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Água Viva

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Mas eu percebia um pequeno rumor como de um coração<br />

batendo debaixo da terra. Colocava quietamente o ouvido no<br />

chão e ouvia o verão abrir caminho por dentro e o meu coração<br />

embaixo da terra - "nada! eu não disse nada!" - e sentia a<br />

paciente brutalidade com que a terra fechada se abria por<br />

dentro em parto, e sabia com que peso de doçura o verão<br />

amadurecia cem mil laranjas e sabia que as laranjas eram minhas.<br />

Porque eu queria.<br />

Orgulho-me de sempre pressentir mudança de tempo. Há<br />

coisa no ar - o corpo avisa que virá algo novo e eu me alvoroço<br />

toda. Não sei para quê. naquela mesma primavera ganhei a planta<br />

chamada prímula. É tão misteriosa que no seu mistério está<br />

contido o inexplicável da natureza. Aparentemente nada tem de<br />

singular. Mas no dia exato em que começa a primavera as folhas<br />

morrem e em lugar delas nascem flores fechadas que têm um<br />

perfume masculino e feminino extremamente estonteador.<br />

A gente está sentada perto e olhando distraída. E eis<br />

que elas vagarosamente vão se abrindo e entregando-se à nova<br />

estação sob nosso olhar espantado: é a primavera que então se<br />

instala.<br />

Mas quando vem o inverno eu dou e dou e dou. Agasalho<br />

muito. Aconchego ninhadas de pessoas no meu peito morno. E<br />

ouve-se barulho de quem toma sopa quente. Estou vivendo agora<br />

dias de chuva: já se aproxima eu dar.<br />

Não vê que isto aqui é como filho nascendo? Dói. Dor é vida<br />

exacerbada. O processo dói. Vir-a-ser é uma lenta e lenta dor boa.<br />

É o espreguiçamento amplo até onde a pessoa pode se esticar. E o<br />

sangue agradece. Respiro, respiro. O ar é it. Ar com vento já é um<br />

ele ou ela. Se eu tivesse que me esforçar para te escrever ia ficar<br />

tão triste. Às vezes não agüento a força da inspiração. Então<br />

pinto abafado. É tão bom que as coisas não dependam de mim.<br />

Tenho falado muito em morte. Mas vou te falar no sopro de<br />

vida. Quando a pessoa já está sem respiração faz-se a respiração<br />

bucal: cola-se a boca na boca do outro e se respira. E a outra<br />

recomeça a respirar. Essa troca de aspirações é uma das coisas<br />

mais belas que já ouvi dizerem da vida. Na verdade a beleza deste

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