégia diversa. Se não é possível essa reconstrução<br />

da originalida<strong>de</strong> para sempre perdida, se não se consegue mais, como os caçadores <strong>de</strong> sonhos do Dicionário<br />

Kazar, recompor o corpo inteiro do Adão Kadmon, se as narrativas míticas não fornecem mais nenhum mapa<br />

<strong>de</strong> como voltar à origem das mensagens, das escritas e dos seres, o caminho a trilhar, então, é esse <strong>de</strong> tramar<br />

uma mitologia do aqui e do agora. Esses náufragos terão, assim, <strong>de</strong> apossar-se <strong>de</strong>ssas partes das histórias <strong>de</strong><br />

outros, chegadas ao sabor e ao acaso das marés e dos ventos; fazer <strong>de</strong>las partes da sua história e fazer da sua<br />

pedaços das histórias <strong>de</strong> outros; propor uma narrativa multiforme, plural, em movimento, que não apague<br />

sua individualida<strong>de</strong>, e também não se resuma a ela apenas. A partir daí, sua vida inteira muda <strong>de</strong> sentido:<br />

não mais os sentidos outorgados e contados por uma mensagem original e primeira, mas os sentidos que eles<br />

são capazes <strong>de</strong> inventar com os materiais, imagens, idéias e histórias que outros lhes dão, que eles tiram <strong>de</strong><br />

sua precária memória, nessa trama <strong>de</strong> nós e pontos infindáveis, prenhes <strong>de</strong> sentidos possíveis.<br />

Tal é a empreita que aqui se intenta: ler esse hipertexto eletrônico e telemático em que nos inserimos cada<br />

vez mais, com os gestos e os processos do poético, para espreitar formas e fôrmas <strong>de</strong> impor a ele e/ou<br />

<strong>de</strong>sencavar <strong>de</strong>le sentidos e significações (precárias que sejam). Mas, para isso, é necessário recortar algum<br />

caminho nessa selva selvaggia <strong>de</strong> significantes e <strong>de</strong> percursos. É necessário que aprendamos como nos<br />

mover por entre ligações e sítios, como prever percursos <strong>de</strong> um provedor a outro, <strong>de</strong> uma URL a outra. E<br />

contamos talvez com alguns mapas, parciais sempre: a <strong>literatura</strong>, que se esgueirou, freqüentemente, por<br />

vizinhanças próximas à ciência e à técnica, compondo e recompondo textualida<strong>de</strong>s sem o conforto do<br />

esperado e do reconhecido; especificamente a poesia, useira e vezeira em pluralida<strong>de</strong>s e percursos nunca<br />

<strong>de</strong>finitivos <strong>de</strong> leitura. Daí nossa escolha em andar pelos caminhos da poesia eletrônica, essa que é feita,<br />

<strong>de</strong>sfeita e refeita no ciberespaço, apreen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>ste as nuanças da interativida<strong>de</strong> (homem-máquina,<br />

homem-homem, máquina-máquina) e da iteravida<strong>de</strong> (essa retomada incessante <strong>de</strong> dados e rotinas que<br />

<strong>de</strong>ve exaurir o processo antes <strong>de</strong> cansar o usuário). Em outras palavras, propomos utilizar a perspectiva<br />

literária para <strong>de</strong>limitar um objeto – a Re<strong>de</strong> – inserido em um novo campo <strong>de</strong> sentidos e <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s –<br />

o ciberespaço –, mapeando um objeto cultural não mais limitado necessariamente ao campo literário.<br />

* * *<br />

Jamais a <strong>literatura</strong>, a boa <strong>literatura</strong> ao menos, apostou na univocida<strong>de</strong>. Isso quer dizer que, entre<br />

pluralida<strong>de</strong> e fragmentação, a criação literária sempre soube escolher uma ou outra, às vezes uma e outra.<br />

A bem da verda<strong>de</strong>, o texto literário nunca fincou pé na permanência e na linearida<strong>de</strong>, ao contrário do que<br />

muita gente tem afirmado (fruto, talvez, <strong>de</strong> leituras apressadas do S/Z, <strong>de</strong> Roland Barthes). Tal equívoco<br />

parece <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> certa confusão entre texto literário e livro. Este tem sido, nos últimos séculos, o meio <strong>de</strong><br />

veiculação, a base material do texto, como já o foram a voz na <strong>literatura</strong> <strong>de</strong> tradição oral e os papiros,<br />

pergaminhos e códices nos primórdios da tradição escrita. E o sucesso <strong>de</strong>ssa base material – o livro – se<br />

21


explica por ela ter conseguido associar maneabilida<strong>de</strong> 2 a permanência. O texto literário nunca saberia<br />

permanecer idêntico a si próprio, já que sua objetivida<strong>de</strong> não se confun<strong>de</strong> com uma materialida<strong>de</strong> que na<br />

tradição impressa se assenta no livro. Assim, se este é linear (nem todos os livros, mas aceite-se a simplificação<br />

em nome da imensa maioria), se o livro é então limitado e estável, o mesmo não po<strong>de</strong> ser dito do texto,<br />

qualquer que seja ele, sobretudo o literário. O que ocorre com a mudança da base material, da página<br />

impressa para o meio eletrônico, é que, em certo sentido, o livro se aproxima do texto, ele se <strong>de</strong>ixa contaminar<br />

pela flui<strong>de</strong>z, por <strong>de</strong>terminada imprevisibilida<strong>de</strong>, pela não-linearida<strong>de</strong> que foram, sempre, as do próprio texto.<br />

Aquilo que no texto é intertextualida<strong>de</strong>, no livro eletrônico encontra correspondência na pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

percursos e na heterogeneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> materiais (associações <strong>de</strong> matéria verbal, imagens, sons etc.).<br />

Uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ler essa multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> materiais, <strong>de</strong> significantes e <strong>de</strong> significações, estaria na provável<br />

utilização <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los combinatórios, 3 que ten<strong>de</strong>riam a <strong>de</strong>limitar as inúmeras aproximações intratextuais assim<br />

como a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> referências e interferências entre um texto a ler e textos outros que compartilham<br />

todos um mesmo campo <strong>de</strong> leitura. Mas essa tentativa encontra logo seus limites, sobretudo nos livros<br />

impressos que apostam na multiplicação das intratextualida<strong>de</strong>s. 4 De fato, como trabalhar, por exemplo, com<br />

alguma lógica <strong>de</strong> mundos possíveis (como propõe Umberto Eco), se é a própria possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mundos que se<br />

encontra também em discussão? Nesses casos, a tática combinatória esbarra na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manipular<br />

diretamente uma massa <strong>de</strong> significantes que escapa totalmente ao controle da leitura e até mesmo ao crivo da<br />

memória. Além disso, a atual mudança do sistema literário não é apenas quantitativa, como ocorreu quando<br />

do abandono dos códices em favor da imprensa. Ela é também qualitativa: o que testemunhamos é semelhante<br />

ao ocorrido na passagem da tradição oral para a escrita, com uma significativa e radical alteração dos modos<br />

<strong>de</strong> organização, <strong>de</strong> estruturação e <strong>de</strong> consulta do suporte da obra literária. 5<br />

Daí essa atração pelas ciências do caos e dos fractais que observamos não apenas entre os literatos, mas nas<br />

ciências humanas em geral. À aparente <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m dos materiais e dos significantes, tenta-se respon<strong>de</strong>r com<br />

or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> nível superior, que <strong>de</strong>scubram e esbocem um <strong>de</strong>terminismo sem nenhuma previsibilida<strong>de</strong>. 6<br />

Isso parece ser útil quando associado a qualquer obra, mas também, e sobretudo, aos livros eletrônicos.<br />

Nestes, se tentamos <strong>de</strong>svendar certa sistematização em suas articulações <strong>de</strong> sentidos e significações, é<br />

preciso que, <strong>de</strong> um lado, se fuja do impressionismo das interpretações disparatadas e das navegações<br />

disparadas; e, <strong>de</strong> outro, <strong>de</strong>ve-se cultivar e apreciar o plural 7 <strong>de</strong> que é feito esse livro eletrônico tanto quanto<br />

o texto que <strong>de</strong>le se faz <strong>de</strong>rivar. No caso, trata-se <strong>de</strong> articular uma correspondência <strong>de</strong> geometria variável<br />

entre três elementos: um espaço <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> sentidos – o ciberespaço –; uma base material – o livro<br />

eletrônico –; e o próprio texto. Utilizar, então, essa aproximação fractalista da obra digital significa colocar<br />

objetos n-dimensionais sob a batuta <strong>de</strong> operadores lógicos capazes <strong>de</strong> inseri-los numa or<strong>de</strong>m plural <strong>de</strong><br />

escritas e <strong>de</strong> leituras, em que os sentidos <strong>de</strong> ambas são sempre reversíveis. E que operadores seriam esses?<br />

Como circunscrever e <strong>de</strong>limitar seu espaço <strong>de</strong> atuação? E, ainda, como estabelecer <strong>de</strong>terminismos<br />

cambiantes que, sem apontar para uma apreensão teleológica ou essencialista do texto, dêem conta das<br />

aparências e das materialida<strong>de</strong>s proteiformes do livro eletrônico? Questões, todas, que ao longo <strong>de</strong>ste<br />

ensaio, se não respondidas, <strong>de</strong>verão ser ao menos mais bem enunciadas. Questões que apontam certamente<br />

para os saberes que se vão <strong>de</strong>lineando, esboçando, construindo, colocando em dúvida, superando, <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>ssas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> nós e <strong>de</strong> todos nós, que é o ciberespaço.<br />

22


Albrecht Dürer Melancolia l, 1514 Rosenwald Collection, Image c 2003 Board of Trustees, National Gallery of Art, Washington


I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e Subjetivida<strong>de</strong>s no Ciberespaço 8<br />

Talvez não seja inútil insistir que, neste espaço <strong>de</strong> escrita que aqui se <strong>de</strong>senha e se emenda, enten<strong>de</strong>-se<br />

ciberespaço como hipertexto ou texto eletrônico, que as diferenças entre eles não são, por vezes, mais do<br />

que filigranas finórias e não muita profundida<strong>de</strong> acrescentariam à discussão. E, no caso <strong>de</strong> texto, temos<br />

muito a dizer com base em uma experiência que, alçando o literário à ribalta, po<strong>de</strong> nos dar o direito <strong>de</strong><br />

resvalar para espaços outros <strong>de</strong> significações. Com isso, é a própria cena telemática do (hiper)texto que se<br />

po<strong>de</strong> dar a (re)conhecer, partindo <strong>de</strong> um espaço que se quer literário, mas que permite ver rastros, vestígios<br />

e contornos das subjetivida<strong>de</strong>s nele envolvidas. Há também uma suspeita <strong>de</strong> que do telemático po<strong>de</strong>-se<br />

passar ao dramático, percebendo no ciberespaço uma instância que é produção textual, que é enunciação<br />

significante e, ao mesmo tempo, encenação <strong>de</strong> seres e <strong>de</strong> linguagens. Mas isso é linha a ser tricotada mais<br />

adiante e não vamos meter carros à frente <strong>de</strong> bois. No momento, concentremo-nos na maneira como se<br />

po<strong>de</strong> ler (n)esse espaço habitado por sujeitos e processos telemáticos, aparentemente compartilhado por<br />

pessoas e dispositivos informáticos.<br />

Por paradoxal que pareça, uma experiência importante que po<strong>de</strong>mos ter dos textos eletrônicos ocorre<br />

justamente quando <strong>de</strong>sligamos o computador e se apaga a tela. Nesse fundo opaco, que instantes atrás<br />

eram brilhos e pixels, aparece uma figura esvanecente, nossa fisionomia, um pálido reflexo que somente se<br />

mostra a partir do monitor <strong>de</strong>sligado. Desligada a máquina, o que se vê ao fundo, precariamente refletida,<br />

é então essa nossa imagem diante da tela, trazendo à tona e explicitando, talvez, o incômodo <strong>de</strong> uma<br />

posição em que nos surpreen<strong>de</strong>mos inquirindo subjetivida<strong>de</strong>s e perturbando i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. É como se se<br />

reproduzisse a difícil posição do indivíduo que na Procura da Poesia, <strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, se<br />

vê colocado diante da palavra, que “te pergunta, sem interesse pela resposta, / pobre ou terrível que lhe<br />

<strong>de</strong>res: / Trouxeste a chave?”. Contudo, o que perturba e incomoda é que o inquisidor não é palavra alguma,<br />

ele se parece muito conosco!<br />

24<br />

E o que essa imagem pediria, instigaria, exigiria, possibilitaria? De um lado, a busca <strong>de</strong> si, esse percurso que<br />

aponta para o conhecer, mais ou menos exato, <strong>de</strong> quem ou <strong>de</strong> que seria tal reflexo precário, essa<br />

individualida<strong>de</strong> que se vislumbra na tela do computador <strong>de</strong>sligado. De fato, apresenta-se diante <strong>de</strong> nós a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconstruir, ainda que parcialmente, nossa própria imagem, <strong>de</strong> recortá-la contra um fundo<br />

indistinto e indiferente <strong>de</strong> vidro neutro e <strong>de</strong> recuperar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma reflexão primeira ou<br />

primordial, quer dizer, recuperar um nosso olhar voltado para nós mesmos e para nosso próprio olhar (ou<br />

para os traços e vestígios que <strong>de</strong> nós sobraram, uma vez suspensa a viagem pelo ciberespaço, terminada a<br />

navegação dos hipertextos, esgotado o reconhecimento dos programas e dos aplicativos). Temos aí o<br />

mesmo tipo <strong>de</strong> reflexão das mãos que se tocam tocando, do pensamento que se pensa pensando, em suma,<br />

uma reversibilida<strong>de</strong> que não é necessariamente dialética e possibilita uma significação que vai além dos<br />

discursos, das falas e das obras já envelhecidos e, portanto, reconhecíveis e manipuláveis. O que se presencia<br />

é a primordialida<strong>de</strong> que está por trás <strong>de</strong> todo gesto significante, <strong>de</strong> toda expressão e, em síntese, <strong>de</strong> toda<br />

linguagem. Mas é importante ressaltar que se trata <strong>de</strong> um trabalho <strong>de</strong> Sísifo (que, já se disse, é também<br />

trabalho <strong>de</strong>cisivo, ou incontornável), <strong>de</strong> perscrutar traços e vestígios à cata <strong>de</strong> fragmentos <strong>de</strong> nós que


formem uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> precária coerência (mas, mesmo assim, <strong>de</strong> coerência). É inevitável trabalho e ao<br />

mesmo tempo interminável, pois, sendo religado o computador, a interface gráfica do Windows ® ou do<br />

Macintosh ® vem novamente justapor uma máscara <strong>de</strong> cores e <strong>de</strong> movimentos, escon<strong>de</strong>ndo nossos gestos e<br />

intenções sob os <strong>de</strong>slocamentos céleres ou morosos do cursor sobre ícones, imagens e palavras, e sob as<br />

transformações e as rotações das imagens. Daí a percepção <strong>de</strong> que nos per<strong>de</strong>mos no ciberespaço, <strong>de</strong> que<br />

nossos vestígios e fragmentos se isolam, se <strong>de</strong>sgarram e não nos entregam nada além <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

difusa e para sempre <strong>de</strong>sfigurada. No entanto, se insistíssemos na lembrança <strong>de</strong> nossa fisionomia<br />

perscrutando o fundo vítreo da tela <strong>de</strong>sligada, po<strong>de</strong>ríamos talvez justapor outro percurso aos rumos das<br />

imagens, das ligações e dos sítios <strong>de</strong>sfilando diante <strong>de</strong> nós, po<strong>de</strong>ríamos impor outro ritmo à celerida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

processamento <strong>de</strong> máquinas e re<strong>de</strong>s.<br />

Porém, essa não é a única possibilida<strong>de</strong>: nossa tênue imagem ao fundo do monitor <strong>de</strong>sligado po<strong>de</strong> resultar<br />

em outro percurso, em que não se vai além da reafirmação do mesmo, ou seja, <strong>de</strong> nós próprios. Como<br />

resultado, não temos nada além do que o retorno a uma imagem nossa, tão plana e tão insignificante como<br />

a tela do computador apagado. Em outras palavras, teríamos a concretização <strong>de</strong> um solipsismo que está<br />

sempre rondando nossas navegações, do mesmo modo como espreita nossas reflexões e nossos projetos. E,<br />

nesse caso, que conhecimento teríamos <strong>de</strong> nós? O que veríamos <strong>de</strong> nós, senão a confirmação <strong>de</strong> nossa<br />

própria fisionomia inapelavelmente sobreposta às coisas e aos outros? De fato, em tudo e em todos<br />

veríamos a mesma marca, os mesmos traços, a mesma feição. E que conhecimento po<strong>de</strong>ria vir <strong>de</strong>ssa<br />

operação intelectual que, com efeito, seria apenas um arremedo <strong>de</strong> auto-reconhecimento? E como fundar<br />

aí nossa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, pois entre nós e o mundo exterior não haveria justamente essa distinção originária e<br />

fundadora que nos dá um mundo vivido e uma vida para habitá-lo? Parece que se retoma assim aquela<br />

experiência <strong>de</strong> repetir uma palavra à exaustão até que ela se torne, pouco a pouco, estranha, impenetrável<br />

e até mesmo hostil; por ser tantas vezes enunciada, ela <strong>de</strong>ixa, aos poucos, <strong>de</strong> ser familiar e conhecida, ela<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> significar. Ao se tornar como que a única palavra a sobrar em um léxico esvaziado, ela per<strong>de</strong> toda<br />

significação, justamente por ter-se afastado das outras palavras, por não ter mais como construir sua<br />

significação na diferença recíproca que guarda com elas. Quando nos vemos reduzidos a nossa própria e<br />

única contingência, nada po<strong>de</strong>mos tirar senão a pobreza da análise, aquilo que não nos dá nada além do<br />

que já havíamos aí colocado. Daí a sensação <strong>de</strong> que nossa imagem imposta à tela do computador po<strong>de</strong><br />

resultar em uma espécie <strong>de</strong> ausência nossa diante <strong>de</strong> nós mesmos, uma ausência sentida paradoxalmente<br />

como presença, como uma volta melancólica a nós através <strong>de</strong> rastros, traços, vestígios e sinais que parecem<br />

ser evi<strong>de</strong>ntemente nossos, mas que trazem a marca do estranhamento e da distância, do aparente<br />

apagamento <strong>de</strong> nossas singularida<strong>de</strong>s pelo <strong>de</strong>sligar da máquina. E, se fôssemos apenas nós próprios e nossa<br />

condição, nesse caso, nossa condição seria um papel frouxo e molhado em que tentaríamos manter<br />

in<strong>de</strong>léveis os elementos e os vestígios <strong>de</strong> nossa presença, mas submetidos a uma perda <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong> perspectiva que os <strong>de</strong>volveria não mais como presença constante <strong>de</strong> nós no mundo, como dito acima,<br />

mas como presença gasta e, assim, esvaziada <strong>de</strong> sentido e <strong>de</strong> qualquer i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> possível.<br />

No outro lado <strong>de</strong>sse espectro, está o computador ligado permanentemente à re<strong>de</strong>, está a sacieda<strong>de</strong><br />

excessiva, o fastio cibernético <strong>de</strong> que, por vezes, não nos damos conta, senão <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito ter navegado<br />

pelos mais diferentes sítios e en<strong>de</strong>reços, entregues à volúpia <strong>de</strong> buscar um ícone, uma informação, um dado<br />

25


que sempre estarão, segundo se faz crer, no próximo percurso, que pretensamente se mostrarão disponíveis<br />

no en<strong>de</strong>reço que ainda aparecerá na tela. Mas eles não chegam nunca até nós, ou talvez até cheguem, mas<br />

nos encontramos tão entorpecidos que já nem mesmo sabemos reconhecê-los, nem conseguimos reagir a eles.<br />

No caso, as imagens, os gestos verbais, os ícones, os <strong>de</strong>slocamentos, os sons acabam se empanturrando <strong>de</strong><br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> significações, que se tornam, então, inúteis e impenetráveis. Trata-se <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong><br />

presença ausente, <strong>de</strong> uma perda <strong>de</strong> sentido dos objetos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seus próprios <strong>de</strong>talhes e vestígios. Mas, até<br />

mesmo aí, não escapamos à fatal atração <strong>de</strong>ssa contemplação melancólica <strong>de</strong> nós próprios, pois as imagens,<br />

os gestos verbais, os ícones, os <strong>de</strong>slocamentos, os sons, ao se fartarem e se esvaziarem <strong>de</strong> sentidos, acabam por<br />

se tornar inúteis, impenetráveis e vazios. E, nesse movimento, <strong>de</strong>slocam a contemplação para um outro vazio,<br />

isto é, para a ausência <strong>de</strong> nós próprios, dotando-nos da mesma inutilida<strong>de</strong> e da mesma impenetrabilida<strong>de</strong> que<br />

se exibem sobre a tela, à imagem dos belíssimos versos com que Mário <strong>de</strong> Sá-Carneiro fala <strong>de</strong> sua Dispersão:<br />

“Perdi-me <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, / Porque eu era labirinto / E, hoje, quando me sinto, / É com sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> mim”.<br />

Estando ligado o computador, corremos sempre o risco <strong>de</strong> nos entregar ao <strong>de</strong>senfreado e ao <strong>de</strong>smesurado das<br />

conexões multidirecionais, dos saltos abruptos e incessantes, das vizinhanças forjadas à força, experimentando<br />

uma sacieda<strong>de</strong> excessiva que guarda inesperada similarida<strong>de</strong> com aquela <strong>de</strong>scrita acima, em que nos escon<strong>de</strong>mos<br />

atrás <strong>de</strong> um solipsismo fechado e redutor. Nos dois casos, há como que um estrangulamento das significações, já<br />

que tanto a privação quanto o excesso terminam por nos fazer cair num vazio ou numa inutilida<strong>de</strong> dos<br />

significantes. E ambos nos enredam em uma melancolia da significação, que é nossa e é também dos<br />

significantes, melancolia que talvez somente possa ser superada por uma busca, por uma reafirmação, por uma<br />

retomada, por uma recostura – extremamente trabalhosas, mas inevitáveis – da própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. De fato, as<br />

duas experiências – seja a da navegação <strong>de</strong>scomedida e sem amarras; seja a do fechamento em sua própria<br />

imagem – evocam um Narciso colocado diante <strong>de</strong> uma imagem <strong>de</strong> si que já não guarda mais unida<strong>de</strong>, que já não<br />

lhe garante nem mesmo o eco <strong>de</strong> sua voz ou o reflexo do que conseguiria i<strong>de</strong>ntificar como sendo seus próprios<br />

traços ou vestígios espalhados pelo mundo que ele ainda po<strong>de</strong> ver diante <strong>de</strong> si.<br />

No entanto, melancolia po<strong>de</strong> remeter a referências <strong>de</strong>masiadas, po<strong>de</strong> permitir ou exigir comentários infindos,<br />

com o que praticamente cairíamos na situação <strong>de</strong>scrita, indo da melancolia como assunto à melancolia como<br />

situação. É assim que, para escapar a essa ditadura do melancólico (que, no caso, resultaria <strong>de</strong> uma angústia<br />

do excesso <strong>de</strong> interpretação), vou-me permitir uma abordagem mais leve (sem que ela seja, por isso, leviana<br />

ou superficial), tentando articular uma leitura do ciberespaço que seja também o esboço <strong>de</strong> uma saída <strong>de</strong>ssa<br />

situação <strong>de</strong> melancolia. No caso, uma das referências minhas preferidas está na gravura <strong>de</strong> Dürer justamente<br />

intitulada Melancolia I, que acabei tomando como possível fio condutor <strong>de</strong> uma compreensão <strong>de</strong>sses<br />

mecanismos <strong>de</strong> significação, <strong>de</strong> subjetivações e <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s no ciberespaço. Vamos a ela!<br />

26<br />

Como se <strong>de</strong>u essa transposição da gravura <strong>de</strong> Dürer para o ambiente telemático? Utilizei-a como ponto <strong>de</strong><br />

partida, como inspiração, como catalisador <strong>de</strong> uma compreensão <strong>de</strong>ssa melancolia do ciberespaço, talvez<br />

agindo à maneira dos leitores do I-Ching, que se servem do casual para pretensamente chegar ao essencial.<br />

Aos poucos, traços <strong>de</strong> semelhança e possibilida<strong>de</strong>s foram surgindo e permitindo que eu me <strong>de</strong>svencilhasse<br />

da gravura e entrasse mais e mais profundamente nas entranhas dos textos eletrônicos e do ciberespaço. O<br />

que vou tentar fazer aqui, por conseguinte, é apenas um resumo <strong>de</strong>sse percurso que partiu <strong>de</strong> uma visão<br />

alegórica da gravura, passando por um trajeto exegético <strong>de</strong> seus elementos para chegar, finalmente, a uma


compreensão direta e mais acurada <strong>de</strong> meu objeto <strong>de</strong> reflexão. Alguns po<strong>de</strong>riam, com todo o direito,<br />

argumentar que a escolha <strong>de</strong> tal perspectiva <strong>de</strong> investigação – no caso, essa dada gravura – é tão (i)legítima<br />

e (não) convincente quanto qualquer outra. O que apresento, então, como argumento é apenas um pedido<br />

para que julguem essa escolha com base nos resultados da discussão, não con<strong>de</strong>nando a priori os postulados<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> parti. O que interessa não é o que a média das pessoas po<strong>de</strong>ria associar à obra <strong>de</strong> Dürer, mas o que<br />

eu quero ou pretendo ver como apoio a minha leitura do ciberespaço. De fato, é a coerência e a capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> convencimento <strong>de</strong>sta última que servirão para indicar o acerto (ou o fracasso) <strong>de</strong> minha estratégia.<br />

Tomando então a gravura, po<strong>de</strong>mos perceber nela uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> elementos que se acumulam<br />

numa or<strong>de</strong>m que inicialmente dá a impressão <strong>de</strong> fugir a toda tentativa <strong>de</strong> sistematização: figuras<br />

geométricas, objetos <strong>de</strong> uso diário, imagens carregadas <strong>de</strong> possíveis alegorizações, referências muito<br />

provavelmente bíblicas etc. Todavia, essa multiplicida<strong>de</strong> parece escapar ao anjo – pretenso elemento central<br />

a partir do qual seriam en<strong>de</strong>reçados os olhares para os outros elementos. Ao menos a gravura se organiza<br />

<strong>de</strong> modo a dar a impressão <strong>de</strong> que vários objetos e seres estão dispostos a sua volta, sem que ele consiga<br />

apreen<strong>de</strong>r o sentido (ou os sentidos) <strong>de</strong>ssa multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coisas. Esta – a multiplicida<strong>de</strong> – torna-se para<br />

ele legião (no sentido da legião <strong>de</strong> <strong>de</strong>mônios que, no Novo Testamento, Jesus expulsava <strong>de</strong> um<br />

energúmeno), e não pluralida<strong>de</strong> ou varieda<strong>de</strong> do mundo vivido. Diante disso, não seria absurdo ou<br />

<strong>de</strong>spropositado falar <strong>de</strong> um anjo caído, <strong>de</strong> uma criatura divina, mas perdida na materialida<strong>de</strong> múltipla das<br />

coisas. Ele não consegue apreen<strong>de</strong>r essa legião <strong>de</strong> existentes e <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong>s, já que se encontra<br />

totalmente preso à busca <strong>de</strong> um princípio único causador (o vértice do compasso, o centro da eventual<br />

circunferência a ser <strong>de</strong>senhada por ele, um centro tão excêntrico quanto o ponto <strong>de</strong> luz que, ao fundo, não<br />

consegue ser foco nem origem do círculo que se recorta contra o horizonte). E esse princípio mostra-se<br />

totalmente <strong>de</strong>svinculado da pluralida<strong>de</strong> efetiva e direta das coisas e dos seres.<br />

Nesse sentido, a angústia da situação do anjo nasce do mesmo motivo primeiro que levou ao<br />

<strong>de</strong>senvolvimento do pensamento grego, a oposição entre o uno e o múltiplo. Porém, o que, para os gregos,<br />

foi impulso e incentivo para o conhecimento, para o anjo, mostra ser, ao contrário, peso e <strong>de</strong>salento: a<br />

pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> elementos não parece entrar no <strong>de</strong>senho que ele tenta esboçar, pois o olhar perdido ao<br />

longe afasta do traço e do compasso a diversida<strong>de</strong>, sem chegar a encarar essa luz que ao fundo aponta para<br />

as coisas, as ilumina e dá-lhes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentidos e <strong>de</strong> coerências. De fato, ele parece estar<br />

concentrado unicamente na busca <strong>de</strong> uma totalida<strong>de</strong> inútil e distante, <strong>de</strong> uma totalida<strong>de</strong> que, com efeito,<br />

obscurece e escamoteia o conjunto e a varieda<strong>de</strong> dos objetos e dos seres. Entre essa luz que vem do fundo<br />

(e que, na nossa leitura, não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> remeter a luzes e a cintilâncias <strong>de</strong> telas e <strong>de</strong> monitores) e o<br />

olhar do anjo, situa-se toda uma coorte <strong>de</strong> coisas, uma materialida<strong>de</strong> múltipla que acaba, <strong>de</strong> fato, por se<br />

escon<strong>de</strong>r a ele e por escon<strong>de</strong>r <strong>de</strong>le a própria totalida<strong>de</strong> (não revelada, mas que po<strong>de</strong>ria ser encontrada,<br />

reconhecida, aprendida nas coisas e em suas disposições, estivesse o anjo em outra posição). Em<br />

conseqüência, é a visão <strong>de</strong> si próprio que fica escondida, ou perdida em meio à barafunda <strong>de</strong> uma varieda<strong>de</strong><br />

tão sem sentido – para ele – quanto esse olhar melancólico e falto <strong>de</strong> perspectivas. E que varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

elementos seria essa, segundo a perspectiva do anjo? Uma escada que dá em nada ou lugar nenhum, inútil<br />

escada em que a base terrena parece ter perdido o pé e <strong>de</strong>saparecido, escondida entre restos e ruínas, e em<br />

que o topo não leva nem a transcendência, nem a entendimento, nem a paraíso algum, inútil escada <strong>de</strong><br />

27


Jacó sem o menor traço da luta <strong>de</strong>ste com um anjo (outro, claro!), esboçando na verda<strong>de</strong> e na aparência<br />

(ou na verda<strong>de</strong> da aparência) uma inútil luta consigo mesmo.<br />

Temos ainda figuras geométricas misturadas a figuras naturais (como o animal situado entre um poliedro e<br />

uma esfera), acompanhadas <strong>de</strong> produtos artesanais (tecidos, balanças, sinos etc.), numa provável proposta<br />

<strong>de</strong> conciliação entre as três esferas (abstração, criação e construção), ou num possível acordo entre espírito<br />

<strong>de</strong> geometria e espírito <strong>de</strong> finesse. Trata-se <strong>de</strong> conciliação e <strong>de</strong> acordo que não são mesmo percebidos ou<br />

compreendidos pelo anjo, perdido em meio ao que ele po<strong>de</strong>ria consi<strong>de</strong>rar apenas <strong>de</strong>spojos <strong>de</strong> si próprio. À<br />

direita <strong>de</strong>le, encontra-se uma criança, ou melhor, um pequeno anjo <strong>de</strong> aparência infantil e <strong>de</strong>spido <strong>de</strong><br />

auréola (a não ser pela circularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um dos pratos da balança que, acima <strong>de</strong> sua cabeça, proporciona<br />

um arremedo <strong>de</strong> auréola; já o anjo, ele próprio, está ao menos coroado <strong>de</strong> louros). Logo abaixo <strong>de</strong>ssa<br />

criança-anjo, está um animal, repousando indiferente ao olhar e à atenção que ela parece dirigir-lhe. E o<br />

conjunto <strong>de</strong> ambos, quando os <strong>de</strong>stacamos em meio aos <strong>de</strong>mais elementos, po<strong>de</strong>ria indicar uma progressão<br />

do animal ao anímico, mas, novamente, um conjunto e uma progressão que não se dão senão a nós que<br />

estamos postados fora das perspectivas do anjo, que a ele nada disso se dá, nada disso se <strong>de</strong>ixa ver. Temos,<br />

talvez alegorizados, a origem temporal e o encaminhamento para o telúrico <strong>de</strong>sse anjo, mas que, para ele,<br />

não passam <strong>de</strong> fragmentos <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que parecem escapar a sua leitura, a seu entendimento. Ao<br />

chão, encontra-se ainda o que po<strong>de</strong> ser visto como restos <strong>de</strong> uma construção iniciada mas não terminada,<br />

como se fossem ruínas <strong>de</strong> si próprio, exposto que está a uma multiplicida<strong>de</strong> que ele não enten<strong>de</strong>, não<br />

percebe, não controla e não organiza.<br />

E o que seria, então, esse anjo e esse espaço, essa disposição <strong>de</strong> coisas e essa balbúrdia <strong>de</strong> sentidos e <strong>de</strong><br />

significados possíveis? Muita coisa, possivelmente, mas todas elas, se propostas ou construídas a partir da<br />

perspectiva intra<strong>de</strong>senho do anjo, remeteriam inapelavelmente a um centro <strong>de</strong> significações falho ou vazio.<br />

Tendo a percepção embotada pela multiplicida<strong>de</strong> incompreensível (para ele!) das coisas do mundo, o anjo<br />

afunda-se numa queda, que é busca inútil <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m única para o mundo e, a fortiori, <strong>de</strong> uma<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> absoluta para si próprio. Não há entre os objetos um espelho que lhe <strong>de</strong>volva, como imagem<br />

coerente <strong>de</strong>le próprio, essa busca por sentidos e or<strong>de</strong>ns. Como resultado, ele não percebe nem a unida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> si, nem a real extensão da pluralida<strong>de</strong> das coisas, pois sua percepção se encontra embotada por uma<br />

varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> que ele não consegue dar conta. Se ele fosse apenas anjo, ainda guardaria a unicida<strong>de</strong> do<br />

cosmos; se se tornasse tão-somente humano e material, seria capaz ao menos <strong>de</strong> perceber ou sentir ou,<br />

mesmo, <strong>de</strong> viver a pluralida<strong>de</strong> da existência; sendo anjo e (<strong>de</strong>)caído, per<strong>de</strong>u a primeira condição, sem<br />

ganhar a segunda. Assim, é sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que fica perdida em meio à multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coisas, <strong>de</strong><br />

significantes, <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentidos. Algo parecido ao que po<strong>de</strong> ocorrer também com os leitores<br />

<strong>de</strong>sse texto-gravura: afinal, seu tom fortemente alegórico leva a uma acumulação <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s<br />

exegéticas, em tudo semelhante ao acúmulo <strong>de</strong> objetos cercando o anjo, o que po<strong>de</strong> causar um certo<br />

cansaço <strong>de</strong> ler, <strong>de</strong> escrutinar e recensear significações possíveis e coerentes. Em <strong>de</strong>corrência, é a fadiga <strong>de</strong><br />

ler-se a si próprio que se instala, numa busca incessante, mas infrutífera pela própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, partida e<br />

repartida, esta, pela multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coisas, <strong>de</strong> leituras, <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> significações e <strong>de</strong> <strong>de</strong>svãos<br />

interpretativos em que se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r tanto o uno <strong>de</strong> si quanto o plural do mundo, ou vice-versa, a unida<strong>de</strong><br />

das coisas e a variabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> si.<br />

28


Essa busca pela própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, em meio a fragmentos e ruínas e multiplicida<strong>de</strong>s, não precisa ser<br />

necessariamente melancólica. Assim como a exploração do ciberespaço não tem necessariamente que cair<br />

nas duas formas <strong>de</strong> melancolia acima <strong>de</strong>scritas: a da multiplicação indiscriminada e incontrolada <strong>de</strong><br />

informações e a do solipsismo e do fechamento individualista em si mesmo. De fato, há vários processos <strong>de</strong><br />

construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s no ciberespaço e nem todos <strong>de</strong>vem levar necessariamente a<br />

essa lacuna <strong>de</strong> si e a essa ausência <strong>de</strong> sentidos (seja pelo acúmulo in<strong>de</strong>finido e indiscriminado <strong>de</strong><br />

significantes, seja pela imposição <strong>de</strong> uma fisionomia única e redutora a todo e qualquer elemento<br />

significante). Mas mesmo essas duas <strong>de</strong>vem fazer parte <strong>de</strong> uma tipologia mais geral e mais abrangente que<br />

tente dar conta das diferentes maneiras <strong>de</strong> o sujeito colocar-se diante <strong>de</strong> si e <strong>de</strong>ssa teia <strong>de</strong> elementos<br />

significantes que estamos chamando <strong>de</strong> ciberespaço. Em resumo, po<strong>de</strong>m-se propor três tipos básicos <strong>de</strong><br />

processo <strong>de</strong> subjetivação: 1) uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> absoluta e além do sujeito; 2) uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> relativizada e<br />

aquém do sujeito; 3) uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> provisória e não programática. E é claro que estaremos, <strong>de</strong> ora em<br />

diante, fazendo pen<strong>de</strong>r discussões e pontos <strong>de</strong> vista para esta última, pois ela parece ser, diante das duas<br />

outras, a única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escapar à melancolia que vem da proliferação <strong>de</strong>scontrolada do múltiplo<br />

ou que resulta da repetição <strong>de</strong> si mesmo.<br />

Tomemos então, primeiramente, essa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> absoluta e além do sujeito. Ela parece se manifestar,<br />

por exemplo, pelas próteses tecnológicas e/ou cibernéticas com que se dotam os corpos (e, em <strong>de</strong>corrência,<br />

as próprias ativida<strong>de</strong>s humanas implicadas). Vale dizer que, quando nos referimos a humano, estamos<br />

pensando naquilo que se encontra ainda aquém dos gestos e das intenções significantes e lhes serve <strong>de</strong><br />

ponto <strong>de</strong> partida: por trás da atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> indicar um objeto ou uma direção, está o <strong>de</strong>do que aponta, a mão<br />

que o contém, o braço que o sustenta, o ombro que o ampara, o tronco <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ele nasce, em suma, está<br />

o corpo inteiro flexionado e fletido para dar a si e entregar ao mundo certa significação. Quando<br />

escon<strong>de</strong>mos nosso corpo com aparatos com que ele não nasceu, quando outorgamos a nossos gestos uma<br />

origem externa ao espaço e ao alcance <strong>de</strong> nossos corpos, estamos naquela situação, criticada por Virilio, <strong>de</strong><br />

nos dotarmos <strong>de</strong> uma virtualida<strong>de</strong> realizada às expensas <strong>de</strong> nossa própria circunstância corpórea. Estamos,<br />

também, na posição <strong>de</strong>scrita (e exaltada) por Pierre Lévy, quando se refere ao duo pensante homemmáquina.<br />

No caso do ciberespaço, trata-se da impressão <strong>de</strong> que nossa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> não passaria mais pelo<br />

reencontro <strong>de</strong> nós em nossos próprios gestos, no reconhecimento <strong>de</strong> nossa fisionomia no que fazemos e nas<br />

significações que propomos às coisas e aos fatos, na maneira como visamos a um mundo <strong>de</strong> significações<br />

que se instala a nossa volta. Nossa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> estaria, <strong>de</strong>ssa forma, não na extensão <strong>de</strong> nossos gestos e <strong>de</strong><br />

nossos corpos em direção a algum elemento significante que eventualmente construiríamos ou<br />

perceberíamos ou para o qual apontaríamos, mas apenas e tão-somente no além <strong>de</strong> uma extensão<br />

maquínica, <strong>de</strong> um processo cujo sentido e cujo alcance nunca tivessem feito parte <strong>de</strong> nossas intenções e<br />

percepções diretas, <strong>de</strong> um processo, em suma, que viria até nós sem ser por nós produzido ou percebido.<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>ríamos classificar como místico-tecnológica, pois consiste no<br />

esvaziamento <strong>de</strong> nossa própria singularida<strong>de</strong> em proveito da exteriorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma tela, <strong>de</strong> um dado<br />

en<strong>de</strong>reço eletrônico, <strong>de</strong> ligações a en<strong>de</strong>reços eletrônicos outros, <strong>de</strong> interações impostas por uma lógica <strong>de</strong><br />

leitura e <strong>de</strong> navegação estranhas a nossas expectativas e experiências, em resumo, <strong>de</strong> elementos<br />

significantes que parecem surgir <strong>de</strong> uma exteriorida<strong>de</strong> absoluta e além do sujeito. E por que místico?<br />

29


Porque ela exige uma negação <strong>de</strong> sua própria singularida<strong>de</strong>, com a conseqüente aceitação <strong>de</strong> uma<br />

exteriorida<strong>de</strong> absoluta e inelutável. Assim, o sentido do humano não estaria mais na maneira como nos<br />

dotamos <strong>de</strong> um mundo que existe antes <strong>de</strong> nós (ou seja, no modo como habitamos essa reversibilida<strong>de</strong><br />

entre corpo e mundo), mas em como <strong>de</strong>ixamos ferramentas e processos nos conduzir e nos instalar como<br />

seres <strong>de</strong>les <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. É como se o preexistente, o já dado, fosse não o mundo ele próprio, mas certas<br />

regiões dos objetos culturais, no caso, uma parte do espaço tecnológico. Ora, a falha <strong>de</strong>ssa percepção<br />

encontra-se exatamente em tomar o tecnológico como exteriorida<strong>de</strong> absoluta a que somos –<br />

paradoxalmente – convidados a entrar e a estar e a ser, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la. Não seria absurdo afirmar que se trata<br />

<strong>de</strong> uma retomada falha e esvaziada do mítico e do religioso: o re-ligare das religiões tradicionais funda-se<br />

numa experiência em que se busca justamente uma dualida<strong>de</strong> (o sagrado e o profano) em que esses dois<br />

campos extremos (o aquém, pelo ser humano, e o além, através do divino) se encontrariam e se dariam a<br />

ver. No caso <strong>de</strong>sse misticismo tecnificante, temos uma apenas aparente dualida<strong>de</strong>, uma dualida<strong>de</strong> que não<br />

resiste às primeiras investidas dos processos automatizantes, já que eles acabam sempre reduzindo essa<br />

duplicida<strong>de</strong> à simplicida<strong>de</strong> e à exteriorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um mesmo campo (submetendo, no caso, o profano, o<br />

humano a lógicas e movimentos e ritmos exclusivamente externos).<br />

Como conseqüência, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> si (ou um arremedo <strong>de</strong>la) passaria forçosamente por uma i<strong>de</strong>ntificação<br />

com instrumentos e com os processos <strong>de</strong> que se dispõe, abrindo mão <strong>de</strong> qualquer autonomia ou<br />

espontaneida<strong>de</strong> próprias ao humano. Em suma, teríamos nada além da i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> si próprio com uma<br />

eficácia externa, o que seria, no máximo, simulacro ou ilusão <strong>de</strong> eficácia (assim como <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>), pois a<br />

performance do instrumento tecnológico não tem como ser totalmente assimilada a expressões ou gestos<br />

humanos. A conseqüência direta <strong>de</strong>ssa busca <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, através do além do tecnológico, não traz como<br />

resultado senão exteriorida<strong>de</strong> e platitu<strong>de</strong> (ou, dito <strong>de</strong> outro modo, nada além <strong>de</strong> uma tecnomelancolia). Bem<br />

diferente, em todo caso, <strong>de</strong> experiências místicas como as dos quietistas espanhóis do século XVII ou <strong>de</strong> San Juan<br />

<strong>de</strong> la Cruz, que, <strong>de</strong> uma aniquilação <strong>de</strong> si próprios, insinuavam chegar a uma interiorização radical do sagrado.<br />

O segundo tipo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que se po<strong>de</strong> propor com base no ciberespaço é aquela que caracterizamos<br />

como relativizada e aquém do sujeito. Ela está ligada diretamente à hiperinflação informativa, processo<br />

em que, <strong>de</strong>vido a um transbordamento <strong>de</strong> significantes, toda informação, todo dado, todo significado<br />

inevitavelmente se transformam em ruído. Isso ocorre quando as informações <strong>de</strong>sfilam e se <strong>de</strong>sfiam na tela<br />

do computador, <strong>de</strong>masiadamente rápido diante <strong>de</strong> nós, sem <strong>de</strong>ixar nenhuma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esboçarmos<br />

certa fisionomia <strong>de</strong> organização, algum esforço <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>, mesmo provisório e localizado, que<br />

pudéssemos associar aos objetos significantes <strong>de</strong>sfilando pela tela. É o caso em que o excesso <strong>de</strong> informação<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser informação para tornar-se ruído, per<strong>de</strong>ndo totalmente qualquer conteúdo informativo. Mas<br />

isso não é tudo. Esse ruído parece propiciar, inicialmente, uma paradoxal hipertrofia do sujeito, dando-lhe<br />

a ilusão (ou é ele próprio quem assim se ilu<strong>de</strong>) <strong>de</strong> que é ele quem está por trás <strong>de</strong> toda construção <strong>de</strong><br />

objetos significantes, que todo percurso <strong>de</strong> significação se submete ao arbitrário e ao relativo <strong>de</strong> suas<br />

posições e gostos e disposições e gestos.<br />

Assim, esse sujeito instala-se num ponto <strong>de</strong> enunciação falto <strong>de</strong> sentidos e sem horizonte <strong>de</strong> significações<br />

possíveis tendo a impressão <strong>de</strong> que a ele compete ocupar todos esses espaços e ocupar-se <strong>de</strong> todos esses<br />

30


processos. Não lhe restaria outra posição senão a <strong>de</strong> instalar-se <strong>de</strong>cididamente na ribalta dos significantes e<br />

estabelecer-se, solitariamente, como horizonte <strong>de</strong> sentidos e <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> significação. Mas é aí,<br />

justamente, que o processo se inverte e essa hipertrofia inicial (e, dizíamos, paradoxal) do sujeito se<br />

transforma em atrofia. Ele não percebe que está, na verda<strong>de</strong>, limitando-se a pontos <strong>de</strong> vista passivos (e eles<br />

se multiplicam, acentuando o esvaziamento <strong>de</strong> sua subjetivida<strong>de</strong>) diante <strong>de</strong> uma celerida<strong>de</strong> <strong>de</strong> significantes<br />

cada vez mais esvaziados. Com o que ele se reduz, afinal <strong>de</strong> contas, <strong>de</strong> forma gradual e inapelável a uma<br />

lacuna num espaço então tornado <strong>de</strong>finitivamente lacunar. Há como que uma homogeneida<strong>de</strong> entre o<br />

vazio da informação multiplicada à exaustão e às raias da inutilida<strong>de</strong> e um sujeito rareificado que nem<br />

mesmo percebe estar sendo excluído da cena dos objetos significantes.<br />

Finalmente, resta discutir o terceiro tipo, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> provisória e não programática, em que a busca<br />

<strong>de</strong> sentidos e <strong>de</strong> significações não se dirige nem para uma mistificação do tecnológico (além do eu), nem<br />

para um transbordamento vazio <strong>de</strong> informações (aquém do eu). Essa terceira i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> se fundamenta no<br />

que po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>screver como uma costura <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s (assim mesmo, no plural!) e <strong>de</strong> significantes,<br />

em que internos e externos se conjugam, se entrelaçam, resultando num gesto expressivo que parece<br />

lembrar o que Merleau-Ponty chama <strong>de</strong> quiasma ou reversibilida<strong>de</strong>. 9 Em certo sentido, o que se propõe é<br />

como que a busca <strong>de</strong> um apoio ou <strong>de</strong> complementarida<strong>de</strong> no outro, no que é provisoriamente diverso,<br />

oposto ou externo. É, por exemplo, <strong>de</strong>scobrir um outro lado no espaço e nos objetos da tecnologia,<br />

rastreando neles a sedimentação do toque humano que revela o horizonte cultural <strong>de</strong> qualquer<br />

instrumento, por mais eficiente que ele pretenda ser, <strong>de</strong> qualquer processo, por mais po<strong>de</strong>roso que ele<br />

pareça. Na verda<strong>de</strong>, é justamente esse fundo <strong>de</strong> cultura que po<strong>de</strong> revelar o horizonte <strong>de</strong> sentidos e <strong>de</strong><br />

significados possíveis <strong>de</strong> qualquer instrumento ou processo. Com o que po<strong>de</strong>mos mostrar, com toda a<br />

evidência, que a finalida<strong>de</strong> do espaço tecnológico não está nele mesmo (como pareceria mostrar a primeira<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> falha aqui discutida) nem num locus esvaziado <strong>de</strong> sentidos e <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s (para on<strong>de</strong><br />

apontaria a segunda tentativa <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>), mas na maneira como acomodamos ou alteramos seus<br />

significantes e seus significados em direção ao sentido que queremos e po<strong>de</strong>mos dar a ele. De fato, não há<br />

nenhum sentido do tecnológico que se esgote nele mesmo, em sua própria instância. É o sujeito que lhe dá<br />

o toque final e o sentido sempre provisoriamente <strong>de</strong>finitivos.<br />

Do mesmo modo, somente o olhar externo à gravura (portanto, não reduzido às limitações e aos limites da<br />

perspectiva do anjo) é capaz <strong>de</strong> perceber algum sentido que vá além da melancolia daquele anjo perdido em<br />

meio à multiplicida<strong>de</strong> do mundo e das coisas, e à ausência <strong>de</strong>le próprio. Daí esse percurso <strong>de</strong> reconhecimento<br />

<strong>de</strong> si, que passa pela busca <strong>de</strong> uma interiorida<strong>de</strong> do tecnológico e pela reafirmação <strong>de</strong> uma exteriorida<strong>de</strong> do<br />

eu diante da multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> significantes. Há aí, implícito, um projeto <strong>de</strong> sentido e <strong>de</strong> significações que<br />

não se reduz a uma mera reafirmação da imagem mística do tecnológico. Trata-se da busca <strong>de</strong> uma<br />

interiorida<strong>de</strong> do tecnológico, da busca <strong>de</strong> teias e tramas <strong>de</strong> sentido que escapem à exteriorida<strong>de</strong> absoluta, à<br />

platitu<strong>de</strong> constante e teçam, nesse tecnológico, significações além daquelas que vêm da perspectiva<br />

(neo)positivista. E esse projeto <strong>de</strong> sentido e <strong>de</strong> significações também não po<strong>de</strong>ria se reduzir à euforia cegante<br />

e quase irreversível da hiperinflação informativa (cujo correlato é o esvaziamento eufórico do espaço da<br />

subjetivida<strong>de</strong>). É através <strong>de</strong>le que po<strong>de</strong>mos escapar das duas formas melancólicas <strong>de</strong> subjetivação,<br />

construindo uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que se dê como percurso <strong>de</strong> si próprio, que se faça à custa e a <strong>de</strong>speito dos<br />

31


aparatos, dos aparelhos e dos processos (e também, claro, sobre eles todos). Uma das melhores imagens que<br />

conheço para dar conta disso é a do personagem <strong>de</strong> uma charge que, em um monociclo sobre a corda bamba,<br />

vai <strong>de</strong>senhando a lápis, logo à frente, a continuação da linha on<strong>de</strong> se equilibra precária e provisoriamente.<br />

O centro <strong>de</strong> significações (ou a direção coerente tomada pelo artista mambembe e cartunista) está<br />

justamente <strong>de</strong>positado nesse esforço <strong>de</strong> traçar uma linha que ainda não chegou a ponto algum, mas que não<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se apoiar numa exteriorida<strong>de</strong> projetada solidariamente pelo corpo e pelo gesto do equilibrista.<br />

Uma conseqüência do que discutimos nos parágrafos anteriores refere-se ao tipo <strong>de</strong> leitura que se po<strong>de</strong><br />

propor no/do hipertexto, uma leitura que se coloca também como gesto e, conseqüentemente, como<br />

expressão, empreendida com base na posição singular <strong>de</strong> um sujeito movente, <strong>de</strong> posições provisórias –<br />

efêmeras, talvez –, mas construindo o possível <strong>de</strong> um percurso por entre fragmentos e multiplicida<strong>de</strong>s<br />

várias. E, no caso, voltamos ao papel das teorias do texto literário na compreensão do ciberespaço. É que,<br />

se há texto, se há então leitura <strong>de</strong>sse texto, se há um posição focal que cria (sempre) regiões <strong>de</strong> clareza<br />

provisória e sombras passageiras nesse espaço <strong>de</strong> telemática opacida<strong>de</strong>, é possível propor a esse sujeito<br />

leitor um percurso <strong>de</strong> leitura como marcas e bases <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, como testemunhos <strong>de</strong> sua<br />

subjetivida<strong>de</strong>. E tal leitura guarda uma especificida<strong>de</strong>, a <strong>de</strong> fundar e traçar significações, instalando-se tal<br />

qual o equilibrista na soli<strong>de</strong>z precária <strong>de</strong> uma linha que se apóia no quase nada para apontar, a partir daí,<br />

para o muito, para a pluralida<strong>de</strong> das coisas e dos objetos significantes. O que procuro aqui, na verda<strong>de</strong>, é<br />

levar adiante uma intuição, a <strong>de</strong> tomar a leitura do/no ciberespaço como uma espécie <strong>de</strong> performance que<br />

realizamos às expensas <strong>de</strong> nossas limitações e das condições <strong>de</strong> contorno da tela do computador. Trata-se,<br />

aparentemente, <strong>de</strong> um ato <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> posição diante <strong>de</strong> uma cena gerada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o exterior<br />

<strong>de</strong> imagens, ícones, movimentos e processos interativos, <strong>de</strong>slocamentos e cortes, acréscimos e<br />

multiplicações, mas permitindo que nossa interiorida<strong>de</strong> venha habitá-los todos com a compulsão dos<br />

significados e a contenção dos sentidos.<br />

Dizer que essa leitura é uma performance implica dizer que nos colocamos como hiperleitores, isto é, como<br />

ativos organizadores do hipertexto, mas organizadores que se colocam bem em meio aos objetos<br />

significantes, <strong>de</strong> forma que o processo <strong>de</strong> significação <strong>de</strong>sses objetos acompanhe e circun<strong>de</strong> nosso processo<br />

<strong>de</strong> subjetivação, em que nos explicitamos como leitores (<strong>de</strong> significantes, do ciberespaço on<strong>de</strong> estes se<br />

<strong>de</strong>svelam, e <strong>de</strong> nós mesmos). Apresentamo-nos como atores <strong>de</strong> uma espetacularida<strong>de</strong>, mas que sabem<br />

também postar-se do outro lado da cena, no aquém do palco (da tela) e no além <strong>de</strong> nossos próprios<br />

movimentos e tomadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, tecendo uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que nos coloca como subjetivida<strong>de</strong> encenada<br />

e dada à leitura <strong>de</strong> outros. E essa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> telematicamente colocada, construída e, sobretudo, encenada<br />

exibe-se como fingimento. Nessa via transversa, ela busca dar voz e vez a um verda<strong>de</strong>iro dizer do real, por<br />

meio <strong>de</strong>sse fingimento que se po<strong>de</strong> exibir como máscara reveladora (e que é sempre uma possibilida<strong>de</strong> que<br />

compete a cada um <strong>de</strong> nós efetivar ou não, sendo-nos dado a escolha do melancólico ou do sábio). Tratase<br />

<strong>de</strong> capturar na provisorieda<strong>de</strong> e na dramatização <strong>de</strong> falas, gestos, movimentos, comandos, aparências,<br />

rastros e restos <strong>de</strong> ícones e <strong>de</strong> en<strong>de</strong>reços, na tecedura movente e mole <strong>de</strong> significantes uma fisionomia <strong>de</strong><br />

efêmera permanência; ou também <strong>de</strong> propor uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espacializar reflexos e percursos em<br />

cima dos quais balizamos a visão <strong>de</strong> nós mesmos e <strong>de</strong>sse texto-mundo tecido em raias intermináveis e<br />

circunferências <strong>de</strong> raio infinito.<br />

32


Essa leitura <strong>de</strong> nós, <strong>de</strong> nossa inserção no ciberespaço (que é também leitura do próprio ciberespaço) po<strong>de</strong><br />

ser assim <strong>de</strong>scrita como uma provisória mentira, uma encenação que permite expor honesta e abertamente<br />

entranhas e hesitações <strong>de</strong> (ciber)espaços, <strong>de</strong> leitores e <strong>de</strong> leituras. É claro que há aí um paradoxo lógico em<br />

que a sincerida<strong>de</strong> consiste em dizer que se está mentindo. Todavia, tal situação <strong>de</strong> “incômodo lógico” está<br />

presente em qualquer forma <strong>de</strong> <strong>literatura</strong>, ou, para ser mais geral, em qualquer arte, em toda época. E não<br />

é por causa da intensa tecnologização do ciberespaço que vamos escapar a esse gênero <strong>de</strong> contradição que<br />

é base <strong>de</strong> qualquer experiência artística que se possa imaginar. Tanto quanto a voz poética da<br />

Autopsicografia, <strong>de</strong> Fernando Pessoa, o hiperleitor finge que não sente o que na verda<strong>de</strong> está sentindo, e<br />

os que lêem sua leitura vão sentir, ainda, outra coisa que nada tem a ver com o que esse hiperleitor chegou,<br />

primeiramente, a sentir e, <strong>de</strong>pois, a encenar.<br />

Em outras palavras, o leitor do hipertexto assume a função <strong>de</strong> produtor ou organizador <strong>de</strong> uma<br />

espetacularida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma encenação, <strong>de</strong> uma topologização <strong>de</strong> significantes e <strong>de</strong> significações <strong>de</strong> que ele<br />

não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> participar. De fato, não po<strong>de</strong>mos ficar presos a uma mera especularida<strong>de</strong> do hipertexto<br />

hiperinflacionado, nos colocando irremediavelmente presos a reflexos sem reflexões e que resultam <strong>de</strong> uma<br />

algaravia <strong>de</strong> restos <strong>de</strong> idéias, <strong>de</strong> fragmentos <strong>de</strong> princípios, <strong>de</strong> vestígios <strong>de</strong> saber. Também não po<strong>de</strong>mos<br />

propor apenas um espetáculo que se contente em celebrar a ausência <strong>de</strong> nós próprios, o que seria o<br />

resultado melancólico dos simulacros e das mistificações tecnologizantes.<br />

De outro lado, é preciso levar ainda em conta a presença <strong>de</strong> uma platéia, <strong>de</strong> companheiros <strong>de</strong> rota e <strong>de</strong><br />

significações (<strong>de</strong> resto, nenhuma linguagem, por mais fundada em elementos estritamente tecnológicos,<br />

po<strong>de</strong> existir sem essa armação intersubjetiva que sustenta e permite todo ato expressivo). Essa platéia (<strong>de</strong><br />

que fazemos parte, mesmo nos colocando à parte para po<strong>de</strong>r falar <strong>de</strong>la), ainda que virtual, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />

traçar vestígios, <strong>de</strong> possibilitar ornamentos e filigranas <strong>de</strong> significações ao (hiper)texto construído por nós,<br />

leitores <strong>de</strong> nós <strong>de</strong> conexões, leitores <strong>de</strong> nós próprios, leitores do hipertexto e <strong>de</strong> outros leitores. E essa<br />

platéia se faz presente e atuante não na indiferença das posições distantes e distintas do palco, mas<br />

colocando-se em cena, bem ao lado dos percursos que assumimos e esboçamos, trazendo, aliás, para a<br />

cena a posição e a cumplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compartilhar um gesto expressivo comum. Em resumo, esse esboço <strong>de</strong><br />

leitor do ciberespaço mostra-nos como atores/organizadores que lêem, representam, atormentam,<br />

