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Água Viva

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minha energia. Intuíra cegamente que algo se passara entre mim<br />

e a rosa. Esta - deu-me vontade de chamá-la de "jóia da vida",<br />

pois chamo muito as coisas - tinha tanto instinto de natureza que<br />

eu e ela tínhamos podido nos viver uma a outra profundamente<br />

como só acontece entre bicho e homem.<br />

Não ter nascido bicho é uma minha secreta nostalgia.<br />

Eles às vezes clamam do longe muitas gerações e eu não posso<br />

responder senão ficando inquieta. É o chamado.<br />

Esse ar solto, esse vento que me bate na alma da cara<br />

deixando-a ansiada em uma imitação de um angustiante êxtase<br />

cada vez novo, novamente e sempre, cada vez o mergulho em<br />

alguma coisa sem fundo onde caio sempre caindo sem parar até<br />

morrer e adquirir enfim silêncio. Oh vento siroco, eu não te<br />

perdôo a morte, tu que me trazes uma lembrança machucada de<br />

coisas vividas que, ai de mim, sempre se repetem, mesmo sob<br />

formas outras e diferentes. A coisa vivida me espanta assim como<br />

me espanta o futuro. Este, como o já passado, é intangível, mera<br />

suposição.<br />

Estou nesse instante em um vazio branco esperando o<br />

próximo instante, cortar o tempo é apenas hipótese de trabalho.<br />

Mas o que existe é perecível e isto obriga a contar o tempo<br />

imutável e permanente. Nunca começou e nunca vai acabar.<br />

Nunca.<br />

Soube de um ela que morreu na cama mas aos gritos: estou<br />

me apagando! Até que houve o benefício do coma dentro do qual o<br />

ela se libertou do corpo e não teve nenhum medo de morrer.<br />

Para te escrever eu antes me perfumo toda.<br />

Eu te conheço todo por te viver toda. Em mim é profunda<br />

a vida. As madrugadas vêm me encontrar pálida de ter vivido a<br />

noite dos sonhos fundos. Embora às vezes eu sobrenade em um<br />

raso aparente que tem debaixo de si uma profundidade de azulescuro<br />

quase negro. Por isto te escrevo. Por sopro das grossas<br />

algas e no tenro nascente do amor.<br />

Eu vou morrer: há uma tensão como a de um arco prestes<br />

a disparar a flecha. Lembro-me do signo Sagitário: metade homem

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