Download - IESE
Download - IESE
Download - IESE
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
DESAFIOS<br />
PARA<br />
MOÇAMBIQUE<br />
2010<br />
organização<br />
Luís de Brito | Carlos Nuno Castel-Branco | Sérgio Chichava | António Francisco
DESAFIOS<br />
PARA<br />
MOÇAMBIQUE<br />
2010<br />
organização<br />
Luís de Brito | Carlos Nuno Castel-Branco | Sérgio Chichava | António Francisco<br />
www.iese.ac.mz
TÍTULO<br />
DESAFIOS PARA MOÇAMBIQUE, 2010<br />
ORGANIZAÇÃO<br />
LUÍS DE BRITO, CARLOS NUNO CASTEL-BRANCO, SÉRGIO CHICHAVA E ANTÓNIO FRANCISCO<br />
EDIÇÃO<br />
<strong>IESE</strong><br />
COORDENAÇÃO EDITORIAL<br />
MARIMBIQUE – CONTEÚDOS E PUBLICAÇÕES, LDA<br />
EDITOR EXECUTIVO<br />
NELSON SAÚTE<br />
DESIGN GRÁFICO E PAGINAÇÃO<br />
ATELIER 004<br />
FOTOGRAFIA DA CAPA<br />
JOÃO COSTA (FUNCHO)<br />
REVISÃO<br />
SUSANA BAETA<br />
IMPRESSÃO E ACABAMENTO<br />
PERES-SOCTIP<br />
NÚMERO DE REGISTO<br />
6146/RLINLD/2009<br />
ISBN<br />
978-989-96147-3-4<br />
TIRAGEM<br />
1500 EXEMPLARES<br />
ENDEREÇO DO EDITOR<br />
AVENIDA PATRICE LUMUMBA, N Ọ 178, MAPUTO, MOÇAMBIQUE<br />
<strong>IESE</strong>@<strong>IESE</strong>.AC.MZ<br />
WWW.<strong>IESE</strong>.AC.MZ<br />
TEL.: +258 21 328 894<br />
FAX : + 258 21 328 895<br />
MAPUTO, DEZEMBRO DE 2009
AUTORES<br />
Abdul Magid Osman<br />
Licenciado em Economia e Finanças, ex-Ministro de Finanças, ex-Presidente do Conselho de<br />
Administração do BCI, Presidente do Grupo Epsilon e Presidente do Banco Tchuma.<br />
António Francisco<br />
Director de investigação do <strong>IESE</strong> e Professor Associado da Faculdade de Economia da Universidade<br />
Eduardo Mondlane, é doutorado em Demografia pela Universidade Nacional da Austrália.<br />
antónio.francisco@iese.ac.mz<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
Director de investigação, Director do <strong>IESE</strong> e Professor Associado da Faculdade de Economia<br />
da Universidade Eduardo Mondlane, é doutorado em Economia (Economia Política da Industrialização<br />
e Política Industrial) pela Universidade de Londres. carlos.castel-branco@iese.ac.mz<br />
João Carlos Trindade<br />
Investigador associado do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade<br />
de Coimbra e do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, é licenciado<br />
em Direito pela Universidade Eduardo Mondlane. Juiz-Conselheiro do Tribunal Supremo<br />
jubilado e ex-Director do Centro de Formação Jurídica e Judiciária; tem como áreas de pesquisa:<br />
administração da justiça, sociologia judiciária, pluralismo jurídico.<br />
João Mosca<br />
Professor Catedrático e investigador na Universidade Politécnica, é doutorado em Economia<br />
Agrária e Sociologia Rural pela Universidade de Córdoba e Agregado pela Universidade Técnica<br />
de Lisboa. joao.mosca@yahoo.com<br />
João Noronha<br />
Director Geral da EUROSIS – Consultoria e Formação em Gestão, é formado em Engenharia<br />
Electrotécnica. É gestor, consultor e docente nas áreas de planeamento estratégico, desenvolvimento<br />
e transformação organizacional, desenho de programas e projectos, sistemas de<br />
informação, gestão do conhecimento e comportamento organizacional.
Jonas Pohlmann<br />
Investigador associado do <strong>IESE</strong> e representante da Open Society Initiative for Southern Africa<br />
(OSISA) em Moçambique, é mestre em Estudos de Desenvolvimento pela London School of<br />
Economics and Political Science, Reino Unido. As suas áreas de pesquisa incluem: direitos<br />
humanos, instituições do sector de justiça, democracia, sociedade civil e governação local.<br />
masjop@gmail.com<br />
Júlio Carrilho<br />
Professor Auxiliar e Director do Centro de Estudos do Desenvolvimento do Habitat da<br />
Faculdade de Arquitectura da Universidade Eduardo Mondlane, é doutorado em Arquitectura<br />
e Ambiente pela Universidade de Roma “La Sapienza”. Foi Ministro das Obras Públicas e<br />
Habitação. Tem-se dedicado ao estudo da arquitectura de matriz swahili em Moçambique e aos<br />
processos de “regularização” da ocupação nas cinturas não planificadas dos núcleos urbanos.<br />
juliocarrilho@yahoo.com<br />
Lídia Brito<br />
Professora Auxiliar da Universidade Eduardo Mondlane, é doutorada em Ciências Florestais<br />
pela Universidade Estadual do Colorado, EUA. Foi Vice-Reitora da Universidade Eduardo<br />
Mondlane, Ministra da Educação Superior, Ciência e Tecnologia, Consultora Sénior da empresa<br />
EUROSIS e é actualmente Directora da Divisão de Politicas de Ciência da UNESCO. A sua<br />
área de pesquisa abrange, para além de temáticas relativas à madeira, o impacto de políticas<br />
públicas do ensino superior, ciência e tecnologia no desenvolvimento.<br />
Luís de Brito<br />
Director de investigação do <strong>IESE</strong> e Professor Associado da Universidade Eduardo Mondlane,<br />
é doutorado em Antropologia (Antropologia e Sociologia da Política) pela Universidade de<br />
Paris VIII.<br />
Luís Lage<br />
Professor Auxiliar e Director da Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da Universidade<br />
Eduardo Mondlane, é doutorado em “Levantamento, Análise e Representação da Arquitectura e<br />
Ambiente” pela Universidade de Roma “La Sapienza”. As suas áreas de pesquisa são os processos<br />
do “reassentamento” humano e a análise de tipologias arquitectónicas. genas1@hotmail.com
Miguel Buendía<br />
Professor Auxiliar da Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane, é doutorado<br />
em Filosofia e História da Educação pela Universidade de São Paulo, Brasil. Tem como área de<br />
pesquisa os processos de concepção, desenvolvimento e implementação de políticas públicas<br />
de educação, particularmente, relativas à educação básica.<br />
Narciso Matos<br />
Director Executivo da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade e Professor<br />
Associado da Universidade Eduardo Mondlane, é doutorado em Química Orgânica pela<br />
Universidade de Humboldt, Alemanha. Foi Reitor da Universidade Eduardo Mondlane,<br />
Secretário Geral da Associação das Universidades Africanas e Director do Programa de<br />
Desenvolvimento Internacional da Corporação Carnegie de Nova Iorque. Estuda e escreve<br />
sobre questões de política e gestão de ensino, investigação e gestão educacional.<br />
Nelsa Massingue<br />
Assistente de investigação do <strong>IESE</strong>, é licenciada em Economia pela Faculdade de Economia<br />
da Universidade Eduardo Mondlane. As suas áreas de pesquisa estão ligadas a ajuda externa,<br />
indústria extractiva e desenvolvimento rural. nelsa.massingue@iese.ac.mz<br />
Nelson Saúte<br />
Licenciado em Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, é mestrando em Sociologia<br />
na Universidade de São Paulo. Ex-Administrador Executivo dos CFM, onde é actualmente<br />
Consultor. Escritor. Editor Executivo da Marimbique.<br />
Roland Brouwer<br />
Professor Auxiliar na Faculdade de Agronomia e Engenharia Florestal da Universidade Eduardo<br />
Mondlane, é doutorado em Ciências Agrárias e Ambientais (Política Florestal) pela<br />
Universidade de Wageningen, Países Baixos. As suas áreas de pesquisa são os processos de<br />
inovação e a governação em relação aos recursos naturais e meio ambiente.<br />
Rogério Ossemane<br />
Investigador do <strong>IESE</strong> e Assistente na Faculdade de Economia da Universidade Eduardo<br />
Mondlane, é mestre em Desenvolvimento Económico pela Universidade de Londres. A sua<br />
área de investigação é: comércio e finanças internacionais.
Rosimina Ali<br />
Assistente de investigação do <strong>IESE</strong>, é licenciada em Economia pela Faculdade de Economia<br />
da Universidade Eduardo Mondlane. As suas áreas de pesquisa são: desigualdade, pobreza,<br />
desenvolvimento rural e desenvolvimento económico. rosimina.ali@iese.ac.mz<br />
Salvador Cadete Forquilha<br />
Investigador associado do <strong>IESE</strong> e Oficial do Programa de Governação da Agência Suíça para<br />
Desenvolvimento e Cooperação, é doutorado em Ciência Política pela Universidade de<br />
Bordeaux, França. As suas áreas de pesquisa são: processos de democratização, descentralização<br />
e governação local. salvador.forquilha@sdc.net<br />
Sérgio Chichava<br />
Investigador do <strong>IESE</strong>, é doutorado em Ciência Política pela Universidade de Bordeaux, França.<br />
As suas áreas de pesquisa são: processos de democratização, governação e relações entre a<br />
China e a África lusófona.. sergio.chichava@iese.ac.mz<br />
Virgílio Cambaza<br />
Investigador associado do <strong>IESE</strong> e docente do Instituto Superior de Relações Internacionais, é<br />
mestrado em Direito e Desenvolvimento pela Universidade de Warwick, Grã-Bretanha. Ass suas<br />
áreas de pesquisa são: terra, indústria extractiva e economia política do desenvolvimento em<br />
Moçambique.<br />
Zélia Menete<br />
Professora Auxiliar da Universidade Eduardo Mondlane, é doutorada em Ciências<br />
Agronómicas, de Solos e Atmosféricas pela Universidade de Cornell, EUA. As suas áreas de<br />
pesquisa são: processos de educação, ciências ambientais, teledetecção/GIS, gestão de recursos<br />
naturais e governação de sistemas educativos. z.menete@pirep.gov.mz
ÍNDICE<br />
INTRODUÇÃO<br />
Carlos Nuno Castel-Branco 11<br />
PARTE I<br />
POLÍTICA<br />
DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA 15<br />
O SISTEMA ELEITORAL:<br />
UMA DIMENSÃO CRÍTICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA EM MOÇAMBIQUE<br />
Luís de Brito 17<br />
GOVERNAÇÃO DISTRITAL NO CONTEXTO DAS REFORMAS<br />
DE DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA EM MOÇAMBIQUE<br />
LÓGICAS, DINÂMICAS E DESAFIOS<br />
Salvador Cadete Forquilha 31<br />
SOCIEDADE CIVIL EM MOÇAMBIQUE<br />
EXPECTATIVAS E DESAFIOS<br />
António Francisco 51<br />
DESAFIOS DA GESTÃO MUNICIPAL<br />
DE UMA LÓGICA ADMINISTRATIVA E INSTITUCIONAL PARA UMA LÓGICA<br />
DE DESENVOLVIMENTO ORGANIZACIONAL E SUSTENTABILIDADE<br />
João Noronha | Lídia Brito 107<br />
UMA BREVE ANÁLISE DA IMPRENSA MOÇAMBICANA<br />
Sérgio Chichava | Jonas Pohlmann 127<br />
PARTE II<br />
ECONOMIA<br />
DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DE UMA ECONOMIA SUSTENTÁVEL 139<br />
CRISES CÍCLICAS E DESAFIOS DA TRANSFORMAÇÃO DO PADRÃO<br />
DE CRESCIMENTO ECONÓMICO EM MOÇAMBIQUE<br />
Carlos Nuno Castel-Branco | Rogério Ossemane 141<br />
DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO RURAL EM MOÇAMBIQUE<br />
Carlos Nuno Castel-Branco | Nelsa Massingue | Rosimina Ali 183
A TERRA NO CONTEXTO DO DESENVOLVIMENTO DA INDÚSTRIA MINEIRA<br />
PRESSÕES E CONFLITOS EM TORNO DOS DUATS<br />
Virgílio Cambaza 217<br />
FINANCIAR O DESENVOLVIMENTO<br />
Abdul Magid Osman 229<br />
PARTE III<br />
SOCIEDADE<br />
DESAFIOS DE CIDADANIA, EDUCAÇÃO E URBANIZAÇÃO 241<br />
CONSTITUIÇÃO E REFORMA DA JUSTIÇA<br />
UM PROJECTO POR REALIZAR<br />
João Carlos Trindade 243<br />
OS DESAFIOS DA LEITURA<br />
Miguel Buendía 257<br />
EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO PROFISSIONAL E PODER<br />
Roland Brouwer | Lídia Brito | Zélia Menete 273<br />
DESAFIOS DO ENSINO SUPERIOR<br />
Narciso Matos | João Mosca 297<br />
DESAFIOS NO DOMÍNIO DA HABITAÇÃO<br />
Júlio Carrilho | Luís Lage 319<br />
PARTE IV<br />
MOÇAMBIQUE NO MUNDO<br />
DESAFIOS DE INTEGRAÇÃO E COOPERAÇÃO 323<br />
MOÇAMBIQUE NO MUNDO<br />
A COMPETIÇÃO SUBTIL<br />
Abdul Magid Osman | Nelson Saúte 325<br />
MOÇAMBIQUE NA ROTA DA CHINA<br />
UMA OPORTUNIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO?<br />
Sérgio Chichava 337<br />
Outras publicações do <strong>IESE</strong> 353
INTRODUÇÃO<br />
A publicação deste livro pretende ser um contributo do Instituto de Estudos Sociais e Económicos<br />
(<strong>IESE</strong>) para as reflexões e para os debates sobre o presente e o futuro de Moçambique.<br />
O livro é intitulado Desafios para Moçambique por várias razões. Por um lado, este volume traz<br />
uma colectânea de desafios nas esferas política, económica, social e internacional. Estes<br />
desafios são construídos discutindo, em cada um dos artigos, onde é que o País se encontra<br />
e as direcções que podem ser seguidas para construir diferentes cenários de futuro.<br />
Por outro lado, os desafios discutidos no livro são para Moçambique (e, por conseguinte, para<br />
os cidadãos de Moçambique) e não apenas para uma parte de Moçambique. Quer dizer, não<br />
são desafios apenas para o governo, para os académicos, para as organizações sociais ou<br />
trabalhadores. São desafios para todos e para toda a sociedade. O desafio de pensar, discutir<br />
abertamente, avançar pontos de vista fundamentados na vida prática e na análise mais académica,<br />
o desafio de não cruzar os braços ou baixar a cabeça perante obstáculos e dificuldades, o<br />
desafio de questionar o presente pensando e acreditando em diferentes futuros possíveis, de<br />
procurar os caminhos e identificando os desafios para lá chegar, de remover os obstáculos, de<br />
pensar de novo e de acreditar, de procurar os pontos nevrálgicos que fazem funcionar o corpo,<br />
de definir o que é prioritário em cada longa marcha que se inicia, esses desafios pertencem a<br />
todos os cidadãos de Moçambique.<br />
Por consequência, o título deste livro aponta para o primeiro grande desafio, o da mobilização,<br />
organização e participação política dos cidadãos, e a publicação do livro é um contributo para<br />
esse desafio. A prática de cidadania é a forja dos cidadãos e de uma sociedade dinâmica, democrática<br />
e progressista. A cidadania não se circunscreve ao exercício do direito de voto, embora<br />
o inclua. A sua essência é a participação responsável na reflexão, debate e luta política<br />
sobre as opções, caminhos e direcções para a vida política, económica, social e cultural, e no<br />
exercício de influência directa sobre as decisões públicas e sociais, e sua implementação, monitoria<br />
e avaliação. A cidadania requer um ambiente de pluralismo, mas é temperada e forjada<br />
na luta pela conquista e construção desse espaço plural.<br />
Desafios para Moçambique 2010<br />
11
Assim, a primeira parte do livro é dedicada a desafios de participação política. “Até hoje, não<br />
conhecemos esses que elegemos.” Com esta citação de um cidadão de Ancuabe, província de Cabo<br />
Delgado, Luís de Brito lança bases para uma discussão ampla e crítica do sistema eleitoral em<br />
Moçambique: “O desafio da inclusão é provavelmente em termos políticos aquele que se coloca de<br />
forma mais urgente para a democratização da sociedade moçambicana na fase actual. Porém, deve<br />
ser entendido que inclusão não significa partilha de poder, de postos públicos, ou acesso a vantagens<br />
e recursos pelas forças políticas da oposição, como parece ser vista por alguns políticos e intelectuais,<br />
mas a definição de regras de jogo que permitam uma maior e mais efectiva representação dos interesses<br />
dos cidadãos em geral e, ao mesmo tempo, de diferentes grupos sociais com interesses específicos.”<br />
(Brito 2009: 26) Esta secção inclui mais quatro artigos que desafiam o debate sobre aspectos<br />
particulares da democratização, inclusão e participação política, nomeadamente sobre: a<br />
governação local participativa, as organizações da sociedade civil, a gestão municipal e os meios<br />
de comunicação social.<br />
A segunda parte do livro é focada em desafios económicos. Os relatórios do Governo de Moçambique<br />
(GdM) e dos seus principais parceiros bilaterais e multilaterais apresentam a economia<br />
de Moçambique como um exemplo de sucesso na promoção de rápido crescimento<br />
económico e redução da pobreza. O grau de sucesso está associado à magnitude das taxas de<br />
variação (por quanto é que a economia cresce ou a pobreza reduz) e a robustez do crescimento<br />
económico é assumida da aparente estabilidade dos indicadores macroeconómicos monetários<br />
e do seu aparente sucesso na redução da pobreza. Paradoxalmente, a economia nacional<br />
mantém elevadas taxas de dependência em relação a fluxos externos de capitais, tanto oficiais<br />
(ajuda externa) como privados (investimento directo estrangeiro e empréstimos no sistema<br />
bancário internacional). Mais de duas décadas após o início da implementação das medidas de<br />
estabilização e ajustamento estrutural em Moçambique, a estabilidade e a solidez dos indicadores<br />
monetários (inflação, taxa de câmbio) e estruturais (défice fiscal, défice da balança de pagamentos,<br />
reservas externas) continuam a depender da ajuda externa e da substituição do<br />
crédito doméstico para o investimento pelos fluxos externos de capital privado. Como é que este<br />
nível de dependência pode ser consistente com a história de sucesso? Até que ponto é que a aparente<br />
estabilidade dos indicadores monetários e a aparente redução da pobreza não depende<br />
mais dos fluxos externos de capitais do que da composição do crescimento económico? Se o<br />
investimento é tão dependente de fluxos externos de capitais, e estes reflectem sobretudo os interesses<br />
globais dos grandes investidores, que padrão de produção e comércio está sendo criado?<br />
Não será a continuação desta dependência profunda um indicador da fragilidade estrutural da<br />
base produtiva, comercial e fiscal da economia? Quais serão os impactos no comportamento e<br />
opções dos investidores nacionais das tentativas de gerir a massa monetária para estabilizar os<br />
indicadores monetários e estruturais por via da compensação dos fluxos externos de capital<br />
com recurso à esterilização da ajuda externa, aumento das reservas externas e outras medidas<br />
12 Desafios para Moçambique 2010
monetárias para enxugar a liquidez? Até que ponto é que tais efeitos não constrangem as opções,<br />
o comportamento e os interesses dos agentes económicos nacionais, encorajando-os a optarem<br />
por actividades de alto retorno a curto prazo, a engajarem-se na luta por rendas relacionadas<br />
com política pública e capital estrangeiro? (Castel-Branco e Ossemane 2009).<br />
Esta parte económica do livro inclui quatro artigos. O primeiro descreve os padrões de acumulação<br />
económica em Moçambique, na tentativa de compreender e explicar o paradoxo do<br />
sucesso dependente, analisar as suas implicações económicas e políticas e lançar o desafio da<br />
diversificação e articulação da economia e ampliação dos centros de acumulação (condição<br />
para se construir a independência económica e se gerarem padrões de produção e distribuição<br />
mais progressistas e benéficos para todos). O segundo artigo enfrenta o desafio da diversificação<br />
e articulação da base económica, discutindo os desafios do desenvolvimento rural numa<br />
perspectiva de industrialização articulada do País. O terceiro artigo coloca a questão da terra<br />
no contexto do debate de desenvolvimento diversificado e amplo, e identifica e descreve o<br />
efeito dos conflitos sobre opções de desenvolvimento na natureza dos conflitos sobre a posse<br />
e utilização da terra. O quarto artigo discute desafios do financiamento da economia.<br />
A terceira parte do livro aborda desafios sociais. O seu enfoque é o desafio da qualidade da<br />
educação como dinâmica e determinante fundamental da cidadania e do desenvolvimento mais<br />
geral de Moçambique. Assim, três dos cinco artigos desta parte são dedicados à qualidade da<br />
educação geral, formação profissional e educação universitária. O título de um dos artigos, «Os<br />
Desafios da Leitura» (Buendía 2009), ilustra o grande ponto de partida deste debate. Como<br />
fazer o País ler, pois sem ler, pouco ou nada mais é possível fazer. O primeiro artigo desta parte<br />
discute a reforma da justiça e o seu papel na cidadania e democratização, e o último discute um<br />
dos maiores desafios enfrentados por Moçambique, o da habitação, que se relaciona profundamente<br />
com a direcção das opções de desenvolvimento económico e social.<br />
A quarta parte do livro discute desafios derivados da relação entre Moçambique e o Mundo,<br />
os quais estão organicamente ligados com as opções escolhidas por Moçambique e com as<br />
possibilidades de Moçambique escolher opções. Discutindo as recentes relações económicas<br />
com a China e uma perspectiva de Moçambique no Mundo, os dois artigos desta parte lançam<br />
bases para investigação, reflexão e debates muito mais profundos.<br />
Neste final da introdução, há quatro aspectos importantes a mencionar. Primeiro, a identificação<br />
de desafios reflecte escolhas, e estas reflectem interesses, aspirações, debates e conflitos sociais,<br />
económicos e políticos. Portanto, as escolhas de desafios apresentadas neste livro reflectem essas<br />
tensões e essa procura de abordagens que ajudem a mais claramente discutir e escolher opções<br />
de políticas públicas e sociais. Além disso, as escolhas fundamentais da equipa editorial do livro<br />
(que incidiram sobre a questão da participação política vista como prática de cidadania e não apenas<br />
eleitoral, os desafios de transformação dos padrões de acumulação, os desafios da qualidade<br />
da educação e da urbanização, e a contextualização internacional das opções e desafios de<br />
Desafios para Moçambique 2010 13
Moçambique) tiveram de ser ajustadas às possibilidades práticas de produzir artigos que contribuam<br />
para o debate e à produção de um livro de tamanho manejável. Portanto, muito fica para<br />
analisar sobre cada um dos temas discutidos, e muitos outros temas fundamentais ficaram por<br />
discutir (como, por exemplo, o das opções e qualidade da saúde). Mas este é apenas o primeiro<br />
da série de livros sobre desafios para Moçambique que o <strong>IESE</strong> pretende produzir.<br />
Segundo, os artigos deste livro não são homogéneos: nem desenvolvem as suas análises com<br />
base nas mesmas abordagens, leituras e metodologias, nem se apresentam com a mesma forma<br />
rigorosa e severa da academia. Uns reflectem experiências de forma mais empiricista, outros são<br />
o reflexo de opiniões construídas ao longo dos anos, e alguns são rigorosamente académicos.<br />
Esta variedade de abordagens e de formas faz parte do mosaico em que Moçambique se<br />
reconstrói todos os dias. A riqueza dessa contínua reconstrução, e o direito inalienável a essa<br />
diferença resultam da prática de cidadania e temperam e forjam a cidadania.<br />
Terceiro, este livro é o resultado da combinação do trabalho dos investigadores permanentes<br />
e associados do <strong>IESE</strong> com equipas multidisciplinares de outras instituições. Economistas académicos<br />
ou ligados ao mundo de negócios, sociólogos e historiadores, consultores, juristas,<br />
arquitectos e engenheiros, todos contribuíram com a sua experiência e conhecimento para<br />
a produção desta obra. Portanto, ao produzir o livro, o <strong>IESE</strong> e os que no livro colaboraram<br />
enriqueceram as bases e redes de investigação e reflexão em Moçambique.<br />
Quarto, este livro tem a intenção de contribuir para um debate lançando alguns desafios. O desafio<br />
será tornar o debate tão abrangente, inclusivo, pluralista, multidisciplinar, heterodoxo,<br />
inovador e útil quanto possível. Este é um dos papéis fundamentais dos intelectuais e investigadores<br />
na luta pela conquista, construção e exercício da cidadania em Moçambique.<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
Dezembro de 2009<br />
14 Desafios para Moçambique 2010
PARTE I<br />
POLÍTICA<br />
DESAFIOS<br />
DA CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA
O SISTEMA ELEITORAL<br />
UMA DIMENSÃO CRÍTICA<br />
DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA<br />
EM MOÇAMBIQUE<br />
Luís de Brito<br />
“Até hoje, não conhecemos esses que elegemos!”<br />
Um cidadão de Ancuabe, Cabo Delgado<br />
Se quisermos definir de uma forma rápida e simples o que é a representação política nas sociedades<br />
contemporâneas que se reivindicam da democracia, seguindo a linha de análise de<br />
Bourdieu (1989, 1987a e 1987b), diremos que se trata da forma como o poder político se constitui,<br />
a partir de um processo de delegação através do qual a maioria dos cidadãos transfere<br />
— pelo voto e por um período limitado — o seu poder a um pequeno número de profissionais,<br />
ou quase profissionais, da política. Nesse processo, a competição pelo poder de representação<br />
política é protagonizada no essencial pelos partidos, empresas especializadas na luta pelo exercício<br />
do poder político (Offerlé, 1987), que tendem a monopolizar a formulação, ou expressão,<br />
de interesses sociais no campo político.<br />
A eleição, ou seja, a decisão sobre os decisores, que constitui o mecanismo central de construção<br />
da representação política, embora não a esgote, é um processo complexo de luta concorrencial<br />
entre os pretendentes ao exercício de cargos políticos e obedece a um conjunto de regras<br />
que formam o sistema eleitoral. Sublinhe-se, no entanto, que este não é um simples instrumento,<br />
neutro, capaz de traduzir mecanicamente uma pretensa vontade expressa pelos cidadãos<br />
no voto, mas um arranjo institucional que cria essa vontade e lhe dá forma, influenciando directamente<br />
a representação política e, como tal, motivo de lutas pela definição da configuração<br />
mais favorável aos diferentes agentes políticos em competição. Note-se que, dependendo do sistema<br />
eleitoral em vigor, a mesma votação pode produzir resultados diferentes. Assim, deve-se<br />
relativizar a ideia segundo a qual a eleição seria uma expressão fiel da “vontade popular”, que<br />
na realidade não existe a não ser como produto de um trabalho de construção operado pelos<br />
actores políticos.<br />
Neste artigo vamos apresentar uma breve perspectiva histórica da evolução do sistema de representação<br />
política em Moçambique, a formação do actual sistema eleitoral e discutir alguns<br />
aspectos críticos deste e seus efeitos.<br />
O Sistema Eleitoral Desafios para Moçambique 2010 17
A CAMINHO DA INDEPENDÊNCIA<br />
Para se compreender a questão da representação política em Moçambique no período de partido<br />
único, que se seguiu à proclamação da independência e durou até ao início dos anos 1990,<br />
é necessário olhar para os seus antecedentes, isto é, para alguns aspectos da história do movimento<br />
independentista, pois a forma como - e as condições em que - este nasceu e se desenvolveu<br />
social e ideologicamente foram determinantes para as opções políticas tomadas na<br />
formação do Estado independente.<br />
Em primeiro lugar, destaque-se o próprio processo de formação da Frelimo. Segundo a versão<br />
oficial, esta foi formada em 1962, em Dar Es Salaam, como resultado da fusão de três movimentos,<br />
a Makonde (mais tarde, Mozambique) African National Union (MANU), a União<br />
Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO) e a União Nacional de Moçambique<br />
Independente (UNAMI), que se tinham desenvolvido nos finais dos anos 1950 e início dos<br />
anos 1960 no seio dos emigrantes moçambicanos nos países vizinhos de Moçambique, respectivamente<br />
na Tanzânia e Quénia, na Rodésia e no Malawi. Na realidade, entre 1962 e 1964,<br />
a maioria dos dirigentes dessas organizações já tinham abandonado – ou sido expulsos – da<br />
Frelimo e tentavam reconstituir os seus antigos movimentos.<br />
Se considerarmos com atenção o processo da sua formação e em especial os novos actores que<br />
surgem em cena, vemos que a Frelimo é, mais que a adição das organizações acima referidas, um<br />
novo movimento construído à volta de um grupo de intelectuais e “assimilados”, que vão formar<br />
a sua direcção, e de jovens de origem camponesa, que na altura fogem do interior de Moçambique<br />
para a Tanzânia e vão formar o grosso do seu exército. Porquê então dar tanto relevo à<br />
“fusão” dos três movimentos? A insistência neste aspecto explica-se numa perspectiva de legitimação<br />
política e social: ao apresentar-se dessa maneira, a Frelimo apropria-se ao mesmo tempo<br />
da “representação parcial” de cada um dos movimentos 1 e aparece como o movimento da “unidade<br />
nacional”. Não só isso lhe permite reivindicar-se como representante de todo o “povo moçambicano”,<br />
como afirmar-se como depositária da legitimidade nacional, por oposição ao<br />
“regionalismo” daqueles movimentos (Brito, 1988).<br />
Em segundo lugar, considere-se o monopólio da Frelimo no processo de luta pela independência.<br />
A sua capacidade de organizar de forma efectiva a luta anticolonial, tanto no interior do país<br />
como na arena internacional, a par da fraqueza política e organizativa dos outros grupos concorrentes<br />
2 , permitiram à Frelimo ser reconhecida pela Organização da Unidade Africana como<br />
“único legítimo representante do povo moçambicano”. Ao mesmo tempo, no decorrer do processo<br />
da luta (armada, a partir de 1964), a hegemonia de um grupo revolucionário inspirado pelo<br />
marxismo foi-se consolidando, tendo-se afirmado definitivamente no início dos anos 1970.<br />
Finalmente, note-se o papel da ideologia. A referência ao marxismo proporcionou aos dirigentes<br />
da Frelimo não só um quadro teórico para pensarem a luta pela independência, mas<br />
18 Desafios para Moçambique 2010 O Sistema Eleitoral
sobretudo o instrumento que lhes permitiu conceberem o Estado-nação a construir. Para o<br />
grupo dirigente, composto por militantes originários da elite colonizada, maioritariamente estudantes<br />
e funcionários, sem enraizamento popular, a expressão das suas aspirações nacionalistas<br />
através de um discurso revolucionário de inspiração marxista, discurso universalista e<br />
modernista, permitiu não só justificar o seu poder no seio do movimento independentista, a sua<br />
afirmação como vanguarda das classes populares, mas permitiu igualmente conceber o seu projecto<br />
de poder para o Moçambique independente (Brito, 1991).<br />
REJEIÇÃO DO PLURALISMO<br />
Com o golpe de Estado em Portugal, a 25 de Abril de 1974, a Frelimo consegue rapidamente<br />
impor negociações ao novo poder português, cujo teor se circunscreveu à discussão das modalidades<br />
de transferência do poder, para a proclamação da independência sob a sua liderança,<br />
num processo que foi designado por Bragança (1986) como “independência sem descolonização”<br />
3 . Assim, passados apenas quatro meses do golpe em Portugal, foram celebrados, a 7 de Setembro<br />
de 1974, entre o Governo Português e a Frelimo, os Acordos de Lusaka, que previam<br />
a instalação de um governo de transição dirigido por esta última, cuja tarefa principal era preparar<br />
o país para a proclamação da independência a 25 de Junho de 1975. Embora alguns grupos<br />
políticos se tenham formado, ou reaparecido, na cena moçambicana logo depois do 25 de<br />
Abril, os seus esforços no sentido de participarem no processo de descolonização foram vãos.<br />
A independência seria proclamada pela Frelimo, partido único consagrado na primeira Constituição<br />
como “força dirigente do Estado e da sociedade”.<br />
Ainda durante o período do governo de transição, a Frelimo, cuja implantação pouco excedia<br />
a sua presença nas “zonas libertadas” situadas nas regiões mais remotas de Cabo Delgado e<br />
Niassa, viu-se obrigada a responder à necessidade de garantir a sua presença efectiva em todo<br />
o território nacional. Para tal, foi lançado um movimento de formação de Grupos Dinamizadores,<br />
compostos por militantes e simpatizantes da Frelimo, abrangendo tanto os locais de<br />
residência como os locais de trabalho. Dependentes das sedes distritais do partido, estes tornaram-se<br />
os órgãos de base da Frelimo fora das “zonas libertadas” 4 .<br />
O papel dos Grupos Dinamizadores pode ser resumido em quatro aspectos principais: em primeiro<br />
lugar, eles foram o instrumento de transmissão e difusão a nível local das orientações políticas<br />
da Frelimo; em segundo lugar, nos locais de trabalho, e especialmente no aparelho de<br />
Estado, foram auxiliares dos dirigentes nomeados pela Frelimo no controle da máquina burocrática<br />
4 ; em terceiro lugar, nos locais de residência (incluindo as zonas rurais), garantiram o<br />
controle da população e a difusão das mensagens do partido no seio da maioria da população;<br />
finalmente, ao mesmo tempo que funcionavam como órgãos de controle do partido, eles ofe-<br />
O Sistema Eleitoral Desafios para Moçambique 2010 19
eceram e institucionalizaram um espaço de participação dos cidadãos, frequentemente chamados<br />
a tomar conhecimento das directivas do partido, mas também a darem as suas opiniões<br />
nesse contexto. Em suma, pode-se dizer que os Grupos Dinamizadores estabeleceram um<br />
espaço onde o controle social e político exercido pelo partido e a participação dos cidadãos se<br />
confundiam.<br />
Em 1977, a Frelimo declarou-se partido de vanguarda marxista-leninista. Ao mesmo tempo,<br />
no processo de construção do partido e do novo Estado independente, foi iniciado um processo<br />
de transformação dos Grupos Dinamizadores. Com a criação de células do partido nos locais<br />
de residência e de trabalho que se seguiu ao congresso de 1977, os Grupos Dinamizadores<br />
foram mantidos apenas nas zonas de residência como órgãos de base da administração local 5 .<br />
Em paralelo, foi iniciado um processo de formação de Assembleias do Povo, numa organização<br />
piramidal cujo topo era a Assembleia Popular (nacional). A escolha dos membros das<br />
assembleias de base era feita em consulta com a população local a partir de listas de cidadãos<br />
propostas pelo partido, havendo seguidamente um processo de eleição indirecta através de delegados<br />
para as assembleias dos escalões superiores. Contrariamente à vivacidade e abertura participativa<br />
dos Grupos Dinamizadores na sua fase inicial, a implantação das novas estruturas<br />
compostas por militantes e servidores fiéis do partido teve como efeito esterilizar e burocratizar<br />
o embrião de participação cidadã que se tinha esboçado.<br />
Beneficiando de um prestígio e apoio quase unânime no seio da população moçambicana por<br />
altura da independência, a Frelimo levou às últimas consequências a lógica de partido único,<br />
preocupando-se em eliminar todas as formas de organização política ou social autónomas. Não<br />
só as associações do tempo colonial foram dissolvidas quase sem excepção 6 , mas mesmo as<br />
formas de organização e representação social, nomeadamente sindicais, que se tinham desenvolvido<br />
imediatamente após o 25 de Abril, se viram impossibilitadas de continuar em benefício<br />
de organizações satélites do partido Frelimo, sendo de destacar as grandes “organizações<br />
democráticas de massas” como a Organização da Mulher Moçambicana (OMM), a Organização<br />
da Juventude Moçambicana (OJM) 7 e a Organização dos Trabalhadores Moçambicanos<br />
(OTM). Na mesma linha de organização e enquadramento partidário do movimento social,<br />
foram ainda criadas outras organizações representativas em sectores-chave da vida social como,<br />
por exemplo, a Organização Nacional dos Professores (ONP) e a Organização Nacional dos Jornalistas<br />
(ONJ). Em termos mais amplos, a rede de poder local composta pelos chefes tradicionais<br />
(régulos) foi igualmente marginalizada, a pretexto do combate contra os vestígios da<br />
sociedade tradicional-feudal e o obscurantismo. As formas de organização social das comunidades<br />
rurais, devido à sua autonomia relativa em relação ao Estado, constituíam para a Frelimo<br />
um obstáculo ao seu projecto nacional e foram um dos seus alvos principais em termos de<br />
transformação social e económica, sendo a dissolução das relações sociais e estruturas tradi-<br />
20 Desafios para Moçambique 2010 O Sistema Eleitoral
cionais e a sua substituição por formas modernas de organização sob a direcção do partido um<br />
dos seus principais objectivos desenvolvimentistas. 8<br />
Quanto aos líderes dos movimentos políticos que se tinham manifestado depois do 25 de Abril<br />
e cuja maioria tinha acabado por aderir a uma tentativa de golpe liderado por forças coloniais<br />
no próprio dia de assinatura dos Acordos de Lusaka (7 de Setembro de 1974), aqueles que não<br />
foram presos (e mais tarde, fuzilados) fugiram do país.<br />
É evidente que o processo de edificação do Estado independente, na mesma linha de orientação<br />
que tinha sido a da luta anticolonial, foi fundado na rejeição do pluralismo e da diversidade<br />
em nome da unidade nacional, representada pela Frelimo, fonte única de legitimidade social e<br />
politica 9 . Embora houvesse, a partir de 1978, um processo de eleições para as Assembleias do<br />
Povo, os moldes em que estas eram conduzidas, ou seja, sob os auspícios do partido único,<br />
reduziam drasticamente o sentido e o alcance de delegação e representação do voto, um voto<br />
exercido sob a supervisão e tutela do partido.<br />
CRISE, GUERRA E NEGOCIAÇÕES<br />
Com a independência, a Frelimo viu-se confrontada com dois grandes desafios intimamente ligados<br />
entre si: por um lado, assegurar a gestão e a transformação da economia colonial e, por outro,<br />
enfrentar a reacção dos poderes brancos da Rodésia e da África do Sul, que se sentiam ameaçados<br />
pelo avanço das forças de libertação, agora instaladas directamente nas suas fronteiras. 10<br />
A saída rápida da maior parte dos colonos, empresários, gestores e quadros qualificados, ou<br />
simplesmente trabalhadores e funcionários públicos, imediatamente antes e logo depois da independência,<br />
desarticulou o funcionamento da economia moçambicana, um processo que foi<br />
reforçado pela redução drástica das receitas dos serviços de portos e caminhos-de-ferro e das<br />
transferências de trabalhadores migrantes 11 . A própria agricultura camponesa foi afectada pela<br />
saída dos colonos que asseguravam, através de uma ampla rede de pequenos estabelecimentos<br />
comerciais (as cantinas), a comercialização rural.<br />
Foi nesse contexto de tentativa de construção de um poder político monopartidário, de crise<br />
económica interna e de confrontação política regional que surgiu a Renamo logo depois da<br />
proclamação da independência. Organizada inicialmente com o apoio da Rodésia e posteriormente<br />
da África do Sul 12 , a Renamo conduziu uma guerra que se espalhou rapidamente a<br />
todo o país, agravando a situação económica e destruindo uma parte da infra-estrutura económica<br />
e social, sendo as aldeias comunais, as cooperativas, as escolas, os centros de saúde,<br />
as fábricas, as estradas e as pontes, os alvos privilegiados dos ataques da guerrilha.<br />
Se a guerra foi no início um processo exógeno, rapidamente ela serviu para a expressão interna<br />
de clivagens e conflitos sociais, o que lhe acrescentou uma dimensão de guerra civil. Em parti-<br />
O Sistema Eleitoral Desafios para Moçambique 2010 21
cular nas regiões do Centro e do Centro Norte do país, pôde-se observar que a polarização das<br />
populações, entre a subordinação ao Estado da Frelimo e a adesão à guerrilha da Renamo, era<br />
em grande medida condicionada por dois elementos históricos: de um lado, as divisões entre<br />
grupos relacionadas com o processo de intervenção do Estado independente no seio das comunidades<br />
rurais, particularmente simbolizado pelas aldeias comunais, e de outro lado, as clivagens<br />
entre grupos na sua relação histórica com o Estado (numa primeira fase, o Estado<br />
colonial e, depois, o Estado da Frelimo) (Geffray, 1991).<br />
Depois de várias tentativas para cessar o conflito, nomeadamente com a celebração do Acordo<br />
de Nkomati em 1984 13 e depois com várias ofertas de amnistia aos combatentes da Renamo, a<br />
solução da guerra acabaria por ser negociada directamente entre os dois protagonistas, que viriam<br />
a assinar o Acordo Geral de Paz, em Roma, a 4 de Outubro de 1992. Embora a paz tenha<br />
sido obtida através de um longo processo negocial, o que por si só significava o reconhecimento<br />
da Renamo como força política, a Frelimo nunca reconheceu verdadeiramente - e isso<br />
transparece recorrentemente no seu discurso - que esta representava mais que um instrumento<br />
ao serviço de interesses externos.<br />
ROMA: DOIS PASSOS EM FRENTE, UM PASSO ATRÁS<br />
O final dos anos 80 e início da década seguinte foi marcado por uma dinâmica internacional<br />
que teve repercussões imediatas nos processos políticos africanos: a dissolução do Bloco de<br />
Leste, simbolizada pela queda do Muro de Berlim, e a sua perda de influência internacional<br />
criou as bases para um processo amplo de mudanças políticas em África. No caso de Moçambique,<br />
observa-se que foi em 1989 que a Frelimo decidiu abandonar oficialmente o marxismo-<br />
-leninismo e, na mesma dinâmica, foi iniciado o processo de revisão constitucional que acabaria<br />
por resultar, em 1990, na aprovação de uma constituição multipartidária. Este processo estava<br />
também relacionado com os esforços de negociação com a Renamo, mas que só iriam produzir<br />
frutos com o Acordo Geral de Paz, assinado em Roma, em 1992. Um outro elemento de<br />
peso no processo que conduziu ao acordo de paz, também no contexto da nova dinâmica política<br />
internacional, tem que ver com o processo de desmantelamento do sistema de apartheid<br />
e da democratização na África do Sul. Ou seja, cada uma das partes beligerantes em Moçambique<br />
não só estava numa situação de impasse porque uma vitória definitiva de uma ou outra<br />
das partes no terreno militar era pouco provável, mas também porque os seus apoios internacionais<br />
tradicionais (o Bloco de Leste para a Frelimo 14 e o regime do apartheid para a Renamo)<br />
estavam em vias de desaparecer.<br />
O acordo de Roma, ao estabelecer a paz e as regras de incorporação da Renamo na sociedade<br />
moçambicana, significou a possibilidade prática de aplicar os novos princípios constitucionais,<br />
22 Desafios para Moçambique 2010 O Sistema Eleitoral
nomeadamente a realização de eleições multipartidárias e, nesse sentido, foi um avanço sem<br />
precedentes para a possibilidade da construção de uma sociedade democrática pluralista. Porém,<br />
o facto de as negociações e o processo de transição política até às eleições terem sido conduzidos<br />
apenas pelas duas partes beligerantes, cada uma delas preocupada em garantir o máximo<br />
de vantagens para si própria, significou também uma polarização do espaço político nascente<br />
à sua volta. Num certo sentido, pode-se dizer que a democracia foi confiscada por estes dois<br />
partidos, não tendo havido um ambiente favorável à expressão de outras forças e interesses<br />
provenientes da sociedade civil. 15<br />
A vontade de restringir o acesso ao espaço político de outras forças era particularmente notória<br />
da parte da Renamo. Com efeito, no acordo de Roma, estava previsto que haveria uma barreira<br />
à representação parlamentar que poderia variar de 5% a 20%. Ora, a proposta de estabelecer<br />
a barreira ao nível de 20% foi da Renamo, em total contradição com o espírito do sistema de<br />
representação proporcional, ele próprio adoptado em Roma sob proposta da Renamo. 16<br />
Desde o início que a aplicação do acordo de Roma enfrentou dificuldades e atrasos motivados<br />
por um clima de desconfiança entre os protagonistas da nova ordem política. As comissões<br />
mistas previstas naquele texto foram formadas tardiamente, trabalharam com dificuldade, e as<br />
eleições previstas para o ano seguinte (1993) só viriam a acontecer um ano depois, em Outubro<br />
de 1994. Os resultados destas primeiras eleições multipartidárias, que registaram um elevado<br />
nível de participação (87% dos eleitores registados) dos cidadãos, exprimiram e ao mesmo<br />
tempo consagraram a bipolarização política no país. Assim, Joaquim Chissano venceu a eleição<br />
presidencial com 53% dos votos (34% para Afonso Dhlakama) e a Frelimo obteve uma<br />
maioria absoluta no parlamento, não obstante ter tido apenas 44% dos votos expressos (38%<br />
para a Renamo). 17<br />
Uma vez adquirida a vitória em condições que não exigiam nenhuma concessão política em termos<br />
de governação, ou seja, com uma maioria absoluta parlamentar que lhe permitia fazer<br />
aprovar as leis sem nenhuma negociação, a Frelimo adoptou também uma linha de consolidação<br />
do seu poder, sem partilha. Foi assim que a política de descentralização, inicialmente concebida<br />
com base na transformação dos distritos em distritos municipais dotados de governos<br />
eleitos (Lei 3/94, de 13 de Setembro), sofreu uma modificação radical depois das eleições presidenciais<br />
e legislativas. A distribuição e a concentração espacial do voto deixava antever uma<br />
forte probabilidade de um grande número de municípios das regiões do Centro e Centro Norte<br />
serem ganhos pela Renamo.<br />
Foi a própria Renamo que proporcionou a oportunidade de uma revisão radical dessa orientação<br />
descentralizadora ao levantar no parlamento problemas de constitucionalidade em relação<br />
a algumas das disposições legais estabelecidas nesse âmbito. A revisão que se seguiu (emenda<br />
constitucional pela Lei 9/96, de 22 de Novembro, completada pela Lei 2/97, de 18 de Fevereiro)<br />
permitiu substituir o modelo de municipalização inicial pela criação gradual de municípios (na<br />
O Sistema Eleitoral Desafios para Moçambique 2010 23
altura, 33 cidades e vilas, 43 desde 2008) com base nos centros urbanos, reduzindo assim de maneira<br />
drástica a possibilidade de a Renamo se instalar de forma ampla como poder local. Em termos<br />
práticos, isto significou a exclusão de uma grande parte da população rural dos benefícios<br />
da representação política a nível local, ou seja, da possibilidade de influir na governação e participar<br />
nos programas de desenvolvimento local num ambiente competitivo aberto 18 .<br />
A instalação dos dois grandes partidos numa lógica de defesa dos seus interesses particulares mais<br />
imediatos teve duas consequências: por um lado, na ausência de um consenso sobre as regras de<br />
convivência e mesmo sobre a sua legitimidade 19 , reproduziu a tensão entre eles e, por outro, impediu<br />
a formação de um espaço de efectiva liberdade e de exercício da cidadania para uma<br />
grande parte dos cidadãos. Um estudo efectuado depois das eleições gerais de 2004 mostrou que<br />
os cidadãos ainda não se exprimem livremente (Brito, et al, 2005). 20 Assim, embora tenha havido<br />
uma abstenção nestas eleições da ordem dos 50%, apenas 7% reconheceram não ter votado.<br />
Ao mesmo tempo, sendo conhecido que a Frelimo obteve 60% dos votos, 82% dos inquiridos<br />
declararam ter votado neste partido e, inversamente, apenas 8% reconheceram ter votado pela<br />
Renamo, quando este partido obteve 30% do voto. Estas discrepâncias em relação à realidade<br />
do escrutínio e em favor do partido no poder são uma indicação de um clima de desconfiança<br />
e de falta de liberdade de expressão pública das opiniões que prevalece no seio da sociedade<br />
moçambicana, mais de dez anos depois do fim da guerra e da instauração de um sistema político<br />
democrático e multipartidário.<br />
OS LIMITES DO SISTEMA ELEITORAL<br />
A análise das eleições desde 1994 mostra um crescimento significativo da abstenção, que atingiu<br />
níveis muito altos em 2004 (oficialmente 64%, mas na realidade cerca de 50%). Este crescimento<br />
acelerado é revelador de um processo de desengajamento dos cidadãos em relação ao<br />
sistema político, sendo, portanto, um sintoma de crise do processo democrático. 21<br />
Uma das características da geografia eleitoral em Moçambique é uma clara polarização espacial<br />
do voto entre a Frelimo e a Renamo. Essa estrutura espacial manteve-se nas eleições de<br />
1999 e 2004, sem alterações apreciáveis, a não ser as que resultaram do grande aumento da abstenção.<br />
22 A cartografia eleitoral 23 permite verificar que a abstenção afectou sobretudo zonas<br />
onde a Renamo tinha uma influência notória. Ao mesmo tempo, comparando as votações de<br />
1999 e 2004, pode-se observar que a Frelimo manteve em 2004 praticamente o seu eleitorado<br />
de 1999, enquanto a Renamo perdia cerca de metade do seu voto. A conjugação destes dois elementos<br />
permite concluir que a maior parte dos abstencionistas de 2004 eram eleitores históricos<br />
da Renamo. Embora não seja possível, na ausência de um estudo dedicado ao assunto, tirar<br />
conclusões definitivas sobre a abstenção, podemos, à luz das constatações acima apontadas,<br />
24 Desafios para Moçambique 2010 O Sistema Eleitoral
avançar com uma certa segurança a hipótese seguinte: uma parte dos eleitores da Renamo ficou<br />
desmobilizada depois de, em duas eleições, o seu voto ter sido aparentemente inútil. Pode-se<br />
admitir que seja difícil, para os eleitores de uma zona que votou massivamente na Renamo,<br />
compreender que o seu voto não tenha nenhuma implicação ao nível da governação local, mas<br />
não só. Isto é agravado pelo facto de, dado o sistema eleitoral em vigor, não existir nenhuma<br />
vinculação directa entre os deputados eleitos e os eleitores, o que impede estes últimos de se<br />
aperceberem do efeito do seu voto, que poderia ser visível se houvesse uma personalização do<br />
seu representante. Obviamente, uma tal situação cria um problema na forma como a representação<br />
política é percebida e vivida.<br />
Embora o sistema eleitoral de representação proporcional adoptado em Roma seja bem adaptado<br />
para garantir uma representação parlamentar dos partidos próxima da votação obtida e,<br />
nesse sentido, proporcione uma representação adequada no parlamento da relação de forças<br />
entre os diferentes partidos na sociedade, ele tem limitações nas circunstâncias específicas de<br />
um país como Moçambique, onde a experiência democrática é não só historicamente recente<br />
como também ainda bastante limitada do ponto de vista do livre exercício da cidadania.<br />
O principal defeito que se pode apontar a este tipo de sistema é o facto de ele desvalorizar o vínculo<br />
dos eleitos em relação ao eleitores e, por isso, ser fraco do ponto de vista da prestação de contas.<br />
Isto deve-se ao facto de a eleição dos deputados não ser feita nominalmente, mas, no caso<br />
moçambicano, através de listas partidárias fechadas. Assim, não só os deputados não dependem<br />
individualmente da confiança dos eleitores, mas sobretudo dependem para a sua eventual reeleição<br />
da sua boa relação com os responsáveis, ou com os seus colegas, do partido, que no seio do<br />
aparelho podem influenciar a sua inclusão nas listas e em posição elegível. Em suma, o serviço dos<br />
interesses do partido e dos seus líderes prevalece sobre os eventuais interesses do eleitorado. 24<br />
O trabalho de auscultação promovido pelo EISA 25 (2006) depois das últimas eleições gerais<br />
mostrou que uma das críticas mais frequentes ao actual sistema eleitoral por parte dos cidadãos<br />
foi exactamente a distância e a fragilidade da ligação dos eleitos com os eleitores.<br />
De alguma maneira, a reivindicação dos cidadãos sobre uma maior proximidade dos eleitos<br />
corresponde a uma característica dos sistemas eleitorais de tipo maioritário, especialmente no<br />
caso de eleição em círculos uninominais, que permitem uma ligação directa dos eleitores com<br />
um deputado, que, se representa um partido, também representa um território específico e por<br />
extensão os interesses particulares da população desse mesmo território. 26 Neste cenário, é evidente<br />
que o nível de prestação de contas do deputado e a sua ligação aos eleitores é muito<br />
maior que nos sistemas proporcionais.<br />
A constatação depois desta breve panorâmica histórica é que o sistema eleitoral moçambicano<br />
parece estar adequado aos interesses das máquinas partidárias e dos profissionais da política,<br />
mas sofre ao mesmo tempo de um défice de confiança por parte dos cidadãos, que não sentem<br />
que os seus interesses e reivindicações sejam tomados em consideração pelos políticos. Ora,<br />
O Sistema Eleitoral Desafios para Moçambique 2010 25
como sublinha Edigheji (2006) na sua análise sobre a representação política em África, a reactividade<br />
do sistema político e das políticas públicas às necessidades e aspirações das populações<br />
depende da instauração de um sistema inclusivo que permita ao cidadão fazer-se ouvir ao nível<br />
da governação e das escolhas políticas.<br />
O desafio da inclusão é provavelmente em termos políticos aquele que se coloca de forma mais<br />
urgente para a democratização da sociedade moçambicana na fase actual. Porém, deve ser entendido<br />
que inclusão não significa partilha de poder, de postos públicos, ou acesso a vantagens<br />
e recursos pelas forças políticas da oposição, como parece ser vista por alguns políticos e intelectuais,<br />
mas a definição de regras de jogo que permitam uma maior e mais efectiva representação<br />
dos interesses dos cidadãos em geral e, ao mesmo tempo, de diferentes grupos sociais com<br />
interesses específicos.<br />
NOTAS<br />
1<br />
A UDENAMO congregava sobretudo militantes originários do Centro Sul do país, a UNAMI<br />
do Centro Norte e a MANU do Norte.<br />
2<br />
Vários desses pequenos grupos acabariam por formar em 1965 uma frente comum, o Comité<br />
Revolucionário de Moçambique (COREMO), que, beneficiando do apoio da Zâmbia, promoveu<br />
algumas acções armadas na província de Tete, mas nunca conseguiu ter uma acção consequente<br />
capaz de lhe garantir alguma legitimidade social e política.<br />
3<br />
Esta expressão visa significar que a iniciativa do processo se manteve do lado do movimento<br />
nacionalista e não da potência colonial e que por isso não teria havido campo para negociação<br />
de uma eventual solução de tipo neocolonial.<br />
4<br />
Nos anos que se seguiram imediatamente à independência, os Grupos Dinamizadores tiveram<br />
também um papel de relevo nas grandes e médias empresas (tanto as intervencionadas, como as<br />
privadas).<br />
5<br />
Eles mantêm-se de alguma forma ainda hoje nas cidades como parte da estrutura municipal, embora<br />
com uma tendência para se reduzirem à figura dos secretários de bairro. A sua natureza partidária<br />
nunca foi posta em causa, a não ser nos municípios que em 2003 passaram para a<br />
governação da oposição, e em particular na Beira. Nesta cidade, quando a nova administração municipal<br />
tentou reorganizar estes órgãos de base e ocupar as suas instalações, esta descobriu que<br />
as mesmas tinham sido alienadas pela Administração do Parque Imobiliário do Estado e estavam<br />
registadas como propriedade do partido Frelimo.<br />
6<br />
A maior parte das associações desportivas mantiveram-se, embora tendo mudado de designação<br />
em muitos casos, e foram colocadas sob tutela, mas também beneficiando do patrocínio, de ministérios<br />
e empresas estatais.<br />
7<br />
A OMM já tinha sido formada pela Frelimo durante a luta armada.<br />
26 Desafios para Moçambique 2010 O Sistema Eleitoral
8<br />
Na realidade, uma transformação muito mais anunciada e projectada que efectivamente realizada,<br />
mas omnipresente no discurso político.<br />
9<br />
Note-se que o processo de instituição do partido único e de uma sociedade por ele controlada,<br />
normalmente atribuída à concepção marxista-leninista adoptada pela Frelimo, se deve principalmente<br />
à sua natureza de movimento nacionalista. Isso permite compreender que, uma vez abandonado<br />
o marxismo-leninismo, o ideal do partido único nunca tenha sido realmente posto em<br />
causa pela Frelimo até aos dias de hoje.<br />
10<br />
Particularmente da Zimbabwe African National Union (ZANU), no caso da Rodésia, e do African<br />
National Congress (ANC), no caso da África do Sul, que passavam a dispor de bases estratégicas<br />
no território moçambicano para o desenvolvimento da sua luta no interior dos seus<br />
respectivos países.<br />
11<br />
As receitas dos portos e caminhos-de-ferro eram resultantes sobretudo do trânsito de mercadorias<br />
de e para a África do Sul, Rodésia e, em menor escala, Malawi. Ao mesmo tempo, as transferências<br />
de uma parte dos salários dos trabalhadores moçambicanos, sobretudo nas minas da<br />
África do Sul, cujo recrutamento reduziu drasticamente a partir de 1975, era outra importante<br />
fonte de divisas para a economia moçambicana.<br />
12<br />
Com a independência do Zimbabwe em 1980, o centro principal de apoio externo da Renamo<br />
deslocou-se para a África do Sul.<br />
13<br />
Do ponto de vista do conflito militar, o Acordo de Nkomati, celebrado com o governo<br />
sul-africano, era suposto retirar o apoio deste à Renamo, em contrapartida da eliminação<br />
por parte do governo moçambicano das facilidades concedidas no seu território à operação do<br />
ANC.<br />
14<br />
Confrontada com uma crise económica crescente, agravada pela guerra no início dos anos 80,<br />
a Frelimo tinha iniciado em 1984 o processo de liberalização económica, a sua adesão ao Banco<br />
Mundial e ao Fundo Monetário Internacional, e iniciado um processo de procura de apoios junto<br />
dos países ocidentais.<br />
15<br />
Toda a iniciativa, orientação e supervisão do processo politico conducente às primeiras eleições<br />
multipartidárias ficaram nas mãos da Frelimo e da Renamo, apoiadas por uma operação das Nações<br />
Unidas, a ONUMOZ. A única concessão feita no processo a outras forças resumiu-se à<br />
previsão de uma consulta (sem carácter vinculativo, portanto, apenas formal) aos outros partidos<br />
políticos antes da aprovação da lei eleitoral.<br />
16<br />
Finalmente, a lei eleitoral posteriormente elaborada acabaria por estabelecer a barreira no mínimo<br />
definido em Roma, ou seja, 5%.<br />
17<br />
A Frelimo teria provavelmente obtido entre 45% e 47%, o que não aconteceu por uma parte dos<br />
seus eleitores ter votado por engano a favor da União Democrática, que assim conseguiu passar<br />
a barreira de 5% estabelecida pela lei e eleger 9 deputados.<br />
O Sistema Eleitoral Desafios para Moçambique 2010 27
18<br />
A Frelimo procurou compensar este défice democrático tomando uma série de iniciativas<br />
em favor das “autoridades comunitárias” e, sobretudo, através do estabelecimento de conselhos<br />
consultivos locais, mas é evidente que este tipo de organização não é o mais adequado<br />
para a consolidação de práticas de governação democrática.<br />
19<br />
Até hoje é comum assistir a acusações mútuas de ilegitimidade, em função do passado e das<br />
alianças históricas de cada um deles, como se nada se tivesse passado depois de 1992.<br />
20<br />
Este estudo baseou-se num inquérito realizado a uma amostra representativa nacional da população<br />
moçambicana maior de 18 anos.<br />
21<br />
Havia, no entanto, desde as últimas eleições municipais (2008), uma certa indicação de crescimento<br />
da participação eleitoral, não confirmado nas eleições gerais de 2009, que voltaram a<br />
registar uma abstenção superior a 50%. O eventual pequeno aumento de participação em relação<br />
às eleições de 2004 deve ser entendido mais como resultado da campanha eleitoral muito<br />
intensiva da Frelimo do que de uma verdadeira competição entre as forças políticas. O que parece<br />
estar a acontecer é que a Frelimo consegue mobilizar o seu eleitorado (processo a que não<br />
é alheio todo o trabalho de reactivação das células do partido nos locais de trabalho e de residência<br />
e a presença permanente no terreno dos governantes aos vários níveis, com destaque<br />
para o próprio Presidente da República e a sua prática das “presidências abertas”), enquanto os<br />
partidos de oposição enfrentam dificuldades crescentes de afirmar a sua existência e mesmo de<br />
elaborar um discurso político capaz de mobilizar os cidadãos.<br />
22<br />
Os resultados das eleições de 2009, embora ainda não definitivos, confirmam mais uma vez que<br />
a estrutura espacial do voto se mantém basicamente inalterada.<br />
23<br />
Cartografia eleitoral de Moçambique disponível em www.iese.ac.mz/?__target__=rec_cart.<br />
24<br />
Para além disso, contrariamente ao sistema maioritário uninominal, onde o capital individual do<br />
candidato é central, o sistema de representação proporcional baseado em listas fechadas fica<br />
centrado no capital colectivo do partido, o que constitui uma maior dificuldade para o desenvolvimento<br />
da democracia interna nas organizações políticas.<br />
25<br />
Electoral Institute of Southern Africa.<br />
26<br />
Dado o alto nível de analfabetismo que ainda caracteriza o eleitorado moçambicano e as previsíveis<br />
dificuldades dos próprios agentes de administração eleitoral na gestão de processos complexos,<br />
soluções dentro do modelo de representação proporcional, como, por exemplo, o recurso<br />
a listas abertas (onde cabe ao eleitor decidir sobre a ordem – e portanto a eleição – dos candidatos<br />
na lista) não são realistas.<br />
28 Desafios para Moçambique 2010 O Sistema Eleitoral
REFERÊNCIAS<br />
Bragança, A. 1986. “Independência sem Descolonização: a Transferência do Poder em<br />
Moçambique”. Estudos Moçambicanos, n.º 5/6, pp. 7-28.<br />
Bourdieu, P. 1987a. “Les usages du «peuple»”. P. Bourdieu, Choses Dites. Paris. Les Éditions de<br />
Minuit, pp. 178-184.<br />
Bourdieu, P. 1987b. “La Délégation et le fétichisme politique”. P. Bourdieu, Choses Dites. Paris. Les<br />
Éditions de Minuit, pp. 185-202.<br />
Bourdieu, P. 1989. “A Representação Política. Elementos para uma Teoria do Campo Político”. P.<br />
Bourdieu, O Poder Simbólico. Lisboa. Difel, pp. 163-207.<br />
Brito, L. 1988. “Une relecture nécessaire: la genèse du parti-Etat FRELIMO”. Politique africaine,<br />
n.º 29, pp. 15-27.<br />
Brito, L. 1991. Le Frelimo et la construction de l’État national au Mozambique: le sens de la référence<br />
au marxisme (1962-1983). Vincennes, Université de Paris VIII, U.F.R. Territoires,<br />
Economies, Sociétés (tese de doutoramento).<br />
Brito, L., Pereira, J., Rosário, D. e Manuel, S. 2005. Formação do Voto e Comportamento Eleitoral dos<br />
Moçambicanos em 2004. Maputo. EISA.<br />
Edigheji, O. 2006. “Political Representation in Africa: Towards a Conceptual Framework”. Africa<br />
Development, Vol. XXXI, n.º 3, pp. 93–119.<br />
EISA. 2006. A Voz do Povo - Debates Públicos sobre a Legislação Eleitoral. Maputo. EISA<br />
(mimeo).<br />
Geffray, Ch. 1991. A Causa das Armas. Antropologia da Guerra Contemporânea em Moçambique.<br />
Porto. Edições Afrontamento.<br />
Offerlé, M. 1987. Les partis politiques. Paris. PUF.<br />
O Sistema Eleitoral Desafios para Moçambique 2010 29
GOVERNAÇÃO DISTRITAL<br />
NO CONTEXTO DAS REFORMAS<br />
DE DESCENTRALIZAÇÃO<br />
ADMINISTRATIVA EM MOÇAMBIQUE<br />
LÓGICAS, DINÂMICAS E DESAFIOS<br />
Salvador Cadete Forquilha<br />
INTRODUÇÃO<br />
Na África sub-sahariana, os programas de ajustamento estrutural implementados a partir dos<br />
anos 1980 foram acompanhados por uma série de reformas focalizadas sobre “a necessidade de<br />
instituições públicas eficazes” (Chevallier 2003: 212). Inseridas no contexto das transições políticas<br />
dos anos 1990 e associadas à redução da pobreza, essas reformas cristalizaram-se sobretudo<br />
no processo de descentralização, que se propunha a criar um conjunto de instituições com<br />
vista a uma melhor governação a nível local.<br />
Relativamente a Moçambique, a abertura do espaço político, consagrada na Constituição de<br />
1990, criou as bases para uma governação local assente em princípios democráticos de inclusão<br />
e participação local. Neste contexto, o ainda Parlamento monopartidário aprovou em 1994<br />
o quadro institucional dos distritos municipais, através da Lei 3/94. Todavia, os desenvolvimentos<br />
subsequentes do processo político moçambicano, nomeadamente os resultados eleitorais<br />
de 1994 e as discussões parlamentares que se seguiram, viriam a ditar o curso dos<br />
acontecimentos levando a que a Lei 3/94 fosse revogada. A revogação foi precedida por uma<br />
emenda constitucional em 1996 (Lei 9/96), que estabeleceu o actual quadro legal do poder<br />
local e conduziu à aprovação, em 1997, da Lei 2/97 sobre as autarquias locais.<br />
Do ponto de vista da devolução do poder do centro para a periferia, a Lei 2/97 representou um<br />
recuo em relação à Lei 3/94, na medida em que de uma administração local circunscrita<br />
exclusivamente aos distritos municipais, enquanto espaços inteiramente autónomos, passou-se<br />
para uma administração onde o Estado pode manter a sua representação e os seus serviços lá<br />
onde a sua zona de jurisdição eventualmente coincida com a de uma autarquia (Decreto<br />
52/2006) 1 . Além disso, a introdução do princípio de gradualismo no processo de autarcização<br />
acabou instalando, de facto, dois modelos diferentes de descentralização no sistema político<br />
moçambicano: uma descentralização política, implicando a devolução de poderes para as 43 autarquias<br />
e uma descentralização administrativa, significando uma simples desconcentração para<br />
o resto dos órgãos da administração local, nomeadamente os distritos, maioritariamente em<br />
Governação Distrital Desafios para Moçambique 2010<br />
31
zonas rurais, cujo quadro legal se encontra na Lei 8/2003 sobre os órgãos locais do Estado<br />
(LOLE) e o seu respectivo regulamento – o Decreto 11/2005.<br />
Este artigo procura analisar o processo de governação local resultante da implementação das<br />
reformas de descentralização administrativa em curso em Moçambique, particularmente, no âmbito<br />
das Instituições de Participação e Consulta Comunitária (IPCCs) 2 . O artigo analisa não só<br />
o processo de institucionalização dos espaços de participação e consulta comunitária, marcado<br />
por uma lógica de recentralização, cristalizada no controlo do Estado sobre o processo de constituição<br />
dos conselhos locais e na redução destes últimos em meras instâncias de consulta sem<br />
nenhum carácter deliberativo, como também identifica os principais desafios associados ao referido<br />
processo. Assim, partindo de pressupostos teóricos do neo-institucionalismo histórico<br />
(Hall & Taylor 1997; Thelen 2003), o artigo argumenta que a lógica de recentralização prevalecente<br />
no processo de institucionalização dos espaços de participação e consulta comunitária<br />
tem que ver com a trajectória do próprio Estado pós-colonial em Moçambique, caracterizada por<br />
uma forte dinâmica centralizadora do poder, particularmente no período imediatamente a seguir<br />
à independência (Olowu & Wunsch 1990). Para desenvolver o argumento, procuraremos, numa<br />
primeira fase, trazer os principais aspectos ligados à institucionalização dos espaços de participação<br />
e consulta a nível local, no âmbito das IPCCs e, numa segunda fase, identificar os principais<br />
desafios relacionados com o processo de governação local.<br />
O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DOS ESPAÇOS<br />
DE PARTICIPAÇÃO E CONSULTA COMUNITÁRIA<br />
As IPCCs aparecem estritamente ligadas às primeiras experiências de planificação descentralizada<br />
dos finais dos anos 1990, com destaque particular para as zonas norte e centro do país.<br />
Assim, circunscritas ao processo de elaboração dos planos distritais, as experiências de participação<br />
comunitária viriam, num primeiro momento, a ser regulamentadas no âmbito do guião<br />
sobre participação comunitária publicado pelo despacho conjunto do Ministério da Administração<br />
Estatal (MAE), Ministério de Agricultura e Desenvolvimento Rural (MADER) e Ministério<br />
do Plano e Finanças (MPF) em 2003 (MAE/MADER/MPF 2003) e, num segundo<br />
momento, incorporadas no quadro jurídico-legal referente aos órgãos locais do Estado através<br />
da LOLE e do Decreto 11/2005. A incorporação destas experiências na LOLE e no seu regulamento<br />
visava a institucionalização de mecanismos de participação local e sua integração no<br />
exercício mais vasto de planificação distrital.<br />
Com efeito, no capítulo dedicado à consulta aos cidadãos, o regulamento da LOLE, no artigo<br />
100, número 1, estabelece que:<br />
32 Desafios para Moçambique 2010 Governação Distrital
Os órgãos locais do Estado devem assegurar a participação dos cidadãos locais, das associações<br />
e de outras formas de organização, que tenham por objecto a defesa dos seus interesses, na formação<br />
das decisões que lhes disserem respeito. (Decreto 11/2005)<br />
Embora a possibilidade de existência de outras formas de organização comunitária seja reconhecida<br />
pelo Estado, o regulamento da LOLE estabelece essencialmente quatro formas principais,<br />
nomeadamente conselho local, fórum local, comités comunitários e fundos comunitários<br />
(Decreto 11/2005). Destas quatro formas de organização comunitária, apenas o conselho local<br />
constitui o interlocutor directo do Estado a nível local, na defesa dos interesses das populações<br />
locais, no processo de planificação. Tal como determina o regulamento:<br />
Os planos de desenvolvimento distrital são elaborados com a participação da população residente<br />
através dos conselhos consultivos locais e visam mobilizar recursos humanos materiais e financeiros<br />
adicionais para a resolução de problemas do distrito. (Decreto 11/2005)<br />
Todavia, não obstante o conselho local constituir uma instituição que visa contribuir para a institucionalização<br />
dos mecanismos de participação e consulta comunitária, a legislação não é suficientemente<br />
clara no que se refere às suas funções no processo de tomada de decisão a nível<br />
local. Com efeito, se se analisa todo o artigo 122 do regulamento da LOLE, que trata das funções<br />
e tarefas do conselho local, não é obvio se o conselho local é um órgão deliberativo ou uma<br />
mera instituição de consulta. Para uma melhor compreensão do processo de institucionalização<br />
dos espaços de participação e consulta local a nível dos distritos, é preciso fazer referência<br />
aos principais actores envolvidos no processo.<br />
PRINCIPAIS ACTORES E SEU PAPEL<br />
Com a aprovação da LOLE e do seu regulamento, a implementação das IPCCs conheceu um<br />
certo dinamismo em todo o país, no âmbito do exercício da planificação distrital. Refira-se, no<br />
entanto, que a qualidade de participação das populações locais no processo de planificação<br />
distrital através das IPCCs varia consideravelmente ao longo do país. De acordo com o<br />
Ministério de Planificação e Desenvolvimento (MPD), existem actualmente três cenários (MPD:<br />
2007b):<br />
a) distritos com história de participação institucionalizada: aqueles em que houve as primeiras<br />
experiências de planificação participativa, no âmbito da implementação do Programa de Planificação<br />
e Finanças Descentralizadas (PPFD) Norte e da Cooperação Técnica Alemã (GTZ)<br />
e Programa de Desenvolvimento Rural (PRODER), nos finais dos anos 1990. São os casos<br />
de alguns distritos de Nampula, Sofala e Manica;<br />
Governação Distrital Desafios para Moçambique 2010 33
) distritos com menor história prática de participação: aqueles em que o processo de participação<br />
das populações locais na elaboração dos planos estratégicos de desenvolvimento distrital está<br />
intimamente ligado ao início do PPFD Centro com o financiamento do Banco Mundial. Trata-<br />
-se aqui basicamente de distritos da zona centro do país (Sofala, Manica, Tete e Zambézia);<br />
c) distritos cuja adesão ao PPFD é recente: aqueles em que a criação das IPCCs se deu num<br />
contexto profundamente marcado pelo uso do Orçamento de Investimento e Iniciativas Locais<br />
(OIIL), vulgarmente designado por “7 milhões”. Aqui pode-se mencionar, por exemplo,<br />
o caso de distritos das províncias de Maputo e Niassa.<br />
Em todos os três cenários acima mencionados, tratou-se de um processo interactivo com partilha<br />
de responsabilidades e, em geral, numa abordagem de cima para baixo. Este processo envolveu<br />
diferentes actores, nomeadamente Governo, populações locais, ONGs e parceiros de cooperação.<br />
GOVERNO<br />
No âmbito das experiências de planificação descentralizada, as IPCCs são parte integrante do<br />
processo de implementação do PPFD. Por conseguinte, o Governo aparece como um dos actores<br />
importantes na institucionalização dos conselhos locais intervindo essencialmente a três níveis:<br />
• Central: traçando linhas de orientação metodológica para a criação e o funcionamento das<br />
IPCCs (Ministério de Administração Estatal); elaborando material de capacitação dos conselhos<br />
locais em matérias de planificação distrital participativa (Ministério de Planificação<br />
e Desenvolvimento);<br />
• Provincial: prestando assistência técnica aos governos distritais em matérias ligadas ao funcionamento<br />
das IPCCs, processos de elaboração dos planos distritais, Plano Estratégico de<br />
Desenvolvimento Distrital (PEDD) e Plano Económico e Social e Orçamento Distrital<br />
(PESOD). Esta é uma tarefa que tem estado a cargo das Direcções Provinciais de Plano e Finanças,<br />
que contam com as equipas de PPFD provinciais e as Equipas Provinciais de Apoio<br />
à Planificação (EPAPs).<br />
• Distrital: institucionalizando os conselhos locais e prestando-lhes assistência técnica em<br />
matéria de planificação (PEDD e PESOD), através das Equipas Técnicas Distritais (ETDs).<br />
Refira-se, no entanto, que, dos três níveis acima mencionados, o nível distrital é o que mais directamente<br />
está envolvido no estabelecimento dos conselhos locais e concentra grande parte<br />
das responsabilidades do processo de institucionalização das IPCCs.<br />
A legislação sobre os órgãos locais do Estado estabelece que o Governo distrital, na pessoa do<br />
administrador, é responsável pela institucionalização dos conselhos locais. O regulamento da<br />
LOLE formula esta ideia nos seguintes termos:<br />
34 Desafios para Moçambique 2010 Governação Distrital
O Administrador distrital é o responsável pela institucionalização dos conselhos locais dos<br />
níveis distrital e inferiores. (Decreto 11/2005)<br />
É um processo altamente centralizado na figura do administrador. A própria legislação não<br />
esclarece suficientemente o papel do Governo distrital (do administrador) na institucionalização<br />
dos conselhos locais: uma simples facilitação ou uma liderança efectiva com poderes exclusivos<br />
na tomada de decisão sobre o andamento do processo como um todo? Quando se olha para<br />
as experiências do estabelecimento dos conselhos locais pelos distritos do país, parece que o<br />
administrador do distrito não possui apenas um papel de facilitação. Em muitos casos, o administrador<br />
comandou inteiramente o processo, especialmente em distritos onde não existem<br />
organizações da sociedade civil a trabalhar na área de governação local. Ademais, o facto de a<br />
legislação conceder uma larga margem de manobra ao administrador na composição do<br />
conselho local do distrito, reforça a centralização do processo na figura do administrador. Com<br />
efeito, o n.° 2 do artigo 118 do regulamento estabelece que:<br />
O dirigente de cada órgão local pode convidar personalidades influentes da sociedade civil a<br />
integrar o conselho local, de forma a assegurar a representação dos diversos actores e sectores.<br />
(Decreto 11/2005)<br />
Ora, isso aliado à própria abordagem do processo de implementação das IPCCs – de cima para<br />
baixo – reforça na base a ideia de um processo que pertence mais ao governo do que propriamente<br />
às populações locais. Além disso, em alguns casos, foi o próprio administrador que não<br />
só explicava às populações locais o mecanismo do funcionamento do processo, mas também<br />
influenciava directamente a selecção dos membros para o conselho local distrital (SNV & Sociedade<br />
Aberta 2007: 14–15).<br />
COMUNIDADES LOCAIS<br />
A inclusão das comunidades locais no processo de tomada de decisão dos órgãos do Estado a<br />
nível local constitui o fundamento da criação das IPCCs. O regulamento da LOLE, no artigo<br />
104, define uma comunidade local nos seguintes termos:<br />
Conjunto de população e pessoas colectivas compreendidas numa determinada unidade de<br />
organização territorial, nomeadamente província, distrito, posto administrativo, localidade e<br />
povoação, agrupando famílias, que visam a salvaguarda de interesses comuns, tais como a<br />
protecção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, quer sejam cultivadas ou em pousio, florestas,<br />
lugares de importância cultural, pastagens, fontes de água, áreas de caça e de expansão.<br />
(Decreto 11/2005)<br />
Governação Distrital Desafios para Moçambique 2010 35
Todavia, paradoxalmente, a legislação não dá suficiente realce ao lugar e papel das comunidades<br />
locais no processo de institucionalização das IPCCs. Com efeito, ao centralizar a institucionalização<br />
dos conselhos locais nos representantes do Estado a nível local e ao privilegiar uma<br />
abordagem de cima para baixo, a legislação acaba dando às comunidades locais um papel marginal<br />
e por conseguinte transformando-as em actor passivo no processo. Em termos de actores<br />
que compõem um conselho local distrital, por exemplo, os membros que supostamente<br />
representam as comunidades locais ronda os 50%. A este propósito, veja, por exemplo, o caso<br />
do conselho local do distrito de Gorongosa (gráfico 1), que “mostra claramente que 61% dos<br />
membros do conselho local vem de grupos sob controlo do administrador, distribuídos da<br />
seguinte maneira: 10% do governo distrital, 29% convidados do administrador, 22% autori -<br />
dades comunitárias. Os considerados cidadãos comuns representam apenas 39% dos membros<br />
do conselho local.” (Forquilha, 2009: 21) 3<br />
GRÁFICO 1 REPARTIÇÃO DOS MEMBROS DO CONSELHO LOCAL DE GORONDOSA POR CATEGORIAS<br />
10%<br />
Governo Distrital<br />
39%<br />
29%<br />
Convidados do Administrador<br />
Autoridades comunitárias<br />
Cidadãos comuns<br />
22%<br />
FONTE Forquilha, S. 2009b: 21.<br />
Neste contexto, pode-se considerar que, no processo de estabelecimento dos conselhos locais,<br />
o papel das comunidades locais reduz-se essencialmente a:<br />
a) Constituição dos níveis mais baixos das instâncias de participação comunitária, Fóruns, Comités<br />
de Desenvolvimento Comunitário (CDCs) e outros, de forma a garantir um diálogo<br />
mais efectivo e responsável com o Governo nos conselhos locais.<br />
b) Selecção de representantes comunitários para os escalões superiores dos conselhos (até ao<br />
nível do distrito e de acordo com a legislação em vigor). Ainda não existe um mecanismo<br />
de selecção uniforme, institucionalizado e praticado em todos os distritos do país. Com a<br />
aprovação do regulamento da LOLE, a prática da eleição foi sendo cada vez mais adoptada<br />
pelas comunidades como mecanismo de selecção dos membros para os escalões superiores<br />
dos conselhos locais. Todavia, é importante referir que as modalidades de eleição variam de<br />
comunidade para comunidade, sendo as mais comuns a eleição por voto secreto e a eleição<br />
pública por consenso dos membros da assembleia (CDCs, fórum, Conselho Local da Loca-<br />
36<br />
Desafios para Moçambique 2010 Governação Distrital
lidade — CLL, Conselho Local do Posto Administrativo — CLPA). No caso deste último tipo<br />
de eleição, os candidatos são publicamente apresentados à assembleia e esta, por consenso,<br />
aprova ou não a selecção do candidato para o conselho local. Destas duas modalidades, a<br />
eleição pública por consenso dos membros da assembleia é a mais frequente. Isto pode-se<br />
explicar pelo facto de ter sido uma prática generalizada nos processos de selecção de membros<br />
para os órgãos político-administrativos a nível local, durante o período do sistema<br />
monopartidário, com maior destaque para os primeiros anos do pós-independência. Este foi<br />
o caso, por exemplo, do processo de selecção de candidatos para as Assembleias do Povo,<br />
ou ainda da selecção de candidatos para membros dos antigos grupos dinamizadores.<br />
c) Participação em cursos de capacitação em matéria de metodologias participativas e de planificação.<br />
ONGs<br />
Embora a legislação (LOLE e o seu regulamento) não reserve um papel específico às ONGs<br />
no processo de criação dos conselhos locais, elas têm estado ligadas às primeiras experiências<br />
de planificação distrital desde os finais dos anos 1990, particularmente na província de Nampula<br />
(Allen & Dupont 2006a). Em outras províncias, a intervenção das ONGs no processo de<br />
institucionalização dos conselhos locais evidenciou-se sobretudo com a publicação do regulamento<br />
da Lei dos Órgãos Locais do Estado em 2005. Neste contexto, as ONGs apareceram<br />
como parceiras importantes não só dos PPFDs como também de programas de desenvolvimento<br />
rural que privilegiavam a planificação distrital participativa, como por exemplo, o ex-<br />
-GTZ-PRODER ou ainda o ex-Programa de Desenvolvimento Rural (PDR) da Cooperação<br />
Suíça (Allen & Dupont 2005a: 3–9). Assim, em Nampula, o PPFD Norte trabalhava em parceria<br />
com Concern, SNV, IBIS, Olipa, Facilidade para Desenvolvimento da Sociedade Civil (FDSC),<br />
Helvetas, Fórum Terra, Salama. Para o caso do PPFD Centro, o ex-GTZ--PRODER e o ex-<br />
PDR da Cooperação Suíça, existia uma parceria com as seguintes ONGs: Organização Rural<br />
de Ajuda Mútua (ORAM), CARE/SCORE, Agência de Desenvolvimento Económico Local<br />
(ADEL), Agência de Desenvolvimento Económico de Manica (ADEM), Magariro, Helvetas,<br />
Associação Moçambicana do Ambiente (AMA), entre outras (Allen & Dupont 2005a).<br />
A intervenção das ONGs no processo de institucionalização das IPCCs consiste essencialmente<br />
nas seguintes actividades.<br />
Em primeiro lugar, a promoção de mecanismos de participação comunitária, não só junto das<br />
comunidades como também junto das autoridades administrativas locais, nomeadamente a nível<br />
dos distritos, postos administrativos e localidades. Dependendo do tipo de parceria com o PPFD<br />
ou o programa de desenvolvimento rural, a promoção de mecanismos de participação comunitária<br />
tem sido sob forma de apoio às comunidades locais na criação dos CDCs e fóruns, capacitação<br />
técnica aos Conselhos Locais (CLs) e às ETDs em metodologias participativas.<br />
Governação Distrital Desafios para Moçambique 2010 37
Em segundo lugar, a facilitação do processo de constituição das IPCCs. Este foi o caso, por<br />
exemplo, de ONGs tais como SNV e Concern em Nampula e Manica, respectivamente, desde<br />
as primeiras experiências de planificação a nível local. Assim, quando a legislação sobre os<br />
Órgãos Locais do Estado foi aprovada em 2003, os conselhos locais em alguns distritos de<br />
Nampula, Manica e Cabo Delgado já estavam constituídos com a ajuda de ONGs. Todavia,<br />
como forma de responder às exigências do regulamento da LOLE, aprovado em 2005, começou<br />
em Nampula um processo de reconstituição das IPCCs existentes, na sequência de “uma<br />
série de lacunas encontradas na sua representatividade, função, mandato e compatibilidade<br />
com o regulamento da LOLE” (Allen & Dupont 2006b: 6). Relativamente a Nampula, o processo<br />
começou em seis distritos considerados pilotos, nomeadamente Angoche, Mossuril, Ribáue,<br />
Muecate, Memba e Nacarôa (SNV 2006). Sob a liderança das ONGs parceiras do PPFD,<br />
este processo implicou uma capacitação das ETDs e representantes do Estado a nível dos postos<br />
administrativos e localidades. Neste contexto, um dos aspectos mais marcantes do processo<br />
da dissolução e reconstituição dos conselhos locais foi a extinção dos fóruns locais e a criação<br />
dos conselhos locais de povoação, previstos no regulamento da LOLE. Para a criação dos conselhos<br />
locais de povoação, a rede de parceiros do PPFD em Nampula elaborou uma metodologia<br />
composta por três passos, nomeadamente “explicação do processo em cada comunidade<br />
e selecção dos seus representantes para o conselho local de povoação; composição da mesa do<br />
conselho local de povoação; eleição dos representantes do conselho local de povoação para os<br />
outros níveis dos conselhos locais” (SNV 2006: 2–3). Para o caso de Cabo Delgado, o exercício<br />
de reconstituição dos conselhos locais foi mais difícil, particularmente a nível das povoações.<br />
Contrariamente a Nampula, onde se assumiu que as aldeias que compõem uma povoação<br />
possuem uma liderança comunitária e interesses comuns, em Cabo Delgado, as aldeias não<br />
possuem necessariamente lideranças comunitárias comuns e em alguns casos são territórios<br />
completamente diferentes uns dos outros em termos de interesses sociais e económicos. Assim,<br />
pelo menos em Ancuabe e Chiúre, os conselhos locais de povoação ainda não existem, continuando<br />
a funcionar os antigos fóruns, instituições de onde saem os membros representantes das<br />
comunidades nos conselhos locais de postos administrativos.<br />
Em terceiro lugar, a participação, em parceria com o PPFD, no processo de capacitação das<br />
IPCCs. Aqui, em muitos casos, existe uma partilha de responsabilidade com o próprio PPFD.<br />
Em quarto lugar, a participação no processo de elaboração de material de capacitação das<br />
IPCCs para o nível dos postos administrativos. Este é o caso, por exemplo, das ONGs filiadas<br />
à rede de parceiros do PPFD Norte em Nampula (DPPF 2006).<br />
Em quinto lugar, o apoio logístico para a realização das sessões dos conselhos locais, particularmente<br />
a nível das sedes distritais. Este foi o caso, por exemplo, da Helvetas nos distritos de Ancuabe<br />
e Chiúre.<br />
38 Desafios para Moçambique 2010 Governação Distrital
PARCEIROS DE COOPERAÇÃO<br />
Diferentemente dos outros actores acima mencionados, a intervenção dos parceiros de<br />
cooperação no processo de institucionalização das IPCCs tem sido de uma forma indirecta<br />
através de financiamento a programas de planificação e finanças descentralizadas ou programas/projectos<br />
de desenvolvimento rural em áreas específicas tais como agricultura, segurança<br />
alimentar, água e saneamento, crédito e poupança ou ainda planificação distrital descentralizada<br />
ou simplesmente participação comunitária (Allen & Dupont 2005a: 3–54).<br />
MECANISMOS DE FUNCIONAMENTO DOS CONSELHOS LOCAIS<br />
No âmbito da legislação referente aos Órgãos Locais do Estado, a constituição e o funcionamento<br />
das IPCCs assenta no pressuposto segundo o qual os conselhos locais existem e funcionam<br />
em cadeia, em que os de níveis mais baixos alimentam os de nível superior, em termos<br />
de representação comunitária. Todavia, isso implica que o processo de constituição das IPCCs<br />
comece não pelo topo, como aconteceu em alguns distritos, mas pela base, onde os CDCs e<br />
outros tipos de organização comunitária a nível local constituem parte integrante do processo.<br />
A este propósito, o n.° 1 do artigo 118 do regulamento da LOLE estabelece que:<br />
Integram os conselhos locais, as autoridades comunitárias, os representantes de grupos de<br />
interesse de natureza económica, social e cultural escolhidos pelos conselhos locais ou fórum de escalão<br />
inferior em proporção da população de cada escalão territorial. (Decreto 11/2005)<br />
A legislação prevê a existência de uma mesa em cada escalão do conselho local com a responsabilidade<br />
de presidir as sessões. A mesa é composta pelo dirigente do órgão local do<br />
Estado e dois vogais (Decreto 11/2005: art. 121, n. os 1–2). Os vogais provêm dos respectivos<br />
conselhos locais via eleições internas. Ao responsável de cada órgão local compete a convocação<br />
e a presidência das sessões dos conselhos locais. O número de membros dos conselhos<br />
varia de 5 a 10 para o conselho de povoação, de 10 a 20 para o conselho de localidade, de 20<br />
a 40 para o conselho de posto administrativo e de 30 a 50 para o conselho do distrito. Com<br />
excepção do conselho de povoação, pelo menos 30% dos membros de cada um dos outros conselhos<br />
devem ser mulheres e o número de sessões deve ser de pelo menos duas sessões anuais.<br />
As sessões dos conselhos locais, particularmente dos distritos e dos postos administrativos, são preparadas<br />
pelas Equipas Técnicas Distritais e presididas de uma forma extremamente vertical sob a<br />
liderança do representante do órgão do Estado a nível local. Falando do distrito de Mogovolas, por<br />
exemplo, Allen & Dupont (2006a) sublinham que os assuntos tratados no conselho local do distrito<br />
não eram levados à votação, o que enfraquece a participação efectiva dos representantes das comunidades<br />
locais no processo de tomada de decisão a nível do conselho local (Allen & Dupont 2006a).<br />
Governação Distrital Desafios para Moçambique 2010 39
Um dos aspectos cruciais no funcionamento dos conselhos locais tem que ver com os mecanismos<br />
capazes de garantir o fluxo de informação e prestação de contas. Teoricamente, os<br />
representantes das comunidades nos conselhos locais deviam garantir a circulação de informação<br />
de e para as comunidades. Todavia, a experiência do funcionamento das IPCCs tem<br />
mostrado fraco fluxo de informação, particularmente dos conselhos locais para as comuni -<br />
dades. Duas razões principais, entre outras, podem explicar este cenário:<br />
• Processo de selecção dos membros das comunidades para os conselhos locais viciado pela<br />
influência do representante do Estado a nível local. Em algumas comunidades, os cidadãos não<br />
conhecem os seus representantes nos diferentes níveis das IPCCs. A título ilustrativo, uma pesquisa<br />
realizada conjuntamente pela SNV e Sociedade Aberta sobre os conselhos locais, em<br />
quatro distritos da província de Maputo, revelou que cerca de 90% dos inquiridos não sabem<br />
quantas pessoas da sua povoação, localidade ou posto administrativo pertencem ao conselho<br />
local do distrito (SNV & Sociedade Aberta 2007: 17).<br />
• Ausência de mecanismos de responsabilização dos seleccionados perante as respectivas comunidades.<br />
Não existe nenhum mecanismo que obrigue os representantes comunitários nos conselhos<br />
locais a prestar contas de uma forma regular e sistemática às comunidades que representam.<br />
Assim, em muitos casos, as populações locais não têm conhecimento dos assuntos discutidos<br />
e das decisões tomadas a nível dos conselhos locais, pois os representantes comunitários nas<br />
IPCCs não estabelecem a ligação necessária entre os conselhos locais e as comunidades, o que<br />
pode contribuir para o enfraquecimento do próprio processo participativo a nível da base.<br />
Nos últimos anos, a experiência de institucionalização dos espaços de participação e consulta nas<br />
diferentes regiões do país mostrou que os conselhos locais careciam de uma regulamentação<br />
interna. Foi neste âmbito que o MAE e o MPD aprovaram recentemente o guião sobre a organização<br />
e funcionamento dos conselhos locais. Todavia, é importante referir que, em alguns assuntos,<br />
o novo guião é problemático, na medida em que introduz aspectos que podem afectar a<br />
transparência no funcionamento dos conselhos locais. Por exemplo, no que se refere às funções e<br />
tarefas dos conselhos locais (MAE & MPD 2008: art. 35, n.° 2), o novo guião não faz referência à<br />
aprovação do plano de actividades e do respectivo relatório de prestação de contas de gerência do<br />
desenvolvimento distrital como sendo uma das tarefas fundamentais dos conselhos locais, tal como<br />
vem preconizado no regulamento da LOLE (Decreto 11/2005: art. 122, n.° 2, alínea g).<br />
Por conseguinte, ao sublinhar o carácter meramente consultivo dos conselhos locais (MAE &<br />
MPD 2008: art. 2; art. 35, n.° 2), ao centralizar o processo de institucionalização dos espaços de<br />
participação e consulta nos representantes do Estado a nível local (MAE & MPD 2008: arts. 22,<br />
25) e ao restringir a publicidade das sessões dos conselhos locais (MAE & MPD 2008: art. 29, n°<br />
2), este documento reduz sobremaneira o espaço de participação a nível local e faz tábua rasa de<br />
40 Desafios para Moçambique 2010 Governação Distrital
todo um conjunto de oportunidades reais de uma governação local inclusiva, que se tinham criado<br />
ao longo dos últimos 10 anos. Assim, pode-se dizer que a aprovação do novo guião representa,<br />
de alguma forma, um retrocesso no processo de participação comunitária na governação local.<br />
PRINCIPAIS ÁREAS DE ACTUAÇÃO DOS CONSELHOS LOCAIS<br />
Embora a legislação mencione claramente como uma das tarefas dos conselhos locais a participação<br />
no processo de preparação, implementação e controlo dos planos distritais, na prática<br />
a principal área de actuação das IPCCs tem-se limitado essencialmente ao exercício de planificação,<br />
nomeadamente o processo de elaboração dos planos estratégicos e operacionais<br />
(PEDDs e PESODs, respectivamente).<br />
Diagnósticos feitos no terreno sobre o funcionamento das IPCCs em Inhambane (Care 2006;<br />
Gonçalves et al 2008), Nampula, Cabo Delgado (Allen & Dupont 2006a) e mais recentemente em<br />
sete províncias, nomeadamente Niassa, Nampula, Tete, Zambézia, Manica e Inhambane (SAL-<br />
CDS & Massala Consult Lda 2009), mostram claramente que os conselhos locais não têm estado<br />
a participar no processo de execução e fiscalização dos planos distritais aprovados. A monitoria<br />
e avaliação dos PEDDs e PESODs ainda não fazem parte da área da actuação das IPCCs.<br />
No que se refere ao exercício de planificação, as IPCCs têm trabalhado particularmente na<br />
identificação das necessidades, sua priorização e incorporação nos planos distritais. Este exercício<br />
envolve toda a cadeia de instituições de participação comunitária, que começa nos CDCs,<br />
passando pelos conselhos locais dos níveis mais baixos até à sede do distrito. Quanto às prioridades,<br />
a área de infra-estruturas constitui a que tem merecido mais atenção por parte das<br />
IPCCs, tal como se pode constatar, por exemplo, na tabela 1 referente ao distrito de Ancuabe.<br />
TABELA 1 PROJECTOS PRIORIZADOS PELO CONSELHO LOCAL DISTRITAL DE ANCUABE (2005-06)<br />
Sector N° de Projectos 2005-06 % Observações<br />
Saúde 2 25 1 centro concluído, 1 no PES 2006<br />
Educação 1 12.5 Construções em curso<br />
Água 4 (8 furos, 2 poços) 50 1 concluído, 2 pendentes, 6 no PES 2006<br />
Estradas (O & M) 1 12.5 1 no PES 2006<br />
Administração Distrital - - -<br />
Projectos 8 100 -<br />
FONTE Allen, C. & Dupont, C. 2006B: 26<br />
DESAFIOS DO PROCESSO DA INSTITUCIONALIZAÇÃO<br />
DOS ESPAÇOS DE PARTICIPAÇÃO E CONSULTA COMUNITÁRIA<br />
No âmbito da descentralização administrativa em Moçambique, os conselhos locais surgem<br />
como espaços de interacção entre o Estado e as populações locais, no processo de tomada de<br />
decisão. O estabelecimento e funcionamento dos conselhos locais pode assim ser enquadrado<br />
Governação Distrital Desafios para Moçambique 2010 41
num contexto mais vasto de governação local. O conceito de governação é empregue, neste artigo,<br />
para significar “mecanismo de regulação de uma vasta série de problemas ou conflitos, pelo qual<br />
os actores, através de negociação e cooperação, chegam regularmente a decisões mutuamente satisfatórias<br />
e coercivas” (2000 citado por Chevalier 2003: 207). Neste sentido, governação é o processo<br />
através do qual indivíduos fazem escolhas colectivas e implementam-nas (Olowu, & Wunsch<br />
2004), o que significa que “por um lado diferentes actores são envolvidos no processo de tomada de<br />
decisão e, por outro, as decisões consensuais são sistematicamente preferidas às fórmulas de tipo autoritário”<br />
(Chevalier 2003: 207). Governação local tem assim que ver com a maneira como diferentes<br />
actores quer colectivos quer singulares participam localmente no processo de tomada de<br />
decisão com vista à provisão de serviços. Supõe-se, neste contexto, que a participação no processo<br />
de tomada de decisão seja valorizada e promovida pelas próprias autoridades políticas distritais.<br />
Neste sentido, o estabelecimento dos conselhos locais trouxe oportunidades para o<br />
processo de escolhas colectivas e sua implementação a nível local.<br />
Relativamente a oportunidades, é notório sobretudo em regiões do país onde as experiências de<br />
participação comunitária no exercício de planificação datam dos finais dos anos 1990. Algumas<br />
dessas oportunidades têm que ver com a reactivação da mobilização social a nível local e a promoção<br />
da inclusão das comunidades locais no exercício da planificação distrital. Mas o contexto<br />
político em que as reformas têm estado a ocorrer dificulta a maximização das referidas oportunidades.<br />
Essa maximização passa por tomar em conta os principais desafios associados ao processo<br />
de institucionalização dos espaços de participação e consulta a nível local.<br />
Com base em experiências de diferentes regiões do país, pode-se considerar que o estabelecimento<br />