<strong>de</strong>sfocam, <strong>de</strong>formam e tocam adiante um texto que, vindo <strong>de</strong> outros leitores e loci, recebe inflexões e<br />

significações <strong>de</strong> que talvez nem suspeitássemos. Construímos um texto tramado e tecido em um espaço<br />

coletivo, um texto dado pela voz singular do ator/organizador à multidão que aplau<strong>de</strong>, vaia, contesta,<br />

aceita, recolhe, mas participa sempre, evi<strong>de</strong>ntemente, <strong>de</strong>ssa construção coletiva <strong>de</strong> significações e <strong>de</strong><br />

textos. A navegação pelo ciberespaço, vista como dramatização ou espetacularização <strong>de</strong> nós próprios, do<br />

hipertexto e <strong>de</strong> outros leitores/atores, po<strong>de</strong>rá mostrar um caminho efetivo em que, <strong>de</strong>finitivamente, não<br />

precisaremos mais nos curvar a essa melancolia <strong>de</strong> significações excessivas ou <strong>de</strong> mistificações<br />

tecnológicas. Quem viver (e ler) verá (lerá).<br />

33


Saber o/no/do Ciberespaço<br />

Como po<strong>de</strong> ser possível alguma construção <strong>de</strong> saberes no ciberespaço baseada nas condições <strong>de</strong> contorno <strong>de</strong><br />

uma tradição <strong>de</strong> pensamento ainda fortemente ancorada no meio impresso? Para respon<strong>de</strong>r a isso talvez seja<br />

útil discutir primeiro como vem ocorrendo a passagem <strong>de</strong> obras originalmente <strong>de</strong>stinadas ao suporte<br />

impresso para o meio eletrônico. Essa alteração envolve uma série <strong>de</strong> elementos que dizem respeito não<br />

apenas à produção e à disseminação <strong>de</strong> textos. Ela é produzida num espaço híbrido <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> objetos<br />

culturais – implicando um diálogo entre o meio telemático e o meio impresso – e está ligada, afinal <strong>de</strong> contas,<br />

à estruturação <strong>de</strong> um saber que, na falta <strong>de</strong> melhor <strong>de</strong>nominação, po<strong>de</strong>mos já chamar internético, termo<br />

que <strong>de</strong>signaria a produção do conhecimento em re<strong>de</strong>s telemáticas. De toda maneira, se ao final não ficar<br />

convencido do acerto e valida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse arremedo <strong>de</strong> conceito – internético –, o leitor po<strong>de</strong>rá ainda aproveitar<br />

a inesperada sonorida<strong>de</strong> da palavra, que ao menos agradará, mesmo sem ter plenamente convencido.<br />

Primeiramente, é importante explicitar os contextos e as referências da questão colocada para po<strong>de</strong>rmos<br />

ver alguma coerência nesse saber internético. Nos últimos anos, o Núcleo <strong>de</strong> Pesquisas em Informática,<br />

Literatura e Lingüística, Nupill, da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina tem disponibilizado na re<strong>de</strong><br />

obras clássicas da <strong>literatura</strong> brasileira. E, diga-se <strong>de</strong> passagem, não é o único: projetos <strong>de</strong>sse tipo têm<br />

pululado e, entre eles, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar o trabalho <strong>de</strong>senvolvido pela Biblioteca Nacional. Em linhas<br />

gerais, o que se tem pretendido, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, é trazer para o meio eletrônico obras que foram concebidas<br />

inicialmente para o meio impresso. Porém, o espaço das mediações e das trocas culturais é um sistema <strong>de</strong><br />

vasos comunicantes, e, claro, uma obra disponibilizada em formato eletrônico não teria como ficar<br />

totalmente presa ao meio em que é inserida: é assim que textos eletrônicos, vindos do meio impresso, têm<br />

retornado a ele; caso, por exemplo, da Carta <strong>de</strong> Pero Vaz <strong>de</strong> Caminha, que nos meses que antece<strong>de</strong>ram a<br />

comemoração dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, no ano <strong>de</strong> 2000, foi amplamente<br />

divulgada e, mais, publicada e impressa, em alguns casos, com base na versão eletrônica disponibilizada<br />

pelo Nupill. Com isso, uma obra difundida durante séculos no meio impresso entra no espaço telemático<br />

para, em seguida, ser levada <strong>de</strong> volta a seu leito original. É claro que nada ligaria a atual edição impressa<br />

a sua origem eletrônica se não fosse a informação, mencionada pelos responsáveis das novas edições, <strong>de</strong><br />

que o Nupill era o responsável pela versão eletrônica da Carta.<br />

34<br />

No que se refere ao meio eletrônico, ainda quando disponibiliza obras originalmente concebidas para o<br />

meio impresso, ele propõe outras ferramentas e, por conseguinte, outros paradigmas <strong>de</strong> leitura. Sem nos<br />

alongarmos em <strong>de</strong>masia, basta pensar no comando localizar (find, nessa salada linguageira que assola a<br />

re<strong>de</strong>), disponível tanto nos editores <strong>de</strong> texto quanto nos navegadores. Ele representa uma economia <strong>de</strong><br />

tempo consi<strong>de</strong>rável na localização <strong>de</strong> palavras ou expressões que, em caso contrário, seriam dificilmente<br />

reencontradas pelo leitor. Com isso, é o tempo, o ritmo e mesmo a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> leitura que se po<strong>de</strong>m<br />

modificar, conforme ritmos e velocida<strong>de</strong>s que resultam <strong>de</strong> um novo acordo, não mais entre nossas<br />

contingências físicas e uma folha <strong>de</strong> papel impressa e dando-se apenas ao olhar, mas <strong>de</strong> uma combinação<br />

entre as mesmas contingências físicas nossas e instrumentos <strong>de</strong> navegação e <strong>de</strong> leitura informáticos (que<br />

são propostos e intermediados por um aparato eletrônico que inclui elementos como mouses e teclados,<br />

imagens <strong>de</strong> cursores e <strong>de</strong> ícones, gestos e movimentos como cliques e ações <strong>de</strong> cortar/colar). Mas tudo isso,


claro, não impedirá nenhum leitor mais obstinado (e cioso <strong>de</strong> seus direitos <strong>de</strong> aferrar-se a práticas e espaços<br />

já sobejamente conhecidos) <strong>de</strong> continuar lendo como sempre o fez e <strong>de</strong> percorrer com os olhos o espaço da<br />

tela do computador como se estivesse diante <strong>de</strong> uma folha <strong>de</strong> papel impressa. Quero afirmar que, grosso<br />

modo, os diferentes paradigmas <strong>de</strong> leitura continuam confluindo e o que hoje po<strong>de</strong>ríamos chamar <strong>de</strong><br />

leitura eletrônica ainda se resolve e se <strong>de</strong>senvolve, mesmo parcialmente, segundo hábitos e preceitos<br />

aprendidos e apreendidos com as práticas trazidas pelo meio impresso. Da mesma maneira, é legítimo<br />

pensar que durante algum tempo, mesmo com o avanço da alfabetização, uma consi<strong>de</strong>rável quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

leitores ainda percorriam seus caminhos <strong>de</strong> leitura carregados pelos ritmos e pelas imagens aprendidas (e<br />

também apreendidas) por séculos e séculos <strong>de</strong> “leitura” oral, em que eram os ouvidos e não ainda os olhos<br />

os responsáveis pela produção do texto.<br />

Todavia, quanto mais insistirmos na leitura em meio eletrônico, mesmo aos trambolhões, trancos e<br />

barrancos (como, aliás, parece ocorrer sempre que passamos por alterações mais bruscas nos paradigmas <strong>de</strong><br />

circulação <strong>de</strong> objetos culturais), mais estaremos apren<strong>de</strong>ndo os ritmos e as restrições do espaço telemático<br />

e também forçando-o a acomodar-se a nossos projetos, <strong>de</strong>sejos, pensamentos e ao que acima chamei <strong>de</strong><br />

contingências físicas (como a acuida<strong>de</strong> visual, por exemplo). Em outras palavras, o que estou propondo é<br />

discutir a necessida<strong>de</strong> e as estratégias <strong>de</strong> utilização <strong>de</strong> ferramentas informatizadas no armazenamento, na<br />

manipulação e na leitura <strong>de</strong> obras (e não nos restringimos, claro, apenas às literárias, que todo tipo <strong>de</strong>las<br />

suscita questões e possibilita reflexões semelhantes). Percebam bem que associei necessida<strong>de</strong> a<br />

estratégias, buscando chamar a atenção para a importância <strong>de</strong> utilizarmos esse instrumental tecnológico<br />

<strong>de</strong> modo a estabelecer com ele um diálogo em condições <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>. Dito <strong>de</strong> outra maneira, temos que<br />

mapear os procedimentos informatizados e os processos telemáticos disponíveis antes <strong>de</strong> utilizá-los<br />

intensiva e extensivamente, <strong>de</strong> forma que sejamos nós a nos servir da tecnologia e não a tecnologia (ou a<br />

tecnocracia por trás <strong>de</strong>la) a se servir <strong>de</strong> nós.<br />

Creio ser possível escapar, assim, a algumas das <strong>de</strong>rivas do texto eletrônico, àquilo que tenho chamado há<br />

algum tempo, e mesmo neste ensaio, <strong>de</strong> hiperinflação informativa. Explico melhor (talvez melhor do que o<br />

fiz antes): um processo hiperinflacionário em economia correspon<strong>de</strong> à situação em que a moeda circula a<br />

velocida<strong>de</strong> tão alta que os agentes econômicos já não têm nenhum controle sobre ela; em conseqüência,<br />

ela acaba per<strong>de</strong>ndo todo seu valor. O mesmo ocorre atualmente (e cada vez mais!) quando <strong>de</strong>ixamos as<br />

informações <strong>de</strong>sfilarem, céleres, diante <strong>de</strong> nós e ao longo da tela do computador, sem nenhum percurso que<br />

vá <strong>de</strong>senhando uma certa fisionomia, um esboço <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> pontual que po<strong>de</strong>ríamos impor às buscas<br />

e aos hipertextos trazidos pelos cliques no mouse. No mais das vezes, ocorre <strong>de</strong> as pontas dos <strong>de</strong>dos estarem<br />

mais ávidas <strong>de</strong> toques excitados do que a mente ansiosa por idéias passíveis <strong>de</strong> alguma orquestração. Como<br />

conseqüência po<strong>de</strong>mos, por exemplo, começar uma busca por pintura impressionista e, quando nos damos<br />

conta, em algum raro momento <strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> consciência, estamos diante <strong>de</strong> um improvável sítio <strong>de</strong><br />

torturas sexuais no Hindustão medieval. Aparentemente, seria um processo semelhante àquele <strong>de</strong>scrito por<br />

Paul Valéry em Poésie et Pensée Abstraite, em que a entrada em um universo poético tira-nos, sem que<br />

percebamos, da consciência imediata do dia-a-dia, das noções e reflexões da cotidianida<strong>de</strong>. Assim, a entrada<br />

nesse universo poético correspon<strong>de</strong>ria à entrada em uma região <strong>de</strong> ritmos e <strong>de</strong> sons estrangeiros,<br />

inesperados, correspon<strong>de</strong>ndo, <strong>de</strong> fato, a uma tomada <strong>de</strong> posse da palavra pelo revés da significação e do<br />

35


discurso. Todavia, a entrada nessa hiperinflação informativa <strong>de</strong>senfreada não traz revés algum, já que o seu<br />

contrário é ela mesma. O trágico <strong>de</strong>sse processo é que seu lado escondido é rigorosamente idêntico a si<br />

próprio, isto é, uma região neutra e sem diferenças, o que vale dizer, sem significação alguma. De fato, o<br />

excesso <strong>de</strong> informação, exatamente por ser excessivo, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser informação e torna-se ruído, per<strong>de</strong> seu<br />

valor como no caso da hiperinflação monetária. Mas, à diferença <strong>de</strong>sta, que é um processo coletivo, a<br />

hiperinflação informativa é um fenômeno individual, po<strong>de</strong>ndo ser <strong>de</strong>sligado a qualquer momento por uma<br />

flexão no campo <strong>de</strong> interesses e <strong>de</strong> significações posto em movimento pelo leitor/navegador.<br />

Dessa forma, antes <strong>de</strong> colocar em movimento um saber <strong>de</strong>ntro do ciberespaço, esse saber que chamei <strong>de</strong><br />

internético, é preciso fazer o reconhecimento <strong>de</strong>sse espaço e estabelecer como po<strong>de</strong>mos, consi<strong>de</strong>rando suas<br />

condições <strong>de</strong> contorno e <strong>de</strong> nossas contingências, construir algo como um percurso cognitivo. De início,<br />

nunca é <strong>de</strong>mais lembrar a etimologia <strong>de</strong> cibernética, termo cunhado com base no grego kybernetiké, que<br />

remete por sua vez ao timoneiro, ao ato <strong>de</strong> dar um curso à navegação em meio às intempéries e às calmarias<br />

(tanto quanto, hoje, nos movemos nesse ciberespaço chamado web, em meio a acúmulos <strong>de</strong> informações e<br />

perdas <strong>de</strong> conexão com os servidores atacados <strong>de</strong> todo lado por vírus e piratas <strong>de</strong> variado jaez e feitio).<br />

Trata-se não <strong>de</strong> buscar ou <strong>de</strong> encontrar, mas <strong>de</strong> construir uma orientação ao mesmo tempo que se avança<br />

nesse processo cognitivo, e, se nada mais <strong>de</strong> útil po<strong>de</strong> vir <strong>de</strong>ssa metaforização espacializante, ao menos ela<br />

nos servirá para pensar o pensamento <strong>de</strong> uma maneira não habitual, associando a ele (e, em conseqüência,<br />

ao próprio ciberespaço on<strong>de</strong> ele po<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolver) os elementos e os procedimentos da topologia. Em<br />

outras palavras, parece ser importante saber como orientar o pensamento em um espaço on<strong>de</strong> a cognição<br />

ainda tateia, on<strong>de</strong> hipóteses ou outras formas <strong>de</strong> retórica argumentativa <strong>de</strong>vem encontrar novos elementos<br />

e novas axiomatizações. A esse respeito, algo interessante se encontra em um opúsculo publicado por Kant<br />

no Berlinishe Monatsschrift, em outubro <strong>de</strong> 1786. Ele advertia que:<br />

S’orienter signifie au sens propre du mot: d’après une contrée du ciel donnée (nous divisons<br />

l’espace en quatre contrées <strong>de</strong> cette sorte), trouver les autres, notamment le levant. (...) Enfin, il<br />

m’est possible d’élargir encore ce concept, du moment où il consisterait dans le pouvoir <strong>de</strong><br />

s’orienter non seulement dans l’espace, c’est-à-dire mathématiquement, mais dans la pensée, c’està-dire<br />

logiquement. 10<br />

Importa, no caso, resgatar, segundo o filósofo alemão, a mesma operação <strong>de</strong> direcionamento para o que já<br />

chamávamos a atenção quando apresentamos o termo cibernética. Kant fala <strong>de</strong>ssa espacialização do<br />

pensamento através das operações geométricas do espaço cartesiano, ainda submetido às injunções da<br />

geometria <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s. Se quisermos estabelecer uma diferença com o que hoje, por meio do ciberespaço,<br />

chamamos <strong>de</strong> topologização do pensamento, teremos talvez que apelar para as geometrias <strong>de</strong> Riemann ou<br />

<strong>de</strong> Lobatchevski. E, se essa tal topologização po<strong>de</strong> ter algum interesse para nós, ele resi<strong>de</strong> justamente na<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nos fazer olhar e perceber o pensamento não como formas geometrificáveis provenientes<br />

<strong>de</strong> alguma or<strong>de</strong>nação gestáltica, mas em termos <strong>de</strong> espaços e <strong>de</strong> vizinhanças n-dimensionais, traduzindo<br />

justamente essa precarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> domínios <strong>de</strong> valida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> imagens, chegando até as dimensões<br />

fracionárias dos fractais. Assim, esse pensamento que se exercita no ciberespaço po<strong>de</strong> aparecer não como<br />

uma ativida<strong>de</strong> preestabelecida em caminhos sobejamente conhecidos, em rotas traçadas na direção<br />

36


unilateral <strong>de</strong> uma Gran<strong>de</strong> Razão travestida <strong>de</strong> dogma ou <strong>de</strong> preconceito, mas como uma retomada<br />

constante e provisória <strong>de</strong> uma racionalida<strong>de</strong> vivida corporalmente. Trata-se, em suma, <strong>de</strong> uma racionalida<strong>de</strong><br />

em movimento, capaz <strong>de</strong> estabelecer conexões insuspeitas entre hipóteses e <strong>de</strong>duções, ao ponto <strong>de</strong> umas<br />

não mais se distinguirem facilmente das outras, como uma curva <strong>de</strong> Moebius retórica e argumentativa em<br />

que interior/anterior e exterior/posterior colocam-se no mesmo plano. Trata-se, enfim, <strong>de</strong> uma<br />

racionalida<strong>de</strong> não mais <strong>de</strong>bitada à conta <strong>de</strong> um eu puro pretensamente encarregado <strong>de</strong> pôr uma or<strong>de</strong>m<br />

transcen<strong>de</strong>ntal na poeira <strong>de</strong> fatos, palavras e gestos com que habitamos nosso dia-a-dia.<br />

E, no ciberespaço, a arquitetura conectivista pela qual ele se cristaliza e se dá à navegação talvez seja um<br />

dos primeiros elementos dignos <strong>de</strong> nota. Essa proprieda<strong>de</strong>, que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scrita como a característica que<br />

nos permite partir <strong>de</strong> qualquer nó e chegar a qualquer outro, acarreta duas conseqüências. A primeira <strong>de</strong>las<br />

é a ilusão (e insisto nessa palavra, ilusão) <strong>de</strong> que todos os nós seriam, então, equivalentes, ou mesmo<br />

homogêneos. Com isso, qualquer significação, no ciberespaço, seria <strong>de</strong>finitivamente <strong>de</strong>scartada, uma vez<br />

que só se chega a algum significado quando um sistema significante se torna capaz <strong>de</strong> opor diferenças<br />

relativas (e nunca absolutas) num horizonte <strong>de</strong> sentidos possíveis (esse, sim, o único absoluto em todo esse<br />

esquema). Opor nós intrinsecamente homogêneos seria, então, o mesmo que dizer que o ciberespaço leva,<br />

afinal <strong>de</strong> contas, a uma indistinção absoluta (e parece ser esse temor que está por trás das críticas <strong>de</strong><br />

Baudrillard). A segunda conseqüência <strong>de</strong>ssa arquitetura conectivista está em outra ilusão: a <strong>de</strong> que, ao<br />

contrário da homogeneida<strong>de</strong> a-significante (já <strong>de</strong>scrita), o ciberespaço nos levaria a um saber total,<br />

completo, todo-po<strong>de</strong>roso, talvez até mesmo infinito, a um conhecimento que seria a realização <strong>de</strong> todos os<br />

otimismos tecnológicos dos dois últimos séculos. De fato, cria-se a impressão <strong>de</strong> que a extensão ilimitada e<br />

a varieda<strong>de</strong> das leituras beiram o infinito e arrastam consigo as potencialida<strong>de</strong>s do pensamento. Não mais<br />

um pensamento produto do espírito humano, mas pensamentos provenientes <strong>de</strong> próteses maquínicas que<br />

dariam origem a uma nova união substancial – não mais aquele corpo-e-alma proposto por Descartes, mas<br />

um corpo-e-máquina (que faz o horror <strong>de</strong> Paul Virilio e as <strong>de</strong>lícias <strong>de</strong> um Pierre Lévy).<br />

Se conseguirmos escapar a essas duas ilusões, teremos boas chances <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r como po<strong>de</strong> o pensamento<br />

se inserir <strong>de</strong> maneira produtiva e não automatizante (ou até mesmo alienante) no ciberespaço.<br />

Primeiramente, é fundamental esclarecer que a arquitetura conectivista não reduz as diferenças entre os<br />

nós. E, no caso, é igualmente importante perceber o quão essenciais são essas diferenças entre cada um<br />

<strong>de</strong>sses nós, evitando que as diluamos em uma homogeneida<strong>de</strong> redutora e simplista. Em segundo lugar, isso<br />

tudo implica, <strong>de</strong> certa forma, estabelecer limites para a razão, sobretudo para a razão que se exibe num<br />

(ciber)espaço fingindo-se vocacionado para o infinito. Ora, boa parte da filosofia oci<strong>de</strong>ntal vem-se<br />

construindo justamente na tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar os limites do saber, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os pré-socráticos, passando por<br />

Sócrates, pelo ceticismo <strong>de</strong> Pirro, chegando a Descartes (a dúvida sistemática é uma última e <strong>de</strong>sesperada<br />

tentativa <strong>de</strong> mapear as fronteiras possíveis do saber para escapar ao ceticismo <strong>de</strong> um mestre anterior,<br />

Montaigne), a Kant (que buscava <strong>de</strong>limitar a razão para salvar a fé), sem contar ainda Nietzsche, Husserl,<br />

assim como vários dos pensadores do século XX (Foucault, Derrida, Deleuze etc.).<br />

Voltando ao ciberespaço, po<strong>de</strong>mos dizer que, se suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conexão são praticamente infinitas<br />

(e apenas a tentativa <strong>de</strong> esclarecer como seria essa infinitu<strong>de</strong> das conexões já faria correr muita tinta) e se<br />

37


po<strong>de</strong> não haver um limite concreto e <strong>de</strong>finitivo para esse <strong>de</strong>sfilar <strong>de</strong> informações, há, certamente, um limite<br />

para o saber. Aliás, saber sem limites está mais para <strong>de</strong>srazão (ou sua contrapartida, o irracionalismo) do<br />

que para conhecimento. Como no caso do excesso <strong>de</strong> informação que se reduz a ruído, a não informação,<br />

um saber pretensamente infinito, dotado <strong>de</strong> potências e possibilida<strong>de</strong>s divinas, não seria jamais um saber.<br />

Aparentemente, parece não haver lugar para Deus, mesmo no ciberespaço; ele se reduziria, aí, a um não<br />

saber. Na verda<strong>de</strong>, sem querer propor um ateísmo tecnológico, o que pretendo é enten<strong>de</strong>r como o<br />

conhecimento no ciberespaço só po<strong>de</strong> se construir com base nas precarieda<strong>de</strong>s dos indivíduos, da<br />

provisorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus esquemas <strong>de</strong> racionalização, da efemerida<strong>de</strong> e, ao mesmo tempo, da necessida<strong>de</strong><br />

(da urgência, diria) <strong>de</strong> suas certezas. Isso talvez possa ser mais bem entendido se analisarmos o modo como<br />

o tempo se insere e se insinua no ciberespaço e em suas navegações.<br />

O ciberespaço parece proporcionar uma espécie <strong>de</strong> justaposição <strong>de</strong> várias temporalida<strong>de</strong>s (resultando, em<br />

parte, na efemerida<strong>de</strong> mencionada). Ele nos permite, por exemplo, num só golpe, perscrutar formas e<br />

funções <strong>de</strong> telescópios direcionados para o fundo do universo (pensando nos sítios que oferecem imagens<br />

<strong>de</strong> astros longínquos à comunida<strong>de</strong> científica e a quem mais se interessar). Com isso, consegue-se uma<br />

curiosa conjunção <strong>de</strong> dois movimentos: o primeiro é esse que aponta para o futuro, que nos coloca no<br />

vértice e no vórtice <strong>de</strong> uma máquina amplificadora do olhar e <strong>de</strong> sua imensa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> processamento<br />

<strong>de</strong> dados e <strong>de</strong> imagens; o segundo é o revés do primeiro, colocando diante <strong>de</strong> nós um passado absoluto, o<br />

instante do big bang, nosso passado inaugural. Mas o efeito <strong>de</strong>ssa conjunção po<strong>de</strong> ser perverso, eliminando<br />

a diferença entre o direito e seu revés, na medida em que um e outro se homogeneizam, em que se reduz<br />

um a outro, e se faz, imediatamente, do passado absoluto o futuro que permite vê-lo (o passado) através<br />

<strong>de</strong> olhos e sensores <strong>de</strong> uma máquina das mais mo<strong>de</strong>rnas. Com isso, passado e futuro igualam-se, per<strong>de</strong>m<br />

suas diferenças recíprocas e reduzem ao absoluto <strong>de</strong> um presente que esteve no passado e estará no futuro<br />

simplesmente por que está por trás <strong>de</strong> tudo.<br />

Sempre vivemos em várias temporalida<strong>de</strong>s; em qualquer época, essas diferentes temporalida<strong>de</strong>s se tocam,<br />

às vezes se confun<strong>de</strong>m e se misturam. Nos diversos ritmos das socieda<strong>de</strong>s agrárias, conviviam os diferentes<br />

tempos das várias culturas, justapostos aos tempos das diferentes criações animais (incluídos os ritmos das<br />

gestações e das gerações humanas). No entanto, nunca tivemos a experiência <strong>de</strong> reduzir as diferentes<br />

percepções <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>ssas temporalida<strong>de</strong>s a um presente homogêneo, absoluto e onipresente. Aí<br />

parece residir a diferença <strong>de</strong>sse tempo esboçado no/pelo ciberespaço. De fato, sempre nos espalhamos pelas<br />

várias temporalida<strong>de</strong>s, mas sempre nos foi dado, também, residir e resistir em uma <strong>de</strong>las. E foi justamente<br />

isso que se esvaneceu, em parte, com a telematização dos espaços que habitamos e fazemos significar. A<br />

escolha <strong>de</strong> uma dada temporalida<strong>de</strong> parece ter-se reduzido drasticamente a uma única escolha. Ao menos,<br />

é essa a aparência da temporalida<strong>de</strong> homogênea que muitos associam ao ciberespaço. Ela vem a substituir<br />

outras figuras que, ao longo dos séculos, caracterizaram a cultura oci<strong>de</strong>ntal: primeiramente, o tempo<br />

circular das socieda<strong>de</strong>s míticas, em que presente e futuro estavam sempre conjugados no passado, já que<br />

retornavam incessantemente a um já-ocorrido; em segundo lugar, o tempo linear da ciência mo<strong>de</strong>rna, em<br />

que passado e presente reduziam-se a um percurso que só encontrava sentido e explicação no futuro para<br />

o qual apontavam, sempre e invariavelmente.<br />

38


A essas duas temporalida<strong>de</strong>s opõe-se, assim, o eterno presente da contemporaneida<strong>de</strong> telemática, que não<br />

aposta mais no passado mítico e tampouco no <strong>de</strong>terminismo futurista das ciências mo<strong>de</strong>rnas e positivistas.<br />

Trata-se <strong>de</strong> um tempo espacializado, absoluto, marcando todo o território e, mais, toda possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>s<br />

e <strong>de</strong> reterritorialização. Aliás, a poesia <strong>de</strong> Alberto Caeiro acaba sendo uma das melhores figuras poéticas<br />

<strong>de</strong>sse tempo. E ainda: através <strong>de</strong>la é possível não apenas mapear (ver e habitar) esse presente espacializado,<br />

mas encontrar uma maneira <strong>de</strong> escapar a suas limitações. Isso parece se dar por uma temporalização do<br />

espaço, propiciada pelo próprio trabalho <strong>de</strong> poetização da escrita (processos que Caeiro <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia tão<br />

bem em seu O Guardador <strong>de</strong> Rebanhos). Em conseqüência, se, por sobre esse presente absoluto e<br />

espacializado do ciberespaço, não tentarmos ver um espaço temporalizado, vamos acabar nos submetendo<br />

a uma ditadura do aqui e do agora, do circunstancial e do efêmero, do simulacro e do esvaziamento. Assim,<br />

ao encarar o tempo apenas como espaço (com o que contribuem as lógicas conectivistas do ciberespaço),<br />

corremos o risco <strong>de</strong> cair na tentação fácil dos espaços telematizados, per<strong>de</strong>ndo toda perspectiva <strong>de</strong><br />

historicida<strong>de</strong> e chegando a um tempo que é enganação, subterfúgio, simulacro. Ao contrário, é justamente<br />

essa <strong>de</strong>s-absolutização do espacial que nos torna capazes <strong>de</strong> fugir ao relativismo e ao irracionalismo,<br />

propondo um tempo que se dá a ver como espaço e, concomitantemente, um espaço que <strong>de</strong>ve se dar a ver<br />

como tempo (ou, talvez, como ritmização do espaço).<br />

Em suma, fugir do presente absoluto do ciberespaço implica encontrar outros sentidos para essa sua<br />

interconectivida<strong>de</strong> intrínseca. Significa produzir o conhecimento também como um texto em re<strong>de</strong>, como<br />

resultado da natureza essencialmente intersubjetiva <strong>de</strong> todo gesto, <strong>de</strong> todo pensamento, <strong>de</strong> toda<br />

linguagem e, sobretudo, <strong>de</strong> toda linguagem que se textualiza num espaço telemático <strong>de</strong> n-dimensões. Em<br />

outra ocasião, talvez possamos abordar mais <strong>de</strong> perto algumas das estratégias para a construção <strong>de</strong>sse<br />

conhecimento em/na re<strong>de</strong>. Por ora, é preciso <strong>de</strong>ixar claro que se trata <strong>de</strong> um segundo estágio,<br />

obrigatoriamente precedido por um primeiro, que consiste em <strong>de</strong>spir-se <strong>de</strong> algumas das ilusões muito<br />

freqüentes no ciberespaço. Entre elas – e que talvez seja a mais presente e ameaçadora <strong>de</strong> todas –, está a<br />

que nos entrega um (ciber)espaço <strong>de</strong> que toda centralida<strong>de</strong> ou racionalização teria fugido. Junto com o<br />

logocentrismo, com as metafísicas <strong>de</strong> essência, toda forma <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> pareceria ter-se esvaído,<br />

reduzindo toda significação e todo conhecimento a uma reacomodação ou a um mero jogo <strong>de</strong> significantes<br />

vazios. No caso, saber equivaleria a discurso, o que reduziria todo percurso cognitivo a uma construção<br />

sofística cuja complexida<strong>de</strong> já seria, imediatamente, seu valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Em <strong>de</strong>corrência, qualquer<br />

construção <strong>de</strong> sentidos e qualquer saber que se associassem ao ciberespaço pareceriam ser produzidos quase<br />

que autonomamente, sem a intervenção <strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong> operante, <strong>de</strong> uma racionalida<strong>de</strong> circunscrita a<br />

certo domínio <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> e posta a funcionar pelas vizinhanças significantes dos objetos que aí aparecem.<br />

Não parece ser outro o sentido dos conceitos <strong>de</strong> “ecologia cognitiva” e <strong>de</strong> “duo pensante homemmáquina”,<br />

ou ainda o <strong>de</strong> “conhecimento por simulação”, <strong>de</strong> Pierre Lévy. 11 Como todo espaço <strong>de</strong> sentidos,<br />

em que objetos culturais se dão à produção e ao (re)conhecimento, o ciberespaço é um locus on<strong>de</strong> se<br />

manifestam e se dão a (re)conhecer significações e subjetivida<strong>de</strong>s. Como espaço, ele não tem autonomia<br />

nem para impor processos <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> significações, nem espontaneida<strong>de</strong> para se fazer artífice solitário<br />

<strong>de</strong> novas textualida<strong>de</strong>s. Daí a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ele ser <strong>de</strong>spido <strong>de</strong>ssa máscara <strong>de</strong> operacionalida<strong>de</strong><br />

autocrática, <strong>de</strong>ssa aparente capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autonomia ou <strong>de</strong> espontaneida<strong>de</strong> que, distraída ou<br />

39


irresponsavelmente, lhe atribuem alguns <strong>de</strong> seus estudiosos. Por isso <strong>de</strong>fendo uma posição diversa <strong>de</strong>ssa do<br />

sociólogo francês, em que justamente o saber seja produto <strong>de</strong> uma racionalida<strong>de</strong> circunscrita a certo<br />

domínio <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> e posta a funcionar e a se articular pelas vizinhanças significantes dos objetos que aí<br />

aparecem, pelo trabalho <strong>de</strong> significação <strong>de</strong> leitores. Quero dizer que o ciberespaço só vai adquirir<br />

significações (sempre precárias e provisórias, nunca é <strong>de</strong>mais lembrar) na medida em que nós, usuários,<br />

leitores, (hiper)escritores, o fizermos repleto <strong>de</strong> sentido por uma <strong>de</strong>cisão nossa, isto é, uma <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> cada<br />

um, mas que saiba buscar a presença dos outros, por meio <strong>de</strong>ssa fímbria <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong> que nos dá nossa<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, ao mesmo tempo que nos coloca em meio a outros, nos instala num centro que se <strong>de</strong>sloca<br />

constantemente para as margens, buscando incessantemente o aporte dos outros, que conferem<br />

radicalida<strong>de</strong> e sentido a qualquer <strong>de</strong> nossos gestos e significados individuais.<br />

Isso que <strong>de</strong>screvo é como uma fuga para a frente, quer dizer, uma marcha em que se avança sem que o ponto<br />

<strong>de</strong> chegada esteja <strong>de</strong>finido, uma navegação a que nos lançamos resolutamente, sem que o <strong>de</strong>stino nos seja<br />

dado. Na verda<strong>de</strong>, tanto ponto <strong>de</strong> chegada quanto <strong>de</strong>stino acabam constituindo uma nova forma <strong>de</strong><br />

centralida<strong>de</strong>, não mais aquele centro das metafísicas ontológicas, mas um centro funcional que começou a se<br />

esboçar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as metafísicas gnoseológicas (a partir <strong>de</strong> Kant). E, no caso, uma das imagens mais felizes para<br />

esse centro está na charge (<strong>de</strong> cuja autoria não me recordo e a quem, infelizmente, não posso dar os créditos)<br />

do equilibrista <strong>de</strong> circo montado sobre um monociclo, <strong>de</strong>sse saltimbanco que é também um <strong>de</strong>senhista e vai<br />

rabiscando a linha sobre a qual se equilibra, com o lápis que ele segura e, à frente, vai traçando seu arame<br />

bambo e seu caminho precário. Temos, então, um centro que se dispõe não ao meio da travessia, 12 mas sempre<br />

à frente, nunca alcançado, o que vale dizer que é como se ele estivesse servindo <strong>de</strong> fundo ou <strong>de</strong> horizonte a<br />

todo o percurso sem que, por isso, tenha que <strong>de</strong>terminá-lo inteiramente. Derrida insiste na importância do<br />

centro não como um Ser, certo, mas como uma função que se torna absolutamente primordial:<br />

“I didn’t say that there was no center, that we could get along without center. I believe that the center is a<br />

function, not a being – a reality, but a function. And this function is absolutely indispensable”. 13<br />

E essa distinção é capital, sobretudo quando se trata <strong>de</strong> pensar o ciberespaço: entre o centro como essência<br />

e o centro como função, é evi<strong>de</strong>nte que apenas esta última é capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver o modo consciente e<br />

produtivo <strong>de</strong> nos apropriarmos do ciberespaço, <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>le uma região on<strong>de</strong> novos sentidos se somem<br />

aos sentidos já sedimentados em forma <strong>de</strong> cultura e daí extraiam novos percursos e novas perspectivas<br />

(mesmo indiretas) do mundo vivido. Com isso, evita-se a fossilização das percepções, o que constitui a pior<br />

das mortes que se po<strong>de</strong> dar ao sujeito. Dessa maneira, tornamo-nos capazes <strong>de</strong> associar um sentido (mesmo<br />

provisório) ao mundo, ainda que ele assuma essa precária aparência <strong>de</strong> cenários passageiros: paisagens,<br />

elementos, objetos lingüísticos, memórias, imagens, tudo <strong>de</strong>sfilando com maior ou menor celerida<strong>de</strong> diante<br />

<strong>de</strong> nós, mas sem que percamos a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manter acesa sua espetacularida<strong>de</strong>, quer dizer, a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estarmos diante <strong>de</strong> suas significações e <strong>de</strong> as percebermos sem que, ao contrário, nos<br />

tornemos um espetáculo vazio diante da tela do computador. 14<br />

Outras ilusões do ciberespaço parecem <strong>de</strong>rivar, <strong>de</strong> uma forma ou outra, <strong>de</strong>ssa primeira. Uma <strong>de</strong>las diz<br />

respeito ao individualismo, que é uma das respostas possíveis ao espontaneísmo discutido (esse que propõe<br />

40


um ciberespaço homogêneo em que toda significação brotaria tão-somente <strong>de</strong> acentricida<strong>de</strong>s e<br />

<strong>de</strong>sterritorializações, sem interferências <strong>de</strong> nenhuma subjetivida<strong>de</strong>). Trata-se, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> tendência<br />

ligeiramente oposta, em que justamente se tenta enten<strong>de</strong>r e esten<strong>de</strong>r toda significação como resultante <strong>de</strong><br />

uma <strong>de</strong>cisão individual, produto <strong>de</strong> um voluntarismo que se confun<strong>de</strong> com o nó a que se reduz, nesses<br />

casos, a subjetivida<strong>de</strong> do leitor (e por trás <strong>de</strong> que ele se escon<strong>de</strong>). Ora, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> chamar a<br />

atenção para as conseqüências algo <strong>de</strong>sastrosas <strong>de</strong>ssa atitu<strong>de</strong> solipsista. Ela instaura um relativismo fechado<br />

e redutor <strong>de</strong> que não se sai senão ao custo <strong>de</strong> uma negação <strong>de</strong> qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> significação<br />

intersubjetiva, o que correspon<strong>de</strong>ria, na verda<strong>de</strong>, à negação <strong>de</strong> qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem. Ela é,<br />

aliás, parente próxima do solipsismo que marcou algumas das vertentes do cartesianismo, pois, afinal <strong>de</strong><br />

contas, quando se investigam os bastidores <strong>de</strong>sse cogito fundado apenas no “Penso, logo existo”, toda a<br />

certeza do conhecimento pareceria centrar-se numa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> absoluta <strong>de</strong> si consigo mesmo, esquecendo<br />

que ela não tem como alicerçar-se a não ser na existência do mundo vivido. Toda a certeza do conhecimento<br />

só se estabeleceria, assim, a partir da arbitrarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma consciência individual cuja substância é <strong>de</strong><br />

natureza diversa daquela que ela quer conhecer, o que, em <strong>de</strong>corrência, negaria qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

conhecimento. Esse individualismo, em suma, leva no limite à negação <strong>de</strong> qualquer linguagem e, por<br />

extensão, também à <strong>de</strong> qualquer saber.<br />

Essas ilusões todas que afetam e transtornam a presença do sujeito diante do ciberespaço não são<br />

outra coisa senão um possível predomínio dos simulacros <strong>de</strong> que fala insistentemente Jean<br />

Baudrillard. Eles aparecem, por exemplo, nessas erudições <strong>de</strong> puro exibicionismo, 15 que permitem que<br />

algumas pessoas se comprazam em multiplicar referências inesperadas e obscuras, impossíveis <strong>de</strong><br />

serem retomadas, reencontradas ou mesmo utilizadas sem ser por meio <strong>de</strong> sua orientação privilegiada<br />

e <strong>de</strong> sua posição <strong>de</strong> saber <strong>de</strong> pretensos eruditos. E, quando se armam <strong>de</strong> informações a mancheias,<br />

multiplicam referências cruzadas e arquitetam complexas figuras <strong>de</strong> percursos cognitivos, 16 eles não<br />

fazem, na verda<strong>de</strong>, mais do que produzir a hiperinflação informativa que já comentei. Um outro<br />

simulacro liga-se ao tempo, ou melhor, à aparência <strong>de</strong> temporalida<strong>de</strong> que parece, então, esvaziada<br />

pela celerida<strong>de</strong> <strong>de</strong>smedida das informações que não <strong>de</strong>sfilam, mas escorrem pela tela, diante <strong>de</strong> nós.<br />

E esse <strong>de</strong>senrolar frenético não possibilitaria nenhuma construção significativa, pois tudo se reduz à<br />

homogeneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um presente talvez nem mesmo eterno, porém obsessivo, opressor, reduzindo<br />

toda diferença significativa à platitu<strong>de</strong> homogênea <strong>de</strong> sua onipresente figura fácil, em uma tela cheia<br />

<strong>de</strong> pixels e vazia <strong>de</strong> significações.<br />

Como resultado, temos um tempo espacializado, essa tentação fácil dos espaços telematizados em que se<br />

per<strong>de</strong> toda perspectiva <strong>de</strong> historicida<strong>de</strong>. Chega-se a um tempo que é <strong>de</strong>finitivamente enganação,<br />

subterfúgio ou mesmo dissimulação. E, ainda, um último simulacro, que finge carregar a presença do outro<br />

no rastro <strong>de</strong> seus gestos expressivos, como se o encontro <strong>de</strong> discursos verbais ou icônicos em chats ou ICQs<br />

fosse capaz <strong>de</strong> resultar automaticamente na fundação <strong>de</strong> uma subjetivida<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>ntal (que, como diz<br />

Husserl, é sempre intersubjetivida<strong>de</strong>). Todavia, ao contrário da intersubjetivida<strong>de</strong>, o que mais<br />

freqüentemente se encontra na ponta do cursor, operado pelo mouse, quando se contrapõem discursos uns<br />

a discursos outros, não é uma aproximação telemática que venceria distâncias e traria a presença do outro<br />

até o sujeito <strong>de</strong> um dado discurso, mas sim a instauração <strong>de</strong> uma distância tecnológica tão terrível e<br />

41


opressora por se dar justamente no espaço limitado <strong>de</strong> uma tela <strong>de</strong> 15 polegadas. Com isso, confun<strong>de</strong>m-se,<br />

talvez até ingenuamente, metafísicas <strong>de</strong> aparência e metafísicas <strong>de</strong> essência, produzindo um platonismo às<br />

avessas em que as presenças i<strong>de</strong>ais (ou avatares) é que seriam capazes <strong>de</strong> produzir, a distância, as essências<br />

do mundo exterior e as subjetivida<strong>de</strong>s dos outros.<br />

* * *<br />

Com base em tudo o que se afirmou anteriormente, po<strong>de</strong>mos, talvez, fazer uma imagem <strong>de</strong>sse saber<br />

internético. Ele só se torna possível quando conseguimos escapar às ilusões e aos simulacros do ciberespaço.<br />

Nesse caso, temos um conhecimento que se dá em re<strong>de</strong> ou, ainda, que se dá como re<strong>de</strong> textual (ou como texto<br />

em re<strong>de</strong>), <strong>de</strong>rivando diretamente da natureza intersubjetiva <strong>de</strong> todo gesto significativo, <strong>de</strong> todo projeto <strong>de</strong><br />

significação, <strong>de</strong> todo objeto significante. Somente esse saber po<strong>de</strong> dar à multiplicida<strong>de</strong> dos espaços telemáticos<br />

n-dimensionais um sentido não unívoco, mas capaz <strong>de</strong> sedimentar e <strong>de</strong> possibilitar aquisições e doações <strong>de</strong><br />

significações. Daí, em princípio, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> assentar esse saber internético em alguns pressupostos:<br />

1) Ele <strong>de</strong>ve ter por trás o esforço constante <strong>de</strong> expandir a taxa <strong>de</strong> circulação motivada e bem-sucedida das<br />

informações. Com isso, po<strong>de</strong>-se reduzir drasticamente o risco <strong>de</strong> uma hiperinflação informativa, seja pelo<br />

modo como disponibilizamos na re<strong>de</strong> informações, conceitos, idéias, processos etc., seja pelo modo como nos<br />

utilizamos das ferramentas telemáticas e das manipulações interativas e iterativas (vale dizer, repetitivas, a<br />

gran<strong>de</strong> velocida<strong>de</strong>). Nesse sentido, tal esforço retoma, ainda que parcialmente, o projeto iluminista <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>mocratizar o acesso a certos bens culturais, pela criação <strong>de</strong> aristocracias pontuais que, com base na intensa<br />

mobilida<strong>de</strong> inerente à re<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>m espraiar-se incessantemente por outros nós e regiões outras. Com efeito,<br />

trata-se <strong>de</strong> um saber que não se subordina mais a qualquer centralida<strong>de</strong> previamente instituída, mas faz <strong>de</strong><br />

seu movimento (ou percurso) <strong>de</strong> cognição a própria centralida<strong>de</strong> funcional <strong>de</strong> que falava Derrida.<br />

2) Esse saber internético, por meio da interconectivida<strong>de</strong> inerente ao ciberespaço, <strong>de</strong>ve ser aquele capaz <strong>de</strong><br />

fazer-se concreta e verda<strong>de</strong>iramente inter e transdisciplinar (<strong>de</strong> que tanto se tem falado, mas, <strong>de</strong> fato,<br />

pouco viabilizado). Todavia, isso somente se obtém quando <strong>de</strong>ixamos aflorar, explicitamente, a<br />

intersubjetivida<strong>de</strong> inerente a toda forma <strong>de</strong> linguagem, e fazemos <strong>de</strong>la a mediatriz <strong>de</strong> nossos percursos e<br />

mapeamentos cognitivos do ciberespaço (quando aí produzimos e lemos objetos significantes). Em certo<br />

sentido, trata-se <strong>de</strong> revestir <strong>de</strong> linguagem o exterior do ciberespaço, o que significa dar a ele uma<br />

exteriorida<strong>de</strong>, tirando-o do pe<strong>de</strong>stal <strong>de</strong> forma absoluta e <strong>de</strong>finitiva em que exterior e interior se<br />

confundiriam. Entre muitos dos teóricos contemporâneos que se <strong>de</strong>bruçaram sobre a internete, é comum<br />

que a <strong>de</strong>screvam como um labirinto ou ainda como uma curva <strong>de</strong> Moebius, per<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> vista que, na<br />

verda<strong>de</strong>, apenas a linguagem po<strong>de</strong> ser metaforizada <strong>de</strong>ssa forma com justeza e acerto. Em suma, se o<br />

ciberespaço por vezes se finge <strong>de</strong> infindo ou interminável, compete a nós não cairmos nesse engodo e dar<br />

a ele a medida e o alcance que lhe cabem e, sobretudo, não nos iludirmos com isso que é apenas aparência<br />

ou simulacro (e pensar que po<strong>de</strong>mos tudo conhecer instantaneamente). Entre a aparência e o<br />

conhecimento verda<strong>de</strong>iro há uma diferença fundamental, aquela mesma que po<strong>de</strong>mos encontrar entre o<br />

diletantismo e a erudição. Os primeiros (aparência e dilentatismo) não passam <strong>de</strong> admiração infértil e<br />

narcísica por si mesmos; os segundos (conhecimento verda<strong>de</strong>iro e erudição) apontam para uma<br />

42


humanização efetiva do saber, um saber concretamente compartilhado e que, por isso mesmo, parcela-se e<br />

<strong>de</strong>slocaliza-se e pluraliza-se, incessantemente, ao mesmo tempo que num (apenas) aparente paradoxo <strong>de</strong>ixa<br />

<strong>de</strong> ser fragmentário.<br />

3) Um verda<strong>de</strong>iro saber internético implica o reaprendizado <strong>de</strong> uma nova paciência <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r, ou seja, a<br />

<strong>de</strong>scoberta e a exploração <strong>de</strong> novos ritmos <strong>de</strong> conhecimento, em que o acesso e a utilização <strong>de</strong> instrumentos<br />

tecnológicos venham dialogar com nossas contingências, acomodando-se a elas. E é claro que isso não<br />

significa uma rapi<strong>de</strong>z extrema em leituras ou na produção <strong>de</strong> informações no ciberespaço (o que<br />

correspon<strong>de</strong>ria a um otimismo tecnológico injustificável, a uma empolgação infrutífera e equivocada com<br />

máquinas e maquinismos). Aliás, essa pressa não se justifica nem mesmo nas atualizações <strong>de</strong> programas e<br />

<strong>de</strong> equipamento, 17 quanto mais na construção <strong>de</strong> percursos cognitivos, mesmo quando baseados em<br />

processos fortemente instrumentalizados. Ao contrário do que afirma Pierre Lévy, 18 se priorizarmos a busca<br />

<strong>de</strong> “velocida<strong>de</strong> e pertinência <strong>de</strong> execução, e, mais ainda, <strong>de</strong> rapi<strong>de</strong>z”, encontraremos tão-somente uma<br />

eficiência limitada às possibilida<strong>de</strong>s e aos elementos <strong>de</strong> que já se dispõem, sem chegarmos àquele<br />

conhecimento sintético que Kant opõe ao analítico. O saber internético, ao contrário, não <strong>de</strong>ve ser<br />

confundido com pressa, como também não po<strong>de</strong> ser confundido com totalida<strong>de</strong> ou infinitu<strong>de</strong>: ele <strong>de</strong>ve ser<br />

capaz <strong>de</strong> gerar diferentes velocida<strong>de</strong>s e sincronias, a partir das diversas pessoas envolvidas e apostando,<br />

sobretudo, numa atitu<strong>de</strong> em que são os instrumentos informáticos que se põem à nossa disposição e não<br />

nós que nos colocamos à disposição <strong>de</strong>les.<br />

43


Novas Estéticas Eletrônicas?<br />

Nunca é <strong>de</strong>mais reafirmar que tudo que aqui se discute privilegia as perspectivas do campo literário; a ele<br />

se dirige. Todavia, como arte que é também, a <strong>literatura</strong> nos permite apostar em algumas generalizações<br />

que apontam para um campo artístico aberto, plural e multiexpressivo. Falamos, nesse caso, <strong>de</strong> artes que,<br />

exatamente por serem artes, ainda sabem escapar aos inúmeros arquipélagos que as tendências, os<br />

movimentos, os estilos, os instrumentos e os processos invariavelmente acabam criando. Vai aí, como ficou<br />

evi<strong>de</strong>nte, uma visão do campo artístico que, exatamente por não ser platonizante, sabe fugir <strong>de</strong> todo e<br />

qualquer essencialismo i<strong>de</strong>alista. Ao mesmo tempo, não recusa o apoio das sistematizações, das<br />

classificações e das or<strong>de</strong>nações. As reflexões que se seguem não vão certamente encontrar nem paralelo,<br />

nem mesmo muito respaldo em boa parte das críticas e das teorias contemporâneas das artes plásticas e<br />

visuais. É apenas (e como sempre) um olhar limitado que, jungido ao campo literário, ousa falar das artes<br />

em geral. Olhar limitado, mas não limitante, é o que se espera.<br />

* * *<br />

Primeiramente, insista-se que se <strong>de</strong>ve mencionar aqui “artes”, assim mesmo, no plural, multiplicadas que são<br />

pelos meios e pelas estratégias <strong>de</strong> produção do objeto artístico. E mesmo as artes literárias, elas não <strong>de</strong>ixam<br />

atualmente <strong>de</strong> ser atingidas pela impermanência (constante) e pela obsolescência (eventual e relativa) dos<br />

suportes, das linguagens, das estéticas. Daí a dificulda<strong>de</strong> (que vem, aliás, ganhando relevo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do<br />

século XX) <strong>de</strong> se <strong>de</strong>finir estilos ou movimentos. Disso resulta que, no atual estágio das artes, tem sido mais<br />

freqüente falar <strong>de</strong> utensílios ou <strong>de</strong> técnicas para <strong>de</strong>finir ou <strong>de</strong>screver um objeto artístico ou um artista do<br />

que apostar em invariantes que extrapolem o hic et nunc do objeto produzido e do gesto que o produziu<br />

(nem se fale, então, <strong>de</strong> gêneros literários, aparentemente relegados em <strong>de</strong>finitivo à vala comum do<br />

esquecimento). Essa multiplicação <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> produção dos objetos artísticos temse<br />

escorado muito freqüentemente num discurso teórico paralelo ao objeto ou ao gesto artístico. Digo<br />

paralelo, pois tais discursos, por mais que finjam, não conseguem jamais entrar completamente na esfera do<br />

artístico: se assim o fizessem, <strong>de</strong>ixariam <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar justamente o papel para que foram criados, isto é,<br />

o <strong>de</strong> exercer a função <strong>de</strong> um cinturão conceitual em torno do objeto artístico e apto a justificar cada<br />

arbitrarieda<strong>de</strong>, transformando, por vezes, improvisos ou fraquezas em algo digno <strong>de</strong> interesse. Os antigos<br />

critérios <strong>de</strong> valor estético – enfraquecidos com justiça por seu caráter prescritivo – foram simplesmente<br />

substituídos por uma argumentação sofística. Sofisticada, sim, às vezes, mas quase sempre sofística.<br />

44<br />

Em resumo, muitos dos objetos e dos gestos artísticos, faltos <strong>de</strong> qualquer inserção evi<strong>de</strong>nte e intencional<br />

numa linha cronológica, temática, estética ou até mesmo i<strong>de</strong>ológica – por que não? –, não têm outra<br />

alternativa a não ser esta: <strong>de</strong>sdobrarem-se, multiplicarem-se in<strong>de</strong>finidamente, numa espécie <strong>de</strong> fuga para<br />

adiante que evite qualquer acerto <strong>de</strong> contas com outras produções e outros produtores. Com isso, obrigamse<br />

a se fazer acompanhar <strong>de</strong>ssa coorte <strong>de</strong> textos teóricos e reflexivos que pretensamente justificariam sua<br />

inserção no rol dos objetos artísticos. Mas não há discurso teórico ou “palavra pintada” 19 que esconda<br />

permanentemente o improviso e a falta <strong>de</strong> conhecimento, o recurso em última instância aos readyma<strong>de</strong>s,<br />

que apenas revelam <strong>de</strong>sesperada (ou <strong>de</strong>sesperançada) falta <strong>de</strong> imaginação. O coletivo Wu-Ming, um dos


mais instigantes grupos <strong>de</strong> intervenção midiática da atualida<strong>de</strong>, falando do experimentalismo nas<br />

narrativas, afirma que ele é “accettabile solo ed esclusivamente se aiuta a raccontare meglio. Se invece non<br />

è che il proverbiale dito dietro cui si nascondono mediocri o pessimi narratori, per quel che ci riguarda<br />

possono ficcarselo nel culo”. 20 Já não seria, talvez, escandaloso afirmar com os responsáveis do sítio Aleph 21<br />

que é “fin <strong>de</strong> juego para la herencia Duchamp”. 22<br />

* * *<br />

Uma parte das instalações e dos gestos artísticos das últimas décadas (esses que não transitam resolutamente<br />

no diálogo com as tecnologias contemporâneas), expostos em salas ou ao ar livre, ainda são <strong>de</strong>limitados por<br />

nossa corporeida<strong>de</strong>: limitação da velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> processamento <strong>de</strong> dados e <strong>de</strong> justaposição ou alternância <strong>de</strong><br />

significantes; alcance máximo do campo perceptivo; quantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>finidas (e pequenas) <strong>de</strong> memórias <strong>de</strong><br />

curto, médio e longo prazos, exigidas na leitura do objeto etc. Em outras palavras, entre tais objetos e gestos<br />

artísticos e o corpo do leitor não há ainda intermediários <strong>de</strong> monta e <strong>de</strong> importância, materialmente falando.<br />

Veja, entre muitos outros exemplos, as criações do grupo catalão La Fura <strong>de</strong>l Baus, em que a platéia é levada<br />

a perambular pelos cenários e pelas performances junto com os artistas. De seu lado, as criações da ciberarte<br />

erguem uma série <strong>de</strong> interfaces eletrônico-informáticas entre a instância perceptiva – a esfera <strong>de</strong><br />

corporeida<strong>de</strong> do leitor – e o que pareceria ser origem e matriz, o cerne do objeto virtual. E tais interfaces<br />

começam por próteses ou aparelhagens várias (mouses, teclados, telas, máscaras <strong>de</strong> 3D etc.) ligadas<br />

diretamente a nossas mãos, olhos, <strong>de</strong>dos, braços, ouvidos. Mas não se trata apenas <strong>de</strong> receber estímulos<br />

sensoriais diretos, pois, imediatamente, somos levados a interagir com ícones, imagens, materiais verbais e<br />

não verbais <strong>de</strong> toda espécie, que usam a aparelhagem mencionada para colocar em jogo nossa capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> leitura e <strong>de</strong> manipulação <strong>de</strong> dados, nossa memória, nossas lembranças, nossa habilida<strong>de</strong> em associar<br />

significantes <strong>de</strong> natureza diferente e que proporcionam um arremedo <strong>de</strong> geléia geral semiótica.<br />

Mais um passo e avançamos para o espaço das lógicas <strong>de</strong> interativida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> iterativida<strong>de</strong>, utilizando, no<br />

caso das primeiras, nossos conhecimentos <strong>de</strong> sintaxes e semânticas ergonômicas das interfaces gráficas das<br />

telas <strong>de</strong> computador; no caso das segundas, nossa pretensa habilida<strong>de</strong> em controlar a velocida<strong>de</strong> com que<br />

o computador trata os processos e, ciclicamente, os expõe à nossa leitura e, <strong>de</strong>pois, a nossas tendências,<br />

<strong>de</strong>cisões e interações. Nesse caso, é freqüente que precisemos até mesmo fazer uso ou expansão <strong>de</strong> nossos<br />

conhecimentos técnicos, alterando configurações da máquina, instalando ou reinstalando plugins e patches.<br />

Em seguida, po<strong>de</strong>mos ser levados a intervenções no ambiente <strong>de</strong> trabalho do computador, alterando áreas<br />

<strong>de</strong> atuação, alargando re<strong>de</strong>s internas, disponibilizando re<strong>de</strong>s externas. E, ao longo <strong>de</strong> todos esses processos,<br />

estamos sempre sendo chamados, externamente, a possíveis ou necessárias entradas em outros sítios ou<br />

en<strong>de</strong>reços eletrônicos; ao mesmo tempo, internamente, estamos lançando mão <strong>de</strong> programas paralelos<br />

(editores <strong>de</strong> imagens e <strong>de</strong> texto, gerenciadores <strong>de</strong> placas <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o e <strong>de</strong> áudio etc.) àqueles <strong>de</strong> que nos<br />

servimos para entrar no ciberobjeto.<br />

Cumpre, então, investigar mais <strong>de</strong>tidamente esse processo, passeios ou idas e vindas por essa série <strong>de</strong><br />

interfaces que vão dos dispositivos eletrônicos aos programas todos instalados no computador, passando<br />

pelas várias camadas das interfaces gráficas. Tal processo po<strong>de</strong>ria até ser visto por alguns como um caminho<br />

45


<strong>de</strong> leitura privilegiado, um percurso <strong>de</strong> compreensão que levaria no limite, como as hipóstases do<br />

neoplatonismo, à essência <strong>de</strong>sse objeto ciberartístico. Contudo, entraríamos aí num jogo paradoxal:<br />

multiplicamos interfaces, quando queríamos <strong>de</strong>svelar a unicida<strong>de</strong> do objeto ciberartístico, como que justapondo<br />

cortinas para <strong>de</strong>snudar uma pretensa sua essência. Ao passarmos <strong>de</strong> uma interface a outra, po<strong>de</strong>mos não fazer<br />

mais do que multiplicá-las, por não se tratar <strong>de</strong> via <strong>de</strong> mão única – sempre em direção a um eidos do ciberobjeto<br />

–, mas <strong>de</strong> um percurso que admite tanto a ida quanto a volta. Em suma, não avançamos para nenhuma essência<br />

<strong>de</strong> qualquer objeto, apenas transitamos <strong>de</strong> um nível a outro do ciberespaço, sem que nenhum <strong>de</strong>les possa ser<br />

tido e havido como <strong>de</strong>finitivo ou primordial. Para melhor compreen<strong>de</strong>r tudo isso, talvez possamos tomar a<br />

expressão “no limite” em seu sentido matemático: limite aí indicaria tão-somente uma aproximação assintótica.<br />

Com isso, a essência ou verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse ciberobjeto não estaria colocada ao final do processo, como verda<strong>de</strong><br />

revelada ou <strong>de</strong>scoberta. Seria possível tomar os códigos <strong>de</strong> programação do objeto (a página-fonte HTML <strong>de</strong> um<br />

sítio; a codificação em Visual Basic ou C ++ <strong>de</strong> um programa etc.) como a instância <strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong>sse ciberobjeto?!<br />

É claro que não! Se assim fosse, estaríamos diante <strong>de</strong> uma essência permanentemente à <strong>de</strong>riva, espalhada pelos<br />

vários programas (sistemas operacionais, páginas <strong>de</strong> códigos <strong>de</strong> caracteres alfanuméricos etc.) associados àquele<br />

que coloca em funcionamento nosso ciberobjeto. E tal essência estaria, assim, fragmentada para sempre, como<br />

um Osíris adâmico que não se recuperaria jamais da queda, fadado a permanecer na esfera da imanência até o<br />

final dos tempos ou das pilhas que alimentam os relógios dos computadores.<br />

Por outro lado, esse jogo <strong>de</strong> interfaces semelha-se às várias camadas <strong>de</strong> significantes que, no dizer <strong>de</strong> Pierre<br />

Emmanuel, 23 caracterizariam o simbólico: para o autor <strong>de</strong> Considération <strong>de</strong> l’Extase, analisar<br />

intelectualmente um símbolo seria como <strong>de</strong>scascar uma cebola, camada a camada, tentando encontrar a<br />

própria cebola. De maneira idêntica, nos três casos – da cebola, do símbolo e das interfaces telemáticas –<br />

po<strong>de</strong>-se seguir sempre em frente, na crença <strong>de</strong> chegar à essência ou à verda<strong>de</strong> do objeto em análise, mas, no<br />

final do processo, o que se tem nas mãos é apenas um vazio ou uma insignificância. Essa imagem proposta<br />

por Pierre Emmanuel reforça o princípio <strong>de</strong> que o símbolo é, claro, também texto, ou seja, um certo arranjo<br />

<strong>de</strong> significantes submetido à leitura, e não idéia originária, imagem correlata ou mesmo substância,<br />

afirmação que também po<strong>de</strong> ser feita em relação aos objetos da ciberarte – assim como <strong>de</strong> qualquer objeto<br />

artístico. Em todos esses casos, não se po<strong>de</strong> querer chegar a uma interpretação última e <strong>de</strong>finitiva; o que<br />

resta ao leitor é adiar in<strong>de</strong>finidamente o término do processo <strong>de</strong> leitura. De fato, quanto mais avançamos<br />

nessas pretensas hipóstases da ciberarte, mais nos per<strong>de</strong>mos, a menos que, como dito acima, consi<strong>de</strong>remos<br />

o código-fonte em HTML <strong>de</strong> uma web criação o verda<strong>de</strong>iro objeto artístico que buscávamos <strong>de</strong>limitar. E nessa<br />

pretensa ou possível simbolização telemática assim como no processo simbólico <strong>de</strong>scrito por Pierre<br />

Emmanuel, o símbolo não se coloca como significante ou significado <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro a discernir, mas como esse<br />

processo <strong>de</strong> composição e <strong>de</strong> <strong>de</strong>composição das várias camadas <strong>de</strong> interpretantes. Só que se trata <strong>de</strong> uma<br />

simbolização diversa daquela que, até o momento, nos foi permitido elaborar <strong>de</strong>ntro da tradição oral, em<br />

primeiro lugar, e da tradição escrita, em segundo. Enquanto nestas duas há uma estratificação hierárquica<br />

das diferentes camadas significantes, que se vão sobrepondo in<strong>de</strong>finidamente, mas sempre em or<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong>crescente <strong>de</strong> entropia, na ciberarte, não há hierarquias necessárias na passagem <strong>de</strong> uma interface a outra,<br />

como se o sistema em observação se mantivesse em um nível <strong>de</strong> entropia sempre estável e, talvez, máximo.<br />

* * *<br />

46


No que se refere às artes contemporâneas, sobretudo as que se <strong>de</strong>senvolvem com base nas vanguardas do<br />

século passado, e no que diz respeito à multiplicação <strong>de</strong> estratégias e <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong>s, po<strong>de</strong>mos vislumbrar<br />

no ciberespaço uma possibilida<strong>de</strong> concreta <strong>de</strong> escapar à insularização <strong>de</strong>senfreada e isolacionista que as<br />

acomete. Freqüentemente, essas manifestações artísticas contemporâneas não constituem mais correntes<br />

nem movimentos, mas espontaneísmos empíricos, ou até mesmo voluntarismos imediatistas. Ora, o meio<br />

eletrônico po<strong>de</strong> permitir que rearranjemos e recosturemos, <strong>de</strong> modo sempre diverso, diferentes ciberobjetos.<br />

As estratégias específicas <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> ciberobjetos po<strong>de</strong>m ser atravessadas por outras estratégias,<br />

estas agora <strong>de</strong> recortes e remontagens, <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamentos e <strong>de</strong> pluralizações. Não é preciso, então, que<br />

fiquemos limitados à especificida<strong>de</strong> do gesto, nem à singularida<strong>de</strong> do objeto, muito menos ao individualismo<br />

do criador; po<strong>de</strong>mos, ao contrário, apostar nisso que Akenaton caracteriza como um “mélangeur, um mixeur<br />

fantastique”, 24 o próprio ciberespaço. É importante salientar que não se trata <strong>de</strong> misturar, <strong>de</strong> forma<br />

apressada, improvisada e aleatória, diferentes gestos e objetos. Trata-se, isso sim, <strong>de</strong> pluralizar critérios <strong>de</strong><br />

justaposição e/ou <strong>de</strong> aglutinação <strong>de</strong> significantes e <strong>de</strong> percursos <strong>de</strong> leitura, o que po<strong>de</strong>rá até mesmo nos<br />

levar, finalmente, ao estabelecimento <strong>de</strong> juízos <strong>de</strong> valor (e parece ser mais do que tempo <strong>de</strong> encararmos essa<br />

dificulda<strong>de</strong> e essa premência <strong>de</strong> estabelecer tais juízos <strong>de</strong> valor para as artes contemporâneas).<br />

Uma discussão <strong>de</strong> certo interesse, acerca das condições <strong>de</strong> produção da ciberarte, está disponibilizada no<br />

sítio Aleph, no manifesto anteriormente citado. 25 Nele, são abordadas algumas questões relevantes para a<br />

discussão que aqui tentamos fazer avançar. O ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> tal manifesto é a opção por uma<br />

perspectiva “produtista” (para não confundir com “produtivista”) da arte: “No somos artistas, tampoco por<br />

supuesto ‘críticos’. Somos productores (...) somos productores, sí, pero también productos”. 26 Assim, <strong>de</strong><br />

autores ou artistas, os responsáveis pelo manifesto passam a se <strong>de</strong>nominar produtores, revivendo talvez<br />

uma comunhão do mesmo tipo daquela que nos séculos XV e XVI, na Itália renascentista, fez nascer uma<br />

arte diretamente associada às técnicas <strong>de</strong> produção artesanal que estavam então surgindo. 27 Sintonizado<br />

com a efemerida<strong>de</strong> dos objetos telemáticos, o manifesto afirma não existirem obras <strong>de</strong> arte, mas práticas<br />

artísticas. 28 De fato, a nova <strong>de</strong>nominação sugere que se mantenha a ruptura (inaugurada pelas vanguardas<br />

do início do século XX) com a tradição das belas-artes, recusando toda aura ou originalida<strong>de</strong> para suas<br />

criações, assim como para si próprios. Dessa forma, o termo “produtores” em lugar <strong>de</strong> “artistas” parece<br />

pressupor um investimento muito maior na técnica e muito menor – diria praticamente nulo – no<br />

artesanato. Contudo, tal empenho novida<strong>de</strong>iro nem é tão novo assim: como já mencionado, ele se<br />

manifestava nos saberes (ao mesmo tempo técnicos e artísticos) dos pintores e escultores do quatroccento.<br />

Em relação às práticas artísticas, se elas tomam o lugar das “obras <strong>de</strong> arte”, isso significa que se coloca a<br />

ênfase em três instâncias: 1) no gesto, na intervenção dos produtores; 2) nos meios e nos percursos <strong>de</strong><br />

circulação das práticas artísticas; 3) em “ciertos efectos circulatorios: efectos <strong>de</strong> significado, efectos<br />

simbólicos, efectos intensivos, afectivos”. 29 Não se privilegia o objeto concretamente consi<strong>de</strong>rado, ou seja,<br />

alguma eventual materialida<strong>de</strong> que esteja diretamente ligada a uma dada prática artística. Isso, aliás, está<br />

<strong>de</strong> acordo com a seqüência do manifesto: “Esa producción nunca <strong>de</strong>be confundirse con objeto o forma<br />

alguna: es un operador que se introduce con eficacia en algún sistema dado, <strong>de</strong>sestabilizando la ecuación<br />

<strong>de</strong> equilibrio que lo gobierna”. 30 Em suma, por trás <strong>de</strong>sse discurso teórico, aparece o esforço <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>smaterialização do artístico ou, em outras palavras, o <strong>de</strong> privilegiar a efemerida<strong>de</strong> na produção das artes.<br />

47


Como conseqüência, ganham relevo quase exclusivo as condições <strong>de</strong> produção, os efeitos, as formas e<br />

trajetórias <strong>de</strong> circulação do artístico. E não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> notar a presença <strong>de</strong> uma retórica <strong>de</strong> aparência<br />

teorizante, formatada ad hoc para dar conta <strong>de</strong>ssa dada prática artística e que se sobrepõe ao objeto,<br />

querendo escondê-lo também para garantir ou amplificar os efeitos acima mencionados. Caberia, no caso,<br />

perguntar se esse esforço não seria paralelo a um outro, o <strong>de</strong> precarização dos conhecimentos estéticos e<br />

históricos, relegados a segundo plano diante da premência <strong>de</strong> dominar certo conjunto <strong>de</strong> técnicas e <strong>de</strong><br />

processos. Em outras palavras, essa perda <strong>de</strong> importância da materialida<strong>de</strong> do artístico correspon<strong>de</strong>ria ao<br />

afrouxamento (e talvez também à <strong>de</strong>sorganização) dos pressupostos teóricos e estéticos em sua produção<br />

e em sua fruição. A finalida<strong>de</strong> disso talvez esteja nesse projeto <strong>de</strong> fazer com que a impessoalida<strong>de</strong> dos<br />

instrumentos e dos processos técnicos participe mais intensamente da produção artística.<br />

De fato, há <strong>de</strong> se recuperar (ou propor) as (novas) relações entre ferramentas e condições <strong>de</strong> produção, <strong>de</strong><br />

um lado, e o objeto produzido, <strong>de</strong> outro. Contudo, torna-se cada vez mais premente limpar o campo<br />

conceitual <strong>de</strong>sse simplismo que consiste em confundir materialida<strong>de</strong> com objetivida<strong>de</strong>: se as práticas <strong>de</strong> arte<br />

contemporâneas enveredam pela fugacida<strong>de</strong> do gesto, pela velocida<strong>de</strong> dos processos, pela transitorieda<strong>de</strong><br />

das re<strong>de</strong>s e dos nós, isso não quer dizer que não haja aí nenhuma objetivida<strong>de</strong>, o que acarretaria a<br />

irrelevância das sistematizações estéticas. Ao contrário, isso significa apenas que a objetivida<strong>de</strong> dada à<br />

leitura é exatamente a <strong>de</strong>ssas práticas <strong>de</strong>smaterializadas. Ora, essa confusão entre materialida<strong>de</strong> e<br />

objetivida<strong>de</strong> não parece ser, <strong>de</strong> modo algum, ingênua ou casual. Nem mesmo isenta <strong>de</strong> conseqüências.<br />

Atenuando os elementos <strong>de</strong> apreensão artística do objeto (confundido, então, com sua materialida<strong>de</strong>),<br />

enfraquecem-se também os critérios estéticos <strong>de</strong> análise. É aí que entram os discursos <strong>de</strong> aparência<br />

teorizante que acompanham as práticas artísticas: na ilusão <strong>de</strong> que não se tem mais, pretensamente, <strong>de</strong> se<br />

ocupar <strong>de</strong> qualquer objetivida<strong>de</strong> específica, abre-se caminho para que tais discursos venham se sobrepor à<br />

investigação criteriosa da obra <strong>de</strong> arte. Na verda<strong>de</strong>, ao se proclamar essa <strong>de</strong>sobjetivação do artístico – como<br />

se isso fosse conseqüência direta <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>smaterialização –, o que se faz é, espertamente, intrometer <strong>de</strong><br />

contrabando uma objetivida<strong>de</strong> envergonhada e que não se assume como tal.<br />

Paradoxalmente, os produtores (ex-artistas, então) colocam-se também como produtos, ou seja, como<br />

objetos. Será que, segundo tal perspectiva, estaria circunscrita a isso a objetivida<strong>de</strong> do fazer artístico? À<br />

reificação do artista, agora assumindo-se como produto? Na verda<strong>de</strong>, essa visão parece, mais do que tudo,<br />

uma tentativa <strong>de</strong> dar relevo ao sujeito-<strong>de</strong>spersonalizado, em oposição ao sujeito-individualizado. 31 Nesse<br />

caso, no que toca às técnicas, aos processos e aos instrumentos utilizados, eles pen<strong>de</strong>riam claramente para o<br />

lado da <strong>de</strong>spersonalização, assim como os meios, os percursos e os efeitos <strong>de</strong>ssas práticas; no que se refere<br />

aos discursos teóricos que eventualmente acompanham as práticas contemporâneas (até mesmo na forma <strong>de</strong><br />

manifestos, como esse <strong>de</strong> Aleph ou aquele do grupo Wu-Ming), eles se tornam às vezes o último reduto do<br />

sujeito-individualizado (do Je, tal como discute Couchot). É justamente a partir <strong>de</strong>sse sujeito-individualizado<br />

que se po<strong>de</strong> resistir ou a<strong>de</strong>rir ao otimismo tecnológico. De fato, a individualida<strong>de</strong>, no que diz respeito às<br />

práticas artísticas contemporâneas, tem-se resvalado muito freqüentemente para a estreita margem <strong>de</strong><br />

manobra dos manifestos e dos textos teorizantes. E, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da opção que se faça (resistência ou a<strong>de</strong>são<br />

à mitificação das técnicas), vai-se po<strong>de</strong>r falar em invenção a partir <strong>de</strong> ou reprodução das técnicas. Essa<br />

não é uma questão menor e está presente em alguns elementos abordados no manifesto <strong>de</strong> Aleph:<br />

48


“...las prácticas artísticas lograrán encontrar, en un proceso <strong>de</strong> transformación <strong>de</strong> las socieda<strong>de</strong>s actuales<br />

que tien<strong>de</strong> a convertirlas en meros instrumentos <strong>de</strong> legitimación – cuando no en triviales generadoras <strong>de</strong><br />

bibelots <strong>de</strong> lujo para las nuevas economías inmateriales – sus mejores argumentos <strong>de</strong> futuro, su más alto<br />

<strong>de</strong>safío – o cuando menos una buena razón <strong>de</strong> ser en el siglo que ya comienza”. 32<br />

Eis o <strong>de</strong>safio das práticas artísticas das próximas décadas: evitar que se convertam em propagandistas das<br />

empresas produtoras <strong>de</strong> softwares, construindo (mas não criando) objetos artísticos que são, na verda<strong>de</strong>,<br />

meramente exercícios <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s já previstas pelos conceptores responsáveis pelo programa.<br />

* * *<br />

Com base no que foi discutido, que estéticas seriam ainda possíveis para as artes eletrônicas, ou, especificamente<br />

em que nos cabe aqui pensar, para as textualida<strong>de</strong>s literárias em meio eletrônico? Sem meter <strong>de</strong> vez a mão<br />

nesse vespeiro (<strong>de</strong> que não sairíamos mais), seria importante ao menos esboçar alguns elementos comuns a<br />

essas estéticas. De início, temos <strong>de</strong> ter bem claro que não se po<strong>de</strong> trabalhar com classificações e tipologias<br />

fechadas e <strong>de</strong>finidas, 33 sobretudo com aquelas anteriores ao meio eletrônico. No sítio Neogejo, por exemplo, os<br />

leitores estarão em séria enrascada se tentarem <strong>de</strong>finir qualquer dos objetos ali apresentados com base em<br />

esquemas e axiologias <strong>de</strong>finitivas, principalmente aquelas ainda ancoradas nos meios não eletrônicos. Nesse<br />

sítio, por exemplo, a criação After Ren<strong>de</strong>z-Vous du Dimanche 6 Février, by Marcel Duchamp and BBC News, é<br />

<strong>literatura</strong> ou criação gráfica? E mesmo as criações eletrônicas não digitais não nos fazem avançar muito. Ela<br />

po<strong>de</strong>ria ser classificada como vi<strong>de</strong>oarte ou teríamos que tirar do colete alguma outra <strong>de</strong>nominação?<br />

Como ponto <strong>de</strong> partida, po<strong>de</strong>ríamos talvez dizer que se trata simplesmente <strong>de</strong> prática artística, <strong>de</strong> acordo,<br />

inclusive, com o que foi afirmado acima. Num segundo momento, será imperativo especificar, <strong>de</strong>limitar,<br />

mapear, circunscrever – paulatinamente – o objeto artístico. Isso não significa que teremos necessariamente<br />

<strong>de</strong> elencar suas características e componentes, mas sim que será possível e até mais fértil <strong>de</strong>screver as<br />

condições <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua produção. Com isso, evitamos a tentação do vale-tudo e do simplismo –<br />

conseqüências imediatas da exigüida<strong>de</strong> teórica que se <strong>de</strong>ixa seduzir pela generalida<strong>de</strong> do rótulo práticas<br />

artísticas e <strong>de</strong>le não sai mais. A partir daí, se po<strong>de</strong>rá invocar, então, o abrigo <strong>de</strong> algumas das possibilida<strong>de</strong>s<br />

aventadas (vi<strong>de</strong>oarte, <strong>literatura</strong> etc.). Po<strong>de</strong> ser que tal rótulo seja bastante a<strong>de</strong>quado a artes que não<br />

pen<strong>de</strong>m mais para os lados da representação, mas que se lançam resolutamente na produção <strong>de</strong> processos<br />

e <strong>de</strong> sentidos (talvez, na produção <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> sentidos). Porém, isso não significa que <strong>de</strong>vemos nos<br />

obrigar também a escolher entre essência e presença (no caso, haveria uma correspondência entre<br />

representação e essência, <strong>de</strong> um lado, e entre produção e presença, <strong>de</strong> outro). Trata-se, como em muitos<br />

outros casos, <strong>de</strong> uma falsa dialética travestida <strong>de</strong> dicotomia. É certo que, como afirma o manifesto <strong>de</strong> Aleph:<br />

“En las socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>l siglo 21, el arte no se expondrá. Se producirá y difundirá”. 34 Mas que não se <strong>de</strong>duza<br />

daí que a <strong>de</strong>smaterialização das artes implicou sua <strong>de</strong>s-objetivação.<br />

Quando foi feita a <strong>de</strong>scrição das condições <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção do objeto artístico, quis-se<br />

enfatizar a produção simbólica no que diz respeito a seus processos <strong>de</strong> circulação, disseminação e<br />

sedimentação <strong>de</strong> significantes, chamando esse sistema <strong>de</strong> “práticas <strong>de</strong> arte”. Mas é bastante diferente do<br />

49


modo como essas práticas vêm sendo <strong>de</strong>scritas e entendidas nas últimas décadas. Para muitos, elas se<br />

aproximariam da <strong>de</strong>finição dada por Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> ao conto. 35 Como afirma Philippe Castelin:<br />

Une ‘pratique d’art’, pour dire vite les choses, serait ainsi une activité créative non adressée<br />

socialement mais réservée à un usage privé, et, en tout cas, délestée du souci <strong>de</strong> l’Art et <strong>de</strong> son<br />

Histoire. Je puis faire <strong>de</strong> la cuisine avec un art et un raffinement infinis, si je n’invite que moi même<br />

et quelques amis à goûter le résultat, ceci <strong>de</strong>meure une ‘pratique d’art’. Pour que je <strong>de</strong>vienne<br />

(hypothèse...) un artiste en ce domaine il faut que j’accepte <strong>de</strong> m’inscrire dans la compétition <strong>de</strong>s<br />

étoiles et <strong>de</strong>s toques, que j’entre dans le circuit, que je m’adresse, potentiellement, aux juges,<br />

arbitres et concurrents. Si la fin <strong>de</strong> l’Art a sonné <strong>de</strong>puis longtemps, il est possible que le web ouvre<br />

une vaste perspective à pareilles ‘pratiques d’art’ et s’offre comme refuge pour tous ceux qui ont<br />

décidé <strong>de</strong> ‘laisser tomber’... 36<br />

Tal <strong>de</strong>finição teria duas <strong>de</strong>svantagens e, a rigor, nenhuma vantagem <strong>de</strong> monta. A primeira <strong>de</strong>svantagem seria<br />

tornar o relativismo a única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abordagem estética do objeto artístico; parente próxima da<br />

primeira, a segunda correspon<strong>de</strong>ria à ilusão <strong>de</strong> que não há proveito em inserir a apreciação <strong>de</strong> tais objetos<br />

em qualquer perspectiva histórica. No caso, nunca é <strong>de</strong>mais lembrar Marx: “Hegel fait quelque part cette<br />

remarque que tous les grands événements et personnages historiques se répètent pour ainsi dire <strong>de</strong>ux fois.<br />

Il a oublié d’ajouter la première fois comme tragédie, la secon<strong>de</strong> fois comme farce”. 37 Esquecer, então, a<br />

perspectiva histórica é arriscar-se a repetir como farsa – e não como paródia ou pastiche – o que já foi antes<br />

produzido, sem que esse tom farsesco faça, ao menos, parte da estratégia <strong>de</strong> produção do objeto. As práticas<br />

<strong>de</strong> arte <strong>de</strong>vem, por isso, escapar a tal exercício <strong>de</strong> singularização progressiva e fechada, abrindo-se para a<br />

construção <strong>de</strong> campos e estratégias <strong>de</strong> disseminação e sedimentação em que seu objeto <strong>de</strong>ixe, ao menos,<br />

traços e rastros <strong>de</strong> uma fugaz presença. Com isso, evita-se o relativismo, tanto daquilo que se fecha para a<br />

alterida<strong>de</strong> (objetiva e subjetiva) quanto <strong>de</strong>sses processos que se instalam na ilusão <strong>de</strong> um eterno presente.<br />

Assim, nossas práticas <strong>de</strong> arte contemporânea realizam-se não apenas como produção <strong>de</strong> materialida<strong>de</strong>s<br />

(como é o caso das artes plásticas tradicionais), mas sobretudo como produção <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

produção <strong>de</strong> materialida<strong>de</strong>s. Nesse caso, estas últimas se tornam cada vez mais tênues, efêmeras, <strong>de</strong>ixando,<br />

como já foi dito, apenas traços à semelhança das partículas elementares cuja presença, sempre indireta, fica<br />

rapidamente esboçada por linhas nas câmaras <strong>de</strong> bolhas. Mas a expressão acima carrega algo <strong>de</strong> obscuro.<br />

Em termos mais diretos, o que seria essa “produção <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> materialida<strong>de</strong>s”? Ela<br />

está, por exemplo, nos sítios que à semelhança daqueles que dão à leitura os Cent Milles Milliards <strong>de</strong><br />

Poèmes, <strong>de</strong> Raymond Queneau, geram os instrumentos informáticos, os meios telemáticos e os processos<br />

lógico-combinatórios para que o leitor venha, por sua vez, gerar as sucessivas combinações dos diferentes<br />

sonetos. Aí, pelos aparatos e processos digitais, produzem-se não materialida<strong>de</strong>s diretas, mas condições <strong>de</strong><br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> materialida<strong>de</strong>s; ao leitor, em seguida, competirá a criação <strong>de</strong>ssas materialida<strong>de</strong>s<br />

transitórias que são as diversas e praticamente nunca repetidas versões do soneto. Estabelecem-se, então, e<br />

sobretudo, contextos e situações <strong>de</strong> criação aberta e/ou coletiva: no caso dos Cent Milles Milliards <strong>de</strong> Poèmes,<br />

a produção <strong>de</strong> uma dada combinação <strong>de</strong> versos (que, enfatize-se, praticamente nunca mais será repetida) só<br />

se torna possível graças a uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> causa e efeito que começam com o planejamento <strong>de</strong>ssa<br />

50


fôrma literária por Queneau, passando, a seguir, à sua transformação em código por um programador, para<br />

chegar enfim ao comando com que o leitor entra na página da web e dispara a produção <strong>de</strong> uma dada<br />

seqüência <strong>de</strong> versos. Nesse caso, como em qualquer outro, não se confunda o conteúdo informativo (ou<br />

semântico) do produto (a referida seqüência <strong>de</strong> versos) com o valor estético da produção.<br />

Nas artes tradicionais, a produção simbólica <strong>de</strong>senvolvia-se nos significados do objeto produzido, o que<br />

valia dizer que sua semantização era tomada diretamente como valor estético. Nas artes contemporâneas,<br />

ela se instala na maneira como se dá a circulação dos significantes. Em outras palavras, as próprias técnicas,<br />

os próprios processos e instrumentos também passam a ser inseridos em uma estratégia <strong>de</strong> simbolização.<br />

Trata-se <strong>de</strong> trazer para a ribalta os objetos técnicos – colocados usualmente como coadjuvantes no processo<br />

<strong>de</strong> produção artística. Mas atenção! É fundamental perceber que nessa situação eles funcionam <strong>de</strong> modo<br />

diferente: não mais impõem sua lógica <strong>de</strong> produção em massa, sua exigência <strong>de</strong> eficácia máxima, pois estão<br />

entrando em um espaço para o qual não foram planejados nem concebidos, espaço que vai impor-lhes<br />

lógicas e estratégias específicas, diferentes, por certo, talvez até mesmo opostas às suas lógicas e estratégias<br />

originais. De maneira muito semelhante, é o que ocorre com os cientificismos e filosofemas trazidos por<br />

Augusto dos Anjos ao espaço poético: não se po<strong>de</strong> lê-los <strong>de</strong> modo algum como reproduções ou citações <strong>de</strong><br />

epistemologias ou metafísicas; é preciso entendê-los como elementos incorporados às estratégias <strong>de</strong> escrita<br />

do poema, tão legitimamente como qualquer dos operadores poéticos tradicionais, como a rima ou o ritmo.<br />

E é nesse fio <strong>de</strong> navalha que corre a criação artística em meio eletrônico, sobretudo essa da poesia digital.<br />

Uma das questões mais importantes que a ela se coloca foi muito bem esboçada por Fabio Doctorovitch:<br />

“Existe un hilo muy <strong>de</strong>lgado que separa a la poesía tecnológicamente avanzada pero conceptualmente<br />

tosca <strong>de</strong> aquella que verda<strong>de</strong>ramante rescata la esencia poética – que no se manifiesta a través <strong>de</strong> palabras<br />

únicamente – y la expresa por medios tecnológicos, creando <strong>de</strong> esta manera nuevos conceptos y abriendo<br />

caminos imposibles <strong>de</strong> andar <strong>de</strong> otra manera”. 38<br />

Trata-se, em suma, <strong>de</strong> encontrar confluências possíveis, zonas <strong>de</strong> simbolização mútua entre os novos<br />

instrumentos/processos <strong>de</strong> produção e as linguagens artísticas que se busca <strong>de</strong>senvolver. E é exatamente<br />

nessas zonas <strong>de</strong> confluência que se po<strong>de</strong> ancorar qualquer esforço <strong>de</strong> juízo e <strong>de</strong> valoração estética.<br />

Habitualmente, <strong>de</strong>paramos com aparatos (processos <strong>de</strong> produção do objeto artístico mais os dispositivos<br />

técnicos e ferramentas que o tornam possível) que no caso da poesia eletrônica, por exemplo, não resultam<br />

em criações que primam pela linguagem verbal. Aparentemente, apenas se <strong>de</strong>u relevo e importância às<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> manipulação das técnicas – como é o caso do Générateur <strong>de</strong> Clés, <strong>de</strong> Eric Sérandour –, sem<br />

que houvesse uma comunhão entre as linguagens das técnicas (incluindo aí as <strong>de</strong> seus manuais) e as<br />

linguagens criativas das artes. Ora, não se po<strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> conta que qualida<strong>de</strong> não nos interessa, quando ela<br />

está o tempo todo por trás <strong>de</strong> toda e qualquer percepção que se tenha do objeto artístico. Assim, seguindo<br />

o que insinua Loss Pequeño Glazier, 39 um dos mais importantes poetas eletrônicos da atualida<strong>de</strong>, há uma<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se aproximar o poeta do programador (sem i<strong>de</strong>ntificá-los totalmente), a partir do<br />

momento em que se aproximam o poema e o programa. Ou, dito <strong>de</strong> outra maneira, quando se realiza o<br />

poema <strong>de</strong>ntro e, também, apesar das possibilida<strong>de</strong>s do programa.<br />

51


Claramente, o que se postula aqui é a submissão das técnicas e <strong>de</strong> suas lógicas <strong>de</strong> produção a interferências<br />

e <strong>de</strong>slocamentos inerentes ao fazer artístico, para que possamos, em algum momento, construir <strong>de</strong> fato um<br />

saber artístico (saber acerca do artístico e, mais importante, <strong>de</strong>rivado do artístico). Expliquemos isso mais<br />

<strong>de</strong>talhadamente. As lógicas do fazer técnico impõem a eficácia como valor <strong>de</strong> troca e <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> seus<br />

objetos. Se um programa é menor e mais rápido que um outro que faz o mesmo, esse primeiro é certamente<br />

melhor, segundo os critérios <strong>de</strong> valor e <strong>de</strong> produção das técnicas. Ora, isso tem como contrapartida a criação<br />

<strong>de</strong> um mito mo<strong>de</strong>rno e contemporâneo, o da onipotência da tecnologia. E se encontra aí, justamente, uma<br />

das portas <strong>de</strong> entrada para que o gesto transgressor das artes a<strong>de</strong>ntre o espaço das técnicas, transtornando<br />

e transformando suas significações e sentidos, sobrepondo-lhes uma outra camada <strong>de</strong> simbolização (não<br />

mais essa <strong>de</strong>rivada <strong>de</strong> forma direta e simplista das mitologizações da produtivida<strong>de</strong> técnica).<br />

Aparentemente, essas transgressões são o que Grégory Chatonsky chama <strong>de</strong> “inci<strong>de</strong>nte”. 40 Não<br />

necessariamente o gran<strong>de</strong> inci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Paul Virilio, 41 mas justamente essa <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> veios e jazidas <strong>de</strong><br />

sentidos inesperados e que estão sempre insertos às técnicas, escondidas e amalgamadas em suas<br />

insignificâncias (e que, exatamente por serem insignificâncias, são escamoteadas da imagem pública que se<br />

exibe das técnicas, <strong>de</strong>sses seus mitos contemporâneos e tão-somente profanos):<br />

“L’inci<strong>de</strong>nt n’est plus dès lors une simple obstruction au régime fonctionnel <strong>de</strong> la technique. En le<br />

désinstrumentalisant et en le refonctionnalisant dans un cadre esthétique on propose un comportement inédit<br />

auquel aucun mo<strong>de</strong> <strong>de</strong> lecture préexistant n’est (encore) adapté. C’est dans cette découverte <strong>de</strong> l’inci<strong>de</strong>nt<br />

comme refoulé <strong>de</strong> la technique qu’une imagination sans formations représentatives peut émerger”. 42<br />

E esses inci<strong>de</strong>ntes (sempre no plural, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Chatonsky), 43 na verda<strong>de</strong>, não aparecem pelo fato <strong>de</strong><br />

os sistemas se <strong>de</strong>sconectarem, <strong>de</strong> as re<strong>de</strong>s se <strong>de</strong>sgovernarem, <strong>de</strong> se intrometerem vírus e hackers. Não<br />

temos, é claro, uma estetização imediata do espaço telemático. Digamos que tais inci<strong>de</strong>ntes constituem<br />

justamente a condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> termos lógicas artísticas sobrepostas às das técnicas: sintomas <strong>de</strong><br />

inutilida<strong>de</strong>s, incapacida<strong>de</strong>s temporárias que se tornam duráveis ou mesmo permanentes, quebras na or<strong>de</strong>m<br />

no esperado e na esfera do possível, tudo isso po<strong>de</strong> ser recuperado como novos mitos, esses do saber que<br />

escolhe sempre as vias mais difíceis, os caminhos mais áridos, as propostas mais inúteis. Mas todas elas<br />

irrepetíveis, criando sempre esse espanto original e originário. Aliás, à diferença do espanto com a técnica<br />

(cujo mo<strong>de</strong>lo é o do ovo <strong>de</strong> Colombo, espanto que prece<strong>de</strong> a repetição extremamente fácil), o espanto com<br />

o artístico parece sempre impossível <strong>de</strong> ser reproduzido exatamente. Diante <strong>de</strong>le – e com ele –, estamos na<br />

mesma situação <strong>de</strong>scrita por Caeiro:<br />

“Sei ter o pasmo comigo<br />

Que teria uma creança se, ao nascer,<br />

Reparasse que nascera <strong>de</strong>veras...” 44<br />

52


Notas<br />

1 [A nossa é, essencialmente, uma época trágica, e nos recusamos, então, a apreendê-la tragicamente. O cataclismo ocorreu, estamos entre<br />

ruínas, começamos a construir novas pequenas moradias, a ter novas pequenas esperanças. É, na verda<strong>de</strong>, um trabalho duro: não há<br />

caminhos fáceis para o futuro, mas nós contornamos ou pulamos os obstáculos. Temos que viver, não importa quantos céus tenham caído.]<br />

tradução do autor.<br />

2 Reunindo uma série <strong>de</strong> técnicas que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o estabelecimento <strong>de</strong> alguns tamanhos padrão (in-fólio, in-oitavo, in-quarto), passando pelas<br />

capas e contracapas, pela numeração <strong>de</strong> páginas, pela divisão e subdivisão em partes, pela construção dos diferentes tipos <strong>de</strong> índice etc.<br />

3 Como propõe ABRIOUX, Yves. Géométrisation et dynamique textuelle: Thomas <strong>de</strong> Quincey, the english mail-coach. La Licorne, n. 28, p.<br />

163-4, 1994.<br />

4 Po<strong>de</strong>mos citar obras que vão do Dicionário Kazar, <strong>de</strong> Pávitch, a O Jogo da Amarelinha, <strong>de</strong> Cortázar, passando por Se um Viajante, numa<br />

Noite <strong>de</strong> Inverno..., <strong>de</strong> Calvino, entre outros.<br />

5 CHARTIER, Roger. Du co<strong>de</strong>x à l’écran: les trajectoires <strong>de</strong> l’écrit. éc/art S, Paris, n. 2, p. 42, 2000.<br />

6 BOUTOT, Alain. La philosophie du chaos. Revue Philosophique <strong>de</strong> la France et <strong>de</strong> l’Etranger, Paris, n. 2, p. 173, avril/juin 1991.<br />

7 BARTHES, Roland. S/Z. Paris: Seuil, 1970. p. 11.<br />

8 Uma versão preliminar <strong>de</strong>ste capítulo foi publicada em 2002, na revista Logos, da Escola <strong>de</strong> Comunicação da UFRJ.<br />

9 É importante ressaltar que, se essa reversibilida<strong>de</strong> é essencial à linguagem ou à experiência do estar-no-mundo do sujeito, jamais po<strong>de</strong>ria<br />

caracterizar uma essência do ciberespaço, pois este aponta para uma instância <strong>de</strong>rivada justamente daquelas duas experiências primeiras<br />

e primordiais. Se po<strong>de</strong> ser associada alguma forma <strong>de</strong> reversibilida<strong>de</strong> ao ciberespaço, ela é como que outorgada pela linguagem e pelo<br />

estar-no-mundo com que o sujeito reveste o ciberesepaço (e não o contrário).<br />

10 KANT, Immanuel. Oeuvres philosophiques. Paris: Gallimard, 1980. v. 2, p. 521-545. (Bibliothèque <strong>de</strong> la Pléia<strong>de</strong>). [“Orientar-se significa,<br />

no sentido próprio da palavra: a partir <strong>de</strong> uma dada direção do céu (divi<strong>de</strong>-se o espaço, <strong>de</strong>ssa maneira, em quatro direções), encontrar as<br />

outras, sobretudo o nascer do Sol. (...) Enfim, é possível, para mim, alargar ainda mais esse conceito, a partir do momento em que ele<br />

consistisse no po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> orientar-se não apenas no espaço, quer dizer, matematicamente, mas no pensamento, quer dizer, logicamente”.]<br />

tradução do autor.<br />

11 Ver, sobretudo, LÉVY, Pierre. Les technologies <strong>de</strong> l’intelligence: l’avenir <strong>de</strong> la pensée à l’ère informatique. Paris: Editions du Seuil, 1993. [Points].<br />

12 Como no trecho em que se conta o início da peregrinação do poeta na Divina Comédia (e que se pren<strong>de</strong> ainda às metafísicas ontológicas<br />

<strong>de</strong> que falamos):<br />

Nel mezzo <strong>de</strong>l cammin di nostra vita<br />

mi ritrovai per una selva oscura<br />

ché la diritta via era smarrita.<br />

Dante Alighiere (Inf., I, 1).<br />

13 LANDOW, George P. Hypertext: the convergence of contemporary critical theory and technology. Baltimore: The Johns Hopkins<br />

University Press, 1992. p. 13. [“Eu não disse que não havia centro, que po<strong>de</strong>ríamos avançar sem centro. Eu creio que o centro é uma função,<br />

não um ser – uma realida<strong>de</strong>, mas uma função. E essa função é absolutamente indispensável”.] tradução do autor.<br />

14 Como acontece freqüentemente, na internete, nesse sítios <strong>de</strong> exibicionismo mais ou menos explícito, em que indivíduos ou famílias se<br />

expõem ao olhar do outro, olhar que é, no mais das vezes, um foco vazio por on<strong>de</strong> transita a própria vacuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem crê se exibir <strong>de</strong><br />

maneira transgressiva.<br />

15 Que não são exclusivos do ciberespaço, mas atingem qualquer espaço <strong>de</strong> saberes institucionalizado, como as aca<strong>de</strong>mias universitárias.<br />

De resto, essa situação configura o mesmo tipo <strong>de</strong> exibicionismo vazio já comentado na nota anterior.<br />

53


16 Já foi dito, ironicamente, que há páginas na internete cujas ligações internas e externas são mais embaraçadas do que um prato <strong>de</strong> espaguete.<br />

17 Essa ânsia <strong>de</strong> substituição <strong>de</strong> nossas atuais versões <strong>de</strong> equipamentos e programas por outras sempre mais novas correspon<strong>de</strong>, <strong>de</strong> fato,<br />

àquela velha fetichização da mercadoria capitalista, tão bem estudada por Marx: quase sempre, essa substituição não correspon<strong>de</strong> nem<br />

mesmo a necessida<strong>de</strong>s técnicas, mas serve tão-somente para manter em movimento dispendiosas estruturas <strong>de</strong> vendas das companhias<br />

produtoras <strong>de</strong> bens informáticos.<br />

18 LÉVY, op. cit., 1993, p. 134-135, nota 10. “...le savoir informatisé ne vise pas la conservation à l’i<strong>de</strong>ntique d’une société se vivant ou se<br />

voulant immuable, comme dans le cas <strong>de</strong> l’oralité primaire. Il ne vise pas non plus la vérité, à l’instar <strong>de</strong>s genres canoniques nés <strong>de</strong> l’écriture<br />

que sont la théorie ou l’herméneutique. Il cherche la vitesse et la pertinence <strong>de</strong> l’éxecution, et plus encore la rapidité...” [“...o saber<br />

informatizado não visa à conservação idêntica <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> que vive ou que se quer imutável, como no caso da oralida<strong>de</strong> primária.<br />

Ele também não visa à verda<strong>de</strong>, como os gêneros canônicos nascidos da escrita, que são a teoria ou a hermenêutica. Ele busca a velocida<strong>de</strong><br />

e a pertinência da execução, e, mais ainda, a rapi<strong>de</strong>z...”] tradução do autor.<br />

19 Cf. o opúsculo <strong>de</strong> mesmo nome, <strong>de</strong> WOLFE, Tom. The painted word. New York: Bantam Doubleday Dell Pub, 1999. Resenha interessante<br />

está disponível em: .<br />

20 [“aceitável apenas e exclusivamente se ajuda a narrar melhor. Se, ao contrário, não é mais do que o proverbial <strong>de</strong>do atrás do qual se<br />

escon<strong>de</strong>m narradores medíocres ou péssimos, no que nos diz respeito, po<strong>de</strong>m enfiá-lo no cu”.] tradução do autor.<br />

21 Esse sítio tem se pautado por criações interessantes, acompanhadas <strong>de</strong> reflexões que, sem serem brilhantes, traduzem bastante bem e<br />

<strong>de</strong> modo pertinente as questões teóricas que mais freqüentam o <strong>de</strong>bate contemporâneo.<br />

22 [“fim <strong>de</strong> jogo para a herança <strong>de</strong> Duchamp”.] tradução do autor.<br />

23 Citado, como epígrafe ao capítulo II, por DURAND, Gilbert. L’Imagination Symbolique. 4. ed. Paris: PUF, 1984.<br />

24 AKENATON. Réponses à Marc Roudier. In: PURLIMPURE. Catalogue <strong>de</strong> l’exposition. Aix en Provence, 1999. [“misturador, um<br />

liquidificador fantástico”] tradução do autor.<br />

25 Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser curioso que, mesmo propondo mudanças substanciais nas relações <strong>de</strong>ntro do sistema artístico, ainda se lance mão da<br />

mesma estratégia discursiva, a dos manifestos.<br />

26 http://aleph-arts.org/pens/re<strong>de</strong>finicion.html [“Não somos artistas; tampouco, claro, somos ‘críticos’. Somos produtores (...) somos<br />

produtores, sim, mas também produtos”.] tradução do autor.<br />

27 Para mais <strong>de</strong>talhes, consultar o excelente livro <strong>de</strong> ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas. Tradução <strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>rico Carotti. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 1989, especialmente o capítulo I. A <strong>de</strong>speito dos mais <strong>de</strong> 40 anos <strong>de</strong> sua primeira edição, essa obra continua sendo<br />

indispensável a quem quer que se <strong>de</strong>dique ao estudo das técnicas e do pensamento oci<strong>de</strong>ntal na virada para o Renascimento.<br />

28 Proposta muito semelhante à das “práticas <strong>de</strong> arte” sugeridas por CASTELLIN, Philippe. Créer avec le web n’est pas mettre les choses<br />

en ligne. Doc(k)s, Nice, série 3, p. 113-120, n. 21-24 <strong>de</strong>1999.<br />

29 [“certos efeitos circulatórios: efeitos <strong>de</strong> significado, efeitos simbólicos, efeitos intensivos, afetivos”.] tradução do autor.<br />

30 [“Essa produção nunca <strong>de</strong>ve ser confundida com objeto ou forma nenhuma: é um operador que se introduz com eficácia em um dado<br />

sistema, <strong>de</strong>sestabilizando a equação <strong>de</strong> equilíbrio que o governa”.] tradução do autor.<br />

31 Retomo aqui a boa discussão proposta por Edmond Couchot, ao início do seu La technologie dans l’art (COUCHOT, Edmond. La<br />

technologie dans l’art. Nîmes: Editions Jacqueline Chambon, 1988), em que se discutem as diferentes posições dos artistas segundo uma<br />

dicotomia entre ON e JE (em francês).<br />

32 [“...as práticas artísticas conseguiram encontrar, em um processo <strong>de</strong> transformação das socieda<strong>de</strong>s atuais que ten<strong>de</strong> a convertê-las em<br />

meros instrumentos <strong>de</strong> legitimação – quando não em triviais geradores <strong>de</strong> bibelôs <strong>de</strong> luxo para as novas economias imateriais –, seus<br />

melhores argumentos <strong>de</strong> futuro, seu mais alto <strong>de</strong>safio – ou, ao menos, uma boa razão <strong>de</strong> ser, no século que já começa”.] tradução do autor.<br />

54


33 Na verda<strong>de</strong>, nunca se trabalhou realmente <strong>de</strong>ssa maneira, mas há no ar um certo simplismo ao falar em estética que leva a<br />

consi<strong>de</strong>rações e comentários <strong>de</strong>sse teor.<br />

34 [“Nas socieda<strong>de</strong>s do século XXI, a arte não será exposta. Ela será produzida e difundida”.] tradução do autor.<br />

35 Segundo o poeta paulistano, conto é aquilo que seu autor diz que é conto.<br />

36 CASTELIN, op. cit., 1999, p. 120, nota 27. [“Uma ‘prática <strong>de</strong> arte’, para resumir, seria assim uma ativida<strong>de</strong> criativa não en<strong>de</strong>reçada<br />

socialmente, mas reservada a uma utilização particular e, em todo caso, livre <strong>de</strong> preocupações com a arte e com sua história. Posso cozinhar<br />

com uma arte e um refinamento infinitos, mas, se não convido ninguém, além <strong>de</strong> mim e <strong>de</strong> alguns amigos, para saborear o resultado, isso<br />

produz uma ‘prática <strong>de</strong> arte’. Para que eu me torne (hipótese...) um artista nesse domínio, é necessário que eu aceite me inscrever na<br />

competição das estrelas e dos aventais, que entre no circuito, que me dirija, potencialmente, aos árbitros, aos juízes, aos concorrentes. Se<br />

o fim da arte já soou há muito tempo, é possível que a web abra uma ampla perspectiva a semelhantes ‘práticas <strong>de</strong> arte’ e se ofereça como<br />

refúgio a todos que <strong>de</strong>cidiram ‘<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado’...”] tradução do autor.<br />

37 [“Hegel faz em algum lugar a observação segundo a qual todos os gran<strong>de</strong>s eventos e personagens históricos se repetem, por assim<br />

dizer, duas vezes. Ele esqueceu-se <strong>de</strong> acrescentar: a primeira vez como tragédia; a segunda, como farsa”.] tradução do autor.<br />

38 DOCTOROVICH, Fabio. Hacia el dominio digital: poesía e informática en Argentina. Doc(k)s, Nice, série 3, n. 21-24, p. 147, 1999. [“Existe<br />

uma linha muito tênue separando a poesia tecnologicamente avançada, mas conceitualmente tosca, daquela que verda<strong>de</strong>iramente resgata<br />

a essência poética – que não se manifesta apenas através <strong>de</strong> palavras – e a expressa pelos meios tecnológicos, criando, <strong>de</strong>ssa maneira, novos<br />

conceitos e abrindo caminhos impossíveis <strong>de</strong> se percorrer <strong>de</strong> outra maneira”.] tradução do autor.<br />

39 PEQUEÑO GLAZIER, Loss. ABC’s of coding. Doc(k)s, Nice, série 3, n. 21-24, p. 191,1999.<br />

40 CHATONSKY, Grégory. [www.inci<strong>de</strong>nt.net]. éc/art S, Paris, n. 2, p. 219, 2000.<br />

41 VIRILIO, Paul. Cybermon<strong>de</strong>: la politique du pire. Paris: Les Editions Textuel, 1996.<br />

42 CHATONSKY, op. cit., 2000, p. 214, nota 39. [“O inci<strong>de</strong>nte não é mais, a partir <strong>de</strong> então, uma simples obstrução ao regime funcional da<br />

técnica. Por <strong>de</strong>sinstrumentalizá-lo e refuncionalizá-lo em um quadro estético, propõe um comportamento inédito ao qual nenhum modo<br />

<strong>de</strong> leitura preexistente é (ainda) adaptado. É nessa <strong>de</strong>scoberta do inci<strong>de</strong>nte como recalque da técnica que uma imaginação sem formações<br />

representativas po<strong>de</strong> emergir”.] tradução do autor.<br />

43 CHATONSKY, op. cit., 2000, p. 215, nota 39.<br />

44 CAEIRO, Alberto. Poema II. In: O guardador <strong>de</strong> rebanhos.<br />

55


premissa menor<br />

espaços <strong>de</strong> escritas


Uma Possível ou Pretensa Literarieda<strong>de</strong><br />

Estabelecer critérios <strong>de</strong> literarieda<strong>de</strong> nunca foi tarefa simples, em época alguma. E essa empreita torna-se<br />

ainda mais espinhenta nestes nossos tempos <strong>de</strong> mudança dos paradigmas <strong>de</strong> escrita e, sobretudo, dos meios<br />

<strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> disseminação <strong>de</strong> textos. Supondo que saibamos minimamente o que vem a ser a escrita<br />

em meio eletrônico, cumpre ainda <strong>de</strong>terminar os processos e as condições <strong>de</strong> produção do literário.<br />

Po<strong>de</strong>mos examinar, a título <strong>de</strong> exemplo, um projeto que vem sendo <strong>de</strong>senvolvido há algum tempo, o<br />

Litteraterra, <strong>de</strong> Artur Matuck. Como em muitos outros casos, um problema se impõe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros<br />

instantes: como lidar com os percalços técnicos que surgem freqüentemente – comandos <strong>de</strong> javascript que<br />

não funcionam, ou mesmo comandos que simplesmente não são obe<strong>de</strong>cidos, falhas no planejamento<br />

ergonômico das telas, ligações que não levam a parte alguma etc.? No caso, há uma escolha a ser feita: ou<br />

não levamos em consi<strong>de</strong>ração tais percalços, fazendo <strong>de</strong> conta que são simplesmente ruídos (como quando<br />

encontramos livros com páginas faltando, ou com falhas na impressão), fadados a <strong>de</strong>saparecer num<br />

exemplar ou numa versão a ser corretamente construída; ou enten<strong>de</strong>mos essas interferências da técnica<br />

como elementos inalienáveis que participam diretamente da produção do texto. Na tradição impressa, esses<br />

problemas – gralhas, no jargão dos tipógrafos – foram vistos com interesse apenas pelos bibliófilos e pelos<br />

estudiosos da crítica genética e da ecdótica. No mais das vezes e para a imensa maioria dos leitores, tratavase<br />

<strong>de</strong> uns poucos erros limitados a uma tipologia sobejamente conhecida – falta <strong>de</strong> trechos ou <strong>de</strong> palavras,<br />

alterações ocasionais na seqüência <strong>de</strong> alguns significantes, <strong>de</strong>sacordos com alguma norma ortográfica e/ou<br />

gramatical –, erros a serem esquecidos (quando possível, caso contrário, provi<strong>de</strong>nciava-se a substituição do<br />

livro). Na tradição eletrônica eles são mais freqüentes, muito mais numerosos e nada faz supor que se possa<br />

estabelecer <strong>de</strong>les uma tipologia <strong>de</strong>finitiva muito menos duradoura. De fato, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da evolução dos<br />

suportes, dos programas e dos recursos ergonômicos empregados, novos tipos <strong>de</strong> ruído po<strong>de</strong>m surgir,<br />

alguns até mesmo propositais – como as inserções publicitárias tipo geocities ou hpg.<br />

Tirante os problemas mencionados, a obra <strong>de</strong> Matuck <strong>de</strong>sperta algum interesse por sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

propor uma conjunção entre os códigos <strong>de</strong> programação e os códigos lingüísticos. De fato, ela está no rol<br />

das não muito numerosas criações que mencionam a palavra <strong>literatura</strong> já no título e conseguem ir além da<br />

criação gráfica ou visual, trabalhando com alguns aspectos lexicais e morfológicos das línguas (latinas<br />

principalmente). Todavia, o texto verbal apresentado por Matuck, inspirado na proposta da interlíngua,<br />

aponta também para a tentativa <strong>de</strong> criação literária <strong>de</strong> uma língua universal feita por Umberto Eco nas falas<br />

do personagem Salvatore, do romance O Nome da Rosa. Em resumo, temos, <strong>de</strong> um lado, essa escrita<br />

salvatoriana ou interlingüística que joga com o código verbal, mas <strong>de</strong> forma permanente (trata-se <strong>de</strong> frases<br />

escritas pelo autor a que os leitores, ao que tudo indica, não têm acesso nem interferência); <strong>de</strong> outro, um<br />

dispositivo que permite aos leitores escrever uma expressão em um quadro específico, e que é, em seguida,<br />

assimilada pelo sistema e exposta em outros locais da tela, sendo passível <strong>de</strong> alterações ao comando do<br />

leitor por meio <strong>de</strong> botões intitulados dis-scriber. É possível participar da construção <strong>de</strong>ssa espécie <strong>de</strong><br />

novilíngua ao entrar num sistema <strong>de</strong> acréscimo e <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> vocábulos. De qualquer maneira, não há<br />

pistas <strong>de</strong> que essas inserções possam ser manipuladas <strong>de</strong> forma mais direta pelos leitores que as propuseram.<br />

É assim que o interesse incipiente que a criação verbal em Litteraterra <strong>de</strong>sperta, à medida que vamos<br />

avançando na exploração da obra, parece se resumir àquela fala salvatoriana, mas não salvacionista.<br />

59


* * *<br />

Nesse ponto, duas perguntas ainda subsistem e <strong>de</strong>vem servir <strong>de</strong> baliza para as reflexões que se fazem aqui<br />

sobre criação literária e meio eletrônico: qual seria o real estatuto da criação verbal nesse meio? Como se<br />

apropriar dos instrumentos e processos informáticos para construir uma ciberleitura que tenha como<br />

correlato uma ciberescrita? Ao mesmo tempo que postulamos essas questões, queremos nos afastar <strong>de</strong> certo<br />

simplismo que tem acometido os estudos literários há mais <strong>de</strong> uma década e procura ver <strong>literatura</strong> em toda<br />

parte, numa espécie <strong>de</strong> macarthismo às avessas (tão insidioso quanto seu original). Aceitar o pressuposto <strong>de</strong><br />

que competiria apenas ao leitor individual a atribuição do estatuto <strong>de</strong> literário para um dado objeto não<br />

significaria explicitar a evi<strong>de</strong>nte precarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste, mas, ao contrário, resultaria num leitor investido <strong>de</strong><br />

um autoritarismo quase absoluto. Por isso, quando indagamos qual seria o estatuto da criação verbal no<br />

ciberespaço, estamos propondo o mapeamento <strong>de</strong> um sistema literário que já esteja abertamente (que<br />

nunca será completamente) ancorado no meio eletrônico; estamos afirmando que não compete a leitores<br />

nem a criadores <strong>de</strong>finir, isoladamente, o que será produzido, lido, reproduzido e, portanto, <strong>de</strong>finido como<br />

<strong>literatura</strong>. E também estamos afirmando com todas as letras que escrita e leitura, por mais que se<br />

<strong>de</strong>sloquem, por mais que se renovem e se estranhem, por mais que se entranhem <strong>de</strong> elementos novos, não<br />

po<strong>de</strong>riam ser reduzidas a um mesmo e único processo.<br />

A julgar pelo que muitos críticos e teóricos têm dito nas últimas décadas, parece que o campo da<br />

literarieda<strong>de</strong> vem incorporando novos objetos, novos processos, novos materiais e, claro, novas temáticas.<br />

E essa expansão ocorre também quando se toma uma perspectiva sincrônica. David Reynolds, 1 por exemplo,<br />

afirma que haveria uma escala ascen<strong>de</strong>nte em termos <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> semiótica, que vai do que ele chama<br />

<strong>de</strong> “textos sociais” até chegar aos literários. Duas observações po<strong>de</strong>m ser levantadas com base nisso. A<br />

primeira diz respeito a uma i<strong>de</strong>ntificação entre textualização e semiotização, o que parece um tanto<br />

simplificador. A segunda – e que nos afeta diretamente – é essa pretensão <strong>de</strong> colocar o literário como ponto<br />

culminante <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> textualização. Em outras palavras, quanto mais complexos, mais literários<br />

seriam os textos. E, somando isso àquela i<strong>de</strong>ntificação entre textual e semiótico, literarieda<strong>de</strong> e<br />

semioticida<strong>de</strong> seriam equivalentes: um grau elevado <strong>de</strong> uma correspon<strong>de</strong>ria a um grau também elevado da<br />

outra, o que nos levaria imediatamente à afirmação <strong>de</strong> que ambas correspon<strong>de</strong>riam a um mesmo processo.<br />

Mas, se todo texto é imediatamente passível <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>scrição semiótica, todo texto é imediatamente<br />

literário. Se tudo se torna <strong>literatura</strong> – como o próprio Reynolds observa –, “o relativismo crítico dominará<br />

tudo e o lobby político tomará rapidamente o lugar da crítica responsável”. 2 De outro lado, nem todo texto<br />

literário, até mesmo complexamente literário – po<strong>de</strong>ríamos dizer –, é também dotado <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong><br />

semiótica. Ainda é Reynolds que afirma ser o texto literário “...a compact explosiveness of sign that occurs<br />

because an unusually large variety of cultural idioms and voices are fused to create extreme <strong>de</strong>nsity and<br />

semiotic polyvocality”. 3 A julgar por isso, teríamos que excluir um Nelson Rodrigues, um Dalton Trevisan da<br />

boa <strong>literatura</strong> <strong>de</strong>vido à exigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ambos em matéria <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> “idiomas culturais”. Não há<br />

mesmo como escapar à construção <strong>de</strong> um leque mínimo <strong>de</strong> critérios <strong>de</strong> literarieda<strong>de</strong>, preferencialmente<br />

provisórios (para que não se convertam em dogmatismo estético), na tradição impressa e,<br />

conseqüentemente, no meio eletrônico. De fato, a indagação sobre o real estatuto literário <strong>de</strong> uma obra é<br />

discussão que sempre permeou o <strong>de</strong>bate crítico, coisa que se po<strong>de</strong> ver <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Aristóteles, Horácio e Longino.<br />

60


Teremos, talvez, chance <strong>de</strong> voltar a essas discussões mais tar<strong>de</strong>, em outros locais. Agora, interessa enten<strong>de</strong>r<br />

como e por que a <strong>literatura</strong> da tradição impressa vem impregnar o meio eletrônico – sobretudo essa<br />

<strong>literatura</strong> da última tradição impressa – com seus esforços <strong>de</strong> romper as barreiras do verbal em direção do<br />

verbivocovisual, na expressão <strong>de</strong> seus próceres mais ilustres. Por isso não <strong>de</strong>ve nos surpreen<strong>de</strong>r que o novo<br />

campo da literarieda<strong>de</strong> eletrônica ainda pague tributo a elementos e perspectivas da tradição impressa.<br />

Dessa maneira, ao influenciar as perspectivas <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> disseminação dos textos, agora em meio<br />

eletrônico, essa <strong>literatura</strong> da tradição impressa faz com que a própria noção <strong>de</strong> literarieda<strong>de</strong> eletrônica<br />

fique sujeita a certa hesitação, oscilando entre certezas e incertezas, já familiares, da tradição impressa e<br />

novas e surpreen<strong>de</strong>ntes incertezas – somadas a umas poucas certezas – que vão surgindo nessas criações e<br />

leituras no ciberespaço. Todavia, essa instabilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser benéfica, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não se converta num valetudo<br />

em que (como já afirmado acima) artista ou leitor, cada um em seu canto, outorgue-se o papel <strong>de</strong><br />

legislador estético, <strong>de</strong>finindo o que é ou não ciber<strong>literatura</strong>. Essa instabilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser benéfica, sobretudo<br />

se for usada por criadores e leitores para se <strong>de</strong>slocarem <strong>de</strong> seus campos habituais <strong>de</strong> atuação e<br />

possibilitarem novas dinâmicas <strong>de</strong> produção e disseminação dos textos. É o que ocorreria com a criação no<br />