de conselhos locais traz desafios para o processo de institucionalização dos espaços de consulta e<br />
participação local. Alguns desses desafios são, nomeadamente, a fraca capacidade de resposta dos<br />
governos distritais às prioridades definidas pelos conselhos locais, o risco de instrumentalização política<br />
dos conselhos locais, a capacitação dos membros dos conselhos locais e, por último, os fracos<br />
mecanismos de prestação de contas. Vejamos, ainda que resumidamente, cada um desses desafios.<br />
FRACA CAPACIDADE DE RESPOSTA DOS GOVERNOS DISTRITAIS ÀS PRIORIDADES<br />
DEFINIDAS PELOS CONSELHOS LOCAIS<br />
O exercício de planificação descentralizada implica a transferência não só do poder de decisão,<br />
em termos de priorização das necessidades locais, mas também de recursos financeiros para que<br />
os governos distritais possam responder pronta e eficazmente às prioridades que constam dos<br />
PESODs. A ideia do orçamento de investimento de iniciativa local (OIIL) ia certamente nesse<br />
sentido. Todavia, a gestão “centralizada” do OIIL consubstanciada nas sucessivas orientações<br />
presidenciais sobre o uso dos 7 milhões diminuiu a capacidade dos distritos em responder às<br />
acções localmente planificadas e enfraquece sobremaneira o mecanismo de planificação distrital<br />
participativa através dos conselhos locais.<br />
42 Desafios para Moçambique 2010 Governação Distrital
Neste cenário, a decisão presidencial sobre a reorientação do OIIL exclusivamente para a produção<br />
de comida, geração de rendimento e emprego, trouxe frustrações e o risco de desacreditar<br />
todo o processo de planificação participativa e reintroduzir as antigas práticas de<br />
planificação centralizada. Aliás, comentando a mudança de orientação no uso do OIIL, um<br />
grupo informal das Organizações da Sociedade Civil, em 2007, considerava que “a nova direcção<br />
dada ao OIIL pressupõe uma recentralização dos sectores dos ministérios do distrito<br />
novamente para os departamentos sectoriais do nível provincial. Tal pode ter sido feito para procurar<br />
conservar ou recuperar os favores dos funcionários públicos, a este nível. No entanto, esta<br />
decisão enfraquece as conquistas significativas que ocorreram nos distritos em anos anteriores.<br />
Causou frustração generalizada entre os administradores distritais. Sentiram que o governo estava<br />
a interferir no que seria normalmente uma função parlamentária. E a participação da comunidade<br />
tornou-se órfã na árvore genealógica da descentralização; ninguém na administração<br />
central levou a sério o facto de que os planos distritais para 2007 tinham sido já negociados e<br />
aprovados através dos conselhos consultivos. Pedir aos conselhos para reverem os seus planos<br />
de forma repetitiva, significa que a sua legitimidade está a ser enfraquecida. Além disso, dentro<br />
das novas orientações do orçamento para o distrito, os fundos não estão mais disponíveis para<br />
financiar o modelo de consulta dispendioso projectado pelo governo central” (Grupo Informal<br />
das Organizações da Sociedade Civil na Governação 2007: 3). Ainda sobre as consequências<br />
da nova orientação na aplicação do OIIL, um administrador de um distrito do Niassa expressou<br />
a sua frustração afirmando:<br />
(...) agora que os 7 milhões são só para comida, rendimento e emprego, não sei como é que o governo<br />
distrital vai poder custear a realização das sessões do conselho consultivo distrital e como<br />
é que serão financiados os projectos aprovados pelo conselho consultivo para este ano... Penso que<br />
havemos de voltar a planificar como vínhamos fazendo, sem consultar as populações, sem os conselhos<br />
consultivos (...) 4<br />
A nova orientação sobre o uso do OIIL retirou assim autonomia aos distritos relativamente à<br />
aplicação do dinheiro para financiamento dos planos distritais e trouxe o risco de enfraquecimento<br />
do processo de participação local e de recentralização no exercício de planificação, o que<br />
contradiz toda a filosofia da Lei dos Órgãos Locais do Estado.<br />
RISCO DE INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA DOS CONSELHOS LOCAIS<br />
Este risco aparece fundamentalmente como resultado do contexto moçambicano, onde a configuração<br />
do campo político é caracterizada pela prevalência de um sistema de poder dominante,<br />
no qual existe uma dificuldade em se estabelecer a distinção entre o Estado e o partido<br />
no poder, e, por conseguinte, o Estado, enquanto fonte de recursos financeiros, emprego,<br />
Governação Distrital Desafios para Moçambique 2010 43
serviços de informação pública e poder da polícia é gradualmente posto ao serviço directo do<br />
partido no poder (Carothers 2002: 5–21).<br />
O risco de instrumentalização política dos espaços de participação e consulta local advém,<br />
igualmente, do facto de o processo de institucionalização dos conselhos locais estar centralizado<br />
na figura do administrador distrital. Assim, embora em alguns distritos haja representatividade<br />
na composição dos conselhos locais, em outros os conselhos são maioritariamente dominados<br />
pelo partido no poder. 5 Num contexto em que as fronteiras entre o partido no poder e o<br />
Estado são praticamente inexistentes, os conselhos locais correm o risco de serem politicamente<br />
capturados, transformando-se em tentáculos do partido no poder a nível local. A experiência<br />
de campo mostra que quanto mais baixo é o nível da IPCC ou fórum, maior é a ausência<br />
de informação sobre o papel e o funcionamento das instituições de participação comunitária e<br />
maior é o risco de instrumentalização política.<br />
Além disso, a ausência de mecanismos transparentes no processo de tomada de decisão durante<br />
as sessões dos conselhos locais pode conduzir à manipulação das decisões dos conselhos em<br />
benefício de interesses políticos das autoridades administrativas locais. Aliás, técnicos da IBIS<br />
que trabalhavam no processo do estabelecimento das IPCCs em Mecuburi, Muecate, Erati<br />
(Nampula), Muembe e Mavago (Niassa) sublinharam que, em alguns destes distritos, as decisões<br />
saídas dos conselhos locais nem sempre eram seguidas pelos governos distritais, sob o pretexto<br />
de que as IPCCs têm uma função meramente consultiva e não deliberativa. 6<br />
CAPACITAÇÃO DOS MEMBROS DOS CONSELHOS LOCAIS<br />
A consolidação do processo de planificação distrital participativa exige, por um lado, uma<br />
liderança política distrital com uma forte consciência da importância da participação das populações<br />
no processo de governação local e, por outro lado, a existência de IPCCs que funcionem<br />
plenamente. Isto significa a existência de conselhos locais que:<br />
• Compreendem as suas responsabilidades;<br />
• Têm uma liderança transparente;<br />
• Têm uma estruturação interna que responde à especificidade do distrito;<br />
• São representativos de todos os grupos de interesse e estratos sociais do distrito;<br />
• Compreendem o processo da planificação distrital e têm conhecimentos técnicos suficientes para<br />
apreciar o PEDD, o PESOD, incluindo os seus respectivos orçamentos;<br />
• Conhecem instrumentos de monitoria e avaliação dos planos e exigem a prestação de contas. (Paulino<br />
s/d)<br />
Nas circunstâncias actuais, uma das dificuldades do processo de institucionalização dos conselhos<br />
locais tem que ver com a capacitação dos principais intervenientes, que é fraca e, em alguns<br />
casos, inexistente.<br />
44 Desafios para Moçambique 2010 Governação Distrital
Os PPFDs têm reservado para si a tarefa de capacitação dos conselhos locais, deixando para<br />
as ONGs, que trabalham na área de governação local, a capacitação dos níveis mais baixos,<br />
nomeadamente os fóruns locais, os comités de desenvolvimento comunitário, as organizações<br />
comunitárias de base. A ideia de investir na capacitação dos níveis mais baixos visa uma melhor<br />
preparação dos representantes das comunidades nos conselhos locais, de modo a participarem<br />
de uma forma efectiva e responsável no processo de planificação distrital. Todavia, a<br />
prática tem mostrado que os representantes do Estado nos conselhos locais também carecem<br />
de uma capacitação sólida, não só do ponto de vista técnico como também do ponto de vista<br />
do significado e da importância das IPCCs no processo de governação local. Num contexto em<br />
que a separação entre o Estado e o partido no poder é praticamente inexistente, particularmente<br />
a nível dos órgãos locais do Estado, uma capacitação dos representantes do Estado nos<br />
conselhos locais seria importante para favorecer uma participação local inclusiva, pois as experiências<br />
do funcionamento dos conselhos locais em diferentes regiões do país mostraram<br />
que os representantes do Estado a nível local constituem o grupo que oferece mais resistência<br />
à mudança para uma participação local que não seja com base em critérios político-partidários.<br />
Trata-se, assim, de providenciar uma capacitação que possa promover valores e atitudes de<br />
tolerância e inclusão políticas.<br />
De modo a fazer face ao desafio de capacitação, as ONGs filiadas à rede de parceiros do PPFD<br />
Nampula elaboraram um currículo de capacitação dos conselhos locais, com um enfoque particular<br />
no nível de posto administrativo. De acordo com os autores, o currículo está focalizado<br />
nos conselhos locais de postos administrativos, essencialmente por cinco razões:<br />
• O CLPA situa-se num nível intermédio que permite influenciar melhor os outros níveis;<br />
• É o nível que dá forma às prioridades (há capacidade para priorização, definição e criação de<br />
consenso sobre a agenda do PA) que são levadas à discussão ao nível do distrito;<br />
• Os membros a este nível (na sua maioria) têm mais capacidade de transmitir os conhecimentos<br />
e informação aos outros níveis abaixo;<br />
• Recursos;<br />
• Facilidade de comunicação e influência para os outros níveis dos CLs. (DPPF 2006: 2)<br />
Composto por cinco módulos, o currículo da rede de parceiros do PPFD Nampula trata de diferentes<br />
temas tais como: governação local e descentralização; aspectos organizacionais dos<br />
conselhos locais, representatividade; participação e género; planificação distrital, monitoria e<br />
avaliação; comunicação e sensibilização ambiental (DPPF 2006: 8–10).<br />
Partindo da experiência de Nampula, o MPD, por sua vez, elaborou um curso sobre os conselhos<br />
locais, a ser implementado a nível nacional. O curso comporta três módulos, nomeadamente,<br />
organização e funcionamento dos conselhos locais; planificação e projectos; monitoria<br />
e avaliação do funcionamento dos fóruns e conselhos locais. Os módulos subdividem-se em 8<br />
Governação Distrital Desafios para Moçambique 2010 45
capítulos: participação da comunidade; enquadramento legal; organização dos conselhos locais;<br />
funcionamento dos conselhos locais; processo de planificação; papel dos conselhos locais no<br />
processo de planificação; projectos comunitários; monitoria e avaliação do funcionamento dos<br />
fóruns e conselhos locais (MPD 2007a). No que se refere aos conteúdos, constata-se que o<br />
curso privilegia os aspectos técnicos em detrimento da dimensão cívica. Com efeito, o curso não<br />
sublinha suficientemente a ligação entre a planificação e o processo de governação; a importância<br />
da participação local no processo de governação. Ora, uma capacitação dos conselhos<br />
locais que não dê a devida atenção à dimensão cívica das IPCCs pode trazer o risco de reduzir<br />
o exercício de planificação distrital a uma actividade meramente técnica sem, no entanto,<br />
contribuir para o propalado “empoderamento” das comunidades locais.<br />
FRACOS MECANISMOS DE PRESTAÇÃO DE CONTAS<br />
No funcionamento dos conselhos locais, há falta de mecanismos institucionalizados de prestação<br />
de contas dos membros dos conselhos às comunidades locais. Muitas vezes os assuntos discutidos<br />
a nível dos conselhos locais não chegam ao conhecimento das próprias comunidades<br />
(não existem mecanismos que garantam o retorno de informação dos conselhos locais para as<br />
comunidades). Neste contexto, os conselhos locais correm o risco de funcionar não como<br />
espaços de diálogo entre o governo e as populações locais, mas unicamente como espaços de<br />
tomada de decisão do governo distrital.<br />
Assim, pode-se considerar que os desafios identificados requerem uma atenção particular para<br />
o reforço de mecanismos capazes de garantir a qualidade dos conselhos locais, de forma a se<br />
poder “agarrar” a janela de oportunidades trazida pelo quadro jurídico-legal da institucionalização<br />
da participação e consulta comunitárias, no âmbito do desenvolvimento distrital. Esses<br />
mecanismos passam basicamente pela capacitação dos conselhos locais e pela promoção do<br />
diálogo permanente entre os diferentes actores do processo, nomeadamente Governo, Parceiros<br />
de cooperação, ONGs e Comunidades locais.<br />
CONCLUSÃO<br />
As reformas de descentralização administrativa criaram, nos últimos anos, um quadro jurídico-<br />
-legal favorável à existência de espaços de participação e consulta a nível dos distritos, através<br />
dos conselhos locais. Todavia, o processo de institucionalização desses espaços tem sido marcado<br />
por uma lógica de recentralização, cristalizada no controlo do Estado sobre o processo<br />
de constituição dos conselhos locais e na redução destes últimos em meras instâncias de consulta<br />
sem nenhum carácter deliberativo. Esta lógica de recentralização tem que ver com a trajectória<br />
histórica do próprio Estado pós-colonial em Moçambique, caracterizada por uma forte<br />
dinâmica centralizadora do poder.<br />
46 Desafios para Moçambique 2010 Governação Distrital
Além disso, o contexto sociopolítico em que as reformas de descentralização têm vindo a ser<br />
implementadas, caracterizado particularmente pelo reforço do sistema de poder dominante,<br />
traz consigo o risco de captura política dos espaços de participação e consulta local. Com efeito,<br />
a centralização do processo de institucionalização dos conselhos locais na pessoa do administrador<br />
distrital, a redução dos conselhos locais a meras instituições de consulta, contribuem<br />
para transformar estes últimos em espaços de participação controlada, esvaziando, assim, o significado<br />
das IPCCs no processo de governação local, assente em princípios democráticos de<br />
participação e inclusão.<br />
A maximização das oportunidades de consulta e participação local trazidas pelo quadro jurídico-legal,<br />
no âmbito das reformas de descentralização administrativa, passa pela tomada em<br />
consideração dos principais desafios ligados ao processo de institucionalização dos conselhos<br />
locais, nomeadamente fraca capacidade de resposta dos governos distritais às prioridades definidas<br />
pelos conselhos locais, risco de instrumentalização política dos conselhos locais, capacitação<br />
dos membros dos conselhos locais e fracos mecanismos de prestação de contas. É fazendo<br />
face a estes desafios que os conselhos locais poderão transformar-se em elemento fundamental<br />
de governação distrital participativa e inclusiva.<br />
NOTAS<br />
1<br />
A representação do Estado nos espaços municipalizados é reforçada mais tarde com a publicação<br />
dos decretos 65/2003 e 52/2006.<br />
2<br />
Neste artigo, entende-se por IPCCs o conjunto das instituições criadas a nível local no âmbito da<br />
implementação da Lei dos Órgãos Locais do Estado e do seu regulamento, nomeadamente os<br />
conselhos locais dos níveis de distrito, posto administrativo, localidade e povoação, fóruns locais<br />
e comités de desenvolvimento comunitário. Ao longo do artigo, IPCCs refere-se essencialmente<br />
aos conselhos locais, sendo os termos “conselho local” e “conselho consultivo” usados como<br />
sinónimos.<br />
3<br />
Um estudo encomendado pelo Ministério de Planificação e Desenvolvimento (MPD) e realizado<br />
por SAL-CDS & Massala Consult Lda em 2009, em sete províncias do país, nomeadamente<br />
Niassa Nampula, Tete, Zambézia, Manica, Inhambane e Gaza, considera que a sociedade civil<br />
constitui a maioria dos membros nos conselhos locais a todos os níveis. Para mim, há aqui dois<br />
aspectos que o estudo não tomou devidamente em consideração: Primeiro, ao longo do estudo,<br />
não existe nenhuma problematização do conceito de sociedade civil e, como consequência disso<br />
(e este é o segundo aspecto), os autores do estudo incluem na categoria da sociedade civil organizações<br />
com filiação a partidos políticos, nomeadamente OMM, OJM, antigos combatentes,<br />
etc. (SAL-CDS & Massala Consult Lda 2009: 17).<br />
4<br />
Entrevista com o administrador de Metarica, Metarica, 14 de Julho de 2007.<br />
Governação Distrital Desafios para Moçambique 2010 47
5<br />
A título de exemplo, numa visita efectuada ao conselho local do posto administrativo de Chiulu,<br />
no distrito de Malema, na província de Nampula, quisemos saber o número de membros que<br />
compõem o conselho local e um dos presentes respondeu-nos dizendo que “o conselho é constituído<br />
por 30 camaradas...” — Entrevista colectiva com o conselho local do posto administrativo<br />
de Chiulu, Malema, 21 de Junho de 2007. Refira-se que o secretário do partido Frelimo a nível do<br />
posto administrativo participou nesta sessão de entrevista, na sua qualidade de secretário da Frelimo,<br />
no âmbito da prerrogativa que os representantes dos órgãos locais do Estado têm de convidar<br />
pessoas influentes para participar nas sessões dos conselhos locais.<br />
6<br />
Debate durante o workshop sobre governação local realizado pela IBIS no distrito de Malema,<br />
província de Nampula, de 18 a 22 de Junho de 2007.<br />
REFERÊNCIAS<br />
Allen, C. & Dupont, C. 2005a. Support by Development Agencies to the Decentralized Planning and<br />
Finance Programme, Mozambique. Vol 1 – Directory of Programmes and Projects,<br />
Maputo, Ministério de Planificação e Desenvolvimento.<br />
Allen, C. & Dupont, C. 2005b. Support by Development Agencies to the Decentralized Planning and<br />
Finance Programme, Mozambique, Vol. 2 – Report, Maputo, Ministério de Planificação e<br />
Desenvolvimento.<br />
Allen, C. & Dupont, C. 2006a. Estudo das IPCCs em Memba, Mogovolas, Ancuabe e Chiúre. Vol 2,<br />
Nampula, PPFD.<br />
Allen, C. & Dupont, C. 2006b. Estudo das IPCCs em Memba, Mogovolas, Ancuabe e Chiúre. Vol 3,<br />
Nampula, PPFD.<br />
CARE. 2006. Relatório de Pesquisa sobre Poder e Representatividade: Diagnóstico das IPCCs e<br />
CBOs, Inhambane.<br />
Carothers, T. 2002. “The end of the Transition Paradigm”, Journal of Democracy, 13. (1).<br />
Chevalier, J. 2003. La gouvernance, un nouveau paradigme étatique? Revue française<br />
d’administration publique, 1-2 (105-106), p. 203-217.<br />
Diamond, L. 2002. “Elections without Democracy: Thinking about Hybrid regimes”, Journal of<br />
Democracy, 13: 2, 2002, pp. 21–35.<br />
Decreto 65/2003, Boletim da República, I Série, Suplemento, 31 de Dezembro de 2003.<br />
Decreto 11/2005, Boletim da República, I Série n.° 23, 10 de Junho de 2005.<br />
Decreto 52/2006, Boletim da República, I Série, Suplemento, 26 de Dezembro de 2006.<br />
DPPF – PPFD NAMPULA, Workshop para elaboração do currículo para capacitação das<br />
IPCCs/CLs, Nampula, Maio de 2006.<br />
DPPF – PPFD, Capacitação dos CLPAs. Manual do Facilitador. Módulo 1 (Draft), Nampula, Rede<br />
de Parceiros do PPFD – Nampula, Novembro de 2006.<br />
48 Desafios para Moçambique 2010 Governação Distrital
Forquilha, S., 2009a. “Remendo novo em pano velho: O impacto das reformas de<br />
descentralização no processo de governação local em Moçambique”, in Brito et al,<br />
Cidadania e Governação em Moçambique, Maputo, <strong>IESE</strong>.<br />
Forquilha, S. 2009b. “Reformas de Descentralização e Redução da Pobreza num Contexto de<br />
Estado Neopatrimonial. Um Olhar a partir dos Conselhos Locais e OIIL em<br />
Moçambique”, paper apresentado na II Conferência do <strong>IESE</strong>, Maputo.<br />
Grupo Informal das Organizações da Sociedade Civil na Governação, Orçamento Distrital<br />
Politizado, Maputo, Maio de 2007.<br />
Hall, P. & Taylor, R., 1997. La science politique et les trois néo-institutionnalismes. Revue<br />
Française de Science Politique, 47 (3–4).<br />
Lei 2/97, Boletim da República, I Série n.° 7, 2.° Suplemento, 18 de Fevereiro de 1997.<br />
Lei 3/94, Boletim da República, I Série, n.° 37, 2.° Suplemento, 13 de Setembro de 1994.<br />
Lei 8/2003, Boletim da República, I Série n.° 20, 1.º Suplemento, 19 de Maio de 2003.<br />
Lei 9/96, Boletim da República, I Série, n.° 47, 1.° Suplemento, 22 de Novembro de 1996.<br />
MAE, Proposta de Regulamento sobre Organização e Funcionamento dos Conselhos Consultivos<br />
Locais, Maputo, Maio de 2007.<br />
MAE/MADER/MPF, Participação e Consulta Comunitária na Planificação Distrital. Guião para<br />
Organização e Funcionamento, Maputo, Junho de 2003.<br />
MAE, Proposta de Guião sobre Organização e Funcionamento dos Conselhos Locais, Maputo, 2008.<br />
MPD, 2007a. Curso sobre os Conselhos Locais, Maputo.<br />
MPD, 2007b. Programa Nacional de Planificação e Finanças Descentralizadas PPFD. 1.° Draft<br />
do Documento do Programa, Maputo.<br />
Olowu, D. & Wunsch, J. 1990. The Failure of the Centralised State: Institutions and self-Governance<br />
in Africa, Boulder, Westview Press.<br />
Olowu, D. & Wunsch, J. 2004. Local Governance in Africa. The Challenges of Democratic<br />
Decentralization. Boulder e London: Lynne Rienner Publishers.<br />
Paulino, E. F. s/d. Capacitação das IPCCs. Experiências e desafios, Maputo, T&B Consult.<br />
SAL-CDS & Massala Consult Lda 2009. Analysis of Experiences Relating to Community<br />
Participation and Consultation in District Planning in Mozambique. Final Consolidated<br />
Report, Maputo, MPD.<br />
SNV & Sociedade Aberta, 2007. Pesquisa Diagnóstica: Envolvimento da Sociedade Civil da<br />
Província de Maputo no Processo de Governação Local, Maputo.<br />
SNV, 2006. Capacitação das Instituições de Participação e Consulta Comunitária em Nampula à Luz<br />
da Lei 8/2003 de 19 de Junho, Nampula, DPPF/PPFD.<br />
Thelen, K., 2003. “Insights from comparative historical analysis”. In J. Mahoney & D.<br />
Rueschemeyer, ed. Comparative Historical Analysis in Social Sciences, Cambridge:<br />
Cambridge University Press.<br />
Governação Distrital Desafios para Moçambique 2010 49
SOCIEDADE CIVIL EM MOÇAMBIQUE<br />
EXPECTATIVAS E DESAFIOS<br />
António Francisco 1<br />
INTRODUÇÃO<br />
Contemplar a sociedade civil moçambicana, na lista dos desafios dignos de atenção para o futuro<br />
próximo, tem um duplo significado. Significa, primeiramente, o reconhecimento da arena<br />
pública para onde convergem interesses comuns e particulares dos actores das esferas institucionais<br />
da sociedade: Estado, mercado e família. Significa, também, que os responsáveis pela<br />
escolha deste tema depositam expectativas e esperança no papel que a referida arena pública<br />
poderá desempenhar em prol de uma sociedade mais saudável, tolerante, inclusiva e eficiente.<br />
Neste texto, procura-se não simplesmente apresentar e analisar informação empírica sobre a<br />
sociedade civil moçambicana, mas sobretudo explorar novas vias para o entendimento da sua<br />
dinâmica e daí retirar alguns dos desafios que ela enfrenta.<br />
Existem bons e maus precedentes para tais expectativas e esperança. Alguns dos melhores e piores<br />
precedentes vêm de longe, do Moçambique ainda colonial. No Moçambique subjugado à administração<br />
colonial portuguesa, principalmente nas últimas décadas de cerrado autoritarismo e<br />
repressão do Estado Novo português (1930-1975), a sociedade civil foi berço dos ideais independentistas<br />
e da preparação de alguns dos líderes moçambicanos que se converteram em governantes<br />
proeminentes no Estado Soberano 2 . Uma breve retrospectiva pelas biografias de alguns dos<br />
líderes não deixa margem para dúvidas; a sociedade civil foi uma espécie de incubadora de importantes<br />
iniciativas cívicas e políticas, amplamente pluralistas, umas meramente reformistas do<br />
regime colonial (e.g. Domingos Arouca 3 , Máximo Dias, Jorge Jardim, Joana Simeão), outras revolucionárias<br />
e extremamente radicais (e.g. Marcelino dos Santos, Armando Guebuza, Urias Simango,<br />
Eduardo Mondlane, Samora Machel, Joaquim Chissano, e nas suas aspirações de transformação<br />
da sociedade moçambicana (Adam, 2005; Afonso, 1972; Arouca, 2000; Bragança e Wallerstein,<br />
1978; Jardim, 1976; Laban, 1989; Martins, 2001; Mondlane, 1977; Matusse, 2006; Newitt, 1997;<br />
Ncomo, 2003; Pélissier, 2000; Rocha, 2002; Serra, 2000; Sopa, 2001; Souto, 2007; Veloso, 2006).<br />
Ao longo do século XX também emergiram e cresceram iniciativas jornalísticas e literárias (e.g.<br />
João e José Albazini, Rui de Noronha, Renaldo Ferreira, José Craveirinha, Rui Knopfli, Rui<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 51
Guerra e Noémia de Sousa) 4 ; figuras como o advogado Karel Pott, primeiro moçambicano não<br />
branco licenciado em Direito e atleta olímpico (Balan, 1998: 71-73; Mendes, 2006: 57); expressões<br />
musicais populares (e.g. marrabenta, as timbilas chope, Fany Mpfumo, Xidiminguna)<br />
e clubes desportivos informais, de onde saíram futebolistas moçambicanos consagrados entre<br />
importantes “estrelas” do futebol internacional: Eusébio, Coluna, Matateu, Wilson, Costa Pereira<br />
e Juca; homens e mulheres de outras artes (Rangel, na fotografia, Malangatana, Chicorro e Bertina<br />
Lopes, na pintura) (Alba, 1981a, 1980b; César, 1972; Craveirinha, 1982, 1999, 2009;<br />
Cuamba, 1998; Dias, 1975; Ferrão, 1975; Ferreira, 1970; Frelimo, 1997; Gonçalves, 1980; 2005;<br />
Honwana, 1978; Knopfli, 1999; Lisboa, 1973; Matusse, 2007: 28; Mendes, 1965; Mendes, 2006;<br />
Pena, 1982; Serra, 2000).<br />
Muitas dessas iniciativas pouco ou nada tinham que ver com política, no sentido estrito do<br />
termo. No entanto, num ambiente em que a política era apanágio exclusivo do regime, o simples<br />
facto de as pessoas afirmarem a sua moçambicanidade através do desporto, do folclore e<br />
da música, da poesia e da pintura, era suficiente para incomodar quem teimava manter a supremacia<br />
da portugalidade.<br />
A independência de Moçambique, proclamada em 1975, teve como determinantes mais próximos<br />
três factores catalisadores: 1) A criação da Frente de Libertação de Moçambique (FRE-<br />
LIMO), da fusão de três movimentos nacionalistas regionais: UDENAMO, MANU e UNAMI 5 ;<br />
2) A opção da FRELIMO pela luta armada, na forma de guerrilha, adaptada à natureza do<br />
regime colonial fortemente repressivo e crescentemente militarizado; 3) O golpe de Estado de<br />
25 de Abril de 1974, acontecimento que abriu a oportunidade para o fim da guerra colonial<br />
e o reconhecimento da independência das colónias portuguesas.<br />
Por ocasião da independência, a Frelimo autoproclamou-se “força dirigente do Estado e da<br />
Sociedade” (art. 3.º, Constituição 1975). Tal opção converteu a Frente de Libertação numa instituição<br />
política hegemónica, em relação tanto à sociedade civil como às próprias esferas institucionais<br />
em que a sociedade se alicerça: o mercado, o Estado e a família. A hegemonia da<br />
Frelimo tornou-se avassaladora graças à conjugação de vários factores: a força militar acumulada<br />
ao longo de 10 anos de luta armada; o apoio popular entusiástico que a expectativa da<br />
independência despoletou na população moçambicana; a vasta rede de solidariedade internacional<br />
que os movimentos de libertação africanos mobilizaram da parte do “bloco socialista” e<br />
dos movimentos de esquerda dos países capitalistas.<br />
Nos primeiros anos de independência, as opções radicais do partido que assumiu a liderança e<br />
o poder absoluto sobre o Estado Soberano conduziram a mudanças radicais atribuladas e controversas.<br />
O livro Milandos de um sonho (Adamodjy 2001) narra bem os sonhos e desventuras<br />
da transição para a independência moçambicana. Se o povo moçambicano não fazia milando<br />
com as mandâncias de nós próprios, afirma um dos personagens do referido livro, ninguém<br />
poderia continuar a sonhar, nesta nossa terra que outra vez parece não ser nossa — “Aquele que<br />
52 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
semear dia de hoje com defeito, hade recolher dia de amanhã alejado.” (Adamodgy, 2001: 56)<br />
Decorridas três décadas, desde a independência, as gerações de hoje continuam a colher frutos<br />
aleijados e defeituosos, semeado com defeito na 1.ª República (1975-1990).<br />
As mudanças instituídas pela Frelimo após a independência apanharam de surpresa a maioria<br />
das Organizações da Sociedade Civil (OSC), seus líderes e activistas. 6 Para a generalidade dos<br />
moçambicanos, o período revolucionário, durante a 1.ª República do Estado Soberano (A República<br />
Popular de Moçambique), foi uma experiência ímpar, tanto pelas suas virtudes como<br />
pelos seus defeitos. Mas enquanto uns viveram tal experiência como se o paraíso estivesse ao<br />
virar da esquina 7 , para outros o sonho converteu-se num pesadelo doloroso e trágico.<br />
O modelo de Homem Novo imposto pelos revolucionários radicais, como referência da sociedade<br />
socialista a construir, depressa apresentou características de um puritanismo ascético 8 que<br />
nem a juventude dos países socialistas o reconhecia como viável e mobilizador. O conjunto de<br />
medidas revolucionárias (e.g. as nacionalizações da terra, escolas e sistema educacional, saúde<br />
e medicina privada, advocacia privada, agências funerárias e prédios de rendimentos) fazia parte<br />
de um vasto pacote de combate vigoroso aos chamados “valores decadentes da burguesia e da<br />
sociedade tradicional-feudal”; incluía desde o combate ao liberalismo e ao individualismo, nas<br />
suas versões mais negativas, até às práticas culturais populares, tais como: ritos de iniciação, poligamia,<br />
lobolo, medicina tradicional, entre outros (Machel 1977). Em síntese, sonhos encantadores<br />
e ideais imaginando uma sociedade completamente nova conjugavam-se com actos<br />
inimagináveis e extremismos ateístas, nuns casos ingénuos, noutros ressentidos e noutros maledicentes<br />
e vingativos (Cabrita, 2001, 2005; Fauvet e Mosse, 2003; Freitas, 2003; Laban, 1998;<br />
Mallinda, 2001; Matsinhe, 2005; Melo, 1985; Ncomo, 2003; White, 2002; Wegher, 1999: 327-<br />
328; Veloso, 2006).<br />
Em três décadas, Moçambique viveu 90% do tempo (exactamente 26 anos) em guerra. Primeiro,<br />
a guerra pela independência (1964-1974); segundo, a guerra civil (1977-1992). Não sendo este o<br />
espaço apropriado para discutir sobre as causas e as implicações destas duas guerras, um ponto<br />
relevante para o tema deste artigo justifica ser referido explicitamente. Salvaguardando as enormes<br />
diferenças entre as duas guerras, ambas contaram com uma elevada dose de intolerância política<br />
dos regimes instalados e incapacidade dos actores da sociedade, incluindo os actores da<br />
sociedade civil, em encontrarem com a devida antecipação alternativas pacíficas e menos destrutivas<br />
do que representou o recurso à violência armada. O facto de a guerra civil ter durado<br />
16 anos é, em si, um indicador que revela as enormes dificuldades que a sociedade civil enfrentou,<br />
quer pela sua própria sobrevivência quer no esforço de aproximação das duas principais<br />
forças beligerantes, apostadas em fazer valer a força das suas obstinações. Por via de bastidores<br />
e novos atalhos clandestinos, os milandos do sonho revolucionário acabariam por encontrar<br />
saída, assim que o “Estado de Democracia Popular” (Constituição 1975) foi substituído pelo<br />
“Estado de Direito” (Constituição de 1990). Tal como refere o recente livro da OSISA (2009a:<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 53
78), “A democratização em Moçambique não foi obtida pela via da pressão e mobilização popular,<br />
mas, sim, com o fim de um conflito armado e no qual nenhuma das partes lutava pela constituição<br />
de uma democracia representativa no país.” As populações também lutavam por razões<br />
variadas, adianta ainda a OSISA, entre o descontentamento com as políticas adoptadas pelo<br />
Governo e o recrutamento forçado (OSISA, 2009a: 78; OSISA, 2009b).<br />
A inexistência de um processo realmente democrático, em termos de respeito pelas liberdades<br />
individuais e pelo pluralismo associativo e político, traduziu-se num profundo empobrecimento<br />
cultural, com particular incidência na destruição da ligação (salvo raras excepções) entre os<br />
expoentes da cultura literária, musical e desportiva, do Moçambique colonial, e a nova geração<br />
de artistas e intelectuais, nascida no período da independência. Apesar disso, ao longo da década<br />
de 80 e 90, novos protagonistas, alguns deles reconhecidamente originais e criativos, emergiram<br />
em várias áreas: na literatura – Armando Artur Ungulani Ba Ka Khosa, Heliodoro Baptista,<br />
Paulina Chiziane, Mia Couto, Luís Carlos Patraquim, Nelson Saúte, Eduardo White; na música<br />
— Pedro Ben, Wazimbo, Grupo Nacional de Canto e Dança, Jimmy Dludlu, Chico António;<br />
na pintura - Naguib, Gemuce, Ismael Abdula, Samate, Idasse e os pintores de batik informais; na<br />
imprensa investigativa - Carlos Cardoso; no desporto - a grande revelação, Lurdes Mutola, que<br />
se converteu em líder mundial na modalidade de atletismo feminino (Azevedo, 1983; Cabrita,<br />
2001; Frelimo, 1977, 1980; Fauvet e Mosse, 2003; Ngoenha, 2004; Pires e Capstick, 2002).<br />
Em retrospectiva, e a título de balanço, será que os bons exemplos compensam e sobrepõem-<br />
-se aos maus exemplos e fraquezas da sociedade civil moçambicana, tanto no passado remoto<br />
(o Moçambique colonial) como no passado recente (o Moçambique independente)? A resposta<br />
a esta questão será dada ao longo do artigo e, na parte final do texto, de forma mais directa.<br />
Além da introdução, este artigo está organizado em quatro secções. A primeira secção lida com<br />
os conceitos operacionais (sociedade civil, transparência e confiança), o quadro conceptual de referência<br />
e a realidade estratégica da actual sociedade civil. A segunda secção aborda a importância<br />
da reconciliação do presente com o passado, com destaque para a necessidade de se superar<br />
a desvalorização (negação/deturpação) deste, remoto e recente. A terceira secção recorre ao conhecimento<br />
disponível sobre o estado da sociedade civil moçambicana (SCM) para elevar o mero<br />
conhecimento descritivo disponível a um nível de melhor entendimento da natureza e das causas<br />
da sua fraqueza actual. A quarta parte identifica cinco desafios principais, apresentados como<br />
imperativos para que a SCM conquiste um elevado nível de credibilidade, a nível nacional e internacional:<br />
coragem, honestidade, excelência, transparência e confiança.<br />
ABORDAGEM ANALÍTICA E METODOLOGIA<br />
O título deste artigo identifica duas balizas de referência para a análise apresentada neste texto:<br />
expectativas (esperança fundada em promessas ou probabilidade de que algo aconteça) e de-<br />
54 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
safios (estímulo, convite, provocação, incitação). Dentro destas duas balizas analíticas, nesta<br />
secção explicitam-se alguns dos conceitos operacionais (sociedade civil, transparência e confiança),<br />
apresenta-se o quadro conceptual de base e realidade estratégica da sociedade civil que<br />
constitui objecto principal de investigação.<br />
O QUE É SOCIEDADE CIVIL?<br />
Entende-se por sociedade civil a arena da sociedade fora da família, do mercado e do Estado,<br />
onde as pessoas se associam para realizarem interesses, não só interesses comuns, mas também<br />
aspirações e interesses particulares ou mesmo privados.<br />
Esta definição de sociedade civil corresponde em parte à definição operacional, amplamente<br />
usada pela CIVICUS nos seus estudos internacionais sobre o Índice da Sociedade Civil (Heinrich,<br />
2004, 2007). O conteúdo da primeira parte da definição é consistente com as definições<br />
académicas mais conhecidas, quando reconhecem o objecto da sociedade civil como a arena<br />
pública de convergência de acções colectivas (Francisco et al., 2008; Heinrich, 2004, 2007; LSE,<br />
2004; OSISA, 2009b). Porém, na segunda parte da definição a prossecução de interesses comuns<br />
aparece intimamente ligada à prossecução de interesses individuais e particulares.<br />
Esta opção é pouco comum, mas afigura-se pertinente e útil, porque evita uma ambiguidade muito<br />
frequente nas definições convencionais. Em geral, tais definições deixam implícito, ou tendem a<br />
sugerir, que a sociedade civil é uma entidade monolítica, ou que representa apenas o reverso do<br />
Estado; ou ainda, que a arena da sociedade civil gira principalmente em torno de interesses comuns,<br />
como se os interesses particulares e privados dominantes na sociedade jogassem um papel marginal<br />
ou mesmo irrelevante. A definição de referência, neste artigo, engloba os factores subjacentes<br />
à dinâmica da sociedade civil: objecto, âmbito, elementos constituintes, propósitos e objectivos.<br />
ARENA DA SOCIEDADE CIVIL E PRINCIPAIS ESFERAS DA SOCIEDADE<br />
Na definição de SC acima apresentada, a palavra “arena” assume um papel operativo importante.<br />
O termo “arena” visa descrever o espaço público institucional onde as pessoas se juntam<br />
e relacionam, numa base voluntária, sem fins lucrativos; onde valores e interesses da sociedade<br />
são transmitidos, se comunicam, cooperam ou competem entre si; onde pessoas com diferentes<br />
e múltiplas identidades, se juntam para debater, discutir, negociar ou mesmo conquistar<br />
supremacia sobre outras pessoas, visando influenciar políticas e programas sociais, para o bem<br />
comum, mas também, para benefício de grupos de interesses individuais e privados.<br />
Pensando de forma mais cuidada e atenta, percebe-se que as definições convencionais de sociedade<br />
civil deixam implícito um atributo, aparentemente pequeno, mas, na realidade, crucial.<br />
Ao reconhecer a prossecução de interesses comuns, parecem presumir que a arena da sociedade<br />
civil congrega apenas actores e motivações colectivistas e altruístas.<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 55
FIGURA 1: SOCIEDADE CIVIL E PRINCIPAIS INSTITUIÇÕES DA SOCIEDADE MOÇAMBICANA<br />
A Figura 1 apresenta uma representação gráfica da arena da sociedade civil (formal e informal),<br />
na sua ligação, articulação e interdependência com as principais esferas institucionais da<br />
sociedade: Estado, mercado e família. Porquê estas três esferas? O Estado, porque é a esfera<br />
institucional reguladora (política, jurídica e socialmente) do bem comum, dentro de um certo<br />
território. O mercado, por ser a esfera onde se produzem e trocam os bens e a riqueza nacional.<br />
A família, por ser a esfera institucional de reprodução humana, independentemente das<br />
suas formas ou subsistemas.<br />
À partida, nas definições de sociedade civil comummente reconhecidas não existe nada a indicar<br />
que o foco de análise deva circunscrever-se às organizações formalmente constituídas (e.g.<br />
associações, fundações e ONGs). Porém, na prática, as análises e pesquisas tendem a excluir o<br />
universo informal da sociedade civil. Francisco et al. (2008) reconheceram esta limitação analítica,<br />
tendo mesmo tentado contornar e superar as suas restrições; só que a metodologia de pesquisa<br />
de base não tinha sido concebida para esse efeito.<br />
AMBIENTE AGÓNICO E REALIDADE ESTRATÉGICA<br />
A definição de SC neste trabalho afigura-se suficientemente abrangente e relevante, por dois motivos.<br />
Por um lado, ela inclui as principais entidades colectivas e individuais, voluntárias e sem<br />
fins lucrativos, no domínio formal da sociedade civil; as entidades fora do domínio do direito<br />
público, privado e familiar, com as quais se relaciona e das quais depende, para obter seus<br />
recursos humanos, financeiros e materiais. Por outro lado, a definição usada neste texto explicita<br />
e contextualiza o objecto de estudo nomeadamente a realidade estratégica, desígnio, objectivos.<br />
A realidade estratégica é reconhecida pela passagem na definição referente à associação das pessoas<br />
para realizarem interesses, quer comuns quer particulares; quer altruístas quer egoístas.<br />
A sociedade civil desenvolve-se num ambiente agónico, ou seja, um ambiente frequentemente<br />
conflitual e/ou competitivo. O ambiente agónico da sociedade civil confere à missão e acção<br />
das organizações da sociedade civil uma natureza estratégica, no sentido de estratégia entendida<br />
como “… busca incessante da vantagem e do sucesso em contextos conflituais ou competitivos”<br />
(Abreu, 2004: 69; Fernandes, 2004: 19).<br />
Sem reconhecer a natureza agónica da realidade estratégica da sociedade civil, dificilmente se pode<br />
entender por que a definição da CIVICUS, aplicada na pesquisa sobre o Índice da Sociedade Civil<br />
56 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
(ISC) 2007 (Francisco et al., 2008), acabou por se revelar contra-intuitiva, para certos activistas e inquiridos.<br />
Sobretudo os activistas de distritos fora da Cidade de Maputo foram peremptórios, no seu<br />
questionamento à opção da CIVICUS em incluir os partidos políticos na sua definição de sociedade<br />
civil, independentemente da sua posição no quadro da luta pelo poder e controlo do Estado. Na opinião<br />
de tais activistas, a Frelimo e a Renamo, ao fazerem parte do Parlamento, pertencem mais ao<br />
poder político e do Estado do que à sociedade civil. 9 De igual modo, a opção por se incluir na pesquisa<br />
sobre sociedade civil organizações que defendem posições intolerantes, incluindo xenófobas<br />
e o recurso à violência; ou organizações anárquicas, defensoras de causas excêntricas, ou actuando<br />
secreta e ilegalmente, tem também suscitado controvérsias. Resulta, daqui, uma certa tensão entre<br />
uma perspectiva normativa (uma noção teleológica de virtude da sociedade civil), por um lado, e<br />
uma perspectiva reflexiva e autónoma do normativismo formalmente estabelecido, por outro. Esta<br />
tensão é reconhecida pela literatura, tanto directamente sobre a sociedade civil, como sobre as feições<br />
da sociedade em geral (Hayek, 1976; Ottaway and Carothers, 2000: 9-11; Soros, 2008).<br />
A tendência de se restringir a sociedade civil ao seu domínio formal e legalmente constituído<br />
ou, ainda, ao grupo mais restrito de organizações politicamente mais activas é ainda outra expressão<br />
do não reconhecimento do conteúdo e substância da realidade estratégica da sociedade<br />
civil. Por isso aparecem imagens mais ou menos sarcásticas dos representantes da sociedade civil<br />
em algumas caricaturas, uma vez que eles são vistos como pequeno grupo de activistas, predominantemente<br />
urbanos ou estrangeiros, ou um grupo de activistas, militantes ou voluntaristas,<br />
especializados em retiros ou outdoors, realizados nos melhores hotéis das principais cidades,<br />
ou nas estâncias das mais belas praias moçambicanas.<br />
Não obstante o seu carácter exagerado, tais percepções não surgem do acaso. Parte das OSC<br />
urbanas, as mais visíveis e com mais acesso a recursos financeiros, desperdiçam enormes energias<br />
em seminários e workshops, dando a impressão que só existem para legitimar e avaliar as<br />
políticas implementadas, sobre os mais variados temas em voga – dívida externa, epidemia do<br />
HIV-sida, pobreza absoluta, empowerment da mulher, grupos desfavorecidos, meio ambiente,<br />
para citar apenas alguns dos temas mais apelativos - sem, de facto, se preocuparem com a realidade<br />
vivida pelo povo moçambicano. A má reputação das OSC deriva também da percepção<br />
de certos activistas, convencidos de que o sucesso é facilmente conquistado se exibirem ou agirem<br />
em função das aparências, em vez de agirem e interagirem com os cidadãos.<br />
A sociedade civil congrega vontades diferentes ou mesmo antagónicas, conflito de interesses que<br />
entram em choque, percepções diferentes, incluindo sobre o papel do individualismo, reduzido<br />
por uns à sua conotação negativa, de mero egoísmo, enquanto outros consideram-no pelo seu<br />
valor eminentemente criativo e inovador. Sem se reconhecer explicitamente que a própria sociedade<br />
civil é simultaneamente palco de interesses cooperativos, mas também concorrenciais<br />
e incompatíveis, dificilmente se poderá analisar a dinâmica da sociedade civil moçambicana,<br />
compreender a forma e as razões de certas OSC agirem em função de interesses particulares<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 57
(lobbies políticos, económicos ou religiosos). O clientismo e uso abusivo das agendas das OSC<br />
derivam da natureza agónica da realidade social.<br />
COMPOSIÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL: DOIS EIXOS E QUATRO DIMENSÕES<br />
Para melhor estruturação da análise do estado e dinâmica da sociedade civil moçambicana, a partir<br />
da definição de referência, operacionalizam-se quatro dimensões básicas, representadas graficamente<br />
na Figura 2, em dois eixos principais: o eixo estrutura-ambiente e o eixo valores-impacto. Estes<br />
dos eixos inspiram-se na abordagem metodológica usada pela CIVICUS (Heinrich, 2004, 2007).<br />
FIGURA 2 COMPOSIÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL: DOIS EIXOS E QUATRO DIMENSÕES INSTITUCIONAIS<br />
ESTRUTURA<br />
Valores Contempla os princípios<br />
e valores a que a sociedade civil<br />
adere, pratica e promove.<br />
(Nível de integridade e competência)<br />
VALORES<br />
Ambiente Factores institucionais<br />
(políticos, económicos, culturais<br />
e morais) que contribuem para<br />
uma fraca ou forte sociedade civil<br />
(Nível das infra-estruturas e das organizações)<br />
Estrutura Engloba a composição,<br />
relações e actores dentro da arena<br />
da sociedade civil<br />
(Nível de transparência organizacional)<br />
IMPACTO<br />
Impacto: O impacto que os actores da<br />
sociedade civil têm sobre a vida das<br />
pessoas e da sociedade em geral.<br />
(Nível de resultados e de confiança)<br />
AMBIENTE<br />
FONTE Heinrich, 2004: 22-26<br />
ESTRUTURA E AMBIENTE DA SOCIEDADE CIVIL<br />
O eixo estrutura-ambiente relaciona a composição e relação de interdependência entre a estrutura<br />
e o ambiente contextual, no qual a sociedade civil existe e funciona. As duas dimensões dependem<br />
directamente dos incentivos que determinam se o crescimento/desenvolvimento ocorre<br />
ou não. Isto depende menos da sociedade civil do que pode à primeira vista parecer.<br />
A teoria ou fraqueza da SC é directamente proporcional à natureza das instituições sociais. Se<br />
as instituições da sociedade forem favoráveis ao crescimento económico e desenvolvimento<br />
humano, a SC será influenciada positivamente, através de mecanismos institucionais (políticos,<br />
económicos e financeiros): poupança e investimento interno, intermediação financeira, comércio<br />
internacional, investimento externo, investimento em capital humano, inovação e investigação<br />
e valorização da criatividade individual e empresarial. Em contrapartida, se as<br />
instituições favorecerem o crescimento desequilibrado, nomeadamente a transferência da renda<br />
em detrimento da produção e criação de riqueza, o desperdício ou mesmo a destruição, a SC<br />
será inevitavelmente afectada de modo negativo (Acemoglu et al., 2001, 2003; Francisco, 2005c;<br />
2007a, 2007c, 2007b; Hayek, 1976; Hodges e Tibana, 2005).<br />
58 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
VALORES E IMPACTO DA SOCIEDADE CIVIL<br />
O eixo valores-impacto relaciona o conjunto de atributos e princípios determinantes da credibilidade<br />
e confiança perante os cidadãos nacionais e a comunidade internacional. Neste contexto,<br />
duas forças são particularmente relevantes, em termos das suas implicações de longo<br />
alcance e impacto na dinâmica da sociedade civil: carácter e competência.<br />
A partir dos dois eixos, acima identificados, é possível explicitar e distinguir, por um lado, a<br />
parte da fraqueza e limitações da SC resultantes das esferas institucionais e do contexto em que<br />
ela se desenvolve (infra-estruturas e transparência organizacional); por outro lado, a parte da<br />
fraqueza e limitações da SC, determinada por factores expressos através da confiança (integridade<br />
e competência) que inspira na sociedade em geral.<br />
VERDADE E INTERESSE, TRANSPARÊNCIA E CONFIANÇA<br />
O ambiente agónico e a realidade estratégica em que a sociedade civil se desenvolve fazem<br />
com que a percepção das expectativas e do mundo em que se vive sejam fortemente reflexivas,<br />
no sentido atribuído por Soros (2008: 35): falta de correspondência entre os pontos de vista dos<br />
participantes e o verdadeiro estado da situação da realidade.<br />
Não é de modo algum auto-evidente porque é que a procura da verdade deve ter precedência<br />
sobre a conveniência dos interesses individuais, alcançáveis, por exemplo, através do poder,<br />
político e económico. Mesmo se os cidadãos estivessem convencidos de que a verdade deve<br />
orientar a conveniência de interesses, nem sempre é fácil manter honestos e responsáveis os políticos<br />
e empresários. Tal como defende Soros (2008: 83), a reflexividade determina tanto o<br />
conhecimento como o entendimento disponível. Neste texto recorre-se a algumas das ideias e<br />
princípios instrumentais, em torno de dois conceitos operacionais importantes: transparência<br />
e confiança (Covey, 2005; Covey, 2006; Collins, 2006, 2007; Tapscott e Ticoll, 2005).<br />
A FORÇA DA TRANSPARÊNCIA<br />
Uma antiga força com novo poder vem surgindo, não só nos negócios lucrativos como também nas<br />
actividades públicas e sem fins lucrativos. Esta força é a transparência, entendida como a acessibilidade<br />
às informações institucionais referentes a assuntos que afectam os interesses das OSC e dos seus<br />
membros, por parte do público ou de outras organizações (Tapscott e Ticoll, 2005: 22-23). Assim<br />
definida, a transparência vai muito além da obrigação de revelar informações financeiras básicas,<br />
por razões legais ou puramente éticas, convertendo-se numa força compensadora, em termos de credibilidade,<br />
estima e benefícios económicos (Covey, 2005; Covey, 2006; Tapscott e Ticoll, 2005: xi).<br />
A VELOCIDADE DA CONFIANÇA<br />
Três séculos antes de Cristo, como sublinha Tapscott e Ticoll (2005: 81), já Aristóteles afirmava que<br />
o ethos, a confiança depositada em um orador pelo ouvinte, dependia da percepção de três<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 59
elementos: a exactidão das opiniões, o carácter (confiabilidade, competência e honestidade) e a boa<br />
vontade (intenções benévolas em relação ao ouvinte). Mais de dois mil milénios depois, as palavras<br />
do grande filósofo continuam inteiramente actuais e válidas: “A confiança é a expectativa de<br />
que os outros serão honestamente responsáveis, atenciosos e abertos.” (Tapscott e Ticoll, 2005: 81)<br />
Covey identificou dois princípios (velocidade e custo), com implicações directas para a produtividade<br />
económica e a eficiência da sociedade em geral; mais do que leis económicas, são princípios<br />
de excelência, na perspectiva elaborada por Collins (2006, 2007). Expressando os<br />
referidos princípios em fórmulas simples, como sugere Covey, a confiança pode relacionar-se,<br />
através de expressões tangíveis e quantificáveis, com os dois factores determinantes dos resultados<br />
(velocidade e custo):<br />
<<br />
<<br />
Confiança = Velocidade e Custo<br />
<<br />
Confiança = Velocidade e Custo<br />
<<br />
<<br />
<<br />
Quando aumenta a confiança, aumenta a velocidade e diminuiu o custo das relações. Quando<br />
diminui ou desaparece por completo a confiança, diminui a velocidade e aumenta o custo das<br />
acções e relações. Assim, a confiança actua como um factor (aparentemente oculto) que faz<br />
enorme diferença, para bem ou para mal, um factor com efeito quer acelerador ou mesmo multiplicador,<br />
quer redutor ou retardador da confiança.<br />
Que nível de confiança desfruta a sociedade civil moçambicana? A resposta, a esta questão<br />
dificilmente pode ser única. Na terceira secção, este assunto será retomado para responder à<br />
interrogação aqui colocada.<br />
ANTECEDENTES E CONTEXTO HISTÓRICO<br />
Moçambique, entendido como Estado moderno, nasceu na última década do século XIX, reflectindo<br />
a evolução histórica da sua região, repleta de longas e conturbadas disputas fronteiriças,<br />
de complexos diálogos entre tendências centralizadoras e descentralizadoras, quer com o<br />
seu epicentro na Europa quer na região da África Austral. Foi em 28 de Maio de 1891 que se<br />
consumou o tratado entre a Grã-Bretanha e Portugal, que estabeleceu a configuração geográfica<br />
do território, desde então conhecido por Moçambique. Deste facto decorreu também a definição<br />
da composição da população moçambicana, incluindo a sua composição demográfica,<br />
dinâmica reprodutiva e grande diversidade étnica e linguística (Fly, 2001; Matos, 1965: 35-55;<br />
Newitt, 1997: 291-342; Pélissier, 2000: 144).<br />
Foram precisos 84 anos para que Moçambique se tornasse independente da administração<br />
colonial portuguesa. A independência nacional, proclamada em 1975, permitiu que os outros<br />
60 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
dois elementos, do Estado-nação (Governo e Bem Comum) deixassem de ser definidos à<br />
imagem e semelhança, ou em função, por um lado, de uma identidade estrangeira e além-mar<br />
e, por outro, do quadro social discriminatório laboral e fiscal que entraram em vigor na<br />
década de 1890 discriminando entre indígenas e não-indígenas (também referidos como os<br />
civilizados), que só seria revogado em 1961 (Mouzinho, 2000; Newitt, 1997: 384-386; Souto,<br />
2007: 101). 10<br />
Lendo a generalidade das análises, nos discursos políticos e mesmo trabalhos académicos recentes,<br />
fica-se com a impressão de que o nascimento de Moçambique, como país, não passou<br />
de um acidente irrelevante e casual. Ao confundir-se o nascimento do Estado soberano com<br />
o nascimento de Moçambique, as novas gerações podem ficar com a ideia que o estabelecimento,<br />
em finais do século XIX, dos elementos constitutivos do Estado-nação (território e<br />
povo) é irrelevante.<br />
TABELA 1 BREVE CRONOLOGIA DA SOCIEDADE CIVIL MOÇAMBICANA<br />
1868 Surge primeiro jornal não oficial – O Progresso<br />
1891 NASCIMENTO DE MOÇAMBIQUE<br />
Estabelecimento das fronteiras que configuram o território do país<br />
e a composição demográfica da população moçambicana<br />
1899 Várias organizações associativas surgem no fim da Monarquia portuguesa<br />
1909 João Albasini funda O Africano, publicado em português e ronga<br />
1910 INÍCIO DA REPÚBLICA PORTUGUESA<br />
1911 Tentativa de criação da União Africana dos Trabalhadores (UAT) em Lourenço Marques<br />
1917 Revolta do Báruè; portaria diferencia “indígenas” de “não-indígenas”<br />
1918 Surge O Brado Africano, de João e José Albasini, patrocinado pelo Grémio Africano de Lourenço Marques<br />
1925 No orçamento de Moçambique, atribuídos sete mil contos às Missões Católicas.<br />
1926 REVOLUÇÃO MILITAR 28 DE MAIO – CONSTITUIÇÃO DE 1911 SUSPENSA, DISSOLUÇÃO DO PARLAMENTO<br />
E GOVERNO DE DITADURA<br />
1933 “Estado Novo” - doutrinário, corporativista, antiparlamentar; um Chefe de Estado e Governo, independentes do<br />
poder legislativo. Surgimento de organismos corporativos morais, culturais e económicos, em reacção ao regime de<br />
partido único colonial<br />
1941 Desabrochar do movimento literário – poeta Rui de Noronha, Noémia de Sousa, José Craveirinha, entre outros<br />
1949 Fundação do NESAM (Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos de Moçambique)<br />
1962 Fundação da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO)<br />
1964 Início da luta armada em 25 de Setembro<br />
1972 Domingos Arouca declarado “Preso Político do Ano”<br />
1974 Golpe de Estado de 25 de Abril na Metrópole Colonial<br />
Acordo de Lusaka em 7 de Setembro de 1974<br />
1975 INDEPENDÊNCIA DE MOÇAMBIQUE – REPÚBLICA POPULAR DE MOÇAMBIQUE – 1. a REPÚBLICA<br />
Surgem Organizações Democráticas de Massas (ODMs) no contexto de um regime de partido único<br />
1989 Greve estudantil na Universidade Eduardo Mondlane<br />
1990 INÍCIO DA 2. a REPÚBLICA – ESTADO DE DIREITO<br />
Processo multipartidário, liberdade de expressão e associação.<br />
1992 Acordo de Paz, fim da guerra que durou 16 anos<br />
1994 Primeiras eleições gerais multipartidárias, presidenciais e legislativas<br />
1998 Primeiras eleições municipais para 33 municípios, abrangendo menos de um quarto da população<br />
em idade de votar<br />
FONTE Serra, 2000; Newii, 1997; Rocha, 2002; Sopa et al., 2006<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 61
Os discursos políticos oficiais mostram sérias dificuldades em se reconciliar com o passado,<br />
tanto o passado mais remoto como o mais recente. Foi aceite uma vasta gama de elementos e<br />
atributos estabelecidos na luta entre a consolidação do Estado Novo e afirmação de uma moçambicanidade<br />
independente. Foi apropriada, por exemplo, a língua do colonizador (o Português),<br />
da máquina administrativa pública estabelecida em todo o território nacional; de uma<br />
parte significativa do legado judicial e da simbologia estabelecida pelas autoridades portuguesas,<br />
como por exemplo as datas celebrativas da conversão das principais cidades provinciais<br />
e distritais, durante o período colonial.<br />
Em contrapartida, como escreveu algures Mia Couto, em vez de escangalhar o Aparelho de<br />
Estado Colonial, como se proclamava repetidamente nos primeiros anos de independência,<br />
escangalhou-se o estado do Aparelho. Não existe uma avaliação sistemática e abrangente do<br />
impacto destas mudanças radicais políticas na sociedade civil.<br />
O ponto relevante, aqui, não é tanto a ficção do ideário e mítico, como por exemplo o que foi<br />
elaborado por Craveirinha, no seu poema intitulado “Poema do futuro cidadão”. Quando se<br />
observa, com crescente frequência, mesmo estudantes universitários, na fase final dos seus cursos<br />
superiores, convencidos que Moçambique nasceu em 1975; ou convencidos que grande<br />
parte da “cidade de cimento”, na Capital de Moçambique e outras cidades provinciais, foi construída<br />
depois de os colonos terem abandonado o país; estamos perante um elevado grau de<br />
ignorância do legado histórico, que nada tem que ver com ficção artística ou poética. Perante<br />
ignorância tão básica, percebe-se que o reconhecimento da experiência das organizações da sociedade<br />
civil, no Moçambique colonial, seja considerado gratuito e irrelevante para as organizações<br />
contemporâneas. Mas se isso é aceite, relativamente ao passado remoto, o mesmo acaba<br />
por acontecer em relação ao próprio passado recente.<br />
Tal como se sublinha na introdução, a evolução histórica da SCM é mais rica do que as análises<br />
contemporâneas têm reconhecido, ao circunscreverem-se ao período pós-1975. Ao longo<br />
de quase um século, dependendo dos processos institucionais, políticos e socioeconómicos, a<br />
sociedade civil moçambicana tem desenvolvido feições, dinâmicas e processos diversos, nuns<br />
períodos mais expansivos noutros mais regressivos.<br />
Não é possível reconstruir estatisticamente a evolução histórica de longo prazo, mas a representação<br />
ilustrada pelos Gráficos 1 e 2 na Figura 3 capta parte significativa da evolução da sociedade<br />
civil formal, representada pelas organizações abrangidas pelo censo do INE (2006), às organizações<br />
sem fins lucrativos. Cerca de um quarto das organizações recenseadas em 2004/05 nasceram<br />
antes da independência, com destaque para as associações religiosas. Após a independência<br />
observa-se uma quebra drástica das associações religiosas e a inexistência de ONGs, nacionais ou<br />
estrangeiras. Mais de 40% das associações nasceram após o início da 2.ª República, sobretudo<br />
depois do Acordo de Paz de 1992 e das primeiras eleições gerais multipartidárias em 1994.<br />
62 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
FIGURA 3A ORGANIZAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS E PERÍODO DE NASCIMENTO, MOÇAMBIQUE 2004/2005<br />
Número de osc<br />
900<br />
800<br />
700<br />
600<br />
500<br />
400<br />
300<br />
200<br />
100<br />
0<br />
691<br />
703<br />
350<br />
230<br />
257<br />
170<br />
13<br />
15<br />
61<br />
4 7 26<br />
ANTES DE 1974 “1974-1983 “1984-1993<br />
“1994-2003<br />
ASSOCIAÇÕES<br />
RELIGIOSAS; 846<br />
ASSOCIAÇÕES<br />
POLÍTICAS; 567<br />
ONGs ESTRANGEIRAS; 99<br />
ASSOCIAÇÕES<br />
EDUCACIONAIS; 5<br />
FONTE INE, 2006: 98<br />
PERÍODO DE NASCIMENTO DA OSC<br />
FIGURA 3B ORGANIZAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS, SEGUNDO PERÍODO DE CONSTITUIÇÃO, MOÇAMBIQUE 2004/05<br />
Antes de 1974<br />
21%<br />
1994-2003<br />
40%<br />
1974-1983<br />
14%<br />
1984-1993<br />
25%<br />
FONTE INE, 2006: 98<br />
N. o de Organizações 4457<br />
O que é que o passado remoto tem que ver com o actual estado da sociedade civil, nomeadamente<br />
suas perspectivas e desafios futuros? Existem várias hipóteses explicativas. Não sendo este<br />
o espaço apropriado para aprofundar exaustivamente as hipóteses explicativas mais importantes,<br />
opta-se por destacar algumas das hipóteses que podem, de imediato, ser ilustradas com<br />
recurso à informação reunida neste texto.<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 63
ENTERRAR O PASSADO E FALSIFICAR O PRESENTE<br />
Segundo Coetzee (2007: 9), existe em certas representações da mentalidade africana a ideia de<br />
que a partir da sétima geração já não se consegue fazer a distinção entre história e mito. Se isso<br />
é verdade, na sua generalidade, o mesmo não se pode dizer do que se passa na mentalidade moçambicana<br />
contemporânea, incluindo no tocante à evolução histórica sobre a SCM.<br />
Aqui, a confusão entre história e mito parece ter começado prematuramente, logo na primeira geração<br />
do Estado Soberano, criado em 1975. Recentemente, Couto (2007) deixou escapar um certo descon -<br />
forto pela forma como o passado e o presente têm sido geridos, o qual inspirou o título desta secção:<br />
Vivemos num mundo em que grande parte da nossa energia é usada para enterrar o passado e<br />
falsificar o presente. Estamos doentes da nossa relação com o tempo e estamos todos nós construindo<br />
um passado cheio de esquecimento. Fugimos da lembrança da guerra, das feridas não<br />
cicatrizadas que podem abalar a imagem de um presente que sabemos frágil (Couto, 2007). 11<br />
A despeito dos testemunhos históricos tornados públicos pelos historiadores contemporâneos<br />
(Serra, 2000; Newitt, 1997; Pélissier, 2002), uma razão superior às evidências empíricas tem<br />
levado certos intelectuais e políticos influentes a perpetuarem o mito de que Moçambique nasceu<br />
em 1975. Incluindo alguns dos políticos que viveram parte da sua juventude no Moçambique<br />
colonial, por alguma razão acharam conveniente investir na imagem de um Moçambique<br />
que se diz ter nascido com o Estado Soberano, como se não pertencessem ao Moçambique<br />
estabelecido em finais do século XIX.<br />
Tal como escreveram Meneses e Ribeiro, a “invenção” do Moçambique actual em finais do<br />
século XIX representou uma ruptura significativa com um conjunto de representações e percepções<br />
identitárias anteriores ao nascimento de Moçambique, tal como passou a ser conhecido.<br />
A partir de então a (re)construção desta região passou a ser moldada pela “imaginação<br />
colonial portuguesa”, alienada “das complexidades do local e da história local”:<br />
“Que silêncios e omissões estão contidos na transformação de um lugar – ilha-capital de uma<br />
colónia – em fantasia de um território que Portugal obtém, pela força das armas e da cartografia<br />
moderna, aquando da partilha de África, na conferência de Berlim (1884-85)?”<br />
(Meneses e Ribeiro, 2008: 9)<br />
DESVALORIZAR O PASSADO ENSINA A ESCAMOTEAR O PRESENTE<br />
Segundo Almeida (1965), referindo-se a um inquérito promovido pelo Governo Português em 1936<br />
sobre a escravidão, escravatura e servidão doméstica, que visava verificar a existência ou não destas<br />
formas de incapacidade jurídica, até à completa ocupação de Moçambique, na última década do século<br />
XIX, os chamados indígenas, distinguiam-se entre si em pelo menos duas classes: 1) a classe<br />
das pessoas livres; por exemplo, a sul do rio Save, esta classe reunia senhores e líderes comunitários:<br />
régulos, indunas, conselheiros, secretários, chefes de povoação, comandantes do exército, guerrei-<br />
64 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
os e a restante população não pertencente à classe servil, com suas famílias; e 2) a classe das pessoas<br />
servis, abrangendo os escravos ou servos, incluindo prisioneiros de guerra intertribais ou interclânica,<br />
indivíduos capturados por vários motivos, como assassínio, roubo, dívidas, entre outros.<br />
As práticas esclavagistas, incluindo as formas domésticas, acabariam por ser extintas pela<br />
administração colonial, mas foram, logo de seguida, substituídas por outras formas de discriminação<br />
social e racial e de servidão humilhante, incluindo as culturas obrigatórias e o trabalho forçado<br />
(Almeida, 1965; Isaacman e Isaacman, 2006; Newitt, 1997; Serra, 2000; Silva, 2003: 434-435). 12<br />
Só em 1961 é que o Estado Novo português aboliu o Estatuto dos Indígenas, tendo declarado<br />
todos os habitantes nativos como cidadãos portugueses de pleno direito (Mondlane, 1977: 38).<br />
Tal mudança resultou, em grande medida, da contestação dos nacionalistas emergentes, em<br />
afirmações individuais ou associativas; através da imprensa, da poesia e de outras expressões<br />
emancipalistas africanas, com particular destaque para a que ficou conhecida por Pan-Africanismo<br />
(Serra, 2000: 432-456; Silva, 2003).<br />
A discriminação racial era ainda tão activa, nos anos 50, que a chamada Associação dos Naturais<br />
de Moçambique considerava como naturais de Moçambique apenas os brancos nascidos<br />
no território moçambicano. Os negros e mulatos, apesar de nascidos e naturais de Moçambique,<br />
eram excluídos da categoria “naturais”. 13<br />
SOCIEDADE CIVIL PORTADORA DE DEFICIÊNCIA E AMNÉSIA<br />
A secção “Evolução histórica” da “Sociedade Civil”, no livro da OSISA (2009a), afirma: “No período<br />
do partido único, a participação da sociedade civil estava coarctada por vários constrangimentos inerentes<br />
ao próprio regime político.” (OSISA, 2009a: 73) O recurso ao termo “coarctada” é, em si, um curioso<br />
vestígio do refúgio na linguagem eufemística em que os analistas se têm refugiado nas suas análises. 14<br />
Nenhuma referência — nem uma simples frase ou palavra, já que se trata de uma brevíssima<br />
retrospectiva – é feita aos antecedentes históricos da sociedade civil, cobrindo mais de oito<br />
décadas, entre o nascimento de Moçambique e o nascimento do novo Estado Soberano, em 1975. Será<br />
isto normal? Se não, como se entende esta persistente opção por se enterrar o passado histórico remoto?<br />
Mesmo sabendo não haver aqui espaço para aprofundar, algumas hipóteses explicativas possíveis.<br />
A opção pelo mito do nascimento de Moçambique em 1975 tem poupado certos analistas<br />
influentes do inconveniente político que teriam de enfrentar se optassem por uma postura intelectual<br />
consistente com o passado e menos refém da retórica politicamente correcta dominante. Nem que<br />
seja por uma questão de comodismo intelectual, acaba por ficar mais fácil tratar o período do Moçambique<br />
colonial como uma espécie de pré-história da historiografia do partido hegemónico. Esta<br />
é uma explicação plausível para a opção amnésica revelada, por exemplo, no livro da OSISA (2009a).<br />
Uma segunda hipótese, certamente mais controversa, poderá estar por detrás da desvalorização<br />
da experiência da sociedade civil no Moçambique colonial. As pessoas que acabaram por se tornarem<br />
líderes proeminentes, no período posterior à independência, eram originárias das elites<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 65
urbanizadas, geralmente as elites que mais oportunidades tiveram de adquirir habilitações literárias<br />
e consciência política. Ainda na primeira década da 1.ª República portuguesa, iniciada em<br />
Outubro de 1910, surgiram movimentos cívicos e organizações associativas em reacção ao ambiente<br />
social claramente discriminatório, no quadro das três classes de cidadãos principais: colonos<br />
(com plenos direitos de cidadania), assimilados (com direitos de cidadania restritos) e<br />
indígenas (sem direitos de cidadania). “As organizações associativas mais importantes em Moçambique”,<br />
escreveu Serra (2000: 442), “aparecem nos [sic.] últimos anos da monarquia portuguesa. São<br />
(…) os assimilados e mulatos a lançarem-se nestas iniciativas. A primeira foi o Grémio Africano<br />
de Lourenço Marques, fundado em 1908.” Referindo-se à origem do nacionalismo, Eduardo<br />
Mondlane (1975), primeiro presidente da Frelimo escreveu no seu livro Lutar por Moçambique:<br />
As condições eram desfavoráveis à expansão das ideias nacionalistas por todo o país. Por causa da<br />
proibição de associação política, da necessidade de segredo imposta por esta proibição, da erosão<br />
da sociedade tradicional e da falta de educação moderna nas áreas rurais, foi só entre uma minoria<br />
diminuta que ao princípio se desenvolveu a ideia de acção nacional em contraposição com<br />
acção local. Esta minoria era predominantemente urbana, composta de intelectuais e assalariados,<br />
indivíduos essencialmente desenraizados do sistema tribal, na sua maioria africanos assimilados<br />
e mulatos; por outras palavras, um pequeno sector marginal da população. (Mondlane, 1977: 11)<br />
Foi da minoria predominantemente urbana, para usar a expressão de Mondlane, que emergiram<br />
os futuros líderes políticos, nas décadas mais repressivas do Estado Novo de Salazar; líderes<br />
reformistas e, eventualmente, os líderes mais radicais e extremistas, que acabariam por<br />
conduzir os destinos da Frelimo.<br />
Será preciso investigar melhor (se tal for possível) para determinar se a opção pelo radicalismo<br />
não terá sido uma forma de encobrir a origem assimilada, no período colonial. Os assimilados<br />
eram discriminados e preteridos (profissional e socialmente) pelos brancos de primeira (nascidos<br />
na metrópole) e de segunda (nascidos em Moçambique), para funções subalternas na<br />
administração e mercado colonial (Newitt, 1997: 386). Como demonstram os testemunhos históricos,<br />
a generalidade dos nacionalistas e independentistas, predominantemente mulatos e<br />
negros assimilados urbanizados, desejavam o fim do regime colonial, mas não eram revolucionários<br />
extremistas. Eram, à semelhança de outros intelectuais e políticos africanos no período<br />
pré-independência, defensores de mudanças reformistas do sistema, contra a discriminação<br />
política e social dos assimilados e sobretudo dos chamados indígenas.<br />
NEOMOÇAMBICANO: HESITAÇÃO ENTRE SER PIOR OU PÉSSIMO 15<br />
Os acontecimentos contemporâneos diferem dos históricos, como escreveu Hayek (1990: 30),<br />
porque desconhecemos os resultados que irão produzir. Os acontecimentos observados nas<br />
66 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
duas últimas décadas, se bem que recentes relativamente aos mais antigos, representam o passado<br />
recente da sociedade civil contemporânea. Até às reformas do sistema político e jurídico,<br />
introduzidas pela Constituição da República de 1990, a sociedade civil formal moçambicana<br />
ficou circunscrita e dominada pelas chamadas Organizações Democráticas de Massas (ODM),<br />
incluindo a Organização da Juventude Moçambicana (OJM), Organização da Mulher Moçambicana<br />
(OMM), sindicatos dos trabalhadores, entre outras. As ODM assumiam-se como os<br />
“braços” do partido Frelimo, sendo por ele totalmente instrumentalizadas e profundamente<br />
alienadas da diversidade de interesses dos grupos que diziam representar. 16<br />
Não havendo espaço para analisar mais extensivamente, do que pode ser inferido pelo que já foi<br />
escrito sobre os méritos e deméritos das OSC que emergiram na 1.ª República, pelo menos um<br />
aspecto bem presente na literatura de ficção e analítica merece ser sublinhado. Tem que ver com<br />
o crescente empobrecimento intelectual e cultural que se apoderou da mentalidade que se tornou<br />
dominante na sociedade moçambicana; a mentalidade da nova elite, intelectual e culturalmente<br />
empobrecida. O vazio cultural e ético em que assentava a moral revolucionária, ao qual já foram<br />
feitas referências neste texto, é consistente com uma certa necessidade de desvalorização da experiência<br />
(artística, literária, desportiva e musical) da sociedade civil do período colonial. Vendo<br />
à distância, torna-se agora mais fácil perceber que o radicalismo contra os valores burgueses e tradicionais<br />
poderá ter sido a forma encontrada para ganhar uma supremacia em torno do ideário<br />
do modelo do Homem Novo. Um ideário que não tardou em mostrar-se totalmente desajustado<br />
da realidade moçambicana, incapaz de oferecer uma moralidade mais nobre e virtuosa do que os<br />
chamados valores da sociedade velha, e por isso, potencialmente inviável, a longo prazo.<br />
“UMA POPULAÇÃO QUE NÃO FALA NÃO É UM RISCO?”<br />
Ao rever as reflexões de alguns dos principais expoentes da literatura e da intelectualidade<br />
moçambicana nos últimos anos da sua vida, nota-se o sentimento de tristeza e amargura com<br />
o neo-moçambicano, para usar o título de um dos poemas de Craveirinha.<br />
Três exemplos apenas são suficientes para ilustrar este ponto. Ao longo dos anos de independência,<br />
o poeta José Craveirinha manteve a sua dignidade irreverente, em poemas como “Saborosas<br />
tangerinas de Inhambane”, com a sua crítica ao aparelho do sistema – “Uma população<br />
que não fala não é um risco?”, questionava o poeta – “… e com a incompreensão façam lá nascer<br />
a ternura/ o amor e a paz se são capazes!” 17 Craveirinha questionava ainda a tendência<br />
excludente das recentes afirmações de moçambicanidade:<br />
… de que nós somos um povo bantu … Há tantos moçambicanos que não são bantus! Quando impõem<br />
isso, uma pessoa sente-se excluída. Estão a brincar com a ciência! Há toda uma série de factores<br />
que concorrem para que um cidadão seja um cidadão fiel, verdadeiro e não ser bantu.<br />
(Craveirinha, in Laban, 1989: 128)<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 67
Um dos poemas mais contundentes na crítica ao tipo de carácter da moçambicanidade intitula-<br />
-se “Neomoçambicano”: “Hoje um neo-moçambicano / Não passa de um ignaro subterfúgio/<br />
/Da nossa moçambicana incivilidade // Hesitação / Entre ser pior ou péssimo / Da nossa<br />
extemporânea / Filosofia de quem sabe pouco / E julga escamotear no descaro/ A urbanidade<br />
que lhe / escasseia; // Daí que eu e o meu amigo Sitói de pixotas em punho / Desarborizamos<br />
a mijo as artérias da cidade (Craveirinha, in Naguib, 2008: 25).<br />
CUSTO E BENEFÍCIO DO RADICALISMO<br />
O jornalista e ficcionista Aníbal Aleluia recordou, numa entrevista de 1992: “Com a ressalva de<br />
estar independente, para mim quase que nada mudou. O que mudou foi para pior.” Ainda Aleluia:<br />
“O que custou à Nação a afectação inconsiderada de certa gente mostra-o o caos total que<br />
instalou na vida de todos nós. Do regime que se está a ultrapassar só conservo uma lembrança<br />
penosa. Mas existe no establishment alguém a quem devo estar ainda vivo: Marcelino dos Santos.”<br />
(Aleluia, in Laban, 1989: 34) 18<br />
LIQUIDAR O PRESENTE, EM NOME DE UM PROGRESSO SEMPRE FUTURO<br />
O escritor Calane da Silva afirmou em 1992: “Há muita gente que tem medo de recordar-se da<br />
sua própria infância, ou até não quer mostrar, de tão violenta que ela foi – até pode não ter sido<br />
violenta, pode ter sido agradável – mas não conta que foi agradável, esconde.” A seguinte passagem,<br />
ainda de Calane da Silva, é particularmente reveladora para se entender as contradições<br />
do carácter da mentalidade neomoçambicana:<br />
… fui jornalista sempre crítico, tive problemas com a PIDE no tempo colonial e tive problemas com<br />
o SNASP no tempo da Frelimo! … havia coisas tão extremamente injustas que eu não podia ficar<br />
calado … sobre as crianças instrumentalizadas … se é a Frelimo, se é a Renamo … eu sei que aquilo<br />
aconteceu, não sei quem o comandou, mas de facto aquilo aconteceu … Não admito uma coisa daquelas,<br />
aquilo é um barbarismo tremendo. Assim como fuzilar … O fuzilamento do Estado, também<br />
não concordo, acho que não é assim, portanto manifesto … Aqui havia uma censura oficial, no tempo<br />
colonial; depois da Independência houve uma espécie de autocensura ideológica … porque estavam<br />
convencidos que eram uns grandes marxistas-leninistas! Em nome de um progresso, em nome de uma<br />
futura nação – sempre o futuro – liquidavam o presente! (da Silva, Laban, 1989: 783-784) 19<br />
O escamoteamento e falsificação do passado mina a maturidade do carácter e dignidade da sociedade<br />
em geral, e da sociedade civil, em particular. De geração em geração, a sociedade civil<br />
é forçada a renascer do nada. Este, entre outras questões sublinhadas na secção anterior, serve<br />
de referência para reflexão sobre as mudanças ocorridas ao longo do tempo. Revisitando o passado<br />
remoto, em vez de completamente varrê-lo das análises retrospectivas, é possível avaliar<br />
68 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
se no passado recente e no presente não estavam ainda a ocorrer expressões de escravidão,<br />
servidão doméstica, incluindo tráfico de pessoas, formas degradantes e desumanas de condições<br />
de trabalho e de vida, praticadas em várias partes de Moçambique.<br />
As mudanças positivas, após a queda do regime colonial, têm sem dúvida melhorado a vida de uma<br />
pequena parte da população. O acesso à terra, relativamente facilitado pelo facto de ser propriedade<br />
exclusiva do Estado, ou a relativa facilidade de se emigrar para procurar emprego em países<br />
vizinhos, não têm constituído opções suficientemente capazes de proporcionar trabalho sustentável<br />
e vida dignificante. Porém, após quase quatro décadas de independência da administração colonial,<br />
são ainda muitas as evidências de que Moçambique continua refém de relações de escravidão<br />
e servidão doméstica, bem como condições de trabalho e de vida indigentes e desumanas.<br />
ACTUAL SOCIEDADE CIVIL MOÇAMBICANA É FRACA: PORQUÊ?<br />
A secção anterior sublinha o impacto destrutivo da relação problemática com o passado herdado,<br />
nomeadamente em termos de enfraquecimento da maturidade da sociedade civil. Porém,<br />
a valorização ou desvalorização do passado é uma questão da inteira responsabilidade dos protagonistas,<br />
nomeadamente dos líderes da sociedade civil contemporânea. A desvalorização das<br />
iniciativas corajosas, criadoras ou inovadoras, ou o desprezo pelo sentido de justiça e de compaixão,<br />
é algo que tem que ver com o carácter da actual SCM. Só que, para se entender correctamente<br />
o papel desta dimensão da sociedade civil, é preciso situar tal dimensão no contexto<br />
mais amplo dos dois eixos principais em que se alicerça a sociedade civil (ver Figura 2).<br />
O entendimento das instituições da sociedade civil moçambicana não depende tanto da quantidade<br />
de factos acumulados, mas de se ter os conceitos, explicações e abordagens adequadas.<br />
A literatura sobre a SCM pode ser considerada mais ou menos escassa, ou mesmo deficiente,<br />
dependendo dos critérios de avaliação e dos propósitos da análise. Enquanto o conhecimento<br />
sobre o estado das OSC formais (tanto conhecimento qualitativo como quantitativo) aumentou<br />
substancialmente na última meia dúzia de anos 20 , o mesmo não pode ser dito sobre as representações<br />
e redes da sociedade civil, informais e praticamente desconhecidas, mas que são aquelas<br />
que no quotidiano são mais relevantes em termos sociais e de satisfação dos interesses comuns<br />
dos seus participantes.<br />
A QUESTÃO DA FRAQUEZA DA SOCIEDADE CIVIL MOÇAMBICANA<br />
O fraco conhecimento sobre o domínio da sociedade civil informal não justifica que o conhecimento<br />
da componente formal seja desconsiderado. Pelo contrário. Um bom conhecimento e entendimento<br />
da dinâmica da sociedade civil formal é indispensável para se encontrar caminhos<br />
realistas e efectivos para a sua crescente transformação em entidades socialmente mais relevantes.<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 69
Observando em detalhe as quatro dimensões da sociedade civil (Figura 2), é possível identificar e<br />
qualificar cada uma delas, através das suas respectivas variáveis (a Caixa 1 apresenta um resumo<br />
da pontuação das principais variáveis, nas subdimensões e dimensões do ISC). De uma maneira<br />
geral, todos os estudos corroboram a ideia de que a SCM é fraca. As divergências na avaliação da<br />
fraqueza da SCM dependem dos critérios ou padrões de qualidade, das variáveis consideradas<br />
mais ou menos fracas, em oposição às variáveis consideradas mais ou menos robustas ou fortes.<br />
CAIXA 1 SUMÁRIO DA PONTUAÇÃO DAS PRINCIPAIS SUBDIMENSÕES<br />
DO ÍNDICE DA SOCIEDADE CIVIL MOÇAMBICANA EM 2007<br />
ESTRUTURA<br />
AMBIENTE<br />
VALORES<br />
IMPACTO<br />
A dimensão Estrutura contempla os actores dentro da arena da sociedade civil, suas características e relações<br />
entre eles. Avalia-se o tamanho, força e vitalidade das organizações da sociedade civil (OSC) quanto aos recursos<br />
humanos, organizacionais e financeiros. As subdimensões incluídas na estrutura, com a respectiva pontuação<br />
para a SCM são: amplitude (1,2) e profundidade (1,2) da participação cidadã; diversidade de participantes na<br />
SC (1,3); nível de organização (0,6); inter-relações dentro das OSC (1,5) e recursos (0,7). A pontuação média agregada<br />
da estrutura, referente ao ano 2007 em Moçambique, foi de 1,1 ponto. A baixa pontuação deriva sobretudo<br />
do baixo nível organizacional das OSC (0,6) e da fraca disponibilidade de recursos (0,7). Apenas uma subdimensão<br />
(inter-relações dentro das OSC) apresenta um nível mediano (1,5).<br />
O ambiente externo, no qual a SC existe e funciona, compreende indicadores como os seguintes: contexto político<br />
(1,0), liberdade e direitos (1,7), contexto socioeconómico (1,0) e sociocultural (2,0); ambiente legal (1,0), relações<br />
entre Estado e SC (0,7), Sector Privado e SC (0,8) e relações entre Doadores e SC (1,3). A pontuação média agregada,<br />
na dimensão ambiente, foi de 1,2 pontos. A SCM apresenta-se bastante fraca, nas relações com o<br />
Estado e com o sector privado. As razões da referida fraqueza são certamente diferentes. Com o Estado, a SC<br />
enfrenta dificuldades de ordem institucional, política, legal e administrativa. O quadro legal disponível é excludente<br />
e avesso, tanto às organizações informais como às estrangeiras; as OSC formais recebem apoio financeiro<br />
mínimo (menos de 5% das suas receitas totais). Do mercado, a SCM recebe o maior apoio financeiro (cerca de 70%<br />
das receitas com origem externa e 25% do mercado nacional). Todavia, sendo a economia nacional globalmente<br />
fraca e pequena, tal fraqueza afecta, directa ou indirectamente, o potencial e a capacidade de expansão da SCM.<br />
Esta dimensão abrange os valores praticados e promovidos pela sociedade civil, nomeadamente: democracia<br />
(1,0), transparência (0,7), tolerância (1,5), não-violência (1,5), equidade de género (0,7), erradicação da pobreza<br />
(2,0), sustentabilidade ambiental (1,0) e equidade na diversidade (0,8). A pontuação média agregada, na<br />
dimensão Valores, foi de 1,1 ponto. As subdimensões mais críticas são: Transparência (0,7 pontos), Equidade de<br />
Género (0,7 pontos) e Equidade na diversidade (0,8). Apenas a Erradicação da Pobreza obteve pontuação satisfatória<br />
(2 pontos).<br />
Na dimensão Impacto, como o termo sugere, avalia-se o impacto ou influência dos actores da SC na vida das pessoas<br />
e da sociedade. A SCM apresenta a seguinte pontuação: política pública (1,2), escrutínio do Estado e empresas<br />
privadas (0,5), resposta aos interesses sociais (1,0), empoderamento dos cidadãos (0,8) e resposta às<br />
necessidades sociais (1,3). A pontuação do Impacto da SCM foi de 1,0 ponto; ou seja, impacto fraco, principalmente<br />
no escrutínio e monitoria das contas e funcionamento do Estado e das empresas privadas.<br />
FONTE Francisco et al., 2008<br />
Os Gráficos 3 e 4 sintetizam o agregado de um índice composto por 80 variáveis, organizadas<br />
em quatro dimensões e 27 subdimensões (ver anexo 4: Matriz de Pontuação dos Indicadores<br />
do ISC, Francisco et al., 2008: 121). A classificação média de um, do Índice da Sociedade Civil<br />
(ISC), numa escala de 0 a 3 pontos, sugere que a SCM é fraca; zero representa ausência total,<br />
enquanto três representa disponibilidade completa do atributo ou característica avaliada.<br />
O valor médio do ISC corresponde à média aritmética das pontuações atribuídas aos 80 indi-<br />
70 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
cadores, ordenados em quatro dimensões: estrutura (1,1 pontos), ambiente (1,2 pontos), valores<br />
(1,1 pontos) e impacto (1,0 pontos).<br />
A fraqueza da SCM é particularmente acentuada, por um lado, por 15% dos 80 indicadores<br />
terem recebido classificação de zero pontos, 59% entre zero e 1,5 pontos e 26% terem recebido<br />
1,5 ou mais pontos. Ou seja, cerca de 74% das variáveis estão abaixo da média, enquanto<br />
somente 26% obtiveram uma classificação igual ou superior à média (Gráfico 4).<br />
GRÁFICO 3 DIAMANTE DO ÍNDICE DA SOCIEDADE CIVIL MOÇAMBICANA 2007<br />
estrutura<br />
3<br />
2<br />
1,1<br />
1<br />
0<br />
valores 1,1 1,0<br />
impacto<br />
1,2<br />
ambiente<br />
GRÁFICO 4 DISTRIBUIÇÃO DA PONTUAÇÃO DOS 80 INDICADORES DO ISC, MOÇAMBIQUE 2007<br />
acima 1,5<br />
26%<br />
=zero<br />
15%<br />
abaixo 1,5<br />
59%<br />
Nas actuais circunstâncias, em que já se reuniu um satisfatório e sistemático conhecimento<br />
sobre o estado da SCM, as questões importantes, para efeitos de investigação, deixam de ser<br />
questões de ordem descritiva. O prioritário, então, é lidar com questões relacionadas com o<br />
entendimento dos factores determinantes e das causas da fraqueza da sociedade civil. A que se<br />
deve, de facto, a fraqueza das quatro dimensões da SCM, e que variáveis são mais determinantes?<br />
A resposta a esta questão dificilmente pode ser única. No mínimo, existem pelo menos<br />
duas hipóteses, dependendo das expectativas por detrás das avaliações:<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 71
Hipótese 1 A qualidade do eixo constituído pela relação estrutura-ambiente é directamente<br />
proporcional às instituições da sociedade em geral (políticas, económicas e sociodemográficas).<br />
A implicação desta relação é que não se pode esperar que a SCM<br />
seja excepcionalmente mais forte do que a sociedade a que pertence, pois depende<br />
inteiramente das esferas institucionais que fornecem os recursos tanto humanos<br />
como materiais e financeiros que sustentam a sociedade civil. Assim,<br />
Hipótese 2 A robustez do eixo estrutura-ambiente é condição necessária, mas não suficiente,<br />
para que a sociedade civil se desenvolva e fortifique como uma instituição credível e<br />
confiável na satisfação de interesses comuns aos actores provenientes das principais<br />
esferas da sociedade – mercado, família e Estado. A condição suficiente deve ser procurada<br />
na qualidade do eixo constituído pela relação valores-impacto. Quanto menor<br />
for o carácter, integridade, honestidade e competência das OSC e dos seus líderes,<br />
menor é a confiança e a credibilidade inspiradas pela sociedade civil<br />
Sem entrar em testes formais e estatísticos destas duas hipóteses enunciadas, na presente secção<br />
resume-se o conhecimento descritivo acumulado, em busca de um entendimento sistemático<br />
das causas e factores determinantes da fraqueza da sociedade civil. Neste momento, o<br />
desafio principal em termos de investigação já não é mostrar que a SCM é fraca, mas identificar<br />
quais os principais estrangulamentos ou variáveis simultaneamente 1) importantes e 2) onde<br />
a sociedade civil é mais débil ou fraca. Isto requer identificar as variáveis realmente estruturantes,<br />
determinantes e funcionais, em cada um dos dois eixos, acima identificados: estrutura-ambiente<br />
e valores e impacto.<br />
Para benefício da apresentação que se segue, a Tabela 1 sumariza alguns dos principais indicadores<br />
caracterizadores do ambiente em que a sociedade civil existe e se desenvolve, com destaque<br />
para indicadores sobre aspectos demográficos, sociais e económicos, bem como nível de desenvolvimento<br />
humano, diversidade cultural (linguística, étnica e religiosa) e nível de rendimento<br />
médio dos moçambicanos. Os indicadores cobrem atributos relevantes das três principais esferas<br />
da sociedade – família, mercado e Estado – aos quais se fará referência, sempre que for<br />
oportuno, nas páginas que se seguem.<br />
AMBIENTE-ESTRUTURA À IMAGEM E SEMELHANÇA DA SOCIEDADE MOÇAMBICANA<br />
O eixo estrutura-ambiente envolve duas das quatro dimensões intimamente dependentes das<br />
esferas em que se alicerça a sociedade: mercado, família e Estado. Tal como ilustra o Gráfico 3,<br />
tanto a estrutura como o ambiente em que a SCM existe apresentam-se fracas.<br />
A estrutura da sociedade civil contempla o tamanho, organização, infra-estruturas, qualidade<br />
dos recursos humanos e financeiros, bem como o desempenho da participação dos cidadãos<br />
no conjunto de interesses comuns à qualidade da sociedade em geral. É a este nível que se<br />
72 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
TABELA 2 INDICADORES RELEVANTES SOBRE MOÇAMBIQUE<br />
Superfície (1000 km 2 ) 799,4<br />
População (milhões de habitantes), 2007 21,9<br />
População urbana, % do total, 2010 38,4<br />
Esperança de vida à nascença, 2007 (em anos) 47,8<br />
Taxa Total de Fertilidade (filhos por mulher) 5,1<br />
Taxa de analfabetismo de adultos<br />
(% com idade a partir de 15 anos, 1999-2007) Mulheres (67%) Homens (43%)<br />
Índice de Desenvolvimento Humano, 2007 0,402 (172%)<br />
PIB per capita em $US, 2007 364<br />
Índice de Pobreza Humana (IPH-1) 46,8%<br />
Probabilidade de não viver até aos 40 anos (2005-2010) 40,6%<br />
Taxa de analfabetismo de adultos (1999-2007) 55,6%<br />
População sem acesso a fontes de água melhorada (% em 2006) 58%<br />
Crianças com peso a menos para a idade<br />
(% com idades a partir de 15 anos, 2000-2006) 24%<br />
População abaixo do limiar da pobreza de rendimento<br />
$1,25 por dia (2000-2007) 75%<br />
$2 por dia (2000-2007) 90%<br />
Limiar nacional de pobreza (2000-2006) 54,1%<br />
Índice de Gini, 2007<br />
(Gini situa-se entre 0 (igualdade absoluta) e 100 (desigualdade absoluta)) 47,1<br />
Ajuda pública ao desenvolvimento, desembolsos líquidos, USD per capita $65<br />
19,4% PIB<br />
Assentos parlamentares por mulheres 35%<br />
Principais línguas (16), mais usadas diariamente (DHS 2003) Emakhuwa, 26%;<br />
Xichangana, 11%;<br />
Português, 9%;<br />
Elomwe, 8%<br />
Principais Religiões, (DHS 2003) Católica, 25,2%;<br />
Siao/Zione, 21,7%;<br />
Muçulmana, 17,7%;<br />
Sem religião, 17,8%;<br />
Protestante/Evangélica, 8,%.<br />
FONTE INE, 2008; USAID e INE, 2005 (HDHS2003), UNDP, 2008/09)<br />
traduz o maior ou menor voluntarismo das pessoas, o maior ou menor entusiasmo na criação<br />
de associações, movimentos colectivos e redes sociais. Por seu turno, o ambiente abrange o<br />
contexto institucional, incluindo factores políticos, legais, socioeconómicos, demográficos e<br />
culturais, bem como as relações de interdependência entre os actores da sociedade civil, por um<br />
lado, e os actores do Estado, do mercado e da família, por outro.<br />
Os membros activos da actual SCM são principalmente voluntários (75% dos recursos – Tabela 3),<br />
integrados em organizações do tipo associação sem fins lucrativos (90%). As receitas das OSC<br />
provêm em 70% de países estrangeiros e 25% do mercado nacional. O Estado contribuiu, em<br />
termos financeiros, com menos de 5% das receitas mobilizadas pelas OSC formais.<br />
Os indicadores de pobreza, reunidos na Tabela 2, testemunham a profundidade da pobreza em<br />
Moçambique, através de várias expressões de pobreza: absoluta, relativa e humana. Repare-se<br />
que, enquanto o limiar oficial de pobreza absoluta (menos de um dólar americano por dia) é<br />
estimado em 54%, estima-se que 75% dos moçambicanos tenham um rendimento inferior a<br />
$1,25 por dia; a proporção da população com $2 por dia atinge 90% da população total.<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 73
TABELA 3 SOCIEDADE CIVIL FORMAL EM NÚMEROS, MOÇAMBIQUE<br />
NÚMERO DE OSC 4,853<br />
Cinco províncias absorvem mais de 70% das OSCs (Maputo Cidade – 13%; Maputo Províncias – 10% 70%<br />
Unidades por 100 mil habitantes, variando entre 8 a 57 entre as províncias 26<br />
DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA<br />
Comunidade local 43%<br />
Distritos 34%<br />
Cidades 6,6%<br />
Uma província (7%); Várias províncias (4%); Nacional (5,7%); Internacional (1%)<br />
PERFIL DOS RECURSOS HUMANOS 138,604<br />
Voluntários (Homens 58%; Mulheres 42%) 75%<br />
Remunerados (Homens 76%; Mulheres 24%) 18%<br />
Clérigos (Homens 77%; Mulheres 23%) 6%<br />
Funcionários públicos e consultores<br />
(Homens 72%; Mulheres 28%) 1,5%<br />
Empregados em tempo inteiro 16%<br />
Voluntários estáveis 28%<br />
Voluntários ocasionais 46%<br />
Número mediano de pessoas por organização 8<br />
TIPO DE OSC<br />
Associações (Religiosas – 53%; Políticas – 25%) 92%<br />
ONGs Nacionais 3%<br />
ONGs Estrangeiras 4%<br />
RECEITAS POR ORIGEM (MILHÕES US$) 301<br />
De países estrangeiros 71,3%<br />
Do sector privado nacional (famílias e individuais) 25,4%<br />
Do Governo 3,3%<br />
DESPESAS POR ORIGEM (MILHÕES US$) 301<br />
Salários 29%<br />
Compra de bens e serviços 27%<br />
Subsídio, donativos 8%<br />
Compra de bens de capital 7%<br />
ACTIVIDADES E SERVIÇOS<br />
Actuação em um único sector 60%<br />
Oferta de dois ou mais serviços 50%<br />
Recursos humanos mobilizados por apenas 1% das OSC 30%<br />
Receitas totais acumuladas por apenas 1% das OSC 40%<br />
FONTE INE, 2006; Francisco et al, 2008<br />
Simultaneamente, o poder cidadão, exercido por via da participação dos cidadãos na vida política,<br />
depende do tipo de sistema de instituições, políticas, jurídicas e administrativas, prevalecentes no<br />
país. Historicamente, como mostram os Gráficos 1 e 2, as OSC aumentaram ou diminuíram, em<br />
diferentes períodos históricos. Isto reflecte a maior ou menor liberdade individual efectiva; tanto a<br />
liberdade de expressão como liberdade de associação política e cívica dos cidadãos.<br />
Desde 1990, o processo de democratização tem decorrido a ritmos ou velocidades muito<br />
variáveis. Nuns casos, geralmente quando o partido no poder melhor controla o processo de<br />
mudança, registaram-se avanços efectivos na aplicação do direito constitucional de escolha dos<br />
órgãos de soberania e governantes, por via do sufrágio universal. Exemplo disto são as quatro<br />
eleições multipartidárias, legislativas e presidenciais, realizadas entre 1994 e 2009. Noutros<br />
casos, nomeadamente no que diz respeito à descentralização do poder de decisão por via da<br />
autarcização e provincialização, o processo decorre muito lentamente. No caso da autarcização<br />
somente um quarto da população, em 43 autarquias, tem podido exercer o direito constitucional<br />
ao voto. Os restantes três quartos continuam subordinados a um sistema administrativo<br />
74 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
centralizado por órgãos e dirigentes locais nomeados, em vez de eleitos democraticamente<br />
(Francisco, 2009b; OSISA, 2009b). Sem pretender ser muito mais exaustivo, de seguida apresenta-se<br />
um breve comentário sobre o essencial das três esferas da sociedade que moldam e<br />
determinam, directa ou indirectamente, o eixo estrutura-ambiente da sociedade civil.<br />