Litteraterra, <strong>de</strong> Artur Matuck, se se tivesse introduzido ao menos um procedimento que permitisse uma<br />

justaposição eficaz entre os escritos em interlíngua e os dispositivos <strong>de</strong> manipulação automática e aleatória<br />

das expressões propostas pelos leitores.<br />

Uma das características das obras literárias mais largamente exploradas nos últimos tempos, a<br />

intertextualida<strong>de</strong> é uma das pontes mais evi<strong>de</strong>ntes (mas não obrigatoriamente mais importantes) entre a<br />

tradição impressa e o meio eletrônico. Isso já se encontra documentado e exaustivamente discutido em<br />

trabalhos sobre hipertextos, ao menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1994, em ensaios cometidos por mim e em estudos <strong>de</strong> gente<br />

como George P. Landow e outros. Assim, a literarieda<strong>de</strong> das obras literárias eletrônicas, <strong>de</strong> início, herda<br />

procedimentos e perspectivas da tradição do intertexto, sobretudo na maneira como o conceberam e o<br />

<strong>de</strong>screveram Gérard Genette e Julia Kristeva. Tanto quanto os hipertextos eletrônicos, todo texto literário<br />

<strong>de</strong>ve ser lido “non pas comme <strong>de</strong>s entités autonomes, ‘<strong>de</strong>s touts organiques’, mais comme <strong>de</strong>s constructions<br />

intertextuelles: <strong>de</strong>s séquences qui ont du sens en relation avec d’autres textes qu’elles reprennent, citent,<br />

parodient, réfutent, ou, plus généralement, transforment...” 4 Entre a tradição impressa e o ciberespaço,<br />

então, se estabelece uma linha <strong>de</strong> comunicação pela multidimensionalida<strong>de</strong> textual que dá sentido às obras<br />

aí produzidas. Mas, nesse caso, cumpre <strong>de</strong>stacar uma primeira e importante diferença que aparece na<br />

maneira como se dá a produção do texto com base no material significante colocado diante do leitor. No<br />

caso da tradição impressa, o espaço <strong>de</strong> intertextualida<strong>de</strong>s (ou mesmo hipertextualida<strong>de</strong>s, se seguirmos a<br />

nomenclatura proposta por Genette) é limitado pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escritores e leitores manipularem<br />

referências e textos outros (mesmo no caso <strong>de</strong> obras multirreferenciais, como os Cantos, <strong>de</strong> Ezra Pound). No<br />

que toca ao ciberespaço, a capacida<strong>de</strong> do leitor <strong>de</strong> manipular dados e processos não rivaliza nem <strong>de</strong> longe<br />

com a memória e a velocida<strong>de</strong> dos sistemas informáticos.<br />

Nesse ponto, é importante ressaltar que essa diferença quantitativa acaba implicando diferenças<br />

qualitativas na produção dos textos. O ciberespaço não propicia, <strong>de</strong> forma alguma, uma infinida<strong>de</strong> efetiva<br />

<strong>de</strong> materiais, <strong>de</strong> referências diretas e indiretas. O que ocorre, na verda<strong>de</strong>, é que ele abre o campo dos<br />

possíveis <strong>de</strong> maneira até então inimaginável, bem acima das capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> processamento do ser humano.<br />

61


Aliás, tal expansão já era evi<strong>de</strong>nte na escrita (a fortiori, na imprensa), que propiciou o armazenamento <strong>de</strong><br />

quantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> signos verbais bem acima das possibilida<strong>de</strong>s da memória do leitor (imprescindível até então<br />

na tradição oral). Dito <strong>de</strong> outra maneira, o meio eletrônico abre duas direções fundamentais para o leitor:<br />

<strong>de</strong> um lado, ele é instado a mapear um campo <strong>de</strong> sentidos possíveis, utilizando não apenas as linguagens<br />

costumeiras (visuais, verbais, sonoras etc.), mas também e sobretudo os processos, procedimentos e<br />

ferramentas informáticas. É como no caso do Litteraterra, em que o leitor se vê diante da tarefa <strong>de</strong> mapear<br />

e <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r como funcionam as interações e os automatismos para interagir mais eficazmente com a<br />

obra. De outro lado, com base nesse mapeamento, o leitor po<strong>de</strong> então passar para uma etapa posterior, a<br />

<strong>de</strong> organizar significações a partir do material significante colocado diante <strong>de</strong> si. E novamente entram em<br />

cena suas limitações físicas (<strong>de</strong> campo visual, <strong>de</strong> memórias <strong>de</strong> curto, médio e longo prazos): diante <strong>de</strong> uma<br />

legião <strong>de</strong> possíveis que se abre na tela e ao toque dos <strong>de</strong>dos, ao alcance dos automatismos e das interações,<br />

quaisquer interpretações <strong>de</strong>verão ser resultado <strong>de</strong> escolhas fundadas não apenas em coerências e<br />

consistências das diferentes linguagens envolvidas, mas também em lógicas <strong>de</strong> edição e <strong>de</strong> construção <strong>de</strong><br />

espaços significantes multidimensionais. No caso da criação <strong>de</strong> Artur Matuck, isso se refere à justaposição<br />

entre o verbal da tradição impressa (os escritos explicativos que se abrem aqui e ali) e o automático-iterativo<br />

do meio eletrônico. E ressalte-se a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma conjunção, e não <strong>de</strong> uma justaposição entre um e<br />

outro, como parece indicar a lógica <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>ssa obra.<br />

Talvez essa diferença entre conjunção e justaposição aju<strong>de</strong> a discernir melhor a maneira como se esboça,<br />

então, uma linha que leva da <strong>literatura</strong> da tradição impressa a uma pretensa <strong>literatura</strong> eletrônica. Assim,<br />

não se fala nem <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>, nem <strong>de</strong> ruptura radical, mas <strong>de</strong> sedimentações <strong>de</strong> processos textuais<br />

variados, po<strong>de</strong>ndo colocar no mesmo saco o projeto do Livre, <strong>de</strong> Mallarmé, e propostas vanguardistas<br />

propagan<strong>de</strong>ando a própria extinção do livro. É por isso que falar da literarieda<strong>de</strong> dos hipertextos<br />

eletrônicos significa dar conta <strong>de</strong>sse intrincado jogo que não po<strong>de</strong> mais ser resumido simplistamente a uma<br />

escolha entre diacronia e sincronia. Como ocorre com todo objeto cultural, ambas se imbricam e se<br />

entrelaçam numa conjunção que não tem como se socorrer com o abrigo cômodo e reconfortante <strong>de</strong> uma<br />

dialética <strong>de</strong> feitio hegeliano. Bem examinadas, percebemos que há diacronias em qualquer recorte<br />

sincrônico e vice-versa, sincronias em toda perspectiva diacrônica. De fato, esse processo permite perceber<br />

que tais jogos e conjunções entre textos distintos também se tornam, <strong>de</strong> imediato, textos. E só o que evita<br />

que caiamos no círculo fechado e vicioso da sofística (tal como acontece com alguns críticos e teóricos que<br />

vêem em tudo apenas construção <strong>de</strong> significações) é o esforço <strong>de</strong> manter tal círculo em permanente<br />

movimentação, 5 o trabalho (sempre inútil, mas persistente) do leitor <strong>de</strong> se dirigir para fora do espaço das<br />

textualida<strong>de</strong>s, tentando inutilmente, como Sísifo, alcançar o espaço dos sentidos possíveis. 6<br />

De fato, é isso que permite a Fabio Doctorovich afirmar que “...viejas técnicas <strong>de</strong>jadas <strong>de</strong> lado por los poetas<br />

tales como el teatro, el canto y la plástica están siendo reelaboradas a partir <strong>de</strong> las experiencias dadaístas y<br />

futuristas <strong>de</strong> principios <strong>de</strong> siglo”. 7 No caso da obra tomada como exemplo, Litteraterra, po<strong>de</strong>-se perceber<br />

uma <strong>de</strong>ficiência que é marcante na imensa maioria das criações da ciber<strong>literatura</strong>: justamente a falta <strong>de</strong><br />

uma visão mais ampla e que permita contemplar e assimilar na criação da obra (e, <strong>de</strong> modo correspon<strong>de</strong>nte,<br />

na leitura <strong>de</strong>la) algumas das distintas sedimentações que dão possibilida<strong>de</strong> e sentido ao objeto submetido<br />

à leitura. São justamente essas sedimentações que vão, nelas e por elas, construindo esses textos que só<br />

62


assim po<strong>de</strong>m existir. Doctorovich afirma que “en algunos casos las técnicas antiguas se fun<strong>de</strong>n con las<br />

nuevas tecnologías, generando soportes mixtos que podríamos llamar postmo<strong>de</strong>rnos”. 8 Mas talvez seja<br />

melhor dizer que a novida<strong>de</strong> (estou enten<strong>de</strong>ndo assim o termo “pós-mo<strong>de</strong>rno”) não esteja propriamente<br />

na fusão <strong>de</strong> técnicas antigas e novas tecnologias. Na versão escrita que Chrétien <strong>de</strong> Troyes propôs da<br />

Demanda do Graal, técnicas da oralida<strong>de</strong> e da escrita já se misturavam <strong>de</strong> modo in<strong>de</strong>strinçável. A novida<strong>de</strong><br />

talvez esteja sobretudo no modo como as enormes quantida<strong>de</strong>s e a gran<strong>de</strong> velocida<strong>de</strong> do meio eletrônico<br />

geram artifícios e processos <strong>de</strong> significação que correm paralelamente aos significantes tradicionais (verbais,<br />

icônicos, sonoros, imagéticos etc.) sem se confundir com eles e sem os escon<strong>de</strong>r, mas permitindo o<br />

mapeamento <strong>de</strong> espaços heterogêneos e multidimensionais <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> sentidos. É justamente nesses<br />

espaços que o verbal é lido também (e principalmente) através e <strong>de</strong>ntro do eletrônico; em que o eletrônico<br />

se manifesta <strong>de</strong>ntro dos limites e das operações possíveis da matéria verbal.<br />

Dito <strong>de</strong> outro modo, as literarieda<strong>de</strong>s (talvez seja mesmo mais sensato falar assim, no plural) que se<br />

esboçam nestes tempos <strong>de</strong> ciberespaço eletrônico permitem retomar, como indica Jean Clément,<br />

“...un courant littéraire très ancien (...) qui s’oppose à la conception classique fondée sur la certitu<strong>de</strong> que le<br />

texte est la juste traduction <strong>de</strong> la pensée ou à celle, romantique, d’une littérature considérée comme reflet<br />

<strong>de</strong> la sensibilité. Ce courant, que l’on peut suivre <strong>de</strong>puis les Grands Rhétoriqueurs jusqu’à Paul Valéry, est<br />

moins attaché aux textes qu’à leur processus d’engendrement...” 9<br />

Mas, se apenas se retomasse essa construção lúdica da <strong>literatura</strong>, não se faria nada além <strong>de</strong> repetir, com<br />

alguma maquiagem <strong>de</strong> novida<strong>de</strong> técnica, obras e processos produtivos que datam <strong>de</strong> séculos. Em criações<br />

como Les Litanies <strong>de</strong> La Vierge, <strong>de</strong> Jean Meschinot, ou Der XLI. Libes-Kuß, <strong>de</strong> Quirinus Kuhlmann, o espaço<br />

<strong>de</strong> significantes da obra já se <strong>de</strong>sdobrava e se multiplicava, expandindo ou explodindo os possíveis do texto.<br />

E, no caso <strong>de</strong>ssas obras, elas são análogas <strong>de</strong> alguma maneira à Máquina <strong>de</strong> Turing: há uma <strong>de</strong>scrição da<br />

situação inicial, isto é, a seqüência <strong>de</strong> significantes já impressos no papel; todos eles remetem a signos<br />

pertencentes ao léxico <strong>de</strong> uma dada língua, isto é, são signos <strong>de</strong> natureza verbal; e o poema é introduzido<br />

por um conjunto <strong>de</strong> instruções que permitem a produção <strong>de</strong> novos espaços <strong>de</strong> significantes. Nesse sentido,<br />

não há diferença essencial com relação ao poema <strong>de</strong> E. M. <strong>de</strong> Melo e Castro apresentado a seguir, a não ser<br />

o fato <strong>de</strong> o poeta propor alguns exemplos <strong>de</strong> funcionamento <strong>de</strong> sua máquina <strong>de</strong> Turing poética, fazendo<br />

com que certo número <strong>de</strong> leitores prefira a estratégia <strong>de</strong> não explorar seu aspecto computacional e passar<br />

diretamente para a montagem <strong>de</strong> significações restrita aos significantes propostos pelo autor.<br />

Tudo Po<strong>de</strong> Ser Dito num Poema<br />

1) propõe-se o seguinte mo<strong>de</strong>lo<br />

em presença<br />

acaso A é B <strong>de</strong> A (ou <strong>de</strong> B, ou <strong>de</strong> C etc.)<br />

na ausência<br />

63


2) A e B são um par <strong>de</strong> contrários<br />

exemplos:<br />

tudo - nada<br />

bem - mal<br />

alto - baixo<br />

belo - feio<br />

preto - branco<br />

etc. etc.<br />

3) A e B são substantivos ou pronomes<br />

exemplos:<br />

homem - <strong>de</strong>us<br />

arma - braço<br />

casa - fogo<br />

amor - vento<br />

eu - tu<br />

tu - ele<br />

etc. - etc.<br />

4) C é aleatório<br />

5) escolha as suas palavras e <strong>de</strong>senvolva o mo<strong>de</strong>lo segundo uma regra combinatória,<br />

6) estu<strong>de</strong> atentamente as proposições resultantes<br />

7) não suspenda a sua pesquisa: tudo po<strong>de</strong> ser dito num poema<br />

EXEMPLOS<br />

acaso tudo é nada em presença <strong>de</strong> tudo<br />

acaso nada é tudo em presença <strong>de</strong> tudo<br />

acaso tudo é nada em presença do nada<br />

acaso nada é tudo em presença do nada<br />

acaso tudo é tudo em presença <strong>de</strong> tudo<br />

acaso tudo é tudo em presença do nada<br />

acaso nada é nada em presença <strong>de</strong> tudo<br />

acaso nada é nada em presença do nada<br />

64


acaso tudo é nada na ausência <strong>de</strong> tudo<br />

acaso nada é tudo na ausência <strong>de</strong> tudo<br />

acaso tudo é nada na ausência do nada<br />

acaso nada é tudo na ausência do nada<br />

acaso tudo é tudo na ausência <strong>de</strong> tudo<br />

acaso tudo é tudo na ausência do nada<br />

acaso nada é nada na ausência <strong>de</strong> tudo<br />

acaso nada é nada na ausência do nada<br />

acaso tu és tu em presença <strong>de</strong> ti<br />

acaso tu és tu na ausência <strong>de</strong> ti<br />

acaso tu és ele na presença <strong>de</strong> ti<br />

acaso tu és ele na ausência <strong>de</strong> ti<br />

acaso ele é tu na presença <strong>de</strong> ti<br />

acaso ele é tu na ausência <strong>de</strong> ti<br />

acaso ele é ele na presença <strong>de</strong> ti<br />

acaso ele é ele na ausência <strong>de</strong> ti<br />

acaso tu és tu na presença <strong>de</strong>le<br />

acaso tu és tu na ausência <strong>de</strong>le etc.<br />

Nos três casos (os poemas <strong>de</strong> Meschinot, Kuhlmann, Melo e Castro), não temos em ação nenhuma máquina<br />

propriamente dita, e sim uma série <strong>de</strong> procedimentos algorítmicos que só funcionam e têm, portanto,<br />

algum sentido quando realizados por alguém chamado leitor. Em suma, não há verda<strong>de</strong>iros maquinismos,<br />

mas sim uma simulação <strong>de</strong>les, e a multiplicação <strong>de</strong> significantes em gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>vido ao trabalho<br />

direto <strong>de</strong>sse leitor colocado diante <strong>de</strong> uma quantida<strong>de</strong> imensa <strong>de</strong> significantes que ele mesmo produz e a<br />

que <strong>de</strong>ve atribuir significações. Tivesse Rábano Mauro notícias <strong>de</strong> maquinações semelhantes, mais motivo<br />

teria ele ainda para restringir as interpretações possíveis dos textos (sagrados ou não) aos quatro níveis<br />

propostos em sua teoria da interpretação. Po<strong>de</strong>-se imaginar o temor da intelectualida<strong>de</strong> eclesiástica se<br />

tivesse que lidar com uma imensa legião <strong>de</strong> significantes que esse tipo <strong>de</strong> obra tornasse possível!<br />

É importante também <strong>de</strong>stacar que tais mecanismos poéticos, mesmo insertos ainda no espaço da tradição<br />

impressa, já permitem ao leitor mapear um novo espaço <strong>de</strong> leitura (e que vem se somar a esse tradicional e<br />

costumeiro, que busca estabelecer construção <strong>de</strong> significações a partir dos diferentes estratos dos mesmos<br />

significantes, e que as sucessivas leituras vão i<strong>de</strong>ntificando na obra). Trata-se da i<strong>de</strong>ntificação e da leitura<br />

dos procedimentos algorítmicos, baseados em mecanismos <strong>de</strong> escolhas <strong>de</strong> elementos e alterações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns<br />

sintáticas e semânticas. Em resumo, é necessário passar por uma primeira leitura ainda antes <strong>de</strong>ssa<br />

articulação <strong>de</strong> significações a partir <strong>de</strong> um conjunto estável <strong>de</strong> significantes, pois, justamente, tais obras não<br />

fornecem aos leitores esse conjunto estável <strong>de</strong> significantes (mesmo aparentando tal estabilida<strong>de</strong>). Vai ser<br />

preciso, primeiramente, enten<strong>de</strong>r como funciona, ou seja, ler o sistema <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> significantes antes <strong>de</strong><br />

passar a gerá-los e a lê-los. Se, tomando os poemas <strong>de</strong> Meschinot e <strong>de</strong> Kuhlmann, ou mesmo labirintos,<br />

como um <strong>de</strong> Camões (anexo 1) poucos põem em dúvida a literarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>les, talvez seja <strong>de</strong>vido a esse<br />

65


evi<strong>de</strong>nte estrato (diria melhor, forma) literário, essa aparente estabilida<strong>de</strong> dos significantes que leva, <strong>de</strong><br />

imediato, a formas reconhecíveis da tradição literária: versos, estrofes, metrificação, ritmo etc.<br />

O caso <strong>de</strong> Raymond Queneau e seus Cent Milles Milliards <strong>de</strong> Poèmes representa um avanço importante não<br />

apenas quantitativo, mas também qualitativo. 10 Se mantemos a analogia com a Máquina <strong>de</strong> Turing,<br />

po<strong>de</strong>mos dizer que no caso <strong>de</strong> Queneau uma máquina foi materialmente construída, à diferença dos<br />

poemas mencionados. A edição em papel dos poemas implica uma leitura impossível, se tentamos usar os<br />

processos <strong>de</strong> manipulação da tradição impressa. Não conheço leitor que tenha conseguido algum sucesso<br />

diante da gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tirinhas <strong>de</strong> papel que se obstinam em não permitir nenhum controle<br />

efetivo <strong>de</strong> suas mãos e <strong>de</strong>dos. O lí<strong>de</strong>r do Oulipo realmente construiu uma máquina mecânica (e não<br />

eletrônica) <strong>de</strong> multiplicação <strong>de</strong> significantes que, nos resultados numéricos, vai muito além das que<br />

Meschinot e Kuhlmann propuseram. Trata-se <strong>de</strong> um máquina mecânica, sim, mas cujas possibilida<strong>de</strong>s e<br />

efeitos po<strong>de</strong>m ser próprios e mais extensamente lidos no meio eletrônico. 11 Isso tudo acaba colocando uma<br />

gran<strong>de</strong> distância entre os leitores e qualquer aparência <strong>de</strong> literarieda<strong>de</strong> tradicional, como se observa ainda<br />

nos poemas. Daí vem, talvez, a resistência <strong>de</strong> muitos críticos (ainda hoje) em atribuir qualquer valor literário<br />

a essa obra <strong>de</strong> Queneau: afinal <strong>de</strong> contas, a materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua máquina, direta e ostensivamente dada à<br />

manipulação do leitor, praticamente afasta qualquer leitura pelo viés tradicional, isto é, que reconheça a<br />

forma do soneto e faça as costumeiras divagações e <strong>de</strong>ambulações <strong>de</strong> significados e sentidos. Todavia, esse<br />

dispositivo do escritor francês não escon<strong>de</strong> um ponto importante: tanto quanto os maquinismos virtuais <strong>de</strong><br />

Meschinot e Kuhlmann, ele é também espaço e forma significante, parte inalienável <strong>de</strong> qualquer percurso<br />

<strong>de</strong> leitura que se faça <strong>de</strong>ntro e a partir <strong>de</strong>le. Queremos dizer com isso que nem as máquinas virtuais <strong>de</strong> uns,<br />

nem a máquina real do outro po<strong>de</strong>m ser vistas apenas como meio por on<strong>de</strong> transitam os significantes, ou<br />

mesmo como agentes construtores <strong>de</strong> significantes, mas colocados na exteriorida<strong>de</strong> do texto.<br />

Os dois tipos <strong>de</strong> máquina tomam parte no texto, e também são submetidos a um processo <strong>de</strong> leitura, isto<br />

é, <strong>de</strong> estratificação, <strong>de</strong> categorização, <strong>de</strong> mapeamento <strong>de</strong> ligações sintáticas e semânticas. Daí a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r os maquinismos como simulacros. Em outras palavras, não estamos diante <strong>de</strong> um processo<br />

industrial em que o maquinismo que produziu o objeto coloca-se fora <strong>de</strong> sua utilização por qualquer<br />

usuário. Esses maquinismos <strong>de</strong> gerar significantes seriam, para usar a mesma analogia, como objetos<br />

industrializados que, para serem usados, teriam <strong>de</strong> se fazer acompanhar <strong>de</strong> toda a fábrica, com suas<br />

instalações e maquinários. Então chegamos a uma constatação importante: as máquinas <strong>de</strong> gerar<br />

significantes, quando inseridas num processo <strong>de</strong> leitura, obrigatoriamente <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser maquinismos para<br />

se tornarem simulacros <strong>de</strong> maquinismos.<br />

É assim que, no meio eletrônico, se torna imperioso enten<strong>de</strong>r e aceitar que a máquina é simulacro; que ela<br />

não gera significações, mas significantes, sendo ela própria um significante. Se não se leva isso em conta,<br />

caímos num embuste, nessa mitologia contemporânea das tecnologias que nos é imposta como se técnicas,<br />

ferramentas e processos fossem objetos à parte do mundo cultural. Como se o computador não fosse parte<br />

especial, diferenciada, com funções distintas <strong>de</strong> outros elementos, mas parte do texto que se produz<br />

durante as leituras. Por isso não se po<strong>de</strong> colocar a máquina numa esfera <strong>de</strong> espontaneida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ntificá-la<br />

aos sujeitos que participam do processo <strong>de</strong> produção do texto. Não há subjetivida<strong>de</strong> na máquina, por isso<br />

66


não se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> duo pensante homem-máquina. Quem pensa é o homem, e toda discussão sobre<br />

inteligência artificial seria menos simplista se levasse isso em conta, se <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> confundir inteligência<br />

com consciência artificial. Em resumo, as maquinações, jogos e permutações em Meschinot e Kuhlmann não<br />

são partes ou extensões do autor, mas estratégias a serem lidas e que, portanto, também fazem parte disso<br />

que chamamos simplesmente texto. Da mesma maneira, o computador não é uma entida<strong>de</strong> autônoma,<br />

espontânea. Ele é um conjunto <strong>de</strong> elementos ligados por uma série <strong>de</strong> instruções e <strong>de</strong> condições <strong>de</strong><br />

contorno; portanto, é tanto texto quanto os significantes que ele próprio, em nível diferente, manipula,<br />

processa, reor<strong>de</strong>na, <strong>de</strong>sorganiza e produz.<br />

* * *<br />

Se “apenas uma gran<strong>de</strong> intuição po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> bússola, nos <strong>de</strong>sertos da alma”, como afirma Pessoa, 12 talvez<br />

a palavra seja o instrumento para invocar essa intuição e esten<strong>de</strong>r caminhos e percursos nesse <strong>de</strong>serto<br />

povoado <strong>de</strong> significantes que é o ciberespaço. Tomemos, por exemplo, a palavra <strong>de</strong>riva, utilizada no início<br />

<strong>de</strong>ste ensaio. Ela tanto indica o <strong>de</strong>svio, o distanciamento, a perda <strong>de</strong> rumo como nomeia um instrumento<br />

náutico que serve justamente para evitar a perda da rota. Se são tempos <strong>de</strong> <strong>de</strong>riva e perda <strong>de</strong> rumo, estes<br />

nossos são igualmente tempos <strong>de</strong> <strong>de</strong>riva e <strong>de</strong> navegação por instrumentos <strong>de</strong> cibernáuticas empreitas. A<br />

palavra não foi arquitetada e tramada para o papel, para a folha escrita nem para a página impressa, mas<br />

fez <strong>de</strong>sse espaço sua morada e sítio quase como tivesse sido feita e inventada adre<strong>de</strong> para ocupar esse lugar.<br />

A tal ponto <strong>de</strong> um artista como Fabio Doctorovich, com a sensibilida<strong>de</strong> inteligente que o distingue, ter<br />

afirmado que “la palabra es probablemente el generador <strong>de</strong> significados más a<strong>de</strong>cuado cuando se trata <strong>de</strong><br />

página impresa (aunque no tanto teniendo en cuenta a la poesía visual)”. 13 Mas parece tropeçar quando<br />

afirma, logo em seguida: “Sin embargo, esto podría no ser así en el dominio virtual <strong>de</strong> la WWW”. 14 Mesmo<br />

parecendo otimismo exagerado, ainda <strong>de</strong>fendo que a palavra, a matéria verbal, vai encontrando sua hora<br />

e vez, seu lugar nesses espaços <strong>de</strong> espaços, nessa multidimensionalida<strong>de</strong> que é o ciberespaço, e<br />

conformando aí locais e instantes <strong>de</strong> <strong>literatura</strong>, ou melhor, <strong>de</strong> ciber<strong>literatura</strong>. E é o espaço e as condições<br />

<strong>de</strong> contorno na criação verbal que importa consi<strong>de</strong>rar. Não apenas no que ela recebe <strong>de</strong> especificida<strong>de</strong>s e<br />

limitações do meio eletrônico; também na maneira como o meio eletrônico po<strong>de</strong> ser re<strong>de</strong>senhado,<br />

retramado e retrabalhado a partir da matéria verbal. A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> uma possível ou pretensa literarieda<strong>de</strong><br />

eletrônica terá que dar conta, então, das torções e distorções que o uso da palavra traz para o ciberespaço,<br />

em geral, e para o que, em particular, temos chamado <strong>de</strong> ciber<strong>literatura</strong>. É o que vamos discutir na<br />

seqüência <strong>de</strong>ste ensaio. Basta fazer avançar as páginas!<br />

O Texto Eletrônico como Produtivida<strong>de</strong>, ou as<br />

Relações entre Autor e Leitor<br />

Há coisa <strong>de</strong> dois anos, realizou-se em Paris, no Museu Carnavalet, uma exposição <strong>de</strong> imagens virtuais construídas<br />

nos primórdios da invenção da fotografia. Em alguns casos, a espacialização em três dimensões era obtida a<br />

partir da bidimensionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> duas fotos colocadas em distintos eixos <strong>de</strong> perspectiva. Com se dá até hoje, o<br />

mecanismo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> jogo óptico baseia-se num arranjo entre duas imagens que se colocam<br />

67


em perspectivas distintas, mas compartilham um mesmo espaço, 15 forçando, por isso, a visão a buscar um<br />

terceiro ponto <strong>de</strong> vista. Ora, posto numa situação em que ele oscilaria in<strong>de</strong>finidamente entre uma perspectiva<br />

e outra, o olhar acaba criando uma terceira, que não é a mera soma ou justaposição das duas anteriores, mas<br />

a criação <strong>de</strong> uma outra possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exercício da visibilida<strong>de</strong>. Com isso, até mesmo o tempo <strong>de</strong> observação<br />

<strong>de</strong> uma ou outra das duas imagens reais é suprimido: <strong>de</strong> fato, ambas não po<strong>de</strong>m ser vistas no mesmo instante,<br />

o que vale dizer que elas isoladamente acabam não sendo vistas em instante nenhum. Daí termos algo como a<br />

criação <strong>de</strong> um terceiro instante, <strong>de</strong> uma outra temporalida<strong>de</strong>, em que as duas não são mais vistas, mas<br />

possibilitam a observação <strong>de</strong> uma terceira, essa que só existe numa perspectiva mediada pelo dispositivo óptico.<br />

Isso me pôs a pensar em outro dispositivo, não mais óptico, mas visual: 16 a tela do computador, e sua capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> baralhar in<strong>de</strong>finidamente signos imagéticos e verbais, <strong>de</strong> lançar um segundo texto a partir <strong>de</strong> um primeiro,<br />

<strong>de</strong> permitir ligações constantes com uma página sempre-a-vir, e ancoragens efêmeras nessa que acabou <strong>de</strong> ser<br />

armazenada na memória. Há aí uma inesperada e possível afinida<strong>de</strong> com os dispositivos ópticos acima<br />

mencionados. Em ambos os casos, um objeto convoca um outro a também ocupar um mesmo espaço. Mas há<br />

uma diferença importante entre as duas situações. No caso das duas imagens bidimensionais, é como se nem<br />

passássemos por elas, já instalados que estamos diante <strong>de</strong> uma pretensa terceira imagem (que só existe como<br />

ilusão), essa, sim, aparentemente tridimensional na maneira como se apresenta ao olhar. Não nos cabe fixar a<br />

atenção em apenas uma das imagens (atitu<strong>de</strong> que, no mais das vezes, nem é possível), fazendo <strong>de</strong> conta que a<br />

outra não existe. Não! Apenas nos é dado o vislumbre <strong>de</strong>ssa terceira perspectiva. No texto eletrônico, passa-se,<br />

às vezes celeremente <strong>de</strong>mais, <strong>de</strong> um texto a outro sem que nos situemos, ainda que ilusoriamente, em face <strong>de</strong><br />

um terceiro texto. Na maior parte das situações, nos posicionamos apenas diante do segundo, daquele para<br />

on<strong>de</strong> nos <strong>de</strong>slocamos. Mas há algumas nuanças nesse ciberespaço <strong>de</strong> eletrônicos e virtuais objetos.<br />

Quando o segundo texto surge na tela, ele não inaugura um universo <strong>de</strong> sentidos e <strong>de</strong> possíveis significados<br />

que seja completamente novo; <strong>de</strong> resto, como qualquer texto, ele não admite leitura ingênua, a ser construída<br />

ab ovo. A maneira como vamos inseri-lo numa trama dinâmica <strong>de</strong> significados <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do grau <strong>de</strong> opacida<strong>de</strong><br />

com que vemos o texto anterior por meio <strong>de</strong>sse texto segundo. É como se tivéssemos um palimpsesto cujo<br />

fundo (isto é, o texto anterior) tivesse uma visualida<strong>de</strong> variável, <strong>de</strong> acordo com a maneira como queremos lêlo.<br />

Assim, po<strong>de</strong>mos encontrar inumeráveis possibilida<strong>de</strong>s entre um extremo e outro: num lado, o ler sempre<br />

em todo texto aquele primeiro que <strong>de</strong>u início à navegação; no outro, o ler sempre o texto atual, querendo<br />

apagar completamente rastros e vestígios daquele que veio antes. Entre um pólo e outro, situa-se uma gama<br />

infinda <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s em que se exerce o que Pedro Barbosa chamaria <strong>de</strong> escrileitura. 17 Dessa maneira,<br />

quando pensamos nesse trabalho <strong>de</strong> passar <strong>de</strong> um texto a outro, temos muito a apren<strong>de</strong>r com aquela<br />

construção <strong>de</strong> imagens tridimensionais. Temos que negar a escolha maniqueísta que nos coloca no dilema <strong>de</strong><br />

ler tão-somente o primeiro ou o segundo texto, escolher o grau <strong>de</strong> interferência entre um e outro, e que nos<br />

dará então um texto terceiro. Assim, nosso esforço <strong>de</strong> leitura, parece-me, <strong>de</strong>ve se dirigir radicalmente à<br />

constatação e à construção <strong>de</strong>ssa confluência <strong>de</strong> ambos, <strong>de</strong>ssa terceira textualida<strong>de</strong> que, ao contrário das<br />

imagens tridimensionais, temos <strong>de</strong> tirar a fórceps do nosso esquecimento, da nossa cegueira, até da nossa<br />

indiferença a ele. E esse terceiro texto não seria nem um nem outro, nem um lido pelo outro, nem o acréscimo<br />

<strong>de</strong> um a outro, mas o resultado <strong>de</strong> uma leitura que se quer e se arrisca a ser, a seu modo, também escrita<br />

(mesmo sendo esta exercida em instâncias e com instrumentos distintos daquela realizada pelo autor).<br />

68


Trata-se, aí, <strong>de</strong> escolher um mapeamento, uma escrita <strong>de</strong> certa linguagem, em vez <strong>de</strong> mergulhar numa<br />

improvável, interminável e mesmo impossível leitura da língua, colocando em relevo o texto como fenômeno e<br />

não como objeto. Mas isso tudo po<strong>de</strong> estar ficando hermético <strong>de</strong>mais. Examinemos melhor essas afirmações.<br />

Esquecer que o texto segundo (como todo e qualquer texto) é já um palimpsesto e, no caso do meio eletrônico,<br />

um palimpsesto concreto e imediato parece implicar uma fuga para a frente infindável, uma tentativa <strong>de</strong> chegar<br />

ao todo da língua, fazendo avançar essa ilusão <strong>de</strong> que somos capazes <strong>de</strong> enunciar uma torá laica e eletrônica e<br />

que teria a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> chegar ao término <strong>de</strong> um périplo não mais assimptótico. Em outras palavras, tratase<br />

da ilusão <strong>de</strong> que teríamos em nós a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir e, portanto, <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r a totalida<strong>de</strong> da língua,<br />

<strong>de</strong> tê-la à mão, como um objeto que se possui completamente, exposto inteiro ao olhar. É a ilusão que<br />

compromete uma série <strong>de</strong> comentários exageradamente otimistas sobre a tecnologia eletrônica aplicada à<br />

edição ou à escrita. Alguns, como Dierk Hoffmann, apregoam as vantagens do meio eletrônico, único capaz <strong>de</strong><br />

uma verda<strong>de</strong>ira “edição-rizoma”, que tornaria “imediatamente acessíveis todos os testemunhos textuais,<br />

manuscritos, datiloscritos e impressões”, assim como “suas transcrições e interpretações”. 18 Esse acesso imediato<br />

à totalida<strong>de</strong> parece resultar mais <strong>de</strong> uma profissão <strong>de</strong> fé que <strong>de</strong> um ato <strong>de</strong> leitura (seja ela eletrônica ou não). E<br />

mesmo as interpretações que o leitor po<strong>de</strong> associar a um elemento ou outro da obra, mesmo elas nunca estarão<br />

todas à disposição <strong>de</strong> outros leitores, o que vale dizer que nunca se apaga a diferença entre informação e<br />

interpretação. A<strong>de</strong>mais, uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comentários, assumindo o estatuto <strong>de</strong> textos no mesmo<br />

nível daquele primeiro texto, ao contrário do que afirma Hoffmann, 19 é sempre o resultado <strong>de</strong> escolhas e recortes,<br />

e não um encaminhamento à totalida<strong>de</strong> dos sentidos e da língua. E, ainda, esse alargamento constante dos<br />

limites do texto lido, sendo sempre acrescido <strong>de</strong> outros e mais outros textos, esse pulular <strong>de</strong> significantes não nos<br />

dá mais do que uma progressiva ilegibilida<strong>de</strong> (a hiperinflação informativa acima mencionada).<br />

Assim, tomar um caminho oposto a esse “melhor dos mundos” advindo da tecnologia implica a escrita <strong>de</strong> uma<br />

linguagem que elege certos caminhos <strong>de</strong> significação e não outros, perscruta os limites, as superfícies e os veios<br />

do texto dado à leitura, indaga a ele o que ainda resta e o que po<strong>de</strong> ser inserto nele dos que o prece<strong>de</strong>ram.<br />

Daí a utilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se tomar o texto como produtivida<strong>de</strong> e não meramente como significação a ser proposta e<br />

percorrida. Como já se percebia, por exemplo, nos poemas do cultismo barroco, o primeiro papel do leitor é<br />

dotar-se <strong>de</strong> um texto a ler, não interpretá-lo: quando um poeta como Góngora, por exemplo, em um dado<br />

poema usa a palavra neve em distintas situações, cumpre mapear essa multiplicação <strong>de</strong> imagens que po<strong>de</strong><br />

estar apontando para uma outra e única imagem (e que não é mais a neve), em vez <strong>de</strong> partir apressadamente<br />

para a interpretação a/<strong>de</strong> cada caso. Trata-se, em outras palavras, <strong>de</strong> mapear a vizinhança <strong>de</strong> um estranho<br />

atrator 20 <strong>de</strong> significados, aproximar-se e afastar-se <strong>de</strong>le assimptoticamente, mais do que chegar diretamente<br />

até ele para, <strong>de</strong>pois, ir além. Resi<strong>de</strong> aí a diferença entre tematização e produção textual, entre o texto lido<br />

como referência e objetivida<strong>de</strong> externa, e o texto visto como fenômeno, esse que se faz aparecer pela atenção<br />

com que ele é lido. 21 Em resumo, compete ao leitor dar traços e lineamentos da fisionomia que o texto assume<br />

com sua leitura, operação que só é plausível se damos <strong>de</strong>staque à espessura fenomênica do texto lido.<br />

Outro exemplo interessante <strong>de</strong>ssas dinâmicas entre autor e leitor, ainda na tradição impressa, está num soneto<br />

<strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Antônio <strong>de</strong> Oliveira, escritor do barroco brasileiro, da Aca<strong>de</strong>mia dos Esquecidos. Para compor esse<br />

poema, Oliveira buscou 14 <strong>de</strong>cassílabos em Os Lusíadas, cuidando em dar-lhes coesão sintática e semântica,<br />

além <strong>de</strong> chegar a um esquema <strong>de</strong> rimas tradicional dos sonetos barrocos (no caso, ABBAABBACDECDE).<br />

69


Soneto Achado no Poema do Príncipe dos Poetas Espanhóis<br />

Canto Oitava Verso<br />

Enchem-se os peitos todos <strong>de</strong> alegria 2 89 5<br />

com tantas qualida<strong>de</strong>s generosas, 1 74 6<br />

que exce<strong>de</strong>m as sonhadas fabulosas 1 11 6<br />

as festas <strong>de</strong>ste alegre e claro dia. 10 75 7<br />

Eis aparecem logo em companhia 1 45 1<br />

Musas <strong>de</strong> engran<strong>de</strong>cer-se <strong>de</strong>sejosas, 1 11 4<br />

que coroas vos tecem gloriosas 10 142 8<br />

com mostras <strong>de</strong> <strong>de</strong>vida cortesia. 1 56 4<br />

Quanto po<strong>de</strong> <strong>de</strong> Atenas <strong>de</strong>sejar-se 3 97 5<br />

tudo o soberbo Apolo aqui reserva 3 97 6<br />

no templo da suprema eternida<strong>de</strong>. 1 17 8<br />

E <strong>de</strong> Helicona as Musas fez passar-se 3 97 3<br />

o valeroso ofício <strong>de</strong> Minerva 3 97 2<br />

ilustrado com a régia dignida<strong>de</strong>. 10 54 3<br />

A pergunta que se po<strong>de</strong> fazer, então, é: quem seria o autor <strong>de</strong>sse soneto? Camões, que escreveu os versos todos?<br />

Ou Antônio <strong>de</strong> Oliveira, que os reuniu e <strong>de</strong>u-lhes a aparência e o ritmo do soneto, a coerência da forma e do<br />

assunto? Na verda<strong>de</strong>, não há sentido em propor uma autoria exclusiva: <strong>de</strong>vemos falar <strong>de</strong> zonas <strong>de</strong> autorias<br />

compartilhadas. Se pensamos em autor em termos <strong>de</strong> estranho atrator como foi sugerido anteriormente,<br />

po<strong>de</strong>mos pensar que há um primeiro nó no autor <strong>de</strong> Os Lusíadas e um segundo em Antônio <strong>de</strong> Oliveira. Todavia,<br />

é importante ressaltar que Oliveira não compôs propriamente um soneto, mas uma maneira <strong>de</strong> ler, reescrevendo<br />

a epopéia camoniana. Ou seja, ele produziu <strong>de</strong> fato um processo <strong>de</strong> transformação do poema <strong>de</strong> Camões. Em<br />

princípio, não seria fundamentalmente distinto do que faz, por exemplo, o próprio Camões com sonetos <strong>de</strong><br />

Petrarca; ou Gregório <strong>de</strong> Matos com poemas <strong>de</strong> Góngora e Quevedo. Mas, nesses casos, trata-se <strong>de</strong> transformações<br />

a partir dos significantes originais e não com os próprios significantes originais, como ocorre com o processo<br />

proposto por Oliveira e que po<strong>de</strong> ser também posto em prática por outros leitores. Nós mesmos po<strong>de</strong>ríamos nos<br />

comprazer em montar sonetos a partir d’Os Lusíadas, o que traria junto essa dúvida sobre a autoria dos poemas<br />

resultantes. Quem seria o autor <strong>de</strong>les? Camões, que escreveu os versos? Oliveira, que inventou o método <strong>de</strong><br />

seleção e montagem? Ou nós próprios, leitores contemporâneos que produzimos os poemas com base em versos<br />

70


<strong>de</strong> um e fôrma <strong>de</strong> outro? O melhor a fazer, no caso, é abandonar a noção fechada e personalizada <strong>de</strong> autor e<br />

pensar em termos <strong>de</strong> pólos (ou nós) <strong>de</strong> autoria, jogando agora com três estranhos atratores. Daí a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> associar à criação <strong>de</strong> Antônio <strong>de</strong> Oliveira o comentário <strong>de</strong> Eric Sadin acerca da autoria no meio eletrônico:<br />

“L’exigence <strong>de</strong> la démultiplication <strong>de</strong>s compétences peut conduire – mais pas nécessairement – à encourager<br />

une disparition <strong>de</strong> la figure <strong>de</strong> l’auteur, au profit <strong>de</strong> la constitution <strong>de</strong> dispositifs, non pas anonymes, mais<br />

dans lesquels la signature prime moins que la nature <strong>de</strong>s jeux relationnels, entendus comme une première<br />

catégorie <strong>de</strong> procédures d’écriture...” 22<br />

Quanto a nós, temos apostado sempre nesse “não necessariamente” explicitado por Sadin, pois é justamente<br />

aí que se encontra um outro espaço <strong>de</strong> autoria: esta não <strong>de</strong>saparece, mas se coloca quase inteira na construção<br />

<strong>de</strong> dispositivos <strong>de</strong> leitura, como os <strong>de</strong> Oliveira e <strong>de</strong> Kuhlmann, na tradição impressa, ou na obra Exílio, <strong>de</strong> Tiago<br />

Lafer, no meio eletrônico. À diferença que o aparelho <strong>de</strong> produção dos significantes é virtual nos dois primeiros,<br />

e imediato e concreto, no terceiro. No caso <strong>de</strong>sse Exílio, o autor propõe uma retomada – mais uma! – <strong>de</strong> alguns<br />

versos da Canção do Exílio, <strong>de</strong> Gonçalves Dias, construindo um dispositivo muito simples: ao título da obra,<br />

Exílio, segue-se a quarta e penúltima estrofe do poema do escritor maranhense, transcrita ipsis litteris. Mas, a<br />

partir <strong>de</strong> um dado momento, dá-se início às intervenções das ferramentas <strong>de</strong> programação, fazendo com que,<br />

paulatinamente, alguns trechos vão sendo suprimidos. Como resultado, aparecem sete poemas em seqüência:<br />

1.<br />

Minha terra tem primores,<br />

Que tais não encontro eu cá;<br />

Em cismar – sozinho, à noite –<br />

Mais prazer encontro eu lá;<br />

Minha terra tem palmeiras,<br />

On<strong>de</strong> canta o Sabiá.<br />

2.<br />

primores,<br />

Que tais não encontro eu cá;<br />

Em cismar – sozinho, à noite –<br />

Mais prazer encontro eu lá;<br />

Minha terra<br />

canta.<br />

71


3.<br />

primores,<br />

não encontro eu cá;<br />

– sozinho, à noite –<br />

prazer encontro lá;<br />

4.<br />

não encontro eu<br />

– sozinho, à noite –<br />

lá;<br />

5.<br />

encontro eu<br />

– sozinho –<br />

6.<br />

– sozinho –<br />

7.<br />

– –<br />

Em princípio, parece não haver contradição alguma, em termos semânticos, entre os sete poemas. O que<br />

chama a atenção é a rarefação das palavras, que vai aumentando pouco a pouco a intromissão progressiva<br />

dos espaços vazios, o silenciamento paulatino do poema e atinge seu auge com os dois travessões<br />

enfrentando-se, ameaçadores, numa mesma linha e metaforizando, mais visual que semanticamente, o lá e<br />

o cá entre os quais oscila o poema todo <strong>de</strong> Gonçalves Dias, bem como suas paródias, pastiches ou<br />

retomadas, na tradição impressa e, agora, nos meios eletrônicos. Assim, mesmo simplistamente, ainda que<br />

não tenha feito maiores piruetas ou <strong>de</strong>slocamentos <strong>de</strong> significantes e significados, Lafer consegue nos dar<br />

mais do mesmo, isto é, mais <strong>de</strong> Gonçalves Dias, mas em fôrmas outras, cada vez menores, até um poema<br />

final que parece evocar apenas a autoria <strong>de</strong> Tiago Lafer. Ainda assim, po<strong>de</strong>mos dizer que os poemas gerados<br />

(<strong>de</strong> 2 a 7) não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> evocar as palavras ausentes nos espaços <strong>de</strong>ixados vazios, ao menos para os leitores,<br />

que sempre têm diante dos olhos a estrofe original inteira e recomposta. Usando a memória <strong>de</strong> curta<br />

duração, po<strong>de</strong>mos nos entregar ao exercício <strong>de</strong> preencher os vazios e recompor a originalida<strong>de</strong> (ou seria a<br />

gonçalvida<strong>de</strong>?) perdida. Nesse caso, são dois processos autorais que se conjugam, mas em situação<br />

hierarquizada: 23 a preeminência cabe aos versos <strong>de</strong> Gonçalves Dias, claro!, e o que propõe Tiago Lafer é a<br />

intromissão <strong>de</strong> uma zona sua <strong>de</strong> autoria na autoria primeira do poeta maranhense. No caso, ao leitor, não<br />

72


esta outra coisa a não ser acompanhar com os olhos essa interferência <strong>de</strong> autorias que se estabelece<br />

progressivamente, até o apagamento aparentemente <strong>de</strong>finitivo <strong>de</strong> uma – a <strong>de</strong> Gonçalves Dias – para a<br />

entronização da outra – a <strong>de</strong> Lafer. Mas mesmo isso é provisório e precário, pois, logo <strong>de</strong> imediato, a estrofe<br />

inteira do poeta maranhense ressurge e se impõe a nossos olhos, como que dizendo que a vitória, mesmo<br />

fugaz, é sempre do escrito que subjaz no palimpsesto. Assim, o que se impõe <strong>de</strong> todo esse périplo é mesmo<br />

o que po<strong>de</strong> ser chamado <strong>de</strong> conjunção <strong>de</strong> regiões <strong>de</strong> autoria, dinamicamente estabelecidas (mas nunca<br />

estabilizadas) na tela do computador.<br />

Com base no que foi discutido e apresentado, po<strong>de</strong>mos concluir que <strong>de</strong> fato toda textualida<strong>de</strong> – como<br />

construção <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> leitura e <strong>de</strong> significação, seja ela em meio impresso, seja em meio eletrônico – é<br />

sempre hipertextualida<strong>de</strong>, à maneira como a enten<strong>de</strong>, entre outros, Gérard Genette:<br />

L’hypertextualité, à sa manière, relève du bricolage. (...) l’art <strong>de</strong> ‘faire du neuf avec du vieux’ a<br />

l’avantage <strong>de</strong> produire <strong>de</strong>s objets plus complexes et plus savoureux que les produits ‘faits express’:<br />

une fonction nouvelle se superpose et s’enchevêtre à une structure ancienne, et la dissonance entre<br />

ces <strong>de</strong>ux éléments coprésents donne sa faveur à l’ensemble. 24<br />

E é justamente a esse conjunto, resultado da dissonância (e não da justaposição ou da mera adição), que<br />

quisemos dar relevo quando falamos do jogo das duas fotografias, ou quando pensamos na ligaçãopassagem<br />

<strong>de</strong> um texto eletrônico a outro. Saliente-se que essa passagem <strong>de</strong> um texto a outro, <strong>de</strong> uma<br />

página a outra, não significa que tenhamos sempre o processo <strong>de</strong> hipertextualização instalado com toda a<br />

pompa e circunstância. Para que isso ocorra, é preciso que o processo <strong>de</strong> autoria se <strong>de</strong>svista <strong>de</strong> sua<br />

autorida<strong>de</strong> e associe ao autor, em <strong>de</strong>finitivo, não uma pessoa empírica, mas uma função do texto. É o que<br />

diz Philippe Bootz <strong>de</strong> suas Stances à Hélène: “...il ne s’agit pas d’un produit uniquement ‘orienté lecteur’,<br />

<strong>de</strong> quelque chose ‘donné à la lecture’, mais d’un projet également ‘orienté auteur’, dans lequel l’acte <strong>de</strong><br />

lecture du lecteur, qui agit sur un leurre, participe à la représentation et fait, dans le point <strong>de</strong> vue <strong>de</strong><br />

l’auteur, partie <strong>de</strong> l’oeuvre”. 25 Em certo sentido, parece se estabelecer entre as funções tradicionais <strong>de</strong> leitor<br />

e autor 26 a mesma interferência que havíamos observado entre as imagens que formavam a ilusão da<br />

tridimensionalida<strong>de</strong>, ou ainda entre um texto e outro no espaço eletrônico. Não que esse permanente<br />

processo <strong>de</strong> construção do texto seja uma responsabilida<strong>de</strong> compartilhada por ambos, 27 mas parece indicar,<br />

antes <strong>de</strong> tudo, uma nova acomodação entre eles (exigindo uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramentos <strong>de</strong> seus espaços e<br />

<strong>de</strong> suas temporalida<strong>de</strong>s). A objetivida<strong>de</strong> do hipertexto não se contenta <strong>de</strong> modo algum com campos<br />

previamente <strong>de</strong>marcados com elementos <strong>de</strong>finidos <strong>de</strong> antemão, atitu<strong>de</strong>, aliás, que já encontrávamos em<br />

toda boa <strong>literatura</strong> da era da imprensa. A incógnita, entretanto, é saber se esse critério ainda permite<br />

estabelecer semelhante juízo <strong>de</strong> valor também para a produção artística realizada em meio digital. Creio<br />

mesmo que tocamos aí em um dos pontos mais importantes para se pensar essas literarieda<strong>de</strong>s digitais.<br />

Se na <strong>literatura</strong> impressa a estabilida<strong>de</strong> da base material da obra exigia dos autores interessados em<br />

aprofundar o jogo literário uma série <strong>de</strong> astúcias para colocar em xeque as expectativas medianas do leitor, 28<br />

nessa ciber<strong>literatura</strong>, a instabilida<strong>de</strong> da base material já coloca justamente como pressuposto essa<br />

maleabilida<strong>de</strong>, essa in<strong>de</strong>finição fundadora. Aqui começa a se vislumbrar, talvez, a utilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse<br />

mapeamento <strong>de</strong> interferências ou dissonâncias entre elementos distintos e agrupados dois a dois, como<br />

73


propusemos acima, entre autor e leitor. O que se quer é enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> que modo essa reversibilida<strong>de</strong> entre<br />

eles não significa um vai-e-vem fechado e inócuo, nem parece se reduzir a uma síntese dialética no sentido<br />

hegeliano, mas que permite, ainda assim, a criação do novo (do novo sentido, da nova leitura, da nova<br />

escrita, da nova sensibilida<strong>de</strong> artística). O autor sempre foi aquela perspectiva que não permitia, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>la, interpretar o texto; mas, tomando alguma distância <strong>de</strong>la, era justamente o que possibilitava fazer<br />

rodar a maquininha <strong>de</strong> associar significantes uns aos outros. Nesse sentido, o autor, até aqui, pô<strong>de</strong> ser<br />

metaforizado como um estranho atrator em torno do qual os significantes eram instalados em um campo<br />

<strong>de</strong> sentidos possíveis. Mas, no caso, esse estranho atrator não tinha como ser <strong>de</strong>slocado materialmente pelo<br />

leitor (daí a afirmação <strong>de</strong> que não era possível entrar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le para gerar interpretações do texto). Ora,<br />

o texto eletrônico é justamente o tipo <strong>de</strong> objeto a ser lido que admite essa manipulação, esse <strong>de</strong>slocamento<br />

material a que o leitor submete a posição do autor.<br />

* * *<br />

Na verda<strong>de</strong>, todas essas relações entre autor e leitor po<strong>de</strong>m ser enxergadas <strong>de</strong> modo mais simples, se não<br />

nos <strong>de</strong>ixamos levar por certo passionalismo teórico. Se abrimos mão <strong>de</strong> opor totalmente escrita à leitura<br />

(sem, é claro, i<strong>de</strong>ntificar totalmente uma a outra), talvez consigamos enten<strong>de</strong>r como elas se <strong>de</strong>sdobram e se<br />

relacionam. Primeiramente, é preciso talvez enfatizar o óbvio e repetir, quantas vezes se fizerem necessárias,<br />

que há uma primeira escrita na gênese da obra, e que ela é incumbência direta e exclusiva do autor. Contudo,<br />

no caso das criações em meio eletrônico, temos <strong>de</strong> fato não uma, mas várias escritas, em que linguagens <strong>de</strong><br />

estratos e estratégias distintas são chamadas a dialogar (diálogos que apresentam resultados mais ou menos<br />

harmônicos, ou até mesmo completamente <strong>de</strong>sarmônicos). Nos chamados geradores automáticos <strong>de</strong> textos<br />

literários, por exemplo, trata-se do diálogo entre linguagens verbais e linguagens <strong>de</strong> programação, em que<br />

a escrita do autor adquire novas ferramentas, novos processos: escrever, agora, não significa apenas enfileirar<br />

palavras, seguindo <strong>de</strong> perto ou <strong>de</strong> longe leis <strong>de</strong> retórica que se estabeleceram ao menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Aristóteles,<br />

passando por Cícero e Quintiliano. De forma bastante distinta, trata-se <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> escrita que implicam<br />

a construção <strong>de</strong> bancos <strong>de</strong> dados, num primeiro momento, e, posteriormente, da construção <strong>de</strong> relações<br />

possíveis e repetitivas entre elementos <strong>de</strong>sses bancos. Tais elementos po<strong>de</strong>m ter tamanhos variáveis e serem<br />

agrupados segundo condições <strong>de</strong> contorno mais ou menos fechadas. E a escolha e a combinação <strong>de</strong> tais<br />

elementos, por exigirem quantida<strong>de</strong>s e velocida<strong>de</strong>s acima da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> processamento do cérebro<br />

humano, <strong>de</strong>vem buscar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> processamento dos sistemas informáticos.<br />

É quando po<strong>de</strong>mos ver, então, como as linguagens <strong>de</strong> programação <strong>de</strong>slizam para <strong>de</strong>ntro do processo <strong>de</strong><br />

criação literária: elas <strong>de</strong>vem estar adaptadas, <strong>de</strong> um lado, aos elementos que constituem os bancos <strong>de</strong> dados<br />

e, <strong>de</strong> outro, à maneira como o autor entrevê os resultados possíveis <strong>de</strong> sua criação, o que inclui os modos<br />

como os leitores vão lidar com o dispositivo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> significantes. E é também aí que o espaço da<br />

autoria se enriquece e se torna mais complexo, com a interferência construtiva do programador. Mesmo<br />

consi<strong>de</strong>rando os casos (raros, bastante raros) em que o criador domina a contento os processos e as<br />

ferramentas <strong>de</strong> programação, mesmo aí, aparecem duas instâncias muito distintas <strong>de</strong> escrita. Uma <strong>de</strong>las é<br />

justamente a da concepção artística ou literária (seja ela verbal, seja visual, seja sonora, separadas ou em<br />

conjunto). O que se preten<strong>de</strong> com isso é gerar significantes por meio <strong>de</strong> sistemas e processos <strong>de</strong><br />

74


manipulação que associam o espontâneo do escritor aos automáticos iterativos do sistema informático. Daí<br />

a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que um programador venha a criar as condições <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> existência e <strong>de</strong><br />

funcionamento do dispositivo produtor <strong>de</strong> significantes. Num primeiro olhar, essa relação entre o<br />

programador e o escritor não seria nada diferente da que se dá, por exemplo, entre o pintor e o artesão<br />

construtor <strong>de</strong> telas, ou o químico produtor <strong>de</strong> tintas especialmente requeridas pelo próprio pintor. Sem os<br />

dois, não haveria pintura. Mas é importante notar que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, a tela sempre fez parte do dispositivo<br />

<strong>de</strong> pintura, ou melhor, ela sempre sustentou a maneira como o pintor dispôs e exibiu as possibilida<strong>de</strong>s do<br />

visível e da visibilida<strong>de</strong>, até a exploração <strong>de</strong> todas as suas características como dispositivo óptico no século<br />

XX. Se, <strong>de</strong> um lado, era construída materialmente pelos artesãos, <strong>de</strong> outro, ela estava completamente<br />

compreendida ou insinuada antes, na maneira como os pintores buscavam explorar o visível e a visibilida<strong>de</strong>.<br />

Assim, os artesãos acabavam apenas realizando o projeto <strong>de</strong> um suporte já previsto pelas lógicas expressivas<br />

da pintura. Porém, algo completamente distinto ocorre na ciber<strong>literatura</strong> (e, claro, em toda a ciberarte). As<br />

ferramentas <strong>de</strong> programação não são a simples materialização <strong>de</strong> um dispositivo <strong>de</strong> expressão previamente<br />

elaborado ou i<strong>de</strong>alizado que já faça parte das lógicas expressivas da <strong>literatura</strong> eletrônica. A bem da<br />

verda<strong>de</strong>, essas ferramentas <strong>de</strong> programação dialogam com as várias linguagens (verbal, visual, gestual etc.),<br />

<strong>de</strong> modo que não haja uma antecedência fechada <strong>de</strong> umas com relação às outras. Dito <strong>de</strong> outra maneira, a<br />

conjunção das linguagens <strong>de</strong> programação com a linguagem verbal, por exemplo, po<strong>de</strong> fazer surgir uma<br />

outra linguagem, um terceiro espaço expressivo, que, além <strong>de</strong> ser informático e verbal, é também<br />

informático-verbal. E se falamos <strong>de</strong> uma prepon<strong>de</strong>rância do escritor com relação ao programador, isso<br />

correspon<strong>de</strong> apenas e tão-somente ao fato <strong>de</strong> que buscamos ler no objeto artístico não os <strong>de</strong>talhes e as<br />

peculiarida<strong>de</strong>s da programação, mas seus (d)efeitos, entendidos agora como significantes inseridos não<br />

mais em lógicas <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> lógica e tecnológica, porém recortados sobre um pano <strong>de</strong> fundo estético.<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma questão <strong>de</strong> foco.<br />