SOCIEDADE CIVIL E ESTADO<br />
Que tipo de Estado existe em Moçambique? Segundo Francisco (2008b, 2009a, 2009b), o actual<br />
Estado Moçambicano poder-se-ia caracterizar, resumidamente, como um Estado Falido, mas não<br />
um Estado Falhado. Depois da guerra civil, nas duas últimas décadas, o Estado Moçambicano tem<br />
sido capaz de evitar o Estado Falhado, pois a autoridade política e administrativa tem perdurado,<br />
foram criadas algumas instituições mais ou menos democráticas, o Governo tem conseguido mobilizar<br />
recursos financeiros, principalmente da comunidade internacional e como membro de organismos<br />
internacionais, tais como as Nações Unidas e as Instituições de Bretton Woods, entre<br />
outras.<br />
Não obstante a relativa estabilidade alcançada, Moçambique continua a ser um país em risco potencial<br />
de conflitos ou perturbações sociais e políticas, visto possuir instituições bastante fracas. O actual<br />
Estado Moçambicano não é nem um Estado Liberal, nem um Estado de Bem-estar Social. Não é um<br />
Estado Liberal, porque é demasiado intervencionista, centralizador, dirigista e controlador de áreas<br />
ou activos cruciais na edificação de uma sociedade livre, no sentido liberal do termo. Desde a introdução<br />
da Constituição de 1990 foram dados alguns passos rumo à criação de um Estado de Direito,<br />
mas exceptuando algumas áreas, o tipo de instituições prevalecentes ainda não o configuram.<br />
Volvidas duas décadas, como mostra o Gráfico 5 (a, b), o processo de descentralização do poder<br />
para a sociedade, tanto o poder de decisão política como o de gestão financeira descentralizada,<br />
são praticamente irrisórios. Não obstante a Constituição da República, desde 1990, prever que a<br />
Administração Pública deva ser estruturada com base no princípio de descentralização e desconcentração<br />
(artigos 250 e 263, Constituição de 2004), os dois gráficos na Figura 5 não deixam lugar<br />
para dúvidas quanto à limitada descentralização visando a aproximação dos serviços aos cidadãos.<br />
É certo que, a partir dos gráficos da Figura 5, não é possível visualizar a real dimensão da limitada<br />
simplificação de procedimentos administrativos ou das imensas dificuldades causadas ao<br />
cidadão pelo ineficiente sistema administrativo distrital e de localizada, disponível no país. Apesar<br />
disso, seria abusivo considerar que o Estado Moçambicano se pode considerar um Estado<br />
de Bem-estar Social, pelo simples facto de os governantes declararem insistentemente que a sua<br />
intenção é proporcionar segurança e bem-estar social à maioria da população. O actual Estado<br />
é demasiado descontrolado, informalizado, irresponsável e incapaz de proporcionar segurança<br />
pública mínima e protecção social básica.<br />
O actual Estado carece de serviços públicos adequados e com cobertura regional e social<br />
satisfatória. Grande parte dos serviços públicos disponíveis mantém-se graças ao financiamento<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 75
proporcionado pelos doadores, incluindo o financiamento directo ao Orçamento de Estado, ou<br />
orientado para sectores sociais específicos (saúde, educação e infra-estruturas) (Ainadine, 2008;<br />
Feliciano et al., 2008; Francisco e Paulo, 2006; Francisco, 2008b, 2009a, 2009b; Hodges e<br />
Tibana, 2005; Jackson et al., 2004; Quive, 2007).<br />
GRÁFICO 5 REPRESENTAÇÃO DO PODER DE DECISÃO EM TERMOS POLÍTICOS E DO ORÇAMENTO PÚBLICO,<br />
MOÇAMBIQUE 2007<br />
5A PODER DIRECTO E PODER<br />
DELEGADO DO CIDADÃO<br />
5B DESPESAS DO ORÇAMENTO DE ESTADO<br />
POR ÂMBITO DE DECISÃO, MOÇAMBIQUE 2007<br />
poder directo 4%<br />
poder delegado 96%<br />
central 66,5%<br />
provincial 31%<br />
distrital 2,5%<br />
FONTE Francisco, 2007; Francisco et al., 2008: 51 FONTE MPD, 2007<br />
Uma nota merece ser feita sobre a diferença estrutural entre as infra-estruturas e forma organizacional<br />
entre a SCM e o actual Estado Moçambicano. Este último possui infra-estruturas<br />
organizacionais e administrativas, hierarquizadas verticalmente e sustentadas por um Orçamento<br />
Público, com direito legal de uso da força (coerção, especialmente legal). Em contrapartida,<br />
a sociedade civil possui infra-estruturas organizacionais dispersas e horizontais,<br />
dependentes de redes sociais estruturadas horizontalmente, de um orçamento doado por entidades<br />
estrangeiras ou pelo mercado e famílias, numa base voluntária (ver Tabela 3).<br />
Convém ainda referir que, ao nível do senso comum, o activismo das OSC mais proeminentes<br />
tem gerado uma ideia deturpada sobre a configuração efectiva da SCM. Apesar das ONGs<br />
estrangeiras e nacionais serem em número inferior a 5% (Tabela 3), o facto de elas concentrarem<br />
mais de metade dos recursos humanos e financeiros confere a esta minoria de organizações<br />
uma enorme visibilidade. Daí resulta a percepção da imprensa e da opinião pública de que as<br />
OSC se concentram nas principais cidades provinciais, com destaque para a Cidade de Maputo.<br />
A sua visibilidade é enorme, quando comparada com a completa falta de visibilidade e capacidade<br />
de advocacia da grande maioria das OSC radicadas nos distritos e nas localidades.<br />
O Gráfico 6 mostra bem o contraste entre a percepção do senso comum e a situação real da<br />
distribuição geográfica das OSC. Contrariamente à ideia prevalecente, menos de 10% das OSC<br />
formais encontram-se nos principais centros urbanos, enquanto mais de 75% estão nas comunidades<br />
rurais e distritos.<br />
76 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
GRÁFICO 6 PERCEPÇÃO SOBRE A DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA DAS OSCs EM MOÇAMBIQUE, 2007 (EM %)<br />
Largamente nas grandes cidades 45,3<br />
Largamente limitadas ao urbano 19,8<br />
Em toda a parte, mesmo zonas remotas 16,5<br />
Em toda a parte, excepto áreas remotas 18<br />
FONTE Francisco, 2007<br />
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50<br />
GRÁFICO 7 DISTRIBUIÇÃO REPRESENTATIVA DAS OSCs EM MOÇAMBIQUE, 2003 (EM %)<br />
45<br />
40<br />
42,4<br />
35<br />
33,5<br />
30<br />
25<br />
20<br />
15<br />
10<br />
5<br />
0<br />
comunidade<br />
local<br />
distrito<br />
6,6 6,7<br />
cidade e<br />
arredores<br />
uma<br />
província<br />
4 5,7<br />
várias<br />
províncias<br />
nacional<br />
1,1<br />
internacional<br />
FONTE Francisco et al., 2008: 51; MPD, 2007<br />
SOCIEDADE CIVIL E MERCADO<br />
Em relação à economia nacional, existe uma crescente literatura reunindo evidências que sustentam<br />
o argumento, defendido pelo autor noutros trabalhos, sobre a bazarconomização da<br />
economia moçambicana. A economia nacional está hoje convertida numa economia de bazar;<br />
um bazar multiverso, ou conjunto de múltiplos universos económicos, aparentemente paralelos<br />
e independentes uns dos outros, mas, na verdade, estruturalmente organizados em relações<br />
económicas de reprodução alargada (lucrativa ou mesmo especulativas), simples (e.g. subsistência<br />
básica, prosuming ou actividades sem fins lucrativos) ou meramente consumista (Francisco<br />
(2008b, 2009a).<br />
Tal como acontece em muitos outros países, a economia de Moçambique é geralmente representada<br />
pelo universo económico formal, e a parte da economia informal captada pelos sistemas<br />
estatísticos, através de indicadores estatísticos como o produto interno bruto (PIB).<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 77
O crescimento ou a estagnação da riqueza material, inflação, geração de emprego e desemprego,<br />
aumento ou diminuição das desigualdades do rendimento, entre outros indicadores, surgem<br />
como expressões dos fenómenos económicos cobertos por indicadores estatísticos que só<br />
parcialmente reflectem a economia real. Reflectem, de facto, a ponta de um imenso icebergue<br />
de dimensão desconhecida e relações económicas legítimas mas não legais, extralegais mas<br />
socialmente relevantes, ilegais ou ilícitas mas fortemente influentes na sociedade (Feliciano et<br />
al., 2008; Francisco e Paulo, 2006; Francisco, 2007a, 2008b, 2009a, 2009b).<br />
A riqueza nacional é produzida numa economia de bazarconomia, triplamente dependente de<br />
instituições e actividades principalmente de transferência, em vez de instituições produtivas,<br />
sob diversas formas: 1) Dependente de uma economia de subsistência controlada por instituições<br />
avessa ao valor económico acrescentado; 2) Dependente da transferência de recursos<br />
financeiros provenientes da ajuda internacional, principalmente para o Estado; 3) Dependente<br />
de relações crescentemente extralegais (legítimas mas não legais, ilegítimas, ilegais), dos impostos,<br />
do roubo, da fraude, chantagem e burla, incluindo o vasto e crescente mundo económico<br />
que Napoleoni (2009) designa como Economia Canalha (Rogue Economics).<br />
De acordo com as estatísticas oficiais, Moçambique produz um produto nacional bruto per<br />
capita estimado em $US 364. Em outras palavras, o moçambicano produz em média um<br />
dólar por dia (UNDP, 2009). O que pode fazer um cidadão comum com um dólar por dia?<br />
A pequenez do mercado nacional é melhor entendida quando considerada num contexto comparativo,<br />
por exemplo com economias de países vizinhos. O Gráfico 8 ilustra bem este ponto<br />
ao responder à seguinte questão: em quanto tempo produzem os outros países o que Moçambique<br />
produz num ano? Em 1996, as Maurícias, com uma população similar ao tamanho da<br />
população da Cidade de Maputo (sensivelmente 1 milhão de habitantes), produzia em seis<br />
meses o mesmo que Moçambique produzia num ano. Em 2006, as Maurícias em treze meses<br />
produziu a mesma riqueza que Moçambique num ano. Ou seja, numa década, Moçambique<br />
ganhou seis meses de competitividade em relação às Maurícias, mas é preciso não esquecer<br />
que aquele país da África Austral possui 6% da população moçambicana.<br />
O Gráfico 8 apresenta vários outros exemplos comparativos, com países desenvolvidos 21 e outros<br />
países vizinhos, como o Botswana e África do Sul. O Botswana, com uma população equiparável<br />
ao grande-Maputo (1,8 milhões em 2005), produziu há dez anos atrás em cinco meses<br />
o que Moçambique produziu num ano. Já em 2006, precisou de nove meses, significando que<br />
a economia moçambicana conquistou quatro meses de vantagem competitiva. O caso comparativo<br />
mais extremo é o da economia da África do Sul. Este país vizinho produziu, em 1996,<br />
em apenas quatro dias, o equivalente ao que Moçambique produziu num ano. Em 2006, precisou<br />
de mais quatro dias; ou seja oito dias, para produzir tanto como Moçambique. O Gráfico 8<br />
não apresenta o caso do Zimbabwe, país que em 1996 ainda produzia em dois meses o equivalente<br />
ao que Moçambique produzia num ano.<br />
78 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
GRÁFICO 8 EM QUANTO TEMPO PRODUZEM OS OUTROS PAÍSES O QUE MOÇAMBIQUE PRODUZ NUM ANO?<br />
COMPARAÇÃO EM 1996 E 2006<br />
ANO ÚTIL DE PRODUÇÃO (22 DIAS/MÊS = 264 DIAS ANUAIS)<br />
Austrália<br />
3<br />
1,4<br />
Botswana<br />
110<br />
193<br />
Maurícias<br />
135<br />
294<br />
Portugal<br />
Singapura<br />
África do sul<br />
Estados unidos<br />
10<br />
5<br />
15<br />
5,8<br />
8<br />
4<br />
0,15<br />
0,07<br />
0 50 100 150 200 250 300<br />
N.º DE DIAS ÚTEIS NO ANO<br />
PIB, 2006 PIB, 1996<br />
FONTE Word Bank, CD-ROM 2007, UNDP, 1999, 2007<br />
O breve contexto económico acima apresentado é suficiente para se entender o ambiente de<br />
relações económicas de que as OSC dependem, que se alimentam de recursos financeiros e<br />
materiais. Obviamente, por muitos anos ainda, as OSC em Moçambique, só muito marginal ou<br />
complementarmente podem aspirar à autonomia financeira das suas principais fontes de sustento,<br />
principalmente de fontes com origem externa. A maioria das OSC carecem de meios<br />
próprios de financiamento, para sustento das suas actividades programáticas. Elas são maioritariamente<br />
entidades sem fins lucrativos.<br />
O mesmo acontece também com o Estado, mas com uma grande diferença entre as duas entidades.<br />
As OSC mobilizam recursos, numa base voluntária para a realização de desinteresses<br />
comuns dos seus membros e actores, enquanto o Estado tem um mandato da sociedade, possuindo<br />
para tal o direito de recorrer à força, se necessário, para efeitos de mobilização de recursos<br />
financeiros e gestão do bem comum da sociedade.<br />
A Tabela 3 contém dados sobre o balanço contabilístico de receitas e despesas das OSC formais,<br />
produzida com base na informação do estudo do INE (2006). Em meados da corrente<br />
década, as OSC formais mobilizaram entre 300 a 320 milhões de dólares americanos (depen-<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010<br />
79
dendo do câmbio usado) de receitas financeiras; pouco mais de 70% foram de origem externa,<br />
25% provenientes do mercado nacional e apenas 3% proveniente do Estado (Gráfico 9).<br />
O futuro do apoio financeiro às OSC, particularmente do apoio do mercado nacional, irá depender<br />
do desempenho da economia nacional. Existe potencial para se ampliarem as receitas<br />
para a SCM, desde que as OSC consigam conquistar maior confiança, através de maior eficiência<br />
e eficácia na execução das suas actividades e serviços. De igual modo, se as OSC se tornarem<br />
mais confiáveis, tanto em termos de integridade, transparência e probidade, como em<br />
termos de competência, efectividade e capacidade de realização de programas úteis à sociedade,<br />
a própria comunidade internacional poderia aumentar o seu apoio directo à SCM; apoio<br />
directo quer por realocação de fundos actualmente canalizados para o Estado, quer pela alocação<br />
de novos recursos.<br />
GRÁFICO 9 ORIGEM DAS TRANSFERÊNCIAS FINANCEIRAS DAS OSC<br />
Neste âmbito, a elevada dependência das OSC do mercado, sobretudo do mercado externo, merece<br />
tratamento diferente do que deve ser dado ao Estado, o qual se encontra também fortemente<br />
dependente da ajuda externa. Se as OSC lograssem melhorias visíveis na sua capacidade<br />
de produzir mais e melhores resultados, justificava-se que parte dos recursos que no passado<br />
foram confiados ao Estado fossem transferidos para a responsabilidade da própria sociedade;<br />
isto é, transferidos para o mercado privado lucrativo ou para o mercado sem fins lucrativos. Para<br />
além de não se justificar excessiva concentração de serviços na Administração Pública, o reforço<br />
das OSC com mais recursos humanos e financeiros poderia aumentar o valor acrescentado e<br />
o impacto de certos serviços públicos no desenvolvimento descentralizado e local da sociedade<br />
moçambicana.<br />
Merece atenção e prioridade urgente, ao nível das OSC, as desigualdades da distribuição dos<br />
recursos financeiros e humanos qualificados. Tal como é demonstrado pelo coeficiente de Gini,<br />
a desigualdade é praticamente absoluta. Por um lado, apenas 1% das unidades formais da sofinanciamento<br />
do estrangeiro 72%<br />
empresas privadas e famílias 25%<br />
do governo 3%<br />
80 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
ciedade civil empregam cerca de um terço (32%) dos recursos humanos (Coeficiente de Gini<br />
igual a 0,739); um por cento das unidades concentra mais de 40% das receitas (Coeficiente de<br />
Gini igual a 0,940) (INE, 2006: 56-65). Aqui se encontra, provavelmente, grande parte da explicação<br />
enganadora, ilustrada no Gráfico 5, relativamente à alegada grande concentração das<br />
OSC nos centros urbanos.<br />
SOCIEDADE CIVIL E FAMÍLIA<br />
A família não é geralmente considerada parte da sociedade civil devido à sua natureza privada.<br />
Porém, visto que as OSC participam em acções públicas compreendendo associações familiares,<br />
grupos de clãs e indivíduos com estreitas ligações familiares, a instituição da família constitui<br />
um dos alicerces importantes da sociedade moçambicana.<br />
Afinal de contas, é na esfera familiar que a reprodução humana acontece e de onde provêm os<br />
efectivos de recursos humanos das OSC. Moçambique integra o grupo de países mais subdesenvolvidos<br />
do mundo, com um crescimento natural anual médio na ordem dos 2,3%, uma<br />
mortalidade infantil elevada (108 menores de 5 anos por mil nados-vivos), elevada percentagem<br />
de jovens (rácio de dependência 83,0), baixa percentagem de idosos (rácio de dependência 6,2)<br />
(ver Tabela 2; UNDP, 2009).<br />
Como demonstrou Arnaldo (2007), na sua extensiva investigação sobre a fecundidade em Moçambique,<br />
só a região sul do país tem apresentado evidências de redução persistente da fecundidade,<br />
mas a generalidade da população moçambicana continua no estádio de pré-transição<br />
demográfica. Ainda segundo Arnaldo (2007: 130), as moçambicanas em idade reprodutiva apresentam<br />
diferenças de fecundidade substanciais dependendo do seu envolvimento na actividade laboral.<br />
As mulheres empregadas no sector moderno têm em média três filhos menos do que aquelas<br />
que estão no sector informal, familiar ou doméstico. A fecundidade das mulheres por conta própria<br />
(a trabalhar no sector informal) não é diferente da do sector familiar, que é de um filho a mais<br />
em relação à fecundidade de mulheres domésticas. Isto sugere, segundo a investigação de Arnaldo<br />
(2007: 130, 151-152), que trabalhar no sector informal não traz conflitos com a procriação.<br />
As projecções actuais estimam que, em 2020, a população moçambicana deverá rondar 28,5<br />
milhões de habitantes, e em 2050 poderá atingir os 40 milhões de habitantes. Dentro de duas<br />
décadas a população urbana ultrapassará em número a população rural. Inevitavelmente,<br />
dependendo do tipo de mudanças demográficas, a sociedade civil será afectada, directa ou<br />
indirectamente.<br />
O censo do INE de 2004/05 recenseou cerca de 140 mil pessoas envolvidas em quase cinco<br />
mil OSC formais sem fins lucrativos. Curiosamente, um efectivo humano praticamente do<br />
mesmo tamanho do efectivo de funcionários da Administração Pública. Contudo, a diferença<br />
na forma como ambas as esferas enquadram os seus recursos humanos é muito grande. A maior<br />
parte das pessoas eram voluntárias, totalizando cerca de 75%. O efectivo de trabalhadores re-<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 81
munerados representava 18%, os clérigos 6% e apenas 1,5% os funcionários públicos e consultores.<br />
A concentração geográfica dos voluntários é directamente proporcional à concentração<br />
do número de organizações. O rácio geral do número de voluntários e a população rondavam,<br />
em meados da corrente década, os 56 voluntários por 10 mil habitantes; mas este valor difere<br />
muito de província para província (INE, 2006: 58).<br />
VALORES-IMPACTO À IMAGEM E SEMELHANÇA DA SOCIEDADE CIVIL<br />
Diz a experiência que a confiança leva uma vida inteira a ser conquistada, mas pode ser perdida<br />
num minuto. A confiança é uma convicção muito sensível e flexível, podendo aumentar ou<br />
diminuir, dependendo de factores específicos. Covey (2006) vai mais longe, ao defender que não<br />
há nada tão rápido como a confiança. Quando a confiança está presente, os erros são perdoados<br />
e esquecidos. Ela cimenta as relações, na vida das pessoas, no funcionamento das organizações<br />
e das instituições.<br />
Em que medida a sociedade civil pratica e promove valores positivos? Qual o impacto do papel<br />
e influência da sociedade civil na governação e sociedade em geral? Em resposta a estas questões,<br />
os resultados do estudo do ISC 2007 mostram que a grande fraqueza afecta as duas principais<br />
componentes da confiabilidade: integridade e capacidade. O eixo constituído pelos<br />
valores e o impacto integra as duas dimensões determinantes da credibilidade e confiança da<br />
SCM, da sua inteira responsabilidade.<br />
A maior ou menor credibilidade, tanto das pessoas como das organizações, permite testemunhar<br />
o ponto principal sobre o papel crucial exactamente da “variável oculta”, a confiança.<br />
Na lógica convencional tradicional, como explica Covey, o raciocínio organizacional, quer no<br />
negócio quer em entidades com fins não lucrativos, trata os resultados como função directa do<br />
produto da estratégia pela execução (E1 * E2 = R ). Na prática, contudo, Covey mostra existir<br />
nesta equação uma variável implícita que faz enorme diferença, num caso como multiplicadora,<br />
noutros como retardadora da rapidez e qualidade dos resultados alcançados.<br />
Uma entidade, com ou sem fins lucrativos, pode ter boas estratégias de acção e grandes<br />
habilidades de execução, mas perde a confiança dos clientes e deixa de ser credível se os<br />
resultados forem maus. A fraca confiança actua como um imposto ou taxa sobre a produtividade,<br />
reduzindo os resultados finais. A elevada confiança, pelo contrário, actua como multiplicador<br />
do resultado final, quer pela credibilidade que inspira quer pela fidelidade ao produto e<br />
aos serviços. Assim, a consideração do factor confiança altera a fórmula apresentada acima para<br />
algo como o seguinte: (E1 x E2) = x C = R (Estratégia x Execução) x Confiança = Resultados.<br />
Na vida quotidiana, as pessoas usam diferentes termos para expressar a sua maior ou menor<br />
confiança, mas na essência, o que transparece é uma constante preocupação em busca de um<br />
equilíbrio entre o carácter e a competência, tanto dos actores como das organizações da<br />
sociedade civil. A Caixa 2 reúne comentários extraídos de artigos, da imprensa ou de trabalhos<br />
82 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
académicos, que enfatizam a importância da integridade e competência, na avaliação da credibilidade,<br />
liderança e impacto.<br />
Não basta ter integridade; é necessário, também, intenção ou desejo, capacidades e resultados,<br />
sendo a confiança como função de duas variáveis: credibilidade e competência. A credibilidade,<br />
por sua vez, como refere Covey (2006), depende de pelo menos quatro elementos: integridade,<br />
intenção/vontade, capacidade e resultados. A lista que se segue reúne exemplos, sistematizados<br />
durante a pesquisa sobre o ISC 2007, que ilustram os níveis de integridade e competência<br />
da actual SCM:<br />
• As pessoas têm pouco sentido de transparência e da partilha de informação.<br />
• Muitos preferem deturpar os dados e resultados para gerar uma imagem conveniente (positiva<br />
ou negativa).<br />
• Nível de equidade de género e de respeito pela diversidade muito fraco. Existe interesse na<br />
erradicação da pobreza, mas o impacto é questionável.<br />
• A prestação de contas só é praticada quando exigida ou imposta pelo patrocinador/doador.<br />
• O envolvimento das OSC nas estratégias de combate à pobreza absoluta é mais como observadores,<br />
auscultados e aliados de circunstância do Governo ou dos doadores.<br />
• Não existem mais parcerias e apoio às OSC, em parte porque os doadores depositam pouca<br />
confiança nas OSC.<br />
• A violência é fraca, mas só a violência visível; na pratica existem formas de violência silenciosas<br />
e dissimuladas. Violência contra as crianças e a mulher, quando os camponeses são expulsos<br />
sumariamente das suas terras, ou quando agentes policiais abusam do recurso à força.<br />
• Ambiente pouco produtivo e constrangedor, principalmente nos distritos e localidades, onde<br />
a intolerância das autoridades públicas é ainda muito forte.<br />
• Muitas são as expectativas frustradas, e muitas as desculpas para não se fazer melhor.<br />
• As pessoas reúnem muito sem resultados palpáveis, por falta de mecanismos de responsabilização<br />
efectiva.<br />
• Certas autoridades manipulam as OSC em função de interesses estabelecidos.<br />
CONSIDERAÇÕES GERAIS, DESAFIOS<br />
E IMPERATIVOS PRIORITÁRIOS<br />
O principal fio condutor deste trabalho são as expectativas e a esperança, numa sociedade civil<br />
moçambicana capaz de contribuir mais activamente para uma sociedade mais saudável, tolerante,<br />
inclusiva e eficiente. O artigo distanciou-se das perspectivas de sociedade civil circunscritas<br />
ao grupo de elite das OSC, ou das organizações e activistas do domínio formal da<br />
sociedade. Mesmo sabendo que as metodologias usadas para produzir os dados e a informa-<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 83
CAIXA 2 TESTEMUNHOS SOBRE A INTEGRIDADE E A COMPETÊNCIA DA SOCIEDADE CIVIL MOÇAMBICANA<br />
SOCIEDADE CIVIL, INFORMAÇÃO PÚBLICA E COMUNICAÇÃO SOCIAL “A sociedade civil assume, historicamente, um papel importante na<br />
flexibilização do processo de governação vista como transparência na gestão da coisa pública e no domínio do accountability ou da<br />
prestação de contas. A promoção da transparência é outro elemento que só se pode tornar efectivo com a existência de uma sociedade<br />
civil forte e interventiva, e que seja, acima de tudo, muito proactiva. Mas o limitado número de organizações que intervêm na área da<br />
governação, seja no âmbito do PARPA ou fora dele, é um indicador de que estas temáticas ainda não são privilegiadas, havendo mais<br />
organizações viradas para a provisão de serviços e advocacia do que em sectores como Educação e Saúde … As OSC parecem ter adoptado<br />
uma cultura de subordinação ao Governo, num contexto em que predomina a percepção, quanto a nós errada, de que ser crítico<br />
do sistema de poder é sinónimo de ser confuso e subversivo. Há, assim, um grande vazio na sociedade civil moçambicana no que concerne<br />
à produção de políticas alternativas; são muito poucas as OSC nacionais que pressionam e propõem soluções, depois que tenham<br />
desenvolvido estudos pertinentes ou tenham feito análises metodologicamente credíveis de cada situação.” (Salema, 2008: 83)<br />
CARACTERÍSTICAS DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL A macrocefalia e a centralização do país está, pois, presente também<br />
na distribuição dos recursos materiais e humanos das organizações da sociedade civil. E, nestas condições, pode-se admitir que<br />
o seu papel em muitas áreas fora da capital, especialmente nas zonas rurais e nas províncias onde se concentram grande parcela<br />
da população, é necessariamente reduzido, principalmente pela falta de recursos humanos e materiais. (OSISA, 2009a: 75)<br />
A ARTE DE CRIAR FRACAS INSTITUIÇÕES “Caiu o pano sobre a novela que andou em torno da constituição da Comissão Nacional de<br />
Eleições, CNE. Os cinco membros eleitos pela Assembleia da República de Moçambique decidiram eleger através do voto, os restantes<br />
oito membros que iriam preencher o corpus deste órgão eleitoral. (…) Está a tornar-se um ciclo vicioso esta arte. Não se<br />
vislumbra nenhum esforço de mudar a situação. Tanto tempo gasto; tanto dinheiro e energias gastas para no fim, depararmonos<br />
com um aborto como esse! Um aborto da CNE que levará cinco longos anos a feder terrivelmente! A fraqueza começa aqui.<br />
A CNE tem agora todas as condições necessárias para prestar um péssimo serviço ao povo. A CNE tem agora melhores condições<br />
(que antes) para levar a cabo um processo eleitoral bem desorganizado e fraudulento de sempre! A incompetência está de<br />
parabéns (Egídio Vaz, 2007, http://ideiasdemocambique.blogspot.com/2007_06_01_archive.html).<br />
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA “… uma vez que nem todos os cidadãos têm acesso a essas organizações, pois o ingresso nelas<br />
é restrito, o papel dessa ‘sociedade civil’ não é um factor de ampliação da democracia. Essa ‘sociedade civil’ pode até funcionar<br />
como um factor que atrofia a democracia, na medida em que ela substitua a participação directa dos cidadãos em geral, e funcione<br />
como uma espécie de tampão entre o Governo e o povo. O Governo põe o povo à distância, interpondo a ‘sociedade civil’… ”<br />
(Afonso dos Santos, in Savana 08.02.2008, p. 7).<br />
QUE ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL MOÇAMBIQUE TEM “Em estados novos, como é Moçambique, sociedade civil e suas organizações<br />
são, em geral, fracas. De facto, forças políticas que governam os países tendem a dominar a esfera social, económica<br />
e política; sendo assim, muitas das organizações da sociedade civil que florescem tendem a estar muito próximas do governo<br />
do dia de forma a que possam ter aceitação do governo e tendem evitar tomar posições contraditórias das do governo. Como<br />
resultado, a autonomia, a legitimidade e a independência dessas organizações são questionáveis. No caso concreto de<br />
Moçambique, estes factores tomam contornos às vezes assustadores, onde se verificam organizações da sociedade civil subservientes<br />
a lutarem por agradar e/ou ter um lugar ao lado do governo do dia em vez de serem a voz dos cidadãos.” (Xavier, 2009:<br />
13, http://www.integridadepublica.org.mz)<br />
TRANSFORMAR ESTE DEBATE EM AGENDA DE POLÍTICA PÚBLICA “É interessante notar que a questão do uso dos recursos naturais<br />
de Moçambique e da natureza extractiva da economia nacional são tão importantes para as comunidades locais e para o País<br />
inteiro, mas que, apesar dessa importância crucial, neste momento crítico do ciclo político nacional nenhuma organização (partido<br />
político ou outro tipo de organização social) trouxe estas questões para o topo da agenda do debate de políticas públicas<br />
cruciais. Dos partidos políticos existentes em Moçambique provavelmente não é de esperar muito, pois todos eles têm muito<br />
mais interesse no acesso ao poder do que têm na natureza política desse poder e das políticas que esse poder pode levar a cabo.<br />
Por isso, o que se ouve são listas de realizações e promessas sobre tudo e para todos, mas não há discussão política e de políticas<br />
com o mínimo de seriedade e de qualidade.” (Castel-Branco, 2009, http://www.iese.ac.mz/lib/noticias/2009/ComentariosdeCastelBranco-RelCIP.pdf)<br />
SEGUNDO A SOCIEDADE CIVIL: GAZA ANDA A PASSO DE UM CAMALEÃO DOENTE A posição da Sociedade Civil (SC) apresentada na<br />
sessão do Observatório de Desenvolvimento referente a 2009, em Gaza, face à implementação do Plano Económico e Social<br />
(PES) de 2008 a nível da província, é de que o governo de Raimundo Diomba está afundado na pobreza. No respectivo documento,<br />
de 58 páginas, até se lê que Gaza se desenvolve a passo de um camaleão doente, pois há poucos investimentos e verifica-se<br />
a descontinuidade de vários projectos.” (António Zacarias, Magazine Independente, 30.09.2009, p. 26)<br />
MASC: A MONITORIA DA GOVERNAÇÃO EM MOÇAMBIQUE “… o sistema político moçambicano oferece oportunidades para a participação,<br />
advocacia e monitoria da governação, mas a situação excessivamente informal da maioria dos mecanismos participativos<br />
impede aos cidadãos de usarem efectivamente estes pontos de entrada. Portanto, a influência dos cidadãos nas políticas<br />
e práticas do governo é fraca (p. 8) … a transparência na alocação de recursos públicos é moderadamente fraca, tendendo<br />
ligeiramente para moderada (p. 9) … o acesso à justiça em Moçambique é muito fraco (p. 11) … embora in crescendo, a capacidade<br />
das OSC de contribuírem para uma boa governação é ainda fraca.” (p. 15) (Ainadine, 2008)<br />
84 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
ção disponíveis são frequentemente enviesadas, a favor da sociedade civil formal (e.g. censo do<br />
INE, 2006), é cada vez mais importante não se perder de vista que em Moçambique o universo<br />
da sociedade civil socialmente relevante encontra-se principalmente no domínio extralegal ou<br />
informal.<br />
Uma outra opção analítica, de algum modo diferente das opções convencionais, assumida neste<br />
artigo tem que ver com a definição operacional de sociedade civil. Procurou-se conciliar a<br />
conjugação de interesses comuns, identificados como o móbil da arena pública, com o reconhecimento<br />
explícito dos interesses estabelecidos (individuais e privados) em jogo no ambiente<br />
profundamente agónico que caracteriza a SC na sua vida quotidiana. Na prática, os interesses<br />
comuns convertem-se muitas vezes numa referência anódina ou paliativa, subordinados à<br />
supremacia de interesses de outras esferas (sobretudo do Estado ou do mercado privado);<br />
interesses que procuram tutelar e moldar as OSC, em conformidade com prioridades mais<br />
competitivas ou conflituantes do que cooperativas e altruístas. Só quando se reconhece e<br />
identifica a natureza específica da(s) realidade(s) estratégica(s) na sociedade civil é que se torna<br />
possível fazer sentido e entender as razões da maior ou menor fraqueza da SCM, no passado<br />
e actualmente.<br />
BALANÇO RETROSPECTIVO: POSITIVO OU NEGATIVO?<br />
Na introdução, levantou-se a questão de se os bons exemplos da sociedade civil, tanto no<br />
Moçambique colonial como no Moçambique independente, terão compensado os maus<br />
exemplos. Por outras palavras, se o balanço dos dados reunidos, aponta para um balanço mais<br />
positivo do que negativo. A partir da análise realizada, a conclusão mais consistente com as<br />
evidências reunidas, aponta para um balanço globalmente negativo, por três razões principais.<br />
Uma razão tem que ver com o eixo estrutura-ambiente, a outra com a forma como a relação<br />
com a herança do passado é gerida pelas gerações contemporâneas, e a terceira relaciona-se<br />
com o eixo valores-impacto.<br />
Parte significativa do balanço negativo do estado da SCM é directamente determinada pela<br />
própria sociedade, através do ambiente por si criado e dos elementos da estrutura da sociedade<br />
civil a ela pertencentes. A maior ou menor robustez da sociedade civil depende,<br />
assim, do estado das principais esferas da sociedade (mercado, família e Estado). Aliás, o<br />
contrário seria duvidoso e improvável. Se uma determinada sociedade possui fraco desenvolvimento<br />
humano, económico e institucional, dificilmente se pode esperar que a sua sociedade<br />
civil não a reflicta, no que tem de progressivo ou regressivo, construtivo ou<br />
destrutivo. Isto, em si, não deve ser entendido como a única explicação da fraqueza da SCM,<br />
mas permite entender as condições necessárias, se bem que não suficientes, do estado da SC.<br />
Por isso, quando se afirma que a SCM é fraca, parte da explicação deve ser procurada no eixo<br />
ambiente-estrutura.<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 85
A segunda razão, para um certo balanço mais negativo do que positivo do estado da SCM,<br />
está ligada ao assunto debatido na segunda secção, em torno da desvalorização do passado e<br />
falsificação do presente. Este assunto, se bem que seja ainda muito negligenciado nos estudos<br />
até aqui realizados, também depende do contexto histórico e do protagonismo dos actores<br />
dominantes e mais influentes na sociedade. A reconstrução do passado pode minar ou fortalecer<br />
as maturidades da sociedade civil contemporânea. Neste artigo procurou-se chamar a atenção,<br />
em particular, para o impacto negativo das rupturas de continuidade intergeracional, entre<br />
as gerações recentes e as gerações passadas da sociedade civil, na constituição do carácter e da<br />
integridade das OSC e suas lideranças.<br />
A história política moçambicana, no último meio século, testemunha uma grande incapacidade<br />
das OSC e das suas lideranças na busca de soluções pacíficas e progressivas para os impasses<br />
criados pelos regimes políticos instituídos. No Moçambique colonial, não obstante a emergência<br />
de exemplos visivelmente inovadores e criativos, que remontam à primeira década da configuração<br />
de Moçambique, tal como é conhecido há 84 anos, a sociedade civil foi fortemente<br />
reprimida e impedida de contrapor uma autoridade moral e política à altura do regime colonial<br />
estabelecido. Eventualmente, a opção dos principais activistas e algumas OSC, visando pôr<br />
termo ao sistema repressivo colonial, acabou por ser o recurso à luta armada, que durou 10<br />
anos. Tal opção representou o primeiro precedente histórico com dimensão nacional (já que<br />
as formas de resistência armada nos séculos anteriores foram dispersas e localizadas), em que<br />
organizações e actores da sociedade civil uniram os seus esforços e optaram pelo recurso à violência<br />
armada, para combater um regime político fortemente violento e repressivo. A aceitação<br />
do recurso à violência depende dos motivos e dos valores dos actores envolvidos. Em Moçambique,<br />
o assunto afigura-se complexo, quando testemunhos históricos demonstram que o<br />
recurso à violência (banditismo) se tornou endémico (Newitt, 1997). Existe uma longa tradição,<br />
desde a violência colonial, passando pela violência revolucionária e a violência em prol da<br />
“democracia” (Macamo, 2008: 120), até à violência silenciosa ou aberta (linchamentos) na<br />
actualidade (Serra, 2003a, 2003b).<br />
A terceira razão da avaliação negativa sobre a SCM está relacionada com o eixo valores-impacto.<br />
A SCM carece de confiança, que não pode ser unicamente atribuída à fraqueza da sociedade<br />
em geral. As próprias OSC e as suas lideranças, salvo poucas e isoladas excepções, têm-se revelado<br />
incapazes de afirmar autoridade e credibilidade suficientes. Isto tem que ver com fraqueza<br />
de carácter, integridade e dignidade, por um lado, e fraqueza de competência, técnica e educacional,<br />
da maioria dos membros que compõem e lideram as OSC, por outro.<br />
IMPERATIVOS FUNDAMENTAIS NO FUTURO PRÓXIMO<br />
As três razões acima referidas como principais causas e fonte explicativa da fraqueza da actual<br />
SCM, resultando num certo balanço negativo da SCM, contêm os elementos básicos para inferir<br />
86 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
ideias sobre os principais desafios no futuro próximo. A título de conclusão deste trabalho, identificam-se<br />
seguidamente cinco desafios imperativos, se a SC em Moçambique quiser superar a sua<br />
actual fraca credibilidade, conquistando confiança, estima e credibilidade, entre os cidadãos nacionais<br />
e actores internacionais. Os imperativos são representados pelos seguintes conceitos-chave:<br />
1) Dignidade pacifista; 2) Honestidade corajosa; 3) Excelência; 4) Transparência; e 5) Confiança.<br />
IMPERATIVO DA DIGNIDADE PACIFISTA - “NÃO HÁ DUAS SEM TRÊS”?<br />
No último meio século, Moçambique sofreu 26 anos de duas guerras nacionais. Será que os moçambicanos<br />
irão ser capazes de evitar uma terceira guerra ou conflitos violentos generalizados,<br />
contrariando assim o adágio popular, “não há duas sem três”? Ou, pelo contrário, depois das duas<br />
guerras já vividas, será que a terceira ainda vem aí? Esta dúvida tem sido objecto de consideração,<br />
directa ou indirectamente (Couto, 2009; Francisco, 2008a; Macamo, 2008; Serra, 2003a; 2003b;<br />
Vaux et al., 2006). Não é demais recordar, também, o ponto demonstrado por Newitt (1997) sobre<br />
o banditismo endémico em Moçambique. Para Newitt, a guerra dos 16 anos, particularmente o<br />
efeito Renamo, não passou de mais uma manifestação do que faz parte do subconsciente dos moçambicanos.<br />
Recentemente, outros autores têm tentado convencer-se, mas sem convicção, que o<br />
pior já passou; exemplo disto é o relatório do MARP (Mecanismo Africano de Revisão de Pares):<br />
A conjuntura nacional e regional prevalecente permite acalentar esperanças de que o retorno à guerra<br />
em Moçambique é uma hipótese pouco provável. Contudo, existem no país factores de natureza político-militar<br />
e socioeconómica que devem ser tomados em linha de conta na governação política do<br />
país para assegurar que a paz, estabilidade e segurança se consolidem. São exemplos desses factores,<br />
a pobreza que afecta a maioria da população moçambicana, o elevado custo de vida, o desemprego,<br />
a exclusão social e a presença de homens armados, somente para citar alguns. (MARP, 2006: 19)<br />
“Acalentar esperanças” soa mais a hesitação reservada, perante uma realidade social e política<br />
ainda bastante pantanosa. Acalentar significa, no dicionário, alimentar, embalar, consolar, aquecer,<br />
ou trazer na mente (uma ideia) com desejo que aconteça. Francisco (2008a) argumentou,<br />
todavia, que muito pouco tem sido feito para se evitar, principalmente a longo prazo, o recrudescimento<br />
de conflitos violentos em Moçambique.<br />
Volvidas duas décadas, em relativa paz, acalentar esperanças é completamente insuficiente. O que<br />
falta, ou tem evitado, que Moçambique mergulhe num Estado Falhado? Três condições apenas:<br />
1) O apoio financeiro massivo ao Estado pelos doadores internacionais; 2) O facto de a liderança<br />
política dominante não se ter ainda convertido numa força política intoleravelmente repressiva;<br />
uma espécie de “Estado Novo”, similar ao que surgiu na Metrópole colonial nos anos 30 e manteve<br />
Moçambique, até 1975, sob um regime fascista, para além de colonial; 3) Que algumas das<br />
OSC se tenham esforçado, não obstante a grande fraqueza da generalidade da SCM, em recor-<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 87
dar que a sociedade moçambicana não deseja voltar a ser mergulhada em opções de violência<br />
armada, quanto é possível escolher alternativas pacíficas, construtivas e progressivas.<br />
Por enquanto, as demonstrações violentas em Maputo, na primeira semana de Fevereiro de<br />
2008, representaram apenas um ensaio isolado de erupção social violenta. 22 Todavia, o mais<br />
provável é que o custo de vida e tensão social aumentem, nos próximos anos, nos principais centros<br />
urbanos. Nesta perspectiva, um dos principais desafios para a SCM, no futuro próximo,<br />
seria reflectir com mais coragem, integridade e sentido de responsabilidade sobre o que fazer<br />
para evitar que a frágil democracia pluralista moçambicana desmorone. Se no passado os<br />
moçambicanos acabaram por encontrar solução para os conflitos violentos em que se viram<br />
mergulhados, continua a ser pertinente indagar sobre o que fazer para evitar que o vaticínio do<br />
famoso adágio popular, acima referido, não se concretize. 23<br />
IMPERATIVO DA HONESTIDADE CORAJOSA — QUEM PODE ESQUECER?<br />
“Não vamos esquecer o tempo que passou”, era uma das canções revolucionárias mais queridas<br />
de Samora Machel. Machel insistia na necessidade de se recordar sem complexos o<br />
período da profunda humilhação em que, como dizia a canção, “Ao pai de cinco filhos chamavam<br />
rapaz; à mãe de cinco filhos chamavam rapariga”. Porque o processo de exorcismo histórico<br />
dinamizado por Machel não foi concluído, muitos dos demónios do passado passaram<br />
a ser recordados em função das conveniências dos protagonistas de cada momento. Ironicamente,<br />
Machel poderá ter sido uma das primeiras vítimas do esforço que ele próprio não conseguiu<br />
concluir, ao ser remetido ao esquecimento, logo após o seu inesperado falecimento.<br />
O escritor Daniel da Costa (2008: 48) recorda, numa das suas crónicas, a solidão de Machel,<br />
no ano anterior à sua morte, mas que viria mais tarde a ser ultrapassada pelo cidadão comum,<br />
no mercado informal, nos “chapas” e nos “dumbanengues”. 24<br />
O relacionamento com o passado, mais ou menos remoto, molda a formação do carácter e da<br />
personalidade das novas gerações da sociedade civil. Mais do que uma questão cultural, o investimento<br />
em enterrar o passado e falsificar o presente acaba por correr a mentalidade das gerações<br />
contemporâneas, minando, em particular, a maturidade da sociedade civil. Isto afecta o<br />
sentido de dignidade, de justiça e de generosidade. Por exemplo, são cada vez mais frequentes<br />
as notícias e depoimentos sobre novas formas de escravidão e servidão doméstica, incluindo tráfico<br />
de pessoas e órgãos humanos, formas degradantes e desumanas de condições de trabalho<br />
e de vida, observadas em muitas partes de Moçambique. Como inverter este efeito negativo,<br />
com vista a que o passado contribua para o fortalecimento de um carácter, sentido de dignidade<br />
e auto-estima efectivos?<br />
Alguns observadores (e.g. A Liga dos Direitos Humanos, fontes electrónicas modernas, como o<br />
blog «Diário de um Sociólogo») não têm precisado de recorrer ao passado remoto e inspirarse<br />
nele, para denunciarem as práticas idênticas à escravidão e servidão doméstica prevalecentes<br />
88 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
nos séculos XIX e XX. Fazem-no porque possuem carácter forte e elevado sentido de dignidade<br />
afirmativa. Só que estas vozes (uma organização activa e um activista individual, entre algumas<br />
outras) são ainda vozes muito isoladas, dentro da actual SCM. Na maioria dos casos, as OSC reagem<br />
com indiferênçia e complacência, resignação ou dissimulação, para com as graves violações<br />
à dignidade humana, nos dias de hoje. Em parte, esta postura deriva da amnésia do tempo que<br />
passou e da incapacidade de usar o passado de forma mais construtiva e activa.<br />
As injustiças actuais não se tornam mais injustas por serem idênticas às do passado. Mas o que<br />
a comparação e contextualização histórica podem fazer é mostrar que, afinal, o progresso nas<br />
condições de vida é menos efectivo e real do que se diz e se tenta fazer crer. 25 A desvalorização<br />
(negação/deturpação) do passado, tanto remoto como recente, continuará a ser, no futuro<br />
próximo, um importante desafio. Da reflexão realizada neste texto, podem inferir-se algumas<br />
causas explicativas da má relação com o passado: os preconceitos da mentalidade colectivista,<br />
de origem comunitária, consuetudinária ou informal; a mentalidade mesquinha associada ao<br />
receio e inveja do sucesso uns dos outros; oportunismo e tentativa de aproveitamento, ou<br />
mesmo abuso, das pessoas mais ingénuas ou desfavorecidas. Quando a mentalidade de uma<br />
sociedade se torna refém dos esforços visando deturpar o passado, o mais provável é gastarem-se<br />
demasiadas energias a falsificar também o presente. Nos últimos anos, tem-se investido<br />
demasiadas expectativas nas aparências, e não na realidade; naquilo que se finge acreditar acontecer,<br />
em vez de no que realmente acontece na vida quotidiana (Francisco and Matter, 2007;<br />
Francisco, 2005a, 2005b, 2007b).<br />
IMPERATIVO DA EXCELÊNCIA: O BOM É INIMIGO DO ÓPTIMO<br />
Da terceira secção, relativa à breve caracterização das três esferas em que se alicerça a sociedade<br />
– Estado, mercado e família – diversos desafios para o desenvolvimento futuro da SC<br />
podem ser inferidos. Por exemplo, sabendo que o Estado contribuiu marginalmente com<br />
recursos financeiros (pouco mais de 3% das receitas da SC), a que se deve a sua contínua<br />
influência e excessiva supremacia sobre OSC formais? Justifica-se tamanha influência, tutela ou<br />
mesmo manipulação, por parte do Estado, e em particular do partido no poder e seu governo,<br />
sobre os desígnios das OSC (incluindo as ONG estrangeiras)?<br />
Se tal hegemonia resulta da forte herança do tipo de Estado-partido, criado em mais de três décadas<br />
de independência, o que poderão fazer as OSC para desenvolverem o seu carácter e competência,<br />
com vista a garantirem que os interesses comuns à sociedade não se tornem reféns dos<br />
interesses particulares estabelecidos?<br />
Outra explicação para a grande subordinação das OSC ao poder político e ao Estado tem que<br />
ver com a fraqueza das instituições económicas e sociais, no mercado e no domínio familiar. No<br />
quotidiano de expressão portuguesa é frequente ouvir-se dizer que “O óptimo é inimigo do<br />
bom”. Este ditado popular é usado como advertência para não se procurar alcançar o óptimo<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 89
ou a perfeição, sacrificando resultados satisfatórios e bons. Collins (2006, 2007) defende uma<br />
visão diferente: “O bom é inimigo do óptimo.”<br />
Esta última perspectiva é particularmente relevante para as OSC, principalmente as que são<br />
lideradas pela ideia de que uma forma de atingir a excelência é imitar as práticas das empresas<br />
privadas. Acontece, como demonstra Collins (2006: 1), que a crença segundo a qual as OSC deveriam<br />
tornarem-se “mais como o negócio” ou “mais como o sector privado”, para além de enganadora<br />
por tornar-se fatal. Investigações sistemáticas sobre o desempenho das empresas, com<br />
a pesquisa de Collins (2006, 2007), mostram que a maioria das empresas privadas oscila entre<br />
o medíocre e o bom; a maioria das empresas correlacionam-se mais com a mediocridade do<br />
que com a excelência. Poucas são excelentes. Por isso, questiona Collins (2006:1), qual seria o<br />
sentido de se importar práticas medíocres para o sector social, quando as práticas associadas à<br />
eficiência, disciplina e produtividade, são atributos da excelência, de modo algum dependentes<br />
da natureza (lucrativa ou não lucrativa) das organizações?<br />
Se as OSC e os seus líderes se identificarem com uma cultura organizacional de excelência, poderão<br />
conquistar inúmeras vantagens competitivas na mobilização de recursos, apoio técnico<br />
e autoridade perante os protagonistas, tanto no domínio público como privado. Tal como defende<br />
Collins, sem as pessoas certas não há líderes excelentes; com uma estrutura leve, sem<br />
hierarquia e sem burocracia, é mais fácil assegurar uma cultura de desempenho exigente e mais<br />
efectividade na obtenção de resultados; a tecnologia não é o detonador da excelência, mas sim<br />
um importante acelerador de impulsos em prol de maior qualidade.<br />
IMPERATIVO DA TRANSPARÊNCIA<br />
Já o clássico economista Adam Smith (citado por Sen, 2005: 136), há mais de 200 anos atrás,<br />
afirmava que os interesses estabelecidos tendem a sair vencedores mais por causa do seu<br />
melhor conhecimento dos seus próprios interesses do que do seu conhecimento e desejo de<br />
defenderem os interesses públicos. Os custos da corrupção na sociedade moçambicana são<br />
reais. A organização internacional Transparência Internacional, ao publicar anualmente o<br />
Índice de Percepção da Corrupção (IPC, ) tem reunido evidências sobre os elevados custos de<br />
transacção no sector público e privado. 26 A fiabilidade deste índice é por vezes questionada<br />
pelo facto de os entrevistados abrangidos poderem também ser influenciados pelos interesses<br />
a que estão ligados. Apesar disso, poucas são as dúvidas quanto ao facto de Moçambique integrar<br />
o grupo de países mais corruptos no mundo (Transparency International, 2009).<br />
Uma nova forma de poder, cada vez mais forte na actualidade, é a força da transparência<br />
assente em práticas honestas, íntegras e de comprometimento com objectivos socialmente viáveis.<br />
As OSC moçambicanas precisam de melhorar tanto a sua aparência como a realidade das<br />
suas práticas, até aqui ainda muito mergulhadas numa cultura de opacidade avessa à transparência.<br />
Todavia, o comprometimento genuíno e determinado com a transparência emerge<br />
90 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
presentemente como uma opção estratégica importante, quando se trata de concorrer na arena<br />
pública com organismos tanto do Estado como do mercado.<br />
A generalidade dos estudos que concluem que a SCM é fraca raramente deixam claro até onde<br />
vai a responsabilidade fora da SC e onde começa a responsabilidade dos líderes e das suas<br />
organizações. Neste trabalho reconhece-se que a SCM é uma arena complexa e diversificada,<br />
virtualmente sem limites, sem no entanto se conseguir estabelecer fronteiras rígidas e claramente<br />
delimitadoras da sociedade civil. Este problema de responsabilidade é consistente com<br />
as imensas contradições que caracterizam a vida normal das sociedades. Perante tal realidade,<br />
designadamente agónica, a partir da consideração dos dois eixos enquadradores das quatro<br />
dimensões da SC permitem destrinçar as responsabilidades dentro e fora da própria SC. Uma<br />
parte importante da fraqueza da SCM deriva da fraqueza da própria sociedade, ao nível das suas<br />
principais esferas – mercado, família e Estado. Porém, outra parte importante da fraqueza<br />
resulta do fraco carácter e baixo nível de competência das OSC e dos seus líderes.<br />
O IMPERATIVO DA CONFIANÇA<br />
Acreditar na actual SCM é extremamente arriscado, mas deixar de o fazer é mais ainda. Numa<br />
situação em que ninguém confia em ninguém, a burocracia e a intransparência aumentam, para<br />
compensar tanto a falta de confiança como a fraca competência e capacidade de produzir resultados.<br />
Mas esta realidade pode ser alterada e invertida. É possível conquistar a confiança das pessoas,<br />
desde que se mude o ambiente de fraca credibilidade em que as OSC se encontram mergulhadas.<br />
Acreditar naquilo que não vemos, no que está oculto, ou mesmo no que inexiste, é uma prática<br />
cultural amplamente generalizada entre os moçambicanos. Por que não acreditar em algo com potencial<br />
de se tornar realidade? Mesmo sem sinais evidentes, sem provas suficientes, uma expressão<br />
de confiança, genuína e efectiva, na SCM pode ser suficiente para despoletar os méritos e o<br />
potencial que inspire as OSC a desenvolver o seu carácter e maior competência, por si próprias.<br />
Se tal for feito, o desenvolvimento de uma SCM credível e confiável acabará, em si, por se converter<br />
num importante teste à capacidade e empenho dos principais actores da sociedade moçambicana<br />
de promoverem instituições favoráveis ao progresso. O sucesso ou fracasso do<br />
fortalecimento da SCM dependerá, em grande medida, da criação de infra-estruturas e condições<br />
institucionais para que as OSC se tornem mais competentes, eficientes e eficazes.<br />
AMBIENTE-ESTRUTURA: TRANSPARÊNCIA E RELEVÂNCIA SOCIAL<br />
Promover as OSC informais, através de vias flexíveis de formalização, maior visibilidade e reconhecimento<br />
das redes informais, abre campo para parcerias com enorme potencial. Parcerias<br />
entre as OSC formais e informais, com o objectivo de tornar as OSC com maior visibilidade<br />
pública mais relevantes socialmente, e vice-versa; com o objectivo de tornar as OSC informais<br />
socialmente relevantes mais visíveis e activas nos meios politicamente decisórios e influentes.<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 91
Dependendo das áreas, poderiam ser criadas redes de entreajuda e parceria com os mecanismos<br />
informais já existentes, visando proporcionar protecção social às famílias, serviços de poupança<br />
e sistemas financeiros comunitários informais. 27<br />
Um outro nível importante de reflexão tem que ver com as áreas de desenvolvimento, presentemente<br />
financiadas através do Orçamento do Estado e sectores da Administração Pública<br />
(PAP, 2009), mas cuja responsabilidade deveria ser reorientada quer para o mercado privado,<br />
quer para a sociedade civil; isto inclui as organizações cívicas e sociais, ao nível educacional, serviços<br />
sanitários, microfinanceiras locais (incluindo o actual fundo de iniciativa local, vulgo “7 milhões”<br />
gerido actualmente pelo Presidente da República e Administradores dos Distritos),<br />
mecanismos de protecção social, círculos de interesses recreativos e cultura.<br />
Uma área institucional de particular importância para a SCM é a questão da descentralização<br />
do poder de decisão e da gestão dos recursos financeiros, ao nível de base (distrital, de localidade<br />
e aldeia). Se emergisse uma concertação de OSC que fixassem metas temporais, em torno<br />
das quais iria tentar mobilizar os governantes do Estado e líderes políticos, no sentido de acelerar<br />
a extensão da autarcização democrática aos 128 distritos.<br />
VALORES-IMPACTO: INTEGRIDADE E CREDIBILIDADE<br />
Introduzir reformas no funcionamento e valores das OSC, visando aumentar a honestidade<br />
e probidade, constitui uma tarefa prioritária e urgente. Honestidade é o princípio que conduz<br />
as pessoas a dizerem a verdade. Probidade, é seguir o princípio de integridade de carácter,<br />
honradez e brio em manter as promessas assumidas perante si próprios e/ou perante os<br />
outros. Reforçar o sentido de integridade, implica garantir o cumprimento do que se promete;<br />
ser congruente (apropriado) em todos os aspectos; ter coragem de agir segundo os valores<br />
escolhidos. Desenvolver maior articulação entre a integridade e comportamentos audazes,<br />
corajosos e amáveis, é um esforço indispensável, considerando as experiências humilhantes,<br />
sofridas no passado remoto e recente. Cultivar qualidades como: respeito pelos outros, honestidade,<br />
transparência, lealdade, tolerância, rigor no desempenho das actividades, reconhecimento<br />
da realidade (em vez das aparências), explicitação franca das expectativas, responsabilização<br />
individual, cumprimento dos compromissos, apreciação da confiança mútua. Tudo isto pode<br />
contribuir para o fortalecimento da integridade de carácter de que carecem grande parte das<br />
actuais OSC.<br />
As OSC precisam de desenvolver competências a dois níveis: técnicas e conceptuais. Competência<br />
técnica – Aptidão e conhecimento necessários para levar a bom termo as tarefas. Conhecimento<br />
conceptual – capacidade para ver o todo e como as partes se relacionam entre si; capacidade para<br />
pensar estratégica e sistematicamente, e não apenas tacticamente. Ambas capacidades (técnica e<br />
conceptual) são habilidades potencialmente inspiradoras de confiança, por reflectirem os talentos,<br />
atitudes, conhecimentos, estilo e empenho na realização dos resultados.<br />
92 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
No passado, as OSC contribuíram para legitimar certas políticas do Governo e seus parceiros<br />
internacionais, com destaque para as seguintes: 1) Campanhas em prol do cancelamento da divida<br />
externa moçambicana. Infelizmente, após o cancelamento da dívida internacional, as OSC deixaram<br />
de exercer uma monitoria regular (exceptuando casos isolados, como o CIP e alguns investigadores<br />
individuais) do uso dos fundos; existem evidências de uso inapropriado ou desvios de<br />
aplicação (e.g. relatórios do Tribunal Administrativo; Hodges e Tibana, 2005). 2) A chamada “campanha<br />
da terra” constituiu uma bandeira de certas OSC que acreditaram que o actual modelo de<br />
Lei da Terra é adequado para defender os cidadãos e as comunidades rurais. Na prática, porém,<br />
existem evidências de um acelerado processo de acumulação de terra para fins especulativos, num<br />
processo de profunda desvalorização dos activos imobiliários e fundiários, no mercado formal, a<br />
favor da especulação, informalização e acumulação improdutiva de valores. Este é um dos temas<br />
que, em devido tempo, necessitaria de reflexão mais crítica e séria das OSC, se é que realmente irão<br />
conseguir pautar-se mais em conformidade com os interesses comuns públicos, em vez dos interesses<br />
privados estabelecidos (Francisco, 2008b, 2009a, 2009b; Francisco e Paulo, 2006).<br />
Existem outras áreas onde as OSC têm participado, nuns casos como meras observadoras, noutros<br />
com fraca possibilidade de intervenção; por exemplo, os chamados Observatórios, da<br />
pobreza ou do desenvolvimento, do processo eleitoral, e elaboração de políticas e visões nacionais<br />
(e.g. Agenda 2025) e sectoriais. Como mostram Francisco e Matter (2007), em muitos casos a participação<br />
tem acabado por servir para legitimar as políticas do Governo, dos empresários ou dos<br />
doadores, em vez de garantir a viabilização e sustentabilidade do bem comum. O problema não<br />
está em se legitimar e apoiar as acções consistentes com os interesses comuns. O problema, intimamente<br />
ligado à frágil reputação da SCM, deriva do facto de os interesses estabelecidos saírem<br />
geralmente vencedores, por conhecerem e agirem melhor em conformidade com os seus próprios<br />
interesses, não por conhecerem ou defenderem os interesses públicos melhor do que as OSC.<br />
Não é de mais repetir o que foi dito acima. Acreditar na actual sociedade civil moçambicana é<br />
extremamente arriscado, mas deixar de o fazer é mais ainda. A fraqueza e falta de confiança das<br />
OSC podem ser alteradas, desde que se invista nos imperativos acima identificados: coragem,<br />
honestidade, excelência, transparência e confiança.<br />
NOTAS<br />
1<br />
O autor agradece a leitura, sugestões e comentários, em particular de: Jonas Pohlmann, Luís de<br />
Brito, Ivette Fernandes e Sérgio Chichava.<br />
2<br />
O termo “Soberania” é entendido como direito fundamental do Estado com os seguintes atributos:<br />
a) Independência - se dependesse de outrem, não seria um poder soberano; b) Uno e indivisível<br />
– por definição só existe um poder soberano dentro do mesmo Estado; c) Inalienável e<br />
imprescindível – não é transferível para outrem. Assim, o termo “independente” surge como um<br />
dos atributos entre outros (Afonso, 1972: 14-15).<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 93
3<br />
Segundo Aleluia (in Laban, 1989: 23): “O Dr. Arouca e o NESAM é que romperam as boas relações<br />
com as autoridades.” Segundo Arouca: “Foi assim que, em 1972, fui eleito o ‘Preso Político<br />
do Ano’ e se fizeram manifestações de repúdio às portas das embaixadas dos países que apoiavam<br />
a potência colonizadora, tornando ao mesmo tempo conhecida a nossa luta pela independência<br />
em Moçambique.” (Arouca, 2000: 31).<br />
4<br />
De quem Knopfli disse, segundo Mendes (2006: 71), que “tinha aberto a picada para onde iam<br />
caminhar”.<br />
5<br />
UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique), MANU (Mozambique African<br />
National Union), UNAMI (União Nacional de Moçambique Independente).<br />
6<br />
Em 2000, Arouca escreveu: “Já não é novidade para ninguém de que em quase todas as colónias<br />
portuguesas a independência começou com o pé torto, até porque se tinha de seguir as directrizes,<br />
os métodos e os processos dos regimes que nos haviam pago a guerrilha. De um modo geral,<br />
os que ficaram com as rédeas da governação haviam sido treinados para guerrilheiros dentro da<br />
ideologia política dos patrocinadores das guerras de independência e implantaram no terreno em<br />
doses iguais de ingenuidade, impreparação e entusiasmo as doutrinas políticas que lhes haviam sido<br />
transmitidas. Dificilmente, o resultado podia ter sido pior.” (Arouca, 2000: 31).<br />
7<br />
O Paraíso na Outra Esquina, título do romance do peruano Mario Vargas Llosa (2003), elaborado<br />
em torno da metáfora do jogo popular de crianças; com os olhos vendados, um dos participantes<br />
tenta localizar “o paraíso” enquanto os demais procuram desviá-lo do rumo certo. Parafraseando<br />
um crítico do referido romance, este livro deixa um gosto amargo na boca do leitor e um<br />
grito silencioso de angústia no peito dos que ainda sonham com as utopias.<br />
8<br />
Puritanismo, no sentido de austeridade de princípios, aparentemente inspirado na experiência<br />
das chamadas zonas libertadas e empenho dos revolucionários, no combate aos valores da<br />
sociedade velha, tanto os chamados valores burgueses como os tradicionais-feudais. Jovens<br />
namorados ou até casais eram intersectados na rua, por guerrilheiros da Frelimo, sendo frequentemente<br />
acusados de corrupção sexual. Nas zonas rurais, onde era costume praticar ritos<br />
de iniciação e outras práticas, estas eram combatidas, com um ascetismo moralista extremo, em<br />
nome da perfeição moral da sociedade nova e superior almejada. Sobre isto ver testemunhos<br />
nos discursos de Samora Machel e na literatura de ficção relativa ao processo de transição para<br />
a independência.<br />
9<br />
Segundo certos activistas oriundos de distritos em províncias distantes da Cidade de Maputo, a<br />
simples presença de militantes da Frelimo e da Renamo em debates da sociedade civil provoca<br />
geralmente inibições e desconforto, incluindo retaliações e perseguições contra pessoas que<br />
assumam posições contrárias a um dos principais adversários políticos.<br />
10<br />
A Lei Orgânica aprovada pela República Portuguesa para Moçambique, antes da guerra pela<br />
independência, definia como cidadãos (não-indígenas) aqueles que possuíssem conhecimentos<br />
de português e exercessem uma profissão ou alguma forma de actividade económica auto-<br />
94 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
suficiente, ou estivessem ao serviço do Governo. Assimilação era o reconhecimento oficial da<br />
entrada de uma pessoa de raça negra na “comunidade lusíada”. Para se habilitar a este estatuto<br />
tinha de satisfazer as seguintes condições: 1) Saber ler, escrever e falar português correntemente;<br />
2) Ter meios suficientes para sustentar a família; 3) Ter bom comportamento;<br />
4) Ter a necessária educação e hábitos individuais e sociais de modo a poder viver sob a lei<br />
pública e privada de Portugal; 5) Fazer um requerimento à autoridade administrativa da área,<br />
que o levaria ao governador do distrito para ser aprovado. Segundo o Censo de 1955, existiam<br />
5,6 milhões de pessoas classificadas como “não-civilizadas” e 4554 “negros civilizados”<br />
ou assimilados (Mondlane, 1977: 46).<br />
11<br />
Todavia, a seguinte frase é da autoria de Mia Couto: “As que como eu, têm hoje quarenta e cinquenta<br />
anos… pertenceram, primeiro, a um Moçambique colonial. A um Moçambique que ainda<br />
não era Moçambique”, como até Mia Couto (2005: 86). PARABÉNS – “Soube que fazes anos,<br />
Moçambique. Estás de parabéns. Oxalá tenhas mais juizinho daqui para a frente… Agora, tens<br />
vinte e cinco anos.” (Costa, 2003: 12). Existem, felizmente, referências mais fidedignas. Sem falar<br />
das referências académicas, em livros de história (e.g. Serra, 2000; Pélissier, 2000; Newitt, 1997),<br />
a literatura de ficção contém exemplos dignos de referência: “Repensar a soberania arriscando<br />
mais democracia” (Macamo, 2006: 51-58); “Café com pernas”, de Costa, 2008: 63-65); o poema<br />
de Craveirinha (2008: 63), “Neo-moçambicano”.<br />
12<br />
Tal como escreveu Newitt (1997: 363), em nenhum momento foram os camponeses um alvo<br />
inerte da opressão. A política colonial e a reacção dos camponeses estabeleceram uma espécie<br />
de dialéctica hegeliana que a sociedade moçambicana herdada pela Frelimo acabou por criar.<br />
A experiência dos camponeses negros em Moçambique diferia em dois aspectos da dos seus<br />
congéneres em muitas outras partes de África, explica ainda Newitt. Em primeiro lugar, o trabalho<br />
não estava, de um modo geral, associado à perda da terra; continuavam a parte da agricultura<br />
de subsistência da aldeia. Em algumas zonas, a mão-de-obra contratada era recrutada entre<br />
as populações com excesso de mão-de-obra na economia rural, e apesar dos baixos salários dos<br />
trabalhadores, o seu rendimento levou a um aumento do consumo e mesmo a uma capacidade<br />
de acumular capital. O segundo factor foi a possibilidade de o camponês moçambicano emigrar.<br />
13<br />
“Os Naturais” “Eram os brancos naturais daqui. No início, eles não consideravam ‘natural’ quem<br />
não fosse branco… foi António Cabral quem fez vingar a ideia de que bastava ter nascido em<br />
Moçambique para ser ‘natural’. Por isso abriu as portas daquela Associação também aos africanos.<br />
Eu e um dos meus filhos fomos sócios. Quem quisesse entrar e fosse de facto natural podia<br />
ser sócio independentemente da sua cor ou raça.” Mas poucos acabaram por aderir, “… porque<br />
havia relutância. A nossa gente tinha grandes dúvidas quanto às intenções dos brancos.” (Aleluia,<br />
1989: 23-24). Segundo ainda Aleluia, as actividades dos Naturais era a “luta camuflada contra a<br />
hegemonia dos metropolitanos nas decisões políticas que afectavam a vida da colónia… Mas,<br />
como disse, [as autoridades] fecharam-na.”<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 95
14<br />
Como escreveu Leite de Vasconcelos, em 1987, sobre “A tentação do eufemismo”:<br />
“… o eufemismo é um instrumento corrente da linguagem, tanto mais utilizado quanto mais<br />
quem fala ou escreve sente a necessidade de atenuar a dureza e a fraqueza das expressões. No<br />
limite está a linguagem diplomática, feita quase exclusivamente de eufemismos, o que levou<br />
alguém a definir a diplomacia como a arte de mandar alguém para o inferno, deixando-o ansioso<br />
por fazer a viagem”(Vasconcelos, 2008: 66-67).<br />
15<br />
Expressão inspirada nos versos do poema “Neomoçambicano” de José Craveirinha, apresentado<br />
mais adiante.<br />
16<br />
“A estranha ausência que ninguém estranhou”, crónica de Leite de Vasconcelos (12.05.1989) –<br />
“Os estudantes universitários fizeram um movimento reivindicativo (…) Pensando melhor,<br />
houve neste processo uma coisa anormal e outra anormalíssima. Qual foi a coisa anormal? É<br />
que, em todo o processo, nem os estudantes, nem o Partido, nem o Governo, nem a moção<br />
das Forças de Defesa e Segurança fizeram uma única menção à OJM. E a própria OJM, pelo<br />
menos aparentemente, não fez um gesto, não disse uma palavra, não tomou uma iniciativa. (…)<br />
Qual foi a coisa anormalíssima? O facto de a ausência não ter espantado ninguém. Foi tomada<br />
como um fenómeno naturalíssimo. Quando mais de dois mil jovens universitários fazem um<br />
movimento reivindicativo com as dimensões que este teve, pelas razões que este apresentou<br />
(…) No que respeita à vida dos jovens estudantes universitários, a OJM parece ter querido<br />
provar que inexiste e os estudantes mostraram que, para eles, ela inexiste mesmo…” (Vasconcelos,<br />
2008: 175-177).<br />
17<br />
“… o Craveirinha começa, pela primeira vez, através da nossa página, a ser publicado. Porque<br />
era considerado burguês, ninguém o publicava aqui! Havia uma certa perseguição aos<br />
poemas do Craveirinha após a independência. Está a ver como são as coisas… Durante um<br />
grande período o Craveirinha foi considerado como um poeta burguês por alguns grupos intelectuais<br />
de extrema-esquerda e que tinham força aqui na praça intelectual” (da Silva, in<br />
Laban, 1989: 790).<br />
18<br />
Aleluia recorda quando ficou doente numa enfermaria de doentes “terminais”, sem assistência de<br />
espécie alguma, nem mesmo alimentação, durante treze dias; só não morreu porque através da<br />
Prof. Fátima Mendonça e do poeta José Craveirinha conseguiram alertar e sensibilizar Marcelino<br />
dos Santos para a sua grave situação. “Marcelino dos Santos tirou-me para um local onde<br />
os doentes são realmente tratados, arrancando-me assim às garras da morte.” (Aleluia, in Laban,<br />
1989: 34).<br />
19<br />
Alba (2006: 88), numa das suas breves anotações, nos anos 80, escreveu: “A pena de morte: o que<br />
há de melhor em nós sai derrotado disto.”<br />
20<br />
Nomeadamente como a publicação do primeiro censo nacional do INE (2006) às Instituições<br />
Sem Fins Lucrativos e o estudo promovido pela CIVICUS e a FDC sobre o Índice da Sociedade<br />
Civil em Moçambique 2007 (ISC 2007) (Francisco et al., 2008).<br />
96 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
21<br />
Singapura, com uma população equivalente à de Maputo (cidade mais província) em 1996 produzia<br />
em 6 dias o mesmo que Moçambique num ano (em 2006 precisou de 15 dias); Austrália,<br />
com população do mesmo tamanho que Moçambique, em 1996 produzia o mesmo que Moçambique<br />
em um dia e meio e em 2006 em pouco mais de dois dias e meio. Os Estados Unidos<br />
precisava em 1996 de uma hora e 45 minutos, enquanto em 2006 precisou de mais duas horas,<br />
para produzir o equivalente produzido por Moçambique num ano.<br />
22<br />
A violência, sobretudo a violência silenciosa, tem sido dissimulada com recurso ao mito de que o<br />
povo moçambicano é um povo não violento, ordeiro e pacífico, não obstante ter vivido duas guerras<br />
(totalizando 26 anos) no último meio século. “Eu penso que nunca fomos um povo pacífico”,<br />
afirma Couto, referindo-se às manifestações de 5 de Fevereiro de 2008: “Sempre vivemos com o<br />
preconceito de que somos um povo pacífico e quando acontecem estas situações de manifestações<br />
e linchamentos ficamos muito admirados. Mia Couto em primeira pessoa: Moçambicanos não são<br />
pacíficos. http://manueldearaujo.blogspot.com/2008/03/mia-couto-em-primeira-pessoa.html<br />
23<br />
As recentes declarações do veterano de guerra, Sr. Alberto Chipande, reivindicando o direito de<br />
os antigos combatentes da luta armada pela independência de se tornarem ricos (presumivelmente<br />
à custa do erário público), têm provocado reacções diversas, incluindo uma potencialmente<br />
perigosa. Alguns jovens questionam-se se não deverão também recorrer a novas formas<br />
de violência armada para fazerem ouvir suas aspirações e preocupações causadas pela crescente<br />
desigualdade e exclusão social.<br />
24<br />
“A solidão do presidente ficou no entanto mais nítida, após a queda do avião em Mbuzini,<br />
na África do Sul. Dentro do país, os amigos passaram a evitar o seu nome. Das poucas<br />
vezes que Machel fosse evocado, era para se associar a sua imagem a erros do passado,<br />
erros colegialmente cometidos, mas exclusivamente debitados na sua conta pessoal (…)<br />
Foi o homem da rua, o povo do chapa e dos dumbanengues quem ousou romper com o<br />
silêncio durante os anos de tácita amnésia e ousou celebrar o herói que hoje toda a gente<br />
de repente quer celebrar, a pretexto dos 20 anos de Mbuzini. Para imortalizar Samora Machel<br />
nos seus corações, essa gente humilde não ficou à espera de patrocínios ou de quaisquer<br />
cheques associados ao erário público. Nem de decretos.” (Costa, 2008: 48-49). Um<br />
exemplo muito recente de deturpação do passado para servir interesses estabelecidos surgiu<br />
na campanha eleitoral de 2009, ao divulgarem-se cartazes com dizeres como o seguinte<br />
Guebuza Pai de Moçambique” (“Guebuza Pai de Moçambique”? E Machel, virou avô?,<br />
http://bricolando.ning.com/forum/topics/guebuza-pai-de-mocambique-e).<br />
25<br />
Nem a propósito! Dias antes da conclusão deste artigo, o Jornal O País divulgou em 21.10.2009<br />
(p. 8) um artigo intitulado: “Empregados domésticos ainda são vistos como ‘escravos’”. Segundo<br />
a reportagem a AMUECO (Associação de Mulheres Empregadas Domésticas), com quase 5875<br />
membros, a falta de contratos de trabalho, discriminação no local de trabalho, o não respeito pelas<br />
horas normais de trabalho diário (8 horas), salários abaixo do mínimo estabelecido, falta de apoio<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 97
por parte do patronato em caso de doença ou de morte, são algumas, entre muitas outras, preocupações<br />
das trabalhadoras domésticas.<br />
26<br />
O IPC, apresentado numa escala de zero (percepção de muito corrupto) a dez (percepção de ausência<br />
de corrupção), classifica os níveis de percepção de corrupção no sector público, através<br />
de um índice composto de fontes especializadas. Moçambique tem oscilado entre 2,7 pontos<br />
em 2002, e 2,6 pontos em 2008 (Transparency International, 2009)<br />
27<br />
O MARP recomenda: “Na esfera do Objectivo 6: Encorajar a participação da Sociedade Civil<br />
alargada: ‘Promoção de um debate alargado sobre o que significa sociedade civil na perspectiva<br />
mais inclusiva, retomando como base a definição da Agenda 2025 (família, formações religiosas,<br />
sindicatos, associações cívicas, ONG, movimentos sociais, autoridades tradicionais e associações<br />
profissionais).’” (MARP, 2009: 58)<br />
REFERÊNCIAS<br />
Adam, Yussuf. 2005. Escapar aos Dentes do Crocodilo e Cair na Boca do Leopardo: Trajectória<br />
de Moçambique pós-colonial (1975-1990). Maputo: PROMÉDIA.<br />
Abreu, Francisco. 2002. Fundamentos de Estratégia Militar e Empresarial. Lisboa: Edições Sílabos.<br />
Acemoglu, Daron, Simon Johnson and James Robinson. 2001. “An African Success Story:<br />
Botswana. http://econ-www.mit.edu/faculty/.<br />
Acemoglu, Daron, Simon Johnson and James Robinson. 2003. “Understanding Prosperity and<br />
Poverty: Geography, Institutions and the Reversal of Fortune”. http://econwww.mit.edu/faculty.<br />
Acemoglu, Daron, Simon Johnson and James Robinson. 2004. “Institutions as the Fundamental<br />
Cause of Long-Run Growth”. http://econ-www.mit.edu/faculty/.<br />
Adamodjy, Bahassan. 2001. Milandos de Um Sonho. Lisboa: Quetzal Editores.<br />
Afonso, A. Martins. 1972. Princípios Fundamentais de Organização Política e Administrativa da Nação.<br />
Compêndio para o 3.º Ciclo dos Liceus. 3.ª Edição. Lisboa: Empresa Literária Fluminense.<br />
Ainadine, Elias (Cord.). 2008. Sumário de Estudo de Base: A Monitoria da Governação em<br />
Moçambique. Maputo: Mecanismo de Apoio à Sociedade Civil (MASC).<br />
Alba, Sebastião. 1981a. O Ritmo do Presságio. Maputo: Instituto Nacional do Livro e do Disco (INLD).<br />
Alba, Sebastião. 1981b. A Noite Dividida. Maputo: Instituto nacional do Livro e do Disco (INLD).<br />
Alba, Sebastião. 2006. Ventos da Minha Alma. Vila Nova de Famalicão: Quasi.<br />
Almeida, António de. 1964. “Os estados antigos dos nativos de Moçambique (sul do rio Save)<br />
quanto à liberdade”, in Moçambique: Curso de Extensão Universitária, Ano Lectivo de<br />
1964-1965. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, pp.<br />
97-119.<br />
Arnaldo, Carlos. 2007. Fecundidade e seus Determinantes Próximos em Moçambique: Uma análise<br />
dos níveis, tendências, diferenciais e variação regional. Maputo: Texto Editores.<br />
98 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
Arouca, Domingos. 2000. “A luta pela independência”, in Savana 23.06.2000, Suplemento<br />
Especial 25 de Junho, pp. P. 31.<br />
Artur, Armando. 1986. Espelho dos Dias. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos.<br />
Assembleia da República. 1975. Constituição de 25 de Junho de 1975. BR n.º 001, I Série, 25 de<br />
Junho de 1975, pág. 1-6.<br />
Assembleia da República. 1990. Constituição de 02 de Novembro de 1990. BR nº 048, I Série, 3.º<br />
Supl. de 29 de Novembro de 1990, pág. sn a id.<br />
Assembleia da República. 2004. Constituição de 16 de Novembro de 2004. BR n.º 051, I Série, de<br />
22 de Dezembro de 2004, pág. 543 a 573. Maputo: Imprensa Nacional de Moçambique.<br />
http://www.mozambique.mz/pdf/constituicao.pdf<br />
Azevedo, Licínio. 1983. Relatos do Povo Armado. 1.º Volume. Maputo: Cadernos Tempo.<br />
Ba Ka Khosa, Ungulani. 1987. Ualalapi (contos). Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos.<br />
Baptista, Heliodoro. 1980. Por Cima de Toda a Folha. Maputo: Associação dos Escritores<br />
Moçambicanos.<br />
Baptista, Heliodoro. 1991. A Filha de Thandi. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos.<br />
Bragança, Aquino e Immanuel Wallerstein. 1978. Quem é o Inimigo (II)? Lisboa: Iniciativas Editoriais.<br />
Cabrita, João M. 2001. Mozambique: The Tortuous Road to Democracy. Hampshire: Palgrave<br />
Macmillan.<br />
Cabrita, João M. 2005. A Morte de Samora Machel. Maputo: CIEDIMA.<br />
Castel-Branco, Carlos Nuno. 2009. Comentários no lançamento do relatório “Alguns desafios<br />
da indústria extractiva em Moçambique” por Thomas Selemane, editado pelo CIP, em<br />
2009, http://www.iese.ac.mz/lib/noticias/2009/ComentariosdeCastelBranco-<br />
RelCIP.pdf<br />
César, Amândio. 1972. Antologia do Conto Ultramarino. Lisboa: Editorial Verbo.<br />
Chiziane, Paulina. 1990. Balada de Amor ao Vento. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos.<br />
Chiziane, Paulina. 1997. Ventos do Apocalipse. Lisboa: Caminho.<br />
Chiziane, Paulina. 2002. Niketche: Uma História de Poligamia. Lisboa: Caminho.<br />
Coetzee, J. M. 2007. Diário de Um Mau Ano. Alfragide: Dom Quixote.<br />
Coissoró, Narana. 1965. “O regime das terras em Moçambique”, in Moçambique: Curso de<br />
Extensão Universitária, Ano Lectivo de 1964-1965. Lisboa: Instituto Superior de Ciências<br />
Sociais e Política Ultramarina, pp. 367-435.<br />
Collins, Jim. 2006. Good to Great and the Social Sectors: a monography to company good to great.<br />
London: RH Business Books.<br />
Collins, Jim. 2007. De Bom a Excelente. Cruz Quebrada: Casadasletras.<br />
Couto, Mia. 1983. Raíz de Orvalho (poemas). Cadernos Tempo. Maputo: Tempográfica.<br />
Couto, Mia. 1987. Vozes Anoitecidas. Lisboa: Caminho.<br />
Couto, Mia. 2003. O País do Queixa-Andar (Crónicas jornalísticas). Maputo: Ndjira.<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 99
Couto, Mia. 2005. Pensatempos. Textos de Opinião. Maputo: Ndjira.<br />
Couto, Mia. 2007. “Desvalorizar as paredes”, apresentação do livro de João Paulo Borges Coelho.<br />
2007. Campo de Trânsito. Maputo: Ndjira, in Jornal Notícias.<br />
Couto, Mia. 2009. E se Obama Fosse Africano? E Outras Interinvenções. Maputo: Editorial Ndjira.<br />
Covey, Stephen M.R. 2006. The Speed of Trust – The one thing that changes everything. New York:<br />
Simon & Schuster.<br />
Covey, Stephen R. 2005. O 8.º Hábito: Da Eficácia à Grandeza. Lisboa: Dinalivro.<br />
Craveirinha, José. 1999. Contacto e Outras Crónicas. Ministério dos Negócios Estrangeiros, Centro<br />
Cultural Português. Maputo: Instituto Camões.<br />
Craveirinha, José. 2008. “Neo-moçambicano”, in Não Matem a Cultura, Não Matem<br />
o Craveirinha. Naguib. Maputo: Museu Nacional de Arte.<br />
Craveirinha, José. 2009. O Folclore Moçambicano e as suas Tendências. Maputo: Alcance Editores.<br />
Craveirinha, José. Karingana ua Karingana. Maputo: Instituto Nacional do Livro e do Disco<br />
(INLD).<br />
Cuamba, Simeão. 1998. O Regresso às Origens. Maputo: DINAME.<br />
Fauvet, Paul e Marcelo Mosse. 2003. É Proibido pôr Algemas nas Palavras — Carlos Cardoso<br />
e a revolução moçambicana. Maputo: Ndjira.<br />
Feliciano, José Fialho, Carlos Manuel Lopes e Cristina Uderlsmann Rodrigues. 2008. Protecção<br />
Social, Economia Informal e Exclusão Social nos PALOP. S. João do Estoril: Principia.<br />
Ferrão, Virgílio Chile. 1975. Norte. Lourenço Marques: Edição Académica Lda.<br />
Ferreira, Renaldo. 1970. Poemas. 3.ª Ed. Lisboa. Portugália Editora.<br />
Fly, Peter (ed.). 2001. Moçambique. Ensaios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.<br />
Francisco, António e Konrad Matter. 2007. Poverty Observatory in Mozambique – Final report,<br />
http://www.gersterconsulting.ch/docs/Mozambique-Poverty-Report.pdf (acedido<br />
16.08.2009).<br />
Francisco, António e Margarida Paulo. 2006. Impacto da Economia Informal<br />
na Protecção Social, Pobreza e Exclusão: a dimensão oculta da informalidade<br />
em Moçambique, Cruzeiro do Sul - Instituto de Investigação para o Desenvolvimento<br />
José Negrão, Maputo, http://www.iid.org.mz/impacto_da_economia_informal.pdf.<br />
Francisco, António. 2007a. “Revolução Verde em Moçambique: Será Possível, Provável ou Viável<br />
no Contexto das Estratégias Actualmente Dominantes.” Artigo<br />
para a Conferência sobre o Desenvolvimento Agrário: Estratégia de Desenvolvimento<br />
Agrário no Contexto da Revolução Verde — Oportunidades para o Empowerment das<br />
Comunidades Rurais em Moçambique, Maputo 17-18 de Agosto, Fundação<br />
para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC),<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/af/pub/AAS1F_2007_Revolucao_Verde_em_Mocambique_<br />
revisto03.12.2008.pdf<br />
100 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
Francisco, António. 2007c. Moçambique no 1.º Quarto do Século XXI: Projecções e Cenários<br />
Possíveis do Crescimento e Desenvolvimento Económico em Moçambique 2000-2025.<br />
Conferência Inaugural do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (<strong>IESE</strong>), 19 de<br />
Setembro de 2007, Maputo,<br />
http://www.iese.ac.mz/?__target__=investigator&investigatorid=8.<br />
Francisco, António. 2009a. “Bazarconomia da Protecção Social em Moçambique na Primeira<br />
Década do Século XXI: Venenos do passado, remédios do presente, futuro<br />
envenenado?”<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/II_conf/GrupoII/Artigo%20sobre%20Proteccao<br />
%20Social_AFrancisco.pdf<br />
Francisco, António. 2009b. “Moçambique: Protecção Social no Contexto de um Estado Falido<br />
mas Não Falhado”, Artigo do Livro sobre Protecção Social com artigos da II<br />
Conferência do <strong>IESE</strong> (no prelo).<br />
Francisco, António. 2007b. Índice de Avaliação do Orçamento Provincial de Inhambane.<br />
Consultoria Financiada pela Cooperação Irlandesa, Setembro 2007, Maputo (não<br />
publicado).<br />
Francisco, António. 2008a. “Key Triggers and Constraints for Civic Action in Mozambique: Bad<br />
Things Come in Three.” Regional Workshop on Civil Society Building, Civil Action for<br />
Poverty Eradication, Johannesburg, 22-23 April 2008,<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/af/pub/CSBuildingWorkshop-Joburg-Indaba22-<br />
23.05.2008rev.pdf.<br />
Francisco, António, Albertina Mucavele, Paula Monjane e Sónia Seuane. 2008. Índice da<br />
Sociedade Civil em Moçambique 2007 - A sociedade civil moçambicana por dentro: avaliação,<br />
desafios, oportunidades e acção. Maputo: Fundação para o Desenvolvimento da<br />
Comunidade (FDC).<br />
Francisco, António. 2005a. Preparação da Metodologia do PARPA II: Papel e Funções do<br />
PARPA no Sistema de Planeamento. Direcção Nacional do Plano e Orçamento<br />
(DNPO). Maputo: Ministério do Plano e Finanças.<br />
Francisco, António. 2005b. Desenvolvimento da Metodologia para o PARPA II. Questões de<br />
Conteúdo. Direcção Nacional do Plano e Orçamento (DNPO). Maputo: Ministério do<br />
Plano e Finanças.<br />
Francisco, António. 2005c. Recensão crítica do livro A Economia Política do Orçamento em<br />
Moçambique, Tony Hodges e Roberto Tibana, Lisboa: Principia, para Africa Review of<br />
Books (ARB) da CODESRIA, Special Issue Dezembro 2005., pp. 13-14,<br />
http://www.iese.ac.mz/?__target__=investigator&investigatorid=8.<br />
Francisco, António. 2008b. “Bazarconomia de Moçambique: Economia de Sofala e Desafios.”<br />
Seminário sobre a Economia de Sofala, de 23 e 24 de Setembro 2008 na Universidade Jean<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 101
Piaget de Moçambique, Beira (Inhamízua).<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/noticias/Bazarconomia_Moz_Sofala.pdf.<br />
Freitas, Ascêncio de. 2000. O Canto da Sangardata. Lisboa: Editorial Notícias.<br />
Freitas, Ascêncio de. 2003. A Paz Enfurecida – romance. Lisboa: Editorial Caminho.<br />
Freitas, José da Costa. 1965. “Movimentos Subversivos Contra Moçambique”, in Moçambique:<br />
Curso de Extensão Universitária, Ano Lectivo de 1964-1965. Lisboa: Instituto Superior<br />
de Ciências Sociais e Política Ultramarina, pp. 317-337.<br />
Frelimo. 1977. Poesia de Combate 2. Edição Departamento do Trabalho Ideológico. Maputo:<br />
Frelimo.<br />
Frelimo. 1980. Poesia de Combate 3. Edição Departamento do Trabalho Ideológico. Maputo:<br />
Frelimo.<br />
Gonçalves, Carneiro. 1980. Contos e Lendas. 2.ª ed. Maputo: Instituto Nacional do Livro<br />
e do Disco (INLD).<br />
Gonçalves, Carneiro. 2005. A Escrita de Anton. 1.ª ed. Organização e estudo introdutório<br />
de Calane da Silva. Vila Nova de Famalicão: Quasi.<br />
Hayek, Friedrich A. 1976. The Road to Serfdom. Chicago: Phoenix Books.<br />
Heinrich, V. Finn (ed.). 2007. CIVICUS Global Survey of the State of Civil Society. Volume 1.<br />
Country Profile. Bloomfield: Kumanrian Press, Inc.<br />
Heinrich, Volkhart Finn. 2004. Assessing and Strengthening Civil Society Worldwide, A Project<br />
description of the CIVICUS Civil Society Index: A participatory needs assessment & actionplanning<br />
tool for Civil Society. Civicus Civil Society Index Paper Series, Vol. 2, Issue 1,<br />
www.civicus.org.<br />
Helder, Martins. 2001. Porquê Sakrani? Memórias dum Médico duma Guerrilha Esquecida.<br />
Maputo: Editorial Terceiro Milénio.<br />
Hodges,Tony e Roberto Tibana. 2005. A Economia Política do Orçamento em Moçambique. Lisboa<br />
Principia.<br />
Honwana, Luís Bernardo. 1978. Nós Matámos o Cão Tinhoso. Maputo: Instituto Nacional do<br />
Livro e do Disco (INLD).<br />
INE (Instituto Nacional de Estatística). 2006. As instituições sem fins lucrativos em Moçambique:<br />
Resultado do Primeiro Censo Nacional (2004-2005). Maputo: Instituto Nacional de<br />
Estatística, www.ine.gov.mz.<br />
Isaacman, Allen F. e Barbara S. Isaacman. 2006. Escravos, Escravagistas, Guerreiros e Caçadores: A<br />
Saga dos Chicundas do Vale do Zambeze. Maputo: Promédia.<br />
Jackson, David, Roberto Salomão e Velasco Bazima. 2004. Descentralização Planeamento e Sistema<br />
Orçamental em Moçambique. Cascais: Principia, Publicações Universitárias e Científicas.<br />
Jardim, Jorge. 1976. Moçambique Terra Queimada. Lisboa: Editorial Intervenção.<br />
102 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
Knopfli, Rui. 1999. A Seca e Outros Textos. Ministério dos Negócios Estrangeiros, Centro Cultural<br />
Português. Maputo: Instituto Camões.<br />
Laban, Michel. 1998. Moçambique: Encontro com Escritores – Ungulani Ba Ka Khosa. Vol. III.<br />
Porto: Fundação Eng. António de Almeida, pp. 1040-1080.<br />
Lisboa, Eugénio. 1973. Crónica dos Anos da Peste – I. Ensaios. Lourenço Marques: Livraria<br />
Académica.<br />
Llosa, Mario Vargas. 2003. O Paraíso na Outra Esquina. Lisboa: Dom Quixote.<br />
LSE (London School of Economics). 2004. “What is Civil Society?”. Centre for Civil Society,<br />
http://www.lse.ac.uk/collections/CCS/what_is_civil_society.htm<br />
(acedido a 27.10.2009).<br />
Macamo, Elísio. 2006a. Um País Cheio de Soluções. Maputo: Edições Meianoite.<br />
Macamo, Elísio. 2006b. Trepar o País pelos Ramos. Maputo: Ndjira.<br />
Macamo, Elísio. 2008. Planície Sem Fim. Maputo: Texto Editores.<br />
Machel, Samora Moisés. 1977. O Partido e as Classes Trabalhadoras Moçambicanas na Edificação<br />
da Democracia Popular. Relatório do Comité Central ao 3º Congresso. Documentos<br />
do 3.º Congresso da Frelimo. Maputo: Departamento do Trabalho Ideológico.<br />
Mallinda, Daniel Augusto. 2001. Cartografias da Nação Literária Moçambicana: Contos e Lendas,<br />
de Carneiro Gonçalves. Maputo: Promédia.<br />
MARP (Mecanismo Africano de Revisão de Pares). 2009. Relatório de Auto-avaliação do País -<br />
Tomo I e II. http://www.marp.org.mz. (acedido 05.08.2009).<br />
Matos, Luís de. 1965. “As Fronteiras de Moçambique”, in Moçambique: Curso de Extensão<br />
Universitária, Ano Lectivo de 1964-1965. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais<br />
e Política Ultramarina, pp. 35-55.<br />
Matsinhe, Cristiano. 2005. Tábula Rasa: Dinâmica da Resposta Moçambicana ao HIV/SIDA.<br />
Maputo: Textos Editores.<br />
Matusse, Renato. 2004. Guebuza: A Paixão pela Terra. Maputo: Macmillan Moçambique Lda.<br />
Melo, Guilherme de. 1980. Moçambique: Dez Anos Depois. Lisboa: Editorial Notícias.<br />
Mendes, João. 2006. DONDE PARA ONDE: Tópicos para o Estudo do Movimento de Libertação<br />
Nacional Moçambicano. Maputo: Promédia.<br />
Mendes, Orlando. 1965. Portagem. Romance. Beira: Notícias da Beira.<br />
Methven, Sara. 2008. The Impact of the Paris Declaration on Civil Society in Mozambique.<br />
An Alliance 2015 report. Alliance 2015 towards the eradication of poverty. International<br />
NGO Training and Research Centre.<br />
Mondlane, Eduardo. 1977. Lutar por Moçambique. 3.ª Edição. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora.<br />
Mouzinho, Mário. 2000. O Indígena no Pensamento Colonial Português, 1895-1961. Lisboa:<br />
Edições Universitárias Lusófonas.<br />
Naguib. 2008. Não Matem a Cultura, Não Matem o Craveirinha. Maputo: Museu Nacional de Arte.<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 103
Napoleoni, Loretta. 2009. O Lado Obscuro da Economia. Lisboa: Editorial Presença.<br />
Ncomo, Barnabé Lucas. 2003. Uria Simango: Um Homem, Uma Causa. Maputo: Edições Novafrica.<br />
Newitt, Malyn. 1997. História de Moçambique. Mira-Sintra: Publicações Europa-América.<br />
Ngoenha, Severino Elias. 2004. Os Tempos da Filosofia: Filosofia e Democracia Moçambicana.<br />
Maputo: Imprensa Universitária.<br />
OSISA (Open Society Initiative for Southern Africa). 2009a. Moçambique: Democracia e<br />
Participação Política: um relatório publicado pelo AfriMap e pela Open Society Initiative for<br />
Southern Africa. Joahnnesburg: Open Society Foundation.<br />
OSISA (Open Society Initiative for Southern Africa). 2009b. Civil Society Regulatory Framework:<br />
A Situational Analysis of Angola, Botswana, Democratic Republic of the Congo, Lesotho,<br />
Malawi, Mozambique, Namibia, Swaziland, Zambia and Zimbabwe. Johannesburg,<br />
forthcoming.(no prelo.)<br />
Ottaway, Marina and Thomas Carothers (eds.). 2000. Funding Virtue: Civil society aid and<br />
democracy promotion. Washington, DC: Carnegie Endowment for International Peace.<br />
PAP (Programme Aids Partnership). 2009. Financial Contribution, PAP’s Web Page,<br />
http://www.pap.org.mz/financial_contributions.htm (acedido 17.10.2009).<br />
Patraquim, Luís Carlos. 1980. Monção. Maputo: Instituto Nacional do Livro e do Disco (INLD).<br />
Pélissier, René. 2000. História de Moçambique: formação e oposição 1854-1918. Lisboa: Editorial Estampa.<br />
Pena, Areosa. 1982. O Cronista. Maputo: Cadernos Tempo.<br />
Pires, Adelino Serras e Fiona Claire Capstick. 2002. Ventos de Destruição: Memórias e Aventuras de<br />
Caça em Moçambique. 2.ª Ed. Lisboa: Bertrand Editora.<br />
Quive, Samuel António. 2007. Protecção Social em Moçambique: Uma rede furada de protecção<br />
social. Maputo: DIEMA.<br />
Ribeiro, Margarida Calafate e Maria Paula Meneses (org). 2008. Moçambique: Das palavras<br />
escritas. Porto: Edições Afrontamento.<br />
| Rocha, Aurélio. 2002. Associativismo e Nativismo em Moçambique: Contribuição para o Estudo das<br />
Origens do Nacionalismo Moçambicano (1990-1940). Maputo: Promédia.<br />
Salema, Ericino. 2008. “Sociedade Civil, Informação Pública e Comunicação Social”, Capítulo 7,<br />
in Governação e Integridade em Moçambique: Problemas e Desafios. Nuvunga, Adriano,<br />
Marcelo Mosse e Paolo sw Renzio (ed.), Maputo: CIP (Centro de Integridade Pública),<br />
pp. 80-89, http://www.integridadepublica.org.mz (acedido 19.10.2009).<br />
Saúte, Nelson. 1999. Os Apóstolos da Desgraça, Estórias. Lisboa: Publicações Dom Quixote.<br />
Saúte, Nelson. 2000. Os Narradores da Sobrevivência. Lisboa: Publicações Dom Quixote.<br />
Sen, Amartya. 2003. O Desenvolvimento como Liberdade. Lisboa: Gradiva.<br />
Serra, Carlos (ed.). 2000. História de Moçambique. Volume 1. Maputo: Imprensa Universitária.<br />
Serra, Carlos. 2003a. Em Cima de Uma Lâmina (um estudo sobre precaridade social em três cidades<br />
de Moçambique). Imprensa Universitária. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane.<br />
104 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
Serra, Carlos. 2003b. Cólera e Catarse: Infra-estruturas sociais de um mito nas zonas costeiras de<br />
Nampula (1998/2002). Imprensa Universitária. Maputo: Universidade Eduardo<br />
Mondlane.<br />
Shenga, Carlos and Robert Mattes. 2008. “Uncritical Citizenship” in a “Low-information”<br />
Society: Mozambicans in Comparative Perspective. CSSR Working Paper No. 212.<br />
Centre for Social Science Research.<br />
Silva, Teresa Cruz e. 2003. “As redes de solidariedade como intervenientes na resolução de<br />
litígios: o caso da Mafalala”, in Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças<br />
em Moçambique. Sousa Santos, Boaventura de e João Carlos Trindade, eds. Vol. 2. Porto:<br />
Edições Afrontamento, pp. 427-450.<br />
Sopa, António (ed.). 2001. SAMORA: Homem do Povo. Maputo: Maguezo Editores.<br />
Sopa, António, Calane da Silva e Olga Iglésias Neves (ed.) 2006. Rui de Noronha, Ao Mata-bicho.<br />
Maputo: Textos Editores.<br />
Souto, Amélia Neves de. 2007. Caetano e o Ocaso do “Império”: Administração e Guerra Colonial em<br />
Moçambique Durante o Marcelismo (1968-1974). Porto: Edições Afrontamento.<br />
Tapscott, Don e David Ticoll. 2005. A Empresa Transparente: Como a era da transparência<br />
revolucionará os negócios. 1.ª ed. São Paulo: M.Book.<br />
Transparency International. 2009. Corruption Perceptions Index (CPI)<br />
http://en.wikipedia.org/wiki/Corruption_Perceptions_Index#CPI_Ranking_.282002.E2<br />
.80.932008.29 (acedido a 04.11.2009).<br />
UNDP (United Nations Development Programme). 2007. Relatório de Desenvolvimento Humano<br />
2007/2008 – Combater as alterações climáticas: solidariedade humana num mundo dividido.<br />
Coimbra: Edições Almedina, SA.<br />
UNDP (United Nations Development Programme). 2009. Relatório de Desenvolvimento Humano<br />
2009 — Ultrapassar barreiras: Mobilidade e desenvolvimentos humanos. Coimbra: Edições<br />
Almedina, SA.<br />
Vasconcelos, Leite de. 1999. Pela Boca Morre o Peixe (Crónicas). Associação dos Amigos de Leite<br />
de Vasconcelos. Maputo: Promedia.<br />
Vasconcelos, Leite de. 2008. Contraponto (crónicas). Maputo: Promédia.<br />
Veloso, Jacinto. 2006. Memórias em Voo Rasante. Maputo: Sográfica, Lda.<br />