Num segundo momento, esse dispositivo criado e concebido por escritor e programador é passado a um<br />

leitor que po<strong>de</strong>, por exemplo, ser solicitado a manipular o dispositivo, para que este entregue na tela, como<br />

resultado, uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> palavras ou expressões. Nesse caso, alguns vêem uma in<strong>de</strong>pendência absoluta do<br />

leitor; afirma-se comumente que se trata <strong>de</strong> uma leitura que é escrita e, mais, que é escrita absolutamente<br />

<strong>de</strong>svinculada <strong>de</strong> qualquer escrita do criador do sistema. Com o que se <strong>de</strong>creta luto oficial pela morte do<br />

autor tradicional, solapado em seu papel <strong>de</strong> criador por esse novo leitor – alforriado da submissão ao<br />

escritor graças às tecnologias telemáticas, po<strong>de</strong>ndo então escrever e criar por sua própria conta e risco. Nada<br />

mais enganoso, pois se esquece, em tal raciocínio, <strong>de</strong> levar em conta que essa escrita do leitor é na verda<strong>de</strong><br />

e sempre uma escrita segunda, que só pô<strong>de</strong> ocorrer graças às muitas interferências entre as linguagens do<br />

programador e as linguagens várias do escritor. Então há ainda uma relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência entre a escrita<br />

<strong>de</strong>ste e a escrita do leitor. Po<strong>de</strong>mos dizer que a primeira é solidária da programação (quer dizer, que<br />

estabelece um diálogo com esta). Já a segunda – a escrita do leitor –, mais do que solidária, é o resultado<br />

da programação; ela é o próprio programado. Em outras palavras, essa escrita do leitor não po<strong>de</strong><br />

estabelecer nenhum diálogo com os resultados da programação, pois ela já é esses resultados. Todavia, não<br />

se confunda programado com previamente <strong>de</strong>terminado. Quando falamos que a escrita do leitor é aquilo<br />

que foi programado, isso não significa que ela já esteja totalmente tramada antes <strong>de</strong> ser materializada; que<br />

75


seus limites e condições <strong>de</strong> contorno já sejam pre<strong>de</strong>finidos pela conjunção entre as linguagens <strong>de</strong><br />

programação e as linguagens do escritor. Temos aí aquele mesmo <strong>de</strong>terminismo sem previsibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que<br />

acima se falou acerca dos fractais e da ciência do caos: a escrita do leitor é planejada no sentido <strong>de</strong> ser<br />

<strong>de</strong>terminada por um aparato que conjuga linguagens <strong>de</strong> programação e linguagens <strong>de</strong> criação – estas, do<br />

escritor; aquelas, do programador –, sem que se possa, contudo, prever (às vezes nem mesmo nos <strong>de</strong>talhes<br />

mais grosseiros) seus resultados. Entre leitor e escritor, enfim, instala-se não a previsibilida<strong>de</strong> limitante dos<br />

sistemas fechados, mas o <strong>de</strong>terminismo aberto que toda leitura po<strong>de</strong> ter e <strong>de</strong>ve assumir.<br />

Interferências e Dualida<strong>de</strong>s<br />

Interferências, como a citada entre linguagens do programador e linguagens do escritor, po<strong>de</strong>m remeter<br />

àquilo que Merleau-Ponty, em Le Visible et l’Invisible, chama <strong>de</strong> reversibilida<strong>de</strong>. Talvez seja um dos conceitos<br />

que possibilitem até mesmo melhor dar conta <strong>de</strong>ssa confluência <strong>de</strong> textos, <strong>de</strong> páginas, <strong>de</strong> linguagens, <strong>de</strong><br />

códigos, que é a ciber<strong>literatura</strong>. Em conseqüência, seja-nos permitido, nas linhas que se seguem, pensar essa<br />

poesia eletrônica, sobretudo no que diz respeito ao diálogo entre verbal e visual, buscando apoio e<br />

companhia nas reflexões do autor <strong>de</strong> Le Visible et l’Invisible. Em todo caso, tais questões permitirão mapear<br />

não apenas os elementos envolvidos na conjunção verbal-visual, mas em várias outras.<br />

Ao menos um dos pontos <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> Merleau-Ponty para pensar a reversibilida<strong>de</strong> é a imagem (que ele<br />

apren<strong>de</strong> com Husserl) do corpo próprio, <strong>de</strong> sua capacida<strong>de</strong> reflexiva: nele, as mãos se tocam e são tocadas<br />

uma pela outra. Essa reflexivida<strong>de</strong> corpórea é não só confluência do que toca ao que é tocado, mas, em<br />

termos mais gerais, o entrelaçamento entre o corpo que percebe e o mundo objetivo dado à percepção. Os<br />

movimentos próprios do corpo perceptivo são <strong>de</strong>senhados sobre o mundo que eles interrogam, e ambos –<br />

corpo perceptivo e mundo das coisas percebidas – vêm dialogar numa mesma instância, sem que se reduzam<br />

um a outro, como “as duas meta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma laranja”. 29 Por outro lado, mesmo a visão, ao contrário do que<br />

a experiência empírica nos po<strong>de</strong>ria sugerir, traz em si essa reflexivida<strong>de</strong> corpórea. Ao que tudo indica, não<br />

é possível nos ver vendo. Mas, no caso, um tal juízo <strong>de</strong>rivaria <strong>de</strong> um aparelho analítico já superposto,<br />

sutilmente, ao aparelho perceptivo corpóreo, impondo à reflexão corpórea o viés <strong>de</strong> uma análise<br />

intelectualista, impedindo-nos <strong>de</strong> assimilar o fato <strong>de</strong> que “dès que je vois, il faut (comme l’indique si bien<br />

le double sens du mot) que la vision soit doublée d’une vision complémentaire ou d’une autre vision: moimême<br />

vu du <strong>de</strong>hors, tel qu’un autre me verrait, installé au milieu du visible, en train <strong>de</strong> le considérer d’un<br />

certain lieu”. 30 Assim, o corpo, como visibilida<strong>de</strong>, seria uma espécie <strong>de</strong> condição incarnada das possibilida<strong>de</strong>s<br />

da existência. Não haveria, então, nem mundo exterior limitado às coisas, nem coisas colocadas à parte,<br />

enfurnadas em sua região ôntica, mas uma só visibilida<strong>de</strong> que, como a poesia, torna visíveis os pensamentos<br />

e as falas, faz com que o discurso do ser e o ser que o enuncia sejam os gestos e as poses <strong>de</strong> uma posse<br />

inaugural do mundo vivido.<br />

Desse ponto <strong>de</strong> vista, a reversibilida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>ria seria entendida como essência das coisas, nem mesmo como<br />

categoria generalizante. Reversibilida<strong>de</strong> aqui <strong>de</strong>screve a possibilida<strong>de</strong> nossa 31 <strong>de</strong> nos dotarmos <strong>de</strong> objetos ao<br />

mesmo tempo que nos instalamos (em que somos e estamos) em meio aos objetos. No caso do leitor da obra<br />

76


(seja ela composta ou não <strong>de</strong> uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagens e códigos) e da leitura, há alguns elementos a<br />

serem consi<strong>de</strong>rados. Primeiramente, apre(e)ndo da reversibilida<strong>de</strong> a lição <strong>de</strong> que, como leitor, não tenho como<br />

não dotar-me <strong>de</strong> uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitores. Isso implica inspecionar o ato <strong>de</strong> leitura e ver nele o que antece<strong>de</strong><br />

tanto a organização do campo <strong>de</strong> sentidos possíveis, em primeiro lugar, quanto, em seguida, a elaboração <strong>de</strong><br />

significados. Com isso, apontamos, no campo <strong>de</strong> leitura, para aquilo que pela linguagem vem dos outros e pelos<br />

outros; aquilo que, abrindo mão <strong>de</strong> uma origem mítica ou divina das línguas, <strong>de</strong>svela nossa participação em<br />

uma esfera <strong>de</strong> intersubjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a linguagem é o sintoma mais evi<strong>de</strong>nte e primeiro.<br />

Dessa maneira, a reversibilida<strong>de</strong> implica um textualizar-se: o leitor se coloca em meio aos objetos a serem<br />

lidos e partilha <strong>de</strong>sse disponibilizar-se à leitura. Uma conseqüência direta <strong>de</strong>ssa textualização do leitor é o<br />

fato <strong>de</strong> que ele constitui textos a serem dispostos no espaço dos sentidos possíveis e atravessados por<br />

significações construídas na e pela leitura. Daí assumir ele, leitor, também o papel <strong>de</strong> autor; no caso, autor<br />

<strong>de</strong> si próprio. Ao ler um texto, o leitor escreve, ainda que pouco, um tanto <strong>de</strong> sua história, <strong>de</strong> sua vida; ele<br />

inscreve em seu ser algum ritmo <strong>de</strong> palavras, algum movimento <strong>de</strong> fala, alguma imagem verbalizada<br />

(verbalizável). Daí não ser talvez apropriado falar <strong>de</strong> composição ou <strong>de</strong> justaposição, ou até mesmo <strong>de</strong> síntese<br />

dialética, entre a leitura do texto e a leitura <strong>de</strong> si. Como afirma Merleau-Ponty, 32 se queremos propor uma<br />

figura metafórica para a relação entre uma e outra, pensemos em ambas como direito e avesso reversíveis,<br />

como dois segmentos <strong>de</strong> um mesmo percurso circular, opostos mas também reversíveis; ou como os dois lados<br />

da fita <strong>de</strong> Moebius que, <strong>de</strong> fato, fazem apenas um. A partir daí, po<strong>de</strong>-se falar com certeza <strong>de</strong> uma<br />

reversibilida<strong>de</strong> entre leitor e autor. Não que um se reduza ao outro; ou que haja apenas leitores, mesmo<br />

dispondo significantes verbais em uma ca<strong>de</strong>ia própria <strong>de</strong> associações; ou que existam apenas autores,<br />

alinhavando significações em seu campo <strong>de</strong> sentidos possíveis. Entre leitor e autor se estabelece uma<br />

duplicida<strong>de</strong> anterior à materialização da linguagem em forma <strong>de</strong> escrita: o leitor que sou agora <strong>de</strong> um dado<br />

texto busca, num primeiro momento, a perspectiva do autor que eu já era <strong>de</strong> minhas palavras; já o autor <strong>de</strong><br />

quem julgo receber o texto não é apenas o outro que produziu esse texto, mas é também uma dada maneira<br />

<strong>de</strong> manifestar a originalida<strong>de</strong> com que me insiro na língua por meio <strong>de</strong>sse texto e <strong>de</strong>ssa linguagem.<br />

Mas, se tocamos nas relações entre autoria e leitura (discutidas acima), foi apenas para aproximá-las <strong>de</strong><br />

algumas questões atinentes à reversibilida<strong>de</strong> e mostrar o interesse no emprego <strong>de</strong>sse conceito. Voltando à<br />

utilização do visual na criação <strong>de</strong> uma poesia eletrônica, é importante, nessa perspectiva da reversibilida<strong>de</strong>,<br />

aprofundar ainda alguns elementos ligados à visão. Afirmamos anteriormente que não po<strong>de</strong>mos nos ver<br />

vendo diretamente, mas que po<strong>de</strong>mos, assim mesmo, <strong>de</strong>svelar a situação <strong>de</strong> reversibilida<strong>de</strong> entre vi<strong>de</strong>nte e<br />

visível quando nos damos conta da participação dos olhares <strong>de</strong> outros em nosso próprio olhar e, sobretudo,<br />

da presença do visível das coisas em nossa visibilida<strong>de</strong>. Ora, talvez esteja justamente no ciberespaço uma<br />

possibilida<strong>de</strong> imediata <strong>de</strong> simular concretamente tal situação. Nele, estaríamos em situação <strong>de</strong> arquitetar<br />

uma ficção do perceptivo, essa que nos dá chance <strong>de</strong> encenar a situação <strong>de</strong> nos ver vendo, algo que vai<br />

além do vivendo (esse viver inautêntico <strong>de</strong> que fala Hei<strong>de</strong>gger). O ciberespaço po<strong>de</strong>, então, ser a<br />

celebração ou a instauração <strong>de</strong> uma nova esfera mítica, possibilitando a produção <strong>de</strong> avatares que, no<br />

exterior <strong>de</strong> nossa capacida<strong>de</strong> visual, criam perspectivas, objetos e esboçam tracejados em que nos<br />

reconhecemos e até nos vemos vendo.<br />

77


Daí que essa reflexivida<strong>de</strong> corpórea 33 aponta para a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma comunhão motivada entre visual<br />

e verbal, do mesmo tipo daquela que verificamos entre o tangível e o visível. Entre estes, também há mais<br />

do que uma coincidência causal; há o liame efetivo <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> construída no/pelo sujeito perceptivo:<br />

“Il faut nous habituer à penser que tout visible est taillé dans le tangible, tout être tactile promis en quelque<br />

manière à la visibilité, et qu’il y a empiétement, enjambement, non seulement entre le touché et le<br />

touchant, mais aussi entre le tangible et le visible qui est incrusté en lui”. 34 Além disso, essa relação entre o<br />

tocar e o ver não se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> <strong>de</strong> modo algum do pensar e do dizer, todos eles po<strong>de</strong>ndo ser entendidos<br />

como gestos com que nos inauguramos para o mundo e, pelos quais, um mundo se nos inaugura. Então a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> associar também a esses visíveis uma disposição que resvala tanto para a diacronia quanto<br />

para a sincronia. É como Merleau-Ponty diz das cores percebidas: elas representam um certo nó na trama<br />

do simultâneo e do sucessivo. 35 Da mesma maneira, é um nó <strong>de</strong>ssa espécie que buscamos, um nó entre o<br />

simultâneo da imagem e o sucessivo da linguagem verbal, abrindo pontos <strong>de</strong> sucessivida<strong>de</strong> no simultâneo<br />

da imagem e, concomitantemente, brechas <strong>de</strong> simultaneida<strong>de</strong> no sucessivo das palavras. Nesse sentido, é<br />

preciso que habitemos as imagens como quem lê uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> palavras, inaugurando correntes <strong>de</strong><br />

significantes e re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentidos, flexionando e conjugando cores, formas, aparências, buscando acima da<br />

disposição física ou óptica das imagens um estado <strong>de</strong> dicionário e uma disposição sintática.<br />

Realizar tais tarefas correspon<strong>de</strong> a propor um novo conjunto <strong>de</strong> retóricas para o texto eletrônico, à<br />

semelhança do que foi feito, durante a Ida<strong>de</strong> Média, para a escrita com base em retóricas clássicas. 36 Essas<br />

retóricas do escrito e do impresso <strong>de</strong>senvolveram elementos e processos que já materializavam, em instâncias<br />

distintas, a sucessivida<strong>de</strong> e a simultaneida<strong>de</strong>. De fato, não há dificulda<strong>de</strong>s maiores para enten<strong>de</strong>r questão<br />

bastante evi<strong>de</strong>nte: à sucessivida<strong>de</strong> sem volta dos fonemas, como ocorria na oralida<strong>de</strong>, a técnica da escrita<br />

fixou como simultâneos os significantes verbais, concretamente, colocando-os nas mãos do leitor ao longo<br />

das páginas todas. A obra inteira já estava disponível <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início e não havia necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esperar nada<br />

ou ninguém para chegar ao fim ou mesmo para atingir qualquer ponto <strong>de</strong>la. 37 Porém, o processo <strong>de</strong> leitura 38<br />

ainda pagava tributo à seqüencialida<strong>de</strong> da fala, quer dizer, à impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o leitor manipular os<br />

significantes todos, seja pelos limites <strong>de</strong> seu campo visual, seja por sua reduzida capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> memória. Em<br />

resumo, os significantes eram dados todos como simultâneos, mas os limites físicos do leitor impediam que<br />

fossem tratados e tornassem disponíveis à leitura simultaneamente. Dessa maneira, a divisão em páginas, em<br />

tamanhos que também não ultrapassaram nunca os limites do campo visual, acabou materializando uma<br />

sucessivida<strong>de</strong> na já materializada simultaneida<strong>de</strong> do impresso. Ora, no meio eletrônico, sucessivida<strong>de</strong> e<br />

simultaneida<strong>de</strong> parecem nunca estar materializadas <strong>de</strong> modo distinto, ou mesmo <strong>de</strong>finitivo. Entre elas,<br />

instala-se uma ligação imediata. Basta pensar em um exemplo muito simples: uma expressão sublinhada numa<br />

dada página eletrônica, e que leva a uma outra, po<strong>de</strong> perfeitamente abrir esta segunda ao lado da primeira,<br />

transformando por simples opção do leitor a sucessivida<strong>de</strong> em simultaneida<strong>de</strong>, concretamente, o que caracteriza,<br />

mais do que uma justaposição, uma possível conjunção imediata e direta entre uma e outra.<br />

Cabe, então, no caso do espaço digital, examinar como funciona essa reversibilida<strong>de</strong> nas imagens e nas palavras,<br />

ou melhor, na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir um duo imagem-palavra. O sentido <strong>de</strong>ste po<strong>de</strong> estar imediatamente<br />

apontado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da leitura, materialmente exposto e configurado pelas interativida<strong>de</strong>s e comandos<br />

associados a ele. O nó (ligação ou link) que remete concretamente a outros nós, estabelecendo sucessivida<strong>de</strong>s<br />

78


evi<strong>de</strong>ntes ou insuspeitas, po<strong>de</strong> já estar indicando, nesse mesmo nó, um outro, que se evi<strong>de</strong>ncia na trama do<br />

simultâneo e do sucessivo. Todavia, para isso, não basta apenas tornar imagens e palavras correspon<strong>de</strong>ntes e<br />

análogas (e clicáveis) entre si. É preciso que ambas intercambiem sua maneira própria <strong>de</strong> dar expressivida<strong>de</strong><br />

(visual e verbal) às coisas e às pessoas envolvidas. Ou seja, temos que dispor palavras que levem tanto ao verbal<br />

quanto ao visual; temos que expor imagens que remetam ao verbal e também ao visual. Nesse caso, a palavra<br />

não po<strong>de</strong> ser apenas significações remetendo a sentidos, mas espessura, tactilida<strong>de</strong>, cor e sombras. É preciso que<br />

ela – palavra – indique, para além dos ícones, as fisionomias e as aparências das coisas e das pessoas do mundo,<br />

sem que seja necessariamente revestida ou ilustrada <strong>de</strong> cores, formas, ornada <strong>de</strong> imagens e figuras. E essa<br />

palavra, assim muda ou emu<strong>de</strong>cida precisamente por ser palavra, por ser significante, não saberia isentar-se da<br />

expressivida<strong>de</strong>, e po<strong>de</strong>ria retomar processo semelhante àquele que, num Mallarmé ou num Góngora,<br />

proporcionou a volta a um estado anterior às significações sedimentadas. Palavras que, então, falavam não <strong>de</strong><br />

idéias nem <strong>de</strong> argumentos, mas <strong>de</strong> gestos e horizontes <strong>de</strong> sentidos possíveis. Da mesma maneira, não se po<strong>de</strong><br />

admitir que a figura seja sempre e apenas uma certa relação entre forma e fundo. Mais do que se apresentar<br />

como disposição e fisionomia, é preciso que ela vá além <strong>de</strong> uma inserção (sempre) parcial no campo visual. Mas,<br />

para isso, não significa que a imagem <strong>de</strong>va começar necessariamente por travestir-se <strong>de</strong> alegoria, ou que remeta<br />

necessária e invariavelmente a algum conteúdo lingüístico. É imperioso, ao contrário, que assuma ares, pompa<br />

e circunstância <strong>de</strong> palavra, <strong>de</strong> léxico, <strong>de</strong> significação; que ela possa produzir campos <strong>de</strong> escolhas e <strong>de</strong><br />

combinações. E é assim então que o duo imagem-palavra <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser palavra ilustrada por imagem, ou imagem<br />

explicada por palavra, para tornar-se uma terceira coisa, ao mesmo tempo palavra vista (e não apenas visível) e<br />

imagem verbalizada (e não só verbalizável).<br />

* * *<br />

Também <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sses espaços <strong>de</strong> interferências, a dualida<strong>de</strong> entre linear e não-linear é das mais<br />

freqüentes, o que talvez até explique parcialmente a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> bobagens já ditas a esse respeito.<br />

Eduardo Kac, por exemplo, talvez prejudicado pelos resquícios <strong>de</strong> português que ainda teimam em<br />

perturbar seu inglês castiço, afirma que “the sequential structure of a line of verse corresponds to linear<br />

thinking, whereas the simultaneous structure of a concrete or visual poem corresponds to i<strong>de</strong>ographic<br />

thinking”. 39 Nem as leituras mais equivocadas do Discurso do Método conseguiriam reduzir a or<strong>de</strong>m do<br />

pensamento à seqüência linear dos gestos corporais com que se percorre um dado objeto. Talvez nem as<br />

mais <strong>de</strong>svairadas correntes empíricas proporiam tal aberração. Com efeito, mesmo a linha, como ente<br />

geométrico, não po<strong>de</strong> ser reduzida a tal linearida<strong>de</strong> (<strong>de</strong>sculpando-me pelo eventual paradoxo), pois o<br />

infinito para on<strong>de</strong> ela aponta em suas duas extremida<strong>de</strong>s já se encontra na quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> qualquer segmento finito que <strong>de</strong>la se escolha. Nesse tipo <strong>de</strong> pensamento – como o <strong>de</strong> Kac –, a leitura<br />

ganharia foros <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> irregularida<strong>de</strong> apenas no meio eletrônico, graças à<br />

<strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> e à irregularida<strong>de</strong> da base material dos textos criados para o ciberespaço. Ora, isso que se<br />

diz, superficialmente, do texto eletrônico nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong> com relação às obras impressas: em<br />

qualquer caso, a leitura nunca foi obrigatoriamente linear. Sobre seus holopoemas, Eduardo Kac diz que<br />

eles <strong>de</strong>vem ser lidos “in a broken fashion, in an irregular and discontinuous movement, and it will change<br />

as it is viewed from different perspectives”. 40 A linearida<strong>de</strong> e a rigi<strong>de</strong>z por certo estão intimamente<br />

associadas à base material do texto impresso, mas <strong>de</strong> modo algum são elementos essenciais a sua leitura e<br />

79


a sua escrita. Por outro lado, é certo que essa ciberescrita exige a apreensão <strong>de</strong> uma nova sintaxe, no que<br />

Kac está rigorosamente correto, 41 ainda que eu prefira falar em retórica e não em sintaxe.<br />

Mas que sintaxe, ou melhor, que retórica é essa, como ela se <strong>de</strong>senvolve nesse campo eletrônico <strong>de</strong><br />

misturas semióticas, <strong>de</strong> baralhamentos <strong>de</strong> significantes, <strong>de</strong> clivagens e cristalizações <strong>de</strong> significados<br />

heterogêneos? Que retórica da escrita eletrônica é essa, então, que ainda mal tenta se esboçar, mas <strong>de</strong><br />

que se exige resolver, materialmente, uma série <strong>de</strong> contradições (linear e não-linear, visual e verbal,<br />

sincrônico e diacrônico etc.)? E, para ser mais específico, que gramática é essa que se anuncia nos<br />

processos eletrônicos <strong>de</strong> interferência entre verbal e visual? Por certo, tal dissonância entre esses dois<br />

materiais é das questões mais instigantes que se colocam para a assim chamada criação poética em meio<br />

eletrônico. Enten<strong>de</strong>r como ambos po<strong>de</strong>m interferir positiva ou negativamente, 42 proporcionando um<br />

espaço <strong>de</strong> significantes não mais subordinado exclusivamente a um ou a outro, eis o <strong>de</strong>safio e o<br />

interesse <strong>de</strong>ssas cibercriações, que, assim, po<strong>de</strong>riam finalmente ser classificadas como literárias. Todavia,<br />

na imensa maioria dos casos, essas obras, criadas especificamente para o ciberespaço, ainda se obrigam<br />

a uma disjunção redutora: ou investem na criação verbal, ou – o que é bem mais freqüente – entregamse<br />

apenas à ornamentação visual baseada nas capacida<strong>de</strong>s dos programas <strong>de</strong> computadores disponíveis.<br />

No caso, há um aprendizado a se fazer com certas tradições literárias contemporâneas da imprensa e<br />

que se espalharam por épocas e regiões variadas: os calligrammes <strong>de</strong> Apollinaire, poemas <strong>de</strong> Tardieu, <strong>de</strong><br />

Cummings, <strong>de</strong> Butor, o Coup <strong>de</strong> Dés e as antecipações do Livre, <strong>de</strong> Mallarmé, os lipogramas e os<br />

labirintos da <strong>literatura</strong> ibérica dos séculos XVI, XVII e XVIII, as carmina figurata (anexo 2) e os rébus 43 da<br />

tradição medieval etc.<br />

Tudo isso está ligado, <strong>de</strong> alguma forma, a um antigo projeto <strong>de</strong> conciliar o alfabético e o figurativo, em<br />

outras palavras, o verbal e o visual, fugindo a uma escolha exclu<strong>de</strong>nte entre a figuração do i<strong>de</strong>ograma e<br />

a abstração do alfabeto. 44 Todavia, em tempos <strong>de</strong> <strong>literatura</strong> impressa, tais oscilações da criação literária<br />

eram submetidas a um rigoroso dispositivo <strong>de</strong> disseminação: uma vez escolhido o ponto <strong>de</strong> construção<br />

da obra literária, nessa reta que vai do verbal ao visual, a colocação no espaço plano e imutável da folha<br />

impressa impedia novas escritas, isto é, quaisquer modificações nesse contrato já firmado entre visual e<br />

verbal. Fosse uma obra mais próxima do verbal, como a escrita ropálica (anexo 3) fosse uma criação<br />

intermediária, como um labirinto (anexo 4) ou uma mais próxima do imagético, como um emblema<br />

(anexo 5) sua localização a meio caminho entre o verbal e o visual, ou mais próxima <strong>de</strong> um ou <strong>de</strong> outro,<br />

já estava <strong>de</strong>finida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua impressão. Em tempos <strong>de</strong> ciberespaço e <strong>de</strong> ferramentas eletrônicas <strong>de</strong> leitura<br />

e divulgação, o texto eletrônico po<strong>de</strong> <strong>de</strong>slocar-se continuamente entre um e outro dos dois pólos, como<br />

afirma Fabio Doctorovich: “... los límites <strong>de</strong> la <strong>literatura</strong> se <strong>de</strong>splazan gradualmente al punto en que<br />

<strong>de</strong>beríamos preguntarnos si la noción <strong>de</strong> <strong>literatura</strong> implica principalmente palabra escrita, o si esta<br />

afirmación pue<strong>de</strong> <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> ser cierta en algún futuro cercano”. 45<br />

Mas há outros complicadores rondando essa história. Para introduzir as imagens na tela, faz-se uso <strong>de</strong> uma<br />

série <strong>de</strong> operações permitidas pelas ferramentas <strong>de</strong> processamento, armazenagem e transmissão <strong>de</strong> dados.<br />

Com isso, a ligação do visual com o verbal <strong>de</strong>rivaria <strong>de</strong> uma potencialida<strong>de</strong> tecnológica impondo <strong>de</strong><br />

antemão seus significados oriundos <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>miurgia maquínica (mas, parece, paradoxalmente propostos<br />

80


por um Deus ex machina). No caso, a criação literária <strong>de</strong>veria, então, insurgir-se contra esse <strong>de</strong>terminismo<br />

técnico, como única forma <strong>de</strong> resguardar-se como arte. Não se trata <strong>de</strong> advogar para o artista o papel do<br />

Prometeu sacrificado em prol da humanida<strong>de</strong>; talvez a melhor figura seja a <strong>de</strong> um Sísifo muito contente <strong>de</strong><br />

sua brinca<strong>de</strong>ira, essa <strong>de</strong> empurrar rochas morro acima e vê-las <strong>de</strong>spencar morro abaixo, sem se <strong>de</strong>ixar<br />

esmagar por elas, para recomeçar tudo mais uma vez, incessantemente. A criação Abyssmo (Asz, módulo H-<br />

An), que o autor, Fabio Doctorovich, insere no gênero “hiperpoesia”, 46 parece tentar semelhante empreita.<br />

Ela nos permite uma escolha inicial entre uma advertencia, uma teoría e la obra ela mesma, tudo isso para<br />

que entremos, leitores ladinos e crianças sabidas, diretamente nesse hipertexto que espreita expectativas e<br />

páginas. Todavia, parece que tanto a advertência quanto a abordagem teórica não se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>m em<br />

momento algum da navegação pelas páginas <strong>de</strong>ssa criação <strong>de</strong> Doctorovich: mesmo que não se entre em<br />

nenhuma das duas, a passagem <strong>de</strong> uma página a outra, <strong>de</strong> um evento a outro, <strong>de</strong> uma interação a outra<br />

não abre mão jamais <strong>de</strong>ssa precavida ligação com os significantes, todos eles submetidos a um exaustivo<br />

inventário <strong>de</strong> operações que encontramos nos editores <strong>de</strong> texto ou <strong>de</strong> HTML, nos manuais <strong>de</strong> autoaprendizagem<br />

<strong>de</strong> Java ® etc. E não ficamos seguros, em momento algum, <strong>de</strong> aceitar que uma pretensa<br />

“repetitión ‘cuasimecánica’ como método compositivo visual”, 47 invocada pelo autor, possa mesmo ser<br />

consi<strong>de</strong>rada uma saída convincente para essa poesia eletrônica.<br />

A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> algumas belas associações <strong>de</strong> imagens, os elementos verbais empregados por Doctorovich são<br />

pobres e, dada sua estreiteza, não conseguem senão chamar a atenção para a utilização competente da<br />

programação visual e dos programas <strong>de</strong> edição eletrônica. De toda maneira, temos alguns sintomas <strong>de</strong>sse<br />

processo que já foi chamado <strong>de</strong> “iconização do verbal”. 48 E nem se po<strong>de</strong> afirmar que tal processo<br />

testemunhe uma alteração nos referenciais epistemológicos, ou uma mudança nos padrões culturais, ou<br />

mesmo um salto na complexida<strong>de</strong> dos dispositivos tecnológicos <strong>de</strong> armazenamento e circulação <strong>de</strong><br />

informações. Essa iconização do verbal tem representado, muito freqüentemente, apenas a subserviência<br />

do verbal ao imagético, implicando um empobrecimento gritante no que supostamente é criação literária<br />

ou poética, empobrecimento também advindo <strong>de</strong> um apagamento do verbal em <strong>de</strong>trimento do interativo,<br />

do iterativo, do automático.<br />

Se, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Sadin, estamos assistindo à emergência <strong>de</strong> uma “economia digital que <strong>de</strong>senvolve<br />

tensões tipológicas por efeito <strong>de</strong> contigüida<strong>de</strong>”, 49 é preciso dar a <strong>de</strong>vida voz, espaço e ocasião a essas<br />

contigüida<strong>de</strong>s, sob pena <strong>de</strong> elas se transformarem rápida e inapelavelmente em formas já bem conhecidas<br />

<strong>de</strong> submissão ou <strong>de</strong> reducionismo <strong>de</strong> uma linguagem a outra. Muito facilmente, essas tensões tipológicas<br />

po<strong>de</strong>m buscar o lenitivo reconfortante e redutor do imagético apenas, com o que essa pretensa “iconização<br />

do verbal” se torna tão-somente iconização pura e dura. No caso, a linguagem verbal não encontra lugar<br />

ou vez, sobretudo quando se instala não uma “circulação fluida” (como afirma Sadin) entre os códigos e os<br />

objetos <strong>de</strong> diferente natureza, mas uma celerida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senfreada ou uma vagareza regida totalmente pelos<br />

instrumentos e processos informáticos. No contrapelo, isso que Sadin chama <strong>de</strong> gesto poético 50 é o único<br />

capaz <strong>de</strong> quebrar a rigi<strong>de</strong>z autoritária com que a tecnologia nos mostra sua face e seus po<strong>de</strong>res. Talvez apenas<br />

o poético seja a instância a que po<strong>de</strong>mos fazer apelo para colocar em rotação os diferentes materiais<br />

significantes, sem que eles carreguem hierarquias preestabelecidas ou imponham efeitos redutores como o<br />

apontado acima. A bem da verda<strong>de</strong>, as únicas hierarquias admissíveis <strong>de</strong>vem mesmo ser as do poético,<br />

81


incomodando velhos hábitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>codificação e perspectivas preguiçosas <strong>de</strong> leitura. No caso das hiperficções,<br />

por exemplo, é preciso encontrar uma estratégia <strong>de</strong> criação que saiba acomodar os jogos da interativida<strong>de</strong> e<br />

as enganosas facilida<strong>de</strong>s do imagético, aos prazeres da narração, ao contrário do que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Jean Clément. 51<br />

Voltando ao principal, isto é, às dissonâncias e interferências entre visual e verbal na poesia eletrônica,<br />

po<strong>de</strong>-se afirmar que as imagens <strong>de</strong>vem aparecer na tela <strong>de</strong> forma a convocar ou permitir <strong>de</strong>terminadas<br />

perspectivas, <strong>de</strong>senhando certos traços <strong>de</strong> olhares, inclusive <strong>de</strong> outros. Habitando esse espaço <strong>de</strong><br />

visualida<strong>de</strong>s várias, o leitor po<strong>de</strong>rá, então, presenciar e perceber a instalação do verbal nas/como imagens.<br />

Teremos, nesse caso, a conformação <strong>de</strong> um espaço <strong>de</strong> percepções (não apenas visuais) a que o corpo e até<br />

mesmo os gestos do leitor são chamados e expostos à gestualida<strong>de</strong> das palavras. Dessa forma, é a própria<br />

visibilida<strong>de</strong> que (se) abre (em) espaços e tempos para o verbal, permitindo inscrever uma semantização em<br />

cada movimento <strong>de</strong> imagens, em cada <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> ícones, em toda interação do leitor com a tela<br />

através <strong>de</strong> teclado e mouse. É como se “partes mascaradas” 52 da imagem revelassem finalmente uma<br />

espessura verbal, um enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> significantes e <strong>de</strong> sememas. De fato, impõe-se construir novas<br />

retóricas <strong>de</strong> produção para essa ciberpoesia, como resposta à mudança do meio impresso para o meio<br />

eletrônico. Explico melhor: a <strong>literatura</strong> da tradição impressa já apresentava sutilezas e complexida<strong>de</strong>s<br />

próprias a suas estratégias <strong>de</strong> produção, <strong>de</strong> disseminação e sedimentação dos textos. Parece simplismo<br />

apenas dizer que “as formas clássicas da linguagem tornaram-se ineficazes”, ou afirmar que a complexida<strong>de</strong><br />

é apanágio apenas dos instrumentos e processos ligados às tecnologias telemáticas. 53 Quando se passa do<br />

meio impresso ao digital (coisa que, ouso crer, ocorre em toda transição <strong>de</strong> meios e modos <strong>de</strong> produção),<br />

há uma espécie <strong>de</strong> inversão <strong>de</strong> papéis com respeito a alguns elementos. Vá lá o exemplo do trabalho com<br />

o estrato sonoro nos poemas. Por menos sutil que seja um poema construído para o meio impresso, ele<br />

sempre po<strong>de</strong>rá guardar surpresas e efeitos inesperados, alguns <strong>de</strong> que o leitor nem mesmo se dá conta<br />

explicitamente. A título <strong>de</strong> exemplo, tomemos uma criação minha e <strong>de</strong> Gilbertto Prado, Ponto, realizada no<br />

longínquo ano <strong>de</strong> 1997. Naquele momento, o poema – isto é, a matéria verbal – era escrito por mim como<br />

que para o espaço impresso, sem nenhuma estratégia aparente <strong>de</strong> criação eletrônica, coisa que era então<br />

estabelecida a posteriori. No caso <strong>de</strong>sse Ponto, no que diz respeito à criação verbal, produzi certo jogo<br />

sonoro repetido em todos os dísticos: as palavras do primeiro verso, da primeira à última, faziam rimas<br />

toantes com as do segundo verso, mas da última à primeira, como se po<strong>de</strong> perceber:<br />

Quase tudo acaba bem<br />

Sem adaga, mudo alar<strong>de</strong><br />

De fato, as rimas estão nas duplas quase-alar<strong>de</strong>, tudo-mudo, acaba-adaga, bem-sem. Com maior ou menor<br />

fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, esse efeito foi obtido nos sete dísticos do poema. Ora, na tradição impressa, a não ser nos casos<br />

raríssimos em que o poeta inaugurasse um novo espaço <strong>de</strong> escrita, não caberia nenhum tipo <strong>de</strong> informação<br />

ao leitor sobre as sonorida<strong>de</strong>s e os efeitos, inclusive sobre os modos <strong>de</strong> leitura. Esse tipo <strong>de</strong> didascália<br />

sempre ficou restrito ao espaço das artes cênicas, ou, ao menos, muito pouco foi utilizado na criação<br />

poética. É assim que, para o leitor do poema, acabava restando a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mapear no gesto da<br />

<strong>de</strong>clamação os jogos sonoros propostos pelo poeta, sem a muleta das explicitações ou das explicações. Havia<br />

aí uma sutileza a permitir o prazer da <strong>de</strong>scoberta, como que conce<strong>de</strong>ndo, quando da leitura, uma ligeira<br />

82


sensação <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong>. Isso se dava também com respeito aos intertextos. 54 Como resultado a leitura<br />

podia ser às vezes interrompida, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da bagagem do leitor, por inesperadas <strong>de</strong>scobertas e<br />

entusiasmos, <strong>de</strong>scobertas mais fáceis – como a ligação entre Os Lusíadas e a Invenção <strong>de</strong> Orfeu, <strong>de</strong> Jorge <strong>de</strong><br />

Lima –, ou menos evi<strong>de</strong>ntes – como a filiação <strong>de</strong> O Cortiço, <strong>de</strong> Aluízio Azevedo, a L’Assomoir, <strong>de</strong> Émile Zola,<br />

que necessitou da argúcia <strong>de</strong> mestre Candido para ser dada à luz. Mas, no meio impresso, essa explicitação<br />

(ou <strong>de</strong>s-sutilização) dos intertextos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>u sempre da experiência, dos conhecimentos, da memória e até<br />

mesmo da inventivida<strong>de</strong> do leitor. É assim que, no caso dos versos compostos para Ponto, apenas alguns<br />

mais argutos talvez percebessem as rimas toantes atravessadas <strong>de</strong> um lado a outro dos versos e da estrofe.<br />

Quando passado para o meio eletrônico, e submetido a processos informáticos <strong>de</strong> tratamento e <strong>de</strong><br />

manipulação, o sutil jogo <strong>de</strong> sonorida<strong>de</strong>s pô<strong>de</strong> ser evi<strong>de</strong>nciado, exposto pela mudança <strong>de</strong> cor que vai, em<br />

seqüência, <strong>de</strong>stacando os pares <strong>de</strong> expressões que fazem a rima toante:<br />

Quase tudo acaba bem<br />

Sem adaga, mudo alar<strong>de</strong>,<br />

Quase tudo acaba bem<br />

Sem adaga, mudo alar<strong>de</strong>,<br />

Quase tudo acaba bem<br />

Sem adaga, mudo alar<strong>de</strong>,<br />

Quase tudo acaba bem<br />

Sem adaga, mudo alar<strong>de</strong>,<br />

O meio eletrônico permite concretizar e expor diretamente os intertextos, como, aliás, foi feito neste<br />

ensaio: ao início, há uma citação velada ao romance Voyage Autour <strong>de</strong> Ma Chambre, <strong>de</strong> Xavier <strong>de</strong> Maistre.<br />

Numa leitura em papel, sem a interferência apelativa <strong>de</strong> uma nota <strong>de</strong> rodapé (mais uma!), muitos <strong>de</strong> meus<br />

já poucos leitores passariam em branco pela referência. Todavia, num texto eletrônico, num arquivo word<br />

por exemplo, pu<strong>de</strong> facilmente colocar diante dos olhos do leitor a versão integral do romance. Da mesma<br />

maneira, o meio eletrônico permitiu explicitar, em azul, as elucubrações sonoras <strong>de</strong> Ponto, tirando o prazer<br />

<strong>de</strong> ler, ouvir e <strong>de</strong>scobrir para, no lugar, pôr a diversão <strong>de</strong> ver. E a pergunta, inapelável, que surge é: quais<br />

novas sutilezas viriam, então, habitar essa <strong>literatura</strong> eletrônica no lugar daquelas, perdidas, da tradição<br />

impressa? Ou estaríamos nós con<strong>de</strong>nados à evidência direta, à leitura imediata, a um mundo <strong>de</strong><br />

significações planas e <strong>de</strong> sentidos sem profundida<strong>de</strong>?! Parece-me que não, mas essa impressão, para que<br />

ganhe foros <strong>de</strong> certeza, necessita <strong>de</strong> algum tempo, justamente o tempo que vai permitir a sedimentação <strong>de</strong><br />

processos <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong> linguagens, que vai permitir às diferentes linguagens que dêem origem a um<br />

mesmo espaço expressivo e façam surgir uma retórica do texto eletrônico, das poéticas digitais, dos<br />

ciberpoemas. É apenas com o passar do tempo que os dispositivos, os objetos e os gestos expressivos – como<br />

ocorre em todo espaço cultural – ganham profundida<strong>de</strong>, que se torna mais evi<strong>de</strong>nte sua complexida<strong>de</strong> original<br />

e originária, que o processo <strong>de</strong> simbolização, inicialmente apenas possível ou latente, é trazido para a<br />

exteriorida<strong>de</strong> do processo <strong>de</strong> produção das significações. Apenas nesse momento, então, po<strong>de</strong>remos <strong>de</strong>scortinar<br />

83


as sutilezas que se po<strong>de</strong>m construir no ciberespaço nessa exploração <strong>de</strong> linguagens verbais no meio eletrônico.<br />

Tentar <strong>de</strong>finir qualquer coisa, antes disso, ainda me parece exercício <strong>de</strong> futurologia fadado ao fracasso.<br />

Daí a proposta <strong>de</strong>sse poema eletrônico Ponto, que quis justamente expor uma conjunção entre o ler e o ver, entre<br />

o verbal e o imagético. As mudanças <strong>de</strong> cor das letras, <strong>de</strong> cinza para azul, interferem diretamente na apreensão<br />

dos versos (que po<strong>de</strong> ser feita ainda <strong>de</strong>ntro da tradição impressa). Mas tal leitura na tradição impressa é só<br />

impressão inicial, pois o movimento cromático, por mais simples que seja, vem perturbar o costumeiro e o<br />

automático da leitura dos versos. É um ruído que, inicialmente, apenas se insinua e incomoda, justamente por<br />

não haver nenhuma simbolização direta ou indireta da cor azul. Posto diante <strong>de</strong> versos parados, como numa<br />

folha, ao leitor se permite não apenas ler, mas também se exige que ele o veja. E, hesitando entre o ler e o ver,<br />

ele po<strong>de</strong> ser tentado ainda a resolver o incômodo e o ruído apelando para a subordinação do visível ao legível,<br />

procurando submeter a organização visual e movente do poema às lógicas expressivas e às retóricas da<br />

linguagem verbal. Chegará algum momento em que perceberá que a criação verbal não per<strong>de</strong> nunca sua<br />

capacida<strong>de</strong> expressiva, quando se abre para outras linguagens e se <strong>de</strong>ixa influenciar por elas. Nesse Ponto, então,<br />

surge pelo menos um novo recorte no espaço perceptivo trazido pelo poema: ao percurso <strong>de</strong> significação das<br />

escritas oci<strong>de</strong>ntais em que os versos foram compostos, novas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> recortes sintagmáticos e<br />

paradigmáticos aparecem, pela maneira como proximida<strong>de</strong> e distância entre palavras e expressões são alteradas<br />

pelos movimentos das cores. Daí, talvez, sutilmente, o poema <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> ser visto como estando inserido em um<br />

retângulo <strong>de</strong>senhado por palavras para assumir fisionomias mais complexas e transitórias, aqui uma fita <strong>de</strong><br />

Moebius, acolá uma sua parente, a lemniscata, mais adiante, um fractal <strong>de</strong> dimensão 1,93, e assim por diante.<br />

* * *<br />

Qualquer linguagem – verbal, visual, icônica, sonora, gestual e a lista não teria fim, pois o nome linguagem<br />

é legião – é essencialmente intersubjetiva. Nos gestos corporais com que habito o campo dos sentidos<br />

possíveis do mundo vivido, insiro significações que se conjugam a outros gestos, <strong>de</strong> outros indivíduos. Na<br />

linguagem verbal, cada ca<strong>de</strong>ia significante somente adquire capacida<strong>de</strong> expressiva por trazer em sua trama<br />

e fisionomia outras significações, outros sentidos, <strong>de</strong> outras pessoas: se nem sempre dizemos ou escrevemos<br />

para outro, necessariamente dizemos ou escrevemos com outros, sob pena <strong>de</strong> não termos linguagem<br />

alguma. 55 Da mesma forma, a linguagem visual explora diferentes perspectivas – quer dizer, distintas<br />

manifestações da visibilida<strong>de</strong> – para compor nosso olhar específico <strong>de</strong> um dado objeto: sem as perspectivas<br />

<strong>de</strong> olhares <strong>de</strong> outros, necessariamente distintas das minhas, eu não po<strong>de</strong>ria distinguir objeto algum como<br />

um volume no espaço. É mais ou menos o que afirma Maurice Benayoun, quando diz:<br />

“Cette image (...) est composée en temps réel <strong>de</strong> la trace <strong>de</strong>s regards multiples qui explorent <strong>de</strong>s autres<br />

images (les différents points <strong>de</strong> vue <strong>de</strong> l’exposition La Beauté). Sur internete et sur l’écran du Centre<br />

Pompidou chacun peut découvrir la trace <strong>de</strong>s regards <strong>de</strong>s autres; chaque nouvelle trace intégrant les fragments<br />

d’intérêt <strong>de</strong>s uns et <strong>de</strong>s autres dans un nouvel espace qui est à proprement parler un espace mémoire”. 56<br />

O que Benayoun <strong>de</strong>screve nesse trecho não diz respeito apenas aos objetos expostos no Beaubourg, na<br />

exposição La Beauté. É da própria visibilida<strong>de</strong> que ele fala. O mesmo po<strong>de</strong> ser dito da obra Depois do<br />

84


Turismo, Vem o Colunismo, <strong>de</strong> Gilbertto Prado. Nesta, quando passávamos sob um portal, nossa imagem<br />

acionava uma câmara digital ligada à re<strong>de</strong>, fazendo com que ela surgisse no sítio específico <strong>de</strong>stinado à<br />

obra. Já se encontrava aí um primeiro <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> perspectivas – quase o mesmo da fotografia, aliás<br />

–, pois nos víamos não sob nosso olhar, mas do ponto <strong>de</strong> vista proporcionado pela instalação. Contudo –<br />

coisa que faz a diferença com respeito à fotografia –, nossa imagem era ainda associada aleatoriamente<br />

a outras, oriundas <strong>de</strong> um banco <strong>de</strong> imagens sobre a antropofagia, a pop art, a cida<strong>de</strong> etc. É assim que<br />

olhares <strong>de</strong> outros, ou melhor, mais olhares <strong>de</strong> outros (pois já havia a perspectiva da instalação, impondo<br />

o ângulo e a distância com que era capturada nossa imagem sob o portal) se somavam a nosso olhar<br />

estranhado em nós e por nós mesmos (ou melhor, nesse nós mesmos <strong>de</strong> alguns segundos atrás). É como<br />

se nossa própria imagem já carregasse essas imagens outras, essas sobras <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos, essas perspectivas<br />

alheias, mas parcialmente nossas, esses restos <strong>de</strong> impressões guardadas pelo corpo, mas nunca<br />

inspecionadas pela razão. É como se o computador fosse uma bola <strong>de</strong> cristal capaz <strong>de</strong> espacializar o<br />

tempo ao dispor em certas regiões da tela imagens do passado e do presente; capaz <strong>de</strong> temporalizar o<br />

espaço, ao transformar em antes e <strong>de</strong>pois nosso percurso, o dispositivo <strong>de</strong> captura <strong>de</strong> imagens e o espaço<br />

eletrônico da internete. Mas, sobretudo, capaz, esse dispositivo <strong>de</strong> Gilbertto Prado, <strong>de</strong> materializar a<br />

pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perspectivas que sempre carregam cada gesto, cada ato, cada expressão verbal, cada<br />

imagem. Em certo sentido, tanto a instalação <strong>de</strong> Gilbertto quanto a exposição La Beauté revelam aquilo<br />

que o próprio Benayoun chama <strong>de</strong> “partes ocultas da imagem”. 57 Eu apenas alteraria “imagem” por<br />

“visível”. Essas partes ocultas correspon<strong>de</strong>m justamente à participação <strong>de</strong> olhares outros em nosso<br />

próprio. O que queremos com toda essa discussão é estabelecer um apoio inicial e firme no conceito <strong>de</strong><br />

intersubjetivida<strong>de</strong>. Ela está por trás da intertextualida<strong>de</strong>, que é inerente a toda obra literária (e,<br />

portanto, verbal); ela aparece na maneira como os visíveis <strong>de</strong> qualquer objeto dialogam com o aparelho<br />

perceptivo daqueles que dirigem seu olhar para ele. Ela explica por que nenhuma significação é<br />

construída solitariamente por um único leitor; esclarece como qualquer objeto visível é também resultado<br />

dos traços que olhares outros <strong>de</strong>ixaram marcados em sua qüidida<strong>de</strong>. De fato, é como diz Maurice<br />

Benayoun: 58 “La traçabilité <strong>de</strong> l’individu en réseau qui fait que personne n’est à l’abri du regard <strong>de</strong> l’autre<br />

<strong>de</strong>vient ici un élément déterminant dans la construction du sens”.<br />

E, nessa ópera <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencontros e esbarrões entre verbal e visual, uma sugestão até interessante foi intuída<br />

por Eduardo Kac: “In mathematics, being a fractal means roughly being between a given dimension and<br />

the next higher or lower one. In art, being a fractal may mean, by analogy, being between the verbal and<br />

the visual dimension of the sign”. 59 Na matemática do caos, os fractais surgem como a <strong>de</strong>scrição matemática<br />

(e empobrecedora) <strong>de</strong>ssa presença <strong>de</strong> dimensões outras numa dada dimensão; mas também <strong>de</strong> perspectivas<br />

outras numa dada perspectiva; <strong>de</strong> linguagens outras em certa linguagem. No caso, os fractais po<strong>de</strong>m ser<br />

interessantes como metaforização (e não apenas visual, mas perceptiva, corpórea, talvez) <strong>de</strong>ssa conjunção<br />

entre gestos expressivos <strong>de</strong> natureza diferente. Se a dimensão fractal 2,39 está em algum lugar entre o<br />

plano (dimensão 2) e o volume (dimensão 3) – mais próxima do primeiro que do segundo –, po<strong>de</strong>-se pensar<br />

em linguagens intermediárias, como sempre foi, por exemplo, o caso da <strong>literatura</strong> escrita, que se move em<br />

vários pontos numa trajetória situada entre o sonoro e o verbal. E, ressalte-se, o fato <strong>de</strong> ambas se colocarem<br />

no mesmo espaço expressivo não significa que elas se resolvam num processo dialético <strong>de</strong> tese-antítesesíntese.<br />

Trata-se <strong>de</strong> linguagens intermediárias, sim, mas também reversivas, pois <strong>de</strong> uma se vislumbra a<br />

85


outra, <strong>de</strong> uma se po<strong>de</strong> pôr a outra em movimento, <strong>de</strong> uma se po<strong>de</strong> chegar à outra sem que se anule ou<br />

<strong>de</strong>sapareça a primeira. Num certo sentido, faz-se necessário uma i<strong>de</strong>ogramização da escrita poética para<br />

que linguagens verbais e visuais não apenas compartilhem o mesmo espaço expressivo, mas para que elas<br />

todas construam um mesmo espaço expressivo, <strong>de</strong> dimensão fracionária, intermediária entre visual e verbal,<br />

sem ser exclusivamente uma ou outra, possibilitando que ambas compartilhem sentidos e significantes.<br />

* * *<br />

Agora mesmo, os poucos meus leitores talvez já estejam fazendo muxoxos <strong>de</strong> impaciência e pouco-caso, pois –<br />

diriam eles – essas hesitações ou compromissos entre visual e verbal não são coisa nova nem discussão original.<br />

Toda a reflexão crítica dos primeiros anos da poesia concreta, por exemplo, já carregava essa inquietação. Mas<br />

há alguns pontos que eu gostaria <strong>de</strong> mapear, partindo <strong>de</strong> questões suscitadas pelos próprios concretos, para ver<br />

que diferenças po<strong>de</strong>m aparecer entre aquele momento – grosseiramente, os anos 50 do século passado – e este<br />

nosso. Primeiramente, investiguemos o modo como se dão essas relações entre verbal e visual no caso da escrita,<br />

buscando seguir um dos principais marcos teóricos do concretismo. De acordo com Ernest Fenollosa, uma<br />

característica essencial dos i<strong>de</strong>ogramas é o fato <strong>de</strong> que “two things ad<strong>de</strong>d together do not produce a third<br />

thing, but suggest some fundamental relation between them”. 60 Ele fala <strong>de</strong> uma justaposição que não se<br />

resolve por adição, por subtração, por multiplicação, ou por qualquer dialética que seja. Com base nisso – e<br />

também em outros elementos –, o concretismo propôs uma criação poética verbivocovisual, em que a leitura<br />

proce<strong>de</strong>ria não <strong>de</strong> um quarto elemento (além do verbal, do vocal e do visual), mas das relações entre os três.<br />

Nesse caso – e tentando também seguir o raciocínio <strong>de</strong> Fenollosa –, po<strong>de</strong>ríamos pensar em três dualida<strong>de</strong>s<br />

(verbo-visual, voco-verbal e voco-visual) que se resolveriam não pela produção <strong>de</strong> um tertius, <strong>de</strong> um terceiro<br />

elemento, mas pela relação entre um e outro, sem que nenhum dos dois impusesse sua perspectiva <strong>de</strong> leitura.<br />

Ora, um dos aspectos mais relevantes e menos comentados da poesia concreta, sobretudo em seus<br />

<strong>de</strong>sdobramentos e her<strong>de</strong>iros, é o fato <strong>de</strong> que, em muitos casos, não se conseguiu chegar a uma criação<br />

verda<strong>de</strong>iramente verbo-visual, mas sim a poemas em que ou o visual estava subordinado ao verbal, ou o verbal<br />

submetia-se ao visual. Talvez apenas a obra <strong>de</strong> Wal<strong>de</strong>mir Dias-Pino, em sua totalida<strong>de</strong>, autorize falar numa<br />

criação poética em que verbal e visual se confrontam e se conjugam num mesmo plano <strong>de</strong> expressão, colocando<br />

na relação entre eles a única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura, e possibilitando com isso o surgimento <strong>de</strong> uma terceira<br />

via, <strong>de</strong> uma outra linguagem, <strong>de</strong> uma retórica não mais subordinada exclusivamente à visual ou à verbal. Tratase,<br />

talvez – ao contrário do que afirma Fenollosa –, <strong>de</strong> um terceiro elemento, não visual ou verbal, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo<br />

da perspectiva adotada, mas visual e verbal, ou seja, verda<strong>de</strong>iramente verbivisual. 61<br />

Em resumo, as experimentações verbo-visuais, em bom número, realizaram (e realizam ainda hoje) uma<br />

poesia em que visual e verbal não foram absorvidos um pelo outro, mas mantiveram e mantêm uma<br />

in<strong>de</strong>pendência até bem evi<strong>de</strong>nte. O curioso é que, embora dizendo-se inspirada no concretismo e usando<br />

sua teoria, uma parte da produção contemporânea aponta para caminhos e direções outras. A ambição <strong>de</strong><br />

uma obra “sintético-i<strong>de</strong>ogrâmica”, em oposição a “analítico-discursiva” 62 (expressões tiradas <strong>de</strong> manifestos<br />

e ensaios teóricos dos próceres do Movimento Concreto), indicaria uma poética cujas criações estariam<br />

justamente no rastro daquela terceira perspectiva <strong>de</strong> que se falou acima com respeito às fotografias em três<br />

dimensões e às páginas eletrônicas. E é justamente tal síntese i<strong>de</strong>ogrâmica que nos interessa, essa que<br />

86


produz um terceiro elemento não mais visual ou verbal, mas verbivisual. Nessa síntese – não<br />

necessariamente dialética –, proximida<strong>de</strong> e semelhança, forma e fundo po<strong>de</strong>m ser selecionados<br />

(sincronicamente) e combinados (diacronicamente); da mesma maneira, seleção e combinação se fazem a<br />

partir <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> forma e fundo, <strong>de</strong> topologias <strong>de</strong> vizinhança e <strong>de</strong> similarida<strong>de</strong>.<br />

Acima falamos, via Merleau-Ponty, das correspondências entre visível e tangível. O mesmo po<strong>de</strong> ser<br />

associado à maneira como organizamos nossa apreensão do aspecto visual <strong>de</strong> uma criação poética – seja ela<br />

do Movimento Concretista ou não. É claro que, num primeiro momento, na percepção <strong>de</strong> um objeto<br />

qualquer, não distinguimos entre o reino do verbal e o primado do visual. As primeiras evidências <strong>de</strong><br />

qualquer objeto já o colocam inteiramente <strong>de</strong>ntro do campo dos possíveis do corpo perceptivo, a partir do<br />

qual observamos esse dado objeto sem nenhum recorte ou or<strong>de</strong>namento analítico. É apenas num segundo<br />

momento que po<strong>de</strong>mos submeter essas percepções inaugurais a uma arquitetura e a uma hierarquia, isso<br />

que chamamos leitura. E tal leitura não fica restrita a uma observação a distância, mas utiliza também algo<br />

como uma inspeção táctil através do olhar, como que tocando tons, sentindo o contorno <strong>de</strong> luzes,<br />

apalpando matizes. Assim vamos avançando com um olhar que escolhe caminhos, elege locais on<strong>de</strong> se<br />

instalar, perscruta possíveis formas, tateia, titubeante, para então seguir em frente ou voltar atrás, ou<br />

mesmo voltar-se para o lado, iniciando novas inspeções, abrindo outros flancos e caminhos na superfície do<br />

visível. É assim que nesse segundo momento <strong>de</strong> apreensão, ou melhor, <strong>de</strong> compreensão do objeto, po<strong>de</strong><br />

instalar-se, por tentativa-e-erro, alguma teleologia <strong>de</strong> fundo reflexivo e analítico com que vamos mapeando<br />

os possíveis que <strong>de</strong>lineiam fôrmas da imagem. É como se, a cada percurso tentado e falhado, ainda assim<br />

algo fosse esboçado da imagem – uma fímbria <strong>de</strong> contornos, uma réstia <strong>de</strong> luz e sombra, um quê <strong>de</strong> cores.<br />