Wegher, P. Luís. 1999. Um Olhar sobre o Niassa. Vol. 2. Maputo: Paulinas Editorial.<br />
White, Eduardo. 1984. Amor sobre o Índico.<br />
White, Eduardo. 2002. As Falas do Escorpião – Novela. Maputo: Fundação Universitária.<br />
Wikipédia. 2009. Sociedade Civil. http://pt.wikipedia.org/wiki/Sociedade_civil (acedido a<br />
15.10.2009).<br />
Xavier, Romão. 2009. ”Que Organizações da Sociedade Civil Moçambique Tem? (3)”, in<br />
Magazine Independente, 19.08.2009, p. 13.<br />
Sociedade Civil em Moçambique Desafios para Moçambique 2010 105
106 Desafios para Moçambique 2010 Sociedade Civil em Moçambique
DESAFIOS DA GESTÃO MUNICIPAL<br />
DE UMA LÓGICA ADMINISTRATIVA<br />
E INSTITUCIONAL PARA UMA LÓGICA<br />
DE DESENVOLVIMENTO ORGANIZACIONAL<br />
E SUSTENTABILIDADE<br />
João Noronha | Lídia Brito<br />
INTRODUÇÃO<br />
O processo de autarcização em Moçambique iniciou-se há pouco mais de dez anos. Apesar de<br />
se tratar de um processo jovem, ele possibilita já uma análise dos factores-chave que têm permitido<br />
a sua consolidação como um processo já irreversível e a identificação de questões fundamentais<br />
ao seu debate, considerando o muito que há ainda por fazer para que as nossas<br />
autarquias possam ser, verdadeiramente, um pólo de desenvolvimento local.<br />
Durante esta primeira década, foram levadas a cabo interessantes experiências em vários dos<br />
nossos Municípios, que nos parece pertinente explorar e partilhar, uma vez que nos podem<br />
conduzir a um debate do que falta trilhar para que as autarquias possam efectivamente cumprir<br />
o seu papel no desenvolvimento nacional e no reforço da democracia em Moçambique.<br />
Os autores tiveram a oportunidade de trabalhar na formulação e implementação de programas de<br />
desenvolvimento municipal, como os casos do Programa de Desenvolvimento Municipal de Maputo<br />
(PROMAPUTO) desenhado para um período de cerca de 10 anos e financiado conjuntamente<br />
pelo Conselho Municipal de Maputo, pelo Governo Central e pelo Banco Mundial, e do Programa<br />
de Desenvolvimento Municipal de 13 Municípios da Zona Centro e Norte do País, desenhado para<br />
um período de 3 anos. Nestes programas foram experimentadas metodologias de diagnóstico e autodiagnóstico<br />
de maturidade organizacional, e têm sido experimentados modelos de geração de sustentabilidade,<br />
baseados em lógicas sistémicas, sobre os quais é importante reflectir.<br />
Este artigo, marcado claramente por um enfoque de gestão, não pretende esgotar o tema, mas<br />
sim levantar questões que possam ajudar a governação e a academia a reflectir sobre os vários<br />
pilares do desenvolvimento autárquico e a importância de garantir a sustentabilidade sociocultural,<br />
financeira, política e ambiental dos Municípios.<br />
CONTEXTO E DESAFIOS<br />
Partimos da premissa de que o desenvolvimento municipal está intimamente ligado a dois factores:<br />
o desenvolvimento urbano e a gestão dos espaços e serviços urbanos.<br />
Desafios da Gestão Municipal Desafios para Moçambique 2010<br />
107
A nível de desenvolvimento urbano, estima-se que nos próximos anos haja um crescimento<br />
dramático da percentagem da população que viverá em zonas urbanas, prevendo-se inclusivamente<br />
que esta ultrapasse a percentagem que viverá em zonas rurais. Esta dinâmica, associada<br />
à ausência de emprego, formal e informal, que se observa e se estima que continuará a observar-se<br />
nas zonas urbanas, coloca uma grande pressão sobre a efectiva capacidade de gerir o espaço<br />
e os serviços urbanos e poderá contribuir para o aumento da pobreza urbana, que é uma<br />
pobreza mais impiedosa que a rural, pois é uma pobreza com menos recursos para a sua superação.<br />
A pobreza urbana tem por base, não a falta de serviços básicos, mas sim a falta de emprego<br />
e fontes de rendimento, pois nas zonas urbanas o acesso a recursos e meios de produção<br />
é muito limitado.<br />
Na análise desta dinâmica também se torna necessário repensar o modelo de desenvolvimento<br />
rural e em que medida é que este não passará também pela urbanização dos espaços rurais,<br />
como forma de facilitar as dinâmicas económicas, a prestação de serviços e a organização das<br />
pessoas.<br />
Uma questão que pretendemos trazer à reflexão é até que ponto as políticas públicas podem<br />
efectivamente influenciar estas dinâmicas ou em que medida elas serão sempre políticas reactivas,<br />
destinadas a minimizar os efeitos de uma migração campo-cidade não controlada.<br />
A nível da gestão dos espaços e serviços urbanos, observam-se algumas tendências positivas na<br />
esfera da sustentabilidade política e económica. Infelizmente, o mesmo não se pode dizer relativamente<br />
à sustentabilidade sociocultural e ambiental.<br />
O incremento da sustentabilidade política é uma realidade, na medida em que as políticas de<br />
democratização e descentralização em curso no país estabeleceram que as autarquias deverão<br />
ser geridas de acordo com os princípios de autonomia administrativa, financeira e patrimonial.<br />
O exercício da democracia é, já hoje, um exercício real e tende a consolidar-se pelo escrutínio<br />
social e pela dinâmica institucional, sustentados numa base legal sólida e abrangente.<br />
O fortalecimento deste exercício passa essencialmente pelo modelo de governação, em particular<br />
nas suas vertentes de ligação aos munícipes, ligação com outros órgãos do poder central<br />
e relação com o legislativo, mas é um processo irreversível e com um alcance muito importante,<br />
principalmente se considerarmos que decorreram cerca de dez anos desde as primeiras eleições<br />
autárquicas.<br />
Do exercício de avaliação realizado no desenho do Programa de Desenvolvimento Municipal<br />
para 13 Municípios da zona centro e norte do País, a variável governação que incorporava um<br />
conjunto claro de critérios relacionados com Funções da Assembleia Municipal, Mecanismos<br />
de Responsabilização da Gestão, Transparência, Educação Cívica e Participação teve uma boa<br />
avaliação média. O mesmo ocorreu com a avaliação da variável Descentralização, que incluía<br />
critérios relacionados com o exercício das autonomias financeira, administrativa e patrimonial,<br />
apesar de neste caso a avaliação média ser menor.<br />
108 Desafios para Moçambique 2010 Desafios da Gestão Municipal
Alguns municípios, como é o caso do Município de Maputo, iniciaram também um processo<br />
de desconcentração com vista a potenciar o papel de unidades territoriais menores como os Distritos<br />
Municipais na prestação de serviços públicos, o que pode ser considerado um embrião<br />
de um processo que permite aproximar ainda mais os serviços municipais aos seus beneficiários.<br />
Em muitos municípios, estão já institucionalizados e funcionais os Conselhos Consultivos<br />
locais ao nível dos distritos municipais e bairros, como forma de organização dos munícipes,<br />
que facilita o diálogo com as estruturas de gestão municipal, o processo de planificação e<br />
orçamentação e o processo de prestação de contas.<br />
Se assumirmos que as políticas de descentralização em curso no país privilegiam também a<br />
desconcentração para o nível do Distrito, como estratégia de fortalecimento do poder local, de<br />
exercício de cidadania e prestação de serviços públicos, uma reflexão importante a fazer é também<br />
até que ponto as estratégias de desconcentração para os distritos e de descentralização através<br />
da autarcização não podem ou não devem ser combinadas numa estratégia nacional<br />
coordenada de descentralização. Esta abordagem integrada permitirá acelerar o desenvolvimento<br />
local através da urbanização de espaços considerados rurais, potenciando a capacidade<br />
produtiva local, o aumento de oferta de serviços urbanos a mais cidadãos e uma possível viragem<br />
na movimentação campo-cidade.<br />
A sustentabilidade política tem sido acompanhada também pelo aumento da sustentabilidade<br />
financeira: por um lado, a maioria dos municípios têm incrementado as suas receitas aproximando<br />
as receitas próprias das despesas correntes; por outro, têm utilizado as transferências do<br />
Estado para fazer face a despesas de investimento.<br />
O grande desafio para os municípios, nos próximos anos, será, por um lado, aumentar a arrecadação<br />
tirando partido de todo o potencial de receitas e, por outro, mobilizar outros recursos<br />
para fazer face aos avultados investimentos, em particular em infra-estruturas que possibilitarão<br />
o desenvolvimento urbano e protecção ambiental, já que muitos destes investimentos estão<br />
acima da capacidade real ou potencial dos municípios e mesmo do próprio Governo.<br />
Para que isto seja possível, é fundamental repensar não só a capacidade de pagar, como a<br />
vontade de pagar, ligando esta análise às políticas fiscais. A título de exemplo, com a recente<br />
alteração à Lei das Finanças Autárquicas, algumas autarquias (como Maputo e Beira) viram<br />
reduzida a sua capacidade de arrecadar receitas com os imóveis (através do imposto predial<br />
autárquico) de 0,7% a 1% do valor do imóvel para 0,4% do valor do imóvel e isenção dos imóveis<br />
novos, por um período de cinco anos. Este foi um sinal claro de que, muitas vezes, com<br />
a intenção de incentivar o investimento, neste caso a construção de habitações, se acaba provocando<br />
um efeito perverso – diminuir as receitas, piorar os serviços e, consequentemente,<br />
desincentivar o investimento. Como agravante, esta medida privilegiou também um grupo<br />
social que, tendo capacidade para dar um contributo justo para as receitas, relativamente ao<br />
espaço que ocupa, acaba não o fazendo. Esta reflexão leva-nos também a repensar qual deve<br />
Desafios da Gestão Municipal Desafios para Moçambique 2010 109
ser o modelo de parceria que o Estado, através dos Conselhos Municipais, pode estabelecer<br />
com os investidores imobiliários para acelerar a construção.<br />
Este pequeno exemplo, somado aos múltiplos exemplos de desperdício de recursos, como é o<br />
caso da protecção de residências, por insuficiente capacidade de olhar para o espaço comum<br />
e encontrar soluções de organização conjunta dos munícipes, obriga-nos à reflexão sobre o<br />
papel da gestão municipal na criação de um novo conceito de espaço, inclusão e intervenção<br />
comum.<br />
Um outro conceito que gostaríamos de introduzir e que transcende o conceito de sustentabilidade<br />
económica é o da sustentabilidade dos serviços, entendida com a capacidade da gestão municipal<br />
para prestar os serviços que os munícipes esperam, aumentando permanentemente a sua cobertura<br />
e a qualidade de prestação. Sustentabilidade dos serviços significa os gestores dos serviços terem a<br />
capacidade de identificar as prioridades dos munícipes e traduzir essas prioridades em processos<br />
internos ou no estabelecimento de parcerias para as satisfazer. Significa também dotar os Conselhos<br />
Municipais de capacidades e competências não só para prestar os serviços, como para analisar o seu<br />
desempenho, racionalizar os recursos envolvidos e introduzir mecanismos de melhoria contínua. Se,<br />
numa organização tradicional, este desafio é já um desafio complexo, numa organização influenciada<br />
pela janela temporal dos mandatos, este desafio torna-se ainda mais complexo.<br />
As reflexões que se impõem neste âmbito são pois: como melhorar a percepção sobre as<br />
necessidades e prioridades dos munícipes; como optimizar os processos de gestão e a modelação<br />
financeira dos serviços; quais os modelos de organização e de gestão que garantem que<br />
as competências se mantêm e se reforçam, independentemente dos mandatos.<br />
DINÂMICAS DE CRESCIMENTO E SUSTENTABILIDADES<br />
Sustentabilidade é um processo complexo, dinâmico e evolutivo que passa necessariamente<br />
por entender as interdependências dos vários componentes de um sistema, sejam elas relações<br />
endógenas ou relações entre este e o contexto em que está inserido. É pois necessário começar<br />
por entender as dinâmicas de crescimento e os factores de mudança presentes no próprio<br />
sistema, para compreender como as diferentes sustentabilidades se interpenetram e explicar a<br />
importância de se utilizar, em vez de uma única abordagem, um conjunto de abordagens que,<br />
no seu todo, permitem que os municípios se desenvolvam de forma harmoniosa.<br />
DINÂMICAS DE CRESCIMENTO<br />
As dinâmicas de crescimento são influenciadas pelos movimentos sociais dentro e em torno dos<br />
espaços urbanos. Assim sendo, um primeiro passo para o desenho de políticas e programas<br />
públicos é o estudo e compreensão destes movimentos, procurando entender como as dinâmicas<br />
socio-culturais e económicas se relacionam com a demográfica, espacial e de serviços aos<br />
cidadãos.<br />
110 Desafios para Moçambique 2010 Desafios da Gestão Municipal
No âmbito económico, é fundamental compreender a dinâmica entre a economia formal e<br />
informal, pelas suas enormes implicações em termos de sustentabilidade social, de emprego<br />
e de geração de receitas públicas.<br />
Estes movimentos sociais têm de ser analisados e compreendidos, uma vez que qualquer<br />
intervenção a nível de políticas públicas para o desenvolvimento urbano, deve basear-se na premissa<br />
de estas políticas poderem tirar partido dos movimentos e energias sociais existentes, se<br />
necessário apoiando a sua inflexão, mas nunca os contrariando. Baseando-se neste princípio,<br />
e apenas para referir um pequeno exemplo, no município de Durban na África do Sul, uma<br />
cooperação mais efectiva e transparente entre as lojas formais e os vendedores informais de<br />
rua permitiu, não só aumentar a oferta nesses espaços, como endereçar diferentes segmentos<br />
de mercado, e ainda, manter os espaços comuns limpos e em segurança. 1<br />
O desenho de políticas públicas é de uma ou de outra forma um processo de procura de consensos<br />
entre os vários actores sociais de um espaço ou esfera pública. Nessa perspectiva, um instrumento<br />
importante de geração de consensos poderá ser uma reflexão sobre a Visão do Município.<br />
Este exercício, já realizado em algumas cidades do país, procura por um lado traduzir os valores<br />
e as expectativas dos munícipes em propósitos comuns e, por outro (e talvez ainda mais importante),<br />
identificar o que tem de único e distintivo esse espaço urbano. Existem várias formas<br />
de chegar a esse resultado, tendo já sido utilizadas com sucesso: a consulta pública; os inquéritos<br />
aos munícipes; a reflexão conjunta com vários intervenientes representando diferentes<br />
correntes de pensamento e interesses; o desenho da Visão do Município em forma gráfica; a<br />
procura de palavras-chave para escrever uma declaração de Visão do Município. Mas, mais importante<br />
do que o método a utilizar é a criação de um espaço de reflexão e interacção em que<br />
se possa tirar partido do enorme conhecimento (muitas vezes latente) que as pessoas têm e<br />
libertar a sua intuição sobre o que pode e deve ser o seu próprio futuro.<br />
Um outro instrumento importante de criação de consenso é o planeamento a longo prazo, combinando<br />
os métodos tradicionais de planeamento com os métodos utilizados na formulação de<br />
planos de estrutura urbanos. O planeamento a longo prazo traduz a visão dos municípios em prioridades<br />
de governação, objectivos, metas, programas e projectos de intervenção, permitindo ainda<br />
definir com clareza os recursos necessários para o alcance destes objectivos. É, portanto, também<br />
um importante instrumento na mobilização de recursos para a sua própria implementação.<br />
No caso do município de Maputo, uma conclusão importante destes dois exercícios é que existe<br />
capacidade nacional para a sua realização, quer nos técnicos e investigadores, quer nos cidadãos,<br />
capacidade esta que foi mobilizada e alavancada pelas oportunidades criadas no desenho do<br />
PROMAPUTO, do Plano de Estrutura Urbano e do Plano Director de Gestão de Resíduos<br />
Sólidos Urbanos.<br />
A outra conclusão, foi que quando se pensa em desenvolvimento espacial, em particular nas grandes<br />
cidades, tem de se pensar numa lógica metropolitana, visto que as decisões sobre dinâmicas<br />
Desafios da Gestão Municipal Desafios para Moçambique 2010 111
económicas, sociais e ambientais têm implicações no espaço circunvizinho à cidade, onde se<br />
podem situar outras cidades. Uma visão restritiva do enquadramento legal ou a inexistência de mecanismos<br />
eficazes de coordenação entre municípios pode levar a que as dinâmicas metropolitanas<br />
sejam intencionalmente esquecidas no plano de estrutura e no plano estratégico, ou à não<br />
aprovação de algum destes instrumentos, como aconteceu no Município de Maputo em 1999.<br />
Outra conclusão, com implicações importantes na forma como a gestão municipal se estrutura,<br />
é que tem de haver uma clara separação entre os processos de planeamento (que são de nível<br />
estratégico), e os processos de atribuição dos direitos de uso e aproveitamento da terra (que são<br />
de nível operacional), pois se tal não acontecer, a lógica operacional acaba sobrepondo-se ao planeamento<br />
espacial, e a lógica de curto prazo, sobrepondo-se à lógica de longo prazo.<br />
A introdução desta lógica espacial nos processos de planeamento estratégico, hoje que já são<br />
realizados na maior parte dos Distritos, poderá também acelerar a urbanização dos espaços<br />
rurais. Aproveitando o movimento e obrigatoriedade legal de elaboração de planos de ordena -<br />
mento do território criada pela recente aprovação da Lei, devem adicionar-se às metodologias<br />
para elaboração dos Planos Estratégicos de Desenvolvimento dos Distritos elementos que permitam<br />
a incorporação desta lógica.<br />
A participação dos cidadãos na tomada de decisões sobre os espaços e serviços urbanos tem<br />
sido também garantida por outros instrumentos de governação aberta como, por exemplo, a<br />
nível do Município de Maputo, o orçamento participativo em fase de teste e os inquéritos anuais<br />
aos cidadãos sobre a relevância e qualidade dos serviços públicos.<br />
Mas a participação cidadã na vida do Município não se esgota no envolvimento dos munícipes<br />
nos espaços de consulta, prestação de contas ou elaboração dos orçamentos. Ela tem de ser<br />
entendida como participação, a todos os níveis, sobre o que acontece nos espaços urbanos, sem<br />
restrições ao direito e ao dever de cada munícipe tomar parte e se responsabilizar pela melhoria<br />
permanente da sua qualidade.<br />
Isto significa que todos os munícipes devem não só tomar consciência dos seus direitos mas<br />
também dos seus deveres. Em termos de deveres, tomando consciência de que os serviços públicos<br />
têm custos e têm de ser sustentáveis para serem oferecidos com qualidade e, portanto,<br />
se não forem pagos, por todos, os impostos e taxas devidos ao Município, o peso da sustentabilidade<br />
recairá apenas sobre uma parte dos cidadãos. Significa também que deverá ser aumentada<br />
a consciência de que a manutenção das infra-estruturas urbanas tem normalmente<br />
um custo elevado, e que qualquer iniciativa de tratamento e cuidado com espaços comuns pode<br />
diminuir esse custo. Ou ainda, a consciência de que a tranquilidade e segurança passam por uma<br />
postura ética diferente (por exemplo, que se nenhum cidadão adquirisse produtos roubados,<br />
provavelmente o furto diminuiria ou terminaria).<br />
Mas esta exigência de uma nova postura, mais ética porque preocupada com o bem comum, tem<br />
também uma contrapartida importante na postura das estruturas de governação dos municí-<br />
112 Desafios para Moçambique 2010 Desafios da Gestão Municipal
pios: implica, por exemplo, tornar mais transparente a utilização dos vários recursos públicos,<br />
quer de transferências do Estado e Financiadores, quer de receitas próprias. A participação cidadã<br />
será, provavelmente, directamente proporcional à transparência da governação pública.<br />
SUSTENTABILIDADE POLÍTICA<br />
A sustentabilidade política passa necessariamente por uma evolução da forma como os vários<br />
poderes se relacionam e reconfiguram os modelos mentais dos vários actores dessa interacção.<br />
O grande desafio num processo de autarcização que se pretende sustentável e verdadeiramente<br />
democrático reside no entendimento dos vários modelos mentais possíveis e da escolha estratégica<br />
daquele que mais sentido faz para aos objectivos finais do processo.<br />
A maior parte das vezes, o desafio é encontrar o equilíbrio entre modelos que parecem à partida<br />
excludentes mas que, em função do contexto existente e dos serviços que se pretendem<br />
oferecer, acabam por ser complementares.<br />
Há três modelos mentais básicos associados ao Estado: o Estado Implementador, o Estado<br />
Regulador e o Estado Promotor-Desafiador.<br />
Um processo de autarcização irreversível, e que se pretende politicamente sustentável, pressupõe<br />
uma mudança clara do Estado Implementador para um Estado Regulador. Este pressuposto<br />
é sustentado pelo pacote legislativo autárquico que, como já mencionado anteriormente, abre<br />
espaço para a busca de uma autonomia verdadeira dos municípios.<br />
A pergunta que fica é em que medida essa transição do papel do Estado foi completa, levantando<br />
uma segunda – se era ou não necessário que a transição fosse total ou ainda se o gradualismo<br />
da autarcização, em particular na sua componente de autonomia financeira e sobretudo fiscal,<br />
não impõe ritmos diferentes nessa transição em função das características de cada município.<br />
Pela análise que é possível ser feita, há claramente uma transição para uma intervenção do Estado<br />
mais no âmbito regulador do que no âmbito implementador, com a excepção de serviços públicos<br />
que por lei já deveriam ser implementados pelos Municípios, mas que continuam a ser implementados<br />
pelo Estado, como por exemplo a Educação Primária e os serviços básicos de saúde.<br />
A dúvida que fica é se, nesta transição, se acautelaram alguns princípios básicos como a transferência<br />
necessária de recursos de implementação e a operacionalização dos instrumentos legais<br />
ao nível de implementação. A principal constatação da análise de toda a legislação e regulamentação<br />
autárquica realizada no processo de elaboração do Programa de Desenvolvimento<br />
Municipal de 13 Municípios da Zona Centro e Norte foi exactamente a de que muitos destes<br />
instrumentos não são suficientemente conhecidos ou não estão elaborados a um nível que<br />
facilite a sua implementação.<br />
A análise do pacote legal autárquico, sendo positiva, levanta questões que merecem atenção<br />
particular como a questão da dupla tutela Ministério de Administração Estatal/Ministério de<br />
Finanças (MAE/MF), a falta de reconfiguração de papéis no Estado que efective a descentrali-<br />
Desafios da Gestão Municipal Desafios para Moçambique 2010 113
zação dos poderes de implementação e uma falta de clareza do papel do Representante do<br />
Estado no município provocando por vezes conflitos.<br />
Uma outra constatação importante é que diferentes interpretações da legalidade administrativa<br />
e financeira levam a que os diferentes actores de controlo, como o Tribunal Administrativo, a<br />
Inspecção Geral de Finanças e a Inspecção Geral Administrativa do Estado, façam recomendações<br />
à gestão municipal que são muitas vezes contraditórias, e que não haja uma sincronização<br />
das actividades inspectivas. Esta constatação também inibe a criação ou fortalecimento dos órgãos<br />
de controlo interno, fundamentais para que a actividade dos órgãos municipais possa ser rapidamente<br />
credibilizada e, consequentemente, obter a sua aprovação no escrutínio social.<br />
Duas outras constatações muito relevantes na mudança do modelo mental é a falta de clareza<br />
na ligação entre municípios e distritos e uma lacuna de diálogo robusto entre os municípios e<br />
o Estado na busca de soluções para desafios de desenvolvimento que, tendo uma natureza local,<br />
têm um impacto importante no desenvolvimento nacional.<br />
Como já foi mencionado, políticas centrais podem desacelerar ou pôr em perigo a sustentabilidade<br />
autárquica, como o já mencionado exemplo da revisão da Lei das Finanças Autárquicas,<br />
que originou em decréscimo de taxas e impostos, pondo em perigo a sustentabilidade financeira<br />
e, consequentemente, a sustentabilidade política das autarquias em Moçambique.<br />
Mas o maior desafio é a transição de um Estado puramente regulador para um Estado facilitador<br />
e promotor-desafiador de desenvolvimento. Esta mudança de modelo mental é mais complexa,<br />
pois ela pressupõe uma integração de políticas e estratégias, não só entre sectores mas<br />
também na definição de poder central e local, com as nuances inerentes a um País que tem<br />
uma divisão política estratificada entre províncias, distritos e autarquias. É neste pressuposto que<br />
surge a proposta de repensar a descentralização como uma política e estratégia global, que permita<br />
olhar não só o distrito como pólo de desenvolvimento, mas integra a autartização como<br />
impulsionador desse processo a médio e longo prazos.<br />
Este modelo mental exige também um processo político verdadeiramente inclusivo e participativo,<br />
criando o espaço para que a sociedade civil, os media, e o sector privado assumam responsabilidades<br />
não só de implementação mas também de regulação (self-regulator e watchdog).<br />
O investimento nos valores de cidadania é parte importante e crucial para esta transformação.<br />
Parece então importante realçar que estas mudanças de modelos mentais provocam, ou deveriam<br />
provocar, mudanças profundas nas relações de poder e nos papéis que os diferentes actores<br />
do desenvolvimento devem jogar.<br />
Passos importantes, se ainda não completos, têm sido dados que podem promover esta mudança,<br />
como por exemplo a presidência aberta nos municípios, a instalação de conselhos de<br />
bairro, a pilotagem de metodologias de orçamentação participativa e a promoção e implementação<br />
de parcerias público-privadas, são exemplos que constituem já uma referência de<br />
sucesso e devem ser mencionados.<br />
114 Desafios para Moçambique 2010 Desafios da Gestão Municipal
Os desafios que ficam para a sustentabilidade política são o aumento da credibilidade dos órgãos<br />
municipais que leve a uma maior adesão às eleições autárquicas, uma maior operacionalização<br />
do quadro legal autárquico e consequentes implicações no quadro legal do Estado e, por parte<br />
deste, uma capacidade de, estrategicamente, desenvolver e implementar políticas que reforcem<br />
a autonomia dos municípios nas suas várias vertentes.<br />
SUSTENTABILIDADE FINANCEIRA<br />
Uma abordagem a ser seguida para melhorar a sustentabilidade financeira é a elaboração de<br />
cenários financeiros de médio e longo prazo, para a gestão municipal, à semelhança do que já<br />
é feito a nível do Governo Central e Provincial. Esta cenarização permitirá avaliar o potencial<br />
de receitas, definindo objectivos de colecta, bem como avaliar o comportamento da despesa<br />
e a possibilidade de optimização da mesma. Permitirá ainda identificar os impostos e taxas a privilegiar<br />
e suas implicações em termos de reajustamento dos mecanismos e práticas de gestão<br />
e plataformas tecnológicas associadas.<br />
A título de exemplo, de um total de cerca de 80 000 fogos existentes na cidade de Maputo, em<br />
2005 apenas 12 000 estavam registados nas bases de dados do Conselho Municipal e, consequentemente,<br />
apenas esta parte dos contribuintes do imposto predial autárquico cumpria as<br />
suas obrigações. O processo de recenseamento dos imóveis e consequente revalorização dos<br />
mesmos aos preços correntes de mercado permitirá de acordo com projecções do Conselho<br />
Municipal aumentar o total de receitas deste imposto em cerca de 500%.<br />
Uma outra abordagem à sustentabilidade financeira poderá ser o modelo utilizador-pagador.<br />
Este modelo baseia-se no princípio de que o pagamento pelos serviços prestados, em parti -<br />
cular na forma de taxas, deverá ser proporcional ao serviço prestado.<br />
Com a elaboração do Plano Director de Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos, o município de<br />
Maputo experimentou este modelo, indexando a taxa de limpeza ao consumo de energia eléctrica,<br />
uma vez que se demonstrou existir uma correlação entre a produção de resíduos sólidos<br />
a nível residencial e o nível de consumo de energia eléctrica. A título de exemplo, uma residência<br />
na zona de cimento de baixa densidade (caso do bairro da Sommerschield) produz em média<br />
1,6 kg de resíduos por pessoa por dia, enquanto na zona de cimento de alta densidade (caso do<br />
Alto-Maé) esta produção baixa para 1,0 de resíduos e nas zonas suburbanas para 0,5 kg.<br />
Também os consumos de energia seguem o mesmo padrão de comportamento. 2<br />
Com esta medida, e com o ajustamento percentual da taxa de limpeza, o Conselho Municipal<br />
de Maputo prevê aumentar a cobertura dos serviços de limpeza, dos cerca de 40% actuais (ano<br />
2007) para 66% (ano 2008) e 100% (ano 2012) e a sustentabilidade financeira de cerca de 50%,<br />
73% e 82%, para os respectivos anos. Segundo o mesmo Plano Director, prevê-se alcançar a sustentabilidade<br />
financeira do serviço em 2016 e, nesse mesmo ano, atingir uma prestação de serviço<br />
de qualidade que corresponda às exigências e necessidades dos munícipes e do ambiente,<br />
Desafios da Gestão Municipal Desafios para Moçambique 2010 115
com uma cobertura dos serviços de 100% atingidos, em princípio, em 2012. Esta abordagem<br />
foi conjugada com o estabelecimento de parcerias com o sector privado, o estabelecimento de<br />
microempresas a nível dos bairros para realizar a recolha primária (entre as residências e os contentores)<br />
e outros mecanismos de organização dos munícipes.<br />
Deverá ainda ser identificada a possibilidade de tirar partido de outros instrumentos legais para<br />
aumentar a receita. Um exemplo claro de um mecanismo que não está a ser potenciado é o<br />
novo Regulamento do Solo Urbano, que prevê a possibilidade de os municípios realizarem leilões<br />
de atribuição de parcelas do solo urbano em zonas infra-estruturadas, a preços que cubram<br />
os custos da urbanização. O regulamento introduz a titulação imediata e definitiva das parcelas<br />
urbanizadas e a possibilidade da sua transmissão entre particulares sem dependência de<br />
qualquer autorização. Além disso, ele torna possíveis as parcerias entre agentes imobiliários e<br />
os municípios em trabalhos de urbanização, abrindo espaço para o investimento privado nesta<br />
área. Isto significa que existe um enorme potencial de arrecadação, resultante da transacção de<br />
espaços (alguns dos quais em zonas nobres das cidades), ao mesmo tempo que se potencia a<br />
urbanização adequada das novas zonas expansão.<br />
É preciso observar, também, que o crescimento enorme que o parque imobiliário da cidade<br />
observou depois da Independência foi realizado maioritariamente em zonas não planeadas nem<br />
cadastradas, resultando daqui que os direitos sobre estas propriedades, em geral, não estão registados.<br />
Este potencial enorme de receitas municipais adicionais poderá ainda melhorar as<br />
perspectivas de sustentabilidade financeira do município.<br />
A atribuição de espaços públicos em regime de concessão ou em outros modelos de parceria<br />
público-privadas, como parques e jardins (em Maputo) ou espaços para a actividade privada de<br />
gestão de estacionamentos (na Beira) é outra forma de aumentar as receitas municipais.<br />
Num país onde o turismo é um sector que representa e irá representar um importante contributo<br />
para a economia e para a imagem e competitividade do país, faz sentido também pensar<br />
numa taxa municipal de turismo, a ser recolhida pelos operadores de hotelaria e restauração.<br />
A cobrança do imposto automóvel directamente pelos municípios, o potencial das taxas de saneamento<br />
(ainda não introduzidas) e as receitas da publicidade no espaço municipal (que em<br />
Maputo são significativas, mas nos outros municípios parecem negligenciadas), podem alavancar<br />
ainda mais a sustentabilidade financeira.<br />
É também fundamental optimizar os processos de arrecadação das receitas, já que os custos<br />
de transacção são, em muitos casos, significativos relativamente às receitas geradas.<br />
É este o caso das taxas de mercado, onde o pagamento directo pela rede bancária, reduziria<br />
em muito os custos de transacção. No caso do imposto pessoal autárquico, em que a<br />
receita gerada é muito baixa relativamente ao esforço de recolha (que é grande e disperso),<br />
deveria ser dada autonomia aos distritos urbanos para optar por aquilo que considerassem<br />
ser as formas de recolha mais viáveis no seu caso, utilizando esta receita para benefício<br />
116 Desafios para Moçambique 2010 Desafios da Gestão Municipal
directo do próprio distrito (por exemplo na manutenção dos edifícios e equipamentos sob<br />
sua responsabilidade).<br />
Ainda no domínio da arrecadação de receitas deve-se repensar a forma como o estabelecimento<br />
de medidas sancionatórias para contribuintes que não pagam os seus impostos, já usadas<br />
pelo Governo Central, podem ser também adoptadas pelos municípios. O enquadramento<br />
legal actual do contencioso fiscal, no caso dos municípios, necessita de ser reforçado, sob pena<br />
de o pagamento de impostos ser entendido como opcional.<br />
Em municípios maiores pode-se também equacionar a hipótese de utilizar soluções tecnológicas<br />
mais complexas para optimizar os processos de cadastro e gestão de contribuintes. O município<br />
de Maputo, por exemplo, irá introduzir um sistema de informação geográfica como<br />
plataforma para a gestão do solo e o cadastro de imóveis e espaços públicos, de forma integrada<br />
com os tributos que a estes imóveis e espaços estão adstritos.<br />
A sustentabilidade financeira depende também da capacidade de os municípios realizarem os<br />
investimentos necessários para elevar continuamente a qualidade de vida dos munícipes através<br />
de infra-estruturas e serviços públicos. Nessa perspectiva, a qualidade da relação dos Conselhos<br />
Municipais com outros órgãos do Estado é essencial.<br />
SUSTENTABILIDADE DOS SERVIÇOS PÚBLICOS<br />
Ao reflectir sobre a sustentabilidade dos serviços públicos temos por um lado de considerar as<br />
características intrínsecas de cada serviço e, por outro, os possíveis agrupamentos em termos<br />
de estratégia de melhoria e aumento de cobertura.<br />
Uma primeira abordagem ao agrupamento destes serviços poderia ser a da sustentabilidade<br />
financeira.<br />
Existem serviços com maior autonomia financeira, ou seja, com a capacidade de serem geridos<br />
apenas como recurso às receitas provenientes de taxas de prestação de serviços. Exemplos destes<br />
serviços são a Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos, a Gestão dos Mercados e Feiras e, ainda,<br />
a Gestão dos Transportes Urbanos.<br />
Seguindo esta lógica, uma forma de alavancar a intervenção municipal e de caminhar rapidamente<br />
para a autonomização financeira destes serviços é a elaboração de “Planos de Negócio”<br />
para estes serviços, numa lógica aproximada à lógica empresarial.<br />
Estes planos permitirão identificar os consumidores (reais e potenciais) destes serviços, projectar<br />
a sua estrutura de custos e, consequentemente, as receitas desejáveis; estudar a capacidade<br />
e vontade de pagar dos utilizadores dos serviços e ajustar as taxas de acordo com a dinâmica<br />
entre a receita desejável e a capacidade e vontade de pagar; definir os indicadores de qualidade<br />
e criar mecanismos de monitoria da prestação.<br />
Estes planos permitirão ainda analisar e avaliar os processos de prestação destes serviços e quais as<br />
principais variáveis de custo e de eficiência, permitindo melhor controlar a sua gestão e analisar as<br />
Desafios da Gestão Municipal Desafios para Moçambique 2010 117
possibilidades de transferir parte dos processos para o próprio utilizador, para as estruturas locais a<br />
nível do bairro ou do distrito e para outros intervenientes, como o sector privado ou a sociedade civil.<br />
Esta reconfiguração de alguns serviços, com o envolvimento dos cidadãos, permite tirar partido<br />
do potencial de organização latente na nossa sociedade. Para além do exemplo já citado de criação<br />
de microempresas para a recolha de resíduos sólidos em bairros periféricos, um outro exemplo<br />
é a gestão de um espaço comum (o Jardim dos Cronistas, no bairro da Sommerschield) e a<br />
segurança das vivendas à volta deste espaço, feita com recursos dos próprios moradores.<br />
Esta análise dos processos internos de prestação de serviços leva-nos também a outras reflexões<br />
importantes como a necessidade de uma maior coordenação dos vários serviços prestados pelos<br />
Conselhos Municipais (por exemplo, entre os serviços de manutenção do parque arbóreo e os<br />
serviços de limpeza ou entre os serviços de limpeza e os serviços de manutenção das estradas<br />
e valas de drenagem).<br />
Ainda no domínio da sustentabilidade dos serviços é fundamental que os municípios adoptem<br />
estratégias de manutenção de infra-estruturas e equipamentos como forma de garantir a perenidade<br />
dos investimentos avultados. A ausência destas estratégias tem impedido, muitas vezes,<br />
a inclusão de rubricas financeiras ligadas à manutenção, quer nos orçamentos, quer nas negociações<br />
com parceiros, levando à degradação progressiva das infra-estruturas e dos equipamentos<br />
com custos muito mais avultados na reparação, reabilitação ou construção.<br />
Outra abordagem a considerar é a do agrupamento por serviços que são implementados por<br />
diferentes actores públicos, como é o caso dos serviços de saúde e educação em que, legalmente,<br />
as autarquias têm uma responsabilidade na prestação de Cuidados de Saúde Primários<br />
e de Educação Primária e o Estado dos restantes níveis.<br />
Relativamente a estes, uma primeira questão sobre a qual é importante reflectir é a viabilidade<br />
da descentralização. Se, por um lado, esta tendência se verifica a nível mundial e os munícipes<br />
têm esta expectativa, também é verdade que existem dois factores importantes contra esta transição<br />
de competências do governo central para a gestão autárquica, nomeadamente o facto de<br />
os sistemas de saúde e de educação terem sido desenhados de forma monolítica e a grande fragilidade<br />
das estruturas de gestão municipal nos sectores de educação e de saúde.<br />
Este factor, em conjunto com o receio que os sectores centrais têm de perder parte importante<br />
do seu orçamento ou o controlo do sistema como um todo, tem impedido que se levem a cabo<br />
reflexões profundas sobre como operacionalizar essa transferência, sobre os mecanismos adicionais<br />
de supervisão, referenciação e controlo de qualidade e, ainda, sobre as implicações de<br />
reconfiguração de um sistema monolítico para um sistema descentralizado. Do lado dos municípios<br />
existe um grande receio de herdar uma função que, por exemplo, em termos de recursos<br />
humanos, é maior do que toda a actividade municipal.<br />
Se por um lado as soluções para a descentralização passam por uma reflexão profunda sobre<br />
os mecanismos de transição e implicações da reconfiguração, por outro a garantia de susten-<br />
118 Desafios para Moçambique 2010 Desafios da Gestão Municipal
tabilidade passa por assegurar, nos mecanismos de transição, que todos os recursos transitam<br />
efectivamente para a gestão municipal e que há, não só uma garantia de manutenção destes<br />
recursos, como uma estratégia de investimento em infra-estruturas municipais de prestação de<br />
serviços de educação e de saúde.<br />
Para tal, é importante garantir também que todos os parceiros internacionais que apoiam programas<br />
de educação primária e de prestação de Cuidados de Saúde Primários são efectivamente<br />
envolvidos no processo e garantem a manutenção dos seus compromissos. Esta<br />
abordagem inclusiva deve ser extensiva à comunidade escolar, em particular aos encarregados<br />
de educação e representantes dos utentes dos serviços de saúde.<br />
É ainda fundamental que haja margem legal para os municípios adoptarem uma estratégia de<br />
aumento das taxas de utilização dos serviços em função da melhoria de qualidade na prestação<br />
dos mesmos, garantindo assim a sustentabilidade financeira dos mesmos.<br />
Um outro factor fundamental para o sucesso da transição é a existência de um plano de transição<br />
claro, com riscos e benefícios previamente identificados e respeitando os direitos adquiridos<br />
de todos os envolvidos, em particular profissionais e gestores.<br />
Uma última variável a considerar em termos de sustentabilidade dos serviços é a existência de<br />
serviços que não têm possibilidade de se autofinanciar e não têm, presentemente, garantido<br />
financiamento por parte do Estado ao seu funcionamento.<br />
Outra, é encontrar parceiros que total ou parcialmente suportem os custos inerentes a estes serviços.<br />
A sustentabilidade sociocultural depende intrinsecamente da capacidade dos municípios<br />
investirem em serviços públicos que reforcem o tecido social e criem espaços para expressão<br />
cultural dos seus cidadãos. Mas significa também tirar partido das características socioculturais<br />
inerentes ao município para desenhar e reconfigurar os próprios serviços. Um exemplo disto é<br />
a assunção do município de Ilha de Moçambique como pólo de desenvolvimento turístico,<br />
onde a história e a expressão cultural são os principais impulsionadores dessa reconfiguração.<br />
Reconhecendo ainda que a intervenção das organizações da sociedade civil, em geral, e das<br />
Organizações Não Governamentais (ONG), em particular, no espaço municipal é ainda muito<br />
frágil, é fundamental negociar com estas organizações o alargamento dos seus programas de<br />
intervenção às áreas municipais, em particular mas não exclusivamente as que intervêm em<br />
temas com impacto no desenvolvimento cultural, na protecção dos direitos das crianças, na<br />
geração de emprego ou no trabalho social.<br />
SUSTENTABILIDADE DA GESTÃO<br />
A gestão municipal contemporânea tende a integrar, de forma sistémica, variáveis como o planeamento<br />
estratégico, a gestão de recursos humanos, a reconfiguração dos serviços e processos<br />
associados, ou desenho de estruturas organizacionais que sejam flexíveis e evolutivas e uma<br />
ligação estreita e de diálogo com os diferentes intervenientes na vida das autarquias.<br />
Desafios da Gestão Municipal Desafios para Moçambique 2010 119
A gestão municipal é, por um lado, um exercício multidisciplinar de governação e, por outro,<br />
tem especificidades em termos de serviços prestados que obrigam a uma formação exigente,<br />
completa e realizada de forma a que se percebam as sinergias entre as componentes económica,<br />
política, sociocultural, ambiental, enquadradas numa lógica de prestação de serviços públicos<br />
e com uma preocupação permanente de optimização dos recursos. Em termos de filosofia de<br />
gestão terá de combinar muitas escolas e encontrar um modelo que, desta combinação, terá<br />
sempre uma essência e uma lógica próprias.<br />
Relativamente aos recursos humanos, acreditamos que a sustentabilidade da gestão poderá também<br />
ser alavancada pela formação em gestão autárquica, já que se trata de um tipo de gestão<br />
muito específica, e por tal se justifica a existência de um programa de formação a ela dirigido.<br />
A assunção deste pressuposto leva-nos também à conclusão de que é importante desenhar carreiras<br />
específicas para o funcionário autárquico, de forma a definir com clareza funções e critérios<br />
de desempenho, permitindo uma maior motivação e enfoque dos funcionários que<br />
trabalham nesta esfera e uma maior competitividade dos mesmos no mercado de trabalho,<br />
tendo em conta a especialização de determinadas funções.<br />
A nível da estrutura, um debate que se tem realizado, mas ainda sem conclusões, diz respeito à<br />
necessidade da existência de uma figura de city manager, um cargo independente dos mandatos<br />
e, portanto, intemporal.<br />
Uma outra reflexão que nos parece importante ter lugar é sobre o duplo papel dos vereadores,<br />
cuja capacidade técnica nas áreas que dirigem é fundamental para perceber e intervir na melhoria<br />
do desempenho das direcções que providenciam os serviços municipais e cuja função<br />
política é fundamental para garantir a ligação aos munícipes e ao desenho de políticas e programas<br />
públicos. No entanto, a conciliação destas duas vertentes da sua função nem sempre é<br />
fácil e muitas vezes se levanta a questão sobre se devem privilegiar a sua função técnica ou a<br />
sua função política.<br />
Nos cargos de direcção, a capacidade na esfera política é menos relevante (apesar de continuar<br />
a ser importante) e a função técnica, fundamental. Dada a temporalidade dos mandatos, é importante<br />
que no desenho das estruturas e mecanismos de governação municipal, a função de<br />
direcção seja definida como uma função técnica, que transcenda os mandatos, à semelhança do<br />
que tem ocorrido em alguns municípios, facilitando a transição e permitindo melhorar continuamente<br />
o desempenho das direcções.<br />
A existência de um fórum de coordenação entre o Presidente do Conselho Municipal e os Directores<br />
no Conselho Municipal de Maputo, por exemplo, tem facilitado a assunção pelos<br />
Directores da sua responsabilidade primeira no desempenho das áreas e serviços que dirigem.<br />
A capacidade de gestão deve também ser alavancada por outros mecanismos de colaboração<br />
e coordenação intermunicipal: práticas como a reflexão conjunta sobre assuntos de interesse<br />
comum, de coordenação de iniciativas conjuntas para propostas de regulamentação, de siste-<br />
120 Desafios para Moçambique 2010 Desafios da Gestão Municipal
matização de práticas e princípios de gestão ou de desenho de programas e projectos comuns,<br />
têm resultado numa mais rápida criação e disseminação de conhecimento sobre os desafios<br />
e formas de gestão municipal.<br />
A Associação Nacional dos Municípios de Moçambique (ANAMM) tem assumido já parte<br />
destes desafios e poderá assumir outros que se revelarem importantes. Iniciativas como a definição<br />
de indicadores e índices de desenvolvimento municipal, a criação de capacidade de pesquisa<br />
e investigação sobre dinâmicas municipais e práticas de gestão, ou a criação de um portal<br />
municipal, poderão ser estruturantes para a criação de uma comunidade de pessoas e organizações<br />
que fortalecem a sua percepção e as suas competências sobre o desenvolvimento e a gestão<br />
municipal. A gestão do conhecimento nestas áreas tem sido assumida em alguns países por<br />
associações ou institutos públicos, sendo um caso de referência o Instituto Polis que, com cerca<br />
de 20 anos, tem alavancado a pesquisa-acção nos municípios brasileiros.<br />
SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL<br />
A sustentabilidade ambiental é talvez a menos abordada e discutida nos planos municipais,<br />
sendo contudo, a sustentabilidade que mais interpenetrações tem com as outras, pois um ambiente<br />
degradado não permite a qualidade de vida que promove o desenvolvimento sociocultural,<br />
político e económico da sociedade.<br />
No caso particular de Moçambique, as questões ambientais variam muito de município para<br />
município, dependendo da sua localização geográfica, da sua topografia e clima. Municípios costeiros<br />
enfrentam graves problemas de erosão e degradação das orlas marinhas, zonas de montanha<br />
ou altitude elevada sofrem efeitos da erosão pluvial e alguns apresentam o efeito de vários<br />
destes tipos de degradação.<br />
Há contudo questões ambientais que são comuns a todos eles, como é a questão do saneamento<br />
do meio, da gestão dos resíduos sólidos e dos espaços verdes. Estas áreas de intervenção municipal<br />
exigem uma abordagem urgente e permanente em todos os 43 municípios do país.<br />
No caso particular do saneamento do meio, as soluções diferenciadas em função do tamanho<br />
do município e infra-estrutura existente têm sido alvo de alguns estudos, mas esses estudos têm<br />
resultado em intervenções pontuais e normalmente não suficientes para resolver os problemas.<br />
Um plano sério de investimento nas zonas já urbanizadas para a reabilitação das infra-estru turas<br />
existentes, e a obrigatoriedade de criação de infra-estruturas mínimas de saneamento em<br />
qualquer nova zona de assentamento populacional, parecem ser políticas urgentes e de carácter<br />
obrigatório para todo o país. Continuamos a assistir a assentamentos populacionais em lugares<br />
não só impróprios para viver (zonas de mangal, margens dos rios e da orla marinha),<br />
como sem a mínima infra-estrutura de esgotos, drenagem de águas pluviais e estradas de acesso.<br />
Este assentamento desordenado tem provocado a poluição do lençol freático em zonas residenciais,<br />
a proliferação de latrinas construídas sem os requisitos básicos de higiene, e práticas<br />
Desafios da Gestão Municipal Desafios para Moçambique 2010 121
que põe em risco não só o meio ambiente, mas principalmente os cidadãos que ali vivem. Doenças<br />
como a malária e a cólera são uma expressão clara deste problema.<br />
Convém assim referir exemplos interessantes de reordenamento: no Município do Dondo e no<br />
Distrito Municipal N.º 2 da Cidade de Maputo, foi possível, com um grande envolvimento dos moradores<br />
e o apoio da Faculdade de Arquitectura, reverter esta situação, buscando-se soluções para<br />
os problemas de saneamento, drenagem, acesso e erosão. Esta experiência mostra que é possível<br />
corrigir erros do passado e elevar a qualidade de vida em diversos bairros dos nossos municípios.<br />
O desafio dos grandes investimentos em infra-estruturas de saneamento tem sido resolvido, em<br />
alguns países, através de uma taxa adicional, colectada através dos serviços de abastecimento de<br />
água, sem isso ter significado um peso adicional excessivo nas contas dos consumidores.<br />
A gestão dos resíduos sólidos, passa necessariamente por abordagens inclusivas e alinhadas<br />
não só com a necessidade de manter os espaços urbanos limpos, mas também com a introdução<br />
de mecanismos importantes na sustentabilidade do sistema, como a capacidade de reciclagem.<br />
No Município de Maputo, por exemplo, foi introduzido um programa de reciclagem<br />
de plásticos (um resíduo problemático para a cidade), criando ao mesmo tempo emprego para<br />
jovens (contribuindo para a sustentabilidade social e económica) e melhorando a gestão ambiental.<br />
Mais programas desta natureza são necessários, salvaguardada que esteja a sua sustentabilidade<br />
económica: reciclar vidro, papel e produtos orgânicos já é cultural nas grandes<br />
metrópoles e começa a ser também uma prática em municípios mais pequenos.<br />
No entanto, este tipo de programas pressupõe uma abordagem inclusiva: para que a reciclagem seja<br />
efectiva é necessário que a primeira selecção seja feita a nível do produtor de resíduos sólidos e, para<br />
que esta responsabilidade seja por ele assumida, é necessário que ele compreenda e valorize a importância<br />
deste processo para a qualidade da sua vida e da sua cidade. Trata-se, pois, de estimular<br />
a criação de toda uma cultura de consciência cívica e ambiental a nível dos munícipes.<br />
Outra intervenção importante é a transformação de lixeiras em aterros sanitários e, (quando o<br />
volume o permite), utilizar estes resíduos para a produção de gás de metano para geração de<br />
energia eléctrica. Um exemplo deste tipo de oportunidade é o projecto de um aterro sanitário<br />
comum para as cidades de Maputo e Matola, que terá o volume necessário para produção de<br />
gás. Este tipo de projectos podem utilizar oportunidades importantes de financiamento, ligadas<br />
aos chamados “Fundos de Carbono”, que buscam não só uma redução de emissões de CO 2 ,<br />
como também a criação de um ambiente mais saudável.<br />
A gestão dos espaços verdes tem sido um dos grandes desafios em vários municípios de Moçambique,<br />
pois é vista e entendida como um custo adicional e não como um serviço que eleva<br />
a qualidade de vida do munícipe, quando a tendência mundial é preservar e até em alguns casos<br />
(como por exemplo na cidade de Xangai, na China) aumentá-los. Felizmente assiste-me a uma<br />
mudança nesta percepção e, através de parcerias públicas-privadas, se tem conseguido recuperar<br />
alguns espaços verdes importantes. A título de exemplo, a Cidade de Maputo tem utilizado<br />
122 Desafios para Moçambique 2010 Desafios da Gestão Municipal
nos seus jardins públicos este tipo de parcerias que, conjugadas com parcerias entre o munícipio<br />
e moradores, começam a mudar a face dos nossos jardins.<br />
Outros espaços verdes importantes são os espaços produtivos, cada vez mais importantes para<br />
as cidades, não só no abastecimento de produtos frescos, como também como fonte de rendimento<br />
para vários cidadãos. A gestão correcta destes espaços passa por todo um trabalho junto<br />
dos seus utilizadores, de transmissão de conhecimento, criação de acesso a linhas de crédito<br />
para investimentos produtivos e educação ambiental, pois por vezes a utilização incorrecta de<br />
alguns fertilizantes e pesticidas pode originar poluição dos cursos de água e do lençol freático.<br />
Na cidade de Maputo, a Casa Agrária é um exemplo de como um município pode e deve criar<br />
serviços ligados ao seu potencial produtivo, promovendo a produção, o emprego e auto-emprego<br />
e, simultaneamente, introduzir uma consciência e cultura ambiental. Áreas como as pescas,<br />
a exploração mineira, o turismo, entre outras, deveriam também ser olhadas na mesma<br />
perspectiva que tem sido utilizada para a área agrícola.<br />
A sustentabilidade ambiental vai exigir também a capacidade, por parte dos municípios, de<br />
desenvolverem parcerias com o Estado, o sector privado e outros parceiros (nacionais e internacionais),<br />
não só nos desenhos de programas ambientais mas, principalmente, na mobilização<br />
de recursos técnicos e financeiros para as intervenções de vulto que se verificam necessárias.<br />
A protecção costeira e a reabilitação de áreas degradadas são exemplos de áreas de intervenção<br />
que vão necessitar de parcerias com múltiplos intervenientes. E, num momento em que,<br />
através do estudo realizado pelo Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC) sobre<br />
o impacto das mudanças climáticas em Moçambique, se fortaleceu a consciência de que nos<br />
temos de preparar para mitigar os efeitos destas mudanças e desenvolver estratégias de adaptação,<br />
as oportunidades para estas parcerias são bastante amplas. Os municípios terão contudo<br />
que adquirir o conhecimento necessário para que, estrategicamente, possam propor intervenções<br />
de fundo relacionadas com os efeitos das mudanças climáticas no território.<br />
REPENSANDO O PAPEL DE ACTORES RELEVANTES<br />
Os novos papéis dos Conselhos Municipais foram sendo explicitados nas reflexões anteriores.<br />
No entanto, é importante realçar os novos papéis que outros actores relevantes terão de assumir,<br />
para se alcançar o nível de maturidade institucional e de gestão que os desafios de crescimento<br />
e desenvolvimento municipal e nacional exigem.<br />
Do lado do MAE, órgão de tutela dos municípios, um desafio importante é criar uma ponte<br />
entre a gestão municipal e o governo central, para em conjunto encontrarem soluções para os<br />
desafios de integração e de coordenação de esforços.<br />
Esta ponte facilitará a negociação dos espaços de intervenção, em particular em áreas onde a<br />
regulamentação esteja feita apenas a um nível estratégico ou de princípios e haja necessidade<br />
de uma maior operacionalização, para que possa ser incorporada nos processos de gestão<br />
Desafios da Gestão Municipal Desafios para Moçambique 2010 123
municipal ou, ainda, onde os papéis de alguns actores estejam menos claros, como no caso do<br />
representante do Estado nos municípios.<br />
Permitirá ainda apoiar os municípios na negociação de mecanismos e ferramentas de gestão,<br />
como a adequação dos sistemas de informação às exigências do Sistema de Administração<br />
Financeira do Estado (SISTAFE), respeitando a autonomia dos municípios e privilegiando áreas<br />
de impacto estratégico com a área de receitas municipais.<br />
Facilitará ainda a incorporação nos municípios dos programas de âmbito nacional, tirando partido<br />
da proximidade entre as estruturas de gestão municipal e os munícipes e a inclusão destes<br />
programas nos planos de curto e longo prazos das autarquias.<br />
Permitirá ainda que sejam discutidos e desenhados um estatuto e uma carreira específica para os<br />
funcionários municipais, bem como programas específicos de formação em gestão autárquica.<br />
Um outro papel relevante que cabe ao MAE é a avaliação do estágio de maturidade, quer dos<br />
municípios, quer da gestão municipal. Nesta óptica, o Ministério deveria definir um conjunto<br />
de indicadores de desenvolvimento municipal e de capacidades institucionais de gestão e operacionalizar<br />
uma metodologia de recolha e publicação destes indicadores, de forma a permitir<br />
analisar a evolução dos municípios e definir estratégias para alavancar o crescimento e o<br />
desempenho.<br />
Este mecanismo, em conjunto com uma boa articulação com os órgãos de controlo interno do<br />
Estado (em particular o Tribunal Administrativo e diferentes Inspecções Gerais), permitiria<br />
ainda aos municípios fortalecer a sua capacidade de auto-avaliação de desempenho e de regularidade<br />
administrativa e financeira.<br />
Um outro actor relevante, que deveria incorporar outros papéis, é a ANAMM, que deveria evoluir<br />
de um papel actual de porta-voz dos municípios para o de assessor técnico, jurídico e gestor do<br />
conhecimento em desenvolvimento autárquico.<br />
Estes novos papéis, poderiam incluir todas as actividades cujas economias de escala ou a<br />
necessidade de integração se verifiquem relevantes, como por exemplo o desenho de programas<br />
de capacitação e desenvolvimento institucional, o desenho de campanhas de educação cívica<br />
e fiscal. Mas estes novos papéis podem também incorporar actividades como: a sistematização<br />
de boas práticas; o teste e desenho de protótipos de novos mecanismos e ferramentas de gestão;<br />
a criação de um portal municipal; a investigação sobre o desenvolvimento municipal e o<br />
desenvolvimento da gestão municipal.<br />
Do lado da academia, é urgente o desenho de programas específicos de formação em gestão<br />
autárquica e a inclusão dos temas de desenvolvimento e gestão municipal nas linhas de pesquisa.<br />
As propostas apresentadas ao longo do texto não pretendem esgotar o tema sobre desafios da<br />
gestão municipal em Moçambique, apenas partilhar exemplos recentes de inovação e reconfiguração<br />
e lançar a semente para um debate mais profundo, que traga a governação autárquica<br />
para o espaço público de reflexão.<br />
124 Desafios para Moçambique 2010 Desafios da Gestão Municipal
NOTAS<br />
1<br />
Em O Oitavo Hábito, da Eficácia à Grandeza, Stephen Covey, Filmes Motivacionais.<br />
2<br />
Em Plano Director de Gestão dos Resíduos Sólidos do Município de Maputo, 2008.<br />
Desafios da Gestão Municipal Desafios para Moçambique 2010 125
UMA BREVE ANÁLISE<br />
DA IMPRENSA MOÇAMBICANA<br />
Sérgio Chichava | Jonas Pohlmann<br />
Usada para veicular informação e propaganda, capaz de fazer cair governos, decidir uma eleição<br />
e até incitar guerras, a imprensa é um elemento central nas sociedades contemporâneas. Nas<br />
últimas décadas, com o crescimento e expansão da imprensa escrita, da rádio e da televisão, e<br />
com o surgimento de novos meios de comunicação, com destaque para a Internet, o impacto<br />
social da imprensa aumentou exponencialmente. Neste período, ganhou também força a ideia<br />
de que é função da imprensa, para além de informar e transmitir uma visão imparcial dos eventos,<br />
a fiscalização da actuação governamental, velando pela boa gestão da coisa pública e oferecendo<br />
um contrapeso ao poder público, o qual, sem o devido controlo social, pode ser abusado<br />
para fins privados e partidários. Para muitos, a imprensa ter-se-ia tornado numa espécie de quarto<br />
poder republicano, actuando ao lado dos poderes executivo, legislativo e judiciário.<br />
Em Moçambique, uma das primeiras medidas tomadas pela Frelimo logo após assumir o poder,<br />
a 25 de Junho de 1975, foi controlar a imprensa. Num contexto em que acabava de se sair de uma<br />
guerra contra o colonialismo, na qual certa imprensa, sobretudo a mais importante (Notícias de<br />
Lourenço Marques e Notícias da Beira, Tempo, Diário de Moçambique, Voz Africana, só para citar<br />
alguns exemplos), era controlada por grandes capitalistas hostis à Frelimo e próximos ao poder<br />
colonial, o controlo da imprensa era visto como essencial à defesa dos interesses nacionais do<br />
recém-independente Moçambique. Também, a imprensa era vista pelos líderes da Frelimo como<br />
um importante instrumento para transmitir as ideias e ideais do novo regime, desencorajar ou controlar<br />
sectores hostis ou considerados como tal, e consolidar a unidade nacional. A reunião de<br />
Macomia, província de Cabo Delgado, realizada de 26 a 30 de Novembro de 1975, iria discutir<br />
e definir as linhas gerais pelas quais a imprensa devia doravante guiar as suas actividades, as quais<br />
deveriam centrar-se em “informar, educar, mobilizar e organizar” a população (Machel, 1977).<br />
No III Congresso da Frelimo, em 1977, o partido e, consequentemente, o governo de Moçambique,<br />
aderem à ideologia socialista na sua vertente marxista-leninista, e acentua-se a percepção<br />
de que a imprensa deveria ser um instrumento do Partido-Estado, um instrumento da<br />
aliança operário-camponesa e do seu partido de vanguarda ao serviço da revolução, um importante<br />
elemento na luta contra o capitalismo e o imperialismo e na construção do “homem<br />
Uma Breve Análise da Imprensa Moçambicana Desafios para Moçambique 2010<br />
127
novo”. Em 1977, no 1.º Seminário Nacional de Informação, assim se manifestou Samora Machel,<br />
primeiro presidente do Moçambique independente:<br />
(...) não há terreno neutro na luta de classes (...) A origem pequeno-burguesa da maioria dos<br />
jornalistas, a educação colonial que receberam, os métodos e conceitos de informação burguesa cuja<br />
influência transportam até hoje, constituem factores que facilitam e favorecem a acção de retorno das<br />
ideias erradas, dos hábitos velhos. (...) O jornalista deve assumir a consciência de que ocupa um posto<br />
de combatente na frente ideológica da luta das massas trabalhadoras. Deve assumir integralmente<br />
os interesses e as aspirações dos operários e camponeses. O seu modelo deve ser o operário de<br />
vanguarda. Os seus deveres correspondem aos dos membros do Partido.<br />
(...) A informação deve desempenhar um papel fundamental na criação do Homem Novo e só pode<br />
fazê-lo se os trabalhadores da informação se engajarem na sua própria transformação, assumindo<br />
ao nível das ideias, do trabalho, da vida e do comportamento, os valores novos, os valores do homem<br />
socialista. Isto significa também que o Partido deve dar uma atenção particular ao enquadramento<br />
político dos jornalistas. Neste sentido, intensificaremos a implantação das estruturas do Partido nos<br />
órgãos de informação. (...) Além disso, é necessário efectuar o enquadramento político dos jornalistas<br />
no seu conjunto, através duma estrutura própria. Uma estrutura que promova a unidade de<br />
pensamento e de acção dos jornalistas (...) (Machel, 1977)<br />
Foi neste contexto que certos jornais foram encerrados e outros nacionalizados, o mesmo acontecendo<br />
com a rádio. Neste último caso, foi criada a Rádio Moçambique (doravante única estação<br />
de rádio no país e com cobertura nacional), após o encerramento das rádios da era colonial,<br />
nomeadamente a Rádio Clube de Moçambique, a Rádio Pax e o emissor Aeroclube da Beira.<br />
De forma breve, pode-se dizer que, durante quinze anos (1975-1990), ou seja, durante a vigência<br />
do regime monopartidário, o cenário da imprensa em Moçambique foi marcado pelo controlo<br />
da imprensa pelo Partido, pela censura e autocensura. A imprensa era um instrumento do<br />
governo na busca de certos objectivos, e a liberdade de expressão e de imprensa eram vistas<br />
como meras ilusões burguesas, ameaças ao ideal socialista e revolucionário: fora do Partido -Estado,<br />
o destino da imprensa não seria a independência e a liberdade de expressão, mas o controlo por<br />
interesses capitalistas e contra-revolucionários.<br />
No contexto de transição para a democracia multipartidária, com a promulgação da constituição<br />
pluralista e liberal de 1990 (Artigo 74) e da Lei de Imprensa (Lei n ọ 18/91), uma série de<br />
liberdades e garantias individuais antes vistas como burguesas foram estendidas aos moçambicanos,<br />
de entre elas a possibilidade de se exprimirem livremente e de criarem uma imprensa<br />
independente, não mais sujeita às interpretações do Partido no poder, garantias estas que foram<br />
consolidadas e reafirmadas com a Constituição de 2004. Para regular o funcionamento da<br />
128 Desafios para Moçambique 2010 Uma Breve Análise da Imprensa Moçambicana
imprensa, a Lei de Imprensa também criou o Conselho Superior de Comunicação Social<br />
(CSCS), órgão que se pretende independente, autónomo administrativa e financeiramente, e<br />
que também recebeu status constitucional na Constituição de 2004 (art. 50). As principais funções<br />
do CSCS são assegurar a independência dos meios de comunicação social no exercício dos<br />
direitos à informação, à liberdade de imprensa, bem como dos direitos de antena e de resposta.<br />
A abertura política permitiu a emergência de muitos jornais, rádios e televisões independentes<br />
do Estado, os quais, mesmo se concentrados em Maputo e acessíveis apenas a uma pequena<br />
“elite” urbana, renovaram em muitos a esperança de um debate público mais aberto e construtivo,<br />
e de uma imprensa mais empenhada na busca e divulgação dos factos e suas versões, e não<br />
mais apenas na divulgação de uma única versão dos factos.<br />
Desde então, muito se debateu em relação à independência dos meios de comunicação, públicos<br />
e privados, em relação aos interesses partidários e do Estado, aspecto importante na edificação<br />
de uma sociedade livre e democrática. Os debates acerca da imprensa são importantes<br />
para a democracia por várias razões, com destaque para o seu papel na socialização política, ou<br />
seja, no inculcamento nos cidadãos de valores e crenças relativas ao poder e seu funcionamento.<br />
Como diz Philippe Braud (1998:241), a imprensa joga um importante papel na construção de<br />
representações políticas, pois: “Para muitas pessoas, a televisão [sobretudo] e a imprensa escrita são<br />
as únicas formas de saber quem são seus representantes, o que eles crêem (ou é suposto crerem), o que<br />
eles afirmam, o que eles vivem. A classe política não existe senão através delas [da televisão e da imprensa<br />
escrita].” Para além disto, acrescenta Braud, os mídia têm um papel importante ao nível<br />
de integração social, “ao consagrar um grande espaço à actualidade, eles contribuem para construir<br />
uma história e memórias comuns (ibidem)”.<br />
Para além de ater-se à questão do relacionamento da imprensa com o poder político, interessante<br />
é ver até que ponto a multiplicação de órgãos de informação e comunicação privados permitiu<br />
a emergência de uma imprensa investigativa e profissional. Ou seja, terá isso contribuído<br />
para a melhoria da qualidade do jornalismo praticado em Moçambique?<br />
Se é inegável que a diversidade em termos de informação é uma realidade, dúvidas persistem<br />
quanto à emergência de um jornalismo investigativo, sério e profissional, exceptuando alguns<br />
casos. Quais as razões disso?<br />
BREVE PANORAMA GERAL DA IMPRENSA MOÇAMBICANA 1<br />
As principais lições que devem ser tiradas da apresentação e caracterização sucinta dos meios<br />
de comunicação social actualmente existentes em Moçambique referem-se ao facto de serem<br />
eminentemente urbanos e de estarem concentrados em Maputo.<br />
Uma Breve Análise da Imprensa Moçambicana Desafios para Moçambique 2010 129
Actualmente, existem sete estações de televisão com sinal livre: duas públicas e seis privadas.<br />
No primeiro grupo, encontramos a 1) Televisão de Moçambique (TVM) e 2) a Rádio e Transmissão<br />
de Portugal para África (RTP-África), de origem portuguesa e difundida a partir da antiga<br />
metrópole para todas as antigas colónias portuguesas. De entre as privadas, encontramos:<br />
1) a STV, pertencente à Sociedade Independente de Comunicação (SOICO), de empresários<br />
moçambicanos e fundada em 2002. Esta televisão cobre oito das onze províncias do país,<br />
nomeadamente Maputo (cidade e província), Gaza e Inhambane, no Sul, Manica, Tete e Zambézia,<br />
no Centro, e Nampula, no Norte; 2 2) A Televisão Independente de Moçambique (TIM),<br />
criada em 2006 por empresários moçambicanos, que, para além de Maputo, emite em Tete,<br />
Cabo Delgado, Beira e Quelimane; 3) TV Miramar, propriedade da Igreja Universal do Reino<br />
de Deus; 4) a SIRT-TV, criada em 2002 e com sede na cidade de Tete — portanto, a única com<br />
sede fora da capital —, pertencente a António Marcelino de Mello 3 ; a 5) KTV, descendente da<br />
antiga Rádio e Televisão Klint (RTK), a primeira estação televisiva privada criada em Moçambique,<br />
então criada por Carlos Klint, antigo militante da Frelimo. A KTV possui uma estação<br />
de rádio, a KFM, que também emite em FM; 6) a TV Maná, com sede em Maputo, de propriedade<br />
da Associação Maná Igreja Cristã.<br />
Em termos de radiodifusão, para além da Rádio Moçambique, a única rádio com cobertura<br />
nacional e a única rádio pública do país, existem várias outras estações de rádio privadas.<br />
Entretanto, para além de estarem concentradas em Maputo, estas rádios, que emitem em FM,<br />
tem um raio de cobertura bastante pequeno. A Frelimo também tem a sua rádio, a Rádio Índico<br />
(propriedade da Associação dos Combatentes da Luta de Libertação Nacional, uma das<br />
organizações sociais da FRELIMO). A Renamo também tinha a sua rádio, a Rádio Terra Verde,<br />
entretanto cedida em 2008 a uma empresa privada, a empresa Nova Difusão (Secretariado do<br />
Conselho de Ministros, 14 de Outubro de 2008). 4<br />
Para se alcançar o maior número de moçambicanos, foram criadas várias rádios comunitárias<br />
nas zonas rurais, as quais veiculam informação em línguas locais. A grande maioria destas rádios<br />
contou com forte apoio inicial (1998-2006) da UNESCO e do PNUD, sendo que outras foram<br />
criadas pelo Instituto de Comunicação Social (ICS), uma entidade estatal. Desde Abril de 2004,<br />
a maioria das rádios comunitárias sem vínculo com o Estado trabalha em conjunto por meio<br />
do Fórum Nacional de Rádios Comunitárias (FORCOM), uma iniciativa de trabalho em rede<br />
para consolidar e auxiliar as rádios comunitárias no seu trabalho.<br />
No que toca à imprensa escrita, existem três jornais diários, todos de circulação nacional: o<br />
Notícias, o Diário de Moçambique e O País (antigo semanário, transformado em diário em 2008).<br />
Os dois primeiros pertencem à Sociedade Notícias SARL, uma empresa organizada como sociedade<br />
anónima mas cujos principais accionistas são entidades estatais ou com participação<br />
maioritária do Estado moçambicano: o Banco de Moçambique (o banco central do país),<br />
a EMOSE (a companhia de seguros do Estado, que, se actua sob o formato de sociedade anó-<br />
130 Desafios para Moçambique 2010 Uma Breve Análise da Imprensa Moçambicana
nima, é do Estado a propriedade da maioria das suas acções) e a PETROMOC (companhia de<br />
distribuição de derivados de petróleo, que actua sob formato de sociedade anónima mas cujas<br />
acções são na maioria subscritas pelo Estado). O jornal O País é privado e pertence ao grupo<br />
SOICO, proprietário da estação de televisão STV. Com 30 mil exemplares, é o diário com maior<br />
tiragem, ultrapassando de longe o Notícias e o Diário de Moçambique. O Diário de Moçambique<br />
é o único quotidiano publicado fora da capital, mais propriamente na cidade da Beira. De entre<br />
os semanários, circulam hoje (meados de 2009) nove jornais: Zambeze (8000 exemplares),<br />
Magazine Independente (7000 exemplares), Canal de Moçambique (5000 exemplares), Savana (entre<br />
12 000 e 15 000 exemplares), Domingo (10 000 exemplares), Público (3000 exemplares), Escorpião<br />
(5000 exemplares), A Verdade (50 000 exemplares) e Desafio (12 000 exemplares). De entre estes,<br />
o semanário Domingo, o mais antigo, e o jornal Desafio, dedicado ao desporto, pertencem à<br />
Sociedade Notícias SARL, sendo os restantes estritamente privados, sem relação com empresas<br />
estatais ou com participação do Estado. O Desafio é o único jornal desportivo em Moçambique,<br />
pois o jornal O Campeão, uma iniciativa de alguns jornalistas desportivos moçambicanos, não conseguiu<br />
singrar no mercado. Sublinhar, também, que o semanário A Verdade, criado em 2008,<br />
para além de ser o semanário privado com maior tiragem e de ser o único impresso fora de<br />
Moçambique (é impresso na África do Sul), é o primeiro e único jornal de distribuição gratuita<br />
que o país possui. Finalmente, também entre os mídia escritos, destaca-se a Agência de Infor -<br />
mação de Moçambique (AIM), que é uma entidade estatal e divulga informações em inglês e português,<br />
sendo uma das principais fontes de informação sobre Moçambique para os mídia<br />
estrangeiros.<br />
ENTRE DEPENDÊNCIA E INDEPENDÊNCIA<br />
A abertura política possibilitou a emergência de uma imprensa independente, investigativa,<br />
séria e combativa, não mais ao serviço dos interesses do partido, mas livre para reportar a sua<br />
interpretação dos factos. Liderada por indivíduos como Carlos Cardoso — fundador, com outros<br />
jornalistas em torno do grupo Mediacoop, do primeiro jornal fax de Moçambique, o MediaFax,<br />
e do primeiro semanário independente, o Savana — esta imprensa, para além de Informar o<br />
cidadão sobre os seus direitos e colaborar na edificação de um Estado democrático, tem<br />
exercido o papel fiscalizador do poder público que lhe havia sido retirado no regime<br />
monopartidário, denunciando, assim, os abusos dos recursos do Estado pelos políticos e os<br />
efeitos negativos de algumas políticas do Estado moçambicano, assim como das instituições de<br />
Bretton Woods.<br />
No que diz respeito aos abusos dos políticos, o destaque vai para a denúncia do desfalque de dois<br />
antigos bancos comerciais, o Banco Comercial de Moçambique e o Banco Austral, considera-<br />
Uma Breve Análise da Imprensa Moçambicana Desafios para Moçambique 2010 131
dos como os maiores escândalos financeiros do Moçambique independente, e, segundo círculos,<br />
protagonizados por indivíduos directa ou indirectamente ligados à elite no poder. Pode-se<br />
destacar, também, a denúncia da incompetência e impotência de Manuel António, então ministro<br />
do Interior, em lidar com a criminalidade, obrigando o também então presidente Joaquim<br />
Chissano a demiti-lo em 1996, um caso sem precedentes na história de Moçambique.<br />
Em relação às instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional),<br />
o destaque vai, sem dúvida, para a denúncia dos efeitos nefastos que as políticas destas instituições<br />
tiveram na indústria da castanha de caju. Moçambique exporta tanto castanha de caju<br />
em estado bruto como após o seu processamento. Por anos, a indústria de processamento da<br />
castanha do caju foi das mais importantes em Moçambique, apesar de ter passado por sérias<br />
dificuldades em vários momentos. Em meados da década de 1990, por pressão das instituições<br />
de Bretton Woods, a comercialização da castanha de caju em estado bruto foi liberalizada (de<br />
entre outras medidas, foi reduzida a taxa de exportação), com o que se procurava aumentar a<br />
competição entre os exportadores e, consequentemente, o preço pago aos produtores. Contudo,<br />
o principal impacto da liberalização foi a quase total destruição da indústria de processamento<br />
do caju, uma vez que o caju passou a ser exportado antes de ser processado.<br />
Carlos Cardoso, que, como mencionado acima, era o mais destacado dos jornalistas independentes,<br />
também se destacou por se ter posicionado contra a escolha de Armando Guebuza,<br />
actual presidente de Moçambique, para suceder a Joaquim Chissano na presidência da Frelimo<br />
e, consequentemente, apresentar-se como candidato presidencial (Cardoso, 15 de Julho de 1997).<br />
A imprensa independente, contudo, teve o seu desenvolvimento freado pelo assassinato brutal<br />
de Carlos Cardoso a 22 de Novembro de 2000. À época, Cardoso investigava casos de corrupção<br />
em que estariam envolvidos políticos ao mais alto nível das estruturas do Estado e da<br />
Frelimo, e a sua morte foi vista por muitos como um aviso aos jornalistas para que não se<br />
envolvessem com casos deste porte. A morte de Carlos Cardoso pode ajudar a entender,<br />
portanto, o quase desaparecimento de um jornalismo investigativo dos desmandos do poder<br />
político no país, uma vez que suscitou temores não só no seio dos jornalistas mas na sociedade<br />
em geral, como mostra este testemunho do Centro de Integridade Pública (CIP):<br />
[…] Esse jornalismo – que teve o seu expoente máximo em Carlos Cardoso, que o elevou à fasquia<br />
mais alta do seu papel em democracia, construtivo e atento, engajado na defesa do bem público e<br />
livre – está doente. Depois do seu assassinato, deixou de se fazer investigação jornalística em<br />
Moçambique. Há quem possa pensar que, actualmente, e pelo volume de escândalos de corrupção<br />
publicados, temos hoje mais investigação nos Media. Mas o que acontece é que os escândalos são<br />
apenas divulgados e não investigados; temos um jornalismo de denúncia que não faz o seguimento<br />
permanente dos casos que denuncia. (CIP: 27 de Outubro de 2006)<br />
132 Desafios para Moçambique 2010 Uma Breve Análise da Imprensa Moçambicana
Outro aspecto importante e preocupante em relação à imprensa diz respeito à sua parcialidade e<br />
às inclinações partidárias dos órgãos de comunicação social, principalmente em períodos eleitorais.<br />
A imprensa pública, estatal e aquela vinculada ao Estado, é acusada de favorecer o partido<br />
no poder, a Frelimo. Mesmo se nas eleições gerais de 2004, observadores internacionais reconheceram<br />
algumas melhorias em relação ao passado, mormente no que toca à Rádio Moçambique,<br />
a sua conclusão é de que os órgãos de comunicação estatal e com participação estatal ainda<br />
brilham pela sua parcialidade (EISA: 2006; Carter Center: 2005). No seu relatório consagrado<br />
à observação das eleições de 2004, a missão de observação da União Europeia mostrou que a<br />
cobertura dos meios de comunicação vinculados ao Estado era claramente favorável ao partido<br />
Frelimo: O Notícias deu 57% da sua cobertura ao governo e à Frelimo, 19% à Renamo e apenas<br />
10% ao Partido de Democracia e Desenvolvimento (PDD) (Awepa, 15 de Julho de 2005).<br />
Mas também fora do período eleitoral percebe-se grande parcialidade na actuação dos meios<br />
de comunicação social públicos e vinculados ao Estado. Aquando da realização da reunião da<br />
Frelimo em Abril de 2008, a TVM e a RM interromperam a cobertura em directo do informe<br />
do procurador-geral da República na Assembleia da República para reportarem em directo a<br />
reunião dos antigos combatentes da Frelimo. Em Abril de 2009, agastado com a actuação da<br />
RM a favor da Frelimo, sobretudo em ano eleitoral, Machado da Graça, um dos jornalistas<br />
mais conceituados de Moçambique, apelidou esta rádio de “Rádio Frelimo” (M. da Graça, 29 de<br />
Abril de 2009). Também, em Fevereiro de 2008, quando centenas de pessoas foram às ruas para<br />
se manifestarem contra o aumento dos preços dos transportes privados semicolectivos, os chapas,<br />
a imprensa pública foi reticente na cobertura dos acontecimentos, tendo o MISA -Moçambique<br />
e o Centro de Integridade Pública publicado uma nota de imprensa na qual criticaram a<br />
existência de controlo governamental sobre o sector (Nota de Imprensa, publicada no Magazine<br />
Independente, 13 Fevereiro 2008).<br />
O CSCS – que como já disse é a entidade reguladora do exercício da imprensa assim como do<br />
acesso à informação e é, legalmente, um órgão independente – ainda não é um órgão com<br />
aprovação consensual, sendo acusado em vários círculos de favorecer nas suas decisões o partido<br />
no poder. Por exemplo, aquando da discussão do pacote eleitoral em 2006, a FRELIMO<br />
defendia que os membros da Comissão Nacional de Eleições deviam, de entre outras possibilidades,<br />
ser escolhidos entre os funcionários do CSCS. Ora, esta proposta foi recusada pela<br />
Renamo, para quem o CSCS não passava de um mero prolongamento da Frelimo. Esta contestação<br />
da Renamo baseava-se no facto de o presidente e o vice-presidente do CSCS serem<br />
indicados pelo Presidente da República, num contexto em que a desconfiança entre as principais<br />
forças políticas no país ainda é bastante forte e, sobretudo, no qual a obediência política<br />
continua a ser a condição básica para ser nomeado ou para se manter no cargo.<br />
À excepção dos jornais com vinculação ao Estado, devido à sua situação socioeconómica precária,<br />
os jornalistas são alvos fáceis dos políticos e homens de negócios. Por exemplo, aquando da<br />
Uma Breve Análise da Imprensa Moçambicana Desafios para Moçambique 2010 133
sua visita à província de Nampula, em 2008, na companhia do presidente da Frelimo, o chefe do<br />
grupo parlamentar deste partido, Manuel Tomé, afirmou que, em virtude do apoio que os jornalistas<br />
desta província tem concedido à Frelimo, esta iria lhes oferecer casas no quadro do programa<br />
estatal Fundo para o Fomento de Habitação (FFH) (Canal de Moçambique, 24 de Junho de 2008).<br />
Igualmente, a exiguidade de meios faz com que as viagens de trabalho de alguns jornalistas<br />
sejam financiadas pelas pessoas a quem a notícia diz respeito, o que, logo à partida, retira a credibilidade<br />
do trabalho do jornalista. Em 2006, Osvaldo Tembe, jornalista do Zambeze foi expulso<br />
deste semanário, por ter cobrado 35 mil meticais a uma família a fim de não publicar uma<br />
notícia pondo em causa a idoneidade de um membro dessa família, acto denunciado por esta<br />
à polícia (Zambeze, 16 de Março de 2006).<br />
À excepção dos jornais com participação do Estado (Notícias, Domingo, Diário de Moçambique,<br />
Desafio) e do grupo SOICO, proprietário da S-Graphics, onde são impressos alguns jornais<br />
privados (Escorpião, Magazine Independente, Canal de Moçambique), nenhum outro jornal<br />
privado possui gráfica própria. Para além destas gráficas, a outra capaz de imprimir jornais<br />
com uma certa qualidade e em quantidades aceitáveis, a CEGRAF, para além das acções<br />
detidas pelo Estado moçambicano, também é dirigida por pessoas ligadas ao partido Frelimo,<br />
de entre as quais estão o actual Chefe de Estado e o deputado Hermenegildo Gamito,<br />
colocando os mídia por vezes à mercê da boa vontade dos proprietários. Por exemplo, a edição<br />
de 2 de Novembro de 2006 do jornal Savana teve de ser impressa nas instalações da<br />
Sociedade Notícias, porque a CEGRAF alegava uma dívida de 14 mil dólares da parte da<br />
Mediacoop, grupo proprietário do Savana (Notícias Lusófonas, 4 de Novembro de 2006; Jone,<br />
2008:502). Contudo, o Mediafax (3 de Novembro de 2006), também propriedade da Mediacoop,<br />
viu nesta situação um sinal de censura da parte da CEGRAF, isto porque esta edição<br />
do Savana trazia reportagens pouco abonatórias ao partido no poder. O Mediafax adiantava<br />
ainda que não era a primeira vez que isto acontecia, porque o jornal Demos já passara pela<br />
mesma situação em 2002.<br />
Para além das dificuldades acima anunciadas, o elevado custo das telecomunicações, electricidade,<br />
papel e transporte, faz parte dos principais obstáculos ao desenvolvimento da imprensa em<br />
Moçambique. O número de jornais encerrados (152 de entre os 177 criados desde 1990) confirma<br />
as dificuldades pelas quais passa a imprensa, fundamentalmente, a privada. Jornais que já tinham<br />
créditos firmados na praça, como Demos e Embondeiro, foram vítimas desta situação.<br />
Para equilibrar suas contas, os jornais poderiam contar com as receitas publicitárias. Contudo,<br />
num mercado publicitário em que o Estado e as empresas públicas são grandes clientes, o risco<br />
de uma atribuição selectiva e arbitrária é maior, dando lugar à concentração em apenas alguns<br />
órgãos de comunicação social, sobretudo os públicos e com participação estatal. A condição<br />
para um acesso maior à publicidade estatal por parte da imprensa independente pode ser a exigência<br />
de serem menos críticos em relação ao Estado e seus titulares.<br />
134 Desafios para Moçambique 2010 Uma Breve Análise da Imprensa Moçambicana
Outro ponto relaciona-se com o facto de grande parte da imprensa moçambicana ser difundida apenas<br />
em língua portuguesa. Ora, tendo em conta o facto de somente uma pequena parte de moçambicanos<br />
falar, ler ou escrever em português, um dos desafios que se impõem à imprensa moçambicana<br />
é arranjar formas de atingir os demais moçambicanos. Com efeito, os dados do Censo de 1997<br />
indicavam que apenas 6,5% de moçambicanos consideravam a língua portuguesa como sua língua<br />
materna, 39% dizendo falar português. 5 Dos dados disponíveis do Censo de 2007, a situação parece<br />
ter melhorado, principalmente entre as camadas mais jovens da população, mas ainda é bastante exígua<br />
a população que tem o português como língua materna em certas províncias: na província da<br />
Zambézia, na qual vivem quase 15% dos moçambicanos, apenas 9% da população tem no português<br />
a sua língua materna. Para lidar com tal situação, a introdução de línguas locais, sobretudo na<br />
imprensa escrita, visto que a Rádio Moçambique (Rádio Nacional), algumas rádios privadas e<br />
comunitárias e alguns canais de televisão também privados (TV Miramar, por exemplo), já o fazem,<br />
seria uma das saídas, embora não seja solução, pois a percentagem da população analfabeta, isto é,<br />
que não lê nem escreve em português ou em línguas locais, é maior (51,9% em 2006, de acordo com<br />
Ministério da Educação) (AIM, 31 de Agosto de 2006). É preciso não esquecer que, no tempo<br />
colonial, houve algumas publicações em línguas locais. Pode-se citar os jornais, O Brado Africano e<br />
O Africano (1908-1920), ambos publicados na antiga Lourenço Marques, actual Maputo, pela elite<br />
urbana de assimilados, que para além de publicarem em português também publicavam em ronga.<br />
Havia também jornais de algumas igrejas protestantes, nomeadamente Nyeleti Ya Miso (Estrela da<br />
manhã), substituído mais tarde pelo jornal Mahlalhe, da Missão Suíça, e Kuca ka Mixo (O cair da<br />
manhã) da missão metodista episcopal (Cruz e Silva, 1998:399-400). Com a independência, esta<br />
prática não foi encorajada, certamente por razões de ordem político-ideológicas, que desencorajavam<br />
o uso de línguas locais, vistas como potenciais factores de divisão, tribalismo e regionalismo.<br />
Um dos grandes problemas que enferma uma parte da imprensa moçambicana, sobretudo a independente,<br />
é a sua fraca qualidade. Isto pode ser explicado pelo facto de a maior parte dos profissionais<br />
da imprensa serem jovens, sem muita experiência, pela fraqueza da sua formação e pela<br />
escassez de recursos financeiros para os jornalistas realizarem uma boa cobertura dos eventos<br />
que acontecem no país. De um ponto de vista global, a baixa qualidade do jornalismo moçambicano<br />
deve ser entendida como um produto da crise actual do sistema de educação e ensino<br />
em Moçambique, pois, embora nos últimos anos tenha havido grande expansão do ensino<br />
e um aumento na quantidade de alunos formados, isto não tem sido acompanhado por uma formação<br />
rigorosa, ou seja, a multiplicação de escolas e de universidades não tem conduzido a uma<br />
melhor formação de profissionais e académicos.<br />
Desta breve análise, fica claro que os desafios da imprensa moçambicana são inúmeros. Algumas<br />
alternativas, contudo, poderiam ser implementadas para buscar soluções para estes problemas.<br />
Do ponto de vista das carências materiais, os órgãos de comunicação social, sobretudo os privados,<br />
poderiam beneficiar de apoios dos parceiros internacionais de Moçambique, uma vez que<br />
Uma Breve Análise da Imprensa Moçambicana Desafios para Moçambique 2010 135
tal apoio já é, indiretamente, oferecido aos meios de comunicação social públicos, uma vez que<br />
o orçamento do Estado moçambicano é financiado em cerca de 50% pela ajuda externa. No<br />
caso, os meios de comunicação social têm recebido poucos recursos de parceiros internacionais,<br />
uma vez que, em regra, não beneficiam nem dos recursos destinados ao sector público nem<br />
dos recursos oferecidos às organizações da sociedade civil, uma vez que as empresas jornalísticas<br />
são organizações com fins lucrativos. No caso, poderia ser criado um Fundo de Apoio<br />
ao Jornalismo Investigativo, no qual os doadores fariam o aporte financeiro e os jornalistas<br />
concorreriam ao financiamento para a realização das suas reportagens.<br />
A criação de um estatuto do jornalista, clarificando os direitos e os deveres deste, devia também<br />
ser enquadrada no processo de valorização, credibilização e responsabilização dos jornalistas.<br />
Hoje, por exemplo, um jornalista pode simultaneamente ocupar cargos políticos e<br />
públicos, e nada existe para regular este tipo de situação, o que por vezes tem criado situações<br />
de conflitos de interesse. Na campanha eleitoral de 2004, um jornalista da Rádio Moçambique,<br />
na altura vereador da Frelimo no município da Matola, foi impedido pela Renamo de acompanhar<br />
a comitiva deste partido por ser considerado como um “agente da Frelimo”, e não um<br />
jornalista. Lázaro Mabunda, jornalista do jornal O País, afirma que muitos dos problemas com<br />
que se debatem os jornalistas e a imprensa em geral em Maputo devem-se à ausência de um<br />
estatuto regulador desta profissão:<br />
Urge um instrumento para regulamentar a actividade de um jornalista, porque esta profissão já<br />
está a ser um dumba-nengue [mercado informal], facto que se justifica pelo surgimento de<br />
jornalistas sem carácter e despidos de deontologia e ética. Hoje, alguém dorme e acorda jornalista.<br />
O que se espera dessa pessoa sem vocação ou orientação jornalística? É assim que alguns quando<br />
querem atingir certos interesses procuram ser jornalistas e, alcançados os intentos, abandonam.<br />
Não se explica que o jornalista não tenha, 34 anos após a independência, carteira profissional,<br />
muito menos estatuto que o define, à semelhança de outros países. Hoje, o Sindicato Nacional de<br />
Jornalistas e o Gabinete de Informação não sabem quantos jornalistas existem em Moçambique e<br />
quem é quem entre esses jornalistas. Assim, corremos o risco de termos jornalistas que estão nesta<br />
profissão para servirem interesses de perigosos criminosos. Há necessidade de sabermos quem é<br />
quem, para além do estabelecimento de categorização da classe. (Mabunda, 10 de Abril de 2009)<br />
Para terminar, pode-se dizer que, apesar das inúmeras dificuldades com as quais se debate, e embora<br />
o assassinato de Carlos Cardoso tenha assustado a classe jornalística, a imprensa independente<br />
tem feito um esforço de modo a constituir-se como contra-poder em Moçambique,<br />
sendo por isso que os jornalistas são quase frequentemente ou assediados ou ameaçados por<br />
políticos, homens de negócios e outras forças que se sentem atingidas pelo seu trabalho.<br />
136 Desafios para Moçambique 2010 Uma Breve Análise da Imprensa Moçambicana
NOTAS<br />
1<br />
Sobre a imprensa, ver Open Society Initiative for Southern Africa (OSISA), Moçambique.<br />
Democracia e participação política, Joanesburgo, 2009, p. 55-70, disponível em<br />
http://www.afrimap.org/report.php#38, (acedido a 25 de Outubro de 2009).<br />
2<br />
O grupo SOICO possui ainda uma estação de rádio, a rádio SFM, que transmite em frequência<br />
modulada.<br />
3<br />
António Marcelino de Mello é também proprietário da Rádio SIRT, em FM, igualmente com<br />
sede em Tete.<br />
4<br />
De momento, discute-se a aprovação de uma nova lei de imprensa, segundo a qual os partidos<br />
políticos não mais poderiam ser proprietários de meios de comunicação social audiovisuais.<br />
5<br />
Com a expansão do ensino para zonas mais recônditas do país, certamente que estes dados já<br />
estão ultrapassados. Isto só pode ser confirmado pelos dados do Censo de 2007, os quais, entretanto,<br />
ainda não estão disponíveis na sua totalidade.<br />
REFERÊNCIAS<br />
AIM (2006), “Analfabetismo continua preocupante em Moçambique”, 31 de Agosto,<br />
http://www.portaldogoverno.gov.mz/noticias/educacao/agosto2006/news_176_e_08_06/<br />
(acedido a 26 de Outubro de 2009).<br />
AWEPA (2005), Boletim sobre o processo político em Moçambique, Número 32, 15 de Julho.<br />
Braud, Phillipe (1998), Sociologie politique, Paris, L.G.D.J (4.ª edição).<br />
Canal de Moçambique (2008), “Jornalistas vão ter habitação condigna através do FFH”, 24 de<br />
Junho.<br />
Cardoso, Carlos (1997), “Guebuza não”, Metical, 15 de Julho.<br />
The Carter Center, Observação das eleições de Moçambique 2004, Outubro 2005.<br />
CIP (2006), “As percepções sobre corrupção em Moçambique”, 27 de Outubro,<br />
http://www.integridadepublica.org.mz/index.asp?sub=topic&rubid=3&doc=1, (acedido<br />
a 20 de Outubro de 2009).<br />
Cruz e Silva, Teresa (1998), “Educação, identidades e consciência política. A Missão Suíça no Sul<br />
de Moçambique (1930-1975)”, Lusotopie 1998, p. 397-405.<br />
EISA (org.), Contribuição das Organizações da Sociedade Civil para a Revisão da Legislação Eleitoral<br />
com apoio do EISA e do IMD, 29 de Agosto de 2009.<br />
Graça, Machado da (2009), “Rádio Frelimo”, Savana, Maputo, 24 de Abril.<br />
Jone, Cláudio (2008), Presse et politique en Afrique Australe: De la transition au (socialisme) à la rédiscussion<br />
des hégémonies internes au Mozambique et au Zimbabwe, Universidade Michel de<br />
Montaigne-Bordéus III, Tese de doutoramento, Bordéus, Dezembro.<br />
Mediafax, “Sinais de mordaça na revisão da Lei de imprensa”, 3 de Novembro de 2006.<br />
Uma Breve Análise da Imprensa Moçambicana Desafios para Moçambique 2010 137
Mabunda, Lázaro (2009), “Falência da ética e profissionalismo no jornalismo moçambicano!”, O<br />
País, 10 de Abril, Maputo.<br />
Machel, Samora (1977), “Fazer da Informação um destacamento avançado da luta de classes e da<br />
revolução”, Documentos do 1.º Seminário Nacional de Informação, Maputo, 12 a 15 de<br />
Setembro de 1977, Ministério da Informação da República Popular de Moçambique.<br />
MISA, CIP (2008), “Nota de Imprensa”, Magazine Independente, Maputo, 13 Fevereiro.<br />
Namburete, Eduardo (2003), “A Comunicação Social em Moçambique: da independência à<br />
liberdade”.<br />
Notícias Lusófonas (2006), “Arrancou debate da anteproposta de revisão Lei de imprensa”,<br />
4 de Novembro, http://www.noticiaslusofonas.com/view.php?load=arcview<br />
&article=16112&catogory=Mo%E7ambique (acedido a 18 de Outubro de 2009).<br />
OSISA (2009), Moçambique. Democracia e participação política, Joanesburgo.<br />
Secretariado do Conselho de Ministros (2008), Aos orgãos de informação, Maputo, 14 de Outubro.<br />
Serra, Carlos (2008), “O mais intenso ano político da Frelimo desde 1994”, 23 de Abril,<br />
http://oficinadesociologia.blogspot.com/2009/04/o-mais-intenso-ano-politico-dafrelimo.html<br />
(acedido a 18 de Outubro de 2009).<br />
Zambeze (2006), Jornalista Osvaldo Tembe expulso do Zambeze, Maputo, 16 de Março.<br />
138 Desafios para Moçambique 2010 Uma Breve Análise da Imprensa Moçambicana
PARTE II<br />
ECONOMIA<br />
DESAFIOS<br />
DA CONSTRUÇÃO<br />