De outro lado, tais tateamentos – nos diversos sentidos do termo – também estão presentes na maneira<br />

como se percorrem ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> significantes verbais, tecendo significações no possível dos sentidos: não<br />

apenas apren<strong>de</strong>mos – analítica e reflexivamente – algo das palavras, mas, sobretudo, apreen<strong>de</strong>mos a<br />

fisionomia com que elas vêm habitar o espaço expressivo que lhes indicamos. E assim seguimos na leitura,<br />

auscultando modulações <strong>de</strong> frases, inspecionando seqüências <strong>de</strong> parágrafos e conectivos entre os períodos,<br />

i<strong>de</strong>ntificando contornos <strong>de</strong> significações com suas tramas <strong>de</strong> lógicas às vezes variadas. Também por<br />

tentativa-e-erro, vamos <strong>de</strong>finindo as diversas posições dos sentidos e encastrando nelas ensaios <strong>de</strong><br />

significações; voltando atrás quando <strong>de</strong>paramos com os tropeços da obscurida<strong>de</strong> ou com o abismo da<br />

incoerência. Esse método <strong>de</strong> tentativa-e-erro é justamente eleito por Haroldo <strong>de</strong> Campos como uma das<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> apreensão do poema concreto, numa perspectiva, segundo ele, <strong>de</strong>rivada da gestalt: “Um<br />

tópico da cibernética, correlato, <strong>de</strong>ve ainda ser chamado aqui à cena: o método <strong>de</strong> solver problemas por<br />

‘tentativa-e-erro’, que interessa do mesmo modo aos psicólogos da gestalt. Como assinala W. Slucktin, o<br />

comportamento ‘tentativa-e-erro’ po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scrito em termos <strong>de</strong> ‘feedback negativo’.” 63 Mas, como se viu<br />

acima, não se trata <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> exclusiva da poesia concreta, a não ser se a consi<strong>de</strong>ramos pelo viés da<br />

gestalt, como aponta o próprio Haroldo <strong>de</strong> Campos.<br />

Todavia, o que importa no momento é perceber que, colocados leitor e significantes diretamente um em<br />

frente do outro, nada fica registrado <strong>de</strong>sses tateamentos todos. Diante dos olhos, exposto aos sentidos, não<br />

subsiste nenhum inventário concreto <strong>de</strong>sses significantes, lista que elencaria todos os percursos tentados e<br />

87


<strong>de</strong>ixados, ainda que não em <strong>de</strong>finitivo. As tentativas-e-erros, aqui, ficam como horizonte ou pano <strong>de</strong> fundo,<br />

contorno <strong>de</strong> imprecisões que apenas <strong>de</strong> longe e indiretamente imantam as significações atuais. Novas<br />

tentativas-e-erros vêm ocupar esse lugar, para em seguida, por sua vez, serem também <strong>de</strong>ixadas, numa fuga<br />

para diante tanto infinda quanto inevitável. Coisa totalmente diversa ocorre quando estamos no<br />

ciberespaço, intermediados por interfaces <strong>de</strong> ferramentas digitais. Afinal <strong>de</strong> contas, nele, esse inventário <strong>de</strong><br />

possíveis, <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> tentativas, <strong>de</strong> erros e <strong>de</strong> acertos po<strong>de</strong> ser concretamente colocado à<br />

disposição do leitor. E é por essas tentativas-e-erros, passíveis <strong>de</strong> serem registradas materialmente e<br />

disponíveis para consulta a qualquer momento, que se po<strong>de</strong>m (mesmo que <strong>de</strong> maneira redutora) simular as<br />

percepções primeiras do objeto poético, aquelas em que visual e verbal ainda não se distinguiam um do<br />

outro. Dessa forma, no caso do ciberespaço, po<strong>de</strong>mos partir <strong>de</strong> simulações <strong>de</strong> leituras visuais e verbais, por<br />

séries <strong>de</strong> tentativas-e-erros realizadas a gran<strong>de</strong> velocida<strong>de</strong> e armazenando uma quantida<strong>de</strong> imensa <strong>de</strong><br />

informações para chegar a simulações outras, essas em que não se chega a essência alguma do objeto<br />

poético, mas que permitem construir possíveis e possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>le. É assim que uma retórica do meio<br />

digital, ao propor condições e possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> criação verbal e visual, não <strong>de</strong>ve escamotear, nunca, esse<br />

jogo <strong>de</strong> possíveis e <strong>de</strong> simulações – jogos <strong>de</strong> simulações possíveis – em que visual e verbal sejam propostos<br />

e arquitetados <strong>de</strong> maneira seqüencial e interativa entre ambos (e não apenas entre objeto e leitor).<br />

Quando tomamos a retórica clássica, especialmente a <strong>de</strong> Aristóteles, apren<strong>de</strong>mos que se <strong>de</strong>ve partir <strong>de</strong> quatro<br />

operações – inventio, dispositio, elocutio e actio – para a produção da obra. Sobretudo em relação às duas<br />

primeiras, as simulações por tentativa-e-erro po<strong>de</strong>m constituir um novo espaço <strong>de</strong> escrita e <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong>ntro do<br />

meio digital, além <strong>de</strong> proporcionar uma ligação direta entre autor e leitor: <strong>de</strong> fato, tanto na criação quanto na<br />

leitura há lugar para a seleção e a combinação dos significantes. E nas duas instâncias (criação e leitura) é<br />

possível trazer para o verbal formas e fôrmas do visual e vice-versa, tramando no visual seqüências e camadas<br />

do verbal, constituindo uma retórica nova em que a escrita ocorre tanto no momento primeiro <strong>de</strong> criação<br />

quanto na leitura (também criativa, claro!). Dito <strong>de</strong> outro modo, o meio digital permite que as operações<br />

retóricas <strong>de</strong> construção da materialida<strong>de</strong> da obra não estejam apenas nas ações realizadas pelo criador.<br />

Também na leitura, elas po<strong>de</strong>m ser retomadas, e as maneiras como se esboça o objeto <strong>de</strong>rivam igualmente <strong>de</strong><br />

processos <strong>de</strong> inventio e dispositio, tanto no que diz respeito ao processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> significantes verbais<br />

quanto no tocante à arquitetura e à hierarquização dos elementos disponíveis. São operações <strong>de</strong>sse tipo,<br />

realizadas como leitura e não como escrita, que po<strong>de</strong>m nos dar palavras dispostas num espaço simulando o<br />

tridimensional; e também nos fazem ler nuanças, matizes, posições, disposições, formas, luzes etc., como se<br />

po<strong>de</strong> ver numa criação chamada Cubo, concebida e <strong>de</strong>senvolvida por mim e por Gilbertto Prado. Elas nos<br />

permitem imprimir outra dinâmica a nossos movimentos <strong>de</strong> leitura. Estes se tornam, na verda<strong>de</strong>, uma conjunção<br />

entre nosso olhar e toda uma série <strong>de</strong> interfaces que po<strong>de</strong>m incluir menus, cursores, mouses, teclados etc.<br />

Com base nesses movimentos, po<strong>de</strong>mos buscar organizá-los como inventio e dispositio, escolhendo<br />

perspectivas, ângulos, percursos; experimentando associá-los <strong>de</strong> maneira repetitiva, retomando novos<br />

trajetos em repetições que arremedam tentativa-e-erro. E esse processo avança até que seja construído do<br />

objeto não um símile ou mo<strong>de</strong>lo, mas um campo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> realizações, <strong>de</strong> falhas e <strong>de</strong><br />

dissimilitu<strong>de</strong>s, permitindo que se chegue não a uma série <strong>de</strong>finida e fechada <strong>de</strong> tipos e gênero, mas a uma<br />

dinâmica em que se produzam campos e gestos <strong>de</strong> leitura. Como já foi dito antes, ou a retórica do texto<br />

88


eletrônico será plural e aberta, ou não será. E tal abertura <strong>de</strong>verá incorporar necessariamente os processos<br />

e procedimentos que traduzam a reversibilida<strong>de</strong> verbal-visual em conjunções entre palavras e imagens, em<br />

ferramentas e percursos possíveis que saibam <strong>de</strong>spertar em um dos espaços perceptivos as topologias e as<br />

disposições do outro, sem que um imponha modos e gestos ao outro. Somente assim po<strong>de</strong>remos sonhar com<br />

a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sair <strong>de</strong>sse simplismo em que a poesia dita eletrônica se encontra atualmente, <strong>de</strong> imagens<br />

às vezes com alguma explicação verbal, ou <strong>de</strong> frases com meras ilustrações imagéticas.<br />

Notas<br />

1 REYNOLDS, David. Revising the american canon: the question of literariness. Canadian Review of Comparative Literature, v. 13, n. 28, p. 232, 1986.<br />

2 REYNOLDS, op. cit., 1986, p. 231, nota 44.<br />

3 REYNOLDS, op. cit., 1986, p. 231, p. 233, nota 44. [“...uma compacta explosivida<strong>de</strong> do signo que ocorre <strong>de</strong>vido a uma inaudita e ampla<br />

varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> idiomas e vozes culturais, fundidas para criar extrema <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> e polivocalida<strong>de</strong> semiótica”.] tradução do autor.<br />

4 HOFFMANN, Dierk. Edition-rhizome: a propos d’une édition historico-critique fondée sur le concept d’hypertexte et d’hyoermédia. Genesis,<br />

n. 5, p. 53, 1994. [“não como entida<strong>de</strong>s autônomas, ‘totalida<strong>de</strong>s orgânicas’, mas como construções intertextuais: seqüências que têm sentido<br />

em relação a outros textos que elas retomam, citam, parodiam, refutam ou, <strong>de</strong> modo mais geral, transformam...”] tradução do autor.<br />

5 Talvez à imagem do logos heraclitiano.<br />

6 Mesmo sem preten<strong>de</strong>r entrar em polêmicas anti ou pró-<strong>de</strong>rridianas, seria interessante aprofundar essas diferenças entre produção <strong>de</strong><br />

significações e mapeamento <strong>de</strong> sentidos.<br />

7 DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 146, nota 37. [“...velhas técnicas <strong>de</strong>ixadas <strong>de</strong> lado pelos poetas, tais como o teatro, o canto e o<br />

artesanato, estão sendo reelaboradas a partir das experiências dadaístas e futuristas do princípio do século”.] tradução do autor.<br />

8 [“em alguns casos, as técnicas antigas se mesclam a novas tecnologias, gerando suportes mistos que po<strong>de</strong>ríamos chamar <strong>de</strong> pósmo<strong>de</strong>rnos”.]<br />

tradução do autor.<br />

9 CLEMENT, Jean. Hypertextes et mon<strong>de</strong>s fictionnels (ou l’avenir <strong>de</strong> la narration dans le cyberespace). éc/art S, Paris, n. 2, p. 73, 2000.<br />

[“...uma corrente literária bem antiga (...) que se opõe à concepção clássica fundada na certeza <strong>de</strong> que o texto é a justa tradução do<br />

pensamento, ou àquela, romântica, <strong>de</strong> uma <strong>literatura</strong> consi<strong>de</strong>rada reflexo da sensibilida<strong>de</strong>. Essa corrente, que se po<strong>de</strong> mapear dos Gran<strong>de</strong>s<br />

Retóricos até Paul Valéry, é menos afeta aos textos que a seus processos <strong>de</strong> engendramento...”] tradução do autor.<br />

10 Devo a Gilbertto Prado a clareza <strong>de</strong> ter entendido melhor essa questão.<br />

11 Basta consultar os sítios que disponibilizam os Cent Milles Milliards <strong>de</strong> Poèmes e permitem, apenas eles, trabalhar com esse dispositivo<br />

poético que não tem realmente como ser lido na forma impressa.<br />

12 PESSOA, Fernando. Obra poética. 6. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Aguilar, 1976. p. 197.<br />

13 DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 157, nota 37. [“a palavra é provavelmente o gerador <strong>de</strong> significados mais a<strong>de</strong>quado quando se trata<br />

<strong>de</strong> página impressa (ainda que não levando muito em conta a poesia visual”.] tradução do autor.<br />

14 [“Todavia, isso po<strong>de</strong>ria não ser assim no domínio virtual da web”.] tradução do autor.<br />

15 Como até hoje ainda se po<strong>de</strong> ver em algumas salas <strong>de</strong> cinema <strong>de</strong> três dimensões. No caso, as duas diferentes perspectivas das fotos são<br />

acrescidas <strong>de</strong> um jogo com cores.<br />

16 No sentido <strong>de</strong> que não se trata mais, aqui, <strong>de</strong> produzir uma ilusão, jogando com a visibilida<strong>de</strong> (como fazem os aparelhos <strong>de</strong> espelhos<br />

89


e as fotos mencionadas), mas <strong>de</strong> expor <strong>de</strong>terminadas imagens à visualida<strong>de</strong>. No primeiro caso, cremos ver algo que não vemos<br />

efetivamente; no segundo caso, estamos certamente vendo alguma coisa.<br />

17 BARBOSA, Pedro. Criação literária e computador. Lisboa: Argos, 1999.<br />

18 HOFFMANN, op. cit., 1994, p. 55, nota 47.<br />

19 HOFFMANN, op. cit., 1994, p. 56, nota 47.<br />

20 No sentido da assim chamada “ciência do caos”. Para mais esclarecimentos, reportar-se a GLEICK, James. Caos: a criação <strong>de</strong> uma nova<br />

ciência. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Campus, 1989.<br />

21 Isso nos faz lembrar um comentário <strong>de</strong> Merleau-Ponty sobre a atenção: “Le miracle <strong>de</strong> la conscience est <strong>de</strong> faire apparaître par<br />

l’attention <strong>de</strong>s phénomènes qui rétablissent l’unité <strong>de</strong> l’objet dans une dimension nouvelle au moment où ils brisent. Ainsi, l’attention<br />

n’est ni une association d’images, ni le retour à soi d’une pensée déjà maîtresse <strong>de</strong> ses objets, mais la constitution active d’un objet<br />

nouveau qui explicite et thématise ce qui n’était offert jusque là qu’à titre d’horizon indéterminé. En même temps qu’il met en marche<br />

l’attention, l’objet est à chaque instant ressaisi et posé à nouveau sous sa dépendance.” MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie <strong>de</strong><br />

la perception. Paris: Gallimard, 1989. p. 37. [“O milagre da consciência é fazer aparecer, pela atenção, fenômenos que restabeleçam a<br />

unida<strong>de</strong> do objeto em uma dimensão nova, no momento em que eles irrompam. Assim, a atenção não é nem uma associação <strong>de</strong> imagens,<br />

nem o retorno a si <strong>de</strong> um pensamento já senhor <strong>de</strong> seus objetos, mas a constituição ativa <strong>de</strong> um objeto novo que explicita e tematiza o<br />

que, até aí, era dado apenas como horizonte in<strong>de</strong>terminado. Ao mesmo tempo que coloca em marcha a atenção, o objeto é, a cada<br />

instante, retomado e, novamente, colocado sob sua <strong>de</strong>pendência”.] tradução do autor.<br />

22 SADIN, Eric. Pratiques poétiques complexes et nouvelles technologies: la création d’une agence_d’écritures®. éc/art S, Paris, n. 2, p. 24,<br />

2000. [“A exigência <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramento das competências po<strong>de</strong> servir – mas não necessariamente – para encorajar uma <strong>de</strong>saparição da<br />

figura do autor, em proveito da constituição <strong>de</strong> dispositivos, não anônimos, mas nos quais a assinatura tem menos relevância que a<br />

natureza dos jogos relacionais, compreendidos como uma primeira categoria <strong>de</strong> procedimentos <strong>de</strong> escrita...”] tradução do autor.<br />

23 Não tem <strong>de</strong> ser sempre assim. Po<strong>de</strong>m-se invocar exemplos em que os intertextos se colocam em pé <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>, como, por exemplo,<br />

os sonetos rimbaudianos gerados em computador por alguns dos membros do Oulipo – reunidos no subgrupo Alamo (Atelier <strong>de</strong><br />

Littérature Aidée par les Mathématiques et les Ordinateurs).<br />

24 GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la littérature au second <strong>de</strong>gré. Paris: Editions du Seuil, 1982. p. 451. [“A hipertextualida<strong>de</strong>, a sua<br />

maneira, <strong>de</strong>riva da bricolagem. (...) a arte <strong>de</strong> ‘fazer o novo a partir do velho’ tem a vantagem <strong>de</strong> produzir objetos mais complexos e mais<br />

saborosos que os produtos feitos ‘sob encomenda’: uma função nova se superpõe e se confun<strong>de</strong> com uma estrutura antiga, e a dissonância<br />

entre esses dois elementos co-presentes favorece o conjunto”.] tradução do autor.<br />

25 BOOTZ, Philippe. Stances à Hélène. Autopsie d’un scandale. Alire, n. 11 (em ce<strong>de</strong>rrom). ...não se trata <strong>de</strong> um produto unicamente<br />

‘voltado ao leitor’, <strong>de</strong> alguma coisa ‘dada à leitura’, mas <strong>de</strong> um projeto igualmente ‘voltado ao autor’, no qual o ato (<strong>de</strong> leitura) do leitor,<br />

que age por um ardil, participa da representação e faz, do ponto <strong>de</strong> vista do autor, parte da obra”.<br />

26 Aquelas cômodas ficções clássicas que fingiam ser atitu<strong>de</strong>s exercidas em espaços e instantes distintos, incomunicáveis entre si,<br />

estabelecendo uma hierarquia rigorosa entre uma e outra.<br />

27 Como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 148, nota 37.<br />

28 Pensemos aí na complicação do narrador, como em D. Quixote e em Machado <strong>de</strong> Assis; na multiplicação <strong>de</strong> percursos <strong>de</strong> leitura, como<br />

nos labirintos poéticos dos séculos XVI e XVII etc.<br />

29 MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1988. p. 172. (Tel Quel).<br />

30 MERLEAU-PONTY, op. cit., 1988, p. 172, nota 72. [“a partir do momento em que vejo, é preciso (como indica tão bem o duplo sentido<br />

da palavra) que a visão se <strong>de</strong>sdobre em uma visão complementar ou <strong>de</strong> uma outra visão: eu mesmo visto <strong>de</strong> fora, como um outro me veria,<br />

instalado no meio do visível, consi<strong>de</strong>rando-o a partir <strong>de</strong> um certo lugar”.] tradução do autor.<br />

90


31 Que o mesmo Merleau-Ponty, em outro local, <strong>de</strong>signa pela expressão je peux.<br />

32 MERLEAU-PONTY, op. cit., 1988, p. 172, nota 72.<br />

33 Que está ainda aquém da reflexivida<strong>de</strong> intelectual, é preciso salientar!<br />

34 MERLEAU-PONTY, op. cit., 1988, p. 172, nota 72. [“É preciso que nos habituemos a pensar que todo visível é talhado no tangível, que<br />

todo ser tátil é prometido, <strong>de</strong> alguma maneira, à visibilida<strong>de</strong>, e que há transbordamento, cavalgamento, não apenas entre a coisa tocada<br />

e quem toca, mas também entre o tangível e o visível incrustado nele”.] tradução do autor.<br />

35 MERLEAU-PONTY, op. cit., 1988, p. 172, nota 72.<br />

36 Mesmo estando elas ainda impregnadas pelos elementos e condições <strong>de</strong> contorno da tradição oral, num processo que culminou com<br />

as técnicas da imprensa.<br />

37 E o mesmo continua valendo para obras segmentadas, como os folhetins <strong>de</strong> jornais, por razões que não caberia aqui discutir.<br />

38 E, claro, também o <strong>de</strong> significação.<br />

39 KAC, Eduardo. Holopoetry. éc/art S, Paris, n. 2, p. 298, 2000. [“a estrutura seqüencial <strong>de</strong> uma linha <strong>de</strong> verso correspon<strong>de</strong> a pensamento<br />

linear, enquanto a estrutura simultânea <strong>de</strong> um poema concreto ou visual correspon<strong>de</strong> a pensamento i<strong>de</strong>ográfico”.] tradução do autor.<br />

40 KAC, op. cit., 2000, p. 299, nota 82. “numa maneira quebrada, num movimento irregular e <strong>de</strong>scontínuo, e isso se alterará se visto em<br />

diferentes perspectivas”.<br />

41 “I never adapt existing texts to holography. I create works that <strong>de</strong>velop a genuine holographic syntax.” KAC, op. cit., 2000, p. 299,<br />

nota 82. [“Eu nunca adapto textos já existentes à holografia. Eu crio obras que <strong>de</strong>senvolvem uma sintaxe holográfica genuína.”]<br />

tradução do autor.<br />

42 Entendidos aí num sentido próximo ao da óptica física.<br />

43 Como exemplo, um rébus da Igreja <strong>de</strong> Saint Gregoire-du-Vièvre, conforme .<br />

44 Como afirma LAPACHERIE, Jean-Gérard. De la grammatextualité. Poétique, v. 15, n. 59, p. 283-294, set. 1984.<br />

45 DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 147, nota 37. [“...os limites da <strong>literatura</strong> se <strong>de</strong>slocam gradualmente, a ponto <strong>de</strong> nos perguntarmos se<br />

a noção <strong>de</strong> <strong>literatura</strong> implica principalmente palavra escrita, ou se esta afirmação po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> estar certa em algum futuro próximo”.]<br />

tradução do autor.<br />

46 Aliás, essa invenção <strong>de</strong> gêneros, por si só, já daria muito pano para bastante manga. Em outros locais, o autor também classifica sua<br />

obra como “poesía visual”, cf. DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 156, nota 50.<br />

47 DOCTOROVICH, op. cit., 1999, p. 157, nota 37. [“repetição ‘quase-mecânica’...”] tradução do autor.<br />

48 SADIN, op. cit., 2000, p. 20, nota 65.<br />

49 SADIN, op. cit., 2000, p. 21, nota 65.<br />

50 I<strong>de</strong>m.<br />

51 “A la willing suspension of disbelief chère à Coleridge et qui gouverne notre approche <strong>de</strong> la fiction écrite s’est substituée une<br />

représentation visuelle d’un imaginaire virtuel dans lequel le plaisir du récit a cédé la place aux jeux <strong>de</strong> l’interactivité.” Em CLEMENT,<br />

op. cit., 2000, p. 77, nota. [“À ‘willing suspension of disbelief’, cara a Coleridge e que governa nossa abordagem da ficção escrita,<br />

substitui-se uma representação visual <strong>de</strong> um imaginário virtual no qual o prazer da narrativa ce<strong>de</strong>u sua vez aos jogos da<br />

interativida<strong>de</strong>”.] tradução do autor.<br />

91


52 Cf. BENAYOUN, Maurice. Art Impact, la mémoire partagée à perte <strong>de</strong> vue. éc/art S, Paris, n. 2, p. 205, 2000: “L’interface utilisateur<br />

comme surface <strong>de</strong> contact entre le visiteur et l’image permet un dialogue bi-directionnel. Elle permet <strong>de</strong> découvrir les parties masquées<br />

<strong>de</strong> l’image en même temps qu’elle écrit la trajectoire du regard”. [“A interface utilizada como superfície <strong>de</strong> contato entre o visitante e a<br />

imagem permite um diálogo bidimensional. Ela permite <strong>de</strong>scobrir as partes ocultas da imagem ao mesmo tempo que escreve a trajetória<br />

do olhar”.] tradução do autor.<br />

53 Como fazem ABENDROTH, Manuel; DECOCK, Jerôme; MESTAOUI, Naziha. Hypertextures. éc/art S, Paris, n. 2, p. 113, 2000.<br />

54 Sempre tomados aí no sentido com que os empregam a teoria francesa do verso, essa <strong>de</strong> Kristeva e <strong>de</strong> Genette, como um texto que se<br />

organiza e se produz a partir <strong>de</strong> outros, <strong>de</strong> modo mais ou menos evi<strong>de</strong>nte.<br />

55 Diria que é o caso dos autistas. Esse fenômeno também tem dado as caras nas artes das últimas décadas, submetidas que estão, muitas<br />

obras, a certo processo <strong>de</strong> “autização”.<br />

56 BENAYOUN, op. cit., 2000, p. 203, nota 94. [“Essa imagem (...) é composta, em tempo real, do traço dos olhares múltiplos que exploram<br />

outras imagens (os diferentes pontos <strong>de</strong> vista da exposição La Beauté). Na internete e na tela do Centro Pompidou, cada um po<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir<br />

o traço dos olhares dos outros; cada novo traço integra os fragmentos <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> uns e outros em um novo espaço que é,<br />

propriamente, um espaço <strong>de</strong> memória”.] tradução do autor.<br />

57 BENAYOUN, op. cit., 2000, p. 205, nota 94.<br />

58 BENAYOUN, op. cit., 2000, p. 205, nota 94. [“A traçabilida<strong>de</strong> do indivíduo em re<strong>de</strong>, que faz com que ninguém esteja ao abrigo do olhar<br />

do outro, torna-se, aqui, um elemento <strong>de</strong>terminante na construção do sentido”.] tradução do autor.<br />

59 KAC, op. cit., 2000, p. 298, nota 82. [“Em matemática, ser um fractal significa, grosso modo, estar entre uma dada dimensão e a<br />

próxima, para mais ou para menos. Em arte, ser um fractal significa, por analogia, estar entre a dimensão verbal e a visual do signo”.]<br />

tradução do autor.<br />

60 Citado por FRANCHETTI, Paulo. Alguns aspectos da teoria da poesia concreta. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. p. 34. [“duas<br />

coisas colocadas juntas não produzem uma terceira coisa, mas sugerem alguma relação fundamental entre elas”.] tradução do autor.<br />

61 Isso talvez até explique por que Wla<strong>de</strong>mir nunca se colocou voluntariamente como membro asssumido do concretismo.<br />

62 Cf. FRANCHETTI, op. cit., 1992, p. 61, nota 102.<br />

63 Cf. FRANCHETTI, op. cit., 1992, p. 65, nota 102.<br />

92


conclusão primeira<br />

novida<strong>de</strong> e repetição


Sei ter o pasmo comigo<br />

Que teria uma creança se, ao nascer,<br />

Reparasse que nascera <strong>de</strong>veras...<br />

Sinto-me nascido<br />

a cada momento<br />

Para a completa novida<strong>de</strong> do mundo...<br />

Alberto Caeiro, poema II, O Guardador <strong>de</strong> Rebanhos


Mesmo nas discussões mais recentes sobre hipertextos eletrônicos, não é raro ainda encontrarmos<br />

argumentos que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a absoluta novida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les. Como foi insinuado e afirmado anteriormente, é<br />

possível, sem maiores atropelos, mostrar como tal novida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser vista também (ainda que não<br />

apenas) como renovação ou <strong>de</strong>sdobramento daquilo que a produção literária impressa e até a tradição oral<br />

já traziam consigo. É nesse sentido que se po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o comentário <strong>de</strong> George P. Landow, falando<br />

<strong>de</strong> uma nova oralida<strong>de</strong> no meio eletrônico:<br />

In a hypertext environment a lack of linearity does not <strong>de</strong>stroy narrative. In fact, since rea<strong>de</strong>rs<br />

always, but particularly in this environment, fabricate their own structures, sequences, and<br />

meanings, they have surprisingly little trouble reading a story or reading for a story (...) reading<br />

hypertext fiction provi<strong>de</strong>s some of the experience of a new orality that both McLuhan and Ong<br />

have predicted. 1<br />

Dessa forma, não se po<strong>de</strong> dizer que haja aí propriamente uma evolução, ao menos essa que daria ao tempo<br />

um sentido acumulativo e positivo. Antes <strong>de</strong> tudo, há sim um re/<strong>de</strong>s-dobramento – operação que consiste<br />

em associar aos mo<strong>de</strong>los atuais as marcas sedimentadas <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los anteriores, como é o caso da tradição<br />

oral. É mais ou menos o que diz Pound da poesia: nela, não haveria passado nem futuro, propriamente, mas<br />

a instituição <strong>de</strong> um espaço expressivo que joga com o tempo e as tradições <strong>de</strong> modo não cumulativo e muito<br />

menos evolutivo. Na verda<strong>de</strong>, nessa passagem do antigo ao novo, temos buscado ver menos um corte<br />

epistemológico, uma solução <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> nos paradigmas, e mais um processo <strong>de</strong> sedimentação, no<br />

sentido em que o termo já foi aqui utilizado. Explicando melhor, não se preten<strong>de</strong> retomar uma concepção<br />

cíclica ou mítica da história, em que os novos sentidos remeteriam sempre a processos e a objetos<br />

preexistentes; por outro lado, não se quer também propor uma concepção evolutiva (ou positivista) em que<br />

a temporalida<strong>de</strong>, por si só, já traria novos sentidos e novas formas às obras. Antes, preten<strong>de</strong>-se ver, nisso<br />

que estou chamando <strong>de</strong> sedimentação, as diferentes formas <strong>de</strong> ler as obras literárias e, ao mesmo tempo,<br />

<strong>de</strong> ler a temporalida<strong>de</strong> através <strong>de</strong>las. Assim, a sedimentação passa a ser, concomitantemente, uma leitura<br />

da obra e uma releitura do tempo que nos <strong>de</strong>u essa mesma obra. Em conseqüência, sedimentação, para nós,<br />

quer significar a maneira como diferentes estratos <strong>de</strong> um mesmo objeto são justapostos ao próprio processo<br />

<strong>de</strong> diacronização com que buscamos apreendê-lo.<br />

A cada vez que um texto é lido, tornam-se possíveis outras releituras do processo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> suas<br />

significações (o que traz as marcas in<strong>de</strong>léveis da temporalida<strong>de</strong> em que ele está inevitavelmente inserido).<br />

Isso não significa que a sedimentação nos permitiria encontrar, a cada leitura, um sentido arbitrário para o<br />

tempo, mas que é possível restabelecer (ou reencontrar, para aqueles que preferem pensar em uma<br />

methexis, ou nexo <strong>de</strong> participação) uma linha <strong>de</strong> sentidos amarrando – ainda que <strong>de</strong> maneira frágil – uma<br />

dada obra e o atual processo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> significantes e significações a obras e processos anteriores.<br />

Daí se po<strong>de</strong>r afirmar que, a <strong>de</strong>speito das interfaces e aparências tecnicizadas com que a criação literária em<br />

computador se apresenta aos leitores, ela traz uma série <strong>de</strong> características que po<strong>de</strong>m aproximá-la <strong>de</strong><br />

objetos ainda ligados a tradições outras, como a oralida<strong>de</strong>. E mesmo quando se levantam algumas<br />

diferenças, elas não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> exibir pontos <strong>de</strong> contato ou <strong>de</strong> contraste entre si. No que se refere, por<br />

97


exemplo, ao trabalho intelectual em coletivida<strong>de</strong>, os instrumentos telemáticos têm possibilitado espaços <strong>de</strong><br />

interação, <strong>de</strong> interferência e <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> significantes que, mesmo ressalvadas as diferenças, lembram<br />

algo das trocas culturais mediadas apenas pela fala. Pierre Lévy, a esse respeito, afirma que:<br />

“Les collecticiels d’ai<strong>de</strong> à la conception et à la discussion collective (...) ai<strong>de</strong>nt chaque interlocuteur à se repérer<br />

dans la structure logique <strong>de</strong> la discussion en cours en lui fournissant une représentation graphique du réseau<br />

d’arguments. Ils permettent également la liaison effective <strong>de</strong> chaque argument avec les divers documents<br />

auxquels il se réfère, qui le fon<strong>de</strong>nt peut-être et forment en tout cas le contexte <strong>de</strong> la discussion. Ce contexte,<br />

contrairement à ce qui se passe lors d’une discussion orale, est ici totalement explicite et organisé.” 2<br />

E logo em seguida,<br />

“Avec les collecticiels, le débat se ramène à la construction progressive d’un réseau argumentaire et documentaire<br />

toujours présent aux yeux <strong>de</strong> la communauté, maniable à tout instant. Ce n’est plus “chacun son tour” ou “l’un<br />

après l’autre” mais une sorte <strong>de</strong> lente écriture collective, désynchronisée, dédramatisée, éclatée, comme<br />

croissant d’elle-même suivant une multitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> lignes parallèles, et pourtant toujours disponible, ordonnée,<br />

objectivée sur l’écran. Le collecticiel inaugure peut-être une nouvelle géométrie <strong>de</strong> la communication”. 3<br />

Ambas as <strong>de</strong>scrições enfatizam corretamente a principal característica <strong>de</strong> tais ambientes <strong>de</strong> trabalho<br />

intelectual coletivo: a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dispor dos dados <strong>de</strong> modo espacializado (“représentation<br />

graphique du réseau”). Com efeito, para superar os simplismos que vêem em todo trabalho colaborativo<br />

uma ativida<strong>de</strong> “interdisciplinar” ou “transdisciplinar”, parece-me importante pôr o acento nessa eventual<br />

articulação topológica da produção intelectual que as re<strong>de</strong>s telemáticas tornam possível. Todavia, isso não<br />

significa que a mera distribuição espacial dos participantes já produza esse efeito <strong>de</strong> topologização. Mais<br />

do que isso, a construção <strong>de</strong> obras escritas (sejam elas, por exemplo, reflexões teóricas ou criações<br />

artísticas) só se faz <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma organização topologizada, justamente quando cada ponto <strong>de</strong><br />

enunciação, cada nó na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> significantes, cada elemento <strong>de</strong> significação e <strong>de</strong> sentido se <strong>de</strong>ixa imantar<br />

pela presença individual e distância <strong>de</strong> todos os outros. 4 E como essa organização topológica apontaria<br />

para a oralida<strong>de</strong>? Nesta, por não se ter os significantes amarrados pela materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um suporte<br />

manuscrito ou impresso, cada elemento da ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> significantes orais é forçado a buscar apoio no<br />

horizonte <strong>de</strong> sentidos que o envolve (tanto aquele específico, <strong>de</strong> seu contexto, quanto aquele mais geral,<br />

da linguagem em que ele é produzido). Como resultado, o texto oral só se articula e se dá à compreensão<br />

dos outros em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua fisionomia específica (isto é, sua especificida<strong>de</strong> significante) resultar<br />

necessária e materialmente <strong>de</strong> uma interpenetração <strong>de</strong> outras falas.<br />

É certo que também as obras impressas e manuscritas aparecem sempre como resultado <strong>de</strong> uma confluência<br />

<strong>de</strong> outras, como as <strong>de</strong>screvem muito bem conceitos como o <strong>de</strong> palimpsesto <strong>de</strong> Gérard Genette, ou o <strong>de</strong><br />

intertextualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Julia Kristeva. E, se tais obras apregoam a quatro cantos e céus uma aparência <strong>de</strong><br />

autonomia, isso não passa <strong>de</strong> aparência ilusória. Temos aí, aliás, um paradoxo que parece ser essencial ao<br />

processo <strong>de</strong> escrita e impressão: a escrita impressa (para diferenciar da escrita eletrônica) é o que é, por ser<br />

a encenação <strong>de</strong> uma auto-suficiência, ela só existe como fingimento <strong>de</strong> uma autonomia impossível, aquela<br />

98


que a separaria completamente das outras obras escritas. 5 De seu lado, o texto oral sempre se apóia numa<br />

evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>pendência inaugural que tem com outros textos orais (não há simulação nem fingimento <strong>de</strong> uma<br />

autonomia, essa encenação que dá origem a toda escrita). E, do mesmo modo que estes, os textos eletrônicos,<br />

submetidos à força multiplicadora dos instrumentos telemáticos, também se mostram sempre abertos,<br />

sempre <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes das <strong>de</strong>terminações provenientes <strong>de</strong> outros textos, <strong>de</strong> outros pontos <strong>de</strong> enunciação.<br />

No comentário acima transcrito, Lévy aponta para a diferença entre o eletrônico e o oral, quando chama a<br />

atenção para a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manipulação imediata, completa e em tempo real dos dados envolvidos, o que,<br />

na oralida<strong>de</strong>, se faz somente a posteriori. De fato, na tradição, ocorre oral como que uma <strong>de</strong>puração, por assim<br />

dizer, uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>cantação que está intimamente ligada à maneira como aí se produzem significantes e<br />

significações. O texto oral se funda em uma espera <strong>de</strong> sentidos que, por si só, já é significante e empresta à<br />

oralida<strong>de</strong> todo um ritmo, toda uma estratégia <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> significações. O texto eletrônico substitui essa<br />

espera por uma outra encenação: a <strong>de</strong> uma ubiqüida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentidos impossível, mas sempre reencetada (ou<br />

reencenada ou, melhor ainda, simulada); é como se todos os outros textos eletrônicos estivessem, ao mesmo<br />

tempo, disponíveis ao lado da tela. Mas isso é claramente simulação, fingimento que po<strong>de</strong> ser parente daquele<br />

<strong>de</strong> Pessoa, ou enganação pura e simples. E o modo como esse fingimento vem orquestrar a ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> significantes<br />

– a precarieda<strong>de</strong> material com que ela aparece, se esboça, se <strong>de</strong>svanece para reaparecer <strong>de</strong>pois ou alhures – é<br />

que vai estabelecer a diferença entre um fingimento e outro, na verda<strong>de</strong>, entre fingimento e enganação.<br />

Em suma, se o hipertexto se aproxima <strong>de</strong> formas anteriores – como as do texto oral –, pela maneira como<br />

torna manifesta a pluralida<strong>de</strong> inerente a toda forma textual, ele se distancia <strong>de</strong>las pela maneira como essa<br />

produção <strong>de</strong> significações se dispõe no tempo e, ainda, pela quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dados que se dão a manipular<br />

simultaneamente. O texto eletrônico acelera os tempos <strong>de</strong> concatenação e <strong>de</strong> justaposição das diferentes<br />

obras que eventualmente compartilham um mesmo espaço <strong>de</strong> produção, alterando profundamente sua<br />

apreensão (ou compreensão). Nesse caso, o tempo se reveste também <strong>de</strong> um caráter mais evi<strong>de</strong>ntemente<br />

topológico, ao contrário do tempo da oralida<strong>de</strong>; ele se <strong>de</strong>ixa surpreen<strong>de</strong>r não só como duração ou <strong>de</strong>vir,<br />

mas como encenação, como disposição e disponibilização ao olhar, à experiência do corpo (o que já estava<br />

presente na notável intuição poética figurada por Alberto Caeiro, poeta que dispunha do tempo como mais<br />

uma dimensão concreta do espaço do mundo vivido).<br />

A assinalar, por último, a ilusão <strong>de</strong> que o contexto em que se insere o hipertexto seja “totalement explicite et<br />

organisé”, como diz Lévy. Esse não parece ser jamais o caso. Na verda<strong>de</strong>, nada há que seja totalmente explícito e<br />

organizado, nem no hipertexto, nem em seu contexto. Na medida em que o hipertexto abandona completamente o<br />

fingimento da obra impressa e/ou escrita, essa encenação <strong>de</strong> autonomia, ele vai abrir cada vez mais a materialida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> seus significantes para a arbitrarieda<strong>de</strong> organizante e cúmplice do leitor. Por outro lado, exatamente da<br />

mesma maneira que a obra impressa, o hipertexto eletrônico aponta para um contexto permanentemente em<br />

recuo, fazendo com que o hiper- e o -texto fiquem sempre em situação <strong>de</strong> falta, <strong>de</strong> lacuna, <strong>de</strong> incompletu<strong>de</strong>.<br />

Com tudo que foi dito acima, coloca-se em xeque todo tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição evolutiva ou mesmo positivista dos<br />

textos eletrônicos. Por mais disfarçado que seja, esse tipo <strong>de</strong> juízo aparece com incômoda freqüência. O<br />

mesmo Lévy, por exemplo, menciona “trois pôles <strong>de</strong> l’esprit (...): pôle <strong>de</strong> l’oralité primaire, pôle <strong>de</strong> l’écriture,<br />

99


pôle informatico-médiatique”, 6 num esquema que retoma muito <strong>de</strong> perto os três estágios da evolução da<br />

socieda<strong>de</strong> propostos por Auguste Comte. Em outro trecho, ele ainda afirma que:<br />

“...les catégories usuelles <strong>de</strong> la philosophie <strong>de</strong> la connaissance telles que le mythe, la science, la théorie,<br />

l’interprétation ou l’objectivité dépen<strong>de</strong>nt étroitement <strong>de</strong> l’usage historique, daté et situé <strong>de</strong> certaines<br />

technologies intellectuelles. Qu’on m’enten<strong>de</strong> bien: la succession <strong>de</strong> l’oralité, <strong>de</strong> l’écriture et <strong>de</strong> l’informatique<br />

comme mo<strong>de</strong>s fondamentaux <strong>de</strong> gestion sociale <strong>de</strong> la connaissance ne s’opère pas par simple substitution, mais<br />

plutôt par complexification et déplacement <strong>de</strong> centre <strong>de</strong> gravité”. 7<br />

É certo que Lévy, sobretudo no segundo trecho acima, tenta escapar ao positivismo evolucionista que marca o<br />

primeiro. Assim, se enten<strong>de</strong>mos “complexification et déplacement <strong>de</strong> centre <strong>de</strong> gravité” como uma espécie <strong>de</strong><br />

suspensão/incorporação dos paradigmas anteriores (no sentido <strong>de</strong> uma Aufhebung hegeliana), é certo que<br />

po<strong>de</strong>mos fugir à simplificação positivista. Todavia, ao insistir em várias outras passagens (inclusive em outras<br />

obras) numa tría<strong>de</strong> evolutiva autônoma, a complexificação e o <strong>de</strong>slocamento do centro <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong> parecem<br />

ficar em segundo plano, privilegiando <strong>de</strong> modo evi<strong>de</strong>nte uma linearida<strong>de</strong> evolutiva. Em lugar <strong>de</strong> uma<br />

concepção <strong>de</strong> hipertexto que vê nas diferentes textualida<strong>de</strong>s (da oralida<strong>de</strong> à imprensa e <strong>de</strong>sta ao texto<br />

eletrônico) o trabalho significante interno e autônomo (aí sim!) <strong>de</strong> uma sedimentação, <strong>de</strong> uma produção<br />

coletiva incessante, com todas as suas hesitações, seus recuos, suas ambigüida<strong>de</strong>s, Lévy parece colocar todo o<br />

significado <strong>de</strong>ssas alterações <strong>de</strong> paradigmas num contexto in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e externo, numa estrutura <strong>de</strong> sentido<br />

alheia às diferentes textualida<strong>de</strong>s. É como se apenas a escolha da perspectiva diacrônica já fosse capaz <strong>de</strong><br />

atribuir um horizonte <strong>de</strong> sentidos a qualquer ativida<strong>de</strong> significante, a partir <strong>de</strong> um campo <strong>de</strong> verificação<br />

empírico e obrigatoriamente externo ao texto, juízo que remete ao princípio positivista segundo o qual toda<br />

significação só existe como resultado <strong>de</strong> uma verificação empírica. Com isso, fica difícil não pensar num certo<br />

reducionismo nessas concepções <strong>de</strong> Lévy, na medida em que a verificação (isto é, a atribuição <strong>de</strong> um significado<br />

às mudanças <strong>de</strong> paradigmas) está totalmente subordinada ao contexto empírico da experimentação (este, na<br />

concepção positivista, é colocado no exterior <strong>de</strong> qualquer ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> significação, como origem externa <strong>de</strong><br />

todo sentido).<br />

* * *<br />

Um outro possível ponto <strong>de</strong> aproximação entre textos eletrônicos e oralida<strong>de</strong> estaria na efemerida<strong>de</strong> das<br />

poéticas digitais, isto é, na velocida<strong>de</strong> com que suas estruturas proteiformes se alteram, se per<strong>de</strong>m (às vezes, para<br />

sempre), ou são retomadas. Ora, a efemerida<strong>de</strong> é uma característica que o hipertexto compartilha com qualquer<br />

forma textual, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não confundamos a base material com a realização propriamente dita dos textos<br />

(quando o significante é exposto ao leitor e permite a produção daquilo que po<strong>de</strong> ser aproximado do fenotexto<br />

<strong>de</strong> Kristeva). 8 De fato, a realização do texto resulta sempre da confluência <strong>de</strong> um leitor e da materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um aparelho <strong>de</strong> significações, sendo esta última nada mais do que os elementos significantes expostos à inspeção<br />

dos sentidos (ou seja, as seqüências <strong>de</strong> letras, nas criações verbais; <strong>de</strong> cores e formas, nas visuais; <strong>de</strong> sons, nas<br />

sonoras). Como resultado temos uma produtivida<strong>de</strong> (ou seja, exatamente isso que vimos chamando <strong>de</strong> texto),<br />

um fenômeno que se <strong>de</strong>staca da coisa-em-si, <strong>de</strong>ssa materialida<strong>de</strong> específica que lhe serviu <strong>de</strong> base.<br />

100


E essa produtivida<strong>de</strong> não se <strong>de</strong>ixa pren<strong>de</strong>r, ela se <strong>de</strong>sloca e se modifica continuamente, sobretudo a partir do<br />

momento em que <strong>de</strong>saparece a instância fenomênica em que o texto constitui o leitor e é constituído por ele.<br />

Assim como a obra eletrônica, pretensamente formada por zeros e uns, que <strong>de</strong>saparece ou se altera quando<br />

o computador é <strong>de</strong>sligado ou quando passa por algum processo eletrônico <strong>de</strong> transformação, a obra literária<br />

impressa nunca subsiste da mesma forma. A cada releitura, é toda uma nova textualida<strong>de</strong> que se produz: como<br />

afirma Barthes, em Proust, o prazer <strong>de</strong> cada releitura está no fato <strong>de</strong> que nunca pulamos as mesmas linhas. 9<br />

São, potencialmente, outros textos que se dão a ler, embora saibam guardar sempre uma mesma fisionomia,<br />

<strong>de</strong>rivada <strong>de</strong> uma mesma base material, isto é, da coerência concreta exposta na materialida<strong>de</strong> dos signos<br />

verbais (no caso <strong>de</strong> Proust, as seqüências <strong>de</strong> palavras que formam os romances). Trata-se do que chamamos <strong>de</strong><br />

livro e que não po<strong>de</strong> ser confundido com seus textos possíveis. 10 Esse é outro motivo pelo qual não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

modo algum afirmar que o hipertexto constituiria uma categorização absolutamente original. Com efeito,<br />

todo o aparato teórico <strong>de</strong>senvolvido por um Gérard Genette, por exemplo, por meio da imagem-conceito do<br />

palimpsesto, nos mostra que esse tom provisório e fugaz acompanha a obra literária <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, não<br />

importando, aliás, se o seu suporte é a tela, o papel ou a oralida<strong>de</strong>.<br />

E é necessário chamar a atenção para esse caráter não exclusivo do texto eletrônico, no que se refere à<br />

efemerida<strong>de</strong>, na medida em que ela aparece <strong>de</strong> modo evi<strong>de</strong>nte em todo o conjunto das textualida<strong>de</strong>s orais,<br />

sendo uma das explicações possíveis para o modo como se <strong>de</strong>senvolveram, por exemplo, as técnicas <strong>de</strong><br />

versificação na poesia oci<strong>de</strong>ntal. No caso, os recursos fônicos do texto oral permitiram o surgimento da rima,<br />

da métrica e do ritmo, assegurando a memorização (garantindo um mínimo <strong>de</strong> eficiência em sua<br />

transmissão oral) e ao mesmo tempo constituindo a base <strong>de</strong> uma expressão poética autônoma. De modo<br />

semelhante, é legítimo perguntar, com base nisso, como a efemerida<strong>de</strong> eletrônica do hipertexto po<strong>de</strong>rá dar<br />

origem a uma outra série <strong>de</strong> elementos poéticos, <strong>de</strong>sta vez veiculados pelos meios informáticos. Como as<br />

variações em torno <strong>de</strong> um mesmo tema (como as da métrica e da rima na poesia oral e na poesia impressa),<br />

por exemplo, se darão em um ambiente informatizado? Que tipo <strong>de</strong> dispositivo semântico <strong>de</strong>rivará da<br />

multiplicida<strong>de</strong> concretamente disponível do hipertexto? Dito <strong>de</strong> outra maneira, a pergunta que temos <strong>de</strong><br />

nos fazer é como os elementos e os processos telemáticos do texto eletrônico po<strong>de</strong>rão ser usados para dar<br />

origem a uma série <strong>de</strong> recursos poéticos, numa retórica literária que venha a criar uma poética com base<br />

nos ritmos e nas quantida<strong>de</strong>s próprias do hipertexto.<br />

Assim, seja nas poéticas digitais que trazem os multimeios e principalmente a interativida<strong>de</strong> com a<br />

<strong>literatura</strong>, seja na geração informatizada <strong>de</strong> obras literárias, po<strong>de</strong>mos encontrar mecanismos <strong>de</strong> circulação<br />

culturais que reproduzem <strong>de</strong> alguma maneira, parcialmente, os percursos <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> assimilação<br />

das <strong>literatura</strong>s orais. No caso, talvez seja relevante caracterizar com mais <strong>de</strong>talhes esses percursos no meio<br />

digital, tentando surpreen<strong>de</strong>r neles especificida<strong>de</strong>s até então insuspeitas. Po<strong>de</strong>-se dizer do hipertexto que<br />

ele torna concreto o que antes, nas obras escritas/impressas, era referência indireta: os intertextos latentes<br />

po<strong>de</strong>m aparecer nele como ligações imediatas e simultâneas a outros pontos do hiperespaço <strong>de</strong><br />

significantes. De modo análogo, a produção e a circulação do hipertexto parecem se dar em aparente<br />

simultaneida<strong>de</strong>, imbricando concretamente o trabalho do criador e o do leitor. Tal processo po<strong>de</strong> remeter a<br />

formas embrionárias que já aparecem na tradição oral: nesta, a veiculação <strong>de</strong> uma obra confundia<br />

transmissão e criação, <strong>de</strong>vido ao trabalho criativo da memória individual <strong>de</strong> cada pessoa envolvida no<br />

101


percurso <strong>de</strong> disseminação dos textos orais (basta pensarmos na ativida<strong>de</strong> dos segréis medievais, em oposição<br />

aos menestréis). Todavia, no hipertexto, há que se levar em conta a velocida<strong>de</strong> e a amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse processo,<br />

que superam qualitativa e quantitativamente o fenômeno da transmissão oral, sobretudo no que se refere<br />

ao papel ativo do público consumidor. Este é levado obrigatoriamente a interferir nas etapas e na<br />

velocida<strong>de</strong> da produção hipertextual muito mais do que o público-ouvinte fazia com as peças cantadas<br />

pelos trovadores ou improvisadas ainda hoje pelos repentistas.<br />

Com efeito, o texto eletrônico justapõe à própria tecedura, à sua materialida<strong>de</strong> manipulável pelo monitor<br />

uma trama complexa <strong>de</strong> relações em que ele é criado, lido, recriado, relido, incessantemente,<br />

recursivamente. Isso significa que o hipertexto torna paralelos os tempos <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> circulação (ou<br />

<strong>de</strong> recepção, se preferirem). Mais uma vez, temos uma encenação do tempo em que a temporalida<strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>ixa surpreen<strong>de</strong>r como espacialização. Mas, ao contrário da poesia <strong>de</strong> Alberto Caeiro, em que apenas se<br />

tenta insinuar ou apresentar a percepção <strong>de</strong> um tempo topologizado, o texto eletrônico não é nada sutil:<br />

ele impõe, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a superfície <strong>de</strong> seus significantes, sobre a tela on<strong>de</strong> ele se abre ao leitor, uma circularida<strong>de</strong><br />

inebriante, célere, em que os instantes <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong> navegação parece quase se confundirem, dando<br />

origem a um único trabalho <strong>de</strong> produção.<br />

Em suma, na superfície da tela e na profundida<strong>de</strong> das ligações hipertextuais, os diferentes tempos da escrita<br />

(que na tradição impressa correspon<strong>de</strong>riam ao início, ao meio e ao fim dos movimentos do escritor sobre o<br />

papel) encenam uma ubiqüida<strong>de</strong> do impulso criador. É como se o hipertexto fosse surgindo, todo ele, ao mesmo<br />

tempo, originário <strong>de</strong> um único movimento <strong>de</strong> escrita, não mais como queima um rastilho <strong>de</strong> pólvora, linear e<br />

progressivamente, mas, sobretudo, como crescem cristais em solução saturada, em vários pontos do espaço,<br />

simultaneamente. Não se trata <strong>de</strong> uma presentificação absoluta, como se o tempo fosse freado até a<br />

imobilida<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong> o hipertexto se organizar <strong>de</strong> forma a submeter o tempo à pluralida<strong>de</strong> do<br />

espaço dos significantes. Daí essa impressão <strong>de</strong> que os tempos <strong>de</strong> concepção e <strong>de</strong> consumo se confun<strong>de</strong>m no<br />

clicar do mouse, como se criador e fruidor se confundissem inevitavelmente. Todavia, trata-se <strong>de</strong> uma<br />

encenação do hipertexto, pois, <strong>de</strong> fato, essa circularida<strong>de</strong>, essa equiparação entre ambos não vai além da<br />

materialida<strong>de</strong> dos significantes concretamente disponíveis na tela. A partir do momento em que ele é<br />

percorrido pela leitura <strong>de</strong> alguém, em que se torna parte <strong>de</strong> um espetáculo (aquele em que o leitor se dá um<br />

texto e, mais importante, se dá em texto), a materialida<strong>de</strong> do hipertexto ce<strong>de</strong> lugar àquilo que Roman<br />

Ingar<strong>de</strong>n, com relação ao meio impresso, chamava <strong>de</strong> objeto intencional. E é justamente nessa intencionalida<strong>de</strong><br />

que se po<strong>de</strong> retomar a relação entre instância <strong>de</strong> criação e instância <strong>de</strong> fruição, ou <strong>de</strong> leitura. De fato, o<br />

hipertexto parece confundir os trabalhos <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong> fruição, no que diz respeito à materialida<strong>de</strong> dos<br />

significantes que disponibiliza na tela, encenando essa ubiqüida<strong>de</strong> análoga à auto-suficiência da escrita<br />

impressa. No entanto, a navegação hipertextual não precisa se submeter necessariamente às mesmas condições<br />

<strong>de</strong> contorno <strong>de</strong> sua encenação. Em conseqüência, o leitor po<strong>de</strong> escolher outras posições para exercer seu olhar,<br />

buscando não sobrepor-se ao criador, confundindo-se com ele, mas propondo um diálogo em que as diferenças<br />

entre as duas posições possam ser reconstruídas com base nos vestígios <strong>de</strong> autoria que ainda (e sempre) restam<br />

nos significantes e nos processos <strong>de</strong> significações que lhe são dados manipular.<br />

* * *<br />

102


Para aprofundar, então, um pouco mais essas questões sobre novida<strong>de</strong> ou repetição, talvez seja interessante<br />

tomar como ponto <strong>de</strong> partida mais algumas reflexões <strong>de</strong> Pierre Lévy, não apenas pelo modismo que muitos,<br />

ingenuamente, ainda associam a seu nome e a suas idéias, mas pelo interesse <strong>de</strong> suas intuições teóricas<br />

(ainda que ele não tenha conseguido dar-lhes conseqüência e retaguarda <strong>de</strong> modo mais convincente).<br />

Vamos retomar outros três comentários seus:<br />

“...les individus <strong>de</strong> culture écrite ont tendance à penser par catégories quand les gens <strong>de</strong> culture orale<br />

appréhen<strong>de</strong>nt d’abord <strong>de</strong>s situations...” 11<br />

“L’homme ‘nu’, tel qu’il est étudié et décrit par les laboratoires <strong>de</strong> psychologie cognitive, sans ses<br />

technologies intellectuelles ni le secours <strong>de</strong> ses semblables, recourt spontanément à une pensée <strong>de</strong> type oral,<br />

centrée sur les situations et les modèles concrets. La ‘pensée logique’ correspond à une strate culturelle<br />

récente liée à l’alphabet et au type d’apprentissage (scolaire) qui lui correspond.” 12<br />

“... le savoir informatisé ne vise pas la conservation à l’i<strong>de</strong>ntique d’une société se vivant ou se voulant<br />

immuable, comme dans le cas <strong>de</strong> l’oralité primaire. Il ne vise pas non plus la vérité, à l’instar <strong>de</strong>s genres<br />

canoniques nés <strong>de</strong> l’écriture que sont la théorie ou l’herméneutique. Il cherche la vitesse et la pertinence <strong>de</strong><br />

l’éxecution, et plus encore la rapidité et l’à propos du changement opératoire.” 13<br />

As distinções entre uma socieda<strong>de</strong> da telemática e as socieda<strong>de</strong>s da imprensa e da oralida<strong>de</strong> dizem respeito,<br />

como se po<strong>de</strong> inferir do termo escolhido – socieda<strong>de</strong>s –, a uma diferença entre formas, ritmos e meios <strong>de</strong><br />

circulação dos objetos culturais por elas produzidos, e não a formas distintas <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>. No caso, os<br />

comentários <strong>de</strong> Pierre Lévy parecem se fundar numa visão já <strong>de</strong> há muito ultrapassada, ao menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

Lévy-Bruhl, o <strong>de</strong> um estado pré-lógico das socieda<strong>de</strong>s humanas. E tal juízo parece remeter a uma concepção<br />

estreita e simplista <strong>de</strong> “lógica”, na medida em que se <strong>de</strong>scartam como ilógico, pré-lógico ou antilógico tudo<br />

o que escapa a certa organização discursiva, her<strong>de</strong>ira das formas argumentativas tradicionais (silogísticas,<br />

na maioria); como se essas organizações discursivas fossem capazes <strong>de</strong> encerrar toda a complexida<strong>de</strong> das<br />

produções do pensamento; como se, finalmente, entre pensamento (sempre o “pensamento lógico”, claro!)<br />

e expressão verbal houvesse uma subordinação <strong>de</strong>sta última àquele primeiro. Aceitando as posições <strong>de</strong><br />

Pierre Lévy, chegaríamos a um percurso interessante: <strong>de</strong> um mal disfarçado indutivismo epistemológico, ele<br />

salta para um positivismo quase panfletário, chegando, enfim, a um relativismo bastante afeito às<br />

perspectivas pós-mo<strong>de</strong>rnas. Primeiramente, creio que não se trata mesmo <strong>de</strong> mera coincidência o fato <strong>de</strong><br />

ele retomar o esquema tríplice <strong>de</strong> Auguste Comte. A evolução que este propõe para as ciências e o espírito<br />

humano (passando sucessivamente pelas fases teológica, metafísica e positiva) não <strong>de</strong>ixa mesmo <strong>de</strong><br />

correspon<strong>de</strong>r ao que Pierre Lévy postula como progresso da cultura (dividida em oralida<strong>de</strong>, escrita impressa<br />

e cibercultura). Nos dois esquemas, há a inequívoca <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> uma evolução que é <strong>de</strong>terminada pelos<br />

elementos objetivos da experiência do homem. E o espírito humano? Ah! Este <strong>de</strong>dica-se a apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

acordo com o acaso criador que po<strong>de</strong> lhe dar (ou não) ferramentas com que se divertir e evoluir.<br />

Assim, talvez seja mais justo explorarmos as distinções entre texto eletrônico e texto oral, a partir, por<br />

exemplo, dos diferentes ritmos <strong>de</strong> produção, <strong>de</strong> <strong>de</strong>cantação e <strong>de</strong> sedimentação, como propusemos acima: o<br />

103


texto oral se funda no que ali chamávamos <strong>de</strong> espera <strong>de</strong> sentidos, essa incompletu<strong>de</strong> imediata na<br />

articulação dos significantes. Quanto ao hipertexto, ele finge dar acesso a uma totalida<strong>de</strong> plural e<br />

imediatamente disponível, simulando – apenas simulando – uma disponibilida<strong>de</strong> direta da infinitu<strong>de</strong><br />

potencial da linguagem. E, com base nisso, po<strong>de</strong>mos discernir outra diferença entre oral e eletrônico. Ela<br />

estaria no modo como a temporalida<strong>de</strong> se dá a ver nas duas formas <strong>de</strong> armação textual, assim como na<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dados e <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> produção textual, que são muito maiores no hipertexto, conforme<br />

já se discutiu. É importante salientar que essa diferença quantitativa implica uma alteração qualitativa no<br />

papel do leitor: ele não vai só ter que lidar com uma maior quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> informações e <strong>de</strong> inferências,<br />

mas vai ter que <strong>de</strong>senvolver estratégias <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> leitura(s) que concretize(m) esse plural do qual é<br />

feito (agora concretamente) o hipertexto.<br />

* * *<br />

O <strong>de</strong>safio para o estudioso dos novos textos eletrônicos é, então, bem <strong>de</strong>limitar seu campo <strong>de</strong> estudo, <strong>de</strong> forma<br />

a compreen<strong>de</strong>r como esse vínculo com tradições outras e meios outros, como o oral, po<strong>de</strong> aparecer <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

um paradigma tecnológico totalmente diverso das culturas não escritas. Em outras palavras, nossa empreita é<br />

enten<strong>de</strong>r como a novida<strong>de</strong> se opõe e se associa ao antigo ao mesmo tempo. Para isso, torna-se necessário<br />

pensar no texto – seja ele <strong>de</strong> que tipo for, qualquer que seja o meio em que ele é produzido – com base em<br />

uma perspectiva geral, abrangente, inaugural, enten<strong>de</strong>ndo-o como produtivida<strong>de</strong>. E mais, no que se refere<br />

às diferentes produtivida<strong>de</strong>s textuais, ou seja, às especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada tipo <strong>de</strong> texto, com seu respectivo meio<br />

<strong>de</strong> disseminação, po<strong>de</strong>-se falar <strong>de</strong> uma transtextualida<strong>de</strong>, no sentido <strong>de</strong> uma generalida<strong>de</strong> inaugural <strong>de</strong> todo<br />

e qualquer texto. Contudo, tomando essa generalida<strong>de</strong> inaugural dos textos, esse grau zero da escrita que faz<br />

possível toda textualida<strong>de</strong> (quer dizer o texto oral, o texto manuscrito, o texto impresso e, finalmente, o texto<br />

eletrônico), a novida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste último estaria, assim, não na inauguração <strong>de</strong> um novo horizonte <strong>de</strong> sentidos, mas<br />

na maneira como esse horizonte aparece diante <strong>de</strong> nós indiretamente, por intermédio do texto eletrônico, e<br />

sobretudo na maneira como ele se <strong>de</strong>ixa refletir pela ativida<strong>de</strong> específica <strong>de</strong> significação, intrínseca a todo<br />

texto. No caso do hipertexto, trata-se <strong>de</strong> dois elementos centrais que lhe dão sua fisionomia própria, sua<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir significações: a velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> circulação e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramento (vale dizer, <strong>de</strong><br />

sedimentação) das obras, com base em uma arquitetura <strong>de</strong> significantes até então impossível.<br />

No que diz respeito a essa arquitetura, basta pensar na maneira como um mero ensaio teórico como este po<strong>de</strong><br />

ser redigido e, então, lido por meio <strong>de</strong> simples programas <strong>de</strong> edição <strong>de</strong> textos ou <strong>de</strong> HTML. 14 As reflexões nele<br />

propostas se po<strong>de</strong>m dar a partir <strong>de</strong> ligações que levem a comentários que, por sua vez, extrapolam o antigo<br />

espaço das notas <strong>de</strong> rodapé ou <strong>de</strong> final <strong>de</strong> capítulo, tão freqüentes na tradição impressa; esses comentários<br />

po<strong>de</strong>m estar diretamente associados a alguns termos <strong>de</strong> um texto-base, permitindo assim uma navegação<br />

diferente do espaço impresso, eludindo a or<strong>de</strong>m linear e a seqüencialida<strong>de</strong> cronológica, até então habituais, das<br />

partes sucessivas da escrita pré-eletrônica. De fato, a eventual numeração <strong>de</strong> cada comentário per<strong>de</strong>ria qualquer<br />

veleida<strong>de</strong> organizativa, servindo apenas <strong>de</strong> ligação entre o termo sublinhado e o comentário que se <strong>de</strong>senvolve<br />

a partir <strong>de</strong>le. Em lugar <strong>de</strong> números, po<strong>de</strong>r-se-ia colocar qualquer outro signo, pois a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> leitura não está<br />

<strong>de</strong>finida <strong>de</strong> antemão por uma progressão aritmética, mas por uma pluralida<strong>de</strong> (e não uma infinitu<strong>de</strong>, ressaltese)<br />

<strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns possíveis, permitidas pelos instrumentos e pelas características próprias do hipertexto.<br />

104


Com isso, reafirma-se um dos princípios que organizam todas essas reflexões sobre o hipertexto: sua<br />

novida<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> principalmente na materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus elementos e <strong>de</strong> seus processos <strong>de</strong><br />

significação, jamais na invenção <strong>de</strong> uma nova capacida<strong>de</strong> expressiva (como se os meios informáticos<br />

fossem capazes, por si sós, <strong>de</strong> inventar uma linguagem). Ao contrário, somos nós que, incessantemente,<br />

falamos através dos meios informáticos e inventamos, neles e com eles, novas linguagens. Mesmo os<br />

insucessos, as panes são eloqüentes e nos introduzem justamente na esfera <strong>de</strong> significações dos<br />

instrumentos tecnológicos, nos informando a participação humana na construção <strong>de</strong>sses objetos, que<br />

são, ainda e sempre, essencialmente culturais. Dito <strong>de</strong> outra maneira, não é uma nova humanida<strong>de</strong> que<br />

é gerada pelo hipertexto, 15 mas uma mesma humanida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>sdobra continuamente, apoiandose<br />

em instrumentos tecnológicos sempre diferentes e, às vezes, materialmente mais complexos. Acima,<br />

aliás, já foram se discutiram algumas <strong>de</strong>ssas questões acerca da novida<strong>de</strong> representada pelo hipertexto.<br />

É por isso que insisto em apresentar o hipertexto como um novo arranjo, um novo ritmo no processo<br />

<strong>de</strong> produção textual. Sua novida<strong>de</strong> estaria sobretudo na maneira como as mesmas condições <strong>de</strong><br />

possibilida<strong>de</strong> das significações se manifestam <strong>de</strong> maneira diversa, e não na instauração <strong>de</strong> um outro<br />

horizonte <strong>de</strong> sentidos para a linguagem verbal.<br />

* * *<br />

Como já ficou claro, uma das perspectivas teóricas que adotamos busca fundar a idéia <strong>de</strong> (hiper)texto<br />

eletrônico no conceito geral <strong>de</strong> texto, em particular no literário, já amplamente discutido e explorado por<br />

uma larga tradição que remonta a Aristóteles, passando pelos exegetas e cabalistas medievais, para chegar<br />

à escola francesa da segunda meta<strong>de</strong> do século XX. Então, na perspectiva que propomos, falar <strong>de</strong> texto oral,<br />

texto eletrônico, texto impresso, cibertexto, hipertexto, texto corporal, texto pictórico etc. seria até<br />

impróprio, pelo fato <strong>de</strong> todos eles serem manifestações <strong>de</strong> uma transtextualida<strong>de</strong> – como já dito antes –,<br />

essa proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> as teias significantes associarem, por exemplo, a oralida<strong>de</strong> aos textos eletrônicos, ou <strong>de</strong><br />

traduzir, discutir e apresentar estes últimos através da superfície plana da escrita. Em outras palavras,<br />

partimos do pressuposto <strong>de</strong> que todo tipo <strong>de</strong> texto (aí incluída a oralida<strong>de</strong>) po<strong>de</strong> ser combinado em uma<br />

trama <strong>de</strong> textos, ou seja, em um texto <strong>de</strong> textos. Todavia, o texto da tradição oral só permite o acesso a<br />

esse texto <strong>de</strong> textos como construção externa e posterior. Diferentemente, o texto eletrônico permite<br />

colocar em circulação, em tempo real e sempre parcialmente, esse texto eletrônico <strong>de</strong> textos eletrônicos,<br />

esse rizoma telemático, num intervalo <strong>de</strong> tempo que possibilita sua totalização e sua reinserção no processo<br />

<strong>de</strong> produção textual <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ele se originou.<br />

Talvez essas questões – freqüentemente, abstratas <strong>de</strong>mais – possam ser mais bem digeridas a partir <strong>de</strong><br />

algum exemplo concreto. Tomemos primeiramente um artefato chamado Sintext, um gerador <strong>de</strong> textos<br />

concebido por Pedro Barbosa. Simplificando, po<strong>de</strong>mos dizer que ele funciona com base em um banco <strong>de</strong><br />

dados, composto <strong>de</strong> uma lista <strong>de</strong> palavras escolhidas, aleatoriamente, para preencher uma fôrma sintática<br />

pre<strong>de</strong>finida. Uma vez que se dá início ao processo, o próprio programa seleciona as palavras e vai inserindoas<br />

numa seqüência previamente <strong>de</strong>finida. À primeira vista, parece que Barbosa não iria nem um milímetro<br />

além dos processos <strong>de</strong> escolha e combinação que estão e sempre estiveram na base <strong>de</strong> qualquer gesto<br />

expressivo. Mas o que ele propõe – e torna possível – é um <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong>ssas operações. Não temos aqui<br />

105


a retomada das tradicionais inventio e dispositio realizada pelo criador da obra; nem mesmo se trata <strong>de</strong><br />

escolhas e combinações realizadas pelo leitor a partir <strong>de</strong> elementos disponibilizados e <strong>de</strong> operações<br />

possibilitadas por algum mecanismo proposto pelo escritor, como os labirintos literários dos séculos XVII e<br />

XVIII (anexo 6) ou o <strong>de</strong> Camões, já mencionado. O dispositivo informático como que se torna uma máquina<br />

retórica, exercendo ela mesma o papel <strong>de</strong> selecionar os elementos mínimos e <strong>de</strong> combiná-los segundo<br />

regras e posições previamente estabelecidas. No caso <strong>de</strong> Sintext, o escritor (ou conceptor, ou criador)<br />

também estaria <strong>de</strong> certa forma encarregado <strong>de</strong> perfazer a inventio e a dispositio, mas não mais no nível dos<br />

significantes verbais, a partir <strong>de</strong> que se produziriam as ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> palavras dadas à leitura. O que ele faz,<br />

na verda<strong>de</strong>, é abrir um outro nível <strong>de</strong> escolha e combinação, quer dizer, um outro espaço retórico, ao<br />

selecionar e combinar programas, algoritmos e processos informáticos. Trata-se <strong>de</strong> uma retórica que exige<br />

tanto a cumplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> programadores informáticos e visuais quanto o conhecimento dos limites e<br />

possibilida<strong>de</strong>s dos programas e das máquinas. E temos aí uma retórica que mescla in<strong>de</strong>levelmente os<br />

significantes verbais aos elementos telemáticos, a expressão verbal ao processamento.<br />

Porém, para que o leitor perceba esse <strong>de</strong>slocamento das operações retóricas por parte do autor da obra, é<br />

preciso <strong>de</strong>slocar também a perspectiva <strong>de</strong> leitura. De fato, se mantemos a atenção presa apenas às palavras<br />

que vão surgindo, a cada vez que reinicializamos o dispositivo, vemos surgir seqüências <strong>de</strong> significantes<br />

verbais que se ligam <strong>de</strong> forma coerente, gramatical, mas mantendo certas semelhanças semânticas e<br />

imensas similitu<strong>de</strong>s sintáticas. Aparece aí o que já se convencionou chamar <strong>de</strong> “variações em torno <strong>de</strong> um<br />

mesmo tema”, estrutura <strong>de</strong> criação tanto explorada na música quanto na <strong>literatura</strong> (mesmo que em<br />

freqüência bem menor) 16 e que, nessa perspectiva, traria <strong>de</strong> divertido apenas a verificação <strong>de</strong> que a máquina<br />

imita mais ou menos bem o homem, conclusão que tanto po<strong>de</strong> ser pensada com indulgência quanto<br />

afirmada com <strong>de</strong>sdém. Por esse viés, o computador não seria nada além <strong>de</strong> um mantra tecno-místico,<br />

<strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> qualquer transcendência ou interesse. Para superar isso que parece ser uma espécie <strong>de</strong><br />

nostalgia da pátria impressa, é necessário que o leitor dê-se conta justamente <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>slocamento da<br />

retórica. Ela não está mais circunscrita à seleção e à combinação dos significantes que irão diretamente para<br />

o plano expressivo. Ela se <strong>de</strong>sloca para outro plano, o da seleção e da combinação das operações que<br />

permitirão, por automatismos maquínicos e/ou operações interativas realizadas pelo leitor, uma segunda<br />

rodada <strong>de</strong> seleções e combinações. De forma muito semelhante, é o que se encontra tanto nos Cent Milles<br />

Milliards <strong>de</strong> Poèmes, <strong>de</strong> Raymond Queneau, quanto em Litteraterra, <strong>de</strong> Artur Matuck.<br />

* * *<br />

O espaço telemático do texto eletrônico po<strong>de</strong> ser visto então como o exercício <strong>de</strong> uma intersubjetivida<strong>de</strong><br />

direta em tempo real, à moda da oralida<strong>de</strong>, sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> trazer esse elemento novo que é a quasesimultaneida<strong>de</strong><br />

da produção e da circulação do hipertexto (como já <strong>de</strong>fendíamos acima). Mas que não se<br />

escamoteiem as diferenças evi<strong>de</strong>ntes na dinâmica <strong>de</strong>sse processo: no caso do meio eletrônico, as alterações<br />

no campo <strong>de</strong> sentidos se fazem não diria instantaneamente, mas a tal velocida<strong>de</strong> que elas terminam por se<br />

manifestar <strong>de</strong> modo evi<strong>de</strong>nte, exibindo aos participantes <strong>de</strong>sse processo toda uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> produção,<br />

assimilação, transformação e re-produção <strong>de</strong> sentidos e, claro, <strong>de</strong> textos. Por outro lado, a exibição <strong>de</strong>sse<br />

complexo textual adiciona à leitura linear uma série infinda <strong>de</strong> percursos outros, fazendo <strong>de</strong>sses textos<br />

106


eletrônicos não apenas uma evolução seqüencial, serial e linear <strong>de</strong> significações e <strong>de</strong> significantes, mas uma<br />

elaboração espacial (ou melhor, como já dissemos, topológica).<br />

Em conseqüência, aquilo que na oralida<strong>de</strong> ainda era uma imposição do meio <strong>de</strong> circulação, isto é, a apreensão<br />

seqüenciada, substitutiva e temporal dos elementos dos textos, torna-se agora uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura entre<br />

outras, um recorte possível entre vários outros. Em suma, o texto eletrônico parece se colocar, com respeito à<br />

tradição oral, mais no sentido <strong>de</strong> uma sedimentação e menos como uma Aufhebung hegeliana ou como<br />

culminância <strong>de</strong> um processo evolutivo <strong>de</strong> teor positivista (essa, muito menos ainda!). Aliás, tal dicotomia entre oral<br />

e telemático, inerente ao texto eletrônico, espelha outras dicotomias, ou melhor, outras reversibilida<strong>de</strong>s, que<br />

implicam sua aparência dinâmica, seu caráter não somente ambíguo, mas essencialmente in<strong>de</strong>cidível: o texto<br />

eletrônico, pelo fato <strong>de</strong> ser o que é, oscila sem cessar entre textual e hipertextual, virtual e concreto, leitura e<br />

navegação, autor e leitor, linguagem verbal e multimeios, centros <strong>de</strong> significação e gênese rizomática, limite e<br />

infinitu<strong>de</strong> etc. Como conseqüência, altera-se o equilíbrio entre virtualida<strong>de</strong> e concretu<strong>de</strong> no espaço hipertextual, se<br />

o comparamos com o meio impresso. Não consigo compartilhar alguns dos juízos <strong>de</strong> um Baudrillard ou <strong>de</strong> Virilio,<br />

<strong>de</strong> que o ciberespaço introduziria uma região <strong>de</strong> absoluta virtualida<strong>de</strong> (por mais paradoxal que seja a expressão)<br />

na produção textual. Como pensar assim, quando aquilo que chamávamos até então <strong>de</strong> intertextualida<strong>de</strong> (nas<br />

suas várias formas) se apresenta diretamente na tela, estabelecendo uma indistinção irredutível entre o fundo e<br />

a superfície <strong>de</strong>sse texto-palimpsesto eletrônico? Isso po<strong>de</strong> talvez ser mais bem esclarecido quando pensamos<br />

em algumas das características que se atribuem com freqüência aos textos eletrônicos: <strong>de</strong> um lado,<br />

fragmentação e multilinearida<strong>de</strong> (quase sempre mencionadas juntas); <strong>de</strong> outro, infinitu<strong>de</strong>.<br />

No que toca às primeiras, elas remeteriam ao que parece uma <strong>de</strong> suas características mais salientes ou, ao<br />

menos, àquela que alguns teóricos mais se comprazem em <strong>de</strong>screver: associa-se a ambas toda a discussão<br />

<strong>de</strong>rridiana acerca <strong>de</strong> centro e <strong>de</strong>scentramento, construção e <strong>de</strong>sconstrução, a tal ponto que a própria matéria<br />

do hipertexto parece ficar escondida <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> conceitos e preconceitos <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m. Além disso, nenhuma<br />

teoria do texto que se preze jamais emprestou ao texto uma imagem <strong>de</strong> linearida<strong>de</strong> estrita, <strong>de</strong> produção<br />

monolítica e unívoca <strong>de</strong> significações. E todo o esforço teórico das últimas décadas apontou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo para<br />

esse constante ultrapassamento da leitura pelo texto (como aponta Barthes a respeito da obra <strong>de</strong> Proust, cujo<br />

prazer <strong>de</strong> leitura estaria no fato <strong>de</strong> que, a cada retomada, <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> ler sempre linhas diferentes).<br />

Finalmente, no que diz respeito a limite e infinitu<strong>de</strong>, no ciberespaço, pense-se, por exemplo, na tradição<br />

exegética medieval que tentou inutilmente impor amarras teológicas às interpretações dos livros bíblicos.<br />

Os limites <strong>de</strong> cada texto não têm valida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finitiva nem mesmo numa mesma leitura, que dirá em várias?!<br />

No caso, é assaz eloqüente a imagem do poeta que não conclui seu poema, mas o abandona, mesma coisa<br />

po<strong>de</strong> ser afirmada da leitura crítica <strong>de</strong> obras literárias, sempre entregue a uma provisorieda<strong>de</strong> ao mesmo<br />

tempo exasperante e rica, trabalhosa e plural. A não limitação do texto eletrônico não correspon<strong>de</strong>ria<br />

jamais a uma infinitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem materialmente disponível na tela do computador, mas a uma<br />

convergência assimptótica que vai da construção das significações ao horizonte dos sentidos possíveis que<br />

as contornam. Isso não implicaria uma impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ler, ao contrário: a infinitu<strong>de</strong> potencial do texto<br />

eletrônico se materializa por um recorte necessariamente finito na articulação dos significantes, no que ele<br />

não se diferencia absolutamente <strong>de</strong> textos produzidos em outros meios.<br />

107


Notas<br />

1 LANDOW, George P. Hypertext: the convergence of contemporary critical theory and technology. Baltimore: The Johns<br />

Hopkins University Press, 1992. p. 117. [“Num ambiente hipertextual, uma falta <strong>de</strong> linearida<strong>de</strong> não <strong>de</strong>strói a narrativa. De fato,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que os leitores sempre – mas particularmente nesse tipo <strong>de</strong> ambiente – fabricam suas próprias estruturas, seqüências e<br />

significados, eles têm, surpreen<strong>de</strong>ntemente, poucos problemas para ler uma história ou ler para uma história (...) a leitura <strong>de</strong><br />

ficção hipertextual proporciona algumas das experiências <strong>de</strong>ssa nova oralida<strong>de</strong> que tanto McLuhan quanto Ong já haviam<br />

antecipado”.] tradução do autor.<br />

2 [“Os programas <strong>de</strong> ajuda à concepção e à discussão coletivas (...) auxiliam cada intelocutor a se orientar na estrutura lógica<br />

da discussão em curso e lhe fornecem uma representação gráfica da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> argumentos. Eles permitem igualmente a ligação<br />

efetiva <strong>de</strong> cada argumento com os diversos documentos a que se referem, que o fundam, talvez, e formam, em todo caso, o<br />

contexto da discussão. Esse contexto, ao contrário do que se passa em uma conversa, é totalmente explícito e organizado”.]<br />

tradução do autor.<br />

3 LÉVY, op. cit., 1993, p. 74, nota 10. [“Com os programas <strong>de</strong> trabalho em grupo, o <strong>de</strong>bate se volta para a construção progressiva<br />

<strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> argumentativa e documental sempre presente aos olhos da comunida<strong>de</strong>, manejável a qualquer instante. Não se trata<br />

mais do ‘cada um em sua vez’, ou do ‘um após o outro’, mas <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> lenta escrita coletiva, <strong>de</strong>sincronizada,<br />

<strong>de</strong>sdramatizada, explodida, como que crescendo a partir <strong>de</strong>la mesma, seguindo uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linhas paralelas e, todavia,<br />

sempre disponível, or<strong>de</strong>nada, objetivada na tela. O programa <strong>de</strong> trabalho em grupo inaugura talvez uma nova geometria da<br />

comunicação”.] tradução do autor.<br />

4 O que remete à organização rizomática <strong>de</strong> que falam Deleuze e Guattari, sem a objetivação autonomizante que associam a ela; <strong>de</strong> outro<br />

lado, isso também envia à noção <strong>de</strong> “vizinhança” da topologia matemática e da álgebra linear.<br />

5 O que lembra o fingimento poético <strong>de</strong> Pessoa: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente, / Que chega a fingir que é dor / A<br />

dor que <strong>de</strong>veras sente”.<br />

6 LÉVY, op. cit., 1993, p. 143, nota 10. [“três pólos do espírito (...): pólo da oralida<strong>de</strong> primária, pólo da escrita, pólo informático-mediático”]<br />

tradução do autor.<br />

7 LÉVY, op. cit., 1993, p. 10, nota 10. [“...as categorias usuais da filosofia do conhecimento, tais como o mito, a ciência, a teoria,<br />

a interpretação ou a objetivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m estreitamente do uso histórico, data e situação <strong>de</strong> certas tecnologias intelectuais.<br />

Que me entendam bem: a sucessão da oralida<strong>de</strong>, da escrita e da informática, como modos fundamentais da gestão social do<br />

conhecimento, não opera por simples substituição, mas, sobretudo, por complexificação e <strong>de</strong>slocamento do centro <strong>de</strong><br />

gravida<strong>de</strong>”.] tradução do autor.<br />

8 KRISTEVA, Julia. Semeiotike: recherches pour une sémanalyse (extraits). Paris: Editions du Seuil, 1978. p. 217 e ss. [Points].<br />

9 BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris: Editions du Seuil, 1973. p. 22. [Tel Quel].<br />

10 A rigor, esta última expressão é uma tautologia, já que texto se <strong>de</strong>fine, em qualquer perspectiva, como um certo campo <strong>de</strong><br />

possibilida<strong>de</strong>s que se recorta num horizonte <strong>de</strong> sentidos.<br />

11 [“...os indivíduos da cultura escrita têm tendência a pensar através <strong>de</strong> categorias, enquanto as pessoas <strong>de</strong> cultura oral apreen<strong>de</strong>m,<br />

inicialmente, as situações...”] tradução do autor.<br />

12 Ambos em LÉVY, op. cit., 1993, p. 105, nota 10. [“O homem ‘nu’, como ele é estudado e <strong>de</strong>scrito nos laboratórios <strong>de</strong> psicologia<br />

cognitiva, sem suas tecnologias intelectuais nem o auxílio <strong>de</strong> seus semelhantes, recorre espontaneamente a um pensamento <strong>de</strong> tipo oral,<br />

centrado em situações e mo<strong>de</strong>los concretos. O ‘pensamento lógico’ correspon<strong>de</strong> a um estrato cultural recente, ligado ao alfabeto e ao tipo<br />

<strong>de</strong> aprendizagem (escolar) que correspon<strong>de</strong> a ele”.] tradução do autor.<br />

13 LÉVY, op. cit., 1993, p. 134-135, nota 10. [“...o saber informatizado não visa à conservação idêntica <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> que vive<br />

108


ou que se quer imutável, como no caso da oralida<strong>de</strong> primária. Ele também não visa à verda<strong>de</strong>, como os gêneros canônicos<br />

nascidos da escrita, que são a teoria ou a hermenêutica. Ele busca a velocida<strong>de</strong> e a pertinência da execução, e, mais ainda, a<br />

rapi<strong>de</strong>z e o proposital da mudança operativa”.] tradução do autor.<br />

14 Um exemplo disso está no trabalho que apresentei, no ano <strong>de</strong> 2000, no congresso da COMPÓS. Disponível em: Acesso em: 29<br />

ago. 2003.<br />

15 Ao contrário do que afirma freqüentemente Pierre Lévy, a exemplo <strong>de</strong> um artigo publicado no suplemento Mais!, do jornal Folha <strong>de</strong><br />

S.Paulo, <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1998.<br />

16 Um exemplo <strong>de</strong>sse uso literário das variações são os Exercices <strong>de</strong> Style, <strong>de</strong> Raymond Queneau.<br />

109


conclusão segunda<br />

transbordos<br />

e reformações do<br />

texto eletrônico


“... je découvre en moi une sorte <strong>de</strong> faiblesse<br />

interne qui m’empêche d’êtreabsolument<br />

individu et m’expose au regard <strong>de</strong>s autres<br />

comme un homme parmi les hommes ou au<br />

moins une conscience parmi les consciences.” 1<br />

Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie <strong>de</strong> la Perception


Excesso e Excessivo<br />

Debordamentos e reformatações po<strong>de</strong>m constituir a forma e a fôrma visíveis e jamais estáveis dos textos em<br />

espaços eletrônicos <strong>de</strong> escrita e criação. Ao menos é o que se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r das transformações sofridas<br />

efetivamente pelos corpora textuais que, em espaços concretamente hipertextuais, são dados a ler, com<br />

as conseqüentes transformações experimentadas em seus espaços perceptivos, pelos corpos que se colocam<br />

em situação <strong>de</strong> leitores. Ora, é exatamente essa concretu<strong>de</strong> hipertextual que começa a nos dar o alcance e<br />

a experiência dos <strong>de</strong>bordamentos e das reformatações, dos transbordos e das reformações. É como se a<br />

espessura fenomênica <strong>de</strong> nosso corpo próprio, esse <strong>de</strong> leitores empiricamente colocados diante <strong>de</strong> telas e<br />

<strong>de</strong> procedimentos interativos, encontrasse novas vizinhanças, inéditas superfícies, inauditos volumes em que<br />

exercitar nossa capacida<strong>de</strong> expressiva. Em outras palavras, esses <strong>de</strong>bordamentos e reformatações a que<br />

somos chamados a habitar em nossas leituras traduzem a maleabilida<strong>de</strong> por vezes surpreen<strong>de</strong>nte e<br />

inesperada dos textos eletrônicos, sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acumular <strong>de</strong>talhes e minúcias, <strong>de</strong> amealhar pretensas<br />

irrelevâncias, <strong>de</strong> absorver novas regiões, <strong>de</strong> solapar fronteiras, <strong>de</strong> permitir novas aparências e outros prazos.<br />

Há, inicialmente, um excesso – isso a que chamamos <strong>de</strong>bordamento – que acarreta duas conseqüências. Mas,<br />

antes <strong>de</strong> falarmos <strong>de</strong>las especificamente, vamos percebê-las e – talvez melhor – apreendê-las com base na<br />

obra Antologia Labiríntica. O que se lê nesses hipertextos, tais como essa Antologia <strong>de</strong> André Vallias? Como<br />

o próprio autor indica, logo na abertura do seu hipertexto:<br />

Para se ler ou talvez<br />

leer (<strong>de</strong> laere, lari)<br />

no alemão = vazio:<br />

etimologicamente, aquilo<br />

que <strong>de</strong> um campo ceifado<br />

po<strong>de</strong> ser ainda recolhido<br />

(aufgelesen): <strong>de</strong> lesen<br />

= catar, separar,<br />

ler... ou talvez<br />

“Caminar: leer un trozo<br />

<strong>de</strong> terreno, <strong>de</strong>scifrar<br />

un pedazo <strong>de</strong> mundo.<br />

La lectura consi<strong>de</strong>rada<br />

como un camino hacia...”<br />

De um lado – e temos aí a primeira conseqüência –, essa leitura po<strong>de</strong> ser a acumulação do inútil: não um<br />

“encaminhamento em direção à palavra” (e ao ser), como proporia um Hei<strong>de</strong>gger, mas um caminho em<br />

círculos e sem saídas, iluminando um pedaço muito exíguo do mundo, um rococó eletrônico, uma<br />

justaposição <strong>de</strong> insignificâncias, uma exuberância <strong>de</strong> superficialida<strong>de</strong>s. Ocorre que, ao pôr em relevo<br />

justamente as superficialida<strong>de</strong>s, per<strong>de</strong>-se toda e qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>bordamentos uma<br />

complexificação das leituras e dos leitores. Essa manifestação do excesso, assim, não levaria a nenhum<br />

aprofundamento do objeto a ser lido e do espaço em que se o lê, mas a um aumento inócuo e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado<br />

113


na extensão <strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro, e que se torna, <strong>de</strong> fato, mero arremedo <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>. Para retomar a<br />

questão em termos mais simples (emprestados à lingüística tradicional), po<strong>de</strong>-se dizer que temos uma<br />

multiplicação <strong>de</strong> significantes admitindo uma produção imediata, simplista e atropelada <strong>de</strong> significados,<br />

sem que uns permitam <strong>de</strong>ambular pelos outros, sem que se estabeleçam movimentos <strong>de</strong> significação que<br />

sejam verda<strong>de</strong>iramente plurais. Na verda<strong>de</strong>, é como se significados e significantes se ignorassem<br />

mutuamente, multiplicando-se à exaustão, feito dois jogos <strong>de</strong> espelhos paralelos e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, sem<br />

nenhuma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formar uma terceira imagem, um local intermédio, um espaço <strong>de</strong><br />

reversibilida<strong>de</strong>s. Esse excesso <strong>de</strong> significantes e significados remeteria então ao mesmo movimento, à<br />

idêntica fôrma, à igual forma, a um ruído monótono e hipnótico, tantra <strong>de</strong>sgastado <strong>de</strong> uma transcendência<br />

falha e frágil, um nirvana eletrônico em que a consciência do todo não está nem prevista na lógica <strong>de</strong><br />

programação, nem po<strong>de</strong> ser inserta no horizonte <strong>de</strong> leitura. Ou ainda, como se os dois sistemas <strong>de</strong> espelhos,<br />

embora in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes um do outro, marcassem a mesma data: a <strong>de</strong> um tempo vazio sem vida e sem<br />

perspectivas, igualados apenas pela mão malévola <strong>de</strong> um malin génie ocupado em produzir ilusões e<br />

simulacros. Mas é claro que não há malin génie algum, afora nossa tendência em ler torto, em ler pouco.<br />

De outro lado – e temos aqui a segunda conseqüência –, esse excesso concreto e imediato do texto em<br />

espaço eletrônico po<strong>de</strong> também estabelecer uma proliferação <strong>de</strong> significantes e <strong>de</strong> significados que não<br />

impliquem uma fuga cega para diante. Teríamos então a alavancagem <strong>de</strong> significantes e <strong>de</strong> significados em<br />

direção a novas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> expressão, trazendo para o espaço <strong>de</strong> leitura sempre outros níveis <strong>de</strong><br />

significação. Tal espaço <strong>de</strong> leitura po<strong>de</strong> se tornar, assim, ao mesmo tempo, o espaço <strong>de</strong> instalação <strong>de</strong> um<br />

corpo <strong>de</strong> leitor e <strong>de</strong> um corpus <strong>de</strong> leitura, um remetendo ao outro, um lendo o outro. E é importante insistir<br />

na concretu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses movimentos, tanto os dos textos abrindo percursos e multiplicando <strong>de</strong>rivas quanto<br />

aqueles do leitor, como que levantando ombros e esticando o pescoço em busca <strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r a vista para<br />

novos horizontes <strong>de</strong> significações. Com isso, são outros campos <strong>de</strong> sentidos que se entreabrem à construção<br />

<strong>de</strong> distintos percursos <strong>de</strong> leitura, tal como se vê em Antologia Labiríntica, em que as ligações hipertextuais<br />

pré-programadas não dão conta das possibilida<strong>de</strong>s todas <strong>de</strong> leitura: <strong>de</strong> fato, nada nos impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> abrirmos<br />

duas (ou mais) janelas do navegador, partindo da mesma URL inicial e seguindo em cada janela um percurso<br />

diferente, mas sempre comparado, justaposto, inserido à primeira (neste instante, é obrigatório parar <strong>de</strong> ler<br />

este texto e voltar-se para esse outro <strong>de</strong> que aqui se fala, o texto eletrônico acima citado como exemplo;<br />

será possível ver que ao limitado – mesmo que numeroso – das ligações e dos caminhos pré-programados<br />

pelo autor vêm-se somar as possibilida<strong>de</strong>s – mesmo que limitadas – dos programas <strong>de</strong> hiperleitura, sem<br />

contar o ilimitado dos gestos e das leituras que a todos nós, leitores, é dado).<br />

Assim, essa imediatez entre os nós colocados um ao lado do outro (pela imposição das ligações<br />

preestabelecidas na programação do hipertexto) po<strong>de</strong>-se per<strong>de</strong>r e se alargar ao mesmo tempo: per<strong>de</strong>-se ao<br />

se <strong>de</strong>ixar guiar cega e exclusivamente por uma lógica <strong>de</strong> leitura rígida e imposta a priori na programação,<br />

por um autor ex-machina; alarga-se pela <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um exercício <strong>de</strong> pluralização que vem acompanhado<br />

obrigatoriamente (para que seja pluralização) <strong>de</strong> um refinamento da leitura e do próprio leitor. 2 Daí a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazermos uma distinção entre o excesso e o excessivo. Excesso seria justamente esse<br />

transbordo <strong>de</strong> significantes e <strong>de</strong> significados, permitindo estabelecer significações coerentes e articuladas a<br />

um percurso <strong>de</strong> leitura dotado <strong>de</strong> coerências e <strong>de</strong> lógicas. É o que se po<strong>de</strong> fazer com o texto eletrônico <strong>de</strong><br />

114


André Vallias, quando se associa o Voltaire, surgido <strong>de</strong> repente em uma janela, à O<strong>de</strong> a Age <strong>de</strong> Carvalho,<br />

em outra, fazendo com que o “horrible danger <strong>de</strong> la lecture” do filósofo francês se justaponha às tabelas<br />

<strong>de</strong> verda<strong>de</strong> da O<strong>de</strong>, gerando uma posição <strong>de</strong> leitura e <strong>de</strong> enfrentamento com o texto eletrônico,<br />

iluminando temas, buscando nos nós da tabela uma imagem a ser fisicamente seguida na seqüência <strong>de</strong> nós<br />

outros e <strong>de</strong> ligações que se vão buscar e construir através <strong>de</strong>sse hipertexto.<br />

Excessivo, ao contrário, seria resultado <strong>de</strong>ssa proliferação <strong>de</strong>sarticulada <strong>de</strong> leituras, <strong>de</strong> percursos, <strong>de</strong> ligações<br />

e <strong>de</strong> espaços, em que significantes e significados não remetem jamais a significações plurais e articuladas,<br />

mas ren<strong>de</strong>m-se à lógica única e exclusiva do ruído, ou seja, da não significação, da vertigem do ir-para-afrente.<br />

Seria, ainda tomando a Antologia Labiríntica, <strong>de</strong>ixar-se cair no labirinto do arbitrariamente fácil,<br />

crendo encontrar, por exemplo, nos valores “1” da tabela da verda<strong>de</strong> alguma indicação para ler o ensaio<br />

atribuído a Voltaire. Exercício interessante, revelador, talvez, <strong>de</strong> um insuspeito ecletismo que faria a honra<br />

e a vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> certos leitores, mas que nunca conseguiria ir além dos limites exíguos do espaço <strong>de</strong> leitura<br />

em que apareceu e on<strong>de</strong> parece con<strong>de</strong>nada a permanecer.<br />

Excesso, por exemplo, po<strong>de</strong>ria ser resultado da leitura que começasse com uma busca das reflexões <strong>de</strong><br />

Voltaire, numa página do Yahoo-France. Daí, chegaríamos a uma outra página, agora com o ensaio inteiro<br />

do filósofo francês. Apenas a leitura em segundo (ou mesmo primeiro) plano <strong>de</strong>sse texto ainda não seria<br />

excesso, mas mera <strong>de</strong>riva (po<strong>de</strong>ndo cair rapidamente no excessivo). O excesso se daria, por exemplo, ao<br />

confrontar a porção do ensaio <strong>de</strong> Voltaire citada por André Vallias com aquela que não o foi, e tentar<br />

<strong>de</strong>slindar em outras janelas <strong>de</strong> Antologia Labiríntica algumas or<strong>de</strong>ns ou lógicas paralelas a esse recorte. Ao<br />

arbitrário e inequívoco do hipertexto, tal como programado e apresentado por seu autor, estaríamos nos<br />

autorizando a estabelecer um recorte outro, um percurso distinto, uma leitura não mais submetida à<br />

imediatez das ligações infindáveis, mas possibilitada por um excesso <strong>de</strong> significantes amarrado <strong>de</strong> modos<br />

específicos a um excesso <strong>de</strong> significados.<br />

Já o excessivo, esse po<strong>de</strong> estar em toda parte e em muitos gestos. Estaria, por exemplo, nesse fácil transitar<br />

entre URLs, acreditando resolver um mistério (o hipertexto <strong>de</strong> André Vallias) criando um ainda maior. E um<br />

outro ainda maior, chegando a uma leitura que não passa, paradoxalmente, <strong>de</strong> voracida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> fastio<br />

combinados <strong>de</strong> forma a resultar em ruídos sem apontar para quaisquer sentidos, caindo justamente no<br />

vazio mencionado no extrato da obra acima apresentada.<br />

Em resumo, nessa materialida<strong>de</strong> proteiforme e maleável que são os textos eletrônicos, é possível encontrar e<br />

inscrever conjuntos <strong>de</strong> elementos significantes <strong>de</strong> modo que eles extrapolem limites, rompam fronteiras,<br />

contestem seqüências, subvertam temporalida<strong>de</strong>s, mas sempre buscando uma correspondência multívoca 3 com<br />

os significados que vão sendo provisoriamente estabelecidos. De fato, po<strong>de</strong>-se até falar <strong>de</strong> uma inscrição <strong>de</strong><br />

movimentos e <strong>de</strong> <strong>de</strong>vires que vão além da aparência momentânea do texto eletrônico para situar-se, num<br />

primeiro momento, ainda aquém do significado. Num segundo momento, seriam justamente esses<br />

significados plurais que nos permitiriam reposicionar e multiplicar ainda mais os significantes. Nesse caso,<br />

estaríamos já entrando no terreno das reformações, das distintas maneiras como vamos dando forma e fôrma<br />

ao hipertexto, como que buscando novas maneiras <strong>de</strong> tecer significantes e formular leituras <strong>de</strong>ntro do espaço<br />

115


eletrônico. De certa maneira, é como se transbordos e reformatações retomassem ou ecoassem a dicotomia<br />

acima explorada entre significantes e significados. E, por seu lado, outras dicotomias, em diferentes níveis do<br />

hipertexto, po<strong>de</strong>m vir se juntar a essas duas propondo outros movimentos recíprocos (e, repita-se, multívocos):<br />

tempo e espaço, real e virtual, obra eletrônica e obra impressa. É como se as formas e fôrmas do hipertexto<br />

estivessem ligadas <strong>de</strong> alguma forma a sua inscrição no complexo espácio-temporal, à maneira como ele se<br />

<strong>de</strong>senrola diante <strong>de</strong> nós e na circunstância <strong>de</strong> nossa leitura; ou ao modo como propõe imagens, simulações e<br />

cópias; ou ao jeito como possibilita ligações e/ou linearida<strong>de</strong>s no enca<strong>de</strong>amento dos significantes.<br />

Variações em Torno <strong>de</strong> um Tema Mesmo<br />

Reformações e reformatações constituem então algumas das dinâmicas <strong>de</strong> produção do texto eletrônico, tanto a<br />

partir da mecânica própria <strong>de</strong> sua materialida<strong>de</strong> proteiforme e protendida quanto das distensões e <strong>de</strong>slocamentos<br />

do leitor. Expliquemos isso melhor. Na produção <strong>de</strong> todo texto – qualquer que seja o meio em que ela se dê –,<br />

<strong>de</strong>lineia-se um espaço <strong>de</strong> funcionamento, que é parte virtual, parte concreta. Em outras palavras, parte <strong>de</strong>le chama<br />

a presença <strong>de</strong> significantes imediatos, <strong>de</strong> estruturas i<strong>de</strong>ntificáveis no nível dos próprios significantes, <strong>de</strong> significados<br />

e referências diretas; outra parte remete a uma abertura das significações, ao esboço <strong>de</strong> uma fisionomia do campo<br />

dos sentidos possíveis. Em ambas, com base na especificida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu autor, funda-se o que se chamou <strong>de</strong> estilo, essa<br />

maneira <strong>de</strong> dispor (materialmente) significantes e, ao mesmo tempo, <strong>de</strong> fazer com que nos dirijamos <strong>de</strong> dada<br />

maneira (virtualmente) ao campo geral da língua. Todavia, essa conjunção entre um e outro, quer dizer, entre o<br />

material e o virtual do texto, se dá <strong>de</strong> maneira diferente, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do meio – oral, impresso, eletrônico – em<br />

que ele é produzido. No meio impresso, a obra literária pen<strong>de</strong> para um texto em que as virtualida<strong>de</strong>s acabam<br />

assumindo a maior parte <strong>de</strong>sse espaço <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> significações. Já no texto eletrônico, tal espaço é povoado,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, pela evidência imediata e pouco sutil <strong>de</strong> ferramentas, <strong>de</strong> processos, <strong>de</strong> referências, <strong>de</strong> produtos<br />

outros, a tal ponto que se po<strong>de</strong>ria até cair na armadilha <strong>de</strong> dizer que o texto eletrônico é mesmo o primado do<br />

imediato, do concreto, da presença. Nada disso! Esse incremento na presença <strong>de</strong> materialida<strong>de</strong>s imediatas, <strong>de</strong><br />

significantes não implica necessariamente uma diminuição correspon<strong>de</strong>nte nas virtualida<strong>de</strong>s do texto, isto é, na<br />

maneira como ele permite olhar o campo dos sentidos possíveis. A bem da verda<strong>de</strong>, ambos os meios ainda<br />

continuam a tecer suas malhas <strong>de</strong> maneira específica e própria ao autor e à obra, a dispor nós on<strong>de</strong> a leitura po<strong>de</strong><br />

ser parada por alguns momentos, e com base neles propor certos caminhos <strong>de</strong> leitura.<br />

É assim que as reformas e reformatações do texto eletrônico, por resultarem <strong>de</strong> modificações em sua<br />

própria base material, <strong>de</strong>slocam, <strong>de</strong> modo importante, isso que chamamos estilo. Nesse sentido, estilo <strong>de</strong>ixa<br />

<strong>de</strong> ser apenas o modo como se repetem, mais ou menos, as disposições <strong>de</strong> significantes e os percursos<br />

possíveis <strong>de</strong> significações. Antes disso, estilo passa a ser também o modo como se produzem possibilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> geração <strong>de</strong> significantes, isto é, a maneira como as linguagens <strong>de</strong> programação fornecem bases e<br />

caminhos para as linguagens outras (verbais, visuais, sonoras etc.). Se um soneto, por exemplo, gerado por<br />

computador parece paupérrimo diante <strong>de</strong> um outro, cometido por um Vinícius <strong>de</strong> Morais ou por Victor<br />

Hugo, é porque estamos comparando coisas incomparáveis. A título <strong>de</strong> exemplo, basta examinar os dois<br />

poemas a seguir, tirados do sítio do grupo Alamo 4 e gerados automaticamente por computador, sob certas<br />

condições <strong>de</strong> contorno estabelecidas por seus criadores. Trata-se, na seqüência, <strong>de</strong> um soneto e <strong>de</strong> um triolé:<br />

116


Poema 1<br />

Le Dormeur du Jardin<br />

C’est un roi <strong>de</strong> chimère où passe une masure<br />

Embrassant largement aux ombres <strong>de</strong>s jardins<br />

D’esprit; où le désir <strong>de</strong> la tristesse pure<br />

Fond: c’est un poudreux jardin qui parle <strong>de</strong> parfum<br />

Un enfant sombre, tête obscure, flamme fraîche<br />

Et la nuque brillant dans le court étang blond<br />

Rit; il est incliné dans l’ombre, sous la brèche,<br />

Sombre, dans son roi droit où la ténèbre fond.<br />

Les pieds dans les secrets, il rit. Sa tête pâle<br />

Sortirait un bonheur placi<strong>de</strong>, il souffre, il râle:<br />

Nature, calme-le simplement: il sourit.<br />

Les haillons ne font pas revenir sa bouteille;<br />

Il rit dans le pâté, la chair sur sa merveille,<br />

Placi<strong>de</strong>. Il a cinq pieds calmes au regret gris.<br />

Poema 2<br />

Une secon<strong>de</strong> s’envolait<br />

pour la minute d’une étreinte<br />

et l’on s’étrangle en <strong>de</strong>s goulets<br />

Une secon<strong>de</strong> s’envolait<br />

L’artiste rêve au chevalet<br />

les voyelles tentent <strong>de</strong>s feintes<br />

Une secon<strong>de</strong> s’envolait<br />

pour la minute d’une étreinte<br />

Não quero, no momento, levantar nenhum juízo <strong>de</strong> valor sobre essas duas obras geradas automaticamente.<br />

O que importa é chamar a atenção para o fato <strong>de</strong> que, freqüentemente, o estilo <strong>de</strong> seu autor se revela<br />

muito pouco nesse nível apenas verbal. Ele se mostra muito mais clara e profundamente no modo como se<br />

manipularam os significantes, reunidos em bancos <strong>de</strong> dados e, a seguir, combinados por bases <strong>de</strong> dados<br />

especialmente <strong>de</strong>senvolvidas para essa obra específica. De fato, sua leitura, ou seja, a construção do texto,<br />

passa a ocupar mais um espaço, em que são gerados seus possíveis sentidos, e não apenas (ou não mais) as<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> significações a serem <strong>de</strong>senvolvidas pelo leitor. Paul Ricoeur afirma que “fiction et poésie<br />

117


visent l’être, non plus sous la modalité <strong>de</strong> l’être-donné, mais sous la modalité du pouvoir-être.” 5 No que se<br />

refere às obras digitais, eu diria que ocorre uma conjunção entre ambas as esferas: o “être-donné” é<br />

submetido a uma instância prévia do “pouvoir-être”, isto é, o espaço das variações possíveis vai além da<br />

produção <strong>de</strong> significados e passa a ser uma instância <strong>de</strong>terminante da materialida<strong>de</strong> da obra. O que ela é,<br />

por si mesma, não <strong>de</strong>riva mais unicamente <strong>de</strong> uma seqüência pre<strong>de</strong>terminada <strong>de</strong> significantes, mas se<br />

manifesta no modo como ela já é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, um po<strong>de</strong>r-ser-assim. De fato, o ciberespaço já foi <strong>de</strong>scrito<br />

inúmeras vezes como um espaço em simulação permanente, em que as diferenças entre simulação e<br />

realida<strong>de</strong> imediata nem teriam mais lugar, <strong>de</strong>vido a um pretenso predomínio avassalador daquela sobre esta.<br />

O ser da obra está não apenas nas simulações, mas nos mecanismos com que se constroem espaços e<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> simulação. Em outras palavras, a realida<strong>de</strong> da obra não se funda em nenhuma configuração<br />

material <strong>de</strong>finitiva (isso não é mais essencial para <strong>de</strong>limitar o que seria seu ser), mas nos processos telemáticos<br />

em que, por repetidas vezes, se retoma um mesmo ciclo <strong>de</strong> interações entre o leitor, as ferramentas <strong>de</strong><br />

programação e os resultados provisoriamente disponíveis na tela. De toda maneira, esses procedimentos não<br />

são novida<strong>de</strong> alguma na <strong>literatura</strong> e já foram utilizadas na tradição impressa. Como afirma Jean Clément,<br />

“La tentation <strong>de</strong> l’infini a toujours travaillé les écrivains, notamment sous les espèces <strong>de</strong> la combinatoire. Celle-ci<br />

s’exprime d’abord dans la littérature orale par la prolifération <strong>de</strong>s variantes et <strong>de</strong>s versions. Elle se poursuit dans la<br />

littérature médiévale avec la multiplication <strong>de</strong>s cycles narratifs. Au XIXe siècle, elle est au coeur du projet balzacien”. 6<br />

A salientar, talvez, apenas o fato <strong>de</strong> que, se se trata <strong>de</strong> uma “tentação do infinito”, ela acaba configurando<br />

um processo <strong>de</strong> multiplicação <strong>de</strong> significantes que, mesmo se inspirando no infinito, nunca tem como<br />

chegar a ele. E, nesse caso, talvez o exemplo mais à mão sejam os 99 Exercices <strong>de</strong> Style, <strong>de</strong> Raymond<br />

Queneau. Po<strong>de</strong>m-se também citar as 15 variações produzidas por Georges Perec, a partir <strong>de</strong> Gaspar Hauser,<br />

<strong>de</strong> Verlaine, utilizando o que Gérard Genette chama <strong>de</strong> “príncipe machinal”. 7 De fato, se há, como afirma<br />

o mesmo Genette, um caráter imprevisível nos resultados <strong>de</strong>sse procedimento, saliente-se que a<br />

imprevisibilida<strong>de</strong> diz respeito aos significantes produzidos, ou ainda, à maneira como estes se combinam, à<br />

seqüência em que aparecem. Os processos <strong>de</strong> geração <strong>de</strong>sses imprevisíveis não são, eles próprios, nem um<br />

pouco imprevisíveis. No caso dos hipertextos eletrônicos, eles constituem um espaço em que se produzem<br />

variações dos significantes, a partir dos mesmos procedimentos telemáticos, fundamentados nos mesmos<br />

maquinismos e nos mesmos bancos e bases <strong>de</strong> dados.<br />

Nesse ponto, é importante retomar a distinção, já abordada, entre materialida<strong>de</strong> e objetivida<strong>de</strong>. Por ser o<br />

que é, essa <strong>literatura</strong> em meio eletrônico se investe e se reveste <strong>de</strong> uma materialida<strong>de</strong> a ser (re)construída<br />

incessantemente. Ora, isso não implica, <strong>de</strong> modo algum, que tenhamos diante <strong>de</strong> nós uma objetivida<strong>de</strong> que,<br />

por estar em constante mudança, não tem como ser <strong>de</strong>limitada e investigada. Em outras palavras, em lugar<br />

da ilusão <strong>de</strong> uma obra pronta, acabada e estabilizada, é necessário mapear os processos <strong>de</strong> materialização<br />

<strong>de</strong>ssa obra, discutir o que seria sua objetualida<strong>de</strong>. Sobre esse ponto, Roger Chartier afirma que:<br />

“La révolution du texte électronique (...) à la matérialité du livre, elle substitue l’immatérialité <strong>de</strong> textes sans<br />

lieu propre ; aux relations <strong>de</strong> contiguïté établies dans l’objet imprimé, elle oppose la libre composition <strong>de</strong><br />

fragments indéfiniment manipulables...” 8<br />

118


A retificar, talvez, a afirmação <strong>de</strong> que haveria aí uma livre composição <strong>de</strong> fragmentos. De forma alguma!<br />

Os fragmentos, ou melhor, os fragmentos (<strong>de</strong>) significantes, são postos em circulação a partir <strong>de</strong> processos<br />

maquínicos, procedimentos automatizados e automatizantes, todos eles perfazendo condições <strong>de</strong><br />

contornos e <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> significantes que se somam às próprias condições <strong>de</strong> contorno que línguas e<br />

linguagens sempre impõem à produção <strong>de</strong> quaisquer significações. Nessa perspectiva, então, não haveria<br />

propriamente “livre composição <strong>de</strong> fragmentos”, mas uma conjunção <strong>de</strong> fragmentos guiada por lógicas e<br />

retóricas próprias do meio eletrônico. Todavia, <strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>stacar a argúcia <strong>de</strong> Chartier, acentuando a<br />

<strong>de</strong>smaterialização da criação eletrônica, 9 sem que isso seja acompanhado do velho (e superficial) discurso<br />

sobre perda <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>subjetivação das artes. E a maneira como são conjugados esses significantes<br />

(termo mais apropriado e mais preciso que o <strong>de</strong> “fragmentos”) vai muito além do que sempre coube no<br />

espaço da página manuscrita ou impressa. Po<strong>de</strong>-se falar <strong>de</strong> uma construção teleológica dos significantes na<br />

tradição impressa, mesmo que ela não se faça acompanhar obrigatoriamente <strong>de</strong> uma (outra ou mesma)<br />

teleologia na armação das significações encetada pelo leitor. No meio eletrônico, o leitor se <strong>de</strong>sloca ao<br />

mesmo tempo em que põe em rotação a ciranda dos significantes, e a leitura remete constantemente a esse<br />

processo <strong>de</strong> avançar, retornar, retomar, seguidas vezes, embrenhando-se não apenas nas entrelinhas dos<br />

significantes verbais, mas nos <strong>de</strong>svãos que as linguagens <strong>de</strong> programação <strong>de</strong>ixam (propositadamente ou<br />

não) para equívocos, acasos, erros premeditados, caminhos tortuosos, becos sem saída etc.<br />

Como já <strong>de</strong>ve ter ficado claro, a iterativida<strong>de</strong> é um processo que faz parte das lógicas e linguagens <strong>de</strong><br />

programação que estão na base <strong>de</strong> todo texto eletrônico. De fato, ela constitui o ponto central da Máquina<br />

<strong>de</strong> Turing, procedimento fundamental que <strong>de</strong>fine tanto o funcionamento dos computadores quanto a própria<br />

cibernética. Mas a iterativida<strong>de</strong> é também um processo que po<strong>de</strong> ser explicitamente incorporado ao espaço<br />

<strong>de</strong> leitura <strong>de</strong> um certo tipo <strong>de</strong> texto eletrônico, isto é, aqueles que exigem repetições freqüentes para chegar<br />

a resultados diferentes, a topologias <strong>de</strong> significantes ligeiramente distintas das anteriores. A obra Passage, <strong>de</strong><br />

Philippe Bootz, é um bom exemplo. Sem avançar muito em sua análise – coisa que preferimos <strong>de</strong>ixar à<br />

curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossos muito poucos leitores –, po<strong>de</strong>mos dizer que sua leitura se faz justamente na paciente<br />

repetição <strong>de</strong> entradas e saídas do sistema. A cada passagem, nos diz seu autor, o sistema <strong>de</strong> programação<br />

incorpora dados que alteram para sempre alguma variável da obra, <strong>de</strong> forma que a entrada seguinte traz para<br />

o leitor uma outra topologia no processamento dos significantes. Em outras palavras, o acesso à armação dos<br />

significantes verbais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> estreitamente dos significantes telemáticos (interações, programações e<br />

processamentos). Assim, a leitura <strong>de</strong> Passage é um percurso múltiplo, parcialmente in<strong>de</strong>finido, infindo (mas<br />

não infinito), em que as interativida<strong>de</strong>s programadas pelo autor e executadas pelo leitor somente adquirem<br />

sentido quando repetidas ad libitum, quase à exaustão, trazendo pequenas variações – muitas <strong>de</strong>las<br />

imperceptíveis, mas ainda e sempre variações –, no percurso quase mesmo das leituras anteriores.<br />

Resumindo: Dicotomias e Reversibilida<strong>de</strong>s<br />

Transbordos e reformações também se alimentam das dicotomias do ciberespaço, como aquelas entre real<br />

e virtual, ou entre espaço e tempo. Mas, novamente, talvez melhor seja dizer reversibilida<strong>de</strong> em vez <strong>de</strong><br />

dicotomia, já que po<strong>de</strong>mos discernir aí uma dupla operação <strong>de</strong> realização do virtual e <strong>de</strong> virtualização do<br />

119


eal, <strong>de</strong> um lado, e <strong>de</strong> espacialização do tempo e <strong>de</strong> temporalização do espaço, <strong>de</strong> outro. Em linhas gerais, o<br />

que se <strong>de</strong>ve discutir a esse respeito é a maneira como a materialida<strong>de</strong> dos hipertextos eletrônicos se altera, se<br />

<strong>de</strong>svanece e se permite percursos e <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> leitura e <strong>de</strong> navegação que colocam em xeque as fronteiras<br />

habituais entre real e virtual, entre espacial e temporal. E, mais, para a criação literária (e para toda arte que<br />

ainda vislumbra alguma chance <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com a <strong>literatura</strong>), essas possibilida<strong>de</strong>s todas parecem apontar<br />

para outro duplo movimento, o <strong>de</strong> versificação da prosa e <strong>de</strong> prosificação do verso, como indicaremos mais<br />

adiante. São dicotomias ou reversibilida<strong>de</strong>s que moldam a leitura no(do) espaço eletrônico, permitindo<br />

entendê-lo sob a perspectiva <strong>de</strong> lógicas plurais e dinâmicas, sempre assentadas numa certa fisionomia sua, essa<br />

do transbordo dos significantes e dos significados, mas sem reduzir-se a fórmulas prontas, a essências i<strong>de</strong>ais,<br />

ou mesmo a gestos <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> temporalida<strong>de</strong> ou prenhes <strong>de</strong> relativismo. Tais duplicida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser o<br />

mais próximo a que se po<strong>de</strong> chegar <strong>de</strong> uma racionalida<strong>de</strong> plural a ser associada aos textos eletrônicos.<br />

Cumpre, então, enten<strong>de</strong>r como essas diferentes reversibilida<strong>de</strong>s – transbordamentos e reformatações, real e<br />

virtual, espacial e temporal, eletrônico e impresso, chegando a poesia e prosa – po<strong>de</strong>m se correspon<strong>de</strong>r, se<br />

imbricar, e dar margem a leituras que, não sendo aleatórias nem <strong>de</strong>scontextualizadas, permitem ler, além dos<br />

corpora textuais e dos corpos leitores, a própria leitura em espaço eletrônico.<br />

Para falar brevemente <strong>de</strong> tempo e espaço, convém assinalar o fato <strong>de</strong> ter-se tornado comum, nas duas<br />

últimas décadas, a referência a um tempo permanentemente presentificado, tornado disponível como um<br />

mapa em escala 1:1, aquele dos cartógrafos <strong>de</strong> que falava Jorge Luis Borges, em Del Rigor en la Ciencia:<br />

“Les nouvelles technologies nous transposent ainsi dans une zone intermédiaire, une zone <strong>de</strong> transit<br />