DE UMA ECONOMIA SUSTENTÁVEL
CRISES CÍCLICAS E DESAFIOS<br />
DA TRANSFORMAÇÃO DO PADRÃO<br />
DE CRESCIMENTO ECONÓMICO<br />
EM MOÇAMBIQUE<br />
Carlos Nuno Castel-Branco | Rogério Ossemane<br />
INTRODUÇÃO<br />
Os relatórios do Governo de Moçambique (GdM) e dos seus principais parceiros bilaterais e multilaterais<br />
apresentam a economia de Moçambique como um exemplo de sucesso na promoção de rápido<br />
crescimento económico e redução da pobreza. O grau de sucesso está associado à magnitude<br />
das taxas de variação (por quanto é que a economia cresce ou a pobreza reduz). A robustez do crescimento<br />
económico é assumida da aparente estabilidade dos indicadores macroeconómicos monetários<br />
e do seu aparente sucesso na redução da pobreza. Crescimento com estabilidade monetária é<br />
entendido como o resultado de políticas monetárias e fiscais prudentes e como incentivo ao sector<br />
privado. Crescimento com redução da pobreza é entendido como resultado da eficácia distributiva<br />
tanto da estrutura económica como das políticas económicas. Por consequência, é argumentado,<br />
estabilização monetarista é consistente com rápido crescimento económico e redução da pobreza se<br />
for acompanhado pelo esforço de liberalização, o que aparentemente demonstra a validade dos modelos<br />
de política avançados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (BM).<br />
Paradoxalmente, a economia nacional mantém elevadas taxas de dependência em relação a fluxos<br />
externos de capitais, tanto oficiais (ajuda externa) como privados (investimento directo estrangeiro<br />
e empréstimos no sistema bancário internacional). Enquanto a ajuda externa financia mais de metade<br />
da despesa pública e a construção de reservas externas, os fluxos externos de capitais privados<br />
representam aproximadamente 90% do investimento privado total em Moçambique. Como é<br />
que este nível de dependência pode ser consistente com a história de sucesso? Até que ponto é que<br />
a aparente estabilidade dos indicadores monetários e a aparente redução da pobreza não depende<br />
mais dos fluxos externos de capitais do que da composição do crescimento económico? Se o investimento<br />
é tão dependente de fluxos externos de capitais, e estes reflectem sobretudo os interesses<br />
globais dos grandes investidores, que padrão de produção e comércio está sendo criado?<br />
Mais de duas décadas após o início da implementação das medidas de estabilização e ajustamento<br />
estrutural em Moçambique 1 , a estabilidade e a solidez dos indicadores monetários (inflação,<br />
taxa de câmbio) e estruturais (défice fiscal, défice da balança de pagamentos, reservas<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010<br />
141
externas) continuam a depender da ajuda externa e da substituição do crédito doméstico para o<br />
investimento pelos fluxos externos de capital privado. 2 Não será a continuação desta dependência<br />
profunda um indicador da fragilidade estrutural da base produtiva, comercial e fiscal da<br />
economia? Quais serão os impactos no comportamento e opções dos investidores nacionais das<br />
tentativas de gerir a massa monetária para estabilizar os indicadores monetários e estruturais<br />
por via da compensação dos fluxos externos de capital com recurso à esterilização da ajuda<br />
externa, aumento das reservas externas e outras medidas monetárias para enxugar a liquidez? Até<br />
que ponto é que tais efeitos não constrangem as opções, o comportamento e os interesses dos<br />
agentes económicos nacionais, encorajando-os a optarem por actividades de alto retorno a curto<br />
prazo, a engajarem-se na luta por rendas relacionadas com política pública e capital estrangeiro?<br />
Estas e outras questões vêm sendo levantadas há mais de uma década 3 , mas tanto as autoridades<br />
nacionais como os seus parceiros externos têm prestado pouca atenção a estas inquietações.<br />
Recentemente, quatro pressões poderosas contribuíram para que estas questões começassem a<br />
ficar politicamente mais relevantes. Por um lado, depois de uma década de silêncio ou de ambiguidades<br />
e contradições, o BM e o FMI reconheceram oficialmente que os megaprojectos pouco<br />
ou nada contribuem para a redução da pobreza e para a sustentabilidade do crescimento económico,<br />
e que os incentivos fiscais que lhes são atribuídos os tornam irrelevantes mas com altos<br />
rácios de custo/benefício social. Por outro lado, a manutenção da profunda dependência fiscal<br />
começou a alarmar tanto o GdM (por causa de factores de soberania) como os seus parceiros<br />
externos (por causa das dificuldades de justificar os níveis correntes de ajuda externa por mais uma<br />
década, a terceira). A revolta popular de 5 de Fevereiro, suscitada pelo aumento dos preços de<br />
combustíveis, transportes colectivos e alimentos, um dia após o presidente do Banco Mundial ter<br />
declarado Moçambique como exemplo de sucesso em África, e a crise económica internacional,<br />
revelaram algumas das fraquezas e vulnerabilidades da economia e dos padrões de acumulação.<br />
Este capítulo revisita os dados oficiais da economia moçambicana explorando duas vertentes<br />
relacionadas: a composição do crescimento económico e o seu impacto na estabilidade estrutural<br />
da macroeconomia de Moçambique. A partir desta análise, o capítulo discute os desafios<br />
de transformação dos padrões de acumulação económica em Moçambique, nomeadamente<br />
a diversificação e articulação da base produtiva e comercial e o alargamento dos centros de<br />
acumulação e padrões de distribuição.<br />
PADRÃO DE CRESCIMENTO ECONÓMICO<br />
E CRISES CÍCLICAS DE ACUMULAÇÃO<br />
Esta secção discute o argumento de base deste artigo. A secção começa por resumir o debate<br />
em torno do padrão de produção, reprodução e distribuição (ou padrão de acumulação) na<br />
142 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
economia, antes de passar à evidência e implicações. Ao demonstrar que o padrão de acumulação<br />
é mais importante para determinar o curso da economia e da sociedade do que a taxa de<br />
crescimento, e que o padrão de acumulação reflecte sobretudo dinâmicas de economia política<br />
(ou seja, de interacção dinâmica entre agentes e pressões e ligações económicas), este resumo<br />
do debate serve também para construir e justificar a base empírica que descreve o padrão<br />
extractivo de acumulação da economia nacional e as suas implicações.<br />
O ARGUMENTO<br />
Ao longo do último meio século, a economia de Moçambique foi caracterizada por períodos de<br />
aceleração interrompidos, ciclicamente, por períodos de estagnação ou declínio. Os ciclos<br />
de ajustamento ou crise têm sido relativamente curtos, 3-4 anos, o que indica a possibilidade de<br />
a estagnação e declínio estarem organicamente associados com a aceleração que os precede. 4<br />
Por outras palavras, a expansão e aceleração que precedem a crise não são sustentáveis. A explicação<br />
para esta relação entre expansão e crise económica reside na composição estrutural e<br />
social da expansão (isto é, o seu padrão) e na natureza estrutural da crise.<br />
O padrão de crescimento económico em Moçambique é excessivamente concentrado, o que<br />
quer dizer que depende de um pequeno e limitado leque de produtos, serviços e firmas.<br />
Esta concentração é realizada primariamente em torno do complexo mineral-energético, o<br />
que reproduz uma economia que é extractiva nas suas dinâmicas fundamentais. Por “economia<br />
extractiva” deve entender-se uma dinâmica e estrutura produtiva e comercial com as<br />
seguintes características: é especializada em produtos primários com baixo nível de processamento;<br />
é desarticulada, no sentido em que as ligações entre actividades, firmas e subsectores<br />
(a montante e jusante) são fracas e o mercado doméstico é pouco desenvolvido; as<br />
actividades extractivas (minerais, florestais, pescas e outras de puro aproveitamento não<br />
processado de recursos naturais) formam o núcleo do processo de acumulação; as classes<br />
capitalistas domésticas acumulam sobretudo com base em rendas da economia extractiva;<br />
e é profundamente dependente de fluxos externos de capital com tendência a gerarem,<br />
ciclicamente, fluxos negativos de capital (em que o capital exportado é superior ao<br />
importado). 5<br />
De um modo geral, a economia de Moçambique exporta o que extrai ou produz sem o processar<br />
(ou apenas com o processamento mais básico necessário para rentabilizar a exportação)<br />
e importa, em forma processada, o que consome. Dado o seu carácter extractivo (portanto,<br />
também dependente de recursos naturais e infra-estruturas já existentes) e a dependência do<br />
investimento e da organização da produção e comércio em relação a capitais externos, este<br />
padrão de acumulação também gera um desenvolvimento desigual do capitalismo entre regiões<br />
de Moçambique. Ao longo do tempo, os produtos e as zonas mais e menos beneficiadas podem<br />
variar, mas a essência do padrão de acumulação mantém-se.<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 143
Será que estas características da estrutura de produção, comércio, acumulação e reprodução<br />
representam, de facto, um problema? Não serão, tais características, o resultado da especiali -<br />
zação derivada das vantagens comparativas da economia?<br />
Rodrik (2007) comenta que a evidência mostra que, à medida que as economias vão saindo da<br />
pobreza, a sua base produtiva e comercial fica mais diversificada e não mais especializada. Nesse<br />
artigo, Rodrik também mostra que as economias que transitam com sucesso para níveis desenvolvidos<br />
de capacidade, articulação e rendimento tendem a iniciar a sua especialização, em<br />
torno do progresso científico e tecnológico, quando atingem as fases mais avançadas de<br />
desenvolvimento. Isto é, a especialização emerge muito mais tarde como resultado do desenvolvimento,<br />
em vez de ser a causa e ponto de partida do desenvolvimento.<br />
Estes factos entram em conflito com os modelos clássicos de vantagens comparativas assentes<br />
em especialização, pois se tais modelos fossem correctos, as economias que têm sucesso na<br />
transição para as etapas mais avançadas de desenvolvimento começariam por especializar em<br />
vez de diversificar. Portanto, este argumento relaciona pobreza e dependência com especialização<br />
em actividades primárias sem ligações a montante e a jusante, e relaciona o sucesso sobre<br />
a pobreza com a diversificação e, por consequência, o afastamento dos padrões produtivos<br />
desse tipo de especialização primária. Argumenta Rodrik que a chave para o crescimento com<br />
redução da pobreza é a aquisição de capacidades produtivas num leque mais amplo (e não mais<br />
especializado) de actividades e bens que se possam articular, em vez de vantagens compara tivas<br />
extractivas que reforçam a concentração restritiva e a desarticulação.<br />
No mesmo quadro geral de argumentação, Lucas (1990), Nelson e Pack (1999), Stewart (1976)<br />
e Hirschman (1958) mostram que crescimento económico sustentado e dinâmico ao longo do<br />
tempo está associado com a ampliação das capacidades científicas e tecnológicas e com o<br />
desenvolvimento das suas ligações com a diversificação da base produtiva e comercial. De<br />
acordo com Lucas, o acesso a capital depende da produtividade de factores e esta depende da<br />
diversidade e externalidades das capacidades científicas e tecnológicas, das qualificações dos trabalhadores<br />
e da organização laboral que permite criar e absorver produtivamente tais externalidades.<br />
Nelson e Pack enfatizam o papel da experiência na organização da produção e das<br />
articulações produtivas para o domínio da tecnologia e aceleração do crescimento económico<br />
(e esta experiência pressupõe um processo de diversificação e ligações). Para estes autores, o<br />
crescimento acelerado requer o domínio da tecnologia e a capacidade de a gerir e articular na<br />
esfera produtiva (incluindo a gestão e articulação das cadeias de logísticas de aprovisionamento<br />
e manutenção, assim como as cadeias de formação e inovação). Stewart enfatiza o papel da<br />
diversificação da produção de capacidade produtiva (engenharia metalomecânica, química, metalurgia<br />
e outras) como factor central no desenvolvimento de capacidades científicas e tecnológicas<br />
endógenas, o que gera novas capacidades de inovação e desenvolvimento. Hirschman<br />
define desenvolvimento como o processo de formação generalizada de ligações entre activi-<br />
144 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
dades económicas e capacidades produtivas que resultam de pressões económicas concretas<br />
e contínuas.<br />
Hausmann e Rodrik (2005) argumentam que não é tanto o quanto se produz e exporta, mas o<br />
que é que se produz e exporta que de facto é importante. O seu argumento gira tanto em torno<br />
das características dos produtos e dos seus mercados específicos, como do potencial de ligações<br />
que certos tipos de actividades, produtos e especialização geram ou impedem de gerar. Uma<br />
base mais diversificada de produção e comércio permite criar mais oportunidades e adquirir<br />
vantagens para aproveitar as novas oportunidades que surjam.<br />
Para Chang (1996), a questão central não é tanto o que se produz em si, mas se existe suficiente<br />
complementaridade, articulação e ligações, e se estas permitem a economia passar para<br />
fases qualitativamente novas e mais avançadas de produção, inovação e comércio.<br />
Fine e Rustomjee (1996) argumentam que não basta descrever os padrões restritivos de produção<br />
e comércio, nem prescrever ou receitar a diversificação desses padrões como solução. O padrão de<br />
acumulação reflecte dinâmicas de economia política, isto é, de interacção dinâmica entre agentes<br />
(seus interesses e conflitos) e ligações ou pressões económicas (com os constrangimentos e opções<br />
que colocam perante os agentes). Os conflitos, tensões e pressões que são escolhidos e identificados<br />
como importantes ou prioritários, e a forma como são enfrentados, dependem dos interesses e<br />
relações de poder entre agentes. Por sua vez, estes interesses e relações de poder são continuamente<br />
estruturados dentro de um contexto de conflito, tensão e pressões económicas. Portanto, para mudar<br />
padrões de acumulação é preciso conseguir explicar as causas dos padrões existentes e as dinâmicas<br />
sociais, políticas e económicas que emergem com tais padrões e que agem para os reforçar ou<br />
para os transformar. Isto permite identificar os processos políticos e sociais reais através dos quais<br />
os padrões económicos podem ser mudados. Por outras palavras, a sociedade não está estática e<br />
passivamente à espera que alguém ordene a diversificação do que é concentrado, ou a articulação<br />
do que é desarticulado. Em torno e em associação com a concentração e desarticulação, ou diversificação<br />
e articulação, existem padrões de reprodução e distribuição do rendimento (e, portanto,<br />
dinâmicas e interesses de grupo), assim como capacidades, pressões e oportunidades.<br />
Este debate pode ser resumido no seguinte. Há várias razões fundamentais que podem facilmente<br />
transformar as actuais características da economia de Moçambique num problema de<br />
desenvolvimento. Primeira, tornam a economia particularmente vulnerável a choques que<br />
afectem os seus sectores dominantes (variações nos preços, flutuações na disponibilidade de<br />
matérias -primas, mudanças dos ciclos de produto e sua substituição derivada de avanços<br />
tecnológicos, estratégias ofensivas de concorrentes, etc.).<br />
Segunda, tornam a economia particularmente volátil pois não tem compensações para amortecer<br />
os efeitos de mudanças bruscas que afectem os seus sectores dominantes, e pequenas mudanças<br />
nas condições comerciais e produtivas de um desses sectores criam grandes variações<br />
na economia.<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 145
Terceira, criam choques e instabilidade macroeconómicos (de expressão monetária, como a<br />
volatilidade da moeda e dos preços, ou estrutural, como os défices fiscais e da conta-corrente)<br />
que provocam incerteza, interrupções contínuas dos processos de acumulação e vulnerabili -<br />
dades macroeconómicas crónicas.<br />
Quarta, a incerteza crónica pode encorajar a adopção de medidas monetaristas conservadoras<br />
(como, por exemplo, a formação de excessivas reservas internacionais, a esterilização de grandes<br />
fluxos de capital externo e a sucção sistemática de liquidez da economia) que, por sua vez, tendem<br />
a impedir a diversificação do investimento e da base produtiva e comercial e a incentivar a<br />
aplicação do excedente em operações puramente financeiras (em vez de produtivas). 6<br />
Quinta, limita o leque de opções tecnológicas, qualificações técnicas e científicas, capacidades<br />
institucionais, etc., o que força a economia a permanecer com o mesmo padrão de produção e<br />
comércio por não ter capacidade e/ou oportunidade e incentivo para mudar. Por consequência,<br />
estas limitações tornam-se num obstáculo à diversificação, ao aproveitamento de oportunidades<br />
de mercado, à criação de novas oportunidades, à inovação e ao aproveitamento dos<br />
ganhos de competitividade alcançados em diferentes subsectores e diferentes economias. 7<br />
Sexta, dependendo do nível e tipo de especialização (com mais ou menos processamento<br />
industrial e articulação doméstica), pode limitar as opções de crescimento a médio e longo<br />
prazo, mantendo a economia fixa num padrão histórico de reprodução de ciclos viciosos de<br />
baixa produtividade, fracas ligações, desorganização das redes de transporte, aprovisionamento<br />
e comercialização, pobreza e incapacidade de mudar. Dependendo do tipo e grau de concentração,<br />
a economia pode estagnar em torno de um padrão de dependência e vulnerabilidade e<br />
da incapacidade de ligar, a montante e a jusante, as actividades produtivas e de serviços. Nestas<br />
circunstâncias, o funcionamento paralelo das várias actividades económicas mantém-se: a<br />
economia exporta em bruto (sem processamento ou com processamento mínimo) o que produz<br />
para, com termos de troca desfavoráveis, importar processado o que consome. A concentração<br />
em actividades extractivas e de limitado processamento é um exemplo extremo deste tipo<br />
de problema. Além disso, sem ligações, os hipotéticos benefícios da concentração (cadeias de<br />
produto e valor, clusters, etc.) não se podem concretizar. 8<br />
Sétima, a concentração e desarticulação tende a aprofundar a diferenciação e desigualdade entre<br />
grupos sociais e regiões no acesso à riqueza produzida e, através da fragmentação dos mercados,<br />
tende a impedir que os ganhos produtivos, tecnológicos e monetários dos sectores mais<br />
avançados sejam transmitidos para os mais atrasados, para as firmas e para os cidadãos em geral.<br />
Oitava, estas características estruturais da economia nacional (fracas capacidades produtivas,<br />
tecnológicas, infra-estruturais) tornam-na pouco atractiva ao investimento em sectores não<br />
essencialmente extractivos e geradores de maiores dinâmicas positivas. Adicionalmente, estas<br />
fragilidades, associadas ao desconhecimento das dinâmicas e interesses estratégicos do capital<br />
estrangeiro e aos conflitos de interesse do capital nacional ligado ao investimento estran-<br />
146 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
geiro, tendem a ser compensadas pela concessão de elevados benefícios fiscais que, além de<br />
em muitos casos serem redundantes e inapropriados como medidas de incentivo, reduzem a<br />
capacidade do Estado de promover a criação de capacidades produtivas nacionais. A perda<br />
de capacidade e espaço é parte da explicação e da racionalidade por trás da manutenção da<br />
dependência em relação à ajuda externa, que se tem aprofundado ao longo dos últimos<br />
25 anos. Sem os actuais níveis de ajuda externa, a despesa pública teria de ser contraída drasticamente<br />
a não ser que a receita fiscal aumentasse. Portanto, a estrutura da receita e da despesa<br />
pública é, também, um reflexo dos padrões de acumulação prevalecentes e contribui<br />
para os consolidar.<br />
Nona, os actuais padrões de acumulação não são sustentáveis do ponto de vista intergeracional.<br />
As dinâmicas predominantemente extractivas da economia, acompanhadas por limitada<br />
diversificação e articulação produtivas e comerciais, tendem a gerar dois efeitos combinados:<br />
(i) esgotam os recursos e actividades em que o padrão corrente de produção e reprodução se<br />
baseia (quer por via do esgotamento dos recursos não renováveis, quer por via de substituição<br />
tecnológica, ou encurtamento do ciclo de produto, para os produtos primários em que a<br />
economia se especializa); e (ii) tendem a dificultar a criação de novas oportunidades e capacidades<br />
para o futuro. Nestas circunstâncias, cada novo ciclo geracional tende a ter menos<br />
recursos naturais, mas não tende a ter menos dependência desses recursos naturais.<br />
Décima, dado que estes padrões de produção, reprodução e distribuição têm base social, económica<br />
e política, em torno da qual se desenvolvem tensões, conflitos e pressões, são continuamente<br />
geradas tendências para reproduzir e manter os padrões ou para mudá-los. A relação<br />
de força entre as tendências de reprodução ou de mudança (por outras palavras, entre as tendências<br />
de concentração e diversificação) depende das pressões económicas e sociais e da<br />
organização política e económica. O problema pode não ser o mesmo para todos e consequentemente<br />
também não o será a receita.<br />
Se uma ou outra posição dominam, isso não reflecte opções consensuais ou equilibradas de<br />
desenvolvimento para lidar com problemas consensualmente entendidos como tal; reflecte sim<br />
o equilíbrio em diversos momentos das pressões económicas reais e das condições de luta<br />
política prevalecentes.<br />
Portanto, o debate sobre especialização ou concentração não é apenas sobre as fases em que<br />
tal especialização acontece (cedo ou tarde no processo de desenvolvimento), nem sobre a transição<br />
de uma economia intensiva em trabalho para outra intensiva em capital. De facto, é um<br />
debate sobre padrões sociais, políticos e económicos de crescimento e desenvolvimento. Este<br />
debate é tanto sobre a construção de capacidades e abertura de opções inovadoras numa base<br />
intergeracional, como é sobre dinâmicas de conflito e tensão entre interesses (e articulação<br />
política desses interesses) construídos em torno dos padrões de acumulação e distribuição.<br />
Portanto, é um debate travado num claro contexto de economia política.<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 147
EVIDÊNCIA DA ECONOMIA DE MOÇAMBIQUE<br />
Concentração e desarticulação da base produtiva e comercial e do investimento<br />
Os gráficos 1, 2 e 3 mostram que, enquanto a produção industrial cresceu significativamente, a sua<br />
composição concentrou-se em torno de um pequeno leque de produtos ao longo do tempo. Este<br />
processo de concentração foi acelerado com a entrada em funcionamento da Mozal (fundição de<br />
alumínio). O gráfico 1 mostra o peso da Mozal e do gás natural na produção industrial e como é<br />
que a sua inclusão distorce as tendências de desenvolvimento industrial. O gráfico 2 mostra as tendências<br />
dos principais subsectores industriais. Este gráfico exclui a produção de alumínio para<br />
que seja possível visualizar o que está acontecendo com os outros subsectores. Excluindo a metalurgia<br />
(fundição de alumínio), as indústrias com maior crescimento são a alimentar, de bebidas<br />
e tabaco (com três produtos dominantes: cerveja, açúcar e tabaco folha); a de minerais não-metálicos<br />
(cimento); e a química (gás natural). Nas restantes indústrias há uma tendência para a<br />
estagnação ou colapso. O gráfico 3 mostra a tendência para a concentração industrial a um nível<br />
mais desagregado. Cinco produtos apenas (alumínio, gás natural, cerveja, farinhas e açúcar) representam<br />
entre 25% (1959) e 85% (2007) do produto industrial. O alumínio contribui com mais<br />
de 70% da produção industrial total. A inclusão do gás natural e entrada em funcionamento das<br />
explorações de areias minerais (ou pesadas) e de carvão aumentarão ainda mais o grau de concentração<br />
da produção industrial em produtos primários com limitado processamento.<br />
GRÁFICO 1 EVOLUÇÃO DO PRODUTO INDUSTRIAL TOTAL INCLUINDO E EXCLUINDO ALUMÍNIO<br />
E GÁS NATURAL (MILHARES DE METICAIS A PREÇOS CONSTANTES DE 2003)<br />
42.500.000<br />
40.000.000<br />
37.500.000<br />
35.000.000<br />
32.500.000<br />
30.000.000<br />
27.500.000<br />
25.000.000<br />
22.500.000<br />
27.000.000<br />
17.500.000<br />
15.000.000<br />
12.500.000<br />
10.000.000<br />
7.500.000<br />
5.000.000<br />
2.500.000<br />
0<br />
1959<br />
1960<br />
1961<br />
1962<br />
1963<br />
1964<br />
1965<br />
1966<br />
1967<br />
1968<br />
1969<br />
1970<br />
1971<br />
1972<br />
1973<br />
1974<br />
1975<br />
1976<br />
1977<br />
1978<br />
1979<br />
1980<br />
1981<br />
1982<br />
1983<br />
1984<br />
1985<br />
1986<br />
1987<br />
1988<br />
1989<br />
1990<br />
1991<br />
1992<br />
1993<br />
1994<br />
1995<br />
1996<br />
1997<br />
1998<br />
1999<br />
2000<br />
2001<br />
2002<br />
2003<br />
2004<br />
2005<br />
2006<br />
2007<br />
produto industrial total<br />
produto industrial total excluindo alumínio<br />
produto industrial global excluindo gás natural<br />
produto industrial excluindo alumínio e gás<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos)<br />
e Castel-Branco (2002a, 2002b e 2003c)<br />
148 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
GRÁFICO 2 EVOLUÇÃO DOS PRINCIPAIS SUBSECTORES DA INDÚSTRIA TRANSFORMADORA EXCLUINDO ALUMÍNIO<br />
(MILHARES DE METICAIS A PREÇOS CONSTANTES DE 2003)<br />
6.500.000<br />
6.000.000<br />
5.500.000<br />
5.000.000<br />
4.500.000<br />
4.000.000<br />
3.500.000<br />
3.000.000<br />
2.500.000<br />
2.000.000<br />
1.500.000<br />
1.000.000<br />
500.000<br />
0<br />
1959<br />
1960<br />
1961<br />
1962<br />
1963<br />
1964<br />
1965<br />
1966<br />
1967<br />
1968<br />
1969<br />
1970<br />
1971<br />
1972<br />
1973<br />
1974<br />
1975<br />
1976<br />
1977<br />
1978<br />
1979<br />
1980<br />
1981<br />
1982<br />
1983<br />
1984<br />
1985<br />
1986<br />
1987<br />
1988<br />
1989<br />
1990<br />
1991<br />
1992<br />
1993<br />
1994<br />
1995<br />
1996<br />
1997<br />
1998<br />
1999<br />
2000<br />
2001<br />
2002<br />
2003<br />
2004<br />
2005<br />
2006<br />
2007<br />
Alimentos, bebida e tabaco<br />
Químicos e derivados de petróleo<br />
Papel e gráfica<br />
Minerais não metálicos<br />
Têxteis, vestuário e produtos de pele<br />
Engenharia metalo-mecânica<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos) e Castel-Branco (2002a, 2002b e 2003c)<br />
GRÁFICO 3 COMPOSIÇÃO SECTORIAL DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL EM MOÇAMBIQUE — PRINCIPAIS PRODUTOS<br />
(EM % DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL TOTAL)<br />
90<br />
85<br />
80<br />
75<br />
70<br />
65<br />
60<br />
55<br />
50<br />
45<br />
40<br />
35<br />
30<br />
25<br />
20<br />
15<br />
10<br />
5<br />
0<br />
1959<br />
1960<br />
1961<br />
1962<br />
1963<br />
1964<br />
1965<br />
1966<br />
1967<br />
1968<br />
1969<br />
1970<br />
1971<br />
1972<br />
1973<br />
1974<br />
1975<br />
1976<br />
1977<br />
1978<br />
1979<br />
1980<br />
1981<br />
1982<br />
1983<br />
1984<br />
1985<br />
1986<br />
1987<br />
1988<br />
1989<br />
1990<br />
1991<br />
1992<br />
1993<br />
1994<br />
1995<br />
1996<br />
1997<br />
1998<br />
1999<br />
2000<br />
2001<br />
2002<br />
2003<br />
2004<br />
2005<br />
2006<br />
2007<br />
Alumínio Gás Natural Cerveja Farinha Açúcar<br />
FONTE INE (Vários anuários estatísticos) e Castel-Branco (2002a, 2002b e 2003c)<br />
A análise da composição produtiva de cada um dos subsectores da indústria transformadora<br />
mostra as mesmas tendências de concentração. A tabela 1 resume os níveis de concentração de<br />
cada um dos principais subsectores da indústria transformadora (não estão incluídos os sub-<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 149
sectores que contribuem com menos de 1% da produção industrial – por exemplo, madeiras<br />
e mobiliário de madeira, papel e gráfica e instrumentos científicos).<br />
TABELA 1 CONCENTRAÇÃO DA PRODUÇÃO NOS PRINCIPAIS SUBSECTORES DA INDÚSTRIA TRANSFORMADORA<br />
SUBSECTOR<br />
PRODUTOS NOVOS<br />
DESDE 1959<br />
PRODUTOS<br />
“DESCONTINUADOS”<br />
ENTRE 1959 E 2007<br />
(A)<br />
PRINCIPAIS<br />
PRODUTOS<br />
COMPOSIÇÃO DO SECTOR EM 2004-2008<br />
VALOR DE<br />
PRODUÇÃO<br />
(MILHARES<br />
DE METICAIS)<br />
(B)<br />
% DA<br />
PRODUÇÃO<br />
DO<br />
SUBSECTOR<br />
% DA PRODUÇÃO<br />
INDUSTRIAL<br />
TOTAL<br />
Alimentar, bebidas<br />
e tabaco<br />
Nenhum<br />
Chá (1993) e caju<br />
processado (1994)<br />
Açúcar, farinha,<br />
cerveja, tabaco<br />
4.462.759<br />
70%<br />
10,9%<br />
Têxteis, vestuário<br />
e produtos de pele<br />
Nenhum<br />
Sisal (1992?) e copra<br />
(2000?)<br />
Algodão, fios<br />
e sacaria<br />
240.663<br />
70%<br />
0,6%<br />
Minerais<br />
não metálicos<br />
Cerâmicas (1966)<br />
e vidro (1966)<br />
Cerâmicas (2002)<br />
e vidro (1997)<br />
Cimento<br />
2.105.078<br />
70%<br />
5,1%<br />
Metalurgia<br />
Alumínio (2000)<br />
Ferro e aço (1999)<br />
Alumínio<br />
28.592.324<br />
98%<br />
69,8%<br />
Metalo-mecânica<br />
Nenhum<br />
Equipamento<br />
não-eléctrico (2001),<br />
equipamento<br />
eléctrico (2003)<br />
Produtos<br />
metálicos<br />
variados para<br />
consumo directo<br />
final<br />
26.986<br />
80%<br />
0,1%<br />
Químicos<br />
e derivados<br />
de petróleo<br />
Gás natural<br />
Derivados de petróleo<br />
(1992)<br />
(2004), derivados<br />
de petróleo (1961),<br />
plásticos (1966)<br />
Gás natural<br />
2.120.386<br />
80%<br />
5,2%<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos), Castel-Branco (2002a, 2002b e 2003c)<br />
NOTAS<br />
(A) Por produtos “descontinuados” entende-se aqueles que foram relevantes mas tornaram-se estatisticamente insignificantes,<br />
tanto em termos de valor produzido como em termos de peso na produção do sector, mesmo que continue a existir alguma produção<br />
desses produtos. A classificação acima está feita a quatro e a seis dígitos. Usando classificações ainda mais detalhadas é possível<br />
verificar variações na composição de cada “produto” (por exemplo, o tipo de produtos de vidro ou de cerâmicas), onde será<br />
possível identificar com maior precisão os novos produtos e os produtos desaparecidos. Infelizmente, as séries estatísticas oficiais<br />
a mais do que quatro ou seis dígitos são muito escassas e irregulares.<br />
(B) Valores em milhares de meticais a preços constantes de 2003, para o ano de 2008.<br />
Como se pode observar na tabela 1, dos onze principais produtos da indústria transformadora,<br />
que representam cerca de 92% da produção industrial, seis (farinhas, cerveja, cimento, alumínio,<br />
sacaria e produtos metálicos variados para consumo directo final) são intensivos em importações<br />
e apenas um destes (alumínio) é de exportação em grande escala.<br />
Cinco produtos são estratégicos para exportação: alumínio, gás natural, algodão, açúcar e tabaco, e destes<br />
apenas o açúcar não é um produto primário simples. O alumínio é exportado em forma de lingotes<br />
de têm que passar por uma fase de processamento antes de entrarem nas linhas de produção das<br />
indústrias a jusante que produzem produtos de alumínio. O algodão é exportado como fibra depois<br />
do descaroçamento; o gás natural é extraído e exportado por pipeline; e o tabaco é exportado em folha.<br />
150 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
Dos seis principais produtos para o mercado interno (açúcar, farinha, cerveja, sacaria, cimento e<br />
produtos metálicos variados) apenas o açúcar (usado na indústria alimentar e metalurgia) e o cimento<br />
(construção) servem como insumos para outras indústrias, e apenas o açúcar tem um nível razoável<br />
de integração vertical (ligações intersectoriais a montante e a jusante) na economia nacional.<br />
Outra tendência ilustrada é a seguinte: no último meio século, apenas seis novos grupos de produtos<br />
com relevância estatística foram introduzidos na produção industrial (cerâmicas, vidro,<br />
derivados de petróleo, plásticos, alumínio e gás natural). Destes seis produtos novos, quatro<br />
foram introduzidos ainda nos anos 1960, três já perderam qualquer significância estatística (cerâmicas,<br />
vidro e derivados de petróleo) e dos restantes apenas alumínio e gás natural (ambos produtos<br />
primários em forma semiprocessada ou não processada) são altamente relevantes. Outros<br />
produtos outrora importantes e que perderam qualquer significância estatística são o chá, o<br />
caju processado, o sisal, a copra, o ferro e aço e o equipamento eléctrico e não-eléctrico – isto<br />
é, produtos -chave de uma agroindústria muito simples de semiprocessamento para exportação,<br />
e produtos para a indústria de construção civil e de construção de maquinaria simples.<br />
Fundamentalmente, nas últimas cinco décadas a essência da estrutura de produção e comércio não<br />
evoluiu significativamente, apesar de os mercados, tecnologias e desafios económicos e industriais<br />
terem mudado substancialmente. Portanto, a indústria nacional está a acumular desvantagens, está a<br />
tirar pouco proveito dos desenvolvimentos regionais e internacionais e tem pelo menos meio século<br />
de atraso (ou mais se considerarmos que há meio século atrás a indústria nacional já era atrasada).<br />
Isto significa que a indústria nacional, com raras excepções, está a perder capacidades mesmo nas áreas<br />
mais tradicionais, já para não mencionar a criação de capacidades para mudar estruturalmente. Além<br />
disso, é pouco provável que ligações intra e inter-industriais se estejam a desenvolver, uma vez que as<br />
indústrias mais importantes são paralelas, em vez de relacionadas, e os produtos industriais ou não se<br />
baseiam em matérias-primas nacionais, ou só fazem o primeiro processamento das matérias-primas.<br />
Portanto, os dados mostram que a economia moçambicana essencialmente exporta produtos<br />
primários em forma não processada ou apenas semiprocessada, e consome produtos com alto<br />
teor de importações. Para além disso, tem vindo a perder a capacidade de produzir maquinaria<br />
e outros bens de ampliação de capacidade produtiva. Isto quer dizer que as ligações produtivas<br />
entre sectores e subsectores são mínimas, tal como mínima é a capacidade de gerar,<br />
endogenamente, dinâmicas tecnológicas e de inovação. Estas características e tendências da<br />
produção e comércio contribuem para formar um tecido económico demasiado poroso (isto<br />
é, que tem limitada capacidade de retenção e multiplicação, por via de ligações, da riqueza gerada).<br />
Com a crescente concentração da produção industrial em torno de produtos primários semiprocessados<br />
para exportação, esta tendência de desarticulação produtiva poderá aumentar.<br />
Como seria de esperar, a composição e dinâmicas do comércio são semelhantes às da produção<br />
– as exportações cresceram mas estão concentradas num leque cada vez menor de produtos<br />
relacionados com o complexo mineral e energético, e as importações são muito sensíveis à<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 151
variação do investimento por causa do grau de dependência da produção nacional em relação<br />
a importações de equipamentos, combustíveis, matérias-primas e outros materiais intermediários.<br />
O gráfico 4 mostra a evolução das importações e das exportações de bens e serviços com e sem<br />
megaprojectos. As importações descolam das exportações a partir de inícios dos anos 1970 por<br />
causa de uma série de factores: a consequência da expansão da indústria ligeira de acabamento<br />
final para o mercado interno, a perda das receitas dos transportes ferro-portuários e do trabalho<br />
migratório por causa da agudização do conflito com o regime ilegal de Ian Smith na então<br />
Rodésia do Sul e o regime do apartheid na África do Sul, o aumento rápido das importações<br />
de equipamentos, combustíveis e matérias-primas como resultado do investimento no período<br />
de implementação do Plano Prospectivo Indicativo (PPI), o colapso da produção associado<br />
com os anos de guerra, a emergência da ajuda externa como principal fonte de financiamento<br />
da despesa pública e da balança de transacções correntes.<br />
GRÁFICO 4 EVOLUÇÃO DAS EXPORTAÇÕES E IMPORTAÇÕES DE BENS E SERVIÇOS, COM E SEM MEGAPROJECTOS<br />
(US$ MILHÕES)<br />
4.500<br />
4.250<br />
4.000<br />
3.750<br />
3.500<br />
3.250<br />
3.000<br />
2.750<br />
2.500<br />
2.250<br />
2.000<br />
1.750<br />
1.500<br />
1.250<br />
1.000<br />
750<br />
500<br />
250<br />
0<br />
1963<br />
1964<br />
1965<br />
1966<br />
1967<br />
1968<br />
1969<br />
1970<br />
1971<br />
1972<br />
1973<br />
1974<br />
1975<br />
1976<br />
1977<br />
1978<br />
1979<br />
1980<br />
1981<br />
1982<br />
1983<br />
1984<br />
1985<br />
1986<br />
1987<br />
1988<br />
1989<br />
1990<br />
1991<br />
1992<br />
1993<br />
1994<br />
1995<br />
1996<br />
1997<br />
1998<br />
1999<br />
2000<br />
2001<br />
2002<br />
2003<br />
2004<br />
2005<br />
2006<br />
2007<br />
2008<br />
importações de bens e serviços<br />
exportações de bens e serviços<br />
importações de bens e serviços sem Megaprojectos<br />
exportações de bens e serviços sem Megaprojectos<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos) e Banco de Moçambique (vários relatórios anuais)<br />
O gráfico 5 ilustra a concentração das exportações de Moçambique por produto. No período<br />
1999-2008, sete produtos (alumínio, energia, camarão e lagosta, gás natural, algodão fibra,<br />
tabaco e açúcar) representaram 70% das exportações. Todos estes produtos são primários, com<br />
fracas ligações a montante e a jusante dentro da economia nacional, e apenas o açúcar vai para<br />
além do processamento básico necessário para exportação.<br />
152 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
GRÁFICO 5 PESO MÉDIO DAS EXPORTAÇÕES DE BENS POR PRODUTO, 1999-2008 (EM %)<br />
diversos|outros 27%<br />
castanha de caju 1%<br />
bunker’s 1%<br />
madeiras 1%<br />
açúcar 2%<br />
tabaco 2%<br />
algodão fibra 3%<br />
gás 3%<br />
energia eléctrica 7%<br />
camarão e lagosta 7%<br />
alumínio 46%<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos), Banco de Moçambique (balança de pagamentos), Castel-Branco (2002a, 2002b e 2003c)<br />
Os gráficos 6, 7 e 8 mostram que as exportações agroindustriais e agrícolas diminuíram substancialmente<br />
como percentagem das exportações totais nacionais (gráfico 6), embora tendam a recuperar<br />
nos últimos anos; que as exportações não processadas de madeiras, tabaco, caju e algodão<br />
fibra totalizam dois terços das exportações agroindustriais e agrícolas; que as exportações de caju<br />
em bruto tendem a substituir as de caju processado; e que somente as exportações de açúcar, algodão<br />
fibra e tabaco tendem a crescer nos últimos anos (gráficos 7 e 8). Portanto, a actividade agrícola<br />
e agroindustrial comercial enfrentam o mesmo problema de concentração e desarticulação,<br />
em que a produção cresce num pequeno leque de actividades e em subsectores que não se interligam.<br />
GRÁFICO 6 PESO DAS EXPORTAÇÕES AGROINDUSTRIAIS E AGRÍCOLAS NAS EXPORTAÇÕES TOTAIS DE BENS (EM %)<br />
35<br />
30<br />
25<br />
20<br />
15<br />
10<br />
5<br />
0<br />
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos) e Banco de Moçambique (balança de pagamentos)<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 153
GRÁFICO 7 PRINCIPAIS EXPORTAÇÕES AGROINDUSTRIAIS E AGRÍCOLAS (US$ MILHARES)<br />
140.000<br />
130.000<br />
120.000<br />
110.000<br />
100.000<br />
90.000<br />
80.000<br />
70.000<br />
60.000<br />
50.000<br />
40.000<br />
30.000<br />
20.000<br />
10.000<br />
0<br />
1990<br />
1991<br />
1992<br />
1993<br />
1994<br />
1995<br />
1996<br />
1997<br />
1998<br />
1999<br />
2000<br />
2001<br />
2002<br />
2003<br />
2004<br />
2005<br />
2006<br />
2007<br />
2008<br />
1990<br />
1991<br />
1992<br />
1993<br />
1994<br />
1995<br />
1996<br />
1997<br />
1998<br />
1999<br />
2000<br />
2001<br />
2002<br />
2003<br />
2004<br />
2005<br />
2006<br />
2007<br />
2008<br />
tabaco<br />
madeiras<br />
açucar<br />
castanha de caju<br />
algodão fibra<br />
amendoa de caju<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos) e Banco de Moçambique (balança de pagamentos)<br />
GRÁFICO 8 ESTRUTURA PERCENTUAL DAS EXPORTAÇÕES DE PRODUTOS AGRO-INDUSTRIAIS E AGRÍCOLAS<br />
100%<br />
90%<br />
80%<br />
Chá<br />
Citrinos<br />
Copra<br />
Açucar<br />
Amêndoa de Caju<br />
(não processada)<br />
70%<br />
60%<br />
50%<br />
Amêndoa de Caju<br />
(processada)<br />
Madeiras<br />
Tabaco<br />
40%<br />
30%<br />
20%<br />
10%<br />
Algodão Fibra<br />
0%<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos) e Banco de Moçambique (dados da balança de pagamentos)<br />
154 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
Os gráficos 9 e 10 mostram o comércio de bens e serviços entre Moçambique e a África do Sul<br />
(RSA) e realçam três aspectos. Primeiro, Moçambique exporta para a RSA menos de metade<br />
do valor das suas importações daquele país. Segundo, o aumento brusco das exportações de<br />
Moçambique deve-se inteiramente à energia eléctrica e gás natural, que estão associados com<br />
megaprojectos do complexo mineral-energético na África do Sul e em Moçambique. Em 2001,<br />
camarão, copra e vestuário representavam 31% das exportações de Moçambique e energia 22%;<br />
enquanto 48% eram outros bens e serviços. Em 2008, energia e gás natural representavam 76%<br />
das exportações de Moçambique para a RSA, camarão representava 1%, e as exportações de<br />
copra e vestuário haviam praticamente cessado. Terceiro, comparando estes gráficos com o<br />
gráfico 4, e incluindo alumínio e importações associadas, conclui-se que um quarto das importações<br />
e 8% das exportações de Moçambique ocorrem com a RSA. Quando o alumínio e importações<br />
associadas são excluídos das transacções, 30% das importações e 20% das exportações<br />
de Moçambique ocorrem com a RSA. Alumínio (para a indústria automóvel japonesa em dois<br />
países europeus), gás e energia eléctrica (para a RSA) representam mais de 60% das exportações<br />
de bens e serviços de Moçambique e são destinadas a três mercados. Portanto, as exportações<br />
de Moçambique são excessivamente concentradas em dois sentidos, no que diz respeito<br />
aos produtos e aos mercados.<br />
GRÁFICO 9 COMÉRCIO ENTRE MOÇAMBIQUE E A ÁFRICA DO SUL (US$ MILHÕES)<br />
500<br />
250<br />
0<br />
-250<br />
-500<br />
-750<br />
-1000<br />
1990<br />
1991<br />
1992<br />
1993<br />
1994<br />
1995<br />
1996<br />
1997<br />
1998<br />
1999<br />
2000<br />
2001<br />
2002<br />
2003<br />
2004<br />
2005<br />
2006<br />
2007<br />
2008<br />
Exportações de Moçambique para África do Sul (X)<br />
Saldo Comercial [X-(+M)}<br />
Importações de Moçambique para África do Sul (M)<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos) e Banco de Moçambique (vários relatórios anuais)<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 155
GRÁFICO 10 PRINCIPAIS PRODUTOS DE EXPORTAÇÃO DE MOÇAMBIQUE PARA A ÁFRICA DO SUL<br />
(EM % DAS EXPORTAÇÕES TOTAIS DE MOÇAMBIQUE PARA A ÁFRICA DO SUL)<br />
80%<br />
75%<br />
70%<br />
65%<br />
60%<br />
55%<br />
50%<br />
45%<br />
40%<br />
35%<br />
30%<br />
25%<br />
20%<br />
15%<br />
10%<br />
0%<br />
15% 36%<br />
30% 26% 36%<br />
22% 54% 52% 9%<br />
36% 32% 38% 40%<br />
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008<br />
energia eléctrica gás natural camarão copra vestuário<br />
FONTE COMTRADE Statistics<br />
Portanto, Moçambique enfrenta um défice comercial crónico. A dimensão deste défice comercial<br />
é ilustrada pela taxa de cobertura das importações de bens e serviços pelas exportações<br />
de bens e serviços de Moçambique (gráfico 11). Excluindo megaprojectos, a taxa de cobertura<br />
das importações em 2008 era semelhante à de 1992, último ano da guerra. Há dois motivos para<br />
realizar esta análise com e sem megaprojectos. Primeiro, a inclusão dos megaprojectos distorce<br />
a análise porque o seu peso nas transacções comerciais externas é colossal. A análise “com e<br />
sem” permite ilustrar o grau de concentração e a dependência em relação aos megaprojectos.<br />
Segundo, dadas as limitadas ligações dos megaprojectos com a economia nacional, apenas uma<br />
pequena fracção do excedente comercial destes projectos é absorvida pela economia. Estes<br />
projectos financiam as suas importações e custos correntes e pouco mais.<br />
A análise das dinâmicas do investimento permite identificar as tendências dos padrões de acumulação<br />
no futuro, quando os efeitos do investimento se farão sentir. Esta análise também permite<br />
identificar como é que se transmitem os efeitos do investimento para as dinâmicas e<br />
estrutura macroeconómica por via da estrutura produtiva e comercial, como se verá mais adiante.<br />
Os gráficos 12 e 13 mostram a alocação do investimento privado aprovado em Moçambique<br />
por fonte (investimento directo estrangeiro ou nacional e empréstimos), por ano, por subsector<br />
ou produto e por província. Os dois gráficos mostram que o fluxo de investimento é muito<br />
irregular, assemelhando-se mais ao de uma grande empresa do que ao de uma economia<br />
dinâmica. 10 Esta irregularidade do fluxo de investimento é indicadora da sua concentração num<br />
156<br />
Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
GRÁFICO 11 TAXA DE COBERTURA DAS IMPORTAÇÕES PELAS EXPORTAÇÕES (BENS E SERVIÇOS, EM %)<br />
105<br />
100<br />
95<br />
90<br />
85<br />
80<br />
75<br />
70<br />
65<br />
60<br />
55<br />
50<br />
45<br />
40<br />
35<br />
30<br />
25<br />
20<br />
15<br />
10<br />
5<br />
0<br />
Sem dados desagregados (1975-1977)<br />
Fim da guerra<br />
(1992 = 32%)<br />
1963<br />
1964<br />
1965<br />
1966<br />
1967<br />
1968<br />
1969<br />
1970<br />
1971<br />
1972<br />
1973<br />
1974<br />
1975<br />
1976<br />
1977<br />
1978<br />
1979<br />
1980<br />
1981<br />
1982<br />
1983<br />
1984<br />
1985<br />
1986<br />
1987<br />
1988<br />
1989<br />
1990<br />
1991<br />
1992<br />
1993<br />
1994<br />
1995<br />
1996<br />
1997<br />
1998<br />
1999<br />
2000<br />
2001<br />
2002<br />
2003<br />
2004<br />
2005<br />
2006<br />
2007<br />
2008<br />
taxa de cobertura das importações com megaprojectos %<br />
taxa de cobertura das importações sem megaprojectos %<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos)<br />
pequeno grupo de grandes projectos. Quando os picos de investimento são ligados a projectos<br />
concretos constata-se que todos eles coincidem com megaprojectos minerais e energéticos e<br />
com as poucas indústrias dominantes da actualidade (açúcar, cervejas, cimento, tabaco, turismo,<br />
madeira e infra-estruturas associadas como os grandes corredores ferro-portuários). Estes dados<br />
GRÁFICO 12 INVESTIMENTO PRIVADO APROVADO EM MOÇAMBIQUE POR FONTE E POR ANO (EM US$)<br />
8.500.000.000<br />
8.000.000.000<br />
7.500.000.000<br />
7.000.000.000<br />
6.500.000.000<br />
6.000.000.000<br />
5.500.000.000<br />
5.000.000.000<br />
4.500.000.000<br />
4.000.000.000<br />
3.500.000.000<br />
3.000.000.000<br />
2.500.000.000<br />
2.000.000.000<br />
1.500.000.000<br />
1.000.000.000<br />
500.000.000<br />
0<br />
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008<br />
investimento directo nacional<br />
empréstimos<br />
investimento directo estrangeiro<br />
total<br />
FONTE CPI (base de dados do investimento aprovado)<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010<br />
157
indicam que as dinâmicas de investimento estão a reforçar e a reproduzir as actuais dinâmicas<br />
concentradas e desarticuladas de produção e comércio.<br />
Os gráficos 14, 15, 16 e 17 confirmam a tendência do investimento reproduzir a estrutura desarticulada<br />
e não diversificada da produção e comércio. O gráfico 14 mostra que Maputo (por<br />
causa da Mozal, Motraco e projecto de ferro e aço, MISP), Nampula (refinaria petroquímica e<br />
areias pesadas), Tete (carvão), Gaza (areias pesadas, ou minerais, e açucareiras) e Inhambane<br />
(gás natural e turismo) foram os maiores destinatários do investimento directo estrangeiro (IDE)<br />
GRÁFICO 13 INVESTIMENTO PRIVADO POR PROVÍNCIA (PROVÍNCIAS SELECCIONADAS, EM US$)<br />
8.500.000.000<br />
8.000.000.000<br />
7.500.000.000<br />
7.000.000.000<br />
6.500.000.000<br />
6.000.000.000<br />
5.500.000.000<br />
5.000.000.000<br />
4.500.000.000<br />
4.000.000.000<br />
3.500.000.000<br />
3.000.000.000<br />
2.500.000.000<br />
2.000.000.000<br />
1.500.000.000<br />
1.000.000.000<br />
500.000.000<br />
0<br />
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008<br />
Maputo Nampula Tete Gaza Sofala Inhambane Total<br />
FONTE CPI (base de dados do investimento privado aprovado)<br />
aprovados entre 1990 e 2007. Em todos os anos em que ocorreu investimento significativo, um<br />
pequeno grupo de grandes projectos minerais e energéticos foi dominante. Em apenas dois<br />
casos (Gaza e Inhambane) foram incluídos outros subsectores (açúcar e turismo).<br />
Ao longo do período 1990-2008, as agroindústrias e outras actividades agrárias receberam apenas<br />
13% do investimento privado total aprovado, e cerca de 80% deste investimento foi concentrado<br />
no açúcar, tabaco, algodão e exploração madeireira. 11<br />
O gráfico 15 resume a proporção do investimento privado total no país absorvido por cada<br />
província entre 1990 e 2008. Como seria de prever, Maputo, Nampula, Gaza e Tete, onde se<br />
localizam os maiores projectos minerais e energéticos, absorveram 84% do investimento privado<br />
total aprovado no período. Comparando o gráfico 15 com os anteriores, conclui-se que Maputo<br />
não só domina a absorção de investimento total do período (43%), como também foi dominante<br />
158<br />
Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
GRÁFICO 14 INVESTIMENTO DIRECTO ESTRANGEIRO (IDE) APROVADO POR PROVÍNCIA<br />
(PROVÍNCIAS SELECCIONADAS, US$)<br />
6.000.000.000<br />
5.700.000.000<br />
5.400.000.000<br />
5.100.000.000<br />
4.800.000.000<br />
4.500.000.000<br />
4.200.000.000<br />
3.900.000.000<br />
3.600.000.000<br />
3.300.000.000<br />
3.000.000.000<br />
2.700.000.000<br />
2.400.000.000<br />
2.100.000.000<br />
1.800.000.000<br />
1.500.000.000<br />
1.200.000.000<br />
900.000.000<br />
600.000.000<br />
300.000.000<br />
0<br />
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007<br />
Maputo<br />
Gaza<br />
Nampula<br />
Inhambane<br />
Tete<br />
Total<br />
FONTE Base de dados do CPI<br />
em quase todos os anos ao longo do período 1990-2008. Nampula, segunda província com<br />
24% do investimento, apenas foi dominante em 2000 e 2007 por causa de dois projectos: areias<br />
pesadas (ou minerais) e a petroquímica de Nacala. Tete apenas se destacou no fim do período<br />
em análise por causa do investimento massivo no carvão (Vale do Rio Doce e Riversdale). 12<br />
Os gráficos 16 e 17 dão uma outra perspectiva: a absorção do investimento privado por fonte<br />
somente para o período 2000-2008, em que os megaprojectos se começaram a destacar (Mozal<br />
I e Motraco). Neste período, 43% do investimento privado foi para recursos minerais e 20% para<br />
a indústria e energia (em especial para a Mozal I e II e Motraco) (gráfico 16). Analisando o<br />
GRÁFICO 15 INVESTIMENTO APROVADO POR PROVÍNCIA, 1990-2008 (EM %)<br />
Zambézia 2%<br />
Manica 2%<br />
Sofala 4%<br />
Inhambane 1%<br />
Niassa 1%<br />
Cabo Delgado 8%<br />
Tete 8%<br />
Maputo 43%<br />
Gaza 9%<br />
Nampula 24%<br />
FONTE CPI (base de dados<br />
do investimento privado aprovado)<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010<br />
159
investimento por fonte (gráfico 17), aproximadamente 68% do IDE e 24% dos empréstimos<br />
externos foram para projectos de recursos minerais, enquanto os investidores nacionais aplicaram<br />
apenas 4% do seu investimento neste sector. Portanto, os fluxos externos de capitais privados<br />
estão claramente focados nos recursos minerais e energéticos (com aparente maior<br />
diversificação na alocação de empréstimos em comparação com o IDE), enquanto o investimento<br />
directo nacional está mais focado em transportes e comunicações, turismo, indústria e banca.<br />
Estes dados parecem indicar que, enquanto o IDE é aplicado de forma concentrada, as restantes<br />
fontes são aplicadas de forma diversificada. Tal constatação seria simplista, superficial e incorrecta.<br />
O IDE representa 46% do investimento privado, o investimento directo nacional (IDN)<br />
GRÁFICO 16 ALOCAÇÃO DO INVESTIMENTO PRIVADO APROVADO POR SUBSECTOR 2000-2008<br />
(EM % DO INVESTIMENTO PRIVADO TOTAL)<br />
Agricultura e pescas 0%<br />
Banca 1%<br />
Construção 2%<br />
Outros 3%<br />
Transportes e comunicações 10%<br />
Agroindústrias 11%<br />
Recursos Minerais 43%<br />
Turismo 13%<br />
Indústria 17%<br />
FONTE CPI (base de dados<br />
do investimento privado aprovado)<br />
GRÁFICO 17 PROPORÇÃO DO INVESTIMENTO PRIVADO APROVADO POR SECTOR E POR FONTE, EM 2000-2008<br />
(EM % DO INVESTIMENTO PRIVADO TOTAL)<br />
70<br />
65<br />
60<br />
55<br />
50<br />
45<br />
40<br />
35<br />
30<br />
25<br />
20<br />
15<br />
10<br />
5<br />
0<br />
IDN IDE Empréstimos<br />
Recursos minerais Indústria Turismo Agro indústrias Transportes e comunicações Construção<br />
FONTE Fonte; CPI (base de dados do investimento privado aprovado)<br />
160<br />
Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
epresenta apenas 3% (gráfico 18). Dada a enorme diferença na capacidade de mobilizar<br />
recursos financeiros entre estas duas modalidades de investimento, seria de esperar que, como<br />
de facto acontece, o IDN fosse aplicado em projectos menores e participasse nos projectos do<br />
IDE com apenas uma pequena fracção do seu capital. O gráfico 19 demonstra essas mesmas<br />
tendências de predominância do IDE no investimento total privado, mas apresentando informação<br />
desagregada por ano.<br />
Por outro lado, o investimento de peso nos recursos minerais é feito por algumas das maiores<br />
multinacionais no planeta: BHP Billiton, Vale do Rio Doce, Riversdale, Kenmare, Sasol, grandes<br />
companhias de prospecção petrolífera (como a ANDARKO, a ARTUMAS, etc.), e estas<br />
companhias registam parte considerável do seu investimento em Moçambique como IDE.<br />
Além disso, o investimento realizado em outros sectores e subsectores (além dos recursos minerais<br />
e energia) não é necessariamente diversificado. O investimento de peso feito nos transportes<br />
e comunicações (10% do investimento total, do qual um ponto percentual (ou dez por<br />
cento do investimento em transportes) via IDN) está associado com a grande indústria extractiva<br />
por causa dos corredores do Centro e Norte de Moçambique. A evidência apresentada ao<br />
longo desta secção mostra que em cada um dos sectores e subsectores analisados existe excessiva<br />
concentração tanto da produção como do comércio e investimento. Portanto, é importante<br />
que não se analise a concentração apenas ao nível sectorial e subsectorial. A questão relevante<br />
não é apenas se o investimento é ou não distribuído equilibradamente entre sectores e subsectores,<br />
mas em que é que de facto é aplicado dentro desses subsectores. É esta informação que<br />
permite perceber a capacidade desse investimento de gerar ligações produtivas positivas.<br />
As mesmas tendências de concentração e desarticulação afectam, naturalmente, as infra-estruturas<br />
e serviços. A cidade de Maputo ainda concentra cerca de metade da rede comercial reta-<br />
GRÁFICO 18 PROPORÇÃO DO INVESTIMENTO PRIVADO APROVADO, POR FONTE, ENTRE 2000-2008 (EM %)<br />
empréstimos 51%<br />
investimento directo estrangeiro 46%<br />
investimento directo nacional 3%<br />
FONTE CPI (base de dados do investimento privado aprovado)<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010<br />
161
GRÁFICO 19 INVESTIMENTO PRIVADO APROVADO EM MOÇAMBIQUE POR FONTE E POR ANO<br />
(% DO INVESTIMENTO PRIVADO TOTAL)<br />
100%<br />
90%<br />
80%<br />
70%<br />
13 25 17 13 14 15 13 4 13 9 9 2 3 4 9 7 12 1 4<br />
14<br />
15<br />
14<br />
17<br />
24<br />
24<br />
20 24 48 48 25<br />
30 23<br />
34<br />
37<br />
30<br />
18<br />
34<br />
60%<br />
50%<br />
40%<br />
30%<br />
20%<br />
68 51 35 39 61 70 73 66 64 74 58 74 59 82 67 64 69 29 62<br />
70<br />
10%<br />
0%<br />
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008<br />
Empréstimos Investimento Directo Estrangeiro Investimento Directo Nacional<br />
FONTE CPI (base de dados de investimento privado aprovado)<br />
lhista e dois terços da rede grossista, 40% da rede de distribuição de combustíveis e assistência<br />
técnica auto, 80% das empresas de serviços de transporte, comunicações, construção, consultoria<br />
e informação. Comparativamente, nas províncias de Nampula e Zambézia localizam-se apenas<br />
21% da rede comercial retalhista e 10% da grossista, 5% das empresas de serviços, 16% da<br />
rede de distribuição de combustíveis e assistência técnica auto, 21% das estradas nacionais revestidas<br />
e 33% das estradas nacionais não revestidas, apesar de estas províncias abrangerem 22%<br />
do território nacional e 41% da população do país, estarem localizadas em algumas das melhores<br />
zonas agroecológicas do país e serem consideradas de grande potencial de desenvolvimento<br />
económico. Em todo o país, somente metade dos distritos rurais tem redes de extensão rural. 13<br />
Instituições financeiras formais operam em apenas 40% dos distritos rurais e urbanos do país.<br />
A cidade e província de Maputo concentram 52% dos balcões de bancos, 55% das ATM, 72%<br />
dos POS, 55% dos microbancos, 64% das instituições de microcrédito e 84% das cooperativas<br />
de crédito. Maputo (cidade e província), Gaza e Inhambane concentram 64% dos balcões de<br />
bancos e 74% das instituições de microcrédito. Metade do número total de distritos com instituições<br />
bancárias em todo o país situa-se nestas três províncias, onde 70% dos distritos têm instituições<br />
bancárias. Em contrapartida, na Zambézia e em Nampula apenas 30% dos distritos têm<br />
instituições bancárias. 14<br />
Embora as instituições de ensino superior se estejam a multiplicar por todo o país, com questionável<br />
qualidade 15 , o acesso a formação técnico-profissional de qualidade a todos os níveis<br />
continua muito limitada 16 e a qualidade geral da educação nas zonas rurais tende a ser pior que<br />
nas urbanas. 17<br />
162<br />
Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
DEPENDÊNCIA EXTERNA<br />
A dependência externa é outra característica fundamental do padrão de crescimento económico<br />
em Moçambique e da natureza das suas crises cíclicas. Dependência externa tem várias dimensões<br />
inter-relacionadas: científica, tecnológica e técnica, institucional, política e económica<br />
e financeira. As três primeiras (relacionadas com capacidades e poder) envolvem processos de<br />
longo prazo, estão directamente relacionadas com o que acontece na economia mas saem um<br />
pouco do escopo deste artigo (que procura focar-se nos padrões económicos e de crises). Portanto,<br />
o artigo concentra-se na dimensão económica e financeira da dependência.<br />
A economia nacional é profundamente dependente de fluxos privados e públicos de capital.<br />
No que diz respeito aos fluxos privados, a análise anterior havia já demonstrado que 43% do<br />
investimento privado provém de IDE e cerca de dois terços dos empréstimos provêm da banca<br />
internacional. O gráfico 20 confirma estes dados, mostrando que ao longo do período 1990 -<br />
-2004 18 consistentemente cerca de 80% do investimento privado total dependia de fluxos<br />
externos de capital privado (IDE e empréstimos). O gráfico 21 mostra como os fluxos totais de<br />
capitais externos (IDE, empréstimos comerciais e ajuda externa) são determinantes para o<br />
investimento total na economia (público e privado).<br />
O gráfico 22 mostra a evolução da ajuda externa ao país por parte dos membros do G-19. 19 Nos<br />
últimos cinco anos, a percentagem desta ajuda alocada para financiar a despesa pública variou<br />
entre 85% e 91%, o que significa que entre US$ 750 milhões (2004) e US$ 1100 milhões (2008)<br />
GRÁFICO 20 INVESTIMENTO PRIVADO TOTAL E FLUXOS EXTERNOS DE CAPITAIS PRIVADOS (US$ MILHÕES)<br />
800<br />
700<br />
600<br />
500<br />
400<br />
300<br />
200<br />
100<br />
0<br />
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004<br />
Fluxo de capitais privados externos<br />
Investimento privado<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos) e Banco de Moçambique (relatórios anuais e balança de pagamentos)<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010<br />
163
GRÁFICO 21 INVESTIMENTO TOTAL E FLUXO TOTAL DE CAPITAIS EXTERNOS (US$ MILHÕES)<br />
1400<br />
1200<br />
1000<br />
800<br />
600<br />
400<br />
200<br />
0<br />
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004<br />
Fluxo total de capitais externos<br />
Investimento total<br />
FONTE INE (anuários estatísticos) e Banco de Moçambique (relatórios anuais e balança de pagamentos)<br />
foram alocados a despesas públicas. Portanto, a ajuda externa financiou, ao longo do período,<br />
mais de 50% da despesa pública. Por sua vez, o gráfico 23 mostra a relação muito próxima<br />
entre ajuda externa e investimento público.<br />
Dados do BM 20 indicam que a ajuda oficial ao desenvolvimento em 2007 correspondeu a 22%<br />
do Produto Interno Bruto de Moçambique, valor este que é cinco vezes superior à média dos<br />
países da África Sub-Sahariana e que coloca o país como o 11.º mais dependente da ajuda<br />
externa a nível mundial.<br />
GRÁFICO 22 AJUDA EXTERNA DO G-19 PARA MOÇAMBIQUE (US$ MILHARES)<br />
1.400.000<br />
1.200.000<br />
1.000.000<br />
800.000<br />
600.000<br />
400.000<br />
200.000<br />
0<br />
2004 2005 2006 2007 2008<br />
Total ODA to Mozambique<br />
Total ODA to the GoM<br />
FONTE Castel-Branco, Ossemane, Massingue e Ali, 2009<br />
164 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
GRÁFICO 23 INVESTIMENTO PÚBLICO E AJUDA EXTERNA (US$ MILHÕES)<br />
800<br />
700<br />
600<br />
500<br />
400<br />
300<br />
200<br />
100<br />
0<br />
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004<br />
Ajuda Externa<br />
Investimento público<br />
FONTE INE (anuários estatísticos) e Banco de Moçambique<br />
(relatórios anuais e balança de pagamentos)<br />
Há razões históricas, de economia política e de política económica que explicam esta dependência.<br />
Por um lado, as classes capitalistas nacionais são historicamente recentes e têm por base o comércio,<br />
o acesso ao erário público por via de ligações e história política ou dos fundos de investimento<br />
de iniciativas locais. 21 Por se terem desenvolvido num contexto de liberalização económica, as classes<br />
capitalistas emergentes não têm a experiência de organização da produção, da logística produtiva<br />
e das finanças à escala industrial. 22 Por outro lado, as políticas de estabilização monetária (criação<br />
de reservas externas excessivas, a sucção de liquidez da economia, o financiamento da despesa<br />
pública com recurso a títulos do tesouro, os elevados rácios de reservas precaucionais, etc.) têm restringido<br />
as oportunidades e a liquidez disponível para investir, ao mesmo tempo que criam incentivos<br />
para aplicação especulativa das poupanças privadas em transacções financeiras. 23<br />
Por sua vez, o IDE em projectos de grande escala, que começou a crescer rapidamente em meados<br />
dos anos 1990, trouxe consigo a capacidade tecnológica, a penetração em mercados oligopolistas,<br />
a reputação comercial e os meios de financiamento. Para manter a coerência das políticas<br />
de estabilização monetaristas do FMI em face dos crescentes fluxos combinados de capitais<br />
externos (IDE, empréstimos comerciais e ajuda externa), o Banco Central passou a esterilizar a<br />
ajuda externa de modo a manter a massa monetária em linha com os alvos de inflação. Num contexto<br />
em que a ajuda externa massiva é sobretudo gasta em importações e consumo social por<br />
via da construção de infra-estruturas sociais, a liquidez sugada da economia é de facto transferida<br />
para investimento não directamente produtivo e intensivo em importações.<br />
Enquanto a expansão do capital internacional de grande escala é possível por causa do poder<br />
tecnológico, financeiro e domínio dos mercados das multinacionais, a expansão do pequeno e<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 165
médio capital nacional necessitaria de uma política de despesa pública que premeditadamente<br />
provocasse o crowding in do investimento privado por via do desenvolvimento da estratégia<br />
económica e do financiamento dos serviços e infra-estruturas adequados e coordenados com<br />
o desenvolvimento da produção directa. No entanto, a despesa pública está, essencialmente,<br />
desfasada deste processo de crowding in do investimento privado, o que dificulta a generali -<br />
zação e expansão da pequena e média empresa nacional e estrangeira. 24<br />
Por consequência, as opções para a rápida acumulação de capital por parte das classes capitalistas<br />
nacionais emergentes eram restritas a uma base histórica (comercial ou política), mas sem<br />
experiência de organização industrial da economia (cadeias de produto e valor, clusters, logística,<br />
finanças, etc.). Portanto, esta acumulação tinha de começar pela capitalização de recursos<br />
naturais que, pela Constituição, pertencem ao Estado. É assim que a estratégia económica dos<br />
últimos 5-6 anos tem sido focada na promoção das ligações do capital nacional com o capital<br />
estrangeiro de grande escala, com enfoque na expansão do complexo mineral-energético. Por<br />
um lado, este enfoque reflecte os interesses e estratégias globais dominantes do capital multinacional<br />
na África Sub-Sahariana. 25 Por outro lado, o enfoque reflecte as possibilidades do<br />
capital doméstico emergente, que utiliza o acesso privilegiado aos recursos naturais, com base<br />
em alianças e história política, como meio de assegurar o acesso ao grande capital internacional.<br />
À medida que os retornos neste tipo de investimento se vão acumulando, o capital nacional<br />
emergente diversifica para infra-estruturas de comunicações e transporte para facilitar o<br />
investimento estrangeiro de grande escala, e para o investimento imobiliário.<br />
A acumulação privada das classes capitalistas nacionais emergentes num quadro de economia<br />
extractiva depende de rendas que são possíveis de obter pelo acesso a recursos naturais e pelo<br />
tráfico de influências em relação ao processo de decisão política. Em outras palavras, o que os<br />
capitalistas nacionais têm para oferecer ao capital estrangeiro que justifique a sua integração nas<br />
sociedades corporativas e o seu acesso a rendas são os recursos naturais e a influência ou controlo<br />
sobre as instituições políticas.<br />
As rendas podem ser apropriadas pelo Estado (através dos impostos, royalties, e outros) e aplicadas,<br />
através do investimento público, na construção da logística, serviços, infra-estruturas e<br />
outras condições necessárias para a expansão diversificada do pequeno e médio capital nacional.<br />
Se fosse este o caso, seria o Estado a negociar os recursos naturais de acordo com uma<br />
estratégia mais geral de desenvolvimento nacional, e seria o Estado a assegurar a participação<br />
nacional nas sociedades e corporações, obtendo daí quatro vantagens: (i) a exploração estratégica<br />
e coordenada dos recursos de acordo com uma perspectiva mais ampla e de longo prazo;<br />
(ii) a maximização de receitas fiscais, royalties, etc.; (iii) a maximização das receitas de aplicação<br />
de capitais do Estado; e (iv) a acumulação de recursos para financiar a diversificação e<br />
articulação da economia. Esta abordagem poderia tornar-se num caminho prático e pragmático<br />
para eliminar a dependência externa num futuro realista e não muito distante.<br />
166 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
No entanto, as rendas são apropriadas privadamente, a começar pelo facto de os grandes projectos<br />
beneficiarem de pacotes fiscais e outros anormalmente generosos, e terminando nos vários conflitos<br />
sobre a terra e em torno do controlo e das opções de exploração de recursos naturais. 26<br />
As rendas assim apropriadas, privadamente, são posteriormente aplicadas na exploração de mais<br />
recursos naturais, na infra-estrutura de transportes e comunicações que facilita os grandes projectos<br />
de investimento estrangeiro, na construção e especulação imobiliária, turismo e actividades<br />
bancárias. Grandes grupos económicos nacionais começam a formar clusters e cadeias de valor<br />
internos ao grupo, envolvendo o controlo de bancos, infra-estruturas estratégicas de transportes<br />
e comunicações, sociedades estratégicas com grandes empresas multinacionais de exploração de<br />
minerais. Em alguns destes casos, as corporações nacionais não usam capital-dinheiro (próprio<br />
ou crédito), mas capital institucional (acesso aos recursos minerais, acesso às instituições, tráfico<br />
de influências e alianças com o poder político para escolher e penetrar em áreas estratégicas com<br />
posições fortes de negociação). Portanto, o Estado, neste caso, funciona como facilitador da<br />
acumulação privada em vez de como líder da acumulação e reprodução social.<br />
O debate acerca desta questão centra-se em quatro assuntos: se, sem os incentivos, os investidores<br />
investiriam em Moçambique; se, renegociando os contratos, os investidores desinvestirão<br />
em Moçambique; se as obras sociais locais podem ou não compensar pelos benefícios fiscais;<br />
e se é ou não legítimo usar os recursos naturais como plataforma para a formação de uma burguesia<br />
capitalista financeira e oligárquica nacional. Investimentos de grande envergadura são<br />
realizados com objectivos estratégicos globais que não incluem incentivos fiscais marginais.<br />
Estes investimentos têm custos iniciais tão altos que não podem mover-se de um país para<br />
outro só por causa da alteração de incentivos fiscais na margem. As obras sociais locais não têm<br />
nada a fazer com a fiscalidade e podem até por pressão adicional sobre o orçamento corrente<br />
do Estado sem para ele contribuírem. A legitimidade de qualquer opção de desenvolvimento<br />
depende fundamentalmente da capacidade de articular politicamente e impor essa opção à<br />
sociedade, e da sustentabilidade económica, social e ambiental intergeracional dessa opção.<br />
O ponto básico é que a privatização das rendas dos recursos tem quatro resultados observáveis:<br />
(i) a formação de uma nova oligarquia financeira nacional; (ii) a promoção do conflito generalizado<br />
de interesse entre o poder público e o privado, com a consequente promiscuidade e<br />
corrupção que se desenvolve entre os dois; (iii) a consolidação da dependência externa, tanto<br />
da ajuda internacional como dos fluxos de capital privado, e das estratégias, interesses e políticas<br />
que lhes são inerentes; (iv) a fragilização das instituições públicas nacionais.<br />
IMPACTOS MACROECONÓMICOS<br />
A análise dos impactos macroeconómicos do padrão de crescimento descrito vai limitar-se a<br />
dois aspectos fundamentais: a balança de pagamentos e a base fiscal. Historicamente, os impactos<br />
do padrão de acumulação sobre a capacidade de sustentar importações e de financiar<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 167
a despesa pública são vitais para sustentar ou interromper o processo de acumulação. A balança<br />
de pagamentos é particularmente crítica por causa da incapacidade da economia de substituir<br />
importações através de ligações a jusante e montante das várias actividades económicas e de<br />
diversificar exportações. Assim, a expansão económica coloca grandes pressões sobre a balança<br />
de pagamentos a médio e longo prazo. A capacidade do Estado mobilizar receitas é vital para<br />
fomentar a redistribuição do rendimento e a alteração dos padrões de acumulação, provocando<br />
o crowding in do investimento privado diversificado.<br />
Os gráficos 24 a 26 ilustram a relação entre o investimento (proxy para expansão da economia)<br />
e as diferentes componentes da balança de pagamentos. O gráfico 24 mostra o quanto o saldo<br />
da conta -corrente (linha tracejada) se deteriora com o aumento do investimento (linha contínua).<br />
Esta é a relação esperada, dada a fragilidade da substituição de importações (o que torna<br />
o investimento dependente de importações) e a rigidez das exportações não diversificadas.<br />
O gráfico 25 confirma a relação estabelecida pelo gráfico 24, mas desta vez relacionando a balança<br />
de capitais (ou de capitais e transacções financeiras) com a conta corrente e identificando os<br />
diferentes momentos históricos. Note-se que a ajuda externa não era contabilizada na balança<br />
de capitais. O que se pode observar é que cada período de aceleração do investimento é acompanhado<br />
pela deterioração da conta -corrente, do mesmo modo que cada período de contracção<br />
do investimento é acompanhado pela aparente redução do défice da conta-corrente.<br />
Exceptua-se o período compreendido entre meados dos anos 1980 e princípios dos anos 1990,<br />
GRÁFICO 24 RELAÇÃO ENTRE O INVESTIMENTO E A CONTA-CORRENTE ANTES DE DONATIVOS (US$ MILHÕES)<br />
3000<br />
2500<br />
2000<br />
1500<br />
1000<br />
500<br />
0<br />
-500<br />
-1000<br />
-1500<br />
-2000<br />
1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006<br />
Investimento bruto<br />
Conta corrente<br />
FONTE Castel-Branco 2002a, INE (vários anuários estatísticos) e Banco de Moçambique (balança de pagamentos)<br />
168<br />
Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
em que as importações eram garantidas quase exclusivamente pela ajuda externa (não contabilizada<br />
na conta de capitais). Finalmente, o gráfico 26 relaciona os fluxos externos de capital<br />
com a conta -corrente, e os resultados anteriores são confirmados – quando o fluxo aumenta,<br />
o saldo da conta -corrente deteriora-se.<br />
A partir do início da década de 2000, a emergência dos megaprojectos virados para exportação<br />
alterou a elasticidade das exportações relativamente ao investimento. Por um lado, o investimento<br />
privado concentrou-se nos megaprojectos. Por outro lado, todos estes projectos são<br />
destinados à exportação. Logicamente, investimento e exportação começaram a evoluir ao<br />
GRÁFICO 25 RELAÇÃO ENTRE A BALANÇA DE CAPITAIS E FINANCEIRA E O DÉFICE COMERCIAL (US$ MILHÕES) (*)<br />
1500<br />
1000<br />
500<br />
0<br />
-500<br />
-1000<br />
-1500<br />
-2000<br />
1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 20042005 2006 2007 2008<br />
Balança de capitais<br />
Contacorrente<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos) e Banco de Moçambique<br />
(relatórios anuais)<br />
GRÁFICO 26 FLUXOS EXTERNOS DE CAPITAL E CONTA-CORRENTE (US$ MILLHÕES) (*)<br />
1750<br />
1500<br />
1250<br />
1000<br />
750<br />
500<br />
250<br />
0<br />
-250<br />
-500<br />
-750<br />
-1000<br />
-1250<br />
-1500<br />
-1750<br />
1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 20042005 2006 2007 2008<br />
Empréstimos externos<br />
Balança de capitais<br />
Ajuda externa<br />
Conta-corrente<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos), Banco de Moçambique<br />
(balança de pagamentos), Castel-Branco 2002a,<br />
Castel-Branco, Sulemane et al 2005.<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010<br />
169
mesmo ritmo. No entanto, a emergência dos megaprojectos não alterou a relação viciosa entre<br />
investimento e conta-corrente porque a economia nacional é excessivamente porosa para reter<br />
a riqueza produzida. Esta porosidade deve-se a três factores: (i) fragilidade no que diz respeito<br />
a substituir importações, mantendo-se, por isso, o alto teor importado do consumo e da capacidade<br />
produtiva nacional; (ii) os benefícios fiscais, aduaneiros e de repatriamento de lucros de<br />
que beneficiam os megaprojectos, quiçá ainda associados a formas de transferência de lucros<br />
por via de sobrefacturação das compras; e (iii) fraqueza de ligações produtivas (a montante e<br />
jusante) e de emprego entre a economia e os megaprojectos.<br />
O gráfico 27 ilustra bem estes argumentos. O gráfico mostra a diferença fundamental entre o saldo<br />
comercial (exportações menos importações) e o saldo das transacções correntes (saldo comercial<br />
menos saldo de rendimentos) de dois megaprojectos combinados, Mozal e Sasol. A linha contínua<br />
é o saldo comercial, que atingiu US$ 1 mil milhões em 2007 e 2008. Quer dizer, os megaprojectos<br />
exportam um milhar de milhões de dólares mais do que importam, fazendo uma contribuição<br />
enorme para a balança comercial. A linha tracejada é o saldo da conta -corrente, isto é, o saldo comercial<br />
menos o saldo líquido das transferências. Como os dois megaprojectos combinados transferem<br />
US$ 680 milhões para o exterior, ao saldo comercial é preciso deduzir este valor para<br />
determinar o que de facto é absorvido pela economia nacional. Em 2008, apenas US$ 320 milhões<br />
(de um saldo comercial de US$ 1 milhar de milhão) foram retidos na economia, e este montante<br />
é praticamente igual aos custos operacionais correntes combinados dos dois megaprojectos.<br />
GRÁFICO 27 DIFERENÇA ENTRE O SALDO COMERCIAL E O SALDO DAS TRANSAÇÕES CORRENTES DOS MEGAPROJECTOS<br />
(EM US$ MILHÕES)<br />
2000<br />
1750<br />
1500<br />
1250<br />
1000<br />
750<br />
500<br />
250<br />
0<br />
-250<br />
-500<br />
-750<br />
-1000<br />
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008<br />
Exportações dos megaprojectos (X)<br />
Importações dos megaprojectos (M)<br />
Saldos dos rendimentos dos mega projectos (Y)<br />
Saldo comercial dos rendimentos dos megaprojectos [X-(+M)]<br />
Balança de transacções correntes dos megaprojectos [X-(+M)+Y]<br />
FONTE Banco de Moçambique (vários relatórios anuais e relatórios da balança de pagamentos)<br />
170<br />
Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
Portanto, dada a porosidade da economia, pelas razões mencionadas, o impacto comercial dos<br />
megaprojectos difere substancialmente do seu contributo líquido para a economia nacional.<br />
Exportam muito, mas pouco é retido pela economia. Isto é, por efeito da sua estrutura económica<br />
global e do enquadramento específico privilegiado dos megaprojectos, a economia<br />
nacional é excessivamente porosa.<br />
Estes dados mostram dois pontos fundamentais. Primeiro, a forma como o investimento se relaciona<br />
com a balança de pagamentos depende da estrutura produtiva e comercial gerada.<br />
Assim, enquanto a economia permanecer limitada na sua capacidade de substituir importações<br />
e mantiver uma estrutura não diversificada de exportações, a expansão económica continuará<br />
a pôr pressões fortes sobre a balança de pagamentos. Segundo, medidas de estabilização de<br />
cariz monetarista não podem ajustar o saldo da conta -corrente a não ser que contraiam a economia.<br />
Como é observável nos dados, o saldo da conta -corrente fica menos negativo quando<br />
o investimento contrai. A conclusão principal desta leitura dos dados é que a sustentabilidade<br />
da expansão da economia do ponto de vista das contas externas é vital, mas requer acção sobre<br />
a estrutura produtiva e comercial no sentido de a diversificar e articular, e sobre os megaprojectos<br />
no sentido de os pôr a render recursos para financiar a diversificação da base produtiva.<br />
Apesar das várias reformas introduzidas ao longo das três décadas de independência, o desempenho<br />
fiscal da economia é débil. As várias reformas foram, de modo geral, introduzidas<br />
para simplificar procedimentos e alargar a base fiscal depois de um período de estagnação nas<br />
receitas do Estado. No período imediatamente a seguir a cada reforma, as receitas aumentaram<br />
mas, a médio prazo, estagnaram de novo. De uma base de apenas 7% do PIB em 1975, as receitas<br />
fiscais cresceram até aproximadamente 14% do PIB em 1983, mas voltaram a descer para<br />
aproximadamente 12% em 2005. 27<br />
As dinâmicas fiscais em Moçambique podem ser resumidas no seguinte. Primeiro, a base fiscal<br />
como percentagem do PIB tem evoluído muito lentamente, nomeadamente cinco pontos percentuais<br />
em três décadas, a partir de uma base bastante baixa de 7% do PIB. De 1995 (três anos<br />
após o fim da guerra e um ano após as primeiras eleições multipartidárias) a 2005, as receitas<br />
fiscais como percentagem do PIB mantiveram-se praticamente estáticas (aproximadamente<br />
12%). 28 Comparativamente, as metas indicativas internacionais para os países da África Sub -Sahariana<br />
apontam para a necessidade de um crescimento das receitas fiscais como percentagem<br />
do PIB em aproximadamente um ponto percentual por ano, se a sustentabilidade fiscal for para<br />
ser atingida num período temporal que faça sentido (não irrealisticamente curto nem demasiado<br />
longo). 29 Esta lentidão no crescimento das receitas fiscais é consistente com a tendência na<br />
África Sub-Sahariana, embora em média as receitas fiscais como percentagem do PIB neste<br />
subcontinente sejam mais altas do que em Moçambique (15,6%). 30<br />
Tanto no caso de Moçambique, como na generalidade da África Sub-Sahariana, são essencialmente<br />
quatro as causas da relativa estagnação da base fiscal: (i) a dependência de apenas uma<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 171
fonte de crescimento da base fiscal. Em ambos os casos, esta fonte é o IVA aplicado sobre os<br />
bens e serviços importados e de produção nacional; (ii) a estrutura produtiva e comercial que<br />
não facilita a captação das receitas; (iii) os benefícios fiscais de que gozam os grandes investidores<br />
estrangeiros; e (iv) a débil administração fiscal. 31<br />
Em Moçambique, ao longo dos últimos 30 anos, o contributo dos impostos directos (sobre o<br />
rendimento das empresas e do trabalho) tende a estagnar ou diminuir como percentagem do<br />
PIB. Em média, no período, os impostos directos contribuíram com 2% do PIB (dois terços da<br />
média da África Sub-Sahariana e quatro vezes inferior à média da Ásia Central). 32 A partir de<br />
1994, as receitas sobre o rendimento do trabalho começaram a exceder largamente as receitas<br />
sobre o rendimento das empresas, apesar do rápido crescimento do investimento privado e da<br />
produção. Em 2005, as receitas sobre o rendimento do trabalho eram o dobro das receitas<br />
sobre o rendimento das empresas. 33<br />
Cavadias (2009) demonstra que entre 2002 e 2008, só com a isenção do IRPC (imposto sobre<br />
o rendimento das empresas) da Mozal, o Estado perdeu cerca de US$ 81 milhões por ano, o<br />
equivalente a um terço das receitas sobre o rendimento e 8% das receitas fiscais totais. Apesar<br />
de a Mozal contribuir com 70% das exportações de bens e da produção industrial e 20% do PIB,<br />
o seu contributo fiscal é insignificante.<br />
A multiplicação de megaprojectos na economia de Moçambique coloca três desafios fiscais<br />
importantes: (i) o desafio do aumento das receitas para desenvolvimento, quer por via da tribu -<br />
tação directa (nomeadamente sobre os lucros das empresas e os rendimentos dos seus trabalhadores),<br />
quer por via da tributação sobre factores de produção cruciais para os megaprojectos<br />
quando existe o espaço fiscal para o fazer (como, por exemplo, no caso da electricidade). Esta<br />
pode ser uma fonte segura de receita (dada a relativamente alta elasticidade da procura desses<br />
factores em relação ao rendimento, e da baixa elasticidade da sua procura relativamente ao<br />
preço) e uma forma de fazer os megaprojectos interiorizarem a externalidade negativa causada<br />
pelo impacto do seu consumo na relativa escassez, ou encarecimento, do factor em causa; (ii) o<br />
desafio da gestão da política fiscal sobre os megaprojectos para assegurar relativa estabilidade<br />
macroeconómica de longo prazo, formar reservas e compensar pelas flutuações, que podem ser<br />
súbitas e bruscas, dos fluxos de moeda externa; (iii) o desafio de utilizar a base fiscal construída<br />
para investir na diversificação da base produtiva e comercial, no aprofundamento das ligações<br />
domésticas e no alargamento da base social e regional de acumulação. 34<br />
DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO<br />
A análise realizada mostra que o desenvolvimento económico e social em Moçambique enfrenta<br />
quatro desafios cruciais: (i) diversificação, articulação da produção, logística, comércio e<br />
finanças, e ampliação da base social e regional de acumulação e distribuição; (ii) gestão e apro-<br />
172 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
veitamento racional das dinâmicas e tendências de desenvolvimento do complexo mineral -<br />
-energético e dos fluxos de ajuda externa; (iii) construção da estabilidade macroeconómica de<br />
longo prazo, assente numa estrutura diversificada, competitiva e articulada de produção e<br />
comércio e independente da ajuda externa; e (iv) a apropriação pelo Estado das rendas dos<br />
recursos e outras que permitam realizar as mudanças económicas, sociais e políticas, incluindo<br />
a direcção e amplitude dos centros de acumulação e padrões de distribuição. Em resumo, a<br />
economia de Moçambique tem de romper com a sua natureza extractiva, concentrada e, por<br />
consequência, instável e porosa.<br />
Para enfrentar estes desafios com sucesso, quatro questões têm de ser resolvidas. A primeira é<br />
a construção de um sistema de gestão macroeconómica que seja orientado para promover o investimento,<br />
a aplicação produtiva e inovadora das poupanças, e que não seja dominado pela obsessão<br />
de estabilização monetarista de curto prazo. Portanto, um modelo que favoreça a<br />
diversificação produtiva em vez da simples financeirização e especulação.<br />
A segunda é a mobilização de receitas fiscais e rendas de recursos e outras, incrementando<br />
significativamente as receitas provenientes dos impostos directos sobre os rendimentos do<br />
capital, com enfoque nos megaprojectos e recursos naturais. Para além de garantir que os<br />
novos contratos sejam significativamente mais úteis para a economia nacional (e, portanto,<br />
significativamente menos generosos para o capital), é necessário renegociar os contratos<br />
com os megaprojectos já estabelecidos que ainda beneficiam de colossais incentivos fiscais.<br />
De um modo geral, o sistema de incentivos deve ser revisto para contemplar as necessidades<br />
da economia, as especificidades dos diferentes tipos de actividades e o desempenho dos<br />
investidores. Isto permitirá reduzir substancialmente a dependência externa e gerar recursos<br />
adicionais para diversificar e ampliar a base produtiva, comercial, de investimento e de distribuição.<br />
A terceira consiste em desenvolver uma estratégia de diversificação, articulação e distribuição<br />
que permita desenvolver o mercado doméstico, criar ligações a montante e jusante que conduzam<br />
à substituição de importações, articular a logística, os sectores, as actividades, as capacidades<br />
e qualificações e as infra-estruturas, diversificar e aumentar as exportações e criar novos<br />
pólos de desenvolvimento que possam gerar novas e melhores oportunidades e sustentabilidade<br />
intergeracional. Esta estratégia deve guiar a aplicação dos recursos mobilizados domesticamente<br />
(poupanças e receitas fiscais), gerar novas capacidades e recursos, e sustentar os fundamentos<br />
da estabilidade macroeconómica de longo prazo. O capítulo que se segue, sobre desafios<br />
do desenvolvimento rural, discute esta questão em maior detalhe. 35<br />
A quarta, e mais complexa, envolve a mobilização e organização política, em torno da arti -<br />
culação de objectivos políticos identificados, para influenciar o Estado e o processo de decisão<br />
e implementação política a favor da transformação do padrão de acumulação económica em<br />
Moçambique.<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 173
NOTAS<br />
1<br />
Iniciadas em Janeiro de 1987 com a introdução do Programa de Reabilitação Económica (PRE),<br />
sob os auspícios do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.<br />
2<br />
Sem tais fluxos externos de capitais privados, o investimento produtivo directo na economia<br />
seria provavelmente tão baixo que resultaria, no mínimo, em estagnação do Produto Interno<br />
Bruto (PIB) per capita. A expansão do investimento público e privado com uso de recursos<br />
domésticos seria impossível, ou resultaria, pelo menos a médio prazo, em grande instabilidade<br />
monetária e estrutural.<br />
3<br />
Castel-Branco 2002a, 2002b, 1997, 1996 e 1995. Numa reunião de avaliação do cumprimento<br />
das metas do PRE no sector industrial, em 1989, o então vice-ministro da Indústria e Energia,<br />
Octávio Muthemba, chamou a atenção para o facto de não ser correcto avaliar a situação da<br />
indústria apenas pela magnitude das taxas de crescimento da produção por causa do impacto<br />
líquido negativo da expansão da indústria transformadora na balança de transacções correntes,<br />
que era associado com a extrema dependência das empresas industriais de insumos importados.<br />
Muthemba referiu que, sem ajuda externa, as taxas de crescimento atingidas entre 1987 e 1989<br />
não seriam sustentáveis, pelo que a avaliação do desempenho industrial se deveria focar sobretudo<br />
na composição da produção, suas articulações e desenvolvimento da capacidade de exportação<br />
(Castel-Branco 2002a).<br />
4<br />
Castel-Branco 2002a e 2002b, Wield 1977a e 1977b, Wuyts 1989 e 1984.<br />
5<br />
Portanto, “economia extractiva” não é apenas relacionada com as actividades do que classicamente<br />
se considera ser a indústria extractiva.<br />
6<br />
Amarcy 2009a e 2009b, Fine and Rustomjee 1996, Harris 1997, Ossemane 2008, Castel-Branco<br />
2009a, 2009b, 2003a, 2002a e 2002b.<br />
7<br />
Chang 1996, Nelson and Pack 1999, Weiss 1985, Wield 1977a e 1977b, Ocampo and Taylor<br />
1998, Rodrik 2007, Wangwe 1995 e 1994, Lucas 1990, Hausmann and Rodrik 2005, Hirschman<br />
1958, Castel-Branco 2009a, 2009b, 2003a, 2002a e 2002b.<br />
8<br />
Chang 1996, Nelson and Pack 1999, Weiss 1985, Wield 1977a e 1977b, Ocampo and Taylor<br />
1998, Rodrik 2007, Wangwe 1995 e 1994, Lucas 1990, Hausmann and Rodrik 2005, Hirschman<br />
1958, Castel-Branco 2009a, 2009b, 2003a, 2002a e 2002b.<br />
9<br />
Taxa de cobertura das importações é a proporção das importações de bens e serviços paga<br />
com as exportações de bens e serviços da economia. Este indicador não inclui transacções<br />
financeiras e de capital, pelo que só pode ser usado de forma restrita como proxy da capacidade<br />
comercial endógena de importação. Ossemane (2009) discute criticamente a validade<br />
de indicadores clássicos de capacidade de geração de moeda externa para sustentar o desenvolvimento,<br />
quando as exportações estão concentradas num pequeno leque de produtos<br />
no contexto de uma economia porosa (que tem dificuldade em reter riqueza). Ele sugere o<br />
saldo da conta-corrente como melhor indicador do que as exportações, pois este saldo con-<br />
174 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
sidera transacções de natureza financeira (isto é, já contabiliza parte da porosidade da economia).<br />
10<br />
Uma grande empresa faz grandes volumes de investimento de forma descontínua – constrói<br />
edifícios e outras infra-estruturas ou adquire novo equipamento, mas não faz este tipo de<br />
investimento todos os anos. Entre um ciclo de grande investimento e outro podem decorrer<br />
vários anos, pelo que o mapa de investimento da empresa é, naturalmente, muito irregular.<br />
Uma economia dinâmica e diversificada deve ter dezenas de empresas, pelo que é bem provável<br />
que os picos de investimento de muitas delas coincidam com os momentos baixos de<br />
investimento de outras. Assim, o mapa de investimento de uma economia dinâmica e diversificada<br />
deve ser mais regular, pois os pontos altos e baixos das empresas deverão tender a<br />
cancelarem-se. Importa notar que estes dados são sobre investimento aprovado, o que também<br />
contribui para que os picos sejam tão acentuados.<br />
11<br />
Castel-Branco 2009a, Castel-Branco, Nelsa Massingue e Rosimina Ali 2009.<br />
12<br />
Selemane (2009) apresenta informação detalhada sobre os diferentes projectos de investimento<br />
ligados à indústria extractiva.<br />
13<br />
Ministério da Agricultura 2004.<br />
14<br />
Banco de Moçambique (vários relatórios anuais) e Jornal Notícias de 21/08/2009 – Caderno de<br />
Economia e Negócios.<br />
15<br />
Matos e Mosca 2009.<br />
16<br />
Brouwer, Brito e Menete 2009.<br />
17<br />
Buendía 2009.<br />
18<br />
Os dados disponíveis não permitem, por enquanto, desagregar a informação para completar esta<br />
série até 2008.<br />
19<br />
O grupo 19 (G-19) é constituído por 19 doadores, sendo 16 bilaterais e 3 multilaterais. Estes<br />
doadores distinguem-se por realizarem financiamento geral ao orçamento do Estado e financiamento<br />
aos orçamentos sectoriais. É estimado que o valor da ajuda do G-19 corresponde a 80%<br />
da ajuda externa total a Moçambique. Para uma avaliação do desempenho destes doadores de<br />
2004 a 2008, ver Castel-Branco, Ossemane, Massingue e Ali 2009.<br />
20<br />
Retirados de http://ddp-ext.worldbank.org/ext/DDPQQ/, acedido a 02 de Novembro de 2009.<br />
21<br />
Popularmente conhecidos como os “7 milhões” (de meticais), anualmente desembolsados pelo<br />
orçamento do Estado para financiar actividades de iniciativa privada nos distritos. Ao câmbio corrente,<br />
sete milhões de meticais correspondem aproximadamente a US$ 235 mil.<br />
22<br />
Castel-Branco 1999, Castel-Branco and Cramer 2003, Cramer 2001.<br />
23<br />
Amarcy 2009a e 2009b, Castel-Branco 2002a.<br />
24<br />
Castel-Branco 2008, 2006, 2005, 2004, 2003a e 2003b, Castel-Branco, Sulemane et al 2005, Castel-Branco<br />
e Goldin 2003, Cramer 2001.<br />
25<br />
UNCTAD 2008, Fine and Rustomjee 1996.<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 175
26<br />
Cambaza 2009, Selemane 2009, Castel-Branco 2009a e 2009b.<br />
27<br />
Byiers 2009.<br />
28<br />
Byiers 2009.<br />
29<br />
McKinley and Kyrili 2009, McKinley 2009.<br />
30<br />
McKinley 2009.<br />
31<br />
Byiers 2009 e McKinley 2009.<br />
32<br />
Byiers 2009 e McKinley 2009.<br />
33<br />
Byiers 2009.<br />
34<br />
Byiers 2009, Bucuane e Mulder 2007a e 2007b, Castel-Branco 2009a e 2009b, Castel-Branco e<br />
Cavadias 2009.<br />
35<br />
Castel-Branco, Massingue e Ali 2009.<br />
REFERÊNCIAS<br />
Amarcy, S. 2009a. The negative implications of the excessive accumulation of foreign exchange<br />
reserves: the rationality of the Central Bank in hoarding foreign reserves. Unpublished<br />
MSc. Dissertation. University of London: London (disponível em<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/sa/dissertacao_sofia.pdf).<br />
Amarcy, S. 2009b. Acumulação de reservas cambiais e possíveis custos derivados – cenário em<br />
Moçambique. IDeIAS. Boletim n.º 23 (06 de Novembro). <strong>IESE</strong>: Maputo (disponível em<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_23.pdf).<br />
Amsden, A. 1997. Editorial: bringing production back in – understanding government’s<br />
economic role in late industrialisation. World Development 25(4), pp. 469-80.<br />
Amsden, A. 1994. Why isn’t the whole world experimenting with the East Asian model to<br />
develop? Review of the East Asian Miracle. World Development 22(4), pp. 627-33.<br />
Amsden. A. 1989. Asia’s Next Giant: South Korea and Late Industrialisation. Oxford University<br />
Press: Oxford and New York.<br />
Banco de Moçambique. (vários anos). Economic statistics (página da Internet:<br />
http://www.bancomoc.mz).<br />
Banco de Moçambique. (várias edições). Relatório anual. Maputo.<br />
Banco de Moçambique (várias edições). Boletim anual da balança de pagamentos. Maputo.<br />
Bayoumi, T. D. Coe and E. Helpman. 1996. R&D spillovers and global growth. Centre for<br />
Economic Policy Research (CEPR) WP 1467.<br />
Boon, G. 1982. Some thoughts on changing comparative advantages. IDS Bulletin 13(2), pp. 14-<br />
8 (Institute of Development Studies, University of Sussex: Sussex).<br />
Brouwer, R., L. Brito, e Z. Menete. 2009. Educação, formação profissional e poder. In Brito, L. C.<br />
Castel-Branco, S. Chichava e A. Francisco (eds). 2009. Desafios para Moçambique, 2010.<br />
<strong>IESE</strong>: Maputo.<br />
176 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
Bucuane, A. e P. Mulder. 2007a. Avaliação de opções de um imposto de electricidade sobre<br />
mega projectos em Moçambique. DNEAP Discussion Paper nº 37P. Ministério da<br />
Planificação e Desenvolvimento: Maputo.<br />
Bucuane, A. and P. Mulder. 2007b. Exploring natural resources in Mozambique: will it be<br />
a blessing or a curse? DNEAP Discussion Paper nº 54E. Ministério da Planificação<br />
e Desenvolvimento: Maputo.<br />
Buendia, M. 2009. Os desafios da leitura. In Brito, L. C. Castel-Branco, S. Chichava e<br />
A. Francisco (eds). 2009. Desafios para Moçambique, 2010. <strong>IESE</strong>: Maputo.<br />
Byiers, B. 2009. Taxation in retrospect. In Arrndt, C. and F. Tarp (eds.). Taxation in a low -income<br />
economy: the case of Mozambique. Routledge: New York.<br />
Cambaza, V. 2009. A terra, o desenvolvimento comunitário e os projectos de exploração<br />
mineira. IDeIAS. Boletim n.º 14 (4 de Junho). <strong>IESE</strong>: Maputo. (disponível em<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_14.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 2009a. Economia extractiva e padrões de industrialização em Moçambique.<br />
In L. Brito, C. Castel-Branco, S. Chichava e A. Francisco (eds.) Economia extractiva e<br />
desafios de industrialização em Moçambique. <strong>IESE</strong>: Maputo.<br />
Castel-Branco 2009b. Indústria de recursos naturais e desenvolvimento: alguns comentários.<br />
IDeIAS. Boletim n.º 10 (30 de Março). <strong>IESE</strong>: Maputo.<br />
(http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/ideias/Ideias_10.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 2009c. Comentários no lançamento do relatório “Alguns desafios da indústria<br />
extractiva em Moçambique”, (elaborado por Thomas Selemane e publicado pelo CIP:<br />
Maputo). (disponível através do link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ComentariosdeCastelBranco-<br />
RelCIP.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 2008a. Eliminating aid dependency and poverty through development of<br />
broad based and diversified productive and trade capacities. Comunicação apresentada<br />
no Trade and Development Board (18 de Setembro). UNCTAD: Geneva.<br />
Castel-Branco, CN. 2008b. Desafios do desenvolvimento rural em Moçambique: contributo crítico<br />
para um debate com base em postulados básicos. Discussion Paper n.º 03/2008 do<br />
Instituto de Estudos Sociais e Económicos (<strong>IESE</strong>): Maputo (também disponível no link da<br />
página do <strong>IESE</strong><br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/dp_2008/Discussion_Paper2_Revolucao_Verde.p<br />
df).<br />
Castel-Branco, CN. 2005. Implicações do protocolo comercial da SADC para a família<br />
camponesa: Estudo realizado na Província de Manica para a União Nacional de<br />
Camponeses (UNAC) (disponível no link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/SADC_e_camponese_em_Manica.pdf).<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 177
Castel-Branco, CN. 2004. Business and productive capacity development in economic growth<br />
and industrialization: the case of Mozambique. Mimeo (disponível pelo link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/Private_sector_development.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 2003a. A situação económica em Moçambique: reavaliação da evidência<br />
com foco na dinâmica da produção industrial. Comunicação apresentada na VII<br />
Conferência Anual do Sector Privado. CTA: Maputo.<br />
Castel-Branco, CN. 2003b. A critique of SME-led approaches to economic development.<br />
Comunicação apresentada na II Reunião do Task Force sobre Pequenas e Médias<br />
Empresas da Câmara do Comércio e Indústria da Conferência Islâmica<br />
(http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/CCA-2003a-Critical-view-on-SMEs-anddevelopment.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 2003c. Support to building capacity in investment strategy and articulation in<br />
the Province of Nampula. Relatório para a SDC e o Governo da Província de Nampula<br />
(disponível no link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/Rapid_Assessment_Study_Nampula_final_website.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 2002a. An investigation into the political economy of industrial policy: the<br />
Mozambican case. Tese de Doutoramento não publicada. Departamento de Economia<br />
do SOAS (Univ. de Londres): Londres.<br />
Castel-Branco, CN. 2002b. Economic linkages between South Africa and Mozambique. Paper<br />
de investigação e discussão preparado para o DfID (Dept. para o Desenvolvimento<br />
Internacional do Governo Britânico): Pretoria. (http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/AI-<br />
2002a-SA-Mozambique-linkages.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 1997. The limits of trade liberalisation in export promotion in Sub-Saharan<br />
Africa. Unpublished MSc dissertation. Univ. of Oxford: Oxford. (disponível em<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/1997_Liberalization_Exports_SSA.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 1996. Reflexões sobre a dinamização da economia rural em Moçambique.<br />
Comunicação em mesa redonda organizada pela Universidade Eduardo Mondlane e o<br />
Ministério do Plano e Finanças “Estratégias para acelerar o crescimento económico em<br />
Moçambique”. Maputo. (http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/DESRURAL.SEM.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 1995. Opções Económicas em Moçambique 1975-1995: problemas, lições e<br />
ideias alternativas. In Mazula (ed.) 1995. Moçambique, eleições, democracia e desenvolvimento.<br />
B. Mazula: Maputo.<br />
(http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/Problemas%20licoes%20e%20Ideas%20Alternativas.pdf).<br />
Castel-Branco, CN., N. Massingue e R. Ali. 2009. Desafios do desenvolvimento rural em<br />
Moçambique. In Brito, L. C. Castel-Branco, S. Chichava e A. Francisco (eds). 2009.<br />
Desafios para Moçambique, 2010. <strong>IESE</strong>: Maputo.<br />
178 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
Castel-Branco, CN. R. Ossemane, N. Massingue e R. Ali. 2009. Mozambique independent<br />
review of PAPs’ performance in 2008 and trends in PAPs performance over the period<br />
2004-2008. Research report.<br />
(http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/PAPs_2008_port.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. e E. Cavadias. 2009. O papel dos megaprojectos na estabilidade da carteira<br />
fiscal de Moçambique. Comunicação apresentada no II Seminário Nacional sobre<br />
Execução da Política Fiscal e Aduaneira. Autoridade Tributária de Moçambique<br />
(Maputo, 06-07 de Março).<br />
Castel-Branco, CN. J. Sulemane, et al. 2005. Macroeconomics of scaling up aid: the Mozambican<br />
case. Research report. Maputo.<br />
(http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/Macroeconomics_of_Aid_and_FDI.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. and C. Cramer. 2003. Privatisation and economic strategy in Mozambique.<br />
in Addison, T. (ed.). 2003. From Conflict to Recovery in Africa. Oxford University Press:<br />
Oxford.<br />
(http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/Privatization%20and%20Economic%20Strategy.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. and N. Goldin. 2003. Impact on the Mozal aluminium smelter on the<br />
Mozambican economy. Research report. Maputo.<br />
(http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/Mozal_and_economic_development.pdf).<br />
Cavadias, E. 2009. Análise crítica dos incentivos fiscais na promoção de megaprojectos em<br />
Moçambique. Dissertação de Licenciatura não publicada. Faculdade de Economia da<br />
Universidade Eduardo Mondlane. Maputo.<br />
Chang, H-J. 1996. The Political Economy of Industrial Policy. McMillan: London and New<br />
York.<br />
Cramer, C. 2001. Privatisation and adjustment in Mozambique: a “hospital pass”? Journal of<br />
Southern African Studies 27(1), pp. 1247-66.<br />
CPI (Centro de Promoção de Investimento). Lista de projectos de investimento aprovados no<br />
período 1990-2008. CPI: Maputo.<br />
Dasgupta, S. 1980. Class Relations and Technical Change in Indian Agriculture. MacMillan in<br />
association with the Institute of Economic Growth: New Delhi.<br />
Eaton, J. and S. Kortum. 1995. Engines of growth: domestic and foreign sources of innovation.<br />
IED Discussion Paper Series no. 63 (Boston University).<br />
Fine, B. and Z. Rustomjee. 1996. The Political Economy of South Africa: from Minerals-Energy<br />
Complex to Industrialization. Westview Press: London.<br />
Freeman, C. and J. Hagedoorn. 1994. Catching Up or Falling Behind: Patterns of International<br />
Inter-firm Technology Partnering. World Development 22(5), pp. 771-80.<br />
Gore, C. 1996. Methodological nationalism and the misunderstanding of East Asian<br />
industrialisation. UNCATD Discussion Paper 111 (January).<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 179
Greenaway, D. 1991. New trade theories and developing countries. in Balasubramanyam, V., and<br />
S. Lall. (eds.) Current Issues in Development Economics. Macmillan: London.<br />
Harris, L. 1997. Economic objectives and macroeconomic constraints. In Michie, J. and V.<br />
Padayachee (eds.). 1997. The political economy of South Africa’s transition: policy<br />
perspectives in the late 1990s. The Dreyden Press: London.<br />
Hirakawa, H. et al (eds.). 2001. Beyond Market-driven Development: a New Stream of Political<br />
Economy of Development. Nihon Hyoron Sha: Tokyo (in Japanese, with English edition<br />
to follow).<br />
Hirschman, A. 1981. Essays in Trespassing: Economics to Politics and Beyond. Cambridge<br />
University Press: Cambridge.<br />
Hirschman, A. 1958. The Strategy of Economic Development. Yale University Press: New<br />
Haven and London.<br />
Hausmann, R. and D. Rodrik. 2005. It is not how much but what you export that matters. John<br />
F. Kennedy School of Government, Harvard University (November).<br />
INE (Instituto Nacional de Estatística). Anuário Estatístico (1961 a 2008). Maputo.<br />
KPMG. (várias edições). Ranking das 100 Maiores Empresas em Moçambique. Maputo.<br />
Leahy, D. and J. Neary. 1999. R&D spillovers and the case for industrial policy in an open<br />
economy. Oxford Economic Papers 51, pp. 40-59.<br />
Leahy, D. and J. Neary. 1994. Learning by doing, pre-commitment and infant-industry<br />
protection. Centre for Economic Policy Research discussion paper 980.<br />
Lucas, R. 1990. Why doesn’t capital flow from rich to poor countries? The American Economic<br />
Review (AEA Papers and Proceedings) 80(2), pp. 91-5 (May).<br />
Matos, N. e J. Mosca. 2009. Desafios da leitura. In Brito, L. C. Castel-Branco, S. Chichava e<br />
A. Francisco (eds). 2009. Desafios para Moçambique, 2010. <strong>IESE</strong>: Maputo.<br />
McKinley, T. 2009. Why has domestic revenue stagnated in low-income countries? CDPR<br />
Development Viewpoint number 41 (November). SOAS. Univ. of London.<br />
McKinley, T. K. Kyrili. 2009. Is stagnation of domestic revenue in low-income countries<br />
inevitable? CDPR Discussion Paper 27/09. SOAS. Univ. of London.<br />
Ministério da Agricultura. 2004. Visão para o desenvolvimento agrário. Maputo.<br />
Mozal.1999. Macroeconomic impacts. Ch.12 of Mozal’s Feasibility Study. Maputo.<br />
Nelson, R. and H. Pack. 1999. The Asian miracle and modern growth theory. The Economic<br />
Journal 109 (July), pp. 416-36.<br />
Ocampo, J. and L. Taylor. 1998. Trade liberalization in developing countries: modest benefits but<br />
problems with productivity growth, macro prices and income distribution. The Economic<br />
Journal 108 (September), pp. 1523-46.<br />
180 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
Ossemane, R. 2009. Sustentabilidade da dívida pública num contexto do domínio económico de<br />
megaprojectos. In Brito, L. C. Castel-Branco, S. Chichava e A. Francisco (eds.) Economia<br />
extractiva e desafios de industrialização em Moçambique. <strong>IESE</strong>: Maputo.<br />
Ossemane, R. 2008. A Critical Discussion of the Low Income Countries Debt Sustainability<br />
Framework — The case of Mozambique. Unpublished MSc Dissertation. Univ. of<br />
London: London (disponível em<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/ro/Debt%20Sustainability%20Dissertation.pdf).<br />
Rodrik, D. 2007. Specialization or diversification? (16 de Maio). Disponível no weblog do autor<br />
intitulado “Unconventional thoughts on economic development and globalization”<br />
(http://rodrik.typepad.com/dani_rodriks_weblog/2007/05/specialization_.html<br />
(acedido a 12 de Novembro de 2009).<br />
Rodrik, D. 1995. Trade strategy, investment and exports: another look at East Asia. CEPR<br />
Discussion Paper 1305 (Centre for Economic Policy Research).<br />
Rodrik, D. 1992. The limits of trade policy reform in developing countries. Journal of Economic<br />
Perspectives 6(1) (Winter), pp. 87-105.<br />
Rowthorn, R. and R. Ramaswamy. 1997. Deindustrialisation – its causes and implications.<br />
International Monetary Fund (IMF) Economic Issues 10 (September). IMF: Washington<br />
DC.<br />
Sachikonye, L. 1999. Restructuring or de-industrializing? Zimbabwe’s textile and metal<br />
industries under structural adjustment. Research Programme “The Political and Social<br />
Context of Structural Adjustment in Africa” Report n ọ 110. Nordiska Afrikainstitutet:<br />
Uppsala.<br />
Selemane, T. 2009. Alguns desafios da indústria extractiva em Moçambique. CIP: Maputo.<br />
Shirai, S. and D-P Huang. 1994. How does industrialisation affect the structure of international<br />
trade? The Japanese experience in the Pacific basin 1975-1985. IMF Working Paper<br />
94/95 (August).<br />
Stewart, F. 1976. Capital goods in developing countries. In Livingstone, I. (ed.). 1981.<br />
Development economics and policy: Readings. George Allen & Unwin: London.<br />
Teitel, S. 2000. Technology and Skills in Zimbabwe’s Manufacturing. MacMillan: London.<br />
Toporowski, J. (ed). 2000. Political Economy and the New Capitalism: Essays in Honour of Sam<br />
Aaronovitch. Routledge: London.<br />
UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development). 2008. Growth, poverty<br />
and the terms of development partnership. (Least Developed Countries Report).<br />
UNCTAD: Geneva.<br />
UNCTAD. 2000. Capital flows and growth in Africa. UNCTAD: Geneva.<br />
Wangwe, S. (ed.). 1995. Exporting Africa: Technology, Trade and Industrialisation in Sub-<br />
Saharan Africa. Routledge: London, New York.<br />
Crises Cíclicas e Desafios Desafios para Moçambique 2010 181
Wangwe, S.M. 1994. New trade issues: traditional versus non-traditional exports. in Cornia, G.,<br />
and G.K.Helleiner (eds.) 1994.<br />
Weiss, J. 1985. Manufacturing as an engine of growth – revisited. Industry and Development 3, pp.<br />
39-62.<br />
Wield, D. 1977a. Some characteristics of the Mozambican economy particularly relating to<br />
industrialization. (mimeo) Centro de Estudos Africanos/Univ. Eduardo Mondlane.<br />
Maputo.<br />
Wield, D. 1977b. The structure and balance of industrial production and its relationships with<br />
other sectors and with the growth of a working class. (mimeo) Centro de Estudos<br />
Africanos/Univ. Eduardo Mondlane. Maputo.<br />
World Bank. 1996. Moçambique: avaliação do impacto e eficiência do programa de<br />
reestruturação de empresas. World Bank: Washington DC.<br />
World Bank. 1990b. Mozambique: industrial sector study. Report. World Bank: Washington DC.<br />
Wuyts, M. 1989. Money and planning for socialist transition: the Mozambican experience.<br />
Gower: Aldershot.<br />
Wuyts, M. 1984. A statistical note on trends of economic development in Mozambique.<br />
(mimeo) Institute of Social Studies (ISS): The Hague.<br />
182 Desafios para Moçambique 2010 Crises Cíclicas e Desafios
DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO<br />
1<br />
RURAL EM MOÇAMBIQUE<br />
Carlos Nuno Castel-Branco | Nelsa Massingue | Rosimina Ali<br />
INTRODUÇÃO<br />
O capítulo anterior 2 lança o desafio da diversificação e da articulação da base económica, produtiva<br />
e comercial de Moçambique com os objectivos de aumentar as opções e oportunidades,<br />
reduzir as vulnerabilidades, desenvolver os mercados domésticos, tornar as dinâmicas de acumulação<br />
mais eficazes e justas do ponto de vista de distribuição e alargar a base social e regional<br />
de acumulação. Desenvolvimento rural é uma das opções básicas para enfrentar aqueles<br />
desafios e atingir tais objectivos.<br />
O que se segue é um conjunto de postulados, isto é, axiomas ou hipóteses, sobre como pensar<br />
nos desafios do desenvolvimento rural em Moçambique. A apresentação inclui tanto os postulados,<br />
como a sua derivação lógica e as implicações de política. Portanto, há três elementos<br />
críticos em cada etapa: o postulado, a sua lógica e as suas implicações. Postulados (axiomas ou<br />
hipóteses) são ideias em investigação. Como tal, nem são verdades estabelecidas, nem ideias<br />
acabadas. A experiência mostra que as dinâmicas de inovação e criatividade estão precisamente<br />
centradas à volta da discussão de hipóteses.<br />
Em torno de sete postulados, este artigo desenvolve três argumentos fundamentais. Primeiro,<br />
desenvolvimento rural deve ser o foco central da estratégia nacional de desenvolvimento.<br />
Segundo, desenvolvimento rural é entendido, neste artigo, como industrialização rural, e esta<br />
como um processo de transformação e articulação da base e da organização social, económica,<br />
logística e tecnológica da produção e do comércio. Terceiro, um processo diversificado e alargado<br />
de industrialização rural requer a confrontação com a realidade das dinâmicas actuais de<br />
desenvolvimento nacional e rural: as infra-estruturas e serviços são concentrados nas zonas<br />
urbanas e no Sul do País; os principais focos do investimento e determinantes do crescimento<br />
são projectos minerais, energéticos e turísticos; as actividades agrárias e agroindustriais são cada vez<br />
mais concentradas (com o tabaco, açúcar, madeiras e algodão a dominarem a produção, o comér -<br />
cio e as exportações); a introdução do fundo de iniciativa local para os distritos (popularmente<br />
conhecido como “os 7 milhões” [de meticais]) tem efeitos tanto na produção e comércio, como<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 183
no emprego e distribuição de rendimento, mas estes efeitos estão ainda pouco sistematizados;<br />
a agricultura familiar é profundamente afectada e reestruturada por estas dinâmicas que influenciam<br />
os mercados de bens e serviços e de trabalho com os quais a produção familiar é organicamente<br />
relacionada; impactos deste conjunto de dinâmicas nas oportunidades de emprego,<br />
na qualificação da força de trabalho, na transformação das relações de produção, das forças<br />
produtivas e da sua organização social, e na distribuição do rendimento são muito diferenciados<br />
e desiguais entre regiões e grupos sociais.<br />
DESENVOLVIMENTO RURAL COMO FOCO DE ARTICULAÇÃO<br />
DA ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO NACIONAL<br />
Nas condições socioeconómicas e demográficas de Moçambique, desenvolvimento rural deve ser<br />
o foco de articulação e o centro de gravidade da estratégia nacional de desenvolvimento. Note-se que não<br />
está a ser dito que desenvolvimento rural deve ser parte, ou parte fundamental da estratégia de desenvolvimento<br />
nacional. Explicitamente, está a ser dito que a estratégia de desenvolvimento nacional<br />
deve ser uma estratégia de desenvolvimento rural. Por outras palavras, desenvolvimento rural não é<br />
um assunto sectorial ou transversal, é o assunto central do desenvolvimento de Moçambique.<br />
Por isso, uma estratégia de desenvolvimento rural, paralela ou parte integrante de uma estratégia<br />
nacional de desenvolvimento, não tem sentido. Do mesmo modo, uma organização governativa<br />
focada em desenvolvimento rural faz pouco sentido, tal como o faria se o Governo tivesse<br />
um ministério ou uma direcção de combate à pobreza absoluta, dado que este combate não é<br />
uma actividade sectorial mas o foco (hipoteticamente) da estratégia de desenvolvimento.<br />
Várias são as razões lógicas para afirmar este primeiro postulado. Primeira, a maioria da população<br />
de Moçambique ainda vive nas zonas rurais, apesar da velocidade a que a urbanização está<br />
a acontecer. Por outro lado, a velocidade da migração do campo para as cidades (cerca de três<br />
vezes superior à da taxa de crescimento da população) 3 reflecte e cria pressões económicas e<br />
sociais enormes, assim como resulta das aspirações de urbanização e de acesso a novas oportunidades<br />
e serviços por parte dos habitantes das zonas rurais.<br />
Logo, as dinâmicas de desenvolvimento rural afectam: (i) as dinâmicas demográficas rurais e<br />
urbanas; (ii) as dinâmicas de urbanização (escangalhamento das cidades existentes ou urbanização<br />
alargada do País); (iii) a natureza do emprego e dos padrões de acumulação económica<br />
(incluindo a sua relativa formalidade ou informalidade); (iv) as oportunidades de aplicação produtiva<br />
dos fluxos financeiros resultantes do trabalho migratório ou sazonal e da participação dos<br />
camponeses em mercados de bens agrícolas (por exemplo, devem estes fluxos ser investidos<br />
apenas na reprodução das actividades agrícolas comuns e tradicionais em cada região ou existem<br />
oportunidades, capacidades e facilidades para diversificar a aplicação destes fluxos em<br />
184 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
investimento industrial (das carpintarias às serralharias, dos materiais de construção às mobílias,<br />
das agroindústrias às indústrias pesqueiras, da produção à manutenção de equipamentos),<br />
no turismo, estruturas comerciais, formação profissional e outros serviços?. 4<br />
Urbanizar o campo ou continuar a ruralizar as cidades; continuar a esgotar as cidades já existentes<br />
ou criar novas no campo; aumentar o exército de empresários e empregados retalhistas<br />
informais que pululam pelas cidades na margem da sobrevivência ou criar novas oportunidades<br />
dinâmicas e inovadoras de trabalho decente; estas são opções que se abrem ou se fecham<br />
em grande medida como função do que acontece com o desenvolvimento rural.<br />
Segunda, histórica e estruturalmente, a base de sustentação e de acumulação de capital de toda a<br />
economia de Moçambique tem residido nas zonas rurais: da economia das plantações à do trabalho<br />
migratório e das culturas obrigatórias; da economia mineira e energética ao turismo e pescas;<br />
da produção de alimentos baratos para os trabalhadores assalariados à produção das principais<br />
exportações; da reprodução social de força de trabalho barata à redução dos custos, para o capital,<br />
desse processo de reprodução. Cada um destes casos demonstra que é nas zonas rurais onde<br />
se localizam os engenhos fundamentais da acumulação e reprodução económica e social de Moçambique,<br />
embora tais engenhos não sejam necessariamente nem fundamentalmente agrários.<br />
Estas dinâmicas de acumulação estruturaram a agricultura familiar e o campesinato como produtor<br />
para os mercados agrícolas e gerador de força de trabalho assalariada (nos períodos de acumulação<br />
acelerada de capital), e como amortecedor do impacto das crises de acumulação ao fornecer<br />
um seguro temporário contra o risco de desemprego ou de recessão no mercado de excedentes<br />
agrícolas e de trabalho, reduzindo os custos do capital com a reprodução social da força de trabalho.<br />
Ao invés de reflectirem uma dinâmica de reprodução simples desligada da economia capitalista,<br />
a agricultura familiar e o campesinato são parte central do processo, das estruturas, das tensões e dos<br />
conflitos relacionados com as principais dinâmicas de acumulação de capital em Moçambique. 5<br />
As dinâmicas de desenvolvimento rural afectam a capacidade de mobilizar vastas forças produtivas<br />
nacionais cuja organização social e económica continuam a ser altamente ineficazes do<br />
ponto de vista da acumulação económica nacional. Com raras excepções, os níveis de produtividade<br />
no campo, independentemente dos sectores de actividade, são baixos, tal como o são<br />
os níveis de educação, a qualidade e cobertura das infra-estruturas de construção, energia, água,<br />
transportes, comunicações e assistência técnica, a presença de instituições de ciência e tecnologia,<br />
padronização e controlo de qualidade e certificação com algum significado produtivo<br />
concreto, a capacidade de financiamento e os níveis de especialização da produção. 6<br />
Terceira, uma das frases mais ouvidas em Moçambique é a que diz que a maioria da população<br />
vive da agricultura. Empiricamente, esta frase nem descreve nem analisa a complexa realidade social<br />
no campo. Se é verdade que quase toda a população rural tem acesso a terra e uma ligação<br />
com a agricultura, também é verdade que a maioria desta população tem padrões muito diversificados<br />
de sobrevivência, que incluem trabalho assalariado (permanente, sazonal e migratório),<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 185
uma diversidade de actividades agropecuárias, pesca, algum tipo de actividade comercial, alguma<br />
indústria artesanal. Os habitantes das zonas rurais são, geralmente, e em simultâneo, pescadores,<br />
agricultores, artesãos, comerciantes, transportadores, trabalhadores assalariados nas fábricas, nas<br />
minas e nas plantações, trabalhadores da função pública, construtores de infra-estruturas (estradas,<br />
sistemas de água e saneamento, escolas, centros de saúde), madeireiros e gestores de programas<br />
comunitários de protecção ambiental. 7 Cada uma destas ocupações é um de muitos lados<br />
das estratégias de sobrevivência de cada família de camponeses diferenciados.<br />
A evidência mostra que, regra geral, há dois tipos de agregados familiares que vivem de facto da<br />
agricultura: (i) os muito pobres, que não conseguem diversificar o seu leque de actividades, frequentemente<br />
por causa da limitação de oportunidades de emprego decente; e (ii) os mais abastados<br />
(camponeses médios e ricos ou mesmo empresários agrícolas), que em algum momento da sua<br />
vida economicamente activa passaram com sucesso por anos de trabalho assalariado e outras formas<br />
de sobrevivência e acumulação, o que lhes permitiu investir na agricultura (expansão das áreas<br />
de cultivo, aquisição de melhores meios de produção – incluindo tracção animal ou mecânica e sistemas<br />
de irrigação – recrutamento de força de trabalho) e construir uma base como produtores comerciais<br />
ou semicomerciais independentes. O primeiro grupo é mais numeroso que o segundo, e<br />
os dois grupos juntos formam uma fracção minoritária das populações rurais. O primeiro grupo<br />
é instável (em períodos de intensa procura de força trabalho ou de choques prolongados – como<br />
no caso de secas e cheias – tende a “desaparecer” como produtor agrícola familiar); enquanto o segundo<br />
grupo é vulnerável, mas tende a consolidar-se e a destacar-se dos outros. Com excepção dos<br />
produtores comerciais mais avançados, que tendem a especializar-se mais, a estrutura produtiva<br />
destas famílias camponesas e produtores comerciais é semelhante no que diz respeito à grande<br />
variedade de produtos que cada um produz, mas difere fundamentalmente no que diz respeito à<br />
escala, meios de produção e capacidade de recrutamento de trabalhadores assalariados. 8<br />
Estes padrões de diversificação generalizada das actividades em que cada família e produtor se<br />
engajam reflectem a condição inicial de acumulação em que a maioria dos produtores rurais se<br />
encontra, bem como a sua resposta a dinâmicas e estruturas de produção, comércio, emprego e<br />
acumulação sobre as quais têm pouco ou nenhum controlo. Por exemplo, dada a incapacidade<br />
de prever e/ou influenciar as tendências dos mercados e preços de produtos agrícolas e de trabalho,<br />
é mais seguro (ainda que seja de menor produtividade) diversificar do que especializar. 9<br />
Quarta, as dinâmicas urbanas e rurais, industriais e agrárias estão profundamente interligadas,<br />
e esta interligação tem contornos políticos fundamentais. Das zonas rurais, bens alimentares,<br />
matérias-primas, combustíveis (como lenha e carvão) e força de trabalho fluem para as zonas<br />
urbanas. Destas zonas urbanas, recursos financeiros e, ocasionalmente, alguns bens e serviços<br />
industriais fluem para as zonas rurais. Estes fluxos e o seu aproveitamento são ditados pelas dinâmicas<br />
de acumulação (como é que as pessoas produzem, apropriam e utilizam a riqueza produzida)<br />
na economia rural e pela natureza da relação entre o desenvolvimento urbano e rural,<br />
186 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
entre a indústria e a agricultura. Estas relações tendem a ser desiguais e a favorecer padrões de<br />
acumulação de capital que se estabelecem em torno de sectores intermediários, proprietários<br />
distantes, especuladores e só ocasionalmente produtivos.<br />
Muitos países, ao longo dos mais de três séculos de história do capitalismo, seguiram estratégias<br />
de expropriação do excedente do campo nas fases iniciais de acumulação de capital.<br />
Alguns tiveram sucesso na transformação desse excedente expropriado do campo em capital<br />
industrial sólido e dinâmico. Para fazê-lo, eliminaram as classes improdutivas (proprietários distantes,<br />
intermediários, especuladores, burguesia consumista), fizeram profundas reformas na<br />
redistribuição da terra por quem a trabalha, ajudaram a organizar os produtores em empresas<br />
associativas e cooperativas, montaram serviços públicos de extensão, assistência, financiamento,<br />
comercialização, formação, estandardização e controlo de qualidade, informação sobre mercados,<br />
preços e tecnologia. Portanto, a revolução rural potenciou política, social e economicamente<br />
a emergência da revolução industrial; enquanto o surgimento desta última urbanizou o<br />
campo, acabou com as diferenças entre agricultura e indústria, e eliminou (ou reduziu drástica<br />
e rapidamente) os níveis de pobreza tal como nós os conhecemos. Ao fazerem isto, estas economias<br />
criaram novos engenhos de acumulação imensamente mais produtivos e transformaram<br />
as suas estruturas e dinâmicas sociais e económicas. 10<br />
Outros países utilizaram o excedente expropriado do campo de forma improdutiva no mero enriquecimento<br />
pessoal, consumo de luxo, obras de estatuto social ou opções de industrialização pouco<br />
adequadas e viáveis que nem sequer beneficiavam o campo de onde o excedente era extraído. Ao<br />
fazerem isto, foram matando a sua base de acumulação, tornando-a mais pequena, utilizando-a de<br />
forma cada vez mais concentrada em elites improdutivas. Para manter uma burguesia improdutiva,<br />
estas economias mataram a galinha dos ovos de ouro. Nem conseguiram criar indústria e dinâmicas<br />
sólidas de industrialização, nem conseguiram manter a base atrasada, mas rentável, de produção<br />
e reprodução de excedente rural. Tornaram-se, estas economias, profundamente dependentes<br />
de fluxos externos de capitais (públicos ou privados), vulneráveis aos caprichos dos financiadores<br />
externos e, frequentemente, politicamente instáveis por causa da crescente contestação em torno<br />
da apropriação, redistribuição e utilização de excedentes em contracção. 11<br />
Portanto, as dinâmicas de desenvolvimento rural são centrais na transformação das relações de<br />
força e balanços políticos na sociedade como um todo a favor de dinâmicas produtivas de acumulação<br />
e desenvolvimento. Logo, são opções essencialmente políticas que reflectem as dinâmicas<br />
de luta, tensão e unidade entre vários interesses económicos e sociais e suas expressões políticas.<br />
Quinta, no campo reside uma parte fundamental das forças políticas e do conflito político em<br />
Moçambique. É preciso reconhecer que estas forças, embora maioritárias, estão muito desorganizadas,<br />
dispersas e segmentadas, apesar de terem a capacidade de influenciar importantes<br />
decisões políticas (como é demonstrado, por exemplo, pelos resultados eleitorais). Por outro<br />
lado, o poder negocial do capital internacional (doadores, organizações financeiras, investido-<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 187
es e, mesmo, lavadores de dinheiro) e doméstico (comerciantes, industriais, especuladores) é<br />
muito maior e mais organizado e, por isso, muito mais influentes que o dos camponeses. Os trabalhadores<br />
industriais e sindicatos são, do ponto de vista de organização de classe, bastante<br />
fracos e, na maioria dos casos, o seu poder negocial depende da relação estratégica com os assalariados<br />
rurais e pequenos camponeses. A incapacidade de pensar estrategicamente para além<br />
dos interesses limitados de grupo, quer por parte dos camponeses, quer por parte dos assalariados<br />
agrícolas e industriais, fortalece o poder das facções dominantes do capital.<br />
Por exemplo, aquando da batalha sobre a liberalização da exportação da castanha de caju não<br />
processada, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Indústria do Caju aliou-se aos proprietários<br />
das fábricas de processamento para lutar pela manutenção da protecção do acesso privilegiado<br />
das fábricas 12 à castanha não-processada a baixo preço. 13 Esta posição do sindicato<br />
estava associada à sua preocupação pela manutenção dos postos de trabalho e salários dos operários<br />
das fábricas de processamento. No entanto, o sindicato não entendeu quatro pontos fundamentais.<br />
Primeiro, o stautus quo de uma indústria altamente protegida e em crise financeira e<br />
tecnológica seria impossível de manter. Segundo, tanto os camponeses como os comerciantes<br />
e industriais tinham estratégias diferenciadas de negócio e sobrevivência, e somente os operários<br />
das fábricas de processamento eram inteiramente dependentes do processamento de caju;<br />
logo, eram os operários, e não os camponeses, comerciantes e industrias, quem constituía o<br />
grupo mais vulnerável. Terceiro, os industriais estavam a preparar-se para se associarem aos<br />
comerciantes (muitos venderam as suas fábricas a comerciantes) e fazer comércio de castanha<br />
em bruto em vez de lutar por manter a indústria de processamento. Quarto, sem uma estratégia<br />
para a transformação da indústria do caju na sua totalidade, ao longo da cadeia económica<br />
e social de produto e valor, a situação dos operários seria insustentável. Assim, em vez de se associarem<br />
aos camponeses para construírem uma alternativa estratégica para a indústria do caju<br />
ao longo da cadeia económica e social de produto e valor, o sindicato optou pela visão limitada<br />
dos interesses imediatistas de grupo acabando por sofrer um grande revés: as fábricas<br />
foram todas encerradas e cerca de 15 mil postos de trabalho foram perdidos. 14<br />
O fortalecimento do poder de negociação dos camponeses e outros trabalhadores nacionais face<br />
ao capital (nacional e internacional) e a consolidação e desenvolvimento das bases democráticas<br />
económicas, sociais e políticas requerem uma crescente aliança estratégica das forças progressistas<br />
nacionais com o campesinato, bem como o desenvolvimento da organização social e política<br />
no campo. Uma estratégia nacional de desenvolvimento que gravite em torno do desenvolvimento<br />
rural pode também transformar-se numa estratégia de fortalecimento de alianças políticas, sociais<br />
e económicas entre o campesinato e outras camadas trabalhadoras nacionais, e de fortalecimento<br />
da soberania nacional na determinação dos cursos e direcções do nosso próprio desenvolvimento.<br />
Estes argumentos conduzem a cinco implicações fundamentais. Primeiro, desenvolvimento rural<br />
deve ser o centro de gravidade da estratégia nacional de desenvolvimento. Segundo, todas as<br />
188 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
estratégias sectoriais devem ser subordinadas e articuladas com o objectivo central da estratégia<br />
nacional de desenvolvimento, que gravite em torno do desenvolvimento rural. Terceiro, logo, não<br />
faz sentido ter uma estratégia de desenvolvimento rural (uma vez que este objectivo já presida<br />
à estratégia nacional de desenvolvimento). Quarto, também não faz sentido construir organizações<br />
governamentais específicas para o desenvolvimento rural, uma vez que este se transforme<br />
na abordagem nacional de desenvolvimento em vez de numa actividade sectorial (transversal ou<br />
não), do mesmo modo que o Governo não tem, hoje, um ministério ou uma direcção de combate<br />
à pobreza absoluta (dado ser esta, hipoteticamente, a direcção central da estratégia nacional).<br />
Quinto, é muito questionável se outras estratégias sectoriais (por exemplo, de indústria, de<br />
ciência e tecnologia, de desenvolvimento agrário, etc.) fazem sentido por si, pois os seus objectivos<br />
têm que estar subordinados e articulados com a estratégia nacional, cujo centro de gravidade<br />
seria, neste caso, o desenvolvimento rural. Isto não quer dizer que indústria, ciência e<br />
tecnologia, agricultura, transportes, etc., não são vitais. Pelo contrário, desenvolvimento rural<br />
será o produto da conjugação e articulação de todos os sectores. No entanto, a relevância de cada<br />
um será tanto maior quanto mais os seus objectivos forem focados e articulados pela estratégia<br />
nacional, cujo centro de gravidade seria, neste caso, o desenvolvimento rural. Portanto, desenvolvimento<br />
rural oferece um excelente foco em torno do qual se podem coordenar e dirigir o<br />
desenvolvimento de políticas e outras intervenções públicas, o planeamento estratégico de médio<br />
e longo prazos, e a estruturação estratégica da despesa pública.<br />
Neste ponto, vale a pena fazer uma reflexão paralela sobre dois pontos cruciais. Primeiro, o que<br />
é desenvolvimento rural? Será uma actividade localizada geograficamente (nas zonas rurais)?<br />
Será uma actividade limitada a desenvolver alguns elementos, ainda que importantes, da vida<br />
rural, como melhoria da habitação, estradas e facilidades sanitárias? A abordagem desta apresentação<br />
é a seguinte: desenvolvimento rural é definido pela associação do foco e centro de acumulação<br />
da economia com a transformação das relações de produção e das forças produtivas<br />
da grande massa de produtores nacionais, em benefício da acumulação económica e do seu<br />
próprio desenvolvimento como produtores. Portanto, a questão não é geograficamente definida,<br />
mas é definida com uma base social. Igualmente, nesta abordagem, desenvolvimento rural não<br />
é uma actividade sectorial (realizada por uma direcção) complementar a outras e, por isso, focada<br />
naquilo que as outras não fazem (casas melhoradas, sistemas de sanidade, etc.), mas é uma<br />
dinâmica económica e social com base na organização e desenvolvimento da produção e das<br />
relações sociais de produção e forças produtivas que lhe são inerentes.<br />
Segundo, será que colocar desenvolvimento rural como centro de gravidade da estratégia<br />
nacional implica que as restantes questões (pobreza urbana, industrialização, megaprojectos de<br />
minerais, energia, e turismo, etc.) serão abandonados? De modo algum. Por exemplo, como já<br />
foi mencionado, a pobreza urbana está associada às dinâmicas de desenvolvimento rural e à relação<br />
entre o desenvolvimento rural e urbano. Como se verá mais adiante, desenvolvimento<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 189
ural deve ter um foco (nesta comunicação, é sugerido, mais adiante, que esse foco seja a industrialização<br />
rural). Megaprojectos de minerais, energia e turismo situam-se nas zonas rurais<br />
e fazem parte das dinâmicas de desenvolvimento rural, quer pelo seu papel no desenvolvimento<br />
das forças produtivas, quer pelo seu contributo através de ligações fiscais, produtivas e de emprego.<br />
Portanto, a questão central é como é que o conjunto da economia faz funcionar e beneficia<br />
das dinâmicas novas de industrialização rural.<br />
Por exemplo, se o desenvolvimento (industrialização) rural for definido como centro de gravidade<br />
do desenvolvimento nacional, em todos os sectores será este o foco: nas obras públicas<br />
(que tratarão dos sistemas de sanidade e melhoramento das casas e materiais de construção),<br />
na indústria (cujo foco será a industrialização rural – agroindústria, indústria pesqueira, indústrias<br />
complementares de engenharia, etc.) e em todas as outras actividades.<br />
DESENVOLVIMENTO RURAL E INDUSTRIALIZAÇÃO RURAL<br />
Desenvolvimento rural deve ser concebido no quadro da industrialização rural, com base produtiva,<br />
comercial, social e regional alargada e diversificada, viável e competitiva, para eliminar a dependência<br />
externa e desenvolver o País.<br />
Porquê? Há várias razões para isto. Primeira, a industrialização rural pode aumentar os rendimentos<br />
e expandir os mercados rurais, o que a ausência de industrialização não permite fazer.<br />
Segunda, a industrialização permite penetrar em mercados mais dinâmicos e inovadores e conferir<br />
maior solidez e energia ao processo de desenvolvimento rural. Terceira, a industrialização<br />
rural é a oportunidade para transformar radicalmente a qualidade e a articulação de todos os<br />
serviços, infra-estruturas e unidades produtivas rurais. Quarta, a industrialização rural é a oportunidade<br />
de alargamento e diversificação regional e social da base produtiva e comercial, das<br />
oportunidades futuras de desenvolvimento e dos padrões de distribuição do rendimento. Quinta,<br />
a industrialização rural é o vector da urbanização rural. Sexta, industrialização rural pode ser um<br />
vector de unidade da economia nacional fortalecendo as suas ligações internas. 15<br />
Há, no entanto, muitos conceitos diferentes de industrialização rural: uns pensam em milhares,<br />
senão milhões, de microprojectos espalhados pelo País, outros pensam num grupo pequeno<br />
de projectos de grande dimensão e grande impacto, concentrados em alguns produtos (açúcar,<br />
biocombustíveis, etc.) a gerarem ligações a montante e a jusante. 16 É importante ter uma visão<br />
nacional de industrialização rural, mas como é que ela pode ser construída?<br />
A primeira questão de fundo é: qual é o contexto produtivo e qual é o objectivo social do desenvolvimento<br />
rural? Respostas clássicas e simplistas seriam: “aumentar a produtividade do trabalho”,<br />
“aumentar o rendimento agrícola”, “melhorar a vida das populações rurais”, “eliminar a<br />
pobreza absoluta”, etc. Mas a questão de fundo permanece: para fazer, ou atingir, o quê?<br />
190 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
Para construir uma agroindústria comercial de base ampla, alargada e diversificada? Construir<br />
“ilhas” de alta produtividade em torno de algumas culturas de alto valor comercial tradicionais ou<br />
que estejam “na moda” no momento (açúcar, algodão, tabaco, biocombustíveis, etc.)? Melhorar<br />
os rendimentos de uma produção essencialmente orientada para a auto-suficiência alimentar<br />
local? Uma combinação destas (e outras) opções, de acordo com as especificidades sociais, econó -<br />
micas e ecológicas de cada região e de cada momento?<br />
Deverá a agroindústria estar orientada para o desenvolvimento de uma burguesia nacional<br />
aliada às grandes cadeias de produto e valor internacionais, ou para a geração de profundas<br />
ligações económicas nacionais e para o desenvolvimento amplo das forças produtivas rurais no<br />
quadro de uma crescente socialização de processos de produção e circulação de mercadorias?<br />
Qualquer uma destas opções é possível. Mas os problemas (logísticos, de organização produtiva, de<br />
organização social, etc.) levantados por cada uma delas são substancialmente diferentes. Por isso, a<br />
pergunta “para atingir o quê” não é nem retórica nem semântica. Tem implicações muito grandes.<br />
Uma estratégia que seja consistente simultaneamente com a redução da pobreza e alargamento<br />
das opções e oportunidades de desenvolvimento para Moçambique requererá um processo de<br />
industrialização de base ampla, diversificada e articulada, que combine a agroindústria comercial,<br />
as indústrias mineiras e energéticas, pesqueiras, florestais e o turismo. A estas indústrias juntam-se<br />
as que lhes prestam serviços, desenvolvem tecnologia e fornecem insumos e capacidades<br />
de processamento e conservação: a metalomecânica, a química, a de construção e de materiais<br />
de construção, os serviços comerciais, tecnológicos, de assistência técnica, transportes e financeiros.<br />
As grandes questões relacionam-se com a diversificação das opções e oportunidades; a<br />
sustentabilidade ambiental e intergeracional; a articulação dos mercados, das actividades e das<br />
capacidades ao longo de cadeias de produção e valor e no contexto da formação de clusters (ou<br />
concentrações) produtivas; o reconhecimento e a resolução dos conflitos e tensões em torno do<br />
acesso aos recursos e das opções alternativas (por vezes mutuamente exclusivas) de desenvolvimento<br />
em cada local; a articulação e tensão entre a grande e a pequena e média empresa; a formação<br />
e desenvolvimento do proletariado rural; e o papel do Estado na definição e articulação<br />
de estratégias, e na mobilização e afectação de recursos e capacidades.<br />
A uma tal base podem juntar-se elementos de oportunidade (quiçá algumas “ilhas” de alta produtividade<br />
e procura no mercado externo como biocombustíveis e minerais, que possam oferecer experiência,<br />
reputação e um balanço entre procura e oferta de moeda externa e de receita fiscal) e<br />
elementos de necessidade imediata, pelo menos na fase de transição (auto-suficiência alimentar local).<br />
Portanto, a estratégia pode conter três (ou mais) elementos interligados (nota: interligados é a palavra-chave):<br />
(i) uma espinha dorsal focada na construção de uma base de industrialização diversificada,<br />
interligada e competitiva, (ii) acções específicas focadas na melhoria da economia familiar<br />
e (iii) projectos de grande dimensão orientados para produzir receita fiscal, moeda externa e ligações<br />
produtivas que permitam ajudar a sustentar outros componentes da estratégia e a gerar opor-<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 191
tunidades de diversificação da base produtiva e do emprego. Mas o foco, base, fundamento e prioridade,<br />
têm que estar bem claros, tanto no papel, como na prática, atitude e metodologia analítica.<br />
A possibilidade de interligar diferentes elementos dentro de uma estratégia não implica que estes<br />
elementos sejam facilmente interligáveis ou naturalmente complementares. Podem estar em conflito,<br />
pelo menos até um certo ponto. Por exemplo, a multiplicação de microindústrias familiares<br />
pode impedir o desenvolvimento da divisão de trabalho, a especialização produtiva, o acesso<br />
a força de trabalho e a geração e libertação de excedente necessário para a construção de uma<br />
agroindústria média e competitiva virada para mercados dinâmicos. Do mesmo modo, a construção<br />
de uma tal agroindústria pode arruinar microindústrias familiares. As “ilhas de produtividade”<br />
podem competir por força de trabalho e outros recursos (terra, água, etc.) com a espinha<br />
dorsal da estratégia, dificultando o seu desenvolvimento. Estas hipóteses de conflito não são<br />
construções teóricas. O conflito no acesso a força de trabalho, terra, água e outros recursos entre<br />
as diferentes formas de organização social de produção no tempo colonial (plantações, machambas<br />
dos colonos e machambas dos camponeses moçambicanos) e no período pós-independência<br />
(entre machambas estatais, cooperativas, machambas familiares e outras formas de<br />
emprego da força de trabalho, entre agricultura e indústria mineira, etc.) estão bem documentados<br />
em muitos estudos. Portanto, as interligações têm de ser construídas. Nem podem ser assumidas,<br />
nem os problemas podem ser subestimados ou “esquecidos” como se não existissem.<br />
DILEMAS DA INDUSTRIALIZAÇÃO RURAL<br />
Embora a ideia de industrialização rural no contexto de Moçambique possa ser atraente e inspirar<br />
romantismo económico, é preciso não esquecer quão dura a realidade é. Por um lado, as<br />
infra-estruturas e serviços estão concentrados nas zonas urbanas e no Sul de Moçambique.<br />
A cidade de Maputo ainda concentra cerca de metade da rede comercial retalhista e dois terços<br />
da rede grossista, 40% da rede de distribuição de combustíveis e assistência técnica auto,<br />
80% das empresas de serviços de transporte, comunicações, construção, consultoria e informação.<br />
Comparativamente, nas províncias de Nampula e Zambézia, que abrangem 22% do território<br />
nacional e 41% da população do País, e que são consideradas as de maior potencial de<br />
desenvolvimento económico, localizam-se apenas 21% da rede comercial retalhista e 10% da<br />
grossista, 5% das empresas de serviços, 16% da rede de distribuição de combustíveis e assistência<br />
técnica auto, 21% das estradas nacionais revestidas e 33% das estradas nacionais não revestidas.<br />
Somente metade dos distritos rurais tem redes de extensão rural. 18<br />
Instituições financeiras formais operam em apenas 40% dos distritos rurais e urbanos do País.<br />
A cidade e província de Maputo concentram 52% dos balcões de bancos, 55% das ATM, 72%<br />
dos POS, 55% dos microbancos, 64% das instituições de microcrédito e 84% das cooperativas<br />
192 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
de crédito. Maputo (cidade e província), Gaza e Inhambane concentram 64% dos balcões de<br />
bancos e 74% das instituições de microcrédito. Metade do total de distritos com instituições<br />
bancárias situa-se nestas três províncias. Em contrapartida, na Zambézia e em Nampula apenas<br />
um terço dos distritos tem instituições bancárias. 19<br />
Embora as instituições de ensino superior se estejam a multiplicar por todo o País, com questionável<br />
qualidade 20 , o acesso a formação técnico-profissional de qualidade a todos os níveis continua<br />
muito limitada 21 e a qualidade geral da educação nas zonas rurais tende a ser pior que nas urbanas. 22<br />
Por outro lado, como foi mencionado no capítulo anterior 23 , o carácter extractivo das dinâmicas<br />
e estruturas de produção, investimento privado e acumulação tem vindo a consolidar-se ao<br />
mesmo tempo que a base produtiva e comercial se tem tornado mais limitada e focada em<br />
actividades primárias e sem ou com pouco processamento.<br />
Maputo recebeu o grosso do investimento privado aprovado total em cada um dos últimos<br />
19 anos, com excepção de 2002 e 2007, em que Nampula dominou por causa das areias pesadas<br />
e outros projectos minerais ou associados. As agroindústrias e outras actividades agrárias<br />
receberam apenas 13% do investimento privado total aprovado entre 1990 e 2008, e cerca de<br />
80% deste investimento foi concentrado no açúcar, tabaco, algodão e exploração madeireira. 24<br />
Os gráficos que se seguem mostram que as exportações agroindustriais e agrícolas diminuíram<br />
substancialmente como percentagem das exportações totais nacionais (gráfico 1), embora tendam<br />
a recuperar nos últimos anos; que as exportações não processadas de madeiras, tabaco, caju<br />
e algodão fibra totalizam dois terços das exportações agroindustriais e agrícolas; que as exportações<br />
de caju em bruto tendem a substituir as de caju processado; e que somente as exportações<br />
de açúcar, algodão fibra e tabaco tendem a crescer (gráficos 2 e 3).<br />
GRÁFICO 1 PESO DAS EXPORTAÇÕES AGROINDUSTRIAIS E AGRÍCOLAS NAS EXPORTAÇÕES TOTAIS DE BENS (EM %)<br />
35<br />
30<br />
25<br />
20<br />
15<br />
10<br />
5<br />
0<br />
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos) e Banco de Moçambique (balança de pagamentos)<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010<br />
193
GRÁFICO 2 PRINCIPAIS EXPORTAÇÕES AGROINDUSTRIAIS E AGRÍCOLAS (US$ Milhares)<br />
140.000<br />
130.000<br />
120.000<br />
110.000<br />
100.000<br />
90.000<br />
80.000<br />
70.000<br />
60.000<br />
50.000<br />
40.000<br />
30.000<br />
20.000<br />
10.000<br />
0<br />
1990<br />
1991<br />
1992<br />
1993<br />
1994<br />
1995<br />
1996<br />
1997<br />
1998<br />
1999<br />
2000<br />
2001<br />
2002<br />
2003<br />
2004<br />
2005<br />
2006<br />
2007<br />
2008<br />
tabaco<br />
madeiras<br />
açúcar<br />
castanha de caju<br />
algodão fibra<br />
amêndoa de caju<br />
FONTES INE (vários anuários estatísticos) e Banco de Moçambique (balança de pagamentos)<br />
GRÁFICO 3 ESTRUTURA PERCENTUAL DAS EXPORTAÇÕES DE PRODUTOS AGROINDUSTRIAIS E AGRÍCOLAS<br />
100%<br />
90%<br />
80%<br />
Chá<br />
Citrinos<br />
Copra<br />
Açúcar<br />
Amêndoa de Caju<br />
(não processada)<br />
70%<br />
60%<br />
50%<br />
Amêndoa de Caju<br />
(processada)<br />
Madeiras<br />
Tabaco<br />
40%<br />
30%<br />
20%<br />
10%<br />
Algodão Fibra<br />
0%<br />
1990<br />
1991<br />
1992<br />
1993<br />
1994<br />
1995<br />
1996<br />
1997<br />
1998<br />
1999<br />
2000<br />
2001<br />
2002<br />
2003<br />
2004<br />
2005<br />
2006<br />
2007<br />
2008<br />
FONTE INE (vários anuários estatísticos) e Banco de Moçambique (dados da balança de pagamentos)<br />
Portanto, se a industrialização rural parece ser uma resposta para o desafio de diversificação e<br />
articulação do desenvolvimento nacional, esta opção nem é fácil nem rápida. Mas é claro que<br />
requer e poderá proporcionar profundas mudanças políticas, sociais e de tendência económica.<br />
194<br />
Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
INDUSTRIALIZAÇÃO RURAL E CRITÉRIOS SOCIOECONÓMICOS<br />
DE ANÁLISE<br />
Uma estratégia desta natureza requer, entre outros aspectos, critérios socioeconómicos rigorosos<br />
para fazer escolhas de prioridades, análise de decisões, monitoria e avaliação de impacto<br />
e contínuo desenvolvimento das abordagens, estratégias e políticas.<br />
Por que é necessário escolher prioridades? Primeiro, para articular as acções do Estado a todos<br />
os níveis. Segundo, para estabelecer os sistemas públicos de apoio e incentivo ao desenvolvimento<br />
da produção e circulação de mercadorias. Terceiro, para desenvolver a infra-estrutura,<br />
as capacidades institucionais e humanas necessárias e outro investimento complementar.<br />
Quarto, para dar sinais claros aos outros agentes económicos sobre o que é mais importante e<br />
para onde irão os recursos públicos. Quinto, para coordenar investimento competitivo em função<br />
de prioridades e objectivos socioeconómicos concretos. Sexto, para avaliar os resultados das<br />
políticas públicas, a sua adequação aos objectivos, e a adequação dos objectivos das políticas<br />
públicas aos problemas do desenvolvimento.<br />
O que deve conter uma matriz analítica para fazer tais escolhas de prioridades? Há uma série<br />
de questões inter-relacionadas que devem ser analisadas (nenhuma delas, per se, e isoladamente<br />
das outras, é suficiente como factor de decisão, mas todas são necessárias). 25<br />
Mercado: há ou não? A que preço? É um mercado dinâmico e em expansão e com potencial<br />
de inovação? Ou é um mercado em crise, ou de curto prazo, ou com excessiva competição, ou<br />
excessivamente protegido, cujas elasticidades preço e rendimento da procura são tão baixas<br />
que a economia perde produzindo esses produtos para esses mercados? É um mercado muito<br />
variável e volátil, ou um em que é possível estabelecer e estabilizar preços e quantidades com<br />
“mercados futuros”, “acordos de longo prazo”, etc.?<br />
É um mercado muito exigente em qualidade e condições de certificação que estão muito além<br />
das capacidades nacionais (em custos e em capacidades tecnológicas e institucionais) ou é um<br />
mercado acessível? Qual é a logística requerida para esse mercado (do armazenamento ao transporte,<br />
do controlo da qualidade e fitossanitário à certificação, do acesso a factores de produção<br />
à assistência produtiva, da informação à formação, etc.) e podemos ou não ter acesso a tais<br />
condições? Há produtos substitutos em desenvolvimento e expansão que podem reduzir as<br />
oportunidades de mercado e o ciclo de vida do produto que queremos produzir, ou o nosso produto<br />
é seguro e o seu mercado oferece amplo escopo para inovação e expansão?<br />
A questão de fundo é que sem pensar no mercado e nas suas condições é impossível pensar na<br />
tecnologia, na organização produtiva, nos custos, na viabilidade, na competitividade e nas possibilidades<br />
de sobrevivência e sustentabilidade da actividade a promover. Se produzir pouco pode<br />
ser mau, produzir muito mas sem mercados e sem orientação para mercados concretos com<br />
exigências específicas é uma catástrofe. Os mercados consumidores não são automaticamente<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 195
criados pela existência de produção, nem a existência de carências sistemática significa que existem<br />
mercados efectivos. Empresas com sucesso económico são as que começam por definir o objectivo<br />
comercial da sua produção e, a partir daí, reconstroem a cadeia de produção até à origem<br />
(o capital inicial e seu custo, a tecnologia, o tipo de organização produtiva e as matérias-primas).<br />
Viabilidade, sustentabilidade e competitividade: o que é necessário fazer para satisfazer as<br />
condições mínimas necessárias para aproveitar (e até criar) oportunidades de mercado, de forma<br />
viável, sustentável e competitiva? Qual é a escala mínima de produção? Será o custo máximo<br />
de produção consistente com as condições competitivas? A produtividade e rendimentos mínimos<br />
são consistentes com os níveis de competitividade requeridos? Quais são os níveis de qualidade<br />
requeridos e a capacidade de a certificar e de a melhorar e manter?<br />
Quais são as exigências de sustentabilidade ambiental (igualmente relacionada com o mercado,<br />
dado que, por exemplo, os produtos orgânicos e a produção “verde” do ponto de vista ambiental<br />
têm prémios de mercado nos preços)? Que tipo de tecnologia é consistente com a escala, a produtividade,<br />
a rentabilidade, a qualidade, as condições ambientais e as capacidades financeiras,<br />
tecnológicas, institucionais e socioculturais? A capacidade institucional (por exemplo, de certificação,<br />
de formação profissional, de informação, de investigação e inovação, de financiamento, de<br />
negociação sobre mercados/preços de longo prazo, etc.) é adequada? A logística mínima (por<br />
exemplo, de transporte e armazenamento com qualidade, segurança e rapidez e a baixo custo; de<br />
comunicações; de aprovisionamento de matérias-primas, materiais auxiliares, combustíveis e energia,<br />
água, equipamentos e peças sobressalentes, de manutenção, etc.) existe e é competitiva?<br />
Poucas, ou nenhumas, economias reúnem, à partida, todas as condições de viabilidade, sustentabilidade<br />
e competitividade. Estas condições têm de ser criadas. A questão é por onde começar e<br />
como justificar o custo social de fazer investimento e, até, de aceitar perdas de curto e médio<br />
prazo para gerar capacidade produtiva e poder competitivo e de mercado de médio e longo prazo.<br />
À partida, parece óbvio que o melhor é começar pelo mais simples e mais acessível. De facto,<br />
esse deve ser o ponto de partida da investigação. Mas quais são as condições de mercado do<br />
“mais simples e mais acessível”? Não será que esse “mais simples e acessível” é apenas a reprodução<br />
do que já existe? E onde é que leva o percurso de apenas fazer o “mais simples e acessível”<br />
que já existe? O “mais simples e acessível” tem a grande vantagem de consistir geralmente<br />
em actividades e produtos conhecidos, para os quais já há capacidades, infra-estruturas, logística<br />
e alguma experiência. Mas tem a grande desvantagem de não permitir fazer os saltos necessários<br />
para restruturar a economia. A necessidade de restruturar a economia é uma exigência<br />
do desenvolvimento de economias como a de Moçambique. Por isso, esta economia não se<br />
pode limitar ao “mais simples e acessível”.<br />
Portanto, é preciso também investigar outras hipóteses, tanto ligadas à inovação no quadro do que<br />
é mais fácil e acessível (por exemplo, novos produtos alimentares derivados daqueles que já são<br />
produzidos) como, também, até completamente diferentes daquilo que se tem feito. Isto requer<br />
196 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
um certo rigor na análise de custos e benefícios sociais de investir recursos e capacidades sociais<br />
em tais actividades inovadoras ou totalmente novas. Para desenvolver as capacidades requeridas<br />
para a inovação é necessário combinar a coordenação do investimento complementar (por exemplo,<br />
entre estradas, transportes, capacidade de armazenagem e investimento produtivo directo na<br />
agricultura e indústrias relacionadas) e do investimento competitivo (por exemplo, para evitar<br />
excesso de concentração e de competição, de modo a garantir que as economias de escala sejam<br />
alcançadas e as capacidades das empresas sejam usadas para desenvolvimento produtivo em vez<br />
de para capturar rendas e financiar guerras de preços) com o desenvolvimento das capacidades<br />
científicas, tecnológicas, logísticas, institucionais e de informação, formação e estímulo ao trabalho<br />
criativo. Isto só pode ser feito se houver uma visão e uma análise económica de longo prazo<br />
(por exemplo, mercados e preços de longo prazo, conhecimento sobre a evolução da tecnologia<br />
e estratégias de potenciais concorrentes, produtos substitutos e potenciais ciclos de vida dos produtos,<br />
ligações potenciais e novas actividades e capacidades que podem ser criadas, etc.).<br />
Uma forma de iniciar a exploração, aprendizagem e penetração em novas áreas é integrar<br />
cadeias de produto e valor internacionais (regionais, continentais ou mais globais). Mas isto só<br />
traz vantagens se antes de integrar tais cadeias se definir onde se quer chegar, o que se tem de<br />
aprender e como é que a cadeia de produto e valor pode ajudar no processo de aprendizagem,<br />
construção de reputação e transição para níveis mais avançados de produção e processamento.<br />
Outra forma de explorar novas áreas é investigar o que está sendo feito em economias vizinhas<br />
(ou mais distantes) mais avançadas (tipo e áreas de investimento, evolução da tecnologia, mercados<br />
potenciais, padrões de competitividade, quem faz investimento, onde e porquê, etc.),<br />
identificar claramente o que se quer fazer e ir à procura dos investidores (nacionais e externos,<br />
públicos e privados) que reúnam as condições e tenham interesse para desenvolver essas áreas.<br />
A exploração de novas áreas de actividade levanta quatro grandes desafios: alto risco de insucesso;<br />
dificuldade de acesso a mercados; imperativo de rápida aprendizagem; e, em relação<br />
com os pontos anteriores, dificuldade de acesso a finanças num sistema comercial.<br />
Como agir para encorajar a penetração em novas áreas? Incentivos fiscais de pouco valem e não<br />
podem ser a base do sistema – não respondem aos desafios industriais mencionados acima, só<br />
começam a fazer sentir os seus efeitos quando as empresas produzem matéria colectável (o<br />
grande problema é chegar a esse ponto), enfraquecem a capacidade financeira e institucional<br />
do Estado e reduzem o impacto social positivo desses projectos. A melhor opção é atacar os<br />
problemas directamente. Algumas das opções fundamentais são, por exemplo: (i) o estabelecimento<br />
de seguros de produção e comércio; (ii) o desenvolvimento da capacidade institucional<br />
para promover rápida aprendizagem e garantir inovação tecnológica (de produtos e<br />
processos), qualidade e certificação da produção a custo competitivo; (iii) a introdução de subsídios<br />
(ou mesmo incentivos fiscais) relacionados com a adopção de nova tecnologia adequada<br />
para o problema em causa, com a formação profissional da força de trabalho e com o sucesso<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 197
na penetração de novos mercados; (iv) a negociação de contratos comerciais de longo prazo;<br />
(v) a ajuda ao desenvolvimento da cooperação entre empresas (que acelera aprendizagem e<br />
construção de novas capacidades e capacidades complementares e reduz os seus custos), formação<br />
de clusters e cadeias de produto e valor; (vi) a facilitação do acesso e utilização de informação<br />
(sobre mercados, tecnologias, fontes de financiamento, potenciais parcerias, etc.); (vii) a articulação<br />
de programas de investimento público com os imperativos de desenvolvimento da base<br />
produtiva privada (por exemplo, ligar a estrada, a energia, a água, a educação e formação profissional,<br />
a saúde e o sistema de armazenamento e transportes com um cluster agroindustrial);<br />
(viii) a ajuda para encontrar investidores com capacidade e excelente reputação na área e<br />
envolvê-los (quer como investidores, quer como fonte de conhecimentos e experiência).<br />
Impacto socioeconómico na economia como um todo, que deve ser ligado com cinco indicadores<br />
fundamentais: (i) impacto na balança de pagamentos (exportação, substituição de importações,<br />
balanço líquido de fluxos de serviços e de capitais); (ii) impacto nas finanças públicas e, por<br />
essa via, no balanço orçamental e nas capacidades financeiras, institucionais e humanas do Estado;<br />
(iii) impacto nos níveis de poupança e investimento nacional; (iv) impacto tecnológico e sinergias<br />
tecnológicas e produtivas; e (v) impacto no emprego, condições de trabalho e nível de vida.<br />
Estes impactos podem não ocorrer todos ao mesmo tempo. Por vezes é necessário sacrificar<br />
um deles a curto e médio prazo para gerar os outros a médio e longo prazo. Por exemplo, subsídios<br />
ou investimentos públicos podem ser requeridos para promover novas tecnologias e<br />
sinergias tecnológicas. Isto significa que a curto e médio prazo poderá haver um impacto negativo<br />
no balanço orçamental, o qual não será um problema se for controlado e se gerar novas<br />
capacidades produtivas competitivas que gerem novas dinâmicas fiscais a médio e longo prazo.<br />
A questão central é, em cada caso, identificar a melhor e mais realista combinação de factores<br />
para a economia, não subestimando, no entanto, a sustentabilidade macroeconómica (sobretudo<br />
em termos da balança de pagamentos e fiscal) das opções de desenvolvimento. 26<br />
É necessário tomar em conta que estes impactos estão interligados. Por exemplo, se o impacto<br />
do projecto for negativo no que diz respeito a receitas fiscais e mais ou menos neutro no que<br />
diz respeito a sinergias produtivas, também não será positivo no que diz respeito à balança de<br />
pagamentos. O impacto na balança comercial pode parecer bom, mas só o será efectivamente<br />
se a economia de facto retiver os ganhos relacionados com esse aparentemente bom impacto<br />
na balança comercial. Para que a economia de facto e efectivamente retenha uma parte suficientemente<br />
grande dos ganhos que são reflectidos contabilisticamente na balança comercial,<br />
é preciso que o projecto desenvolva ligações profundas com a economia – por exemplo, ligações<br />
fiscais e sinergias produtivas e tecnológicas. 27<br />
Não basta que um impacto positivo seja aparente para justificar investimento social. Por exemplo,<br />
não basta pensar que como os biocombustíveis ou tabaco contribuem para a balança comercial<br />
logo merecem acesso a incentivos fiscais. Estes “incentivos”, cujo impacto nos projectos<br />
198 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
tende a ser muito pequeno (e mais pequeno quanto maior for o projecto), reduzem de facto o<br />
contributo do projecto para a economia pois reduzem a retenção efectiva dos ganhos do projecto<br />
pela economia nacional.<br />
Portanto, é preciso balancear o custo dos incentivos e os ganhos efectivos para a economia,<br />
de modo a gerar uma análise de custo/benefício social que justifique o investimento público<br />
(incluindo incentivos, que são formas de investimento público) a curto, médio e longo prazo.<br />
Uma tal matriz permite avaliar as diferentes opções concorrentes e ajuda a tomar decisões de<br />
política, estratégia e investimento público com mais rigor e soberania. Mas esta não é uma<br />
matriz defensiva, que sirva apenas para o Governo responder defensivamente a propostas de<br />
investimento. É uma matriz ofensiva que ajuda o Governo a fazer escolhas de estratégia e a<br />
construir opções, oportunidades e capacidades, e a ir à busca das capacidades necessárias para<br />
as materializar.<br />
LIGAÇÕES INTERSECTORIAIS E INDUSTRIALIZAÇÃO RURAL<br />
Industrialização rural é a construção de ligações intersectoriais e de capacidades produtivas<br />
complexas e multifacetadas, o que tem implicações tecnológicas, institucionais e socioeconómicas<br />
e afecta as relações entre grupos e agentes económicos e sociais.<br />
Por exemplo, o aumento da produtividade e dos rendimentos agrícolas requer capacidades<br />
produtivas novas. Estas capacidades não são apenas relacionadas com sementes, adubos e equipamentos.<br />
São capacidades muito mais complexas:<br />
Organização social e técnica da produção que permita a absorção da tecnologia, adaptação e<br />
inovação, acesso a finanças, a escala mínima de produção que justifique os custos tecnológicos,<br />
que minimize custos de transacção e de aprendizagem. Como construir a organização de escala<br />
que seja consistente com a eficácia produtiva e com a melhoria das condições de trabalho<br />
e de vida do povo? Que tipos de empresas são viáveis e se aplicam a diferentes condições sociais,<br />
culturais, tecnológicas e económicas, e são consistentes com a eficácia económica e social?<br />
(Cooperativas ou associativas? Empresas capitalistas? Empresas com alto nível de<br />
integração vertical e controlo de recursos, como as concessões e as açucareiras? Pequenas e<br />
médias empresas especializadas em partes específicas da cadeia de produção, isto é, sem integração<br />
vertical mas unificadas por via de associações industriais?)<br />
Quais são as condições de trabalho e de organização e gestão consistentes com os objectivos<br />
sociais e económicos da produção? Como lidar com as concessões e com as empresas que funcionam<br />
em modelos oligopolistas (alto nível de integração vertical, mercados coordenados,<br />
etc.)? Como lidar com a articulação das cadeias de produção e valor quando não existe inte-<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 199
gração vertical (isto é, como articular as cadeias por outras vias externas às empresas, como, por<br />
exemplo, clusters, associações industriais, etc.)? Quais são as possibilidades e desafios políticos,<br />
económicos e sociais para a transformação da base produtiva existente, para o enquadramento<br />
das forças produtivas em novos contextos de produção e comércio e para a transferência de forças<br />
produtivas da agricultura para a indústria e serviços?<br />
Logística: todos os processos comerciais de produção requerem uma eficaz organização da logística,<br />
nomeadamente: aprovisionamento, transporte, armazenagem, comercialização, manutenção,<br />
etc. Máquinas requerem operadores, peças e sobressalentes, combustíveis, assistência técnica,<br />
regras de utilização e manutenção. Insumos requerem sistemas de produção, aprovisionamento, distribuição,<br />
assistência à utilização, regras de utilização, controlo. A produção tem de ser escoada, vendida,<br />
armazenada, transportada, baldeada, até ao consumidor final, com segurança, qualidade e<br />
rapidez. Produtores e consumidores necessitam de logística financeira. A informação sobre o mercado<br />
e a logística dos insumos, finanças e dos produtos finais tem de estar sistematicamente acessível<br />
a baixo custo. A eficácia produtiva de uma empresa depende não só da sua eficácia interna<br />
(como é que ela transforma os meios de produção em produtos), mas da eficácia da logística (como<br />
é que tem acesso aos meios de produção, como é que mantém a sua capacidade produtiva, e como<br />
é que tem acesso aos mercados). Grandes avanços na produção não fazem sentido nem são alcançáveis<br />
sem grandes avanços na logística.<br />
Ciência e tecnologia: nomeadamente no que diz respeita à investigação de processos produtivos,<br />
de novos produtos e novos métodos; desenvolvimento de capacidade e sistemas de informação<br />
para escolher, adoptar, dominar, adaptar e inovar produtos, sistemas e métodos de<br />
produção; à divulgação sistemática e ampla das melhores práticas e experiências; à generalização<br />
de sistemas de extensão, investigação e consultoria locais, acessíveis aos produtores, de alta<br />
qualidade, adaptabilidade e adequados para os contextos sociais, culturais, ecológicos e económicos<br />
concretos, e a baixo custo; formação profissional ampla (não só sobre tecnologias de produção,<br />
mas também sobre mercados, preços, decisões de investimento, decisões de produção,<br />
gestão, organização da produção, organização e motivação dos trabalhadores, meio ambiente,<br />
investigação, etc.); certificação e licenciamento; celeridade na introdução de novas variedades<br />
genéticas quando tal seja benéfico, etc. A ciência e tecnologia têm de ligar os laboratórios<br />
com as empresas, mercados e as condições produtivas concretas. Do ponto de vista do desenvolvimento<br />
agrário, não basta ter boas sementes ou saber muito sobre a génese de uma determinada<br />
planta, se isto não tiver enquadramento comercial e empresarial concreto.<br />
Finanças: Todos os produtores se queixam do sistema bancário e de o acesso e o custo do crédito<br />
serem fortes impedimentos ao desenvolvimento, mas o problema permanece sem ser se-<br />
200 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
iamente tocado. A questão que se coloca é simples: se o objectivo é produzir em bases comerciais<br />
competitivas e viáveis, é necessário resolver o problema das finanças.<br />
As finanças são geralmente vistas apenas por um único lado, nomeadamente o do acesso a crédito<br />
da banca privada. Vale a pena olhar para a complexidade das finanças para o desenvolvimento.<br />
Primeiro, quase tão importante como o crédito é o acesso a seguros. Se os seguros reduzem o<br />
risco, então podem aumentar a disponibilidade do crédito a mais baixo custo e a motivação dos<br />
produtores para investirem e inovarem.<br />
Segundo, as finanças podem ser públicas e privadas, resultante de empréstimos ou de poupança<br />
própria. Investimento público na infra-estrutura, na logística, em sistemas de informação e na<br />
base de ciência e tecnologia, articulado em torno de objectivos produtivos concretos e localizados<br />
territorialmente, é uma forma privilegiada do apoio à redução do risco e da incerteza, do<br />
aumento da eficácia produtiva, da redução dos custos do investimento privado. Isto é, o investimento<br />
do Estado em actividades complementares e básicas pode ser tão crucial como o acesso<br />
a crédito directo barato.<br />
Além disto, o Estado pode ainda coordenar investimento competitivo para evitar excesso de<br />
competição, subutilização de capacidade produtiva e desperdício de recursos e para promover<br />
economias de escala e reduzir custos de transacção e de aprendizagem. Além de promover eficácia<br />
produtiva, este tipo de actividade reduz custos e perdas para investidores privados. O Estado<br />
pode desenvolver sistemas de subsídios e outros de apoio financeiro directo aos produtores,<br />
mas inteiramente relacionado com objectivos económicos claramente identificados e<br />
mensuráveis, tais como subsídios para adopção de novas tecnologias, introdução de novas<br />
variedades, formação, penetração em novos mercados, etc. Este sistema funciona melhor<br />
quando: (i) é parte de uma estratégia clara com objectivos concretos (por exemplo, produzir<br />
o produto X, nas condições requeridas para o mercado Z, em quantidades mínimas N, ao<br />
preço P, para gerar rendimento Y para a economia nacional); e (ii) é ligado com o desempenho<br />
do beneficiário (se o beneficiário do sistema não atinge os níveis de performance (desempenho)<br />
definidos, o apoio deve ser-lhe retirado e o tal agente deve recompensar o Estado numa<br />
medida razoável). Isto é, o Estado pode apoiar mas introduzindo um sistema de disciplina<br />
económica.<br />
O Estado pode tornar-se parceiro financeiro importante de agências de financiamento de investimento<br />
e de operações comerciais, ajudando assim a que a actividade bancária privada se<br />
oriente para a esfera produtiva agroindustrial.<br />
A intervenção do Estado por via de sistemas de seguros, coordenação e realização de investimento<br />
complementar, coordenação de investimento competitivo, etc., reduz riscos e incerteza<br />
e aumenta as probabilidades de sucesso, o que torna a actividade agroindustrial atractiva para<br />
o financiamento da banca privada a mais baixo custo.<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 201
Para que o Estado possa empenhar-se nestas actividades necessita de ter fundos. Estes podem<br />
provir de várias fontes: receitas fiscais e não-fiscais e assistência externa.<br />
Para aumentar muito significativamente as receitas fiscais a curto e médio prazo não basta melhorar<br />
a administração fiscal. É necessário expandir a base produtiva e cobrar as receitas nos<br />
grandes geradores potenciais de receita, os grandes projectos de investimento que beneficiam<br />
de colossais facilidades fiscais. As receitas potenciais dos mega e outros grandes projectos<br />
podem não só aumentar a capacidade financeira do Estado, mas também ajudar a reduzir a<br />
carga fiscal sobre as outras empresas. Portanto, é necessário renegociar os acordos com os mega<br />
e outros grandes projectos no que respeita aos incentivos fiscais, e ser-se muito cauteloso na atribuição<br />
de novos incentivos.<br />
Por outro lado, uma despesa pública focada na ajuda à organização, desenvolvimento e expansão<br />
de uma base produtiva alargada e diversificada contribui para aumentar a matéria fiscal<br />
colectável. Portanto, a dinâmica e a estrutura da despesa pública pode ajudar a desenvolver as<br />
capacidades de financiamento dessa mesma despesa, endogeneizando a mobilização de recursos<br />
para o financiamento do desenvolvimento. 28<br />
O Estado recebe cerca de 1,5 biliões de USD por ano em assistência externa. Se uma parte<br />
substancial desta assistência for canalizada para apoio directo ao desenvolvimento da capacidade<br />
produtiva no quadro de uma estratégia de agroindustrialização (em áreas como investimento<br />
complementar, logística, criação de sistemas de formação e de informação,<br />
desenvolvimento da base científica e tecnológica, parcerias financeiras com a banca comercial,<br />
etc.), em alguns anos Moçambique poderá construir competências produtivas concretas e reduzirá<br />
a sua dependência estrutural em relação à ajuda externa.<br />
Na África Austral existem instituições de financiamento agroindustrial, as quais podem ser melhor<br />
exploradas. A União Europeia, o Brasil, a Índia e a China também dispõem de instituições deste<br />
tipo que podem ser exploradas no âmbito de negociações comerciais e de investimento estrangeiro.<br />
Não são caminhos fáceis, mas são caminhos possíveis. Mas antes é preciso ter informação<br />
sobre estes mecanismos e definir as melhores vias para os utilizar. Pode o Banco de<br />
Moçambique fazer uma investigação aturada destas possibilidades?<br />
Portanto, a intervenção do Estado pode, de facto, e efectivamente, provocar o crowding in do<br />
investimento privado (isto é, aumentar as oportunidades, as disponibilidades e a motivação<br />
para investimento privado a custo mais baixo e com uma visão mais estrutural e de mais longo<br />
prazo).<br />
Também é preciso fazer alguma coisa com a actividade bancária privada e comercial. Por um<br />
lado, é preciso ter uma visão estratégica sobre o desenvolvimento do sistema financeiro privado<br />
em Moçambique. Continuam a surgir novos bancos, mas a que custo, com que escala, para que<br />
mercados e onde são localizados? Quando os bancos são autorizados, que contrapartidas socio -<br />
económicas para benefício social são estabelecidas?<br />
202 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
Por outro lado, multiplicam-se iniciativas de microfinanças, mas a que custo, para quem e<br />
que problemas permitem resolver? Com raras excepções, microfinanças funcionam melhor<br />
para comércio retalhista e/ou no quadro de projectos grandes, com altos níveis de integração<br />
vertical ou horizontal ou com elevada coordenação do investimento. Até que ponto<br />
é que este sistema pode servir o desenvolvimento da base produtiva e desenvolvimento<br />
rural? 29<br />
Como tornar os bancos comerciais parceiros efectivos tanto do Estado como dos investidores<br />
produtivos privados na implementação de estratégias mais estruturais e de longo prazo para<br />
o desenvolvimento produtivo? O enquadramento estratégico das direcções e prioridades de<br />
desenvolvimento e a articulação das várias intervenções públicas e privadas, dos recursos e das<br />
infra-estruturas e outras capacidades, são vitais para que a banca comercial privada se torne em<br />
banca de desenvolvimento.<br />
Finalmente, o financiamento não provém apenas de terceiros – Estado, doadores e banca comercial<br />
privada. Como atrair o investimento privado directo (estrangeiro e nacional) para as esferas produtivas<br />
prioritárias e de modo a atingir objectivos socioeconómicos fundamentais e inalienáveis?<br />
O problema do financiamento é complexo, mas essa complexidade também é uma oportunidade<br />
de trabalho para desbloquear soluções.<br />
Ligações intersectoriais: o desenvolvimento rápido da base produtiva agroindustrial requer e<br />
também potencia o desenvolvimento de ligações intersectoriais por vários motivos.<br />
Primeiro, a produção agroindustrial tem de ter mercados em expansão, dinâmicos e inovadores.<br />
A indústria, o turismo, os supermercados, as vilas e cidades, os mercados de exportação fornecem<br />
essa base comercial. Além disso, a superior produtividade e rendimento industrial e as<br />
sinergias de produtividade geradas na indústria contribuem para expandir os mercados e tornálos<br />
mais exigentes e dinâmicos.<br />
Segundo, a construção das bases produtivas para o rápido desenvolvimento da produção agrícola<br />
(as empresas, a organização e rede logística, a base de ciência e tecnologia, etc.) requer capacidades<br />
industriais, comerciais, de transporte, de armazenamento, etc., sem as quais a<br />
produção agrícola não pode expandir de forma sustentável e significativa.<br />
Terceiro, o aumento da produtividade e rendimentos agrícolas criará a oportunidade histórica<br />
de transferir recursos para fora da agricultura (força de trabalho, excedente produtivo, recursos<br />
financeiros). Se a agricultura não se desenvolver em conexão com os restantes sectores,<br />
estes recursos ficarão improdutivos e o desemprego aumentará.<br />
Quarto, a gradual modernização da agricultura eliminará as diferenças entre sectores: serviços,<br />
indústria, ciência e tecnologia terão de estar combinados na mesma empresa ou organização<br />
produtiva.<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 203
MUDANÇAS INSTITUCIONAIS E INDUSTRIALIZAÇÃO RURAL<br />
Cada abordagem e cada acção tem o seu enquadramento institucional mais apropriado. Neste<br />
debate, seria importante equacionar dois pontos: a construção de uma estratégia única e a<br />
racionalização institucional em torno dessa estratégica única.<br />
Quantas estratégias deve o Governo ter? O senso comum diz “uma única”. O resto são formas<br />
de articulação intersectorial e inter e intra-regional para alcançar os objectivos dessa estratégia.<br />
Hoje, há ministérios que têm 4-5 estratégias ou mais. Ao todo, o Governo deve ter por volta<br />
de 4 ou 5 dezenas de estratégias de dimensão nacional, para não falar nas dezenas de estratégias<br />
provinciais e distritais, e nas muitas estratégias sectoriais, subsectoriais e subnacionais dos<br />
doadores. O País deve estar a funcionar com cerca de duas centenas e meia de estratégias. Será<br />
isto necessário? Será isto viável? Quanto custa, em tempo e capacidades humanas, financeiras,<br />
institucionais e informacionais, a gestão de todas estas estratégias? Não estará esta proliferação<br />
de estratégias a fragmentar e a debilitar o Estado e a governação?<br />
Em parte, a proliferação de estratégias foi criada pela crise de identidade do Estado, desenvolvida<br />
ao longo de duas décadas e meia de liberalização. Em Moçambique, o Estado deu quatro<br />
saltos enormes nas últimas três décadas e meia: do Estado corporativo colonial (organizador e<br />
recrutador de mão-de-obra barata, colector de impostos e promotor e protector da organização<br />
produtiva da economia colonial) para o Estado empreeendedor, planificador e alocador de<br />
recursos no período de construção da economia socialista de Estado. Deste Estado centralizado<br />
para um liberal, com a missão de facilitar a vida ao capital mas sem saber muito bem como,<br />
especialmente quando o capital privado nacional é tão fraco, senão apenas emergente. Deste<br />
Estado liberal, mas ainda centralizado, para um descentralizado mas sem uma clara lógica económica<br />
e social. A crise de identidade surge naturalmente neste processo tão brusco de mudanças<br />
tão radicais e é exacerbada pela afluência de inúmeras ideologias de construção do Estado<br />
(o Estado do contrato-social, o Estado-Nação, o Partido-Estado, etc.) e pela dependência do<br />
Estado em relação ao financiamento externo da sua actividade. 30<br />
A questão prática que se levanta é: qual é o papel dos departamentos do Governo neste Estado?<br />
O conceito não qualificado de “Estado-facilitador” deu lugar à inércia e à estrategite. O acesso<br />
a fundos da ajuda externa também requer estratégias. Logo, todos os departamentos de cada ministério,<br />
governo provincial e administração distrital produzem estratégias, frequentemente com<br />
o objectivo único de mobilização de ajuda externa. Para cada problema surgiu uma solução universal:<br />
uma nova estratégia. Cada vez que um problema novo (ou velho) é identificado, o diagnóstico<br />
da causa da sua existência (ou permanência) é imediato: falta de estratégia clara. 31<br />
Outra parte deste problema é criado pelos doadores, cada um dos quais quer ter as suas áreas<br />
de influência e usa “estratégias” como forma de articular os seus interesses e de os fazer sentir<br />
claramente na administração pública e na alocação de recursos. Ironicamente, a “falta de<br />
204 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
estratégias claras” por parte do Governo é um argumento frequentemente usado para justificar<br />
a necessidade de o doador ter, também, as suas estratégias.<br />
Como é óbvio, esta estrategite enfraquece e fragmenta o Estado e a Governação, dispersa<br />
recursos e capacidades, concorre para impedir a implementação de qualquer acção viável. Por<br />
isso, tem de ser criado um quadro estratégico único e de médio e longo prazo (política económica,<br />
planeamento e quadro fiscal e de despesa pública) virado para o desenvolvimento da<br />
capacidade produtiva do País, e claramente articular o resto como afluentes e contributos para<br />
esse quadro único. Uma estratégia nacional cujo centro gravite em torno da industrialização<br />
rural pode fornecer o foco para a articulação e desenvolvimento de uma estratégia única.<br />
Moçambique já teve tais focos. O plano de reestruturação da economia, entre 1977 e 1980, foi<br />
focado na reorganização das cadeias de produção, dos circuitos de aprovisionamento e na racionalização<br />
e reorganização social das capacidades e das forças produtivas. O Plano Prospectivo<br />
Indicativo (PPI) foi focado no objectivo da socialização do campo, a ele subordinando a indústria,<br />
a educação, a expansão da rede social, o investimento, a organização da logística produtiva,<br />
etc. O Programa de Reabilitação Económica (PRE) tinha como foco operacional, para<br />
travar a contínua degradação da economia, a reabilitação da produção e circulação de mercadorias<br />
nas zonas rurais; a este objectivo operacional subordinavam-se todos os sectores – as<br />
indústrias ligeiras e de bens de consumo, as indústrias pesadas e bens de investimento, as indústrias<br />
geradoras de moeda externa e de receitas fiscais e as estabilizadoras dos níveis de emprego,<br />
as obras públicas e os transportes, a energia e a água, etc… 32<br />
Portanto, é possível organizar um plano, programa ou estratégia única que constitua o centro<br />
de gravidade e articule a acção de todos em torno desse centro. Mas o centro de gravidade<br />
tem que ter significado concreto – racionalização da base produtiva, socialização do campo,<br />
recuperação da produção e circulação de mercadorias no campo, industrialização rural. Se o<br />
centro de gravidade for demasiado vago (por exemplo, combate à pobreza absoluta), dificilmente<br />
fornecerá uma base de articulação, selecção e direcção porque praticamente qualquer<br />
opção ou acção é possível. Se o centro for demasiado limitado (por exemplo, desenvolvimento<br />
de biocombustíveis) excluirá a maior parte das forças produtivas e iniciativas potenciais.<br />
Neste contexto, todas as políticas nacionais (monetária, fiscal, de educação, de saúde, de estradas,<br />
caminhos-de-ferro e transportes, de comunicações, de energia, de água, etc.) têm de responder<br />
às necessidades e exigências desta estratégia. Não tem nenhum sentido dizer que o<br />
desenvolvimento rural é prioridade nacional quando depois não há empresas, nem organização<br />
e rede logística, nem base científica e tecnológica, nem finanças, nem ligações intersectoriais,<br />
nem uma clara identificação dos mercados e das tecnologias, nem critérios para tomar<br />
decisões, nem uma política monetária conducente ao investimento produtivo, nem uma base<br />
científico-tecnológica directamente ligada à produção, nem sistemas de formação e de informação,<br />
etc…<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 205
Será viável ter uma estratégia nacional única do tipo “industrialização rural” ou “desenvolvimento<br />
da capacidade produtiva”, ou qualquer outra coisa semelhante mas que seja orientada<br />
precisamente para este desenvolvimento de capacidade e competências produtivas nacionais de<br />
forma articulada? 33 A resposta a esta pergunta é fundamentalmente política: em torno de que<br />
interesses e dinâmicas económicas e sociais se estruturará uma tal estratégia? Se as dinâmicas<br />
dominantes de acumulação forem excessivamente concentradas, as oligarquias daí resultantes<br />
estarão em permanente pressão e conflito entre desenvolver estratégias subsidiárias e paralelas<br />
de partilha da riqueza e impor os seus interesses à “Nação”. Quanto maior for a concentração<br />
e a capacidade administrativa do poder político e económico, mais fácil é desenvolver e impor<br />
uma estratégia única e mais difícil é sustentar essa estratégia a médio e longo prazo por causa<br />
da oposição dos excluídos.<br />
Em relação ao desenvolvimento de uma estratégia única, é importante racionalizar a estrutura<br />
governativa. Por um lado, se desenvolvimento rural se constitui no centro de gravidade da<br />
estratégia de desenvolvimento nacional, não faz sentido que existam organizações governativas<br />
para o desenvolvimento rural. O motivo básico para isso é que todas as organizações<br />
governativas serão focadas e capacitadas para a promoção do desenvolvimento rural se for esse<br />
o centro de gravidade da governação.<br />
Por um lado, a subordinação das várias organizações sectoriais e níveis de governação para o<br />
desenvolvimento rural levanta desafios interessantes. É preciso compreender o que significa<br />
“focar no desenvolvimento rural”: como já foi mencionado anteriormente, isto não quer dizer<br />
“apenas prestar atenção às zonas rurais e aos problemas que aí surgem”. A questão central é focar<br />
a atenção nas dinâmicas sociais e económicas que potenciam o desenvolvimento nacional com<br />
centro de gravidade no desenvolvimento rural. Em palavras simples, trata-se de trazer as dinâmicas<br />
e problemas da industrialização e da urbanização (e dos múltiplos serviços e ligações<br />
associados) para a agenda da grande massa das forças produtivas do País; de envolver esta<br />
massa de forças produtivas no desenvolvimento das dinâmicas e na solução dos problemas da<br />
industrialização e urbanização em seu próprio benefício; de avaliar os resultados da implementação<br />
das intervenções públicas e as tendências de desenvolvimento em função de como<br />
é que estes se enquadram nos objectivos de ampla industrialização e ampla urbanização do País.<br />
Por outro lado, a coordenação intersectorial e inter-regional tem de ser aperfeiçoada substancialmente.<br />
No sector público, isto requer o fortalecimento das capacidades e mecanismos de<br />
análise e desenvolvimento de política, de produção e análise estatística, de planeamento e orçamentação<br />
estratégica na óptica da política de desenvolvimento, quer a nível central, quer a nível<br />
sectorial e local. Obviamente, esta tarefa seria simplificada se o tamanho do Governo (número<br />
de ministérios e de direcções provinciais) fosse dramaticamente reduzido. No mesmo contexto,<br />
o sistema de avaliação e prestação de contas deve ter um carácter intersectorial e inter-regional.<br />
É pouco útil conhecer a lista de realizações de um ministério, direcção nacional ou direc-<br />
206 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
ção provincial se estas realizações não estão avaliadas não só em relação ao plano original mas,<br />
sobretudo, em relação ao objectivo de industrialização rural com base nos critérios anteriormente<br />
mencionados. Muito mais importante do que a lista das realizações são as dinâmicas de<br />
industrialização e urbanização rural reais que vão sendo criadas, as dificuldades que vão surgindo<br />
e os desafios que estão pela frente.<br />
No que diz respeito à sua relação com os agentes económicos privados (cooperativos, associativos,<br />
individuais, empresas capitalistas ou quaisquer outros), o sector público tem que aprender<br />
cinco regras básicas. Este “sector” é muito heterogéneo e diferenciado e, por consequência,<br />
não pode falar com uma só voz. Uns vão discutir impostos e taxas aduaneiras, outros vão pedir<br />
subsídios para crédito, outros, ainda, vão exigir incentivos fiscais ou subsídios ligados com actividades<br />
produtivas concretas – adopção de novas tecnologias, formação da força de trabalho,<br />
penetração em novos mercados, etc. Uns vão ter o seu foco nos sistemas de formação, informação,<br />
controlo de qualidade, certificação, incentivos para a produtividade, redução de acidentes<br />
de produção, sistemas logísticos, sistemas de inovação e informação tecnológica e outras<br />
questões directamente ligadas com a produção e circulação; enquanto outros vão estar focados<br />
na captura de rendas improdutivas. Uns vão querer legislação laboral cada vez mais flexível e<br />
liberal, enquanto outros vão estar mais interessados em desenvolver a qualidade e organização<br />
da força de trabalho e a sua motivação produtiva. Uns vão ser pequenos, outros grandes.<br />
O sector público tem, por conseguinte, de identificar dentro desta heterogeneidade as dinâmicas,<br />
tendências e alianças mais interessantes para o prosseguimento da estratégia de industrialização<br />