<strong>de</strong>venue permanente, nous permettant d’être là et potentiellement partout dans un temps que l’on peut<br />

enregistrer et stocker, un présent figé. Nous sommes donc dans un état ‘nomadique’ jouant avec le temps<br />

et l’espace en glissant d’une ambiance-virtualité à l’autre.” 10<br />

Tais <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> um eterno presente não são moeda corrente apenas quando se fala do ciberespaço. De<br />

fato, parece mesmo lugar-comum disso que chamam <strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Todavia, falta alguma coisa a uns<br />

e a outros, tanto aos arautos da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> quanto aos estudiosos do ciberespaço: a percepção <strong>de</strong> que<br />

também a experiência do espaço acaba sendo temporalizada, o que implica sua abertura ao fluxo, ao <strong>de</strong>vir.<br />

Espaço então não seria mais a condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os objetos serem percebidos, mas uma seqüência<br />

<strong>de</strong> loci em que se viaja, sempre adiante, sem condições <strong>de</strong> retornar a sua pretensa origem, uma vez que se<br />

seguiu em frente, tendo chegado a outro nó na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> significantes potencialmente infinita do ciberespaço.<br />

Nesse caso, estaria confirmado esse estado nôma<strong>de</strong> do sujeito que ainda se atreveria a ciberespaços, a<br />

ciberpercursos, a ciberleituras. Sendo assim, o espaço perceptivo ce<strong>de</strong>ria vez e lugar ao espaço dos<br />

significantes, dos automatismos, das interativida<strong>de</strong>s mediadas pelas interfaces digitais. Em lugar dos corpos,<br />

os corpora; em vez dos gestos que inauguram perspectivas do mundo, bancos e bases <strong>de</strong> dados. Mas a<br />

pergunta que se faz é: até que ponto se po<strong>de</strong> abstrair a experiência do corpo próprio, quando nos colocamos<br />

diante da tela? Em outras palavras, será que a hipertrofia do texto eletrônico e do ciberespaço implica<br />

necessariamente a atrofia do sistema corpo-percepções-mundo? É o que se po<strong>de</strong>rá enten<strong>de</strong>r, ao avançar um<br />

pouco mais na discussão das relações entre virtual e real, por intermédio <strong>de</strong> nossa e muita ciber<strong>literatura</strong>.<br />

120


A leitura <strong>de</strong> tais hipertextos eletrônicos – disso que ainda po<strong>de</strong> vir a ser, então, aí sim, com todas as letras, uma<br />

ciber<strong>literatura</strong> – parece implicar uma conjunção ou justaposição ou confronto entre a pluralida<strong>de</strong> do real e os<br />

inúmeros simulacra <strong>de</strong> que se faz o virtual. Mas, freqüentemente, ocorre uma sutil infiltração <strong>de</strong>stes naquele<br />

outro, e a <strong>de</strong>scrição metafórica dos simulacra contamina e limita os mapeamentos possíveis do real. Dito <strong>de</strong><br />

outra maneira, a metáfora pós-mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> jogo 11 – no caso, <strong>de</strong> texto ou escrita como jogo – vem sobrepor-se<br />

às antigas metáforas <strong>de</strong> mundo como escrita e, conseqüentemente, como texto-a-ser-lido. E é importante<br />

assinalar que não se trata <strong>de</strong> um avanço ou alteração no modo <strong>de</strong> perceber o mundo. Muito diferente disso,<br />

trata-se <strong>de</strong> um <strong>de</strong>slocamento que po<strong>de</strong>ríamos dizer ontológico: na verda<strong>de</strong>, não é a <strong>de</strong>scrição metafórica <strong>de</strong><br />

uns – os simulacra – que vem enriquecer ou modificar a <strong>de</strong>scrição metafórica <strong>de</strong> outro – o mundo das<br />

pluralida<strong>de</strong>s possíveis, vulgarmente chamado real –, ao contrário, é o próprio parecer dos primeiros que é<br />

usado para <strong>de</strong>screver, qualificar e <strong>de</strong>limitar o ser do segundo. E essas reflexões param justamente aí, elas não<br />

aceitam nem incluem o caminho <strong>de</strong> volta, essa reversibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que tanto temos falado: não há condição<br />

nem ocasião para que o ser <strong>de</strong> um venha envolver e iluminar o parecer dos outros, dando a estes, agora sim,<br />

uma existência autônoma que vá além do arremedo e da aparência. Nesse caso, por mais que se multipliquem<br />

os transbordos e as reformatações do texto eletrônico, este fica sempre a distância <strong>de</strong> ser alguma coisa,<br />

acompanhando <strong>de</strong> longe algum objeto ou gesto ou expressão, como que carregando a vergonha <strong>de</strong> simular<br />

ou repetir sem ser; sendo sempre outra coisa que não aquilo para que aponta, estando sempre on<strong>de</strong> não se<br />

encontra, dirigindo-se constantemente para o outro lado do próprio movimento. É justamente nesse<br />

multiplicar das aparências – operação levada muito longe pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> processamento do meio digital<br />

– que nascem os equívocos no modo <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r os simulacra. Quando se pensa na própria operação <strong>de</strong><br />

multiplicação, por exemplo, quando se faz 7 x 8, o resultado, 56, não é apenas um terceiro signo algébrico,<br />

mas também uma pluralida<strong>de</strong> que carrega em si tanto o 7 e o 8 quanto o produto <strong>de</strong>les. É esse o caráter que<br />

acima atribuíamos ao real: ele é múltiplo e é também plural (e ressalte-se que não se trata <strong>de</strong> sinônimos). No<br />

caso dos simulacra, teríamos apenas um terceiro significante, o 56, tentando acompanhar <strong>de</strong> longe – mas<br />

per<strong>de</strong>ndo irremediavelmente – o 7 e o 8, fazendo <strong>de</strong> conta, ainda e sempre, que o produto remeteria <strong>de</strong><br />

alguma forma aos multiplicandos, sem estabelecer, no entanto, qualquer caminho que levasse até eles.<br />

Assim, parece importante distinguir radicalmente as multiplicida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> significantes que se produzem no<br />

ciberespaço, das pluralida<strong>de</strong>s do sistema corpo-percepções-mundo. As primeiras resultam das<br />

iterativida<strong>de</strong>s e interativida<strong>de</strong>s do meio eletrônico e apostam na repetição <strong>de</strong> simulacros como meio <strong>de</strong><br />

recriar <strong>de</strong> longe o real, apontando para ele, mas, cautelosamente, mantendo distância pru<strong>de</strong>nte (<strong>de</strong>le e<br />

<strong>de</strong> si próprio), apoiando-se numa multiplicação <strong>de</strong> significantes que tenta simular ou arremedar as<br />

pluralida<strong>de</strong>s do real, sem atingi-las nunca. Já estas últimas apóiam-se diretamente, mais do que num ser<br />

geral <strong>de</strong> tudo e <strong>de</strong> todos, no estar-no-mundo, nesse ato que é constitutivo <strong>de</strong> meu ser ao mesmo tempo<br />

em que expressa minhas perspectivas do mundo vivido, em que enuncia minhas limitadas percepções <strong>de</strong>sse<br />

mundo e anuncia a pluralida<strong>de</strong> das outras, justamente essas pluralida<strong>de</strong>s que tornam possíveis minhas<br />

limitadas especificida<strong>de</strong>s. O fato é que tais concepções que apontam para uma dissimulação completa do<br />

real assentam-se numa compreensão limitada do mundo vivido, como se este correspon<strong>de</strong>sse a uma parte<br />

do espaço das linguagens, o das seleções e combinações experimentadas mais como jogo e menos como<br />

gesto expressivo. Ou como se mundo fosse metáfora <strong>de</strong> linguagem – e não, ao contrário, percebendo que<br />

linguagem é que é metonímia <strong>de</strong> mundo.<br />

121


Talvez caiba ainda uma crítica a essa compreensão linguageira, ou melhor, limitadamente linguageira do<br />

mundo e das pessoas. Por trás <strong>de</strong>la, há um pressuposto já velho – da ida<strong>de</strong> da sofística –, <strong>de</strong> que tudo seria<br />

linguagem e nada po<strong>de</strong>ria haver nem ser dito fora <strong>de</strong>la. Se o pressuposto parece correto, as conseqüências<br />

que se tiram <strong>de</strong>le não o são necessariamente: se tudo é linguagem, isso não significa que tudo seja metáfora<br />

ou jogo, como querem alguns arautos <strong>de</strong> pretensa pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Não se po<strong>de</strong> esquecer que toda<br />

linguagem é não apenas jogo, mas também e sobretudo gesto expressivo e que, como tal, enuncia e<br />

anuncia a inauguração do ser-no-mundo, a ligação direta entre o estar-no-mundo e a especificida<strong>de</strong><br />

irredutível <strong>de</strong> cada indivíduo. Nesse caso, não se po<strong>de</strong> apenas dizer que metáforas e jogos sejam elementos<br />

que <strong>de</strong>screvem a totalida<strong>de</strong> do espaço das linguagens e, portanto, <strong>de</strong>screveriam também o funcionamento<br />

do real. Esquece-se <strong>de</strong> que linguagens são gestos expressivos e que o resultado <strong>de</strong>las não está apenas num<br />

certo modo <strong>de</strong> produzir, selecionar e combinar significantes. Há um resultado que já se coloca ainda antes<br />

<strong>de</strong>ssa produção <strong>de</strong> significantes e diz respeito justamente à fundação <strong>de</strong> um espaço expressivo, esse espaço<br />

dos sentidos possíveis, essa fisionomia do mundo que eu, indivíduo, posso ver a partir <strong>de</strong> meu corpo próprio.<br />

E o que ele me dá a ver é aquilo que nada ou ninguém me daria melhor. É como diz Caeiro:<br />

“Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha al<strong>de</strong>ia<br />

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha al<strong>de</strong>ia”. 12<br />

Todavia, sem a pluralida<strong>de</strong> das perspectivas dos outros – quer dizer, sem o Tejo distante, metonímia dos rios<br />

outros e metáfora <strong>de</strong> todo e qualquer outro –, minha visão específica do real, meu estar-no-mundo não<br />

teriam como estar, nem como aparecer, nem como ser expresso. É necessário, em suma, ir do ser e dos<br />

sentidos gerais do sistema corpo-percepções-mundo – para on<strong>de</strong> apontam os gestos expressivos – ao<br />

parecer dos simulacra, justamente para dar a estes algum sentido que vá além do mero jogo, da simples<br />

simulação, da brinca<strong>de</strong>ira inócua. É necessário dotar as iterativida<strong>de</strong>s, quer dizer, a multiplicação <strong>de</strong><br />

significantes no ciberespaço, <strong>de</strong> um movimento que aponte para as pluralida<strong>de</strong>s do mundo vivido. Não se<br />

trata <strong>de</strong> resgatar as estéticas clássicas da mimese e espalhar a ilusão <strong>de</strong> que os simulacros são acesso indireto<br />

mas inteiro a esse mundo vivido. Trata-se, isso sim, <strong>de</strong> resgatá-los da banalida<strong>de</strong> que os ronda e ameaça,<br />

para fazer <strong>de</strong>les um dos modos <strong>de</strong> acesso às experiências e aos gestos expressivos, estes que nos colocam<br />

em contato com o mundo diverso e plural das coisas e das pessoas outras.<br />

Então, quando se pergunta – como o faz Marie-Laure Ryan – se haveria um mundo para cada texto, ou se um<br />

dado texto projetaria um ou vários mundos, 13 o que está por trás <strong>de</strong>ssas questões é justamente a idéia <strong>de</strong> que<br />

os simulacros associados a cada texto, ou <strong>de</strong>rivados <strong>de</strong> cada leitura, serviriam para justapor camadas, níveis e<br />

elementos significantes ao mundo vivido, e que essa seria a única maneira <strong>de</strong> ler e enten<strong>de</strong>r este último. O<br />

resultado é que eles acabariam por escondê-lo quase que em <strong>de</strong>finitivo, instalando no lugar da percepção a<br />

simulação – não mais o mundo-como-ser, mas o mundo-como-parecer. E sabemos todos que, no meio<br />

eletrônico, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> simular está diretamente ligada não só (ou muito menos) à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reiterar<br />

significados, mas às possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> repetir processos <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> significantes. No caso, os textos<br />

eletrônicos são vistos e, talvez, também concebidos como espaços <strong>de</strong> multiplicação e <strong>de</strong> transbordamentos <strong>de</strong><br />

significantes sem que se tome, muitas vezes, o cuidado <strong>de</strong> fazer com que espaços <strong>de</strong> leituras e significantes a<br />

serem lidos sejam inseridos numa dinâmica <strong>de</strong> pluralização (e, repita-se, não apenas <strong>de</strong> multiplicação).<br />

122


Assim, é a partir <strong>de</strong>ssas diferenças entre pluralização e multiplicação – conseqüências diretas dos embates ou<br />

conjunções entre real e virtual –, que os textos eletrônicos po<strong>de</strong>m ganhar mais relevo. A esse respeito, analisemos<br />

a obra O Livro Depois do Livro, <strong>de</strong> Giselle Beiguelman. Já no que a autora chama <strong>de</strong> epígrafe, o plano <strong>de</strong> fundo e<br />

o plano <strong>de</strong> escrita proporcionam uma algaravia <strong>de</strong> letras muitas e palavras algumas, apontando, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esse início,<br />

como diz Joan Brandt, para a “disrupção da função normalmente referencial ou mimética da linguagem”. 14 E,<br />

como diz ainda a mesma Joan Brandt, um eventual princípio unificador <strong>de</strong> um poema, mesmo na tradição oral ou<br />

na escrita, não estaria, então, em qualquer relação entre o texto produzido na leitura e alguma referência concreta<br />

e externa, mas nas relações entre esse texto que se lê e outros textos já lidos ou a serem lidos. No que se refere ao<br />

meio eletrônico, e no caso específico <strong>de</strong>ssa obra <strong>de</strong> Giselle Beiguelman, o título enfatiza justamente não um<br />

mundo <strong>de</strong> coisas e gentes, que estaria <strong>de</strong>pois ou no exterior do livro, mas para livros outros que estariam sempre<br />

além (e, conseqüentemente, aquém) <strong>de</strong>sse primeiro. No que toca à ligeira arbitrarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse princípio<br />

unificador, ele não <strong>de</strong>saparece, claro, mas ganha contornos concretos e procedimentos imediatos: o prefácio da<br />

obra mascara e confun<strong>de</strong> os significantes verbais, mas <strong>de</strong>ixa materializado na tela o percurso que, levando <strong>de</strong> uma<br />

página eletrônica a outra, po<strong>de</strong> resultar naquela terceira página <strong>de</strong> que falamos acima no capítulo O Texto<br />

Eletrônico como Produtivida<strong>de</strong>. De fato, em O Livro Depois do Livro, há alguns percursos e construções que<br />

apostam nessa possibilida<strong>de</strong>. Após o prefácio, aparece uma seqüência <strong>de</strong> frases, uma espécie <strong>de</strong> discurso <strong>de</strong><br />

aparência teórica 15 hesitando entre subordinação e coor<strong>de</strong>nação, assim como vacila entre uma significação possível<br />

ou <strong>de</strong>sejável reunindo todas as frases e uma justaposição pouco discursiva entre cada uma <strong>de</strong>las. E talvez seja<br />

justamente essa in<strong>de</strong>finição entre artístico e teórico, 16 esse vai-e-vem entre discursivo e enumerativo que permite<br />

tecer um espaço <strong>de</strong> leitura apontando para pluralida<strong>de</strong> e/ou multiplicida<strong>de</strong>. Mas ressalte-se que a partida não está<br />

ganha por antecipação. Não é possível escolher um ou outro, ao menos no ponto <strong>de</strong> leitura em que me encontro,<br />

ou nos espaços expressivos todos que se po<strong>de</strong> vislumbrar a partir <strong>de</strong>ssa obra <strong>de</strong> Giselle Beiguelman.<br />

Mas, continuando, po<strong>de</strong>-se perceber nesse seu movimento expressivo que O Livro Depois do Livro aponta<br />

continuamente para espaços expressivos outros, mesmo que quase todos tenham como fio condutor esse<br />

discurso fundado em frases <strong>de</strong> teor e feitio teórico, entremeadas, aqui e ali, por comandos e ícones da<br />

informática. É assim que algumas das proprieda<strong>de</strong>s mais evi<strong>de</strong>ntes do meio eletrônico são sobrepostas aos<br />

significantes (verbais e visuais): movimentos, cintilações, dissoluções etc., tudo resultando na sensação <strong>de</strong><br />

uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> objetos que ainda não nos dá a certeza (ainda não!) <strong>de</strong> estarmos nos encaminhando,<br />

por meio <strong>de</strong>sse Livro, para uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentidos e significações em que os gestos expressivos do<br />

leitor, mesmo sendo legião, não pululam necessariamente numa entropia maior ou menor. Aliás, os graus e<br />

os modos com que diversos níveis textuais nele se po<strong>de</strong>m esboçar, ao contrário do que indicaria a ambição<br />

da autora – <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> seu livro a construção física e a constatação imediata do Libro <strong>de</strong> Arena, <strong>de</strong> Borges<br />

–, ainda guardam as (inevitáveis!) limitações impostas pela situação imediata do leitor-em-leitura, limitações<br />

que não teriam jamais como ser ultrapassadas. Ao virtual das codificações e das programações telemáticas<br />

da hiperleitura vêm se conjugar as condições imediatas do leitor real. De fato, os mundos-lidos no e pelo<br />

meio eletrônico não têm outros sentidos que não aqueles que lhes outorga o mundo-vivido. E, <strong>de</strong> forma<br />

correspon<strong>de</strong>nte, sem a multiplicida<strong>de</strong> (iterativa ou <strong>de</strong> outro tipo) dos hipertextos eletrônicos, estaríamos<br />

sempre submetidos ao assombro sagrado diante <strong>de</strong> uma pluralida<strong>de</strong> incompreensível.<br />

* * *<br />

123


Enfim, sem que se instale uma verda<strong>de</strong>ira reversibilida<strong>de</strong> entre real e virtual, não se vai além da dicotomia, da<br />

oposição entre um e outro. E, nesse caso, ao se tentar ir <strong>de</strong> um a outro – isto é, dos simulacros para o real –,<br />

o que se faz, na verda<strong>de</strong>, é um percurso fechado em si próprio e vedado a tudo e a todos, limitado ao pior <strong>de</strong><br />

um e <strong>de</strong> outro (um relativismo que se torna absoluto), uma volta ao redor do quarto que nunca será viagem<br />

para fora <strong>de</strong> si. Muito embora se possa cultivar a ilusão <strong>de</strong> que se avança no conhecimento do mundo, a partir<br />

dos simulacros que se produzem <strong>de</strong>le em profusão, o que se tem, na verda<strong>de</strong>, é apenas um faz-<strong>de</strong>-conta que<br />

somente convence alguns pela quantida<strong>de</strong> e pela velocida<strong>de</strong> com que vai produzindo significantes sem mais<br />

significação possível, sem apontar para sentido algum, sem permitir nenhum espaço on<strong>de</strong> se exercitem e se<br />

exerçam gestos expressivos compartilhados. Como se o tabuleiro – ou seja, o meio eletrônico, com suas<br />

ferramentas e processos telemáticos – pu<strong>de</strong>sse já representar todo o jogo, ou como se este se reduzisse às<br />

peças e às regras, po<strong>de</strong>ndo passar perfeitamente sem os jogadores e as jogadas. Ou ainda, como se a repetição<br />

incontrolável e quase automática <strong>de</strong> simulacros e simulações, nesse ciberespaço <strong>de</strong> telemáticas quantida<strong>de</strong>s,<br />

se impusesse per se. E, se volto à metáfora do jogo, é justamente para mostrar que até mesmo ela é tomada<br />

e entendida <strong>de</strong> forma insuficiente e, no mais das vezes, simplista. É necessário – repito – exercer essa<br />

reversibilida<strong>de</strong> entre um e outro, tornar os simulacros e a própria virtualida<strong>de</strong> uma das maneiras não <strong>de</strong> acesso<br />

direto ao real, mas <strong>de</strong> expressão no/do real; do mesmo modo, é preciso fazer do real um movimento em que<br />

se exercitem posições e perspectivas, mapeando significações, tentando sentidos, propondo significantes,<br />

repetindo e alterando os dados e as posições <strong>de</strong> si, como nos processos <strong>de</strong> tentativa-e-erro, acima <strong>de</strong>scritos, e<br />

que não são nada mais nada menos do que o exercício <strong>de</strong> uma existência diretamente implicada no mundo e<br />

com outras pessoas, o exercício <strong>de</strong> uma expressão que é vital e imediata, por ser plural, limitadamente plural.<br />

Tais reversibilida<strong>de</strong>s várias – como essas entre real e virtual – permitem chegar a outras dinâmicas <strong>de</strong><br />

elementos, expressões e categorias reversíveis. No espaço mais geral das textualida<strong>de</strong>s – nosso campo<br />

específico e privilegiado <strong>de</strong> investigação –, po<strong>de</strong>mos tomar as categorias sugeridas por Genette para enten<strong>de</strong>r<br />

e aprofundar melhor essa questão. É possível falar aí <strong>de</strong> uma textualização geral das instâncias metatextuais.<br />

Em outras palavras, as categorias textuais seriam elas também objeto <strong>de</strong> interferências e reversibilida<strong>de</strong>s. Os<br />

diferentes tipos <strong>de</strong> transtextualida<strong>de</strong> se colocariam como nós <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um espaço mais geral, po<strong>de</strong>ndo ser<br />

até mesmo chamado apenas <strong>de</strong> espaço das textualida<strong>de</strong>s. O mesmo ocorreria também com os gêneros<br />

literários, que não só mapeariam um seu espaço dos gêneros, obviamente, mas também permitiriam<br />

correspondências, correlações e fisionomias <strong>de</strong> variada fatura e jeito – como ocorre sempre nessa<br />

espacialida<strong>de</strong> que não se limita mais à geometria já bem conhecida das três dimensões e do tempo irreversível<br />

–, dando a experimentar proximida<strong>de</strong>s e vizinhanças até então insuspeitas ou improváveis, como aquelas<br />

entre prosa e poesia. Tomando então o que diz o próprio Gérard Genette, po<strong>de</strong>mos ler: “... il ne faut pas<br />

considérer les cinq types <strong>de</strong> transtextualité comme <strong>de</strong>s classes étanches, sans communication ni recoupements<br />

réciproques. Leurs relations sont au contraire nombreuses et souvent décisives”. 17 Na seqüência, ele cita quatro<br />

<strong>de</strong>ssas relações hipertextuais – hipertextos alógrafos; hipertextos autógrafos com hipotexto autônomo;<br />

hipertextos autógrafos com hipotexto ad hoc; hipertexto com hipotexto implícito –, sem que nada nos impeça<br />

<strong>de</strong> ir além e propor um segundo nível <strong>de</strong> relações, isto é, nas possíveis relações entre aquelas relações<br />

primeiras. A partir disso, po<strong>de</strong>mos pensar não apenas na produção <strong>de</strong> (ou na construção <strong>de</strong> referências a)<br />

diversos e inúmeros hipotextos, a partir das ferramentas e processos que nos permite o meio eletrônico. É<br />

igualmente legítimo conceber processos <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> hipertextos (entendido este termo na acepção mais<br />

124


específica que lhe dá Genette), em que os objetos textuais – resultantes agora das diferentes interações<br />

(homem-homem, homem-máquina, máquina-máquina) e das repetições em alucinante velocida<strong>de</strong> – sejam<br />

usados não como textos, mas como maneiras <strong>de</strong> colocar significantes em rotação, produzindo textos.<br />

Tentando esclarecer melhor isso, pensemos numa relação entre uma obra A e uma obra B, digamos, por<br />

exemplo, os poemas <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire e os sonetos <strong>de</strong> Rimbaud. No caso, trata-se <strong>de</strong> ir além do que propuseram<br />

os membros do Alamo, com a construção automática <strong>de</strong> sonetos <strong>de</strong> sintaxe rimbaudiana com um<br />

vocabulário bau<strong>de</strong>lairiano (ou vice-versa). E, para isso, po<strong>de</strong>-se pensar na eventualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a relação entre<br />

uns (poemas <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire) e outros (sonetos <strong>de</strong> Rimbaud) ser ela própria uma relação hipertextual, <strong>de</strong><br />

forma que a construção do objeto textual seja mais complexa do que o cruzamento <strong>de</strong> vocabulário <strong>de</strong> um<br />

autor com estruturas sintáticas típicas <strong>de</strong> outro. Assim seria possível imaginar a construção <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong><br />

banco <strong>de</strong> dados – claro que não a infinda Biblioteca <strong>de</strong> Babel <strong>de</strong> Borges, mas tão gran<strong>de</strong> que apenas as<br />

memórias dos computadores dariam conta <strong>de</strong>sse jogo <strong>de</strong> interferências e <strong>de</strong> inferências. Nele, os elementos<br />

<strong>de</strong> um e outro hipotexto seriam efetivamente compostos, <strong>de</strong> todas as maneiras possíveis, mas colocados<br />

diretamente na memória do computador, sem acesso imediato do leitor (e nem este teria condições físicas<br />

para armazená-los todos); num segundo nível <strong>de</strong> construção, o leitor po<strong>de</strong>ria, então, usando ferramentas<br />

<strong>de</strong> busca motivada, ter disponíveis na tela os poemas rimbaudianos que fossem dotados <strong>de</strong> uma certa<br />

fisionomia pre<strong>de</strong>finida, como uma dada fôrma (por exemplo, lipogramas casuais, ou seja, poemas que não<br />

teriam em nenhum verso uma certa letra).<br />

Outra possibilida<strong>de</strong> – essa, sim, fazendo uso da reversibilida<strong>de</strong> entre prosa e poesia – estaria na utilização <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s quantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> significantes verbais, submetendo-os a operações <strong>de</strong> armazenamento, catalogação,<br />

seleção e organização <strong>de</strong> que apenas as ferramentas telemáticas po<strong>de</strong>m dar conta. O que sugiro é, por<br />

exemplo, algum romance que tenha sido escrito (aparentemente) da maneira mais tradicional possível, ou<br />

seja, seguindo pretensamente os ditames e limites da tradição impressa. Todavia, seu autor utilizou um dado<br />

recurso <strong>de</strong> escrita que, mais do que um traço estilístico, po<strong>de</strong> tornar-se fio condutor <strong>de</strong> um trajeto <strong>de</strong> leitura<br />

que não tem mais como ser realizado fora do meio eletrônico: várias passagens foram redigidas <strong>de</strong> forma<br />

muito similar, algo entre um autopastiche e uma autocitação. É claro que a significação <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>las vai<br />

estar diretamente associada ao trecho do romance em que se encontra. Mas é claro que essa significação<br />

também estará diretamente ligada à maneira como ela se relaciona às outras, às transformação que se po<strong>de</strong>m<br />

ver <strong>de</strong> uma a outra. Teríamos, então, várias possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura, aproveitando um recurso extremamente<br />

simples e imediato, que é a exibição em estrutura <strong>de</strong> tópicos, como se encontra num processador <strong>de</strong> texto<br />

como o Word®. Nesse caso, não estamos aqui propondo nada que se assemelhe aos poemas em prosa, <strong>de</strong> larga<br />

tradição nas <strong>literatura</strong>s oci<strong>de</strong>ntais ao menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire. Nem é caso <strong>de</strong> se retomar certo tipo <strong>de</strong><br />

intertextualida<strong>de</strong>, como as que se verificam entre os poemas <strong>de</strong> Magma e alguns contos <strong>de</strong> João Guimarães<br />

Rosa (espalhados em várias obras). O que se quis com esse exemplo foi propor um mecanismo <strong>de</strong> leitura que<br />

traga para a prosa o paralelismo que marcou, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a <strong>literatura</strong> medieval, nossa tradição <strong>de</strong> poesia no<br />

Oci<strong>de</strong>nte. Em outras palavras, o que se <strong>de</strong>seja é fugir da seqüência linear <strong>de</strong> significantes, mas sem cair no<br />

casual ou no aleatório; é estabelecer no todo do romance uma espécie <strong>de</strong> ritmo longínquo, <strong>de</strong> baixíssima<br />

freqüência, mas correspon<strong>de</strong>ndo, <strong>de</strong> alguma maneira, à alta freqüência dos versos que se suce<strong>de</strong>m em ritmo<br />

vertiginoso num poema (mesmo quando se trata <strong>de</strong> versos mais extensos, como os alexandrinos).<br />

125


Em suma, ao vertiginoso do paralelismo da poesia, é agora possível pensar numa morosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ritmo<br />

romanesco. Não o ritmo da dicção do narrador, mas, agora, o ritmo com que sua prosa se dispõe ao leitor.<br />

Todavia, este somente terá como <strong>de</strong>tectá-lo, ou melhor, inseri-lo em algum campo <strong>de</strong> sentidos, para aí<br />

construir significações plausíveis, se utilizar alguns dos instrumentos informáticos (nesse caso, a exibição em<br />

forma <strong>de</strong> tópicos, estabelecendo diferentes níveis para a obra, com acesso visual, pelos próprios níveis, ou<br />

pela ferramenta <strong>de</strong> busca). Por isso po<strong>de</strong>mos dizer que tal mecanismo, se construído em papel, traria as<br />

mesmas dificulda<strong>de</strong>s (ou melhor, as mesmas impossibilida<strong>de</strong>s) dos Cent Milles Milliards <strong>de</strong> Poèmes, <strong>de</strong><br />

Queneau. Ele necessitaria <strong>de</strong> tantas e tais dobraduras nas folhas que elas teriam <strong>de</strong> ser um origami em<br />

quatro ou cinco dimensões para dar conta do que po<strong>de</strong> ser lido, montado, <strong>de</strong>smontado e remontado <strong>de</strong><br />

outra forma, na tela do computador. Apenas nosso trabalho <strong>de</strong> <strong>de</strong>smontar a lógica tecnicista e limitante<br />

dos programas e das máquinas é que possibilitaria essa abertura <strong>de</strong> processos, <strong>de</strong> maquinações e <strong>de</strong><br />

dispositivos em direção à pluralida<strong>de</strong> dos sentidos. É apenas nesse caso que se ultrapassam verda<strong>de</strong>iramente<br />

as linguagens <strong>de</strong> programação, para constituirmos uma linguagem artística por excelência.<br />

* * *<br />

Enfim, uma conclusão, à vera, mesmo que não em <strong>de</strong>finitivas palavras, é o que falta e o que resta a fazer.<br />

Mas será sempre assim. Ou, então, que se volte ao início <strong>de</strong>ste texto. Sendo início entendido por qualquer<br />

ponto ou <strong>de</strong>riva passível <strong>de</strong> leitura.<br />

126


Notas<br />

1 [“...<strong>de</strong>scubro em mim uma espécie <strong>de</strong> fraqueza interna que me impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser absolutamente indivíduo e me expõe ao olhar dos outros,<br />

como um homem entre homens ou, ao menos, como uma consciência entre as consciências”.] tradução do autor.<br />

2 Refinamento diretamente ligado a um conhecimento que só po<strong>de</strong> ser complexificação, no dizer <strong>de</strong> Bachelard.<br />

3 Em oposição às correspondências biunívocas, que remetem à estrutura binária da linguagem <strong>de</strong> máquina.<br />

4 “Atelier <strong>de</strong> Littérature Assistée par les Mathématiques et l’Ordinateur”, subgrupo surgido <strong>de</strong>ntro do Oulipo e que propunha experiências<br />

<strong>de</strong> criação literária com computadores.<br />

5 Cf. FITCH, Brian. L’appropriation littéraire: <strong>de</strong> Chla<strong>de</strong>nius à Ricoeur. Revue <strong>de</strong> Littérature Comparée, v. 72, n. 3, p. 321, 1998. [“ficção e<br />

poesia visam ao ser, não mais segundo a modalida<strong>de</strong> do ser dado, mas segundo a modalida<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r ser”.] tradução do autor.<br />

6 CLEMENT, op. cit., 2000, p. 76, nota 52. [“A tentação do infinito sempre rondou os escritores, sobretudo sob as aparências da<br />

combinatória. Esta se exprime, inicialmente, na <strong>literatura</strong> oral, pela proliferação das variantes e das versões. Ela continua na <strong>literatura</strong><br />

medieval, com a multiplicação dos ciclos narrativos. No século XIX, ela está no cerne do projeto balzaquiano”.] tradução do autor.<br />

7 GENETTE, op. cit., 1982, p. 53, nota 67. [“princípio maquinal”] tradução do autor.<br />

8 CHARTIER, op. cit., 2000, p. 44, nota 5. [“A revolução do texto eletrônico (...) à materialida<strong>de</strong> do livro, ela substitui a imaterialida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

textos sem local que lhes seja próprio; às relações <strong>de</strong> contigüida<strong>de</strong> estabelecidas no objeto impresso, ela opõe a livre composição <strong>de</strong><br />

fragmentos in<strong>de</strong>finidamente manipuláveis...”] tradução do autor.<br />

9 Corolário da progressiva <strong>de</strong>smaterialização <strong>de</strong> boa parte dos objetos artísticos a partir do início do século XX.<br />

10 ABENDROTH; DECOCK; MESTAOUI, op. cit., 2000, p. 112, nota 95. [“As novas tecnologias nos colocam assim em uma zona intermediária,<br />

uma zona <strong>de</strong> trânsito tornada permanente, nos permitindo estar lá e, potencialmente, em todo lugar, em um tempo que se po<strong>de</strong> registrar<br />

e estocar, um presente congelado. Nós somos então em um estado ‘nomádico’, jogando com o tempo e o espaço, <strong>de</strong>slizando <strong>de</strong> um<br />

ambiente e <strong>de</strong> uma virtualida<strong>de</strong> a outro”.] tradução do autor.<br />

11 RYAN, Marie-Laure. “The Text as World Versus the Text as Game: Possible World Sematics and Postmo<strong>de</strong>rn Theory”, in Journal of<br />

Literary Semantics, v. 27, n. 3, 1998, p. 137. Sem contar as inúmeras referências a jogo nas reflexões <strong>de</strong> Jacques Derrida.<br />

12 CAEIRO, Alberto. Poema XX. In: O guardador <strong>de</strong> rebanhos.<br />

13 “The Text as World Versus the Text as Game: Possible World Sematics and Postmo<strong>de</strong>rn Theory”, in Journal of Literary Semantics, v. 27,<br />

n. 3, 1998, p. 139-140.<br />

14 BRANDT, Joan. The theory and practice of a ‘revolutionary’ text: Denis Roche’s ‘Le mécrit’. Yale French Studies, v. 67, n. 67, p. 219, 1984.<br />

15 No livro <strong>de</strong>pois do livro / O texto se confun<strong>de</strong> com a noção <strong>de</strong> lugar / A imagem só se revela por uma inscrição textual / A visão agora<br />

é um dado da escrita / Implo<strong>de</strong>-se a referência do volume / A dimensão da página é o peso.<br />

16 Que não me parece mais estar no mesmo nível, nem situada nos mesmos limites das vanguardas do início do século XX.<br />

17 GENETTE, op. cit., 1982, p. 60-61, nota 67. [“...não é preciso consi<strong>de</strong>rar os cinco tipos <strong>de</strong> transtextualida<strong>de</strong> como classes estanques, sem<br />

comunicação nem recortes recíprocos. Suas relações são, ao contrário, numerosas e, com freqüência, <strong>de</strong>cisivas”.] tradução do autor.<br />

127


anexos


Labyrintho, Queixando-se do Mundo<br />

Corre sem vela e sem leme<br />

O tempo <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado,<br />

D'hum gran<strong>de</strong> vento levado:<br />

O que perigo não teme,<br />

He <strong>de</strong> pouco exprimentado.<br />

As re<strong>de</strong>as trazem na mão<br />

Os que re<strong>de</strong>as não tiverão:<br />

Vendo quanto mal fizerão<br />

A cobiça e a ambição,<br />

Disfarçados se acolhêrão.<br />

Não porque governe o leme<br />

Em mar envolto e turbado,<br />

Que të seu rumo mudado,<br />

Se perece grita e geme<br />

Em tempo <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado.<br />

Terem justo galardão,<br />

E dor dos que merecêrão,<br />

Sempre castigos tiverão<br />

Sem nenhuma re<strong>de</strong>mpção,<br />

Postoque se <strong>de</strong>tiverão.<br />

A náo, que se vai per<strong>de</strong>r,<br />

Destrue mil esperanças:<br />

Vejo o máo que vem a ter;<br />

Vejo perigos correr<br />

Quem não cuida que ha mudanças.<br />

Os que nunca em sella andárão,<br />

Na sella postos se vem:<br />

De fazer mal não <strong>de</strong>ixárão;<br />

Do <strong>de</strong>monio hábito tem<br />

Os que o justo profanárão.<br />

Na tormenta, se vier,<br />

Desespere na bonança,<br />

Quem manhas não sabe ter:<br />

Sem que lhe valha gemer,<br />

Verá falsar a balança.<br />

Os que nunca trabalhárão,<br />

Tendo o que lhe não convem,<br />

Se ao innocente enganárão,<br />

Per<strong>de</strong>rão o eterno bem,<br />

Se do mal não s'apartárão.<br />

Que po<strong>de</strong>rá vir a ser<br />

O mal nunca refreado?<br />

Anda, por certo, enganado<br />

Aquelle que quer valer,<br />

Levando o caminho errado.<br />

He para os bons confusão,<br />

Ver que os máos prevalecêrão;<br />

Que, posto se <strong>de</strong>tiverão<br />

Com esta simulação,<br />

Sempre castigos tiverão:<br />

[ 1 ]<br />

Camões


De Laudibus Sanctae Crucis - Poema 16 [<strong>de</strong>talhe], <strong>de</strong> Habranus Magnentius Maurus<br />

c Biblioteca Apostólica Vaticana. Reg. Lat. 124, fol. 32v.<br />

[ 2 ]


[ 3 ]<br />

Exemplo <strong>de</strong> escrita ropálica, autor <strong>de</strong>sconhecido, s.d.


Exemplo <strong>de</strong> labirinto, autor <strong>de</strong>sconhecido, s.d.<br />

[ 4 ]


[ 5 ]<br />

Exemplo <strong>de</strong> emblema, autor <strong>de</strong>sconhecido, s.d.


i n u t r o q u e c e s a r<br />

n i n u t r o q u e c e s a<br />

u n i n u t r o q u e c e s<br />

t u n i n u t r o q u e c e<br />

r t u n i n u t r o q u e c<br />

o r t u n i n u t r o q u e<br />

q o r t u n i n u t r o q u<br />

u q o r t u n i n u t r o q<br />

e u q o r t u n i n u t r o<br />

c e u q o r t u n i n u t r<br />

e c e u q o r t u n i n u t<br />

s e c e u q o r t u n i n u<br />

a s e c e u q o r t u n i n<br />

r a s e c e u q o r t u n i<br />

Anastácio Ayres <strong>de</strong> Penhafiel<br />

Da Aca<strong>de</strong>mia Brasílica dos Esquecidos, ca. 1728<br />

[ 6 ]


ibliografia


AARSETH, Espen. Cybertex: perspectives on ergodic literature. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1997.<br />

ABRANTES, Paulo. Imagens <strong>de</strong> natureza, imagens <strong>de</strong> ciência. Campinas: Papirus, 1998.<br />

ACTUALITÉ du virtuel. Paris: Centre Georges Pompidou, 1996.<br />

ANIS, Jacques. Texte et ordinateur: l’écriture réinventée? Paris: De Boeck, 1998.<br />

BALPE, Jean-Pierre. Hypertextes-hypermédias et internet. Paris: Hermes, 1999.<br />

BALPE, Jean-Pierre; LAUFER, F. Instruments <strong>de</strong> communication evolués: hypertextes, hypermédias. Paris: E.A.O.,1990.<br />

BALPE, Jean-Pierre; MAGNE, Bernard. L’imagination informatique <strong>de</strong> la littérature. Saint-Denis: Presses Universitaires <strong>de</strong> Vincennes,<br />

1991. Apresentation dans Colloque <strong>de</strong> Cerisy, juillet 1985.<br />

BALPE, Jean-Pierre et al. Techniques avancées pour l’hypertexte. Paris: Hermes, 1996.<br />

BARBOSA, Pedro. A ciber<strong>literatura</strong>: criação literária e computador. Lisboa: Cosmos, 1996.<br />

BARRETT, Edward (Org.). The society of text: hypertext, hypermedia and the social construction of information. Cambridge: The MIT<br />

Press, 1998.<br />

BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris: Éditions du Seuil,1973. (Tel Quel).<br />

______. S/Z. Paris: Éditions du Seuil, 1970.<br />

______. Critique et vérité. Paris: Éditions du Seuil, 1966.<br />

______. Introduction à l’analyse structurale <strong>de</strong>s récits. Communications, Paris, n. 8, 1966.<br />

______. Sa<strong>de</strong>, Fourier, Loyola. Paris: Éditions du Seuil, 1971.<br />

______. Le <strong>de</strong>gré zéro <strong>de</strong> l’ecriture, suivi d’elements <strong>de</strong> Sémiologie. Paris: Éditions du Seuil, 1972.<br />

______. Essais critiques. Paris: Éditions du Seuil, 1981.<br />

______. Essais critiques III. Paris: Éditons du Seuil, 1982.<br />

______. Essais critiques IV: le bruissement <strong>de</strong> la langue. Paris: Éditions du Seuil, 1984.<br />

______. L’aventure sémiologique. Paris: Éditions du Seuil, 1985.<br />

BAUDRILLARD, Jean. Écran total. Paris: Galilée, 1997.<br />

______. Le système <strong>de</strong>s objets. Paris: Gallimard, 1968.<br />

______. L’effet beaubourg: implosion et dissuasion. Paris: Galilée, 1977.<br />

138


______. L’Illusion <strong>de</strong> la Fin. Paris: Galilée, 1992.<br />

______. Simulacres et simulation. Paris: Galilée, 1981.<br />

______. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio <strong>de</strong> Água, 1991.<br />

BENS, Jacques. Ou Li Po (1960-1963). Paris: Bourgois, 1980.<br />

BERNARD, Michel. Introduction aux étu<strong>de</strong>s littéraires assistées par ordinateur. Paris: PUF, 1999.<br />

______. De quoi parle ce livre? élaboration d’um thesaurus pour l’in<strong>de</strong>xation thématique d’oeuvres littéraires. Paris: Honoré<br />

Champion, 1994.<br />

BOOTZ, Philippe. Le point <strong>de</strong> vue fonctionnel: point <strong>de</strong> vue tragique et programme pilote. Alire, n. 13-16, 1997.<br />

CALVINO, Ítalo. O castelo dos <strong>de</strong>stinos cruzados. Tradução Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.<br />

______. As cida<strong>de</strong>s invisíveis. Tradução Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.<br />

______. As cosmicômicas. Tradução Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.<br />

______. La machine littérature. Paris: Éditions du Seuil, 1993.<br />

______. Se um viajante numa noite <strong>de</strong> inverno. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras: 1993.<br />

Colloque Nord Poésie et Ordinateur, 1993, Lille. A:\Littérature. Cahiers du Circav, Lille, 1994. Édition spécial.<br />

COUCHOT, Edmond. La technologie dans l’art. Nîmes: Jacqueline Chambon, 1998.<br />

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introduction: Rhizome. In: ______. MILLE Plateaux. Paris: Les Editions <strong>de</strong> Minuit, 1980. p. 9-37.<br />

ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1971.<br />

______. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1993.<br />

______. La structure absente, introduction à la recherche sémiotique. Paris: Mercure <strong>de</strong> France, 1972.<br />

______. Sémiotique et philosophie du langage. Traduction Myriem Bouzaher. Paris: PUF, 1988.<br />

______. Les limites <strong>de</strong> l’interprétation. Paris: Grasset, 1992.<br />

FERRAND, Nathalie (Org.). Banques <strong>de</strong> données et hypertextes pour l’etu<strong>de</strong> du roman. Paris: PUF, 1997.<br />

FOREST, Fred. Pour um art actuel. Paris: L’Harmattan, 1998.<br />

GELERNTER, David. Elegance and the heart of technology. New York: Basic Books, 1997.<br />

139


GENETTE, Gérard. Figures II. Paris: Éditions du Seuil, 1969.<br />

______. Palimpseste: la littérature au second <strong>de</strong>gré. Paris: Éditions du Seuil, 1982.<br />

GILLAUT, Arnaud. La notion d’écrilecture à travers les revues <strong>de</strong> poésie électronique KAOS et Alire (1989-1995). Arras: Université<br />

d’Artois, 1996.<br />

IANNI, Octavio. A socieda<strong>de</strong> global. 4. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.<br />

COLLOQUE DE CERISY, 1985. L’Imagination informatique <strong>de</strong> la littérature. Saint-Denis: Presses Universitaires <strong>de</strong> Vincennes, 1991.<br />

KRISTEVA, Julia. Semeiotike: recherches pour une sémanalyse. Paris: Éditions du Seuil, 1978. (Points).<br />

______. Le texte du roman. La Haye: Mouton, 1970.<br />

______. La révolution du langage poétique. Paris: Éditions du Seuil, 1974.<br />

KROKER, Arthur; KROKER, M. Digital <strong>de</strong>lirium. New York: St. Martin’s Press, 1997.<br />

LANDOW, George P. Hypertext: the convergence of contemporary critical theory and technology. Baltimore: The Johns Hopkins<br />

University Press, 1992.<br />

LANDOW, George P; DELANY, Paul. The digital word. Cambridge: The MIT Press, 1993.<br />

LAUFER, Roger; SCAVETA, Domenico. Texte, hypertexte, hypermédia. Paris: PUF, 1992. (Coleção Que sais-je?)<br />

LAURETTE, Pierre. Lettres et techné. Québec: Les Éditions Balzac, 1993.<br />

LEÃO, Lúcia (Org.). Interlab: labirintos do pensamento contemporâneo. São Paulo: Iluminuras, 2002.<br />

______. O labirinto da hipermídia. São Paulo: Iluminuras, 1999.<br />

LENOBLE, Michel (Org.); VUILEMIN, Alain (Org.). Littérature, informatique, lecture: <strong>de</strong> la littérature assistée par ordinateur à la lecture<br />

interactive. Limoges: Pulim, 1999.<br />

LÉVY, Pierre. Des artistes et un collectionneur. Paris: Flammarion, 1976.<br />

______. Cyberculture: rapport au conseil <strong>de</strong> l’Europe dans le cadre du projet Nouvelles Technologies: coopération culturelle et<br />

communication. Paris: Odile Jacob, 1997.<br />

______. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. Tradução Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 1998.<br />

______. La machine univers. Paris: La Découverte, 1987.<br />

______. O que é o virtual? Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora 34, 1996.<br />

140


______. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora 34, 1993.<br />

LITTÉRATURE et techonologie. Paris: Centre d’étu<strong>de</strong>s du Roman et du romanesque: Lettres Mo<strong>de</strong>rnes, 1993.<br />

MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário: o <strong>de</strong>safio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Edusp, 1996.<br />

______. O quarto iconoclasmo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.<br />

MEDEIROS, Maria Beatriz (Org.). Arte e tecnologia na cultura contemporânea. Brasília: Dupligráfica, 2002.<br />

PEREC, Georges. La vie mo<strong>de</strong> d’emploi. Paris: Hachette, 2000.<br />

______. W ou le souvenir d’enfance. Paris: Gallimard, 1993.<br />

PORTER, David. Internet culture. New York: Routledge, 1997.<br />

PRADO, Gilbertto dos Santos. Arte telemática: dos intercâmbios pontuais aos ambientes virtuais multiusuário. 2001.Tese (Livre<br />

Docência) — Unesp, São Paulo.<br />

QUENEAU, Raymond. Cent mille milliards <strong>de</strong> poèmes. Paris: Gallimard, 1982.<br />

______. Exercices <strong>de</strong> style. Paris: Gallimard, 2002.<br />

QUINSAT, Gilles. De la mappemon<strong>de</strong> au web: vers un texte sans qualités? Critique, Paris, n. 608-609, janv./févr. 1998.<br />

RISÉRIO, Antonio. Ensaio sobre o texto poético em contexto digital. Salvador: Fundação Casa <strong>de</strong> Jorge Amado, 1998.<br />

SANTOS, <strong>Alckmar</strong> Luiz dos. Por uma teoria do hipertexto. Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina. Centro <strong>de</strong> Documentação e<br />

Expressão. Disponível em . Acesso em: 31 jul. 2003.<br />

SCHEPS, Ruth (Org.). O império das técnicas. Campinas: Papirus: 1994.<br />

SNYDER, Ilana. Hypertext: the electronic labyrinth. New York: New York University Press, 1997.<br />

SUTHERLAND, Kathrin. Electronic text: investigations in method and theory. New York: Clarendon Oxford Press, 1997.<br />

VIRILIO, Paul. Cybermon<strong>de</strong>: la politique du pire. Paris: Les Editions Textuel, 1996.<br />

______. A arte do motor. Tradução Paulo Roberto Pires. São Paulo: Estação Liberda<strong>de</strong>, 1996.<br />

141


índice onomástico


AKENATON 47<br />

ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong> 24<br />

ANDRADE, Mário <strong>de</strong> (Mário Raul <strong>de</strong> Morais Andra<strong>de</strong>) 50<br />

ANJOS, Augusto dos (Augusto <strong>de</strong> Carvalho Rodrigues dos<br />

Anjos) 51<br />

APOLLINAIRE, Guillaume (Wilhelm Appollinaris <strong>de</strong><br />

Kostrowitzki) 80<br />

ARISTÓTELES 60, 74, 88, 105<br />

AROUET, François-Marie (ver VOLTAIRE)<br />

AZEVEDO, Aluízio (Aluízio Tancredo Gonçalves <strong>de</strong> Azevedo) 83<br />

BARBOSA, Pedro 68, 105<br />

BARTHES, Roland (Roland Gérard Barthes) 21, 101, 107<br />

BAUDELAIRE, Charles (Charles-Pierre Bau<strong>de</strong>laire) 125<br />

BAUDRILLARD, Jean 37, 41, 107<br />

BEIGUELMAN, Giselle 123<br />

BENAYOUN, Maurice 84, 85<br />

BOOTZ, Philippe 73, 119<br />

BORGES, Jorge Luis 120, 123, 125<br />

BRANDT, Joan 123<br />

BUTOR, Michel 80<br />

CAEIRO, Alberto (heterônimo <strong>de</strong> Fernando Pessoa) 39, 52,<br />

99,102, 122<br />

CAMINHA, Pero Vaz <strong>de</strong> 34<br />

CAMÕES, Luís Vaz <strong>de</strong> 65, 70, 106<br />

CAMPOS, Haroldo (Haroldo Eurico Browne <strong>de</strong> Campos) 87<br />

CANDIDO, Antonio 83<br />

CASTELIN, Philippe 50<br />

CASTRO, E. M. <strong>de</strong> Melo e (Ernesto Manuel Geral<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

Melo e Castro) 63, 65<br />

CHARTIER, Roger 118, 119<br />

CHATONSKY, Grégory 52<br />

CÍCERO, Marco Túlio 74<br />

CLÉMENT, Jean 63, 82, 118<br />

COMTE, Auguste (Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier<br />

Comte) 100, 103<br />

COUCHOT, Edmond 48<br />

CUMMINGS, E. E. (Edward Eastlin Cummings) 80<br />

DELEUZE, Gilles 37<br />

DERRIDA, Jacques 37, 42<br />

DESCARTES, René 37<br />

DIAS, Gonçalves (Antônio Gonçalves Dias) 71, 72, 73<br />

DIAS-PINO, Wal<strong>de</strong>mir 86<br />

DOCTOROVITCH, Fabio 51, 62, 63, 67, 80, 81<br />

DUCHAMP, Marcel (Henri-Robert-Marcel Duchamp) 45, 49<br />

DÜRER, Albrecht 26, 27<br />

ECO, Umberto 22, 59<br />

EMMANUEL, Pierre 46<br />

EUCLIDES (Eucli<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Alexandria) 36<br />

FENOLLOSA, Ernest 86<br />

FLACO, Quinto Horácio (ver HORÁCIO)<br />

FOUCAULT, Michel (Michel Paul Foucault) 37<br />

GENETTE, Gérard 61, 73, 98, 101, 118, 124<br />

GÓNGORA, Luis (Don Luis <strong>de</strong> Góngora y Argote) 69, 70, 79<br />

GUERRA, Gregório <strong>de</strong> Matos e (ver MATOS, Gregório)<br />

HEIDEGGER, Martin 77, 113<br />

HEGEL (Georg Wilhelm Friedrich Hegel) 50<br />

HOFFMANN, Dierk 69<br />

HORÁCIO (Quinto Horácio Flaco) 60<br />

HUGO, Victor (Victor-Marie Hugo) 116<br />

HUSSERL, Edmund 37, 41<br />

INGARDEN, Roman 102<br />

KAC, Eduardo 79, 80, 85<br />

KANT, Immanuel 36, 37, 40, 43<br />

KOSTROWITZKI, Wilhelm Appollinaris (ver APOLLINAIRE,<br />

Guillaume)<br />

KRISTEVA, Julia 61, 98, 100<br />

KUHLMANN, Quirinus 63, 65, 66, 67, 71<br />

LAFER, Tiago 71, 72, 73<br />

LANDOW, George Paul 61, 97<br />

LÉVY, Pierre 29, 37, 39, 43, 98, 99, 100, 103<br />

LÉVY-BRUHL, Lucien 103<br />

LIMA, Jorge <strong>de</strong> (Jorge Mateus <strong>de</strong> Lima) 83<br />

LOBATCHEVSKI, Nikolai (Nikolai Ivanovitch Lobatchevski) 36<br />

LONGINO, Cássio 60<br />

144


MAISTRE, Xavier <strong>de</strong> 83<br />

MALLARMÉ, Stéphane 62, 79, 80<br />

MARX, Karl (Karl Heinrich Marx) 50<br />

MATOS, Gregório <strong>de</strong> (Gregório <strong>de</strong> Matos e Guerra) 70<br />

MATUCK, Artur 59, 61, 62, 106<br />

MAURO, Rábano (Rabanus Magnentius Maurus) 65<br />

McLUHAN, Marshall (Herbert Marshall McLuhan) 97<br />

MERLEAU-PONTY, Maurice 31, 76, 77, 78, 87<br />

MESCHINOT, Jean 63, 65, 66, 67<br />

MOEBIUS (August Ferdinand Möbius) 37, 42, 77, 84<br />

MONTAIGNE, Michel Eyquem <strong>de</strong> 37<br />

MORAIS, Vinícius <strong>de</strong> 116<br />

NIETZSCHE, Friedrich (Friedrich Wilhelm Nietzsche) 37<br />

OLIVEIRA, Antônio <strong>de</strong> 69, 70, 71<br />

ONG, Walter 97<br />

PEQUEÑO GLAZIER, Loss 51<br />

PEREC, Georges 118<br />

PESSOA, Fernando (Fernando Antônio Nogueira Pessoa)<br />

33, 67, 99<br />

PETRARCA (Francisco Petrarca) 70<br />

PIRRO (Pirro <strong>de</strong> Élida) 37<br />

POUND, Ezra (Ezra Loomis Pound) 61, 97<br />

PRADO, Gilbertto (Gilberto dos Santos Prado) 82, 85, 88<br />

PROUST, Marcel 101, 107<br />

QUENEAU, Raymond 50, 51, 66, 106, 118, 126<br />

QUEVEDO (Francisco Gómez <strong>de</strong> Quevedo y Villegas) 70<br />

QUINTILIANO, Marco Fábio 74<br />

REYNOLDS, David 60<br />

RICOEUR, Paul 117<br />

RIEMANN, Georg Friedrich Bernhard 36<br />

RIMBAUD, Arthur (Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud) 125<br />

RODRIGUES, Nelson (Nelson Falcão Rodrigues) 60<br />

ROSA, João Guimarães 19, 125<br />

RYAN, Marie-Laure 122<br />

SÁ-CARNEIRO, Mário <strong>de</strong> 26<br />

SADIN, Eric 71, 81<br />

SÉRANDOUR, Eric 51<br />

SLUCKTIN, W. 87<br />

SÓCRATES 37<br />

TARDIEU, Jean 80<br />

TREVISAN, Dalton 60<br />

TROYES, Chrétien <strong>de</strong> 63<br />

TURING, Alan (Alan Mathison Turing) 63, 66<br />

VALÉRY, Paul (Ambroise-Paul-Toussaint-Jules Valéry) 35, 63<br />

VALLIAS, André 113, 115<br />

VERLAINE, Paul 118<br />

VIRILIO, Paul 29, 37, 52, 107<br />

VOLTAIRE (François-Marie Arouet) 63, 115<br />

ZOLA, Émile (Émile-Édouard-Charles-Antoine Zola) 83<br />

145


Autor <strong>de</strong>sconhecido, s.d.<br />

“do Frontispício <strong>de</strong> Vozes saudosas da eloquencia, do espirito, do zelo e eminente sabedoria do Padre<br />

Antônio Vieira, Lisboa Occi<strong>de</strong>ntal, Na Officina <strong>de</strong> Miguel Rodrigues, MDCCXXXVI, publicado como volume<br />

XV da edição facsimilar dos Sermões São Paulo, Anchieta, 1945.”


147


Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Honra<br />

Olavo Egydio Setubal<br />

Presi<strong>de</strong>nte<br />

Milú Villela<br />

Vice-Presi<strong>de</strong>ntes Seniores<br />

Joaquim Falcão<br />

Jorge da Cunha Lima<br />

Vice-Presi<strong>de</strong>ntes Executivos<br />

Alfredo Egydio Setubal<br />

Ronaldo Bianchi<br />

Diretores Executivos<br />

Antonio Carlos Barbosa <strong>de</strong> Oliveira<br />

Antonio Jacinto Matias<br />

Cláudio Salvador Lembo<br />

Malú Pereira <strong>de</strong> Almeida<br />

Renato Roberto Cuoco<br />

Superinten<strong>de</strong>nte Administrativo<br />

Walter Feltran<br />

Superinten<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

Ativida<strong>de</strong>s Culturais<br />

Eduardo Saron<br />

Rumos Itaú <strong>Cultural</strong> Transmídia<br />

<strong>Leituras</strong> <strong>de</strong> Nós:<br />

Ciberespaço e Literatura<br />

Autor<br />

<strong>Alckmar</strong> Luiz dos Santos<br />

Realização<br />

Itaú <strong>Cultural</strong><br />

Núcleo <strong>de</strong> Artes Visuais<br />

Coor<strong>de</strong>nador<br />

Marcelo Monzani<br />

Produção<br />

Sofia Fan<br />

Núcleo <strong>de</strong> Comunicação<br />

Assistente <strong>Cultural</strong><br />

Janaína Chaves da Silva<br />

Design Gráfico<br />

Sheila Ferreira<br />

Yoshiharu Arakaki<br />

Edição e Preparação <strong>de</strong> Textos<br />

Celina Oshiro<br />

Marco Aurélio Fiochi<br />

Centro <strong>de</strong> Documentação<br />

e Referência<br />

Índice Onomástico e<br />

Normalização Bibliográfica<br />

Selma Cristina Silva<br />

Josiane Mozer<br />

Edson Alves Gomes<br />

Digitalização e Tratamento<br />

<strong>de</strong> Imagens<br />

Humberto Pimentel<br />

Jônatas Trombini<br />

CD-ROM<br />

Dos Desconcertos da Vida<br />

Filosoficamente Consi<strong>de</strong>rada<br />

[poema eletrônico]<br />

Criação<br />

<strong>Alckmar</strong> Luiz dos Santos<br />

Programação<br />

Sandro da Silva dos Santos<br />

Agra<strong>de</strong>cimentos<br />

Á Capes, ao CNPq e ao<br />

Instituto Itaú <strong>Cultural</strong>,<br />

pelo apoio a este trabalho.<br />

Este livro não po<strong>de</strong> ser comercializado.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!