rural e apostar no seu desenvolvimento. Para além de reforçar os interesses sociais em<br />
torno das suas prioridades de política, este tipo de acção também permite sinalizar, para todos<br />
os agentes económicos, a direcção dos incentivos e intervenções públicas com muita clareza.<br />
Uma parte central da diferenciação do sector privado é a sua estrutura corporativa, a qual se<br />
reflecte na estrutura e dinâmica industrial. Todas as actividades produtivas funcionam com uma<br />
cadeia de fornecedores e consumidores, que é a base mais simples da cadeia de produto e valor.<br />
Esta cadeia pode ser organizada de várias formas: (i) por via de integração vertical e homogeneização<br />
dos processos produtivos e de circulação (como é o caso da indústria açucareira em<br />
Moçambique); (ii) por via da subcontratação sem poder concessionário (como é o caso da<br />
Mozal); (iii) por via da subcontratação com poder concessionário (como são os exemplos do<br />
algodão ou do tabaco, em que a empresa oligopsonista controla uma concessão que inclui terras<br />
e camponeses que para ela têm que produzir); (iv) por via da formação de oligopólios,<br />
como as associações industriais; (v) por via de contratos de longo prazo; ou (vi) por via do mercado.<br />
Esta última via, o mercado, é, regra geral, a menos eficaz e mais incerta, pelo que as empresas<br />
preferem desenvolver muitas das suas ligações a montante e a jusante fora do mercado<br />
(por via das outras cinco alternativas). Cada uma destas formas de organização industrial tem<br />
impacto no poder que as empresas têm, na relação entre capital e trabalho, na relação entre as<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 207
empresas e o Estado, na natureza do conflito, desafios e oportunidades de política. 34 Nenhum<br />
destes sistemas é aplicável, como solução, a todos os problemas, em quaisquer circunstâncias.<br />
Uns funcionam melhor em algumas circunstâncias, outros, noutras. O fundamental é que os serviços<br />
públicos aprendam a lidar, de forma diferenciada, com estes sistemas industriais, e a<br />
regular o seu funcionamento (incluindo, se necessário, a escolher os mais adequados para um<br />
processo de industrialização rural com ampla base social e regional e com base produtiva e<br />
comercial diversificada).<br />
A relação entre o sector público e o privado é mais intensa e positiva quando se desenvolve uma<br />
relação de “troca” entre os dois. Nesta relação, o sector público presta serviços de apoio à produção<br />
no quadro da sua estratégia de industrialização rural e, em resposta, o sector privado<br />
atinge os níveis sociais e económicos de desempenho produtivo requerido para a continuação<br />
da relação positiva e intensa com o sector público. O sector público não comanda o sector privado,<br />
nem este deve manipular aquele.<br />
O sector privado não está particularmente focado em “estratégia nacional”, “industrialização<br />
rural”, “redução da pobreza” e outros assuntos desta natureza. A sua preocupação é o seu negócio<br />
e como é que esse negócio é afectado pelas cadeias de fornecedores e consumidores, e<br />
pelas intervenções, políticas e legislação pública. É o Estado que pode (ou não) garantir que a<br />
direcção e as tendências de desenvolvimento sejam orientadas por objectivos sociais e económicos.<br />
Portanto, na sua relação com o sector privado, o Estado tem que promover oportunidades<br />
e facilidades de negócio, mas garantir, através da legislação, sistemas de incentivo,<br />
coordenação de investimento complementar e competitivo e despesa de investimento público,<br />
que os negócios evoluam na direcção da industrialização rural com base social e regional ampla<br />
e base produtiva e comercial diversificada.<br />
Finalmente, as estratégias públicas são, primariamente, para definir as prioridades, coordenar<br />
as intervenções e estabelecer os sistemas de incentivo do sector público. Isto é, devem culminar<br />
na definição do que é que o sector público vai fazer para que industrialização rural, com certas<br />
características sociais, regionais e económicas, aconteça. As estratégias públicas não são,<br />
nem podem ser, primariamente, para mobilizar por palavras os agentes económicos privados.<br />
A sinalização das prioridades e mobilização dos agentes económicos privados faz-se por meio<br />
das intervenções públicas concretas: coordenação do investimento competitivo e complementar,<br />
despesa pública que provoque crowding in do investimento privado, sistemas de incentivo<br />
que dêem direcção social ao investimento privado, organização da logística, etc. O Estado tem<br />
de pôr em acção uma estratégia, cuja implementação requer um Estado coordenado, unitário<br />
e empreendedor capaz de estimular a maioria das forças produtivas do País a optarem pela<br />
estratégia de industrialização rural em seu benefício próprio.<br />
O desenvolvimento rural exige um Estado de desenvolvimento competente, dedicado e articulado,<br />
capaz de promover e ajudar o desenvolvimento das capacidades produtivas comerciais<br />
208 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
e da economia como um todo. Mas de onde virá este Estado e os seus objectivos de política?<br />
Como é que as forças sociais e políticas nacionais progressistas e interessadas no desenvolvimento<br />
de uma base produtiva alargada, diversificada e competitiva podem articular-se de modo<br />
a gerarem um tal Estado?<br />
INDUSTRIALIZAÇÃO RURAL E REESTRUTURAÇÃO<br />
DAS RELAÇÕES ECONÓMICAS EXTERNAS<br />
O desenvolvimento rural, tal como qualquer estratégia relevante para o desenvolvimento, tem<br />
grandes implicações para a estruturação da cooperação internacional. No caso de Moçambique,<br />
há pelo menos cinco áreas importantes a explorar.<br />
Primeira, a orientação da assistência externa para o desenvolvimento de capacidades produtivas<br />
articuladas (infra-estrutura, logística, sistemas científicos, tecnológicos, de informação e de<br />
formação, seguros, subsídios e parcerias financeiras);<br />
Segunda, a identificação de políticas e estratégias de Estados e potenciais concorrentes comerciais<br />
que possam ter impacto nas oportunidades, opções e desafios a enfrentar por Moçambique<br />
e suas empresas, para que possam ser tomadas em conta na construção e<br />
desenvolvimento da estratégia nacional de desenvolvimento e das estratégias de negociação e<br />
cooperação;<br />
Terceira, a identificação, negociação e exploração de facilidades de desenvolvimento: sistemas<br />
de financiamento e científico-tecnológicos (investigação, formação, informação, etc.), cadeias<br />
de produto e valor, parcerias e parceiros de investimento, legislação e regulação, etc.;<br />
Quarta, a identificação, negociação e promoção do acesso a mercados dinâmicos e com potencial<br />
inovador, assim como das suas exigências de qualidade e certificação e facilidades existentes<br />
para subsidiar a construção de capacidades para atingir essas exigências;<br />
Quinta, a identificação das dinâmicas e tendências do investimento estrangeiro e de oportunidades<br />
a explorar para objectivos específicos da estratégia produtiva concreta, e a implementação<br />
de estratégias e incentivos diferenciados para os diferentes tipos de investimento<br />
(megainvestimento em “ilhas de produtividade” ou pequeno e médio investimento na espinha<br />
dorsal da estratégia) e diferentes tipos de objectivos (sinergias tecnológicas, parcerias comerciais,<br />
financiamento, etc.).<br />
Portanto, a abordagem internacional tem de ser ofensiva e estrategicamente definida. Não se<br />
pode limitar a assinar acordos de liberalização comercial como se estes fossem dados adquiridos<br />
inevitáveis (que não são) nem a mobilizar assistência externa no quadro de objectivos<br />
sociais sem base económica definidos pelas organizações internacionais.<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 209
Neste contexto, a estratégia internacional deve ser influenciada pela estratégia de desenvolvimento<br />
rural por quatro vias: (i) tem de se sofisticar e fornecer a informação detalhada (sobre<br />
mercados, investidores, tecnologias, facilidades de financiamento, facilidades científicas e tecnológicas,<br />
produtos substitutos, estratégias de concorrentes, etc.); (ii) tem de operar no quadro das<br />
prioridades produtivas concretas e das necessidades para as concretizar; (iii) tem de ajudar a<br />
mobilizar recursos e capacidades e a penetrar em mercados dinâmicos e inovadores; (iv) tem de<br />
garantir que os dois grandes fluxos de recursos externos para Moçambique (ajuda externa e investimento<br />
directo estrangeiro) se articulem por via do efeito crowding in da despesa pública no<br />
desenvolvimento da capacidade produtiva ampla, diversificada e articulada no País.<br />
CONCLUSÕES<br />
Como foi argumentado, a viragem da estratégia de desenvolvimento nacional (do seu actual enfoque<br />
na construção de uma forte burguesia nacional rendeira apoiada em parcerias com o<br />
grande capital internacional do complexo mineral-energético para uma abordagem focada na<br />
diversificação e articulação da base produtiva e comercial e o alargamento dos centros de<br />
acumulação) é um desafio político fundamental e crítico. Esta viragem implica o conflito e a<br />
ruptura com interesses e padrões de acumulação, reprodução e apropriação da riqueza estabelecidos,<br />
bem como a construção das condições políticas para que outros interesses se articulem<br />
e predominem sobre o debate e a prática de política económica e social. A questão de fundo é,<br />
portanto, por que processo político poderão tais mudanças ocorrer?<br />
Entre muitos outros, há três aspectos que podem ser focados neste momento. Primeiro, os<br />
Moçambicanos têm de se pôr de acordo sobre o que se pode e deve fazer agora e no futuro realizável<br />
com a economia e com o País. Os problemas que ficam por resolver são: que Moçambicanos<br />
e interesses dominarão este processo, e como será este processo articulado politicamente?<br />
Segundo, as pressões resultantes podem influenciar as instituições, e, por esta via, influenciar a<br />
sua reacção e resposta aos problemas levantados. No entanto, as pressões, em si, raramente são<br />
suficientes para forçar mudanças, e nunca são suficientes para garantir que a mudança ocorra<br />
numa direcção determinada.<br />
Finalmente, este debate pode ajudar a criar um novo lobby, ou, melhor ainda, novas forças<br />
sociais e políticas capazes de articular politicamente os interesses e aspirações dos que dependem<br />
e apostam na transformação estrutural profunda da economia, realizada ao ritmo que o<br />
País possa sustentar (do mesmo modo que o crescimento sustentável terá o ritmo não dos<br />
planificadores, mas do processo de desenvolvimento rural).<br />
Muitas das transformações terão de ser feitas ao longo do tempo, e à medida que se vão criando<br />
as dinâmicas e capacidades políticas, sociais, institucionais, tecnológicas e económicas para as<br />
210 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
implementar. Ao longo do processo contínuo de transformação e desenvolvimento, novos<br />
problemas, ideias, experiências e soluções irão, naturalmente, aparecendo, a par de novos<br />
conflitos, tensões e contradições.<br />
Desenvolvimento significa, antes de mais nada, transformação da base social e económica existente,<br />
a rejeição das velhas verdades estabelecidas que outrora foram inovações, a rebeldia de<br />
explorar o proibido e de descobrir o desconhecido e criar o novo. Desenvolvimento rural não é<br />
um estágio final, um somatório de objectivos e intenções, ou uma simples acumulação de recursos<br />
e capacidades. É um processo de mudança a longo prazo, cheio dos mais variados conflitos<br />
e opções que requerem decisões selectivas e um grande esforço de aprendizagem. É um<br />
processo de transformação e criação de capacidades e condições de vida e de trabalho, que<br />
abrange todos os aspectos essenciais da vida rural: a produção, o consumo, a poupança e a sua<br />
mobilização, a taxa, alocação e eficiência do investimento, a apropriação, comercialização e<br />
uso do excedente, a qualidade dos agentes económicos e sociais e as relações de poder entre<br />
eles, a qualidade de vida, o desenvolvimento tecnológico, etc. É, também, um processo que<br />
afecta e modifica as relações entre agentes económicos no campo e na cidade, na agricultura e<br />
na indústria, entre camponeses, proprietários agrícolas, industriais, comerciantes, transportadores<br />
e trabalhadores assalariados.<br />
NOTAS<br />
1<br />
Este texto é uma adaptação de Castel-Branco 2008, contando com a inclusão de dados adicionais<br />
investigados por Nelsa Massingue e Rosimina Ali.<br />
2<br />
Castel-Branco e Ossemane 2009.<br />
3<br />
INE (vários anuários estatísticos e projecções demográficas).<br />
4<br />
O’Laughlin 1981, Wuyts 2003, 1981 e 1980, Castel-Branco 1995 e 1994.<br />
5<br />
O’Laughlin 1981, Wuyts 2003, 1981 e 1980, Bowen 2000, Castel-Branco 1996, 1995 e 1994.<br />
6<br />
Castel-Branco 2005 e 2003a.<br />
7<br />
O’Laughlin 1981, Wuyts 2003, 1981, 1980 e Castel-Branco 1996, 1995, 1994, 1983a e 1983b.<br />
8<br />
O’Laughlin 1981, Wuyts 1981 e 1980, Castel-Branco 2004a, 1995 e 1994.<br />
9<br />
Castel-Branco 2005, 2003a e 1995.<br />
10<br />
Dasgupta 1980, Dobb 1963, Hettne 1995, Karshenas 1995, Lie 1998, Portes et al 1991 e Smith<br />
1959.<br />
11<br />
Dasgupta 1980, Dobb 1963, Hettne 1995, Karshenas 1995, Lie 1998, Portes et al 1991 e Smith<br />
1959.<br />
12<br />
Este acesso privilegiado era garantido ou pelo banimento total das exportações de caju em<br />
bruto (não-processado) ou pelo estabelecimento de um sistema que obrigava a que as fábricas<br />
fossem completamente aprovisionadas com castanha em bruto antes que a exportação de castanha<br />
não-processada pudesse ser realizada.<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 211
13<br />
Abaixo do preço mundial da castanha em bruto.<br />
14<br />
Hanlon 2000, Cramer 1999, Castel-Branco 2003b e 2002.<br />
15<br />
Hamilton 1983, Nixson 1986, Dasgupta 1980, Cramer 1999, Castel-Branco 2007, 2003a, 2003b,<br />
1996 e 1995.<br />
16<br />
Cramer 1999, Castel-Branco 2005 e 2003a.<br />
17<br />
O’Laughlin 1981, Wuyts 1989, 1981 e 1980, Bowen 2000, Castel-Branco 2005, 1995 e 1994,<br />
Cambaza 2009, Selemane 2009.<br />
18<br />
Ministério da Agricultura 2004.<br />
19<br />
Banco de Moçambique (vários relatórios anuais) e Jornal Notícias de 21/08/2009 – Caderno de<br />
Economia e Negócios.<br />
20<br />
Matos e Mosca 2009.<br />
21<br />
Brouwer, Brito e Menete 2009.<br />
22<br />
Buendía 2009.<br />
23<br />
Castel-Branco e Ossemane 2009.<br />
24<br />
Castel-Branco e Ossemane 2009, Castel-Branco 2009.<br />
25<br />
A discussão dos critérios de análise que se segue é baseada em Castel-Branco 2008.<br />
26<br />
Sender and Smith 1986a e 1986b, Harris 1997.<br />
27<br />
Castel-Branco 2004b, 2003b, 2002 e Castel-Branco and Goldin 2003.<br />
28<br />
Doriye and Wuyts 1993 e Harris 1997, Castel-Branco 2004b.<br />
29<br />
Castel-Branco 2005, 2004a, 2004c e 2003a.<br />
30<br />
Castel-Branco 2002.<br />
31<br />
Castel-Branco 2005, 2004a e 2003a.<br />
32<br />
Castel-Branco 1995 e 1994.<br />
33<br />
O Brasil acaba de adoptar uma nova estratégia industrial única que se chama “plano de desenvolvimento<br />
produtivo”, que orienta a totalidade da economia.<br />
34<br />
Castel-Branco 2005, 2003a, 2003b e 2002.<br />
REFERÊNCIAS<br />
Addison, T. (ed.). 2003. From conflict to recovery in Africa. Oxford Univ. Press: Oxford.<br />
Africa America Institute. 2001. Mozambique – price of cashew nuts collapse.<br />
(http://allafrica.com/stories) of March 07, 2001.<br />
Banco de Moçambique (vários anos). Relatório anual. Maputo.<br />
Bowen, M. 2000. The state against the peasantry – rural struggles in colonial and post-colonial<br />
Mozambique. Univ. Press of Virginia: Charlottesville and London.<br />
Brouwer, R., L. Brito, e Z. Menete. 2009. Educação, formação profissional e poder. In Brito, L. C.<br />
Castel-Branco, S. Chichava e A. Francisco (eds). 2009. Desafios para Moçambique, 2010.<br />
<strong>IESE</strong>: Maputo.<br />
212 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
Buendia, M. 2009. Os desafios da leitura. In Brito, L. C. Castel-Branco, S. Chichava e<br />
A. Francisco (eds). 2009. Desafios para Moçambique, 2010. <strong>IESE</strong>: Maputo.<br />
Cambaza, V. 2009. A terra, o desenvolvimento comunitário e os projectos de exploração<br />
mineira. IDeIAS Boletim n.º 14 (Junho). <strong>IESE</strong>.<br />
Castel-Branco, CN. 2009. Economia extractiva e padrões de industrialização em Moçambique.<br />
In L. Brito, C. Castel-Branco, S. Chichava e A. Francisco (eds.) Desafios para Moçambique,<br />
2010. <strong>IESE</strong>: Maputo.<br />
Castel-Branco, CN. 2008. Desafios do desenvolvimento rural em Moçambique: contributo<br />
crítico para um debate com base em postulados básicos. Discussion Paper n.º 03/2008<br />
do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (<strong>IESE</strong>): Maputo (também disponível no<br />
link da página do <strong>IESE</strong><br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/dp_2008/Discussion_Paper2_Revolucao_Verde.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 2007. O Banco Mundial e a Agricultura - uma discussão crítica do RDM<br />
2008. Comunicação no lançamento do RDM 2008.<br />
Castel-Branco, CN. 2005. Implicações do protocolo comercial da SADC para a família<br />
camponesa: Estudo realizado na Província de Manica para a União Nacional de<br />
Camponeses (UNAC) (disponível no link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/SADC_e_camponese_em_Manica.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 2004a. Relatório do estudo sobre o plano estratégico de desenvolvimento da<br />
Província de Maputo. Ernst & Young: Maputo.<br />
Castel-Branco, CN. 2004b. Business and productive capacity development in economic growth<br />
and industrialization: the case of Mozambique. Mimeo (disponível pelo link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/Private_sector_development.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 2004c. Notes for the discussion of the following two papers: “Assefa<br />
Admassie. A review of the performance of agricultural finance in Ethiopia: Pre and post<br />
reform periods” and “V.K.Ramachandran and M. Swaminathan. Financial liberalization and<br />
rural banking in India”. Comments presented at the International Conference on “The<br />
Agrarian Constraints and Poverty Reduction: Macroeconomic Lessons for Africa”<br />
Organized by the International Development Economics Associates (IDEAS), Ethiopian<br />
Economic Association (EEA), and CODESRIA. Addis Ababa, December 17 to 19, 2004.<br />
(disponível no link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/RevisoesLivrosArtigos/IDEAS%20Discussant%20Not<br />
es%20Rural%20Finance%20Addis%202004.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 2003a. Support to building capacity in investment strategy and articulation<br />
in the Province of Nampula. Relatório para a SDC e o Governo da Província de<br />
Nampula (disponível no link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/Rapid_Assessment_Study_Nampula_final_website.pdf).<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 213
Castel-Branco, CN. 2003b. Indústria e industrialização em Moçambique: análise da situação<br />
actual e linhas estratégicas de desenvolvimento. I Quaderni della Cooperazione Italiana<br />
3/2003. Maputo (disponível no link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/AI%202003c%20QUADER_.PDF).<br />
Castel-Branco, CN. 2002. An Investigation into the Political Economy of Industrial Policy: the<br />
Case of Mozambique. Tese de Doutoramento não publicada (School of Oriental and<br />
African Studies/University of London). (disponível capítulo por capítulo a partir do link<br />
http://www.iese.ac.mz/?__target__=investigator&investigatorid=1).<br />
Castel-Branco, CN. 1996. Reflexões sobre a dinamização da economia rural. Comunicação<br />
apresentada na mesa redonda sobre “Estratégias para acelerar o crescimento económico<br />
em Moçambique”, 6 de Março de 1996 (Universidade Eduardo Mondlane e Ministério<br />
do Plano e Finanças) (disponível através do link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/DESRURAL.SEM.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 1995. Opções Económicas em Moçambique 1975-1995: problemas, lições e<br />
ideias alternativas. In Mazula (ed.) 1995. (disponível através do link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/Problemas%20licoes%20e%20Ideas%20Alternativas.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 1994. Problemas estruturais do desenvolvimento agrário. In Castel-Branco<br />
(ed.). 1994. (também está disponível através do link da página do <strong>IESE</strong><br />
(http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/Problemas%20Estruturais%20no%20Desenvolvimento<br />
%20Agrario_.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 1983a. A integração dos camponeses médios numa economia socialista<br />
planificada: o caso de Marracuene. Relatório para o “Projecto Troca 83 (Marracuene)”.<br />
Centro de Estudos Africanos/Universidade Eduardo Mondlane (também disponível no<br />
link http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/CEA_83_Assalariados.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. 1983b. A integração dos assalariados com boa base na agricultura numa<br />
economia socialista planificada: Bobole e Sul da Vila. Relatório para o “Projecto Troca 83<br />
(Marracuene)”. Centro de Estudos Africanos/Universidade Eduardo Mondlane.<br />
(também disponível no link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/CEA_83_Camponeses_medios.pdf).<br />
Castel-Branco, CN. (ed.) 1994. Moçambique — perspectivas económicas. Univ. Eduardo<br />
Mondlane e Fundação Friedrich Ebert: Maputo.<br />
Castel-Branco, CN. e R. Ossemane. 2009. Crise e desafios de transformação do padrão de<br />
crescimento económico em Moçambique. In Brito, L. C. Castel-Branco, S. Chichava e<br />
A. Francisco (eds). 2009. Desafios para Moçambique, 2010. <strong>IESE</strong>: Maputo.<br />
Castel-Branco, CN. and N. Goldin. 2003. Impacts of the Mozal Aluminium Smelter on the<br />
Mozambican Economy. Relatório apresentado à Mozal (disponível pelo link<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/Mozal_and_economic_development.pdf).<br />
214 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
Cramer, C. 1999. Can Africa industrialize by processing primary commodities? The case of<br />
Mozambican cashew nuts. World Development 22(7), pp. 1247-66.<br />
Dasgupta, S. 1980. Class relations and technical change in Indian agriculture. Studies in<br />
Economic Development and Planning no. 24. Institute of Economic Growth: New Delhi.<br />
Dobb, M. 1963. A evolução do capitalismo. 8.ª edição. Zahar Editores: Rio de Janeiro.<br />
Doriye, J. and M. Wuyts. 1993. Foreign aid, import constraints and capacity utilization: the case<br />
of Tanzania. ISS Discussion Paper (February). ISS. The Hague.<br />
Hamilton, C. 1983. Capitalist industrialization in the four little tigers of East Asia. In Limqueco<br />
et al (eds.) 1983.<br />
Hanlon, J. 2000. Power without responsibility: the World Bank and Mozambican cashew nuts.<br />
Review of African Political Economy 83, pp. 29-45.<br />
Harris. L. 1997. Economic objectives and macroeconomic constraints. In Michie and<br />
Padayachee (eds.) 1997.<br />
Hettne, B. 1995. Development theory and the Three Worlds. 2nd edition. Longman Scientific<br />
and Technical: New York.<br />
INE, Instituto Nacional de Estatística (vários anos). Anuário Estatístico de Moçambique.<br />
Maputo.<br />
Karshenas, M. 1995. Industrialization and agricultural surplus: a comparative study of economic<br />
development in Asia. Oxford Univ. Press: Oxford.<br />
Lawrence, P. (ed). 1986. World recession and the food crisis in Africa. James Currey: London.<br />
Lie, J. 1998. Han unbound – the political economy of South Korea. Stanford Univ. Press:<br />
Stanford.<br />
Limqueco, P. (eds). 1983. Neo-Marxist theories of development. Croom Helm: London.<br />
Matos, N e J. Mosca. 2009. Desafios da leitura. In Brito, L. C. Castel-Branco, S. Chichava e<br />
A. Francisco (eds). 2009. Desafios para Moçambique, 2010. <strong>IESE</strong>: Maputo.<br />
Mazula, B. (ed.). 1995. Moçambique — eleições, democracia e desenvolvimento. Brazão Mazula:<br />
Maputo.<br />
Michie, J. and V. Padayachee (eds.). The political economy of South Africa’s transition: policy<br />
perspectives in the late 1990s. The Dryden Press: London.<br />
Ministério da Agricultura. 2004. Visão para o desenvolvimento do sector agrário. Maputo.<br />
Nixson, F. 1986. The crisis of industrial accumulation in Africa. In Lawrence (ed.) 1986.<br />
O’Laughlin, B. 1981. A questão agrária em Moçambique. Estudos Moçambicanos 3, pp. 9-32<br />
Centro de Estudos Africanos/Universidade Eduardo Mondlane: Maputo.<br />
Pereira Leite, J. 1999. A guerra do caju e as relações Moçambique-Índia na época pós-colonial.<br />
Documento de Trabalho n.º 57. CEsA (Centro de Estudos Africanos): Lisboa.<br />
Desafios do Desenvolvimento Rural Desafios para Moçambique 2010 215
Pereira Leite, J. 1995. A economia do caju em Moçambique e as relações com a Índia: dos<br />
anos 20 até ao fim da época colonial. In Ensaio em Homenagem a Francisco Pereira de<br />
Moura (ISEG, Instituto Superior de Economia e Gestão): Lisboa.<br />
Portes, A., et al. 1991. The informal economy – studies in advanced and less developed<br />
countries. The John Hopkins Univ. Press: Baltimore and London.<br />
Selemane, T. 2009. Alguns desafios da indústria extractiva em Moçambique. CIP: Maputo.<br />
Sender, J. and S. Smith. 1986a. The development of capitalism in Africa. Methuen: London and<br />
New York.<br />
Sender, J. and S. Smith. 1986b. What’s right with the Berg report and what’s left of its critics.<br />
In Lawrence (ed.) 1986.<br />
Smith, T. 1959. The agrarian origins of modern Japan. Stanford Univ. Press: Stanford.<br />
Wuyts, M. 2003. The agrarian question in Mozambique’s transition and reconstruction.<br />
In Addison (ed.). 2003.<br />
Wuyts, M. 1989. Money and planning for socialist transition – the Mozambican experience.<br />
Gower: Aldershot.<br />
Wuyts, M. 1981. Camponeses e economia rural em Moçambique. Relatório 81/8. Centro de<br />
Estudos Africanos/Universidade Eduardo Mondlane: Maputo.<br />
Wuyts, M. 1980. Economia política do colonialismo português em Moçambique. Estudos<br />
Moçambicanos 1, pp. 9-22. Centro de Estudos Africanos/Universidade Eduardo Mondlane:<br />
Maputo.<br />
216 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Desenvolvimento Rural
A TERRA NO CONTEXTO<br />
DO DESENVOLVIMENTO<br />
DA INDÚSTRIA MINEIRA<br />
PRESSÕES E CONFLITOS EM TORNO DOS DUATS 1<br />
Virgílio Cambaza<br />
INTRODUÇÃO<br />
O sector da extracção mineira, incluindo o da pesquisa e exploração de hidrocarbonetos, tem<br />
registado um desenvolvimento assinalável em Moçambique. Até há poucos anos, a indústria<br />
mineira não desempenhava um papel relevante na economia do país. De referir que houve no<br />
passado alguma produção, destacando-se a produção de carvão em Tete. Embora em escala reduzida,<br />
também houve exploração de bauxite, cobre e ouro em Manica, calcário e grafites em<br />
Cabo Delgado, gemas e pedras semipreciosas em Nampula, tantalite na Zambézia e bentonite<br />
em Maputo. Depois de grande parte dessa produção ter estado paralisada devido à guerra,<br />
existe hoje uma tendência para a sua recuperação.<br />
Segundo o Governo 2 , o papel de relevo assumido recentemente pelo sector da indústria dos<br />
recursos minerais deve-se, em grande medida, ao regime jurídico adoptado a partir de 2002, que<br />
inclui uma série de benefícios fiscais e outros incentivos concedidos aos interessados em investir<br />
na área. Para os representantes do Governo, existe uma relação directa entre o aumento<br />
das solicitações de títulos mineiros, nos últimos anos, e os benefícios fiscais atrás mencionados.<br />
Ilustrando o que vem anteriormente referido, essas fontes indicam que, em 2004, foram aprovados<br />
projectos de investimento na ordem de US$ 101 milhões e, em 2008, houve um aumento<br />
do montante do investimento para a cifra de US$ 804 milhões.<br />
Para o Governo, os investimentos têm resultado num ganho para a economia do país (permitindo<br />
em 2008, um aumento em 5% do PIB) e para as populações que residem em locais próximos<br />
donde os projectos estão a ser implementados ou já funcionam (asseguraram-se oportunidades<br />
de empregos e obras de carácter social, nomeadamente, a construção de infra-estruturas de saúde,<br />
escolas, postos policiais, entre outras).<br />
Além dos benefícios atrás mencionados, estão previstos outros que emanam da aplicação do<br />
Regulamento dos Impostos Específicos da Actividade Mineira. 3 Segundo este regulamento,<br />
uma percentagem das receitas geradas da actividade mineira deve ser canalizada para o desenvolvimento<br />
das comunidades das áreas onde se localizam os respectivos projectos minei-<br />
A Terra no Contexto do Desenvolvimento da Indústria Mineira Desafios para Moçambique 2010 217
os. A percentagem, defende a norma, é fixada na Lei Orçamental, em função das receitas previstas<br />
e relativas à actividade mineira, cabendo, por isso, ao Conselho de Ministros inventariar<br />
tais receitas.<br />
A extracção de recursos minerais em Moçambique carece da obtenção do respectivo título mineiro,<br />
competindo ao Ministério dos Recursos Minerais (MIREM) a emissão das licenças de<br />
reconhecimento, prospecção e pesquisa, do certificado mineiro e das concessões mineiras.<br />
A partir do momento da emissão das referidas licenças, os titulares ganham direitos de preferência<br />
sobre os demais relativamente à ocupação das terras abrangidas pelas áreas de mineração,<br />
ainda que para cada título se tenha de observar o estatuído na lei (Lei de Minas). 4<br />
Para além dos títulos acima mencionados, o MIREM confere licenças destinadas à exploração<br />
mineira de pequena escala ou artesanal. No entanto, há registos indicando que esta actividade<br />
tem normalmente sido desenvolvida sem observância das medidas antipoluição e de protecção<br />
do meio ambiente, previstas no plano de lavra, havendo casos identificados em Manica (nas<br />
áreas de Munhena e Mimosa), Nampula (na área de Mavuco) e Niassa (nas áreas de Nacagrue<br />
e Lupilichi), de poluição das águas superficiais localizadas nas áreas mineiras e de ausência de<br />
reabilitação e restauração dos terrenos e da vegetação degradados, por efeito da exploração<br />
mineira. 5<br />
Embora o Governo tenha reconhecido a gravidade da situação e tenha, em 2007, procurado<br />
desenvolver um programa de mitigação do impacto ambiental, o facto é que o referido programa<br />
não foi, até ao momento, implementado, sendo o incumprimento justificado por falta<br />
de cobertura financeira.<br />
Os progressos que se registam na indústria de extracção mineira são acompanhados de uma<br />
enorme pressão sobre a terra, porque se, por um lado, as áreas requeridas para a realização das<br />
actividades mineiras não são, muitas vezes, desocupadas, por outro lado, a própria realização<br />
das actividades mineiras pode constituir factor de potenciação dessa pressão, essencialmente,<br />
quando se verifiquem comportamentos, nas operações mineiras, que não observem integralmente<br />
os planos de lavra, que entre outras exigências, impõem o princípio de uma exploração<br />
racional e equitativa dos recursos, tendo, ao mesmo tempo, em atenção a necessidade da preservação<br />
do meio ambiente.<br />
O presente trabalho irá olhar para a questão da pressão sobre a terra em resultado do aumento<br />
dos investimentos registados na indústria da extracção mineira e levantar algumas questões<br />
sobre as implicações das medidas que têm sido adoptadas, no sentido de amenizar os conflitos<br />
atinentes, quer sejam de âmbito geracional, quer de carácter intergeracional.<br />
O trabalho será desenvolvido tomando em consideração as informações disponíveis relativamente<br />
ao processo de licenciamento da actividade mineira, verificado nos últimos tempos, em<br />
Moçambique, da implementação dos projectos atinentes e da gestão de conflitos de interesses<br />
sobre a terra.<br />
218 Desafios para Moçambique 2010 A Terra no Contexto do Desenvolvimento da Indústria Mineira
AS OPERAÇÕES MINEIRAS, A COMUNICABILIDADE<br />
DE DUATS E AS SUAS IMPLICAÇÕES<br />
O momento da viragem, marcado pela crescente procura de oportunidades de investimento na<br />
área mineira, foi o ano de 2002. A partir de meados desse ano, foram emitidas 308 licenças válidas,<br />
e nos anos subsequentes este registo foi subindo, situando-se, em 2003, em 590 pedidos;<br />
ano seguinte em 783; 2005 em 978 e, já em 2006, apesar do relativo abrandamento, o registo<br />
do número de licenciamentos ainda se situou nas 866 licenças. 6<br />
No período em consideração, houve investimentos em pesquisa e desenvolvimento no valor<br />
total de 644 milhões de dólares americanos, sendo: 22 milhões de dolares investidos em 2003;<br />
33 milhões de dólares em 2004; 169 milhões de dólares em 2005; 203 milhões de dólares em<br />
2006 e 217 milhões de dólares em 2007. 7<br />
Até Maio de 2008, segundo o próprio Governo, tinham já sido emitidas 997 licenças segundo a<br />
seguinte distribuição: (i) minerais do grupo de ornamentais, 30 licenças; (ii) carvão, 222 licenças;<br />
(iii) tantalite, 242 licenças; (iv) pedras preciosas e semipreciosas, 35 licenças; (v) ouro, 252<br />
licenças; (vi) inertes, 209 licenças; (vii) minerais industriais, 7 licenças; (viii) PGM e metais. 8<br />
Yager 9 refere que dentre as licenças emitidas salientam-se as dos grandes projectos, em implementação<br />
nas províncias de Nampula, Tete, Manica e Zambézia. Em Nampula, por exemplo, está<br />
em funcionamento o projecto das areias pesadas de Moma. Este projecto, da multinacional<br />
irlandesa, Kenmare Resources, é avaliado em US$ 500 milhões, e a estimativa a partir da data<br />
do início do seu funcionamento era de alcançar até 2008 um volume de produção 800 mil<br />
toneladas/ano de ilmenite, 56 mil toneladas/ano de zircão e mais de 21 mil toneladas/ano de<br />
rútilo. Segundo o mesmo autor, em Tete, particularmente nas minas de carvão de Moatize,<br />
encontram-se as companhias multinacionais do Vale do Rio Doce do Brasil, com um projecto<br />
avaliado em US$ 1,535 mil milhões e da Riversdale Mining, da Austrália. Esta, para além de interesses<br />
nas minas de Moatize, estende o seu projecto aos campos de carvão de Mucanha-Vuzi. O<br />
valor do projecto não é conhecido. Relativamente à Província de Manica há a referir as empresas<br />
Agrupamento Mineiro e Delta Trading, ligadas a projectos de exploração de ouro. Também aqui<br />
o valor do projecto não é conhecido. Na Zambézia, particularmente em Marrupino, a empresa<br />
High Lands está ligada ao projecto de exploração de Tantalite. Dados relativos à sua avaliação<br />
não estão disponíveis, ainda que o projecto esteja integrado no grupo dos grandes projectos.<br />
De acordo com informações publicadas na imprensa 10 , no período entre 2005 e o primeiro<br />
semestre de 2009, só em Tete, a actividade mineira teve a seguinte dinâmica: houve registo de<br />
225 licenças de prospecção e pesquisa, de 7 concessões mineiras e de 4 licenças de reconhecimento.<br />
Por algum critério, não referido, a fonte destacou, como estando entre os titulares das<br />
licenças atrás mencionadas, a Explorações Mineiras de Moçambique Lda., Ómega Corp Minerais<br />
Lda., Manica Minerais, Sara Sulemane Lda., Riversdale Moçambique Lda., Zambezi<br />
A Terra no Contexto do Desenvolvimento da Indústria Mineira Desafios para Moçambique 2010 219
Energy Corporation, Minas do Vale do Zambeze, Carvão da Marávia, Companhia do Vale do<br />
Rio Doce (CVRD), Changara Investment Lda., Minjava Investment Lda., Explorações Moçambicanas<br />
de Platina, Great Western Mining Lda., Belde Empreendimentos Rachana Global,<br />
Vale Moçambique Lda., Etastar Lda., Essar Recursos Minerais Lda., Zamex Zambezi Exploration<br />
SA, Capital Resources Lda., JSW-Natural Resources.<br />
O desenvolvimento da indústria de extracção mineira está directamente relacionada com a questão<br />
do acesso à terra. É nestes termos que a lei, para além da demarcação dos limites verticais de<br />
área de exploração, estabelece também a obrigatoriedade da demarcação da extensão superficial<br />
das áreas de exploração (n.º 1 e 2, art.º 13, Dec. n.º 28/2003). O uso e ocupação da terra necessária<br />
para a realização de actividade mineira carece de DUAT. O DUAT atribuído com esse fim<br />
tem um período de validade e dimensão consistentes com o definido no título mineiro emitido e<br />
é automaticamente renovado quando o título mineiro é renovado (n.º 3, art.º 43, Lei n.º 14/2000).<br />
Na prática, isto significa que os investimentos na área mineira aumentam a pressão sobre a<br />
posse da terra. Este aumento da pressão tem resultado na colisão de interesses concorrentes,<br />
de um lado, das populações rurais, com direitos de ocupação de terras anteriores, e do outro<br />
lado, das empresas mineiras.<br />
Neste conflito de interesses, a lei coloca-se do lado das empresas mineiras, desde que se afiram determinadas<br />
condições. Quais são essas condições? (i) Que haja lugar a emissão de títulos mineiros,<br />
o que, à partida, o Governo considerou que as operações mineiras resultarão em benefício económico<br />
e social relativo superior (n.º 2, art.º 43, Lei de Minas). Com o fundamento da consideração<br />
da existência de benefício económico e social relativo superior, “o uso da terra para operações mineiras<br />
tem prioridade sobre outros usos da terra” (n.º 2, art.º 43); (ii) para que os direitos de ocupação<br />
de terras anteriores sejam considerados extintos, tanto o Estado (nos casos de declaração de<br />
áreas de senha mineira) como os titulares das licenças mineiras (nos casos de emissão de concessões<br />
mineiras ou certificados mineiros) devem assumir a responsabilidade pelo pagamento de uma<br />
indemnização “justa e razoável” aos titulares dos direitos anteriores (n.º 4, art.º 43).<br />
Em Tete, por exemplo, a materialização do postulado na lei, levou o Governo a criar uma<br />
comissão intersectorial, integrando representantes das seguintes direcções provinciais: (i) Director<br />
de Recursos Minerais; (ii) Director da Acção Ambiental; (iii) Director da Agricultura; e<br />
(iv) Director das Obras Públicas. A comissão, que é presidida pela Secretária Permanente<br />
Provincial, tem por objectivo articular com os operadores mineiros na identificação de novos<br />
espaços para o reassentamento das populações desalojadas das terras que ocupavam em<br />
função da sua conversão em áreas de exploração e/ou expansão mineira.<br />
O papel da comissão é visto ainda como útil e instrumental na intermediação e materialização tanto<br />
dos interesses dos operadores mineiros como na contrapartida destes traduzida em benefícios materiais<br />
às populações, que vão desde os planos de reassentamento, garantias de ressarcimento pelos<br />
danos e perdas sofridos até à possibilidade de ofertas de emprego e expectativas de construção e<br />
220 Desafios para Moçambique 2010 A Terra no Contexto do Desenvolvimento da Indústria Mineira
melhoramento de infra-estruturas sociais, tais como escolas, centros de saúde, fontes de fornecimento<br />
de água e energia, entre outras, por parte das empresas mineiras, no âmbito das suas responsabilidades<br />
sociais corporativas e, finalmente, uma leve 11 referência sobre a verba destinada ao<br />
desenvolvimento comunitário a ser transferida pelo Estado, através do Orçamento Geral do Estado.<br />
Numa acção articulada entre o Governo e a Companhia brasileira Vale do Rio Doce (CVRD)<br />
foi identificada uma área onde se pretende erguer cerca de 1250 casas de habitação para as<br />
famílias deslocadas, em consequência da implementação do projecto do Carvão de Moatize,<br />
infra-estruturas públicas destinadas ao fornecimento de água e energia, escolas primárias e postos<br />
de saúde e policial. Segundo o artigo de Bernardo Álvaro, atrás citado, através da mesma<br />
acção vai ser criado um espaço de cerca de 300 hectares para a pastagem de gado e a atribuição<br />
de dois hectares de terras, a cada família, para o desenvolvimento da agricultura. No entanto,<br />
não há indicação sobre a aptidão das terras a serem distribuídas, nem sobre a capacidade<br />
dos beneficiários aproveitarem as referidas terras, sobre a sua localização relativamente a mercados<br />
de bens de consumo, factores de produção e produtos agrícolas, acesso a infra-estruturas<br />
produtivas e sociais, acesso à fontes de irrigação, entre outros.<br />
Embora a criação de uma comissão multi-sectorial possa ser um passo positivo, contudo, questiona-se:<br />
1) o facto de a comissão se restringir às competências de natureza defensiva e limitar-se<br />
a articular os interesses da indústria de extracção mineira; 2) a capacidade de a comissão, com<br />
uma postura assumidamente defensiva, poder eventualmente articular e integrar correctamente<br />
as políticas e estratégias sectoriais e globais do governo provincial, no âmbito da realização dos<br />
interesses expressos pelo sector da indústria mineira; 3) o motivo pelo qual a comissão não<br />
inclui, no rol das suas inquietações, a busca de alternativas mais dignas e humanas para os cidadãos<br />
como os residentes dos bairros Matundo e Mateus Sansão Muthemba, arredores da cidade<br />
de Tete, em relação aos quais há conhecimento de estarem a “enfrentar vicissitudes que vão<br />
desde a precariedade das habitações localizadas em terrenos marginais, íngremes, pedregosos,<br />
com ravinas expostas à erosão pluvial e eólica até à falta da rede pública de abastecimento de<br />
água, energia eléctrica e um sistema de saneamento do meio”. Estes casos são referidos por<br />
Matine e Fonseca (2009); e 4) se os terrenos identificados para o reassentamento das populações<br />
por virtude do desenvolvimento da indústria mineira são definitivos ou não.<br />
O recente mapeamento geológico admite que novas áreas de ocorrência de minérios possam ser descobertas<br />
e, se este facto não for devidamente equacionado, nos actuais planos de reassentamento das<br />
populações, poderá resultar que num futuro não muito distante as mesmas populações possam sofrer<br />
novas migrações. A experiência não seria de todo surpreendente, porque em Moma, no projecto<br />
de extracção das areias pesadas, apontam-se conflitos entre a empresa e as 140 famílias que tiveram<br />
de ser retiradas das suas anteriores zonas de habitação, no âmbito da implementação da primeira<br />
fase do projecto. Estas famílias, que actualmente se vêem na contingência de abandonar os locais<br />
onde se encontram, devido ao arranque da fase subsequente do desenvolvimento do projecto,<br />
A Terra no Contexto do Desenvolvimento da Indústria Mineira Desafios para Moçambique 2010 221
exigem que a empresa honre integralmente os seus compromissos anteriores, pois limitou-se apenas<br />
a assumir as despesas da construção de habitações nas zonas iniciais de reassentamento. 12<br />
A experiência da aplicação da legislação mineira para a situação das famílias que habitavam a área<br />
de implementação do projecto das areias pesadas poderá não ter sido a desejável. As expectativas<br />
criadas em torno dos benefícios sociais e económicos que resultariam para as famílias não<br />
se verificaram. Se estas tinham expectativas de ver: 1) minorados os problemas de desemprego<br />
na zona; 2) a empresa a financiar projectos sociais no âmbito das suas responsabilidades sociais<br />
corporativas e ainda; 3) a compensar-lhes de outras externalidades negativas de que hajam<br />
sofrido ou a que estejam expostos, tudo isso não passou de mera expectativa, pois, de tudo<br />
quanto se sabe que tenha acontecido resume-se à construção de casas para o reassentamento das<br />
famílias deslocadas. Mas também se poderia questionar sobre as responsabilidades do Governo,<br />
relativamente ao cumprimento do artigo 28 do Decreto n.º 5/2008, que o obriga a fixar no<br />
Orçamento do Estado uma percentagem proveniente das entradas das receitas fiscais cobradas<br />
à Kenmare e destinadas a canalizar para a comunidade que vive na zona do projecto, para o seu<br />
desenvolvimento. Esta verba não está a ser canalizada e não se sabe por que motivos.<br />
A propósito da percentagem deduzida das receitas geradas pela actividade mineira que o Governo<br />
deve canalizar para o desenvolvimento das comunidades locais, através da Lei Orçamental,<br />
seria esta a forma mais adequada de contribuir para o desenvolvimento das referidas<br />
comunidades? Há informações 13 dando conta de desvios de aplicação de verbas que têm sido<br />
canalizadas às comunidades, no âmbito da actividade de exploração de recursos florestais. Nos<br />
termos da Lei de Florestas e Fauna Bravia, 20% das receitas geradas dessa actividade se destinam-se<br />
ao desenvolvimento comunitário. Quando as transferências têm lugar, há falta de clareza<br />
quanto à forma, onde e em que aplicar os valores.<br />
Olhando para os resultados práticos (nulos, do ponto de vista do objectivo pretendido) da opção<br />
do Governo de retribuir as zonas de produção mineira, pela sua contribuição para a economia do<br />
País, através de uma dotação financeira, destinada ao desenvolvimento local, pensamos ser de rever<br />
o mecanismo, adoptando, em alternativa, um modelo que enquadrasse os benefícios fiscais e de responsabilidade<br />
social das empresas dentro de uma estratégia de desenvolvimento efectivo, em que<br />
o princípio da justa retribuição da riqueza gerada fosse garantido, bem como fosse promovida a<br />
diversificação da base produtiva e comercial (Sociedade Civil, 2008 e Castel-Branco, 2008).<br />
INVESTIMENTOS NA INDÚSTRIA DE EXTRACÇÃO MINEIRA<br />
E OS POSSÍVEIS CONFLITOS INTERGERACIONAIS<br />
Em princípio, à medida que a quantidade de investimentos na área mineira aumenta, também<br />
aumenta a pressão sobre o uso e o aproveitamento da terra. Esta pressão, se mal gerida, pode<br />
222 Desafios para Moçambique 2010 A Terra no Contexto do Desenvolvimento da Indústria Mineira
causar conflitos de natureza geracional e intergeracional. As soluções legais, para quando haja<br />
conflitos de interesses sobre a terra, sendo um dos intervenientes titular de uma licença mineira,<br />
tal como já abordámos anteriormente, beneficiam o interesse mineiro, que prevalece e os<br />
restantes, ainda que sejam anteriores, vêem os seus títulos de uso e aproveitamento de terras extintos,<br />
posteriormente transmitidos e as terras convertidas em unidades cadastrais para operações<br />
mineiras. Por consequência, esta situação cria movimentações de pessoas à procura de<br />
novos reassentamentos. Em Tete, o facto já levou à criação de uma comissão multisectorial, que<br />
em articulação com um dos operadores mineiros na província identificou novas terras para o<br />
reassentamento das populações que viviam nas áreas demarcadas de exploração mineira, garantiu<br />
a realização de obras de construção de casas, infra-estruturas sociais ligadas à educação,<br />
saúde, rede de fornecimento de água e energia, terras para a pastagem e agricultura. Contudo,<br />
não há referência sobre o período que vai do momento em que as famílias abandonam as suas<br />
machambas e outras actividades relevantes para o seu auto-sustento, até à sua estabilização<br />
e estabelecimento da sua nova relação com o mercado.<br />
O exemplo desta articulação é apenas um entre várias centenas de outros que terão de se seguir,<br />
conforme o número de pedidos de licenciamentos de empresas. Se a este número esperarmos<br />
que se acrescentem outros, incentivados pelos recentes dados divulgados através do<br />
mapeamento geológico de cobertura nacional, é de prever que a pressão sobre a terra, através<br />
da indústria mineira, seja sempre crescente. Esta descrição não nos deve levar a pensar apenas<br />
na pressão de impacto imediato sobre a terra. Isto é, relacionar apenas com a movimentação<br />
das populações, através da sua retirada das áreas de exploração mineira, ainda que depois lhes<br />
sejam proporcionadas condições de reassentamento e estabilidade mínima, visando compensar<br />
os efeitos da sua retirada dos locais anteriores.<br />
A pressão poderá ter impacto intergeracional, dependendo das estratégias do Governo relativamente<br />
ao actual clima de investimentos, sobretudo na área mineira. O desafio será o de saber<br />
se o Governo abandonará a actual estratégia defensiva caracterizada por: 1) atrair as empresas<br />
mineiras a implantarem-se no território nacional através de concessão de grandes benefícios fiscais<br />
a essas empresas e assegurando, das mesmas, a obtenção de rendas mínimas para compensar<br />
a sociedade pelas externalidades negativas caracterizadas por deslocações de populações, perda<br />
de alternativas de desenvolvimento e de emprego, poluição, vulnerabilidade e volatilidade<br />
macroeconómica (Castel-Branco 2009); 2) ausência de articulação e interligação entre sectores<br />
representando os interesses da indústria de extracção mineira e os restantes da economia<br />
nacional, por forma a que as dinâmicas geradas pelo funcionamento e localização das empresas<br />
mineiras sirvam para a diversificação e o alargamento da base produtiva da economia nacional<br />
(Castel-Branco 2008).<br />
Uma estratégia proactiva do Governo, na área dos recursos minerais, permitiria uma exploração<br />
equitativa e racional destes recursos, possibilitando ao mesmo tempo a redução de confli-<br />
A Terra no Contexto do Desenvolvimento da Indústria Mineira Desafios para Moçambique 2010 223
tos de terras. A questão da exploração equitativa e racional dos recursos minerais remete-nos<br />
à discussão sobre o desenvolvimento sustentável. Este paradigma é muitas vezes referido nos<br />
planos do Governo, tanto sectoriais como globais, embora haja pouco debate sobre o seu sentido<br />
e contorno. Na linha de Amanor (2008), desenvolvimento sustentável pode ser definido de<br />
três maneiras. A primeira toma o conceito como a introdução de práticas de gestão técnica<br />
sobre determinados recursos identificados com o objectivo de atingir um rendimento sustentável<br />
de longa duração, isto é, práticas de uma gestão que asseguram, a partir da utilização de<br />
certos recursos, continuamente, bons resultados e ao mesmo tempo permitem a reposição ou<br />
a renovação desses recursos.<br />
A segunda definição integra o princípio da gestão e regulação do meio ambiente ou do conjunto<br />
dos recursos naturais pela sociedade e os seus órgãos governativos, a fim de assegurar a<br />
existência permanente dos referidos recursos ou meio ambiente para as gerações futuras. Nesta<br />
perspectiva, seria necessária a criação de mecanismos de gestão que assegurassem que os recursos<br />
naturais não sofreriam uma sobreexploração tendo em vista só a satisfação de interesses particulares<br />
e egoístas. Ela conduz ao conceito segundo o qual o desenvolvimento sustentável deve<br />
ser entendido como igualdade intergeracional, isto é, desevolvimento que a despeito de responder<br />
às preocupações do presente não deve, todavia, comprometer as necessidades das<br />
futuras gerações.<br />
A terceira e última definição integra a noção de equidade, na perspectiva de que desenvolvimento<br />
sustentável deve providenciar oportunidades iguais e acesso ao alcance de todos. Não se pode<br />
basear num alto padrão de vida para uma minoria e pobreza para a maioria, ou a divisão do<br />
mundo em ricos e pobres. Esta abordagem defende que a equidade intergeracional faz pouco ou<br />
nenhum sentido sem uma equidade geracional e, por esta razão, políticas que são mais inclusivas<br />
e garantem a redistribuição de recursos são os pré-requisitos para o desenvolvimento sustentável.<br />
A tese ou a definição combina as preocupações do presente com o futuro. Defende que não se<br />
pode falar de equidade intergeracional sem garantir que as políticas actuais se orientem no<br />
mesmo sentido, isto é, que a exploração das riquezas minerais seja utilizada para a criação de mais<br />
oportunidades de acumulação e redistribuição da riqueza produzida. Fica, por isso, o desafio de<br />
usar os investimentos na área de exploração mineira para a promoção e alargamento da base produtiva,<br />
não apenas a nível dos locais onde os minerais estão em exploração, mas também a nível<br />
regional e nacional. Isto permitiria retirar a economia da dependência dum grupo limitado de<br />
recursos, redistribuindo a pressão sobre um leque variado de produtos e recursos.<br />
Impõe-se, por isso, a despeito de atrair investimentos para a indústria de extracção mineira,<br />
determinar em que medida estes investimentos irão efectivamente interligar-se com outros planos<br />
e estratégias sectoriais e globais, com impacto a nível local (da ocorrência e implementação<br />
dos projectos mineiros), regional (províncias) e nacional. A interligação tomaria em conta a<br />
contribuição, directa ou indirecta, na promoção e criação de dinâmicas que permitissem o<br />
224 Desafios para Moçambique 2010 A Terra no Contexto do Desenvolvimento da Indústria Mineira
desenvolvimento ou a emergência de outras áreas de actividade económica (novos sectores<br />
produtivos, de serviços e comerciais) e a transformação das relações de poder e de produção.<br />
Castel-Branco e Ossemane (2009) chamam a atenção para a existência de uma dinâmica económica<br />
caracterizada por uma concentração de investimentos na área da indústria extractiva e<br />
de uma relação desarticulada entre os sectores produtivos, o que, dado o padrão corrente de<br />
produção, contribui para: 1) o risco de esgotamento dos recursos; 2) o cerceamento das possibilidades<br />
de surgimento de novas oportunidades e capacidades para o futuro.<br />
Ainda que cada ciclo geracional tenda a ter menos recursos naturais, se a exploração de recursos<br />
minerais for ligada a um processo de diversificação e articulação com os outros sectores produtivos,<br />
a economia será menos dependente, e isso permite que o processo de desenvolvimento<br />
seja equilibrado, equitativo e redistributivo, acautelando assim os problemas actuais. Esta seria<br />
uma base de segurança e equidade para o futuro.<br />
NOTAS<br />
1<br />
DUAT: Direito de Uso e Aproveitamento de Terras.<br />
2<br />
Ministra dos Recursos Minerais de Moçambique, na Assembleia da República, na sessão de audição<br />
ao Governo, realizada no dia 13 de Maio de 2009. http://www.geologo.com.br (consultado<br />
a 7/9/2009).<br />
3<br />
Aprovado através do Decreto n.º 5/2008, de 9 de Abril. Na bibliografia pode-se encontrar uma<br />
listagem das principais leis, decretos, decisões, resoluções, despachos e diplomas ministeriais sobre<br />
questões relativas à terra e recursos naturais.<br />
4<br />
Lei n.º 14/2002, de 26 de Junho, art. os 14, 16 e 43.<br />
5<br />
Editorial. In Recursos Minerais, Boletim de Publicação Trimestral, Edição n.º 1, Dezembro de 2007.<br />
6<br />
Dados retirados duma apresentação de Elias Daudi, do Ministério dos Recursos Minerais, sobre<br />
o resultado do Levantamento Geológico de 2001 e 2007, em Lisboa, a 29 de Outubro de 2008.<br />
7<br />
Idem.<br />
8<br />
Idem.<br />
9<br />
Thomas R. Yager, Th. R. The Mineral Industry of Mozambique.<br />
http://minerals.usgs.gov/minerals/pubs/country/2007/myb3-2007-mz.pdf<br />
(consultado a 7/9/2009).<br />
10<br />
Bernardo Álvaro, Província de Tete: Empresas estrangeiras disputam exploração de recursos minerais.<br />
In Zambeze. 10 de Setembro de 2009.<br />
11<br />
Esta questão passa muitas vezes despercebida. As autoridades públicas raras vezes cumprem<br />
o dispositivo legal que manda deduzir uma percentagem das receitas da actividade mineira e<br />
canalizar para o desenvolvimento das comunidades locais.<br />
12<br />
ADECOR – Associação para Desenvolvimento das Comunidades Rurais, Comunicação apresentada<br />
no Fórum da Sociedade Civil sobre ITIE, de 27 e 28 de Novembro de 2008, p. 4.<br />
A Terra no Contexto do Desenvolvimento da Indústria Mineira Desafios para Moçambique 2010 225
13<br />
Informações mais recentes foram transmitidas pelos participantes da Reunião de Auscultação<br />
e Debate sobre a Situação Florestal em Moçambique, organizada pelo movimento Amigos da<br />
Floresta e pelo Centro de Integridade Pública, de 8 a 9 de Julho de 2009, em Maputo.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ADECOR (2008). Alguma mudança deve ser feita na Lei e Regulamento de Recursos Minerais em<br />
Moçambique. Comunicação apresentada no Fórum da Sociedade Civil sobre a Iniciativa<br />
de Transparência da Indústria Extractiva (ITIE), 27 e 28 de Novembro de 2008, Maputo.<br />
Aina, A. T. et al (2004). Globalization and Social Policy in Africa. Dakar: Codesria.<br />
Amanor, S. K. e Moyo, S., (2008). Land & Sustainable Development In Africa. London & New<br />
York: Zed Books.<br />
Caetano, R.V. (2008). Intervenção das Organizações da Sociedade Civil da Província de Tete.<br />
Comunicação apresentada no Fórum da Sociedade Civil sobre a Iniciativa de<br />
Transparência da Indústria Extractiva (ITIE), 27 e 28 de Novembro de 2008, Maputo.<br />
Cambaza, V. (2009). A Lei de Terras, de Minas e Sistemas Consuetudinários. Comunicação<br />
apresentada na II Conferência do <strong>IESE</strong>, 22 e 23 de Abril de 2009, Maputo.<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/II conf/CP12 2009 Cambaza.pdf (consultado a<br />
7/9/2009).<br />
Castel-Branco, C. (2008). Os mega-projectos em Moçambique: que contributo para a economia<br />
nacional? Comunicação apresentada no Fórum da Sociedade Civil sobre a Iniciativa de<br />
Transparência da Indústria Extractiva (ITIE), 27 e 28 de Novembro de 2008, Maputo.<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/noticias/Mega Projectos ForumITIE.pdf (consultado a<br />
7/9/2009).<br />
Castel-Branco, C. (2009). Indústrias de recursos naturais e desenvolvimento: alguns comentários.<br />
IDeIAS n.º 10, <strong>IESE</strong>. http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/<br />
Ideias 10.pdf (consultado a 7/9/2009).<br />
Castel-Branco, CN. e Ossemane, R. (2009). Crises ciclicas e desafios de transformação do<br />
padrão de crescimento económico em Moçambique in Desafios para Moçambique, 2010.<br />
(2009).<br />
Decisão n.º 2/2008, de 11 de Junho – aprova a adjudicação do Estudo de Mercado para Gás<br />
Natural e Condensado em Moçambique, no valor de USD 1 521 811, 84, excluindo o<br />
IVA e outras taxas, ao consórcio IPA/Penspen/KPMG, de origem britânica e<br />
moçambicana.<br />
Decreto n.º 16/2005, de 24 de Julho – aprova o Regulamento de Comercialização de Produtos<br />
Minerais.<br />
Decreto n.º 23/2003, de 17 de Julho – aprova o Regulamento da Lei de Minas e seus Anexos.<br />
Decreto n.º 26/2004 – aprova o Regulamento Ambiental para a Actividade Mineira.<br />
226 Desafios para Moçambique 2010 A Terra no Contexto do Desenvolvimento da Indústria Mineira
Decreto n.º 45/2004, de 29 de Setembro — aprova o Regulamento sobre o Processo de<br />
Avaliação do Impacto Ambiental e revoga o Decreto n.º 76/98, de 29 de Dezembro.<br />
Decreto n.º 5/2008, de 9 de Abril – aprova o Regulamento dos Impostos Específicos da<br />
Actividade Mineira, previsto na Lei n.º 11/2007, de 27 de Junho e revoga o<br />
Decreto n.º 53/94, de 9 de Junho.<br />
Decreto n.º 62/2006, de 26 de Dezembro – aprova o Regulamento da Lei de Minas e seus<br />
Anexos.<br />
Decreto n.º 7/2002, de 7 de Maio — aprova a realização do Projecto “Limpopo”, os termos de<br />
autorização, e cria a respectiva Zona Franca Industrial (ZFI).<br />
Decreto n.º 76/98, de 29 de Dezembro — aprova o Regulamento sobre o Processo de Avaliação<br />
do Impacto Ambiental.<br />
Despacho de 12 de Julho de 2007 – delega no Vice-Ministro de Recursos Minerais e Energia a<br />
competência para a revogação imediata de títulos, no âmbito da legislação em vigor.<br />
Despacho de 24 de Março de 2007 – levanta a interrupção temporária da recepção de pedidos<br />
de Licenças de Comercialização de Produtos Minerais apresentados por qualquer pessoa<br />
(singular ou colectiva), junto à Direcção Nacional de Minas ou Direcção Provincial de<br />
Recursos Minerais e Energia.<br />
Diploma Ministerial n.º 116/2006, de 7 de Junho – declara quarenta e oito áreas designadas de<br />
Senha Mineira.<br />
Diploma Ministerial n.º 189/2006, de 14 de Dezembro – aprova as Normas Básicas de Gestão<br />
Ambiental para a Actividade Mineira.<br />
Diploma Ministerial n.º 201/05, de 23 de Agosto – aprova o Estatuto Orgânico do Ministério de<br />
Recursos Minerais e Energia.<br />
Diploma Ministerial n.º 268/2004, de 31 de Dezembro – define o destino de 40% da taxa de<br />
emissão, alargamento, prorrogação e transmissão de títulos mineiros e o destino de 60%<br />
do valor das multas, pelo exercício da actividade mineira ilegal.<br />
Diploma Ministerial n.º 92/2007 de 11 de Julho – aprova as Normas e Procedimentos que<br />
regulam a inscrição de técnicos elegíveis à elaboração dos Relatórios de Prospecção e<br />
Pesquisa e Programas de Trabalho em Projectos Mineiros.<br />
Hettne, B. (1995). Development Theory and the Three Worlds. Second Edition, Harlow, Essex:<br />
Longman Scientific & Technical.<br />
Lei n.º 11/2007, de 27 de Junho — actualiza a legislação tributária, especialmente a relativa à<br />
actividade mineira.<br />
Lei n.º 12/2007 — actualiza a legislação tributária, especialmente a relativa à actividade<br />
petrolífera.<br />
Lei n.º 13/2007, de 27 de Julho – procede a revisão do regime dos incentivos fiscais das áreas<br />
mineiras e petrolíferas.<br />
A Terra no Contexto do Desenvolvimento da Indústria Mineira Desafios para Moçambique 2010 227
Lei nº 14/2002, de 26 de Junho – aprova a Lei de Minas e revoga a Lei n.º 2/86, de 16 de Abril<br />
e a Lei n.º 5/94, de 13 de Setembro.<br />
Lei n.º 2/86, de 16 de Abril — aprova a Lei de Minas.<br />
Lei n.º 8/2003, de 19 de Maio — estabelece princípios e normas de organização dos órgãos<br />
locais do Estado nos escalões de província, distrito, posto administrativo e de localidade.<br />
MADER (2004). Legislação do Sector Agrário. Maputo: Centro de Documentação e<br />
Informação Agrária.<br />
Mandala, E. C. (1990). Work and Control in a Peasant Economy, A History of the Lower Tchiri<br />
Valley in Malawi 1859-1960. Madison: The University of Wisconsin Press.<br />
Matine, L. T. e Fonseca, A. (2009). Vulnerabilidade e Estratégias de Sobrevivência de Famílias na<br />
Periferia da Cidade de Tete: o caso dos Bairros Matundo e Mateus Sansão Muthemba.<br />
Maputo: II Conferência do <strong>IESE</strong> – “Dinâmicas da Pobreza e Padrões de Acumulação<br />
Económica em Moçambique”.<br />
Quadros, M. C. (2004). Manual de Direito da Terra. Maputo: Centro de Formação Jurídica e<br />
Judiciária.<br />
Resolução n.º 71/2007, de 21 de Dezembro – reconhece a Fundação Mineira de Moçambique, a<br />
qualidade de sujeito de direito.<br />
Serra, C. (2007). Colectânea de Legislação sobre a Terra. 2.ª Edição. Maputo: Centro de Formação<br />
Jurídica e Judiciária.<br />
Shivji, I. G., (2006). Let the People Speak, Tanzania Down the Road to Neo-Liberalism. Dakar:<br />
CODESRIA.<br />
228 Desafios para Moçambique 2010 A Terra no Contexto do Desenvolvimento da Indústria Mineira
FINANCIAR O DESENVOLVIMENTO<br />
Abdul Magid Osman<br />
DEFINIR O DESENVOLVIMENTO<br />
Para os efeitos deste texto, vamos considerar o desenvolvimento como o resultado de um<br />
aumento de produtividade, isto é, um aumento de output de bens e serviços, sem aumento na<br />
utilização de recursos.<br />
Um exemplo simples de desenvolvimento é o de 100 mil camponeses conseguirem produzir<br />
100 000 ton de algodão caroço em vez das 50 000 ton de caroço produzidos no passado, nos<br />
100 000 ha de terras que habitualmente trabalham.<br />
Há também desenvolvimento quando uma unidade sanitária ou uma unidade escolar atendem<br />
mais doentes ou leccionam mais estudantes, sem deterioração da qualidade de serviços, com<br />
os mesmos docentes ou pessoal de saúde e nas mesmas instalações físicas.<br />
Por isso, o factor mais importante para o aumento da produtividade é a inovação tecnológica,<br />
incluindo-se nesta a melhoria da organização do trabalho pela alteração de sistemas e de<br />
processos, para além da introdução de equipamentos e materiais mais modernos (sementes<br />
com maior poder germinativo, por exemplo). Contribuem também para a inovação tecnológica os<br />
investi mentos em infra-estruturas físicas (estradas, barragens, linhas de alta tensão, etc.), em<br />
fábricas ou empresas (a produtividade de um trabalhador integrado numa empresa é, em regra,<br />
muito maior do que um trabalhador rural por conta própria), em educação (nos países em vias de<br />
desenvolvimento, como Moçambique, a educação com qualidade é um requisito fundamental para o<br />
aumento de produtividade) e saúde (a redução de abstenção ao trabalho por doença contribui de<br />
uma forma clara para o aumento de produção para além da redução das despesas com o tratamento<br />
médico).<br />
Muitos outros factores contribuem ainda para o processo de desenvolvimento que é, aliás, muito<br />
mais complexo do que o somatório de projectos. Factores como a tradição (incluindo a religiosa),<br />
cultura (incluindo o sistema de valores), o clima, a localização geográfica e outros, têm um impacto<br />
considerável e, em situações especiais, até determinante, no processo de desenvolvimento. A<br />
criação de um ambiente em que a iniciativa individual e colectiva possa florescer, em igualdade<br />
Financiar o Desenvolvimento Desafios para Moçambique 2010 229
de condições e sem peias burocráticas, explica em grande medida o recente sucesso económico<br />
da Índia.<br />
Como o objectivo desta apresentação é abordar a questão do “financiamento do desenvolvimento”,<br />
ou seja, analisar as fontes de financiamento para o desenvolvimento, vamos adoptar a<br />
a definição inicial e restrita de que o desenvolvimento é o resultado directo de aumento de produtividade<br />
e este depende de investimentos, e admitir ainda que as taxas de crescimento do Produto<br />
Interno Bruto (PIB) reflectem de algum modo o desenvolvimento económico e social de<br />
um país, pois sem o crescimento do PIB não há desenvolvimento. 1<br />
Ora, as componentes fundamentais do PIB são: PIB ═ C (Consumo privado e público) + I (Investimento<br />
público e privado) + Exp. (Exportação) ─ Imp. (Importação); e o aumento significativo em<br />
qualquer das componentes como C (consumo), I (Investimento) e Exp. (Exportação) tem um impacto<br />
correspondente nas taxas de crescimento do PIB, consoante o seu peso na equação.<br />
A composição do PIB varia de país para país e, em consequência, as taxas de crescimento têm<br />
também origens diferentes.<br />
Assim, por exemplo, nos Estados Unidos da América, o consumo privado representa 70% a 74%<br />
do PIB, e durante muitos anos o aumento do consumo privado foi o principal factor para o crescimento<br />
da economia dos EUA. Deste aumento do consumo, suportado em parte por créditos<br />
bancários, resultou um sobreendividamento das famílias americanas e, em consequência, uma<br />
baixíssima taxa de poupança privada.<br />
Este modelo de crescimento do PIB, com endividamento tanto de famílias como do próprio<br />
Estado americano (que é o maior devedor do mundo) era insustentável, pois criou desbalanços<br />
ao nível mundial e daí a crise económica internacional, com origem nos EUA, que sugou<br />
e continua a sugar as poupanças de outros países.<br />
Com efeito, o Japão, a Alemanha, a China, a par de países produtores de petróleo, têm poupanças<br />
internas consideráveis para além de superavits nas contas externas, e estas poupanças,<br />
para além de permitirem um nível de investimento significativo, servem também para financiar<br />
o consumo e o investimento de países com fracas poupanças e com défices comerciais elevados<br />
como os EUA, o Reino Unido e a Espanha.<br />
O crescimento económico da China é um exemplo oposto, pois a componente mais importante<br />
para o crescimento são os investimentos e as exportações, com supressão do consumo<br />
privado e público. O modelo é acompanhado de grandes poupanças domésticas que se situam<br />
entre 40 a 50% do PIB, enquanto que no caso dos EUA, as poupanças domésticas se situam<br />
à volta dos 13%.<br />
A capacidade de financiar o investimento de um país depende em última análise das poupanças<br />
nacionais, ainda que, temporariamente, os investimentos nacionais possam ser financiados<br />
do exterior (empréstimos, ou mesmo donativos).<br />
230 Desafios para Moçambique 2010 Financiar o Desenvolvimento
MOÇAMBIQUE<br />
Moçambique é uma versão agravada de países como os EUA, a Espanha e o Reino Unido, pois<br />
nestes as poupanças nacionais são reduzidas em termos do PIB, enquanto que no nosso caso<br />
são negativas.<br />
De igual modo, o défice moçambicano da Balança Comercial representa 20% do PIB, e no caso<br />
americano, embora gigantesco em termos absolutos (da ordem dos 600 bilhões de USD),<br />
representa, no entanto, menos de 5% do PIB americano .<br />
As poupanças nacionais, sendo negativas, têm um papel reduzido no financiamento do desenvolvimento<br />
que, no nosso caso, depende anormalmente da ajuda externa, incluindo os empréstimos<br />
internacionais.<br />
Com efeito, as taxas elevadas de crescimento do PIB moçambicano resultam em grande medida<br />
da componente I (investimento público e privado) que em regra se situa entre 20 a 25%<br />
do PIB (em alguns anos especiais atingiu 30%) e na sua quase totalidade financiado com<br />
recursos externos.<br />
AJUDA EXTERNA<br />
A ajuda externa financia não só o investimento público mas também o consumo privado e público,<br />
pois as divisas disponibilizadas através de donativos directos ao Orçamento do Estado e<br />
de apoio à Balança de Pagamentos ajudam a equilibrar as contas externas do País. Com efeito,<br />
como mostra o quadro seguinte, os défices anuais da Balança Comercial e de Transacções Correntes<br />
têm vindo a subir em valores absolutos embora em termos relativos ao PIB tenham tendência<br />
para diminuir.<br />
FIGURA 1 SALDOS DAS CONTAS EXTERNAS (SEM GRANDES PROJECTOS)<br />
Saldos em Milhões de USD<br />
Anos Balança Comercial Transacções Correntes<br />
Média de 90-2000 -694 -494<br />
2001 -675 -804<br />
2002 - 678 -1169<br />
2003 -818 -871<br />
2004 -1050 -1101<br />
2005 -1518 -1533<br />
2006 -1501 -1455<br />
2007 -1820 -1816<br />
2008 -2209 -2149<br />
FONTE Banco de Moçambique (Balança de Pagamentos 2003-2004, 2005, 2006 e 2007)<br />
Instituto Nacional de Estatística (Anuários Estatísticos 1990-2008)<br />
Estes défices de contas externas, que se mantêm desde a Independência nacional, são sustentados<br />
na quase totalidade por ajuda externa cujos volumes são consideráveis.<br />
Financiar o Desenvolvimento Desafios para Moçambique 2010 231
A ajuda externa, como dissemos, serve não só para equilibrar as nossas contas externas mas também<br />
e sobretudo para financiar o investimento público.<br />
Com efeito, os impostos e outras receitas do Orçamento do Estado mal chegam para cobrir as<br />
despesas correntes, como elucida o quadro seguinte:<br />
FIGURA 2 FINANÇAS PÚBLICAS (% DO PIB)<br />
2007 2008 2009* 2010*<br />
Despesas totais 28.1 27.9 33.1 34.4<br />
Despesas correntes 16.4 16.6 17.5 17.6<br />
Despesas de Investimentos 11.7 11.6 15.6 16.8<br />
Receitas (sem donativos) 15.9 16.0 15.7 16.0<br />
FONTE FMI<br />
* Estimativas do FMI<br />
Aqui se verifica que o saldo entre as receitas próprias (sem donativos) e as despesas correntes<br />
é insignificante, pelo que o investimento público depende exclusivamente da ajuda externa, que<br />
representa 46% do Orçamento do Estado, com tendência para agravar. Se incluirmos nesta<br />
análise, os financiamentos externos para os projectos desenvolvidos no âmbito de empresas<br />
públicas, como a EDM, a nossa dependência do exterior é ainda maior.<br />
EMPRÉSTIMOS INTERNACIONAIS<br />
Embora não estejam disponíveis os dados estatísticos, é do conhecimento geral que os grandes<br />
projectos – MOZAL, SASOL, HCB (aquisição da posição portuguesa) e outros são financiados<br />
na quase totalidade pela banca internacional, pois os bancos locais não têm fundos<br />
próprios para os valores em causa de vários biliões de USD.<br />
A crise internacional baixou radicalmente o apetite da banca internacional no financiamento dos<br />
projectos nos países em desenvolvimento, (com excepção dos ligados a energia, em particular<br />
petróleo), o que implicará a redução do investimento privado estrangeiro, o que implica a<br />
redução das elevadas taxas de crescimento do PIB moçambicano registado no passado.<br />
POUPANÇAS NACIONAIS<br />
A grande dependência da ajuda externa e do financiamento internacional em geral é uma consequência<br />
da exiguidade das poupanças nacionais que, como já dissemos, são negativas.<br />
As poupanças nacionais têm a seguinte origem:<br />
• Governo<br />
• Empresas<br />
• Individuais<br />
232 Desafios para Moçambique 2010 Financiar o Desenvolvimento
Ao nível do Governo, as receitas próprias (antes dos donativos) do Estado não chegam para<br />
cobrir as despesas correntes, pelo que, ao nível do sector público, não há, na prática, disponibilidades<br />
para investimento. Note-se que é pouco provável que, no futuro, o sector público<br />
possa apresentar poupanças consideráveis, pois os aumentos de receitas próprias destinar-se-ão<br />
para cobrir os aumentos das despesas correntes da Educação, da Saúde, e sobretudo para a<br />
manutenção de infra-estruturas que entretanto foram construídas. etc... pois as actuais verbas<br />
destinadas a estes objectivos são insuficientes.<br />
Ao nível das Empresas, as poupanças correspondem aos lucros líquidos depois de impostos e depois<br />
dos dividendos. Não existem dados fidedignos para a estimativa deste valor; contudo, podemos<br />
ter uma grandeza muito grosseira se trabalharmos com os números publicados no Relatório<br />
das 100 maiores empresas da KPMG 2007, que para o conjunto apresenta um lucro depois de impostos<br />
de 854 milhões de USD, dos quais 592 milhões USD são da MOZAL, que não contribuem<br />
para a poupança nacional, ou porque são expatriados como dividendos, ou porque são<br />
retidos em contas bancárias no exterior (o mesmo sucedia com as contas da HCB, no passado).<br />
Se retirarmos ao total o conjunto de lucros de outras 15 empresas com os maiores lucros, tais como<br />
Millenium BIM, (58 milhões), HCB (42 milhões), Cervejas de Moçambique e outras, então a diferença<br />
fica reduzida para apenas 20 milhões de USD, aproximadamente. Isto é, 84 das 100 maiores<br />
empresas de Moçambique têm lucros acumulados de cerca de 20 milhões de USD apenas. Obviamente<br />
que estes números reflectem apenas os lucros declarados e não os reais, mas de todo o modo,<br />
não é por aí que Moçambique vai conseguir financiar os projectos de desenvolvimento.<br />
DEPÓSITOS NO SISTEMA BANCÁRIO<br />
A outra forma, e talvez a mais representativa, de avaliar as poupanças nacionais é a de analisar<br />
a evolução dos depósitos no sistema bancário.<br />
Os depósitos no sistema bancário têm vindo a crescer a taxas superiores ao crescimento real<br />
do PIB, mas muito próximas do seu crescimento nominal como se constata do quadro seguinte:<br />
FIGURA 3 EVOLUÇÃO DOS DEPÓSITOS (EM MILHÕES DE USD)<br />
2000 %* 2001 %* 2002 %* 2003 %* 2004 %* 2005 %* 2006 %* 2007 %*<br />
DEPÓSITOS TOTAIS 948 25 919 -3 977 6 1200 23 1287 7 1601 16 1857 16 2250 21<br />
DEPÓSITOS À ORDEM 712 24 686 -4 706 3 810 15 856 6 1122 11 1250 11 1438 15<br />
DEPÓSITO A PRAZO 236 29 233 -2 271 17 390 44 431 11 478 27 608 27 812 34<br />
* % variação em relação ao periodo anterior<br />
FONTE Estimativas do FMI nos Staff Reports (vários); FMI International Financial Series (vários); Taxas de câmbio do<br />
Banco de Moçambique<br />
Em sentido restrito, só os depósitos a prazo é que constituem poupanças, e felizmente têm vindo<br />
a crescer a uma taxa maior que as de depósitos à ordem, representando já cerca de 38% dos de-<br />
Financiar o Desenvolvimento Desafios para Moçambique 2010 233
pósitos totais (nos países desenvolvidos, este valor atinge por vezes cerca de 80%, não obstante<br />
existirem nesses países outros instrumentos de poupanças – tais como obrigações, acções, etc.).<br />
A capacidade de financiar dos bancos em cada ano resulta dos reembolsos mais os aumentos<br />
dos depósitos. Ora, o aumento de depósitos nos últimos 5 anos tem sido em média da ordem<br />
dos 200 milhões de USD por ano, o que é manifestamente insuficiente para as necessidades do<br />
país, daí a necessidade de empréstimos do exterior.<br />
Esta distinção entre os depósitos à ordem e os depósitos a prazo ajuda também a clarificar a expectativa,<br />
falsa na nossa opinião, de que a bancarização da população pode aumentar consideravelmente<br />
as poupanças, pois, embora haja espaço para aumentar a bancarização da população,<br />
este esforço não deverá trazer grandes aumentos de depósitos a prazo pelas seguintes razões:<br />
• A população rural será durante muito tempo tomadora líquida de recursos, pois tem, com<br />
pequenas excepções, rendimentos monetários muito baixos. Confunde-se infelizmente o<br />
excesso de liquidez que existe em momentos de comercialização e que não chega a constituir-se<br />
em poupança, (em depósito a prazo), pois é rapidamente dispendida.<br />
• Além disso, existe uma grande concentração de depósitos tanto ao nível de empresas como<br />
de particulares, e é muito possível que 5% das contas individuais detenham mais de 95% do<br />
total dos depósitos de particulares.<br />
Neste contexto do aumento do número de depositantes, por exemplo, para o dobro, resultaria<br />
um aumento pouco significativo do valor dos depósitos a prazo e mesmo à ordem.<br />
A constituição das poupanças, por outro lado, é um processo acumulativo de várias dezenas de<br />
gerações e nos países mais avançados estas poupanças estão nos bancos, nos títulos de crédito<br />
(acções e obrigações) e nas propriedades (empresas, casas, etc.). Por exemplo, a capitalização<br />
da Bolsa de Valores de Joanesburgo é superior a 5 triliões de rands, ou seja, cerca de 2,8 vezes<br />
o PIB sul-africano. De igual modo, os depósitos no sistema bancário sul-africano representam<br />
cerca de 110% do PIB (2 triliões de rands para um PIB de 1,8 triliões de rands), enquanto no<br />
nosso caso os depósitos bancários representam apenas 28% do PIB moçambicano e a capitalização<br />
da nossa Bolsa de Valores é irrisória.<br />
O esforço de bancarização e/ou campanhas de poupança são extremamente importantes, mas<br />
não é de esperar aumentos espectaculares na captação de poupanças ao ponto de as mesmas<br />
poderem financiar os investimentos públicos ou os grandes projectos privados, pois, ao nível de<br />
investimentos públicos, as estimativas das necessidades para os próximos 2 anos são de cerca<br />
de 5 biliões de USD, enquanto as poupanças privadas (depósitos a prazo) deverão crescer em<br />
cerca de 500 milhões de USD, para o mesmo período.<br />
Por outro lado, o uso de poupanças privadas para financiar o investimento público pode estrangular<br />
o desenvolvimento do sector privado, que ficaria assim sem acesso ao crédito bancário.<br />
234 Desafios para Moçambique 2010 Financiar o Desenvolvimento
FINANCIAMENTO FUTURO<br />
A dependência de Moçambique da ajuda externa é sobejamente conhecida, mas a crise económica<br />
e sobretudo a crise de instituições financeiras internacionais vai agravar esta dependência,<br />
pois, como revela o quadro seguinte extraído do relatório do FMI no âmbito de<br />
consultas, no âmbito do artigo IV, as previsões de investimento são as seguintes:<br />
FIGURA 4 INVESTIMENTO COMO % DO PIB<br />
2007 2008 2009 2010<br />
INVESTIMENTO NACIONAL BRUTO 17.9 18.5 21.9 22.7<br />
* GOVERNO 11.7 11.6 15.6 16.8<br />
* OUTROS SECTORES 6.2 6.9 6.3 5.9<br />
FONTE Governo de Moçambique<br />
Por outro lado, o mesmo relatório prevê a seguinte evolução para as contas do Estado.<br />
FIGURA 5 DESPESAS E RECEITAS DO ESTADO COMO % DO PIB<br />
2007 2008 2009 2010<br />
DESPESAS TOTAIS 28.1 27.9 33.1 34.4<br />
DESPESAS CORRENTES 16.4 16.3 17.5 17.6<br />
DESPESAS DE INVESTIMENTO 11.7 11.6 15.5 16.8<br />
RECEITAS 15.9 16.0 15.7 16.0<br />
FONTE Governo de Moçambique<br />
Portanto, as receitas próprias do Estado não deverão cobrir as despesas correntes do Estado,<br />
pelo que o investimento público que sobe em cerca de 35% deverá ser financiado na totalidade<br />
por recursos externos. 2<br />
PROBLEMÁTICA DA AJUDA EXTERNA?<br />
A redução da dependência em relação à ajuda externa, incluindo os empréstimos internacionais,<br />
é uma preocupação legítima, pois o grau de dependência do país dá à Comunidade Internacional<br />
uma influência desmedida nos assuntos internos deste.<br />
Mas esta dependência é um facto e ela resulta porque as poupanças nacionais são negativas e,<br />
nos próximos 10 anos, não será possível alterar significamente este facto, mesmo que alguns<br />
megaprojectos, tais como os de carvão se materializem. Estes projectos levam alguns anos depois<br />
do ínicio da produção para atingir a plena capacidade, pelo que só depois desse momento<br />
– o de produção óptima — se podem esperar poupanças significativas e, mesmo assim, só se o<br />
regime fiscal for favorável para o país, o que na actual conjuntura internacional será mais díficil<br />
para quase todos os projectos com excepção do petróleo, caso se venham a descobrir reservas<br />
comercialmente viáveis deste produto.<br />
Financiar o Desenvolvimento Desafios para Moçambique 2010 235
Admitir que o país pode viver sem ajuda externa ou com uma redução significativa da mesma, é escamotear<br />
a realidade e recusar tratar de outras questões reais que requerem uma atenção urgente, pois:<br />
• Qualquer país pode viver sem a ajuda externa ou com relações económicas exteriores reduzidas,<br />
mas com um sacrifício enorme no consumo corrente das populações, sobretudo das<br />
mais pobres, e hipotecando ainda o futuro das próximas gerações por ausência de investimento<br />
público e privado;<br />
• Por isso, interessa sim definir uma política mais racional na utilização dos recursos externos<br />
de forma a acelerar a redução desta dependência;<br />
• Esta política é também necessária para reduzir os efeitos perniciosos da Cooperação Internacional.<br />
Por exemplo, a descentralização da decisão na utilização de recursos externos (como<br />
é defendida por alguns sectores) pode tornar o processo de desenvolvimento nacional mais<br />
atomizado e, por consequência, mais incoerente.<br />
BANCO DE DESENVOLVIMENTO<br />
Um Banco de Desenvolvimento é por vezes apresentado como panaceia para a insuficiência<br />
tanto de poupanças nacionais como para a mobilização de recursos externos adicionais, ignorando<br />
o facto de que tanto as poupanças nacionais como os recursos externos não aumentam<br />
com a criação do Banco, com excepção de alguns fundos externos para a constituição do capital<br />
social que de outro modo não viriam para Moçambique.<br />
Mas os bancos, mesmo os de Desenvolvimento, como regra, não usam os fundos próprios para<br />
a sua actividade creditícia, mas sim os fundos alheios (neste caso, depósitos, empréstimos e donativos)<br />
e estes, como já dissemos, são limitados e não aumentam com a criação de um banco<br />
deste tipo. Por isso, um Banco de Desenvolvimento competirá pelos mesmos recursos externos<br />
que hoje financiam os investimentos públicos que figuram no Orçamento do Estado (como<br />
donativos), ou pelos depósitos que constituem a base para a actividade creditícia dos bancos<br />
comerciais ou pelos empréstimos que financiam os projectos das empresas públicas.<br />
Um Banco de Desenvolvimento, embora não signifique um aumento de recursos, pode, no entanto,<br />
permitir racionalizar o processo de decisão sobre os projectos de infra-estruturas a financiar,<br />
exigindo que haja uma melhor fundamentação económica desses mesmos projectos e forçar<br />
que o retorno destes investimentos seja um factor a ponderar. Permitiria ainda que vários fundos<br />
do Estado fossem geridos por uma única instituição e de uma forma mais coerente e racional.<br />
Mas a criação de um Banco desse tipo exigiria que o poder político abdicasse de uma parte importante<br />
de recursos e, sobretudo, que delegasse num conjunto de tecnocratas independentes<br />
o poder de decisão. Por exemplo, as estradas a construir deixariam de ser decididas por critérios<br />
políticos e subjectivos, optando por critérios mais técnicos e objectivos.<br />
Com ou sem um Banco de Desenvolvimento, importa a reformulação de algumas políticas, em<br />
particular as que a seguir mencionamos, para acelerar o processo da independência económica:<br />
236 Desafios para Moçambique 2010 Financiar o Desenvolvimento
POUPANÇAS INFORMAIS<br />
O sistema financeiro nacional, embora se tenha modernizado com agressividade, será ainda durante<br />
muito tempo incipiente e por isso não se constituirá em fonte principal de financiamento para o<br />
desenvolvimento. Por outro lado, não são de esperar poupanças ao nível do Estado, mesmo que<br />
seja possível rever (o que é pouco provável) o sistema de incentivos fiscais para o investimento privado<br />
estrangeiro.<br />
Torna-se, por isso, necessário procurar outras formas de resolver os problemas de ausência de financiamento<br />
para os projectos de desenvolvimento, à semelhança do que sucede com a habitação.<br />
Com efeito, nos subúrbios das nossas cidades, em particular na cidade de Maputo, as casas de<br />
caniço e de zinco foram substituídas por casas de alvenaria.<br />
Este investimento, que se estima em mais de 1,5 biliões de USD, não foi financiado pela ajuda<br />
externa, nem pela banca internacional ou nacional, mas resultou das poupanças informais próprias.<br />
Este esforço e outros similares, quando devidamente enquadrados e apoiados, são a componente<br />
que habitualmente falta ao esforço de desenvolvimento.<br />
As pessoas são pobres porque não têm acesso a recursos, conhecimentos técnicos, terras e<br />
terrenos, etc., e não porque sejam em si incapazes.<br />
A dotação destes recursos e a mudança de atitude exige que se pense no desenvolvimento de<br />
uma forma mais holística e que as intervenções sejam mais sistémicas.<br />
VISÃO MAIS HOLÍSTICA DO DESENVOLVIMENTO<br />
Os projectos de infra-estruturas são importantes, mas, como a experiência revela, não desencadeiam<br />
automaticamente aumentos de produção pela via do aumento de produtividade e, além<br />
disso, implicam custos crescentes de manutenção para o que não existe capacidade financeira nacio<br />
nal. Por isso, é necessário uma política de investimento público que tenha uma visão mais<br />
holística do desenvolvimento, que hoje é confundido com um somatório de projectos.<br />
O aumento da produtividade requer que todo o tecido económico e social funcione melhor,<br />
com mais fluidez, sobretudo com maior celeridade e com custos cada vez menores – que os<br />
transportes estejam disponíveis quando necessários, as autorizações e as licenças sejam concedidas<br />
em tempo oportuno, as inspecções, embora necessárias, sejam mais educativas que punitivas,<br />
e que, de um modo geral, o ambiente seja mais conducente à iniciativa privada mas também<br />
comunitária.<br />
Urge que uma parte do financiamento disponível seja investido para se fazer melhor, e operar<br />
e manter melhor.<br />
Por outro lado, a crise internacional é uma oportunidade para rever os critérios de decisão sobre<br />
os projectos de investimento no país, pois os recursos são escassos e têm de ser investidos em<br />
projectos com maior capacidadde reprodutiva – neste contexto, a construção de um Estádio<br />
Nacional, como a de Ministérios, não satisfariam um critério objectivo de avaliação.<br />
Financiar o Desenvolvimento Desafios para Moçambique 2010 237
A construção de novas infra-estruturas básicas, sem o aproveitamento das existentes com as<br />
intervenções mais sistémicas, para além de agravar as despesas de manutenção, serve de pretexto<br />
para adiar o investimento no que é fundamental, por exemplo, na Revolução Verde. São<br />
usuais os documentos em que se planificam novas infra-estruturas na esperança de que vai<br />
haver um aumento da produção agrária, mas não se planificam aumentos de produção nas<br />
infra-estruturas já existentes ou em construção.<br />
Finalmente, a superação da dependência externa crónica exige o reforço de capacidades nacionais,<br />
a todos os níveis e em todos os domínios, e não é apenas um problema de educação e/ou<br />
formação, é também um problema de liderança múltipla, de atitude e de crença que devemos e<br />
podemos ser mais conhecedores e mais competentes.<br />
Como reforço de capacidades nacionais, queremos dizer:<br />
• Um camponês que produz 1000 a 1200 kg de algodão caroço em vez de 400 a 500 kg por ha;<br />
• Um camponês que produz mais cereais e os conserva melhor;<br />
• Uma comunidade de camponeses que sabe da importância da água e do seu uso, e por isso,<br />
sabe conservá-la e construir, inclusive com meios próprios, pequenos regadios;<br />
• Um operário que, mesmo nas condições duras de salário de sobrevivência, compete em termos<br />
de qualidade de trabalho e de produtividade com os melhores, pelo menos ao nível do<br />
continente africano;<br />
• Quadros e técnicos, com brio profissional e, porque o ambiente de competição assim exige,<br />
que se superam nos trabalhos técnicos e de gestão;<br />
• Empresários que se preocupam com a organização do trabalho para o aumento permanente<br />
de produtividade;<br />
• Os dirigentes que se preocupam também com a componente soft do desenvolvimento e não<br />
apenas com as infra-estruturas físicas.<br />
• Este reforço de capacidade é efectuado num ambiente de competição, com maior abertura<br />
para o recrutamento de quadros e técnicos estrangeiros, pois de outro modo o país não poderá<br />
competir e os nossos técnicos e quadros terão referências medíocres.<br />
O aumento de produtividade como factor essencial para o desenvolvimento exige que todo o<br />
paradigma político, social e, incluindo, o quadro de valores prevalecente, seja profundamente<br />
alterado, o que só é possível com envolvimento de todos os agentes da sociedade civil, do sector<br />
privado e em particular do Estado.<br />
238 Desafios para Moçambique 2010 Financiar o Desenvolvimento
NOTAS<br />
1<br />
Países como a Guiné Equatorial e outros produtores de petróleo, apresentam taxas elevadas de<br />
crescimento do PIB, sem reflexo correspondente nos vários índices de desenvolvimento.<br />
É questionável também tomar o crescimento do PIB como desenvolvimento, mas de qualquer<br />
modo o crescimento do PIB é uma condição necessária para o desenvolvimento.<br />
2<br />
Embora em termos globais esta afirmação seja correcta, em termos de detalhes a realidade apresenta<br />
algumas nuances, pois há despesas correntes financiadas por doadores e as despesas locais<br />
de investimentos são financiadas com recursos locais.<br />
Financiar o Desenvolvimento Desafios para Moçambique 2010 239
PARTE III<br />
SOCIEDADE<br />
DESAFIOS DE CIDADANIA,<br />
EDUCAÇÃO E URBANIZAÇÃO
CONSTITUIÇÃO E REFORMA<br />
DA JUSTIÇA<br />
UM PROJECTO POR REALIZAR<br />
João Carlos Trindade<br />
A necessidade de introduzir reformas no sistema estatal de administração da justiça 1 é um imperativo<br />
que há muito vem sendo reclamado, tanto ao nível interno, pelos cidadãos e pelas<br />
organizações da sociedade civil 2 , como externo, pelas agências internacionais de desenvolvimento,<br />
com o Banco Mundial e o FMI à cabeça. 3 E é também uma exigência decorrente da<br />
revisão constitucional de 2004, que veio, nesta matéria, introduzir alguns princípios e regras<br />
inovadores. 4<br />
Apesar disso, o período que transcorreu desde a entrada em vigor da actual Constituição 5 foi<br />
marcado por uma incompreensível lentidão e por hesitações comprometedoras 6 do Governo<br />
e do Legislativo na aprovação das medidas que deveriam dar corpo a essas reformas.<br />
É verdade que alguns diplomas importantes foram sendo aprovados, com especial relevo para<br />
a nova Lei Orgânica do Ministério Público (Lei n.º 22/2007, de 1 de Agosto), a nova Lei de<br />
Organização Judiciária (Lei n.º 24/2007, de 20 de Agosto), a Lei da Organização Tutelar de Menores<br />
(Lei n.º 8/2008, de 15 de Julho) e a revisão pontual do Código de Processo Civil (operada,<br />
primeiro, através do Decreto-Lei n.º 1/2005, de 27 de Dezembro, e, mais recentemente,<br />
através da Lei n.º 1/2009, de 24 de Abril). Mas, como muito bem assinala Tomás Timbane<br />
(2009: 4), a propósito da legislação processual civil, sem um plano de trabalho – que poderia<br />
indicar os aspectos que justificam mudanças – e sem debate público entre os operadores judiciários,<br />
não se pode falar em reforma integrada e coerente.<br />
De ausência de um plano coerente e articulado, que contemplasse harmoniosamente as várias<br />
vertentes do sistema, não pode ser acusado o trabalho de legística 7 levado a cabo pelo Centro<br />
de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ) e pela Unidade Técnica de Reforma Legal (UTREL),<br />
entre finais de 2003 e princípios de 2005, do qual resultou um conjunto de propostas de lei que<br />
se propunham corporizar um novo modelo de organização e estruturação dos órgãos judiciais<br />
e que se esperava estender progressivamente a outras áreas da administração da justiça. A maior<br />
parte dessas propostas continua, por razões que se desconhecem, a aguardar a apreciação e o<br />
pronunciamento dos órgãos de decisão política 8 , sendo hoje reduzidas as expectativas da sua<br />
aprovação, ainda que com emendas ou correcções.<br />
Constituição e Reforma da Justiça Desafios para Moçambique 2010<br />
243
Apesar da distância que nos separa do momento em que esse trabalho foi realizado e submetido<br />
a quem de direito, acreditamos que mantém toda a sua actualidade e, por isso, continua<br />
a merecer consideração como opção para o futuro. Vale, por isso, a pena conhecer os seus<br />
traços fundamentais.<br />
PREPARAÇÃO DA REFORMA:<br />
PESQUISA, AUSCULTAÇÃO PÚBLICA, REDACÇÃO DOS PROJECTOS<br />
O processo de elaboração de um pacote tão importante e tão ambicioso de propostas de lei que<br />
reflectissem o melhor possível a realidade do país e, simultaneamente, definissem mecanismos<br />
de mediação entre os diversos ordenamentos normativos legitimados pela população, exigiu<br />
uma fase de investigação prévia, destinada à recolha de informação relevante, subdividida em<br />
duas etapas: 1) uma de pesquisa no terreno e 2) outra de organização de painéis de discussão.<br />
A primeira etapa envolveu o estudo sistemático dos tribunais judiciais, do Instituto de Patrocínio<br />
e Assistência Jurídica, dos tribunais comunitários e de outras instâncias de resolução de<br />
conflitos (autoridades tradicionais, AMETRAMO 9 , Grupos Dinamizadores, líderes comunitários,<br />
líderes religiosos, ONG).<br />
Pretendeu-se avaliar o desempenho efectivo destas instâncias, perceber os principais bloqueios de<br />
funcionamento, as interacções que se estabelecem entre si e a potencialidade da sua acção na<br />
promoção do acesso à justiça e ao direito. Para tal foram realizadas entrevistas e observações de<br />
julgamentos ou de outras sessões de resolução de conflitos (no caso de algumas instâncias não estatais).<br />
Nos tribunais judiciais procedeu-se à análise dos dados estatísticos disponíveis e à análise<br />
da evolução do movimento processual. Procedeu-se, ainda, à caracterização dos processos findos<br />
através da recolha de dados, com variáveis pré-definidas, de uma amostra de algumas centenas<br />
de processos, que permitisse conhecer a natureza da litigação, dos litigantes principais e do modo<br />
como estes acederam ao sistema judicial, bem como, ainda, a duração dos processos.<br />
Dadas as limitações temporais e de recursos, o trabalho de campo não pôde estender-se a<br />
todo o país. Optou-se, assim, pelo estudo intensivo dos tribunais judiciais e das outras instâncias<br />
de resolução de litígios em três áreas geográficas: no distrito de Angoche e cidade de Nampula,<br />
na província de Nampula; no distrito de Macossa, província de Manica; e na cidade de<br />
Maputo, incluindo os bairros de Inhagóia, Xipamanine, Mafalala e Jorge Dimitrov (Benfica).<br />
Os critérios de selecção destes locais passaram, desde logo, pela procura de diversidade<br />
geográfica do país, o que se traduziu na escolha de uma região do litoral norte, uma do centro<br />
interior e outra do sul. Além disso, características próprias de cada uma destas regiões, que<br />
fazem delas contextos diferenciados, e de onde decorreu a expectativa de representarem realidades<br />
distintas no que diz respeito à administração da justiça, foram também relevantes na<br />
sua escolha.<br />
244 Desafios para Moçambique 2010 Constituição e Reforma da Justiça
A segunda etapa decorreu nos meses de Outubro e Novembro de 2004 e teve como objectivo enfatizar<br />
a participação dos operadores judiciais, dos representantes comunitários ou das organizações<br />
da sociedade civil. Compreendeu um conjunto de 11 painéis de discussão, distribuídos pelas<br />
cidades de Maputo, Matola, Nampula, Beira e Inhambane, com participantes de todas as províncias.<br />
Nesses painéis estiveram presentes magistrados judiciais e do Ministério Público, advogados, oficiais<br />
de justiça, membros do IPAJ 10 , representantes de organizações da sociedade civil, representantes<br />
de organizações religiosas, juízes de tribunais comunitários, autoridades tradicionais<br />
e membros da AMETRAMO.<br />
A discussão nos painéis centrou-se em três grandes questões: organização dos tribunais judiciais;<br />
relação entre os tribunais judiciais e os tribunais comunitários; e mecanismos de acesso à justiça<br />
e ao direito ao dispor dos cidadãos. Do debate resultou um conjunto de ideias relevantes<br />
para a reforma, das quais destacamos as seguintes:<br />
• a divisão judiciária não tem necessariamente que coincidir com a divisão administrativa,<br />
podendo ser construída uma rede judiciária diferenciada, em função dos contextos de cada<br />
província ou distrito;<br />
• devem ser alargadas as competências dos tribunais distritais, de modo a permitir uma equilibrada<br />
distribuição dos processos nos diferentes escalões de tribunais;<br />
• o Tribunal Supremo deve, passo a passo, transformar-se numa instância essencialmente de<br />
recurso sobre as questões de direito;<br />
• de modo a cumprir a Constituição e a tornar mais céleres as decisões dos recursos dos tribunais<br />
judiciais de província, deve ser criada uma instância intermédia (adequada) entre os<br />
tribunais judiciais de província e o Tribunal Supremo, atendendo à disponibilidade de recursos<br />
humanos e financeiros;<br />
• deve ser instituído um sistema de administração dos tribunais, autónomo e eficiente, que<br />
permita o afastamento progressivo dos juízes das tarefas de gestão, permitindo, deste modo,<br />
aumentar a produtividade do sistema;<br />
• os tribunais comunitários devem ser integrados no sistema de administração da justiça, articulando-se<br />
de forma estreita com os tribunais judiciais; seguindo a experiência histórica do<br />
país e tendo em conta o actual contexto político, os juízes dos tribunais comunitários devem<br />
ser legitimados por mecanismos de eleição;<br />
• os tribunais comunitários devem decidir de acordo com a equidade, o bom senso, os usos e<br />
costumes, com respeito pela Constituição da República;<br />
• o acesso à justiça e ao direito deve ser assegurado pelo Estado, em articulação com as organizações<br />
da sociedade civil.<br />
Constituição e Reforma da Justiça Desafios para Moçambique 2010 245
Na redacção das antepropostas de lei acolheram-se, naturalmente, estas e outras ideias, como<br />
adiante se verá.<br />
CONTEÚDO DA REFORMA<br />
O conjunto de propostas legislativas que se destinava a consubstanciar a almejada reforma da justiça<br />
teve como pontos permanentes de referência os princípios e regras constitucionais atrás<br />
referidos e levou, naturalmente, em consideração as críticas e os comentários recebidos das<br />
várias entidades auscultadas. Também as orientações do Plano Estratégico Integrado do sector<br />
da Justiça e dos restantes instrumentos de planificação adoptados pelo Governo, bem como os<br />
resultados da investigação e os estudos de direito comparado – principalmente com países da<br />
região 11 – nas áreas da justiça comunitária e do acesso à justiça e ao direito, foram tidos em conta.<br />
Após ponderar as várias soluções de técnica legislativa, optou-se por elaborar um Anteprojecto<br />
de Lei de Bases do Sistema de Administração da Justiça – no qual se consagram os princípios gerais<br />
e as bases fundamentais de um sistema de justiça plural e integrado, que aproveite as potencialidades<br />
normativas e de solução de litígios existentes na sociedade moçambicana –, completado<br />
pelos anteprojectos de Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, de Lei Orgânica dos Tribunais<br />
Comunitários e de Lei do Acesso à Justiça e ao Direito.<br />
As inovações propostas podem agrupar-se em cinco grandes áreas:<br />
a) a construção de um novo modelo de institucionalização dos tribunais comunitários, decorrente<br />
do reconhecimento constitucional do pluralismo jurídico;<br />
b) o estabelecimento de um novo modelo de organização e de repartição de competências dos<br />
tribunais judiciais;<br />
c) a criação de um sistema público de acesso à justiça e ao direito, em articulação com as instâncias<br />
de justiça não oficiais e em cooperação com associações de profissionais do direito<br />
e de promoção e defesa dos direitos humanos;<br />
d) o reforço da capacidade de direcção e de gestão dos tribunais judiciais; e<br />
e) a criação de um sistema de controlo do funcionamento, da qualidade do sistema de justiça<br />
e da avaliação do desempenho dos tribunais.<br />
Consideremos detalhadamente cada uma dessas áreas.<br />
a) A construção de um novo modelo de institucionalização dos tribunais comunitários,<br />
decorrente do reconhecimento constitucional do pluralismo jurídico<br />
O projecto de reforma inspira-se, como foi dito, no princípio constitucional do reconhecimento<br />
do pluralismo jurídico. A opção pelos tribunais comunitários como tribunais de base do sistema<br />
de justiça significa a escolha de uma solução emergente da sociedade moçambicana, na qual<br />
246 Desafios para Moçambique 2010 Constituição e Reforma da Justiça
conflui uma boa articulação entre as formas de justiça da comunidade e os tribunais judiciais.<br />
Por isso, é reafirmada a centralidade dos tribunais comunitários para a promoção do acesso à<br />
justiça e ao direito e da igualdade de género; para a dinamização e consolidação de uma justiça<br />
de proximidade; para a prevenção dos conflitos e o reforço da estabilidade social; e para a<br />
valorização das normas, regras, usos, costumes e demais valores sociais e culturais existentes na<br />
sociedade moçambicana, nos limites da Constituição. Os tribunais comunitários constituem,<br />
assim, a base do sistema integrado de justiça, articulando-se com os tribunais judiciais e demais<br />
órgãos do sistema judiciário.<br />
De acordo com dados oficiais constantes do Relatório ao X Conselho Coordenador do Ministério<br />
da Justiça 12 , em 2004 haviam sido inventariados no país 1653 tribunais comunitários – dos<br />
quais 254 (cerca de 15%) instalados no período de 2000 a 2004 –, com cerca de 8265 juízes. Nos<br />
distritos abrangidos pela pesquisa realizada no âmbito dos trabalhos preparatórios, foi observada<br />
uma procura significativa destas instâncias para resolução, entre outros, de casos de família<br />
(em particular, conflitos entre casais constituídos segundo as normas tradicionais ou em união<br />
de facto, bem como relativos ao exercício do poder paternal), pequenas disputas entre vizinhos,<br />
dívidas de pequena monta, conflitos que envolviam acusações de feitiçaria e disputas em torno<br />
da habitação. Embora os tribunais comunitários respondam a esta procura, em regra, procurando,<br />
em primeiro lugar, reconciliar as partes, enfrentam um conjunto de dificuldades que tendem<br />
a colocar em causa a sua actividade ou a afectar o bom desempenho. A inexistência de<br />
regulamentação da Lei n.º 4/92, de 6 de Maio 13 traduziu-se na falta de apoio a estes tribunais,<br />
quer em termos materiais, quer em termos de formação dos respectivos juízes. Traduziu-se,<br />
ainda, numa difícil comunicação entre estes e os tribunais judiciais, impedindo as partes de procurarem<br />
outra solução para os problemas, no caso de considerarem injusta a decisão do tribunal<br />
comunitário.<br />
Foi igualmente observado que uma parte significativa dos tribunais comunitários tem vindo<br />
a fechar ou funciona com um número reduzido de juízes, alguns deles nomeados segundo critérios<br />
definidos localmente. Comprovou-se a existência de más instalações, falta de material<br />
e falta de apoio dos tribunais judiciais, quando solicitados. Os juízes dos tribunais comunitários<br />
reclamam ainda por orientação e formação para desempenhar o seu trabalho, na ausência<br />
das quais buscam, com frequência, as regras, que só vagamente conhecem, dos tribunais<br />
judiciais.<br />
Esta situação conduz, na prática, a que alguns tribunais comunitários não cumpram a função<br />
essencial para que foram criados – ou seja, promover eficazmente o acesso à justiça e ao direito –<br />
dependendo o desempenho de cada tribunal sobretudo do perfil dos respectivos juízes e do<br />
contexto em que funciona. Foi nas situações em que os tribunais comunitários se articulam com<br />
o judiciário que se observaram as melhores práticas de respeito pelos direitos constitucionais.<br />
É o caso de alguns dos tribunais comunitários do distrito de Angoche.<br />
Constituição e Reforma da Justiça Desafios para Moçambique 2010 247
A proposta apresentada procura responder a estes problemas, estimulando as potencialidades<br />
dos tribunais comunitários e procurando garantir o respeito pela Constituição. É nesse sentido<br />
que os projectos de Lei de Bases do Sistema de Administração da Justiça e de Lei Orgânica<br />
dos Tribunais Comunitários promovem a articulação entre estes e os tribunais judiciais, facilitam<br />
a aproximação cultural dos tribunais judiciais à população e a possibilidade de recurso<br />
das decisões dos tribunais comunitários para os tribunais judiciais; estabelecem um método<br />
democrático de eleição dos juízes, incluindo a garantia de representação das mulheres; delimitam<br />
o tipo de casos que os juízes terão competência para resolver, o conjunto de sanções<br />
que podem aplicar, as taxas que podem cobrar; estabelecem os Conselhos Provinciais Coordenadores<br />
das Justiças Comunitárias, com a função primordial de assegurar a interacção<br />
entre a justiça judicial e a comunitária 14 ; e prevê a formação dos juízes pelo Centro de Formação<br />
Jurídica e Judiciária.<br />
Deste modo, a proposta consagra um princípio de proximidade e acessibilidade da justiça, de<br />
modo a que, territorial, social e culturalmente, se encontre próxima dos cidadãos. Como corolário<br />
deste princípio, os tribunais comunitários são consagrados como órgãos de base do sistema<br />
de justiça, deixando de ser jurisdição voluntária e passando a ser jurisdição obrigatória.<br />
Nos termos do respectivo anteprojecto de Lei Orgânica, estes tribunais terão competência para<br />
todo o tipo de conflitos, à excepção daqueles em que estejam em causa princípios e normas<br />
constitucionais ou de contencioso administrativo, ou cujo valor da causa seja duas vezes o salário<br />
mínimo nacional, digam respeito à capacidade das pessoas, à validade ou interpretação de<br />
testamento, à adopção e à dissolução de casamento civil ou, ainda, em matéria criminal, relativamente<br />
a crimes de natureza pública ou sempre que o pedido de indemnização cível exceda<br />
duas vezes o salário mínimo nacional.<br />
Das decisões proferidas pelos tribunais comunitários caberá sempre recurso para o tribunal judicial<br />
de distrito competente, e o recurso poderá ser interposto oralmente ou por escrito pelos<br />
interessados, sem necessidade de patrocínio jurídico. O julgamento destes recursos está sujeito<br />
aos mesmos critérios de equidade, bom senso e justa composição dos litígios, sendo vedado ao<br />
juiz decidir de acordo com critérios de legalidade.<br />
Os juízes dos tribunais comunitários terão de ter idade superior a 35 anos. A qualidade de representante<br />
ou funcionário de qualquer partido político, de representante de autarquias ou de<br />
órgãos locais do Estado, de advogado, técnico jurídico ou profissional integrado no sistema de<br />
acesso à justiça e ao direito, de juiz de direito ou magistrado do Ministério Público, é incompatível<br />
com o exercício da função de juiz de um tribunal comunitário.<br />
De modo a assegurar continuamente a legitimidade dos juízes, estes serão eleitos por períodos<br />
de cinco anos, por sufrágio universal, directo e secreto dos cidadãos moçambicanos eleitores<br />
recenseados na circunscrição territorial do respectivo tribunal. Os juízes apenas poderão exercer<br />
dois mandatos consecutivos.<br />
248 Desafios para Moçambique 2010 Constituição e Reforma da Justiça
Tratando-se de eleições para instituições de administração da justiça, o anteprojecto de Lei<br />
Orgânica prevê regras eleitorais específicas, promovendo a autogestão do sistema e assegurando<br />
a imparcialidade e a transparência do processo. Este será organizado e supervisionado<br />
pelos conselhos provinciais coordenadores das justiças comunitárias, que podem solicitar a colaboração<br />
das demais instituições administrativas e do Estado. Será, assim, da responsabilidade<br />
dos Conselhos Provinciais Coordenadores das Justiças Comunitárias, nomeadamente, a convocação<br />
das eleições, a apreciação das candidaturas, a constituição das mesas de assembleias<br />
de voto, o controle do processo eleitoral e a validação dos resultados das eleições. De forma a<br />
facilitar a gestão do processo eleitoral e a sua eficiência, os Conselhos Provinciais Coordenadores<br />
das Justiças Comunitárias poderão constituir comissões eleitorais distritais, que funcionarão sob<br />
a sua direcção.<br />
A justiça comunitária será tendencialmente gratuita, devendo o orçamento anual dos tribunais<br />
judiciais de província incluir uma verba destinada aos tribunais comunitários situados na sua<br />
área de jurisdição, para financiamento dos recursos humanos e das despesas materiais correntes,<br />
à excepção das despesas com edifícios, equipamento e demais recursos materiais, que serão<br />
da responsabilidade dos governos provinciais.<br />
b) O estabelecimento de um novo modelo de organização e de repartição de competências dos<br />
tribunais judiciais<br />
Para responder à dimensão do território, à distribuição da população, dos recursos e das necessidades,<br />
foi consensual entre todos os operadores judiciários e as pessoas auscultadas durante<br />
a realização dos painéis de discussão, que o princípio actualmente em vigor da coincidência<br />
entre a divisão judicial e a divisão administrativa deveria ser afastado 15 . Deveria prever-se a possibilidade<br />
de existir tribunais distritais com competência territorial em mais do que um distrito,<br />
ou distritos com mais do que um tribunal judicial distrital. Também em cada província poderia<br />
ser instalado mais do que um tribunal judicial de província, se o volume e a natureza dos<br />
processos o justificassem.<br />
O anteprojecto da Lei de Bases, tendo em vista melhorar o desempenho dos tribunais, diminuir<br />
a morosidade e promover a qualidade da justiça, consagra o princípio da especialização dos<br />
tribunais judiciais a todos os níveis, ou seja, nos tribunais judiciais de distrito, nos tribunais judiciais<br />
de província e no Tribunal Supremo, podendo, assim, ser criadas secções de competência<br />
genérica ou especializada, quando tal se justificar, face à natureza e volume dos litígios que<br />
demandem tutela judicial.<br />
Ao Tribunal Supremo, a proposta de reforma pretendeu reservar, em termos jurisdicionais, progressivamente<br />
o conhecimento exclusivo de matéria de direito. Só seria ali conhecida matéria<br />
de facto quando actuasse como tribunal de primeira instância ou quando julgasse, em via de<br />
recurso, decisões proferidas pelos tribunais judiciais de província.<br />
Constituição e Reforma da Justiça Desafios para Moçambique 2010 249
Esta proposta veio na lógica da resolução, a médio prazo, do problema da excessiva pendência<br />
e morosidade processual que bloqueia o actual funcionamento deste tribunal superior.<br />
Em obediência à Constituição da República e com o mesmo objectivo de desbloquear o Tribunal<br />
Supremo do excesso de processos pendentes, e tendo ainda em conta a realidade e os recursos<br />
existentes, previa-se, no anteprojecto de Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, a criação<br />
de uma secção de recurso nos tribunais judiciais de província, como instância intermédia antes<br />
do Tribunal Supremo. Essa secção de recurso teria competência para julgar, em matéria de<br />
facto e de direito, os recursos das decisões proferidas pelos tribunais judiciais de distrito, nos termos<br />
da lei do processo; conheceria dos conflitos de competência entre os tribunais judiciais de<br />
distrito, se a matéria do conflito respeitasse à especialização de mais de uma secção; julgaria os<br />
recursos das decisões proferidas, em primeira instância, pelos próprios tribunais judiciais de<br />
província, e, no caso dos processos-crime, quando a pena aplicada, em concreto, fosse uma<br />
pena não privativa da liberdade ou não fosse superior 8 anos de prisão; julgaria ainda os recursos<br />
das decisões proferidas pelos tribunais arbitrais.<br />
A secção de recurso funcionaria com três juízes de direito efectivos dessa secção e, quando não<br />
existissem em número suficiente, com outros juízes de direito do tribunal judicial de província<br />
que não tivessem participado na decisão recorrida ou, ainda, com recurso a juízes de direito do<br />
tribunal judicial de província mais próximo.<br />
Os anteprojectos de Lei de Bases e de Lei Orgânica, em obediência ao princípio fundamental<br />
da proximidade dos tribunais judiciais aos cidadãos, e na esteira das orientações estratégicas para<br />
o desenvolvimento do país, reforçaram a importância dos tribunais judiciais de distrito, alargando-lhes<br />
as competências. Assim, intervindo como tribunais de 2.ª instância, os tribunais distritais<br />
julgariam os recursos interpostos das decisões proferidas pelos tribunais comunitários;<br />
funcionando como tribunais de 1.ª instância classificar-se-iam em tribunais de 1.ª ou de 2.ª classe,<br />
consoante o limite das respectivas competências: a primeira categoria julgaria as questões respeitantes<br />
às relações de família, os processos jurisdicionais de menores e as acções cíveis cujo<br />
valor não excedesse cem vezes o salário mínimo nacional, bem como todas as demais cujo conhecimento<br />
não pertencesse a outros tribunais e, ainda, as infracções cujo conhecimento não<br />
fosse atribuído a outros tribunais e a que correspondesse pena não superior a 16 anos de prisão<br />
maior; a segunda categoria seria chamada a julgar as acções cíveis cujo valor não excedesse cinquenta<br />
vezes o salário mínimo nacional e para as quais não fossem competentes outros tribunais,<br />
bem como as infracções puníveis com pena não superior a 8 anos de prisão maior e cujo conhecimento<br />
não fosse atribuído a outros tribunais.<br />
Os tribunais judiciais de distrito teriam, ainda, como já anteriormente referido, um importantíssimo<br />
papel na articulação permanente entre a justiça judicial e a justiça comunitária. 16<br />
250 Desafios para Moçambique 2010 Constituição e Reforma da Justiça
c) A criação de um sistema público de acesso à justiça e ao direito, em articulação com as instâncias<br />
de justiça não oficiais e em cooperação com associações de profissionais do direito<br />
e de promoção e defesa dos direitos humanos<br />
Nos anteprojectos de lei que integram o pacote da proposta de reforma é desenvolvido e concretizado<br />
o princípio de que todos os cidadãos têm acesso à justiça e ao direito para defesa dos<br />
seus direitos e interesses legítimos. Esse direito abrange a informação e a consulta jurídica, o<br />
patrocínio judiciário e o acompanhamento por advogado ou por qualquer outra pessoa de<br />
confiança perante as autoridades e entidades públicas.<br />
O sistema de acesso à justiça e ao direito que se propõe aponta para a substituição do actual<br />
modelo do Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica – que já se revelou ineficiente e insustentável<br />
– tendo em vista a promoção das condições que permitam que a ninguém seja impedido<br />
ou dificultado, em consequência das condições sociais e culturais, ou por insuficiência de<br />
meios económicos, o acesso ao direito e às instâncias de justiça.<br />
Pretende-se que a nova estrutura a criar – o Instituto Público de Acesso à Justiça e ao Direito<br />
(IPAJUD) – não se limite a prestar assistência e patrocínio jurídico directamente aos cidadãos<br />
carenciados, mas que tenha uma importantíssima função reguladora e de coordenação, devendo,<br />
por isso, operar em articulação com os tribunais, o Ministério Público, a Ordem dos Advogados<br />
e outras entidades públicas, e estabelecer protocolos de cooperação com associações cívicas e<br />
organizações não governamentais de promoção e defesa dos direitos humanos e de cidadania.<br />
Um dos principais instrumentos através dos quais essa cooperação se estabelecerá, se o projecto<br />
for adoptado, é a criação dos Centros de Acesso à Justiça (CAJ), destinados a prestar informação,<br />
consulta e patrocínio jurídico às pessoas que necessitem de tal apoio.<br />
Os serviços a prestar pelos CAJ são todos aqueles que se relacionam com o conhecimento dos<br />
direitos e deveres dos cidadãos e outras pessoas jurídicas e com o exercício efectivo desses mesmos<br />
direitos e deveres. Assim, a informação jurídica em geral, o atendimento para prestar informação<br />
e promover o exercício dos direitos, o encaminhamento dos cidadãos para a instância<br />
ou entidade competente para conhecer da sua pretensão, a assistência jurídica – incluindo a consulta,<br />
o patrocínio jurídico e judiciário e a defesa pública – e o requerimento para dispensa,<br />
redução ou diferimento do pagamento de preparos, custas e outras taxas de justiça em qualquer<br />
tribunal, são alguns dos serviços e prestações a disponibilizar.<br />
Beneficiários do sistema serão todas as pessoas singulares, residentes em Moçambique, que, em<br />
razão das condições sociais, culturais ou económicas, tenham dificuldades de conhecer e defender<br />
os seus direitos e de aceder às instâncias de justiça e, bem assim, as associações sem fins<br />
lucrativos em situação de insuficiência de meios económicos e as entidades que, nos termos da<br />
Constituição e da lei, têm legitimidade para intentar acções para a defesa de direitos colectivos<br />
ou difusos (nos termos do art. 81 da Constituição).<br />
Constituição e Reforma da Justiça Desafios para Moçambique 2010 251
d) O reforço da capacidade de direcção e de gestão dos tribunais judiciais<br />
De modo a melhorar a eficiência dos tribunais é necessário reforçar a sua capacidade de administração<br />
e gestão. Nos termos da proposta formulada, isso será conseguido progressivamente<br />
através da criação da figura do gestor judicial junto do presidente do tribunal judicial de província<br />
para o assessorar na gestão do tribunal a que preside e dos tribunais judiciais de distrito<br />
e comunitários sob sua jurisdição. 17<br />
De entre as competências que lhe são atribuídas no anteprojecto de Lei Orgânica dos Tribunais<br />
Judiciais contam-se as de executar os planos de actividades definidos centralmente para os<br />
tribunais judiciais de província e de distrito; dirigir e supervisionar a execução dos orçamentos;<br />
dirigir e supervisionar os serviços administrativos e os recursos humanos dos tribunais; providenciar<br />
a elaboração das propostas de orçamento; supervisionar a recolha, sistematização e<br />
envio ao Departamento de Estatística Judicial do Tribunal Supremo, da informação estatística<br />
relativa à actividade judicial.<br />
e) A criação de um sistema de controlo do funcionamento, da qualidade do sistema de justiça<br />
e da avaliação do desempenho dos tribunais<br />
O controlo do funcionamento e da qualidade da administração da justiça compete aos órgãos<br />
de direcção e gestão dos tribunais e de gestão e disciplina dos juízes. Nos termos avançados pelo<br />
anteprojecto da Lei de Bases do Sistema de Administração da Justiça, o Governo deverá mandar<br />
estudar e elaborar uma adequada grelha de padrões de qualidade a que deve obedecer o sistema<br />
de administração da justiça, devendo a mesma ser aprovada mediante Decreto-Lei.<br />
Propõe-se igualmente a criação de um Observatório da Justiça com a função de preparar a<br />
entrada em vigor da reforma e de monitorar e avaliar o grau de realização dos objectivos e de<br />
concretização das medidas estabelecidas nos diplomas que a integram.<br />
Uma medida interessante e inovadora que, a nosso ver, se justificaria adoptar e estender a outros<br />
projectos de reforma com a mesma dimensão e amplitude, é a da criação de uma Comissão<br />
mista de acompanhamento, com a função de preparar a entrada em vigor da reforma e de<br />
monitorar e avaliar o grau de realização dos objectivos e de concretização das medidas estabelecidas<br />
na Lei de Bases. Na proposta apresentada, essa Comissão deveria incluir representantes<br />
de instituições com funções de controlo específico do funcionamento e qualidade do<br />
sistema de administração da justiça e do Centro de Formação Jurídica e Judiciária, dadas as<br />
atribuições a este cometidas no âmbito da formação, da pesquisa e da produção de estudos<br />
legislativos e de direito comparado na área da justiça.<br />
Para garantir o sucesso da reforma e cumprir os compromissos nela assumidos, propôs-se igualmente<br />
que a execução e implementação da Lei de Bases do Sistema de Administração da Justiça<br />
fossem calendarizadas em três fases: i) uma de preparação e início da reforma; ii) outra de<br />
execução e acompanhamento; e iii) outra, ainda, de avaliação e homologação.<br />
252 Desafios para Moçambique 2010 Constituição e Reforma da Justiça
CONCLUSÃO<br />
Todos os projectos de revisão legislativa a que se fez referência foram remetidos, através da UTREL,<br />
ao Conselho de Ministros no final da legislatura 1999-2004 e princípio da legislatura 2004-2009.<br />
À excepção da anteproposta de Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, desconhece-se se terão sido<br />
encaminhados à Assembleia da República, para apreciação e aprovação. Não se sabe, mesmo, se<br />
ainda virão a ser considerados ou se, simplesmente, serão descartados em definitivo.<br />
Como quer que seja, estamos em crer que, não sendo perfeita (nenhuma reforma estrutural o<br />
consegue ser, tendo em conta as limitações próprias de um país periférico, sofrendo de enormes<br />
carências e sujeito a uma pressão brutal do processo de globalização), a proposta de reforma<br />
que aqui se pretendeu sintetizar responde, em termos gerais, com as soluções que adianta<br />
e as opções que sugere, não apenas às grandes linhas de orientação política do Governo, mas,<br />
mais do que isso, às necessidades reais de um sistema de justiça que se pretende “legitimado,<br />
democrático, ao serviço da cidadania e que reflicta a diversidade cultural moçambicana, nos termos<br />
da Constituição”.<br />
NOTAS<br />
1<br />
Emprega-se aqui a noção de sistema decorrente da teoria clássica, que Nikklas Luhmann<br />
haveria de desenvolver na sua vasta obra: um sistema é um conjunto de elementos que mantêm<br />
especiais relações entre si e concorrem para um fim determinado, de tal modo que as<br />
propriedades e o comportamento do todo não resultam da mera soma das propriedades e do<br />
comportamento das partes (Ignacio, 1990: 153). No caso concreto, os elementos do sistema<br />
de administração da justiça comum, que é o que nos interessa analisar, seriam a Polícia, o<br />
Ministério Público, os tribunais, os advogados, os funcionários judiciais, os serviços prisionais<br />
e, em geral, todos os recursos institucionais que concorrem para o exercício daquela função.<br />
2<br />
Só para referir os pronunciamentos mais recentes, tenham-se em vista as diversas intervenções<br />
no âmbito da Conferência Nacional sobre Criminalidade e Sociedade: o respeito pela vida<br />
humana, organizada pelo Ministério da Justiça, que decorreu em Maputo de 12 a 13 de Março<br />
de 2009.<br />
3<br />
Parte integrante do seu receituário para um desenvolvimento sustentável, o Banco Mundial<br />
considera a reforma dos sistemas judiciários como uma “pré-condição necessária para atrair<br />
novos investimentos” (Dakolias e Said, 1999: 1).<br />
4<br />
Sobre a distinção entre princípios, regras e normas, veja-se Canotilho (1992:172). Para os<br />
propósitos deste texto, dentre os princípios e regras da Constituição que, de forma mais<br />
directa, incidem sobre a conformação estrutural do Judiciário, destacam-se os artigos 4<br />
(pluralismo jurídico), 118 (autoridade tradicional) e 212, n.º 3 (articulação entre os tribunais<br />
e as demais instâncias de composição de interesses e de resolução de conflitos).<br />
Constituição e Reforma da Justiça Desafios para Moçambique 2010 253
5<br />
Período que corresponde, grosso modo, ao da legislatura cujo mandato chega ao fim em Outubro<br />
de 2009, pois a Constituição vigora desde o dia imediato ao da proclamação dos resultados das<br />
Eleições Gerais de 2004 (cfr. artigo 306), ou seja, desde 20 de Janeiro de 2005.<br />
6<br />
Um exemplo vivo da hesitação do Governo é o da reforma da Polícia de Investigação<br />
Criminal, referido pelo Bastonário da Ordem dos Advogados no seu discurso na sessão solene<br />
de abertura do Ano Judicial de 2009 (pode ver-se em http://www.ordemadvogadosmoz.org/<br />
Docs/bastonario/anojudicial2009.pdf).<br />
7<br />
Na definição de Assunção Cristas (2006: 78), a legística é o “ramo do saber que visa estudar os<br />
modos de concepção e de redacção dos actos normativos”.<br />
8<br />
Vejam-se em http://www.utrel.gov.mz/IndexAssunto.htm as antepropostas de Lei de Bases do<br />
Sistema de Administração da Justiça e de Lei Orgânica dos Tribunais Comunitários e as<br />
respectivas Exposições de Motivos. A estas acrescem as antepropostas de Lei Orgânica dos<br />
Tribunais Judiciais – que, com mutilações e alterações significativas, veio dar origem à Lei da<br />
Organização Judiciária (24/2007, de 20 de Agosto) – e de Lei do Acesso à Justiça e ao Direito.<br />
9<br />
Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique.<br />
10<br />
Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica.<br />
11<br />
Particularmente estudadas foram as experiências da África do Sul, do Quénia, do Uganda, da<br />
Namíbia e de Cabo Verde, e as conclusões da conferência intitulada “Citizens and<br />
Constitutionalism in East Africa”, realizada em Arusha (Tanzânia) em Julho de 2000.<br />
12<br />
Ver Ministério da Justiça ( 2004).<br />
13<br />
A lei que instituiu os tribunais comunitários, em substituição dos tribunais populares de base,<br />
previstos na organização judiciária de 1978.<br />
14<br />
De acordo com o anteprojecto da Lei de Bases do Sistema de Administração da Justiça, os<br />
Conselhos Provinciais Coordenadores das Justiças Comunitárias terão competência para propor<br />
a criação de tribunais comunitários, participar na avaliação do respectivo desempenho, exercer<br />
acção disciplinar sobre os juízes e demais pessoal dos mesmos tribunais, fiscalizar a sua actividade<br />
e propor a realização de acções de formação para os juízes e demais pessoal. Presididos pelo<br />
juiz-presidente do Tribunal Judicial de Província em cuja área estão implantados, integram, na<br />
respectiva composição, um procurador da República designado pelo Conselho Superior da<br />
Magistratura do MP, dois juízes de tribunais judiciais de distrito designados pelo Conselho<br />
Superior da Magistratura Judicial, um representante do serviço público de assistência jurídica, oito<br />
representantes dos tribunais comunitários, eleitos pelos seus pares, com mandatos de dois anos;<br />
e três representantes das autoridades comunitárias, eleitos pelos seus pares, com mandatos da<br />
mesma duração.<br />
15<br />
Adoptando solução diversa, a Lei n.º 24/2007, de 20 de Agosto, haveria de manter o princípio<br />
da divisão judicial com a divisão administrativa do país (artigo 25, n.º 2), embora<br />
contraditoriamente estabeleça que “a divisão judicial (…) é determinada por critérios que<br />
254 Desafios para Moçambique 2010 Constituição e Reforma da Justiça
atendam ao número de habitantes, ao volume e à natureza da procura de tutela judicial, à<br />
proximidade da justiça ao cidadão e às necessidades do sistema de administração da justiça”<br />
(n.º 1 do mesmo preceito).<br />
16<br />
À excepção do reforço das competências dos tribunais judiciais de distrito, todas as restantes<br />
soluções propostas foram descartadas pelo legislador na aprovação da Lei n.º 24/2007, que<br />
acabou introduzindo um novo escalão de tribunais – os Tribunais Superiores de Recurso.<br />
Volvidos mais de dois anos depois da entrada em vigor da lei, nenhum dos três Tribunais<br />
Superiores de Recurso previstos entrou em funcionamento, não obstante se ter estabelecido o<br />
prazo de um ano, após a publicação da mesma, para o fazer (artigo 114, n.º 3).<br />
17<br />
Na Lei n.º 24/2007 adoptou-se uma solução semelhante, com a criação dos administradores<br />
judiciais, já em funcionamento em todos os tribunais provinciais.<br />
REFERÊNCIAS<br />
Canotilho, J. J. Gomes 1992, Direito Constitucional, Almedina, Coimbra.<br />
Conselho de Ministros 2005, Programa Quinquenal do Governo 2005-2009, Imprensa<br />
Nacional, Maputo.<br />
Cristas, A. 2006, “Legística ou a arte de bem fazer leis”, em Revista CEJ, Brasília, n.º 33,<br />
Abril/Junho, pp. 78-82.<br />
Dakolias, M. e Said, J. 1999, Judicial Reform: a process of change through pilot courts, World<br />
Bank, Washington.<br />
Ignacio, I. 1990, “Los conceptos fundamentales: sistema, entorno y mundo”, in La Sociedad sin<br />
Hombres: Niklas Luhmann o la Teoria como escándalo, Anthropos, Barcelona, pp. 153-163.<br />
Ministério da Justiça 2004, Relatório do X Conselho Coordenador, Tete, 13 a 15 de Julho.<br />
Santos, B.S., Trindade, J.C. Dir. 2003, Conflito e Transformação Social: uma paisagem das justiças em<br />
Moçambique, 2 vols., Afrontamento, Porto.<br />
Timbane, T.L. 2009, Processo Civil de Moçambique: uma reforma necessária e urgente, “Verbo<br />
Jurídico”, em<br />
http://www.verbojuridico.com/doutrina/2009/timbane_processocivilmocambique.pdf<br />
Constituição e Reforma da Justiça Desafios para Moçambique 2010 255
OS DESAFIOS DA LEITURA<br />
Miguel Buendía<br />
INTRODUÇÃO<br />
A razão de ser do sistema educativo e, particularmente da escola, é criar condições para que os<br />
alunos desenvolvam as capacidades e aprendam conteúdos relevantes que lhes permitam compreender<br />
a realidade natural e social e, assim, poder participar conscientemente nas relações sociais,<br />
políticas e culturais como condição fundamental para o exercício da cidadania na<br />
construção de uma sociedade democrática e inclusiva.<br />
Este artigo pretende reflectir sobre o desempenho da leitura e escrita demonstrado por crianças<br />
e adultos, destacando os problemas e desafios que as instituições educativas enfrentam no<br />
processo de ensino e aprendizagem dessas competências básicas.<br />
O ensino da leitura e da escrita é um dos maiores desafios que o sistema educativo e a sociedade<br />
moçambicana enfrentam, uma vez que o alcance de outras competências que habilitem, tanto<br />
os adultos como as crianças, a ser cidadãos com reais possibilidades de aceder ao conhecimento,<br />
continuar aprendendo ao longo da sua vida e participar activa e conscientemente na sociedade,<br />
depende da aprendizagem efectiva da escrita e leitura.<br />
Muitos pesquisadores sociais, políticos, educadores de diferentes tendências e outros, consideram<br />
a alfabetização, isto é, a competência na leitura e escrita, um dos pilares do desenvolvimento<br />
social e económico. Desde a Antiguidade até o Renascimento, a Reforma Protestante e o Século<br />
das Luzes, a língua escrita esteve ligada ao progresso, à ordem, à transformação e ao controle.<br />
Ao longo do século XX, a competência de ler e escrever passou a ser considerada base e requisito<br />
para a consolidação da democracia, da estabilidade e crescimento económico, para<br />
a harmonia social e, mais recentemente, para a competitividade nos mercados mundiais.<br />
A escola surge nesse contexto como a instituição social responsável pela educação de novos “leitores<br />
e escritores”, que uma vez alfabetizados, estão aptos a desenvolver as capacidades básicas<br />
e necessárias para se tornarem força de trabalho qualificada e aceder à capacitação profissional<br />
e, eventualmente, ingressar no mercado de trabalho. Saber ler e escrever é assim considerado<br />
um pré-requisito e competência necessária para se atingir o desenvolvimento económico,<br />
Os Desafios da Leitura Desafios para Moçambique 2010<br />
257
social e político de qualquer sociedade. A partir desses pressupostos, alguns investigadores<br />
salientam a grande divisão ou barreira social que separa os que sabem ler e escrever dos que<br />
não sabem e, ainda, distinguem as sociedades letradas das sociedades não letradas.<br />
Ninguém pode negar que o acesso dos indivíduos ao conhecimento de qualquer natureza e a<br />
sua participação cultural, social e política dependem, em grande parte, da sua competência em<br />
literacia 1 , fazendo desta habilidade uma das aprendizagens fundamentais. Se a leitura é um<br />
conhecimento tão valioso, não podemos ficar passivos diante de um quadro comprometedor<br />
no que diz respeito ao desempenho, de um número significativo de alunos, em relação à leitura<br />
e à escrita. Esta situação requer uma profunda reflexão sobre a responsabilidade de todos,<br />
principalmente, do Ministério de Educação e Cultura e daqueles que estão directamente envolvidos<br />
na tarefa de ensinar a ler e escrever. Professores, educadores de adultos e outros agentes<br />
do sistema educativo devem reflectir com profundidade sobre a prática educativa, repensar o<br />
seu papel, as metodologias de ensino, a didáctica, a prática pedagógica em prol do desenvolvimento<br />
de processos de aprendizagens mais efectivos, particularmente, em relação à leitura<br />
e escrita.<br />
Também a nossa sociedade não pode ficar alheia e indiferente a esta situação, devendo colaborar<br />
e participar em iniciativas e programas que visem a sua superação. Sem retirar ao sistema<br />
educativo e à escola esta função e responsabilidade pelo ensino e desenvolvimento dessas competências,<br />
alicer ces imprescindíveis da aquisição ou construção de todo conhecimento, as famílias<br />
e as diferentes organizações da sociedade têm um importante papel para que todos os<br />
cidadãos atinjam níveis desejáveis nas competências de leitura e escrita, muito necessárias para<br />
a sua inserção e participação sociocultural, e básicas para despertar e desenvolver o interesse e<br />
gosto pela leitura e pela escrita.<br />
Neste contexto, afirmar que “a educação é tarefa de todos nós” ganha a sua actualidade e pertinên<br />
cia. Porém, é no poder público que reside a maior responsabilidade para garantir as condições<br />
que melhorem a qualidade do processo de ensino-aprendizagem e pela definição de políticas<br />
educativas e culturais que assegurem a todos os cidadãos a oportunidade efectiva de desenvolver<br />
a competência de leitura e escrita. É, ainda, responsabilidade do poder público a definição<br />
de políticas e estratégias que assegurem a democratização do acesso à leitura através da<br />
promoção do livro, da ampliação das bibliotecas existentes e criação de novas, dotando-as<br />
com acervos literários relevantes e equipando-as com os recursos que as novas tecnologias de<br />
informação possibilitam. Esta responsabilidade do poder público deve ser completada com<br />
iniciativas das diferentes organizações da sociedade que visem a generalização do acesso à<br />
cultura letrada.<br />
258 Desafios para Moçambique 2010 Os Desafios da Leitura
A COMPETÊNCIA DA LEITURA E ESCRITA:<br />
A SUA APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO<br />
A Declaração Mundial sobre Educação para Todos, de Jomtien (1990) preconiza como direito<br />
de todos, crianças e adultos, a satisfação das “necessidades básicas de aprendizagem”, cuja<br />
amplitude e maneira de satisfazê-las variam com o tempo e dependem do contexto sociocultural<br />
e económico de cada sociedade. Essas necessidades<br />
(…) compreendem tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a escrita,<br />
a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas) quanto os conteúdos básicos da aprendizagem<br />
(como conhecimentos, habilidades, valores e atitudes), necessários para que os seres humanos<br />
possam sobreviver, desenvolver plenamente suas potencialidades, viver e trabalhar com dignidade,<br />
participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas<br />
e continuar aprendendo. 2<br />
Entre as necessidades básicas de aprendizagem destaca-se a da leitura e escrita, porque é uma<br />
competência básica e imprescindível para a formação do pensamento e espírito crítico do indivíduo,<br />
para se ter acesso a outros conhecimentos e continuar aprendendo ao longo da vida.<br />
Se esta competência não for devidamente adquirida e desenvolvida a partir dos primeiros anos<br />
de escolaridade, os alunos irão enfrentar sérios problemas, muitas vezes, insanáveis, para progredir<br />
nos diferentes níveis de ensino e/ou na sua vida profissional, porque muitas das habilidades<br />
requeridas pelo mundo do trabalho pressupõem um certo domínio desta competência.<br />
O fracasso escolar, um fenómeno social complexo, porque são muitos os factores que o provocam,<br />
tem, sem dúvida, uma relação directa com a aprendizagem inadequada da leitura e da<br />
escrita. Aqueles indivíduos com dificuldades de leitura dificilmente desenvolverão o gosto por<br />
ela, porque, sem o domínio dessa competência, o acto de ler torna -se uma tarefa penosa, não<br />
atractiva. Nestas condições, logicamente, ficam muito limitadas as possibilidades de desenvolvimento<br />
intelectual e cultural, pré-requisito para a participação consciente nas sociedades do<br />
nosso tempo. Ter a capacidade de descodificar os diferentes tipos de mensagens escritas é uma<br />
condição sem a qual, dificilmente, se pode viver e usufruir o património cultural da humanidade.<br />
Embora o fracasso na alfabetização seja um termo geralmente usado no interior das instituições<br />
educativas, não é um fenómeno que se produz exclusivamente nestas. Ele é, também,<br />
resultado das condições sociais. Não é por acaso que esse fracasso é maior nas zonas rurais<br />
e peri-urbanas, onde se registam indicadores sociais e económicos muito baixos. Isto significa<br />
reconhecer que o problema do analfabetismo, na escola ou fora dela, é parte de um problema<br />
maior, de natureza política, isto é, de desigualdade social, de injustiça social e consequente de<br />
exclusão social.<br />
Os Desafios da Leitura Desafios para Moçambique 2010 259
As dificuldades que enfrentamos actualmente no país não são, em certa medida, novas. Fazem<br />
parte de uma dificuldade antiga de se assegurar a todos os moçambicanos a igualdade de acesso<br />
a bens económicos e culturais, onde se incluem a alfabetização e o domínio da língua escrita.<br />
Durante séculos, ler e escrever foi privilégio das elites coloniais que, após essas primeiras aprendizagens,<br />
davam continuidade aos seus estudos.<br />
Apesar dos esforços desenvolvidos pelo Estado e organizações sociais, desde a independência<br />
nacional, o país ainda regista altos índices de analfabetismo 3 que, quando discriminados por região,<br />
urbano/rural e género, atingem, principalmente, as populações rurais do Norte, incidindo,<br />
particularmente nas mulheres, cuja taxa de analfabetismo chega atingir, em algumas zonas, mais<br />
de 80%. O analfabetismo generalizado em populações adultas, além de dificultar a sua efectiva<br />
inclusão e participação social, constitui um grande obstáculo para que os seus filhos disponham<br />
de um ambiente familiar motivador e incentivador da aprendizagem escolar.<br />
Os resultados de escolarização atingidos até agora se, por um lado, são consideráveis, são ainda<br />
tímidos se tivermos em conta que pouco menos de 50% da população é alfabetizada, não se sabendo,<br />
contudo, qual é o nível de competências efectivas em leitura e escrita da maioria das pessoas<br />
alfabetizadas e se estas estariam ajustadas ao nível de exigências que as transformações<br />
socioeconómicas actualmente colocam.<br />
Ao longo do século passado, o conceito de alfabetização foi sendo progressivamente ampliado,<br />
em razão de necessidades sociais e políticas, a ponto de já não se considerar alfabetizado aquele<br />
que apenas domina as habilidades de codificação e de decodificação, mas aquele que sabe usar<br />
a leitura e a escrita para exercer uma prática social em que a escrita é necessária. Assim, alfabetizar<br />
não se reduziria ao domínio das “primeiras letras”; implicaria, também, saber utilizar a<br />
língua escrita nas situações em que esta é necessária, lendo e produzindo textos, entendendo<br />
o que lê e sendo capaz de recriar.<br />
Nos últimos tempos, os sistemas de educação reconhecem que a alfabetização de crianças e adultos<br />
não se reduz ao reconhecimento e uso das relações entre a cadeia sonora da fala e a cadeia<br />
gráfica da escrita. Nesse entendimento, cabe à alfabetização não apenas ensinar a ler e a escrever,<br />
mas também desenvolver habilidades de uso social da leitura e da escrita e gosto pelo convívio<br />
com material escrito. É por isso que se enfatiza cada vez mais a importância da existência de<br />
bibliotecas públicas e escolares, do acesso ao livro, aos jornais, às revistas, da multiplicação<br />
de eventos que levem o alfabetizando à participação em práticas reais e não apenas escolares de<br />
leitura. Nessa nova concepção de aprendizagem da leitura e da escrita surge, no vocabulário educacional,<br />
o termo “letramento” ou “literacia”, que designa o estado ou condição de um indivíduo<br />
que não só sabe ler e escrever – não só é alfabetizado – mas também sabe (e tem prazer em) exercer<br />
as práticas sociais de leitura e de escrita que circulam na sociedade em que vive – é letrado.<br />
O que boa parte dos dados de avaliações, a nível nacional e internacional, mostra é que muitas<br />
crianças e adultos, embora alfabetizados, não são letrados (ou manifestam diferentes graus de<br />
260 Desafios para Moçambique 2010 Os Desafios da Leitura
analfabetismo funcional, já que os dois conceitos tendem a se sobrepor). Em outras palavras,<br />
não são capazes de utilizar a língua escrita na prática social, particularmente, no contexto escolar<br />
e na aprendizagem de diferentes conteúdos e habilidades.<br />
Daí a necessidade de criar um ambiente alfabetizador onde os aprendentes possam vivenciar a<br />
utilidade da leitura e escrita e como é usada nas práticas sociais, o que reforçaria a sua aprendizagem.<br />
Estas vivências de aprendizagem podem auxiliar os aprendentes a darem significado<br />
e função à alfabetização, a criar a sua necessidade e, também, a favorecer que o aprendente<br />
explore o funcionamento da língua escrita.<br />
A necessidade do conhecimento sobre os usos e as funções sociais da língua escrita é parti -<br />
cularmente relevante para aqueles aprendentes (crianças ou adultos) que vivem muito afastados<br />
do mundo da leitura e escrita, que não têm muitas oportunidades de manusear livros, de participar<br />
em situações de leitura e produção de textos.<br />
O PROBLEMA DA APRENDIZAGEM DA LEITURA E ESCRITA<br />
Como foi referido anteriormente, o desenvolvimento da competência de leitura depende, por<br />
um lado, da forma como ela é adquirida num contexto escolar e, por outro, do ambiente social,<br />
isto é, das condições sociais que facilitem e incentivem o acesso dos cidadãos ao livro e outros<br />
meios escritos. Não basta aprender a ler, é necessário aprender com o que se lê. É necessário<br />
interpretar os conteúdos e atribuir-lhes significado, para que a leitura, enquanto exercício de<br />
inteligência cumpra o seu papel. Esta interpretação não é um acto mecânico de juntar letras e<br />
formar palavras, mas um verdadeiro diálogo do leitor com o autor, em que aquele co -participa<br />
na produção de sentido do texto.<br />
O Sistema Nacional de Educação (SNE) estabelece como um dos seus objectivos gerais fundamentais<br />
a erradicação do analfabetismo, “de modo a proporcionar a todo o cidadão o acesso ao<br />
conhecimento científico e o desenvolvimento pleno das suas capacidades”. O SNE deve, ainda, “proporcionar<br />
uma formação básica nas áreas da comunicação, ciências, meio ambiente e cultural”. Nesse<br />
domínio, cabe ao Ensino Básico “desenvolver a capacidade de comunicar claramente (…) em Língua<br />
Portuguesa, tanto na escrita como na oralidade”. Em decorrência desse objectivo, o aluno, que<br />
tenha concluído o ensino básico, deve ser capaz de “comunicar oralmente e por escrito, de forma<br />
clara, em Língua Portuguesa” (INDE/MINED, 2003a:19-22). Objectivos semelhantes ou equiparados<br />
são definidos para a alfabetização de adultos.<br />
Para implementar esses objectivos e desenvolver esse perfil no domínio da comunicação em língua<br />
portuguesa, são definidos pelo Documento Curricular do Ensino Básico os objectivos gerais para a<br />
disciplina de Português. Destacam-se aqui, os objectivos terminais directamente ligados à aprendizagem<br />
da língua e a sua utilização. No fim do ensino básico, os alunos deverão ser capazes de:<br />
Os Desafios da Leitura Desafios para Moçambique 2010 261
• Usar a língua como instrumento para a compreensão da realidade;<br />
• Assumir uma atitude crítica em relação à realidade;<br />
• Exprimir as suas ideias oralmente e por escrito;<br />
• Ler textos diversos relacionados com situações da vida socioeconómica e cultural do país<br />
e do mundo;<br />
• Desenvolver o hábito e o gosto pela leitura;<br />
• Compreender as regras de organização e funcionamento da língua;<br />
• Aplicar as regras de organização e funcionamento da língua.<br />
Relativamente ao EP1 (1.ª-5.ª classes), os objectivos gerais para a aprendizagem do português<br />
são, entre outros, os seguintes:<br />
• Reconhecer que a língua é um instrumento de comunicação e de intercâmbio social e cultural;<br />
• Compreender mensagens orais relacionadas com diversas situações do quotidiano;<br />
• Usar as formas de comunicação, oral e escrita, em situações relacionadas com a vida na sua<br />
comunidade;<br />
• Falar sobre aspectos culturais da sua comunidade;<br />
• Contar oralmente histórias relacionadas com a comunidade em que vive;<br />
• Ler pequenos textos relacionados com a vida sociocultural;<br />
• Escrever pequenos textos relacionados com a comunidade em que vive;<br />
• Desenvolver o gosto pela leitura.<br />
• Usar regras elementares de funcionamento da língua.<br />
São estes os objectivos estabelecidos pelo Currículo do Ensino Básico que devem orientar o processo<br />
de ensino-aprendizagem da língua portuguesa, isto é, as diferentes actividades educativas<br />
desenvolvidas em sala de aula, que incluem a avaliação formativa, cujo objectivo é a verificação<br />
quotidiana do desempenho dos alunos, isto é, averiguar se esses objectivos estão ou não a<br />
ser atingidos.<br />
Existe uma grande distância entre o que o currículo, por um lado, preconiza relativamente ao<br />
domínio da língua portuguesa e, por outro lado, o desempenho de grande parte dos alunos do<br />
Ensino Básico. É certo que sempre podem ser constatadas diferenças ou distâncias entre o que<br />
se idealiza o que deva ser aprendido e o que se consegue que os aprendentes realmente acabem<br />
por apreender. É por essa razão que especialistas de currículo chamam a atenção para a necessidade<br />
de se redefinir o que é básico, isto é, o que é imprescindível no currículo da Educação<br />
Básica.<br />
Segundo César Coll 4 , o currículo, muitas vezes, está sobredimensionado, apesar de que, paradoxalmente,<br />
possa não incluir coisas que são essenciais. Nem o currículo nem o horário escolar<br />
262 Desafios para Moçambique 2010 Os Desafios da Leitura
são pastilha elástica. O currículo está limitado ao que se pode fazer dentro do horário escolar.<br />
É por isso que no currículo devem ser colocados conteúdos realmente imprescindíveis. Daí a<br />
necessidade de se fazer uma profunda reflexão para saber o que é que os alunos têm de aprender<br />
necessariamente porque, se o deixarem de aprender, terão muitos problemas no futuro, tanto a<br />
nível de desenvolvimento pessoal como a nível de integração social. Esta reflexão é, actualmente,<br />
mais importante do que nunca, porque nunca houve tantos conhecimentos potencialmente<br />
interessantes para colocar no currículo escolar e nunca houve currículos tão sobrecarregados<br />
como os actuais. Neste contexto, segundo o autor acima referido, a escola deve tentar que os<br />
alunos aprendam sempre e melhor, mas tendo em consideração que existem aprendizagens que<br />
são imprescindíveis. Não se pode permitir que qualquer aluno saia sem ter adquirido essas aprendizagens<br />
fundamentais, porque seria um fracasso, não dos alunos, mas do sistema.<br />
Tendo em consideração estas reflexões, fica para nós a indagação de se, no caso moçambicano,<br />
o currículo do Ensino Básico tem em conta e destaca aquelas aprendizagens fundamentais e imprescindíveis,<br />
visto que o grande número de escolas leccionam em 3 turnos, o que significa que as<br />
crianças têm um horário não superior a 3 horas de permanência na escola. Uma outra indagação:<br />
com o escasso tempo disponível, é possível garantir a aprendizagem efectiva da leitura e escrita nas<br />
condições linguísticas da maioria dos alunos, em que a sua língua materna é muito diferente da língua<br />
de ensino? Será que o currículo tem em consideração essas condições? Uma outra situação que<br />
caracteriza o processo de ensino-aprendizagem das nossas escolas é o rácio professor-aluno que<br />
ainda é muito alto: 1:69 ou mais em todas as classes, principalmente nas classes iniciais.<br />
As avaliações disponíveis assim como as constatações de diferentes supervisões pedagógicas<br />
confirmam uma grande distância entre a aprendizagem preconizada pelo currículo do Ensino<br />
Básico e o que os alunos conseguem, efectivamente, aprender. Grande número de professores<br />
e directores de escola, principalmente nas zonas rurais, considera que os alunos passam de<br />
classe sem terem adquirido as competências exigidas pelo currículo 5 . Por outro lado, percebe-<br />
-se na sociedade, em geral, e nos pais ou encarregados de educação, em particular, um certo descontentamento,<br />
relativamente ao desempenho dos alunos do ensino primário na aprendizagem<br />
da leitura e escrita.<br />
A presente reflexão, na ausência de pesquisas mais amplas que pudessem fundamentar a análise<br />
do problema em questão, serviu-se, principalmente, de dados e conclusões de dois relatórios<br />
de avaliação 6 .<br />
O primeiro relatório salienta o facto de as diferentes categorias de informantes, envolvidos directa<br />
ou indirectamente 7 , no processo de ensino-aprendizagem terem a consciência das competências<br />
que os alunos do Ensino Básico devem desenvolver assim como as grandes dificuldades que<br />
manifestam relativamente à expressão oral, leitura e escrita em português. Esses mesmos informantes<br />
reconhecem, ainda, que a maioria dos alunos, principalmente no EP1, não consegue<br />
sustentar uma situação de comunicação em língua portuguesa. A partir da 4.ª classe, muitos<br />
Os Desafios da Leitura Desafios para Moçambique 2010 263
alunos percebem o que se lhes é dito em português e reagem com uma relativa facilidade a instruções<br />
dadas, conseguindo dar respostas simples às questões que se lhes colocam, “mas não<br />
se sentem livres para desenvolver uma conversa”. (Nhampule, & Tovela, 2009:38-39).<br />
Estes informantes, exemplificando o tipo de dificuldades que alunos do 1.º Ciclo (1.ª-5.ª classes)<br />
enfrentam, apresentam as seguintes situações:<br />
• Não percebem quase nada do que se lhes diz em português;<br />
• Apenas reagem a instruções muito simples quando acompanhadas de gestos;<br />
• Respondem sim ou não, por vezes fora do contexto;<br />
• Dizem palavras soltas, nomeando algumas coisas, por vezes, ao acaso;<br />
• Reconhecem algumas letras e palavras curtas, mas não lêem frases;<br />
• Apenas fazem gatafunhos ou escrevem letras formando sequências sem sentido.<br />
Relativamente aos alunos do 2.º Ciclo (6.ª e 7.ª classes), os mesmos informantes apresentam as<br />
seguintes situações:<br />
• Interpretam mal o que se lhes diz em português;<br />
• Reagem a instruções e dão respostas curtas às perguntas que se lhes colocam;<br />
• Não sustentam uma situação de conversa em Português;<br />
• Reconhecem algumas palavras, mas não lêem a frase completa;<br />
• Mesmo quando lêem palavras e frases, não percebem o seu sentido;<br />
• Têm noção de sílabas pronunciadas e sua representação, mas dificilmente fazem escrita livre;<br />
• Copiam bem, mesmo sem conhecer o sentido de algumas palavras;<br />
• Copiam e escrevem frases ditadas com erros e não as interpretam;<br />
• Escrevem sequências de letras e palavras sem sentido. (Nhampule, & Tovela, 2009:39-40)<br />
A própria equipa de pesquisa constatou que, de facto, muitos alunos do EP1 não comunicam em<br />
língua portuguesa, o que vem a confirmar as conclusões de outros estudos 8 (ibidem:40-41). Esta<br />
mesma situação foi por este autor constatada em trabalhos de campo realizados em escolas primárias<br />
de várias províncias, onde pôde verificar que muitos alunos, inclusive da 5.ª classe,<br />
não tinham a proficiência linguística em português preconizada pelo currículo do Ensino Básico.<br />
O relatório apresenta, também, situações observadas pela equipa de pesquisa em sala de aula,<br />
onde constataram que, em geral, a comunicação nas aulas de língua portuguesa é feita em língua<br />
local, tanto entre o professor e os alunos como entre os alunos. Segundo as pesquisadoras,<br />
esta situação deve-se ao fraco desenvolvimento prévio de competências de comunicação oral<br />
dos alunos em língua portuguesa, o que, obviamente, tem consequências negativas para o processo<br />
de ensino-aprendizagem, em geral, e da leitura e escrita, em particular.<br />
264 Desafios para Moçambique 2010 Os Desafios da Leitura
O relatório, por outro lado, chama a atenção para a discrepância entre o fraco alcance dos objectivos<br />
de ensino-aprendizagem do Português no EP1 verificado pela equipa de pesquisa e<br />
confirmado pelos informantes 9 , e os dados estatísticos do EP1, apresentados pelas escolas-alvo<br />
da avaliação. Por exemplo, cerca de 80% dos alunos tiveram resultados positivos nessa disciplina<br />
no 1.º e 2.º trimestres do ano lectivo de 2008 (ibidem:41-42).<br />
Como interpretar esta discordância em dados relativos à mesma realidade? Sem dúvida, ela coloca<br />
em questão a veracidade da avaliação interna, que oculta o real desempenho dos alunos,<br />
demonstrando, entre outras coisas, que a avaliação não é assumida como instrumento orientador<br />
do processo de ensino-aprendizagem. Uma possível interpretação dessa prática: as direcções<br />
das escolas entendem que devem apresentar altos índices de aprovação, porque essa seria<br />
uma exigência vinda de cima. Nesse contexto, a maneira como muitas escolas percebem a promoção<br />
“semiautomática” serve de justificação dos bons resultados estatísticos, que, entretanto,<br />
não expressam adequadamente o desempenho real dos alunos.<br />
O relatório, face à situação onde a maioria dos alunos não comunica em língua portuguesa,<br />
conclui ser, praticamente, impossível que alguém leia, interprete mensagens e/ou escreva numa<br />
língua que não fala (ibidem:41). Porém, no mesmo relatório não se indagam as razões desta<br />
situação. No meu entender, para uma melhor compreensão, é preciso identificar os diferentes<br />
factores que intervêm neste processo. Não me parece que a explicação se esgote apenas no<br />
fraco desempenho ou preparação dos professores. Seria necessário indagar-se, também, se o<br />
problema não advém do próprio currículo, isto é, da forma como o processo de ensino e aprendizagem<br />
da leitura e escrita é orientado na prática, isto é, das metodologias nele subjacentes.<br />
O currículo actual preconiza a metodologia do ensino da língua portuguesa como língua segunda:<br />
O presente programa destina-se ao ensino monolingue do português, mantendo-se a perspectiva de<br />
L2, presente no Sistema Nacional de Educação (SNE) e, abrindo-se a possibilidade de se recorrer<br />
ao uso das línguas moçambicanas como auxiliares, sempre que necessário, respondendo assim,<br />
às necessidades da grande maioria das crianças moçambicanas que aprende o Português na escola.<br />
(INDE/MINED, 2003b:7)<br />
Os próprios documentos curriculares do Ensino Básico reconhecem a situação linguística da maior<br />
parte dos alunos e o seu grau de dificuldade e complexidade para o processo de aprendizagem:<br />
A língua é um dos factores que maior influência exerce no processo de ensino-aprendizagem, sobretudo,<br />
nos primeiros anos de escolaridade, na medida em que a maior parte dos alunos moçambicanos,<br />
que entra na escola pela primeira vez, fala uma língua materna diferente da língua de ensino.<br />
Este factor faz com que muitas das competências e habilidades, sobretudo a competência comunica-<br />
Os Desafios da Leitura Desafios para Moçambique 2010 265
tiva, adquiridas pelas crianças, antes de entrarem na escola, não sejam aproveitadas.<br />
(INDE/MINED, 2003a:12).<br />
Daí a necessidade de se indagar até que ponto o currículo toma em consideração as condições<br />
específicas de aprendizagem da maioria dos alunos que não têm a língua portuguesa como língua<br />
materna e, portanto, não a falam quando ingressam na escola. O currículo anterior previa<br />
o desenvolvimento da oralidade dos alunos da 1.ª classe durante o primeiro semestre. Qual é o<br />
tempo previsto pelo actual currículo para desenvolver esta competência? De facto, não se pode<br />
aprender conteúdos numa determinada língua sem que anteriormente tenha sido desenvolvida<br />
a competência comunicativa nessa língua. Por outro lado, é preciso que se verifique até que<br />
ponto está sendo implementada a metodologia do ensino da língua portuguesa como segunda<br />
língua, principalmente, nas escolas das zonas onde esta língua não é conhecida dos alunos.<br />
É possível que o currículo actual, ao limitar o tempo para o desenvolvimento da oralidade dos<br />
alunos, tenha partido do pressuposto de que seria introduzida e generalizada a educação bilingue<br />
nas escolas primárias, principalmente, das zonas rurais. Pressuposto que ainda não se materializou<br />
tal como os documentos curriculares previam:<br />
(…) o Plano Curricular do Ensino Básico (PCEB), desenhado no âmbito do Projecto de Transformação<br />
Curricular, concebe um programa monolingue, no qual a língua de ensino é o português e um<br />
(programa) bilingue, em que as crianças iniciam a escolarização na sua língua materna.<br />
(INDE/MINED, 2003:7)<br />
A educação bilingue está a ser implementada em pouco mais de 150 escolas em todo o país,<br />
ainda em regime experimental, num universo de, aproximadamente, 8 000 escolas.<br />
A maioria dos alunos não consegue atingir os objectivos definidos para o ensino básico em<br />
relação à língua portuguesa, o que deve estar afectando negativamente a aquisição da competência<br />
mínima de leitura e escrita e outras aprendizagens. Que dizer, então, do objectivo geral<br />
que preconiza o desenvolvimento do hábito e o gosto pela leitura nos alunos? Nestas condições,<br />
a competência de leitura e escrita é, na prática, prerrogativa de uma minoria privilegiada. Neste<br />
domínio particular, a escola, contrariamente ao que se proclama, está a contribuir para a desigualdade<br />
social e sua justificação.<br />
A outra avaliação, levada a cabo em 2005, pela equipa moçambicana da SACMEQ, visava aferir<br />
o desempenho na leitura de uma amostra representativa dos alunos da 6ª classe de todo o<br />
país. Os principais resultados caracterizam a seguinte situação:<br />
• Apenas 62% dos alunos da 6.ª classe atinge o nível mínimo de competência em leitura, 7,8%<br />
chega ao nível desejável, sendo que um terço dos alunos não atinge o nível mínimo.<br />
266 Desafios para Moçambique 2010 Os Desafios da Leitura
• Constatam-se diferenças assinaláveis entre as províncias relativamente ao desempenho em<br />
leitura. Assim, o nível mínimo de competência em leitura é atingido por apenas 23,8% dos alunos<br />
de Niassa, 30,3% de Cabo Delgado e 41,6% de Tete. Enquanto que esse mesmo nível de<br />
competência é atingido por 82% dos alunos da Cidade de Maputo, 68% de Maputo província<br />
e 72,8% de Nampula. O nível de competência desejável é atingido apenas por 0,7% 1,9%<br />
e 1,7% de alunos das províncias Cabo Delgado, Tete e Niassa, respectivamente. Esse mesmo<br />
nível de competência é atingido por 17,4% de alunos da Cidade de Maputo, 10,3% de Maputo<br />
província e 9,1% de Nampula.<br />
• 57,8% de alunos de baixo padrão socioeconómico atinge o nível mínimo de competência contra<br />
66,3% de alunos de padrão socioeconómico mais elevado.<br />
• Existe uma grande diferença entre os alunos das grandes e das pequenas cidades que atingem<br />
o nível mínimo de competência, 72,6% contra 57,3%, respectivamente. É, também, significativa<br />
a diferença em relação ao nível de competência desejável, 11,5% e 6,8% respectivamente.<br />
A diferença no nível de competência é ainda maior entre alunos das zonas rurais e das grandes<br />
cidades. Por exemplo, a proporção de alunos das grandes cidades que alcança um nível<br />
de competência desejável é três vezes superior à dos alunos das zonas rurais.<br />
Embora trabalhando com objectivos, âmbito e instrumentos diferentes, ambas as avaliações<br />
chegam a resultados muito semelhantes: grande parte dos alunos não adquire a competência<br />
de letramento definida pelo currículo.<br />
A amostra estudada pela SACMEQ é formada por alunos que concluíram a 6.ª classe antes de<br />
2005. São, portanto, alunos não abrangidos pelo novo currículo do ensino básico.<br />
Quais são os factores que condicionam o desempenho dos alunos da 6.ª classe relativamente ao<br />
domínio da língua portuguesa? Que hipóteses explicativas podem ser formuladas para as diferenças<br />
de desempenho dos alunos? Segundo a SACMEQ, os factores socioeconómicos, a situação<br />
geográfica (zona urbana e rural) e género dos alunos explicam, em grande parte, as<br />
diferenças do seu desempenho relativamente à língua portuguesa. A avaliação da SACMEQ,<br />
porém, não toma em consideração ou não explicita o facto de a língua portuguesa ser ou não<br />
“familiar” para os alunos. Este é um dado, contudo, que pode ser obtido de forma indirecta. Se<br />
assumirmos que a maioria dos alunos das zonas rurais não tem a língua portuguesa como língua<br />
primeira ou materna, esta condição pode explicar por que motivo os alunos das zonas rurais<br />
demonstram ter um desempenho mais fraco relativamente aos alunos das zonas urbanas.<br />
Por outro lado, tratando-se de alunos que seguiam o anterior currículo de ensino primário, o<br />
seu fraco desempenho pode ser resultado, em parte, de se ter abandonado, na prática pedagógica,<br />
a metodologia do ensino da língua portuguesa como língua segunda, como se preconizava.<br />
Este abandono ou não implementação pode ser explicado pelo facto de que grande parte dos<br />
professores não ter sido preparada nesse domínio, aliado à falta de recursos, livros, elevado número<br />
Os Desafios da Leitura Desafios para Moçambique 2010 267
de alunos por turma, etc. Nesse contexto, pode ser relativizado o efeito prático das determinações<br />
curriculares porque, na prática, não constituem um instrumento orientador da prática pedagógica<br />
das escolas. É frequente verificar que muitos professores orientam o processo de ensinoaprendizagem<br />
pelo livro do aluno, apenas transmitindo conteúdos e não promovendo práticas<br />
orientadas para a criação e desenvolvimento de competências. Por exemplo, podemos assistir<br />
a aulas de português da 6.ª ou 7.ª classes onde os alunos são solicitados a copiar uma lista de<br />
advérbios, visando a sua memorização em vez de levar os alunos a identificá-los, a caracterizá -<br />
-los num texto dado e a saber empregá-los na sua linguagem.<br />
Para compreender o desempenho pedagógico dos alunos, independentemente dos factores “professor”<br />
e “processos metodológicos”, é preciso destacar o facto de se ter ou não a língua portuguesa<br />
como língua materna ou de estar situado num ambiente mais ou menos “familiarizado”<br />
com essa língua. Esta é, na minha opinião, uma causa primeira e radical das diferenças de desempenho<br />
escolar dos alunos. Essas diferenças expressam realidades sociais que se explicitam à<br />
medida que são tomadas em conta as características socioculturais e económicas dos diferentes<br />
segmentos e grupos que conformam a sociedade moçambicana e, no interior desta, os factores<br />
urbano/rural, homem/mulher. O domínio ou não da língua portuguesa é, em geral, um factor<br />
cuja tendência é gerar diferenças não só escolares mas, também, socioeconómicas e culturais.<br />
É, por isso, que as populações rurais, as mulheres e os mais desfavorecidos são os que registam<br />
os maiores índices de analfabetismo. Nesse sentido, a escolarização pode estar a contribuir para<br />
reforçar ou legitimar as desigualdades sociais e, ao mesmo tempo, evidenciar o facto de a escolaridade<br />
ou a sua ausência ser um factor que favorece ou impede a mobilidade social.<br />
A MODO DE CONCLUSÃO<br />
As situações descritas, sobre a competência de leitura e escrita de grande parte dos alunos do<br />
Ensino Básico, precisam de ser superadas para que a educação seja realmente um factor de desenvolvimento<br />
de uma sociedade moçambicana próspera, justa e democrática. Ninguém pode<br />
negar o grande esforço que o país tem vindo a desenvolver durante os últimos anos em prol da<br />
generalização da educação básica de crianças e adultos. Esse esforço expressa-se no crescimento<br />
significativo da taxa líquida de escolarização que se vai aproximando de 100%, no incremento<br />
e diferenciação de programas de alfabetização de adultos assim como na relativa<br />
redução do analfabetismo da população adulta.<br />
Contudo, existem ainda grandes desafios pela frente para que esses esforços não sejam em vão.<br />
Entre os desafios, destacam-se os seguintes:<br />
1. O reconhecimento teórico e prático por parte do Sistema Nacional de Educação (SNE) de<br />
que a fraca competência de leitura e escrita, manifestada em altas percentagens de alunos, tem<br />
268 Desafios para Moçambique 2010 Os Desafios da Leitura
uma relação directa com as metodologias adoptadas no processo do seu ensino e aprendizagem.<br />
O SNE deve equacionar adequadamente a aquisição dos códigos da leitura e escrita<br />
pelas crianças e adultos, promovendo a adopção real de metodologias apropriadas na prática<br />
pedagógica das instituições educativas. Neste âmbito, importa garantir a capacitação<br />
relevante de professores e educadores de adultos assim como a promoção de processos eficazes<br />
de supervisão pedagógico-didáctica nas instituições educativas.<br />
2. A generalização da educação bilingue nas escolas e centros de alfabetização e educação de<br />
adultos que possibilite que crianças e adultos adquiram, com maior eficácia e eficiência, a<br />
competência da leitura e da escrita na sua língua materna e, desta forma, poder transferir<br />
essa competência à aprendizagem da língua portuguesa, língua segunda para a maioria das<br />
crianças e adultos moçambicanos.<br />
3. A introdução da educação bilingue reveste-se de certa complexidade, o que não deve servir<br />
como pretexto para ser protelada. Enquanto a sua generalização não for efectiva, é preciso<br />
e urgente assegurar que as escolas e os centros de alfabetização e educação de adultos sejam<br />
capazes de ensinar a ler e a escrever adequadamente, recorrendo à metodologia do ensino da<br />
língua portuguesa que assuma que esta é uma língua segunda, o que implica dar maior espaço<br />
e tempo ao desenvolvimento da oralidade nessa língua antes de se passar à aprendizagem da<br />
leitura e escrita, porque é praticamente impossível aprender efectivamente a ler e a escrever<br />
numa língua que não se fala nem se compreende. Nesse sentido, possivelmente, será necessário<br />
levar a cabo alguns ajustamentos nos respectivos currículos.<br />
4. O ensino da leitura e da escrita deve decorrer num ambiente que possibilite que crianças e<br />
adultos compreendam a sua importância e utilidade para o seu desenvolvimento e participação<br />
social, tornando a leitura e a escrita instrumentos importantes de expressão dos seus<br />
pensamentos, experiências e sentimentos e, desta forma, ganharem o gosto pelo seu uso.<br />
5. A consolidação, aprimoramento e desenvolvimento da competência de leitura e escrita supõe<br />
a democratização do acesso ao livro e a outros materiais e meios escritos e a promoção de<br />
ambientes e iniciativas socioculturais que incentivem o gosto e o amor pela leitura e pela escrita.<br />
NOTAS<br />
1<br />
Literacia é tradução da palavra inglesa literacy, não sendo, necessariamente, sinónimo de alfabetização.<br />
Comparando ambas as noções, assumimos que alfabetização refere a condição de ser ou<br />
não iniciado na língua escrita, independentemente, do nível do seu domínio, enquanto, literacia<br />
tem um significado mais amplo, referindo capacidades de utilizar a língua. Neste artigo, porém,<br />
essas noções aparecem, às vezes, como sinónimos, porque em relação ao problema em análise<br />
considera-se pessoa alfabetizada aquela que demonstra capacidade básica de uso da língua relativamente<br />
à leitura e escrita, permitindo ao indivíduo ter acesso a outros conhecimentos ou<br />
níveis de ensino. Como se aborda mais adiante, o conceito de alfabetização foi sendo progressi-<br />
Os Desafios da Leitura Desafios para Moçambique 2010 269
vamente ampliado, em razão de novas necessidades que resultam dos processos mais complexos<br />
de produção e organização social. Nesse contexto, literacia cunharia essa ampliação de exigências<br />
que se impõem para ser efectivamente alfabetizado.<br />
2<br />
UNESCO, 1998. In: http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.pdf. Sublinhados<br />
meus.<br />
3<br />
Em 2005, a taxa de analfabetismo era estimada em 59,9% nos homens e 66,6% das mulheres.<br />
A maior taxa global de analfabetismo registava-se na província da Zambézia com 62,6%, sendo<br />
que nas mulheres atingia 81,9%. Maputo Cidade é a que menor taxa apresentava. A taxa global<br />
de analfabetismo no capital do país era de 12,7%, e nas mulheres 19%. (Fonte: LHD, in:<br />
http://www.canalmoz.com).<br />
4<br />
Especialista curricular. As ideias deste autor que utilizamos a seguir foram expressas numa entrevista<br />
por ele concedida no decurso da II Reunião do Comité Intergovernamental do Projecto<br />
Regional de Educação para a América Latina e o Caribe, PRELAC, convocada pela Oficina Regional<br />
de Educação da UNESCO para a América Latina e o Caribe, realizada em Santiago de<br />
Chile em 11-13 de Maio, 2006.<br />
5<br />
O autor, em vários trabalhos de campo, entrevistou um considerável número de professores e direcções<br />
de escolas em várias províncias. Grande parte dos entrevistados reconhece que os alunos<br />
passam de classe sem saber ler nem escrever na língua portuguesa. Não são poucos que,<br />
manifestando não terem compreendido o objectivo e o conteúdo da “promoção semiautomática”,<br />
a consideram a causa do fraco desempenho escolar dos alunos do EP1.<br />
6<br />
Perfil de Competências dos Professores Primários no Ensino da Leitura e Escrita em Cabo Delgado e<br />
Niassa: Relatório Final, Janeiro 2009. Trata-se de um estudo de base levado a cabo nas províncias<br />
de Niassa e Cabo Delgado no âmbito do Projecto de Promoção de um Ambiente de Leitura e<br />
Escrita em Moçambique da Associação Progresso, que nas suas actividades de apoio pedagógico<br />
nas referidas províncias tem verificado o facto dos alunos do ensino primário enfrentarem sérias<br />
dificuldades na oralidade, leitura e escrita. Embora esta avaliação tenha uma dimensão geográfica<br />
restrita, muitas das suas constatações reflectem analogia com o que acontece em muitas das<br />
escolas primárias, principalmente, das zonas rurais. Um segundo relatório da SACMEQ (Consórcio<br />
da África Austral para Monitorar a Qualidade da Educação), The SACMEQ II Project in<br />
Mozambique: A Study of the Conditions of Schooling and the Quality of Education. Mozambique 2005,<br />
que avalia o desempenho leitura dos alunos 6.ª classe. Esta avaliação foi realizada numa amostra<br />
representativa dos alunos da 6.ª classe de todo o país.<br />
7<br />
A pesquisa abrangeu um total de 79 indivíduos, sendo 37 professores primários, 13 directores<br />
de escolas e directores pedagógicos, 10 coordenadores de ZIP, 7 chefes e técnicos da Secção de<br />
Apoio Pedagógico nos Serviços Distritais de Educação, Juventude e Tecnologia, 5 técnicos de educação<br />
e formadores de professores envolvidos em iniciativas de formação de professores e oficiais<br />
270 Desafios para Moçambique 2010 Os Desafios da Leitura
de educação ao nível provincial, 7 técnicos de educação envolvidos em iniciativas de formação<br />
de professores e oficiais de educação ao nível central (p.8).<br />
8<br />
Estudos anteriores, INDE (1997) e Gonçalves (1996), e vários relatórios de supervisão pedagógica<br />
também confirmam as dificuldades que os alunos do ensino primário enfrentam relativamente<br />
à oralidade, leitura e escrita.<br />
9<br />
Estes dados entram em contradição, também, com o reconhecimento bastante generalizado<br />
verificado em entrevistas a professores e directores de outras escolas e províncias que admitem<br />
o facto de muitos alunos passarem de classe sem terem adquirido as respectivas aprendizagens.<br />
10<br />
No âmbito deste artigo, entende-se por educação bilingue: a aquisição dos códigos da leitura e<br />
escrita ser feita na língua materna do aprendente, criança ou adulto, passando-se essa competência,<br />
progressivamente, para a segunda língua, no nosso caso, a língua portuguesa. A educação<br />
bilingue, além de ter demonstrado a sua eficácia para resolver o problema da alfabetização<br />
numa segunda língua, é um direito humano proclamado pela ONU.<br />
REFERÊNCIAS<br />
INDE/MINED (2003a). Plano Curricular do Ensino Básico: Objectivos, Política, Estrutura, Plano<br />
de Estudos e Estratégias de Implementação. INDE/MINED, Maputo.<br />
INDE/MINED (2003b). Programa para o 1.º Ciclo do Ensino Básico (1.ª e 2.ª Classes).<br />
INDE/MINED, Maputo.<br />
INDE/MINED (2003c). Programa de português para o 2.º Ciclo (3.ª, 4.ª e 5.ª Classes).<br />
INDE/MINED, Maputo.<br />
INDE/MINED (2003d). Programa de português para o 3.º Ciclo do Ensino Básico (6.ª e 7.ª Classes).<br />
INDE/MINED, Maputo.<br />
Kalman, Judith (2008). “Discusiones conceptuales en el campo de la cultura escrita”. Revista<br />
Iberoamericana de Educación. N.º 46, pp. 107-134.<br />
Mário, Mouzinho & Nandja, Débora (2005). A alfabetização em Moçambique: desafios da educação<br />
para todos... http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001462/146284por.pdf<br />
Nhampule, Ana Maria & Tovela, Samaria (2009). Perfil de Competências dos Professores Primários<br />
no Ensino da Leitura e Escrita em Cabo Delgado e Niassa: Relatório Final. Associação<br />
Progresso. Maputo.<br />
SACMEQ II Project in Mozambique (2005). A Study of the Conditions of Schooling and the<br />
Quality of Education - Mozambique 2005. Harare, SACMEQ.<br />
Os Desafios da Leitura Desafios para Moçambique 2010 271
EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO PROFISSIONAL<br />
E PODER<br />
Roland Brouwer | Lídia Brito | Zélia Menete<br />
INTRODUÇÃO<br />
Um sistema nacional de educação é um dos investimentos de longo prazo que mais influencia<br />
o desenvolvimento de uma nação, pois é ele que garante a criação de uma massa crítica<br />
nacional, reforçando os valores da cidadania consciente e, consequentemente, a capacidade de<br />
intervenção responsável do indivíduo e da colectividade na busca do desenvolvimento sociocultural,<br />
económico e da sustentabilidade ambiental.<br />
O sistema de educação determina também a relação que surge entre o cidadão e o Governo,<br />
dando espaço a um debate à volta das questões políticas numa busca comum pelas soluções dos<br />
problemas que o País enfrenta ou, pelo contrário, conduzindo para uma situação em que o<br />
cidadão se mantém silencioso perante o seu Governo, nutrindo frustração e revolta.<br />
Falar, por isso, de um sistema nacional de educação é falar também de poder ou da ausência<br />
do mesmo, em particular quando o sistema educativo não responde à sua função essencial que<br />
é a de aumentar a capacidade de intervenção dos seus cidadãos.<br />
Esta capacidade só poderá ser potenciada se o sistema educativo aumentar o conhecimento na<br />
sociedade, aumentar a capacidade de compreensão e reflexão dos cidadãos, o reforço de valores<br />
de cidadania, e a criação de uma cultura que promove a competência, e a utilização do<br />
saber e da sabedoria no seio da sociedade.<br />
Por isso, apresentamos neste artigo uma análise sobre a evolução das componentes mais importantes<br />
do Sistema Nacional de Educação (SNE), de modo a identificarmos e analisarmos os<br />
desafios que essa evolução traz para o País e ligamos esta análise ao tipo de sociedade que queremos<br />
construir e, consequentemente, ao sistema educativo que dá a base sólida necessária para<br />
essa construção. Essa é a base que permite reflectir sobre formas alternativas de pensar a educação<br />
e propor assim algumas questões para debate.<br />
Educação, Formação Proficional e Poder Desafios para Moçambique 2010<br />
273
UM PANORAMA DA EVOLUÇÃO<br />
DO SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO<br />
Os sistemas clássicos de educação são baseados em dois conceitos. O primeiro conceito é o<br />
seguimento de conteúdos ao longo do tempo. Uma criança entra no sistema e, ao longo dos<br />
anos, adquire duma forma cumulativa, novos conhecimentos, habilidades e atitudes que se<br />
reflectem em competências adquiridas.<br />
O segundo conceito é a especialização. Ao longo da sua carreira estudantil, o aluno afunila<br />
cada vez mais o seu campo de saber, de acordo com as suas capacidades intelectuais e preferências<br />
individuais e também de acordo com as necessidades da sociedade.<br />
Neste contexto, existem dois eixos que definem o espaço onde se localizam os vários campos<br />
de conhecimento e competências. O primeiro eixo é aquele que liga o aplicado ao teórico. Parte<br />
do princípio que as nossas capacidades intelectuais têm, num extremo, as habilidades operacionais<br />
e, no outro, as habilidades de reflexão. O segundo eixo é definido pelos extremos, artes<br />
e ciências. Parte do princípio que, por um lado, existem os que se preocupam com os mundos<br />
cultural e social e, do outro, os que focalizam a sua atenção no conhecimento dos princípios<br />
que governam os mundos físico e biológico.<br />
O Sistema Nacional de Educação (SNE) de Moçambique é um sistema clássico e reflecte esses<br />
conceitos básicos. O sistema consiste numa série de anos de escolaridade, que pode atingir os<br />
20 anos (da primeira classe até ao doutoramento), e separa, muito no início, os estudantes. Esta<br />
separação é feita com base nas habilidades práticas no ensino técnico a partir da 5.ª classe, com<br />
os ramos definidos de acordo com os principais sectores económicos (p.e. agricultura, indústria,<br />
turismo e administração e gestão) e, no ensino geral, com uma segunda separação entre<br />
letras e ciências. Assim consiste em quatro componentes ou subsistemas:<br />
• O Ensino Primário (EP) com os níveis EP1 (1.ª até 5ª) e EP2 (6.ª e 7.ª classe);<br />
• O Ensino Secundário Geral (ESG) com os níveis ESG1 (8.ª a 10.ª) e ESG2 (11.ª e 12.ª); no<br />
ESG2 existe a especialização em ciências e letras;<br />
• O Ensino Técnico (ET) com os níveis Elementar (ETE), Básico (ETB) e Médio (ETM) com<br />
as especializações comércio, indústria e agricultura;<br />
• O Ensino Superior (ES) composto pelas universidades, escolas superiores e politécnicos, com<br />
um vasta gama de especializações definido pelos eixos aplicado-teórico e ciências naturais -<br />
-artes. No Ensino Superior temos o bacharelato (oficialmente abolido em 2009 com a última<br />
revisão da Lei do Ensino Superior), a licenciatura, o mestrado e o doutoramento.<br />
Ao lado desses quatro subsistemas existe ainda outro subsistema, parcialmente integrado nos<br />
anteriores: a formação de professores em Centros de Formação e Institutos do Magistério<br />
274 Desafios para Moçambique 2010 Educação, Formação Proficional e Poder
Primário para o ensino primário, e a Universidade Pedagógica para o nível secundário. Finalmente,<br />
existe ainda a alfabetização de adultos. Estes dois últimos subsistemas são tratados com<br />
menos detalhe neste artigo, enquanto que para o ensino superior existe um artigo separado.<br />
Numa perspectiva histórica, o sistema é o resultado duma evolução caracterizada por quatro<br />
grandes épocas. A primeira, que corresponde ao período colonial até 1975, sendo caracterizada<br />
por um sistema de educação restrito a uma camada muito reduzida, definida em termos<br />
culturais e raciais. Essa etapa continua a influenciar os parâmetros centrais do sistema, nas épocas<br />
posteriores. A segunda época começa com a independência nacional e caracteriza-se por<br />
um esforço gigantesco no sentido de alargar a educação para todos os Moçambicanos. Esse processo<br />
é interrompido pela guerra de destabilização, que abalou o país a partir de 1976 e resultou<br />
na morte de muitos professores, rapto de alunos, e destruição de infra-estruturas,<br />
principalmente na década de 1980. A quarta época inicia-se com o Acordo Geral de Paz e as<br />
eleições de 1994 e é um período de estabilidade social e crescimento económico, caracterizado<br />
por uma retoma do investimento na educação.<br />
TABELA 1 EVOLUÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO ENTRE 1975 E 2008<br />
1975 1980 1985 1990 1995A 2000BC 2005 2008<br />
NR TOTAL DE ALUNOS (MILHARES) 709,3 1492,5 1453,7 1400,6 1602,7 2690,3 4478,0 5754,7<br />
TAXA DE CRESCIMENTO 100,0% 210,4% 204,9% 197,5% 226,0% 379,3% 631,3% 811,3%<br />
%EP 94,7% 92,9% 90,2% 90,0% 88,3% 84,4% 77,5% 72,6%<br />
%ESG 0,8% 0,7% 1,2% 1,4% 2,4% 4,9% 8,6% 11,5%<br />
%ET 1,3% 0,9% 0,9% 0,9% 1,1% 0,9% 0,7%<br />
%ES 0,3% 0,1% 0,1% 0,3% 0,4% 0,5% 0,6% 1,3%<br />
TBED 82,3% 62,9% 56,9% 90,6% 131,3% 147,3%<br />
FONTE MINED 1994a, 1994b, 1997, 2000, MEC 2005, 2008. MESCT 2003) a. Dados do ET referente ao ano 1994; b. Dados do ET retirados<br />
do INE (2001); c. TBE = Taxa Bruta de Escolarização ao nível do EP1.<br />
A Tabela 1 fornece um panorama do crescimento do Sistema Nacional de Educação nas componentes<br />
Ensino Primário (EP), Ensino Secundário Geral (ESG), Ensino Técnico (ET) e Ensino<br />
Superior (ES).<br />
A tabela mostra claramente as três épocas depois da independência: o rápido crescimento do<br />
número de alunos matriculados entre 1975 e 1980, a estagnação devido à guerra entre 1980 e<br />
1990, e a retoma da expansão do sistema de educação a partir de 1995. Na sua globalidade, mostra<br />
que desde a independência nacional o número de alunos matriculados no sistema cresceu<br />
por um factor de 8, de cerca de 709 mil para mais de 5,7 milhões. Como resultado, a Taxa Bruta<br />
de Escolarização ao nível do EP1 (TBE - a proporção entre o total de alunos frequentando o<br />
EP1 e a população do grupo etário oficial para frequentar o EP1) subiu de 63% em 1990 para<br />
147% em 2008 (MINED 1994; MEC, 2008).<br />
Os dados na mesma tabela mostram também uma mudança no peso de cada um das componentes:<br />
a percentagem de alunos matriculados no ensino primário baixou de 94,7% em 1975<br />
para 72,6 em 2008, enquanto a percentagem no ensino secundário geral subiu de 0,8% para<br />
Educação, Formação Proficional e Poder Desafios para Moçambique 2010 275
11,5%. Essa mudança é significativa, porque é um sinal de uma maturação do sistema, no sentido<br />
de uma proporção cada vez maior de alunos a terem a oportunidade de seguir em todos<br />
os escalões até ao nível superior. Mas é ainda muita significativa a percentagem de alunos que<br />
não progride para outros escalões.<br />
Outro fenómeno assinalável é que a percentagem matriculada nos três níveis do ensino técnico<br />
(elementar, básico e médio) baixou de 1,3% para 0,7%. Isto significa que, apesar de ter<br />
crescido em números absolutos, na realidade, o ensino técnico é o único subsistema que não<br />
conseguiu acompanhar o crescimento geral.<br />
Aparentemente existe uma tendência que favorece o ensino geral (focalizado mais na teoria) em<br />
relação ao ensino técnico (focalizado mais na prática). A causa principal é que o ensino técnico<br />
não conseguiu comprovar a sua relevância nem aos alunos e seus encarregados de educação,<br />
nem aos empregadores, nem mesmo ao próprio Governo.<br />
TABELA 2 NÚMERO DE ESCOLAS REGISTADAS PELA DIRECÇÃO DE PLANIFICAÇÃO DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO<br />
ANO EP1 EP2 ESG1 ESG2 ETE ETB ETM<br />
s.i.<br />
s.i.<br />
1975 5.235 26 7 5 s.i. s.i. s.i.<br />
1980 5.730 99 19 3 s.i. s.i. s.i.<br />
1985 4.616 156 41 5 s.i. s.i. s.i.<br />
1990 3.441 169 39 5 s.i. s.i. s.i.<br />
1995 4.167 232 49 10 s.i. s.i. s.i.<br />
2000 7.072 522 93 20 6 23 7<br />
2005 8.696 1320 156 35 16 25 7<br />
2008 9.649 2210 286 27 23 27 12<br />
FONTE Dados fornecidos pela Direcção de Planificação do MEC<br />
A Tabela 2 fornece um sumário da evolução do número de escolas leccionando nos níveis EP1,<br />
EP2, ESG1 e ESG2, e ETE, ETB e ETM. É de salientar que não é possível calcular, com base<br />
nestes números, o número total de escolas, dado que algumas escolas leccionam mais que um<br />
nível (por exemplo: uma escola EPC — Ensino Primário Completo — lecciona os níveis EP1 e<br />
EP2 e é representada duas vezes nessa tabela).<br />
Dos dados na tabela pode-se depreender:<br />
• A perda de infra-estruturas devido à guerra até 1992;<br />
• O incremento do número de unidades escolares em função da expansão do sistema nacional<br />
de educação em termos de efectivos escolares;<br />
• A baixa importância do Ensino Técnico em cada um dos seus níveis (elementar, básico e médio).<br />
A Tabela 3 mostra a evolução do número médio dos estudantes na educação pública, por nível,<br />
entre 1975 e 2008. Os dados indicam que, apesar do crescimento no número de escolas, esse cres-<br />
276 Desafios para Moçambique 2010 Educação, Formação Proficional e Poder
cimento não foi suficiente para acompanhar o aumento nos efectivos. Como resultado, o número<br />
de alunos por escola quadruplicou no nível EP1, e aumentou com um factor dez no ESG2.<br />
No EP2 houve uma redução do número médio de efectivos, indicando que a esse nível o aumento<br />
dos estabelecimentos acompanhou, de facto, o crescimento da população estudantil.<br />
A relativa estagnação do ensino técnico é confirmada pelo facto de que os números de efectivos,<br />
por escola e por nível, se têm mantido basicamente constantes ao longo dos últimos oito anos.<br />
TABELA 3 NÚMEROS MÉDIOS DE ESTUDANTES POR ESCOLA POR NÍVEL POR ANO.<br />
EP1 EP2 ESG1 ESG2 ETE ETB ETM<br />
1975 128,3 785,8 656,7 266,0<br />
1980 242,1 807,1 512,1 144,3<br />
1985 284,0 713,4 368,5 432,4<br />
1990 366,2 690,6 425,9 668,6<br />
1995 339,7 548,7 703,3 411,0<br />
2000 321,2 469,7 1214,3 928,5 128,5 985,8 782,3<br />
2005 390,3 406,4 1998,2 879,1 112,1 1201,4 963,4<br />
2008 425,9 353,6 1861,0 2568,9 133,4 1150,3 712,3<br />
FONTE Ministério da Educação e Cultura<br />
Embora haja evidências claras de que um menor número de professores por aluno tem um impacto<br />
negativo sobre a qualidade do ensino, infelizmente não existe nenhum padrão internacionalmente<br />
aceite que permita medir essa relação de forma concreta, o que forçaria os<br />
governos a tomarem medidas para cumprir tais padrões.<br />
Ao mesmo tempo, é claro que os rácios em Moçambique são muito baixos em comparação com<br />
os de outros países. A UNESCO publicou alguns números de referência com base na comparação<br />
entre 19 países que participaram num projecto para o desenvolvimento de indicadores para a<br />
educação (World Education Indicators - WEI) e os países membros da OECD 1 . Os dados na<br />
Tabela 4 mostram que o número de professores por 100 alunos em Moçambique é menos que<br />
a metade dum país como o Brasil e um terço da média da OECD.<br />
Somando a essa situação, por si, já grave, às condições difíceis sob as quais os professores trabalham,<br />
frequentemente com um nível de formação abaixo do desejável (em 2008, 36% dos professores<br />
no EP1 e 22,5% no EP2 não tinha a formação adequada), é evidente que o sistema de<br />
ensino não é capaz de produzir graduados comparáveis aos dos países que devem servir como<br />
exemplo como o Brasil, a China e os países membros da OECD.<br />
O baixo número de professores por aluno e um número ainda insuficiente de salas tem conduzido<br />
à introdução de turnos.<br />
Assim, em muitas escalas o tempo de utilização tem de ser repartido por dois ou três turnos.<br />
Como resultado, o tempo médio de presença na escola ronda actualmente as 500 horas por ano,<br />
que é pouco mais que a metade da média da região de África Austral. O governo está consciente<br />
deste problema. No seu plano estratégico para o ensino primário estabeleceu, como meta para<br />
o ano 2011, o tempo médio de 900 horas por ano, portanto igual à média da região. Pretende<br />
Educação, Formação Proficional e Poder Desafios para Moçambique 2010 277
alcançar essa meta através da construção de mais salas de aulas, contratação de mais professores<br />
e eliminação da terceira turma (comunicação pessoal, João Assale, Ministério da Educação<br />
e Cultura, 4 de Setembro de 2009).<br />
TABELA 4 NÚMEROS DE PROFESSORES POR 100 ALUNOS PARA ALGUNS PAÍSES SELECIONADOS E MOÇAMBIQUE.<br />
PAÍSES ENSINO ENSINO ENSINO TODO O<br />
PRIMÁRIO SECUNDÁRIO PRÉ-UNIVERSITÁRIO ENSINO<br />
(EP1 E EP2) INFERIOR (ESG1) (ESG2) SECUNDÁRIO<br />
ALGUNS PAÍSES PARTICIPANTES NO PROGRAMA WEI<br />
Brasil (1998) 3,46 2,97 2,59 2,76<br />
China (1998) 4,92 5,90<br />
Indonésia (2000) 4,32 5,06 5,81 5,35<br />
Malásia (1998) 4,63 5,18<br />
Zimbabwe (1999) 2,44 3,66<br />
MÉDIA DE TODOS OS PAÍSES<br />
ENVOLVIDOS NO PROGRAMA WEI 4,00 4,72 4,67 4,75<br />
MÉDIA OECD (1999) 5,57 6,58 7,09 6,87<br />
MOÇAMBIQUE (2008) 1,51 1,53 2,56 1,65<br />
FONTE Calculado com base nos números publicados em<br />
http://www.uis.unesco.org/TEMPLATE/html/Exceltables/WEI2001/table21.xls (acedido no dia 9 de Novembro de 2009).<br />
ACESSO E IGUALDADE DE OPORTUNIDADES<br />
Na governação do sistema nacional de ensino existem preocupações com dois tipos de igualdade:<br />
a igualdade entre as regiões e a igualdade entre os sexos.<br />
TABELA 5 TAXAS LÍQUIDAS DE ESCOLARIZAÇÃO POR PROVÍNCIA E PAÍS PARA 1995, 2000, 2005 E 2008.<br />
1995 2000 2005 2008<br />
CABO DELGADO 31,9 48,5 79,4 93,5<br />
GAZA 36,9 62,4 89,3 88,8<br />
INHAMBANE 36,7 65,6 86,5 85,2<br />
MANICA 34,9 49,5 83,9 97,8<br />
MAPUTO PROVÍNCIA 44,7 71,6 105,4 104,5<br />
NAMPULA 24,4 42,7 70,2 92,9<br />
NIASSA 25,7 53,1 90,8 118<br />
SOFALA 24,4 47,1 77,2 91,5<br />
TETE 41,5 49,2 89,8 112,5<br />
ZAMBÉZIA 30,3 56,5 83,2 115,9<br />
CIDADE DE MAPUTO 59,9 79,8 96,6 87,9<br />
PAÍS 33,0 53,8 83,4 100,2<br />
FONTE MINED (1995, 2000); MEC (2005, 2008)<br />
Os números da Tabela 5 mostram a taxa líquida de escolarização do EP1. A taxa líquida é a proporção<br />
entre os alunos que frequentam um certo nível - nesse caso o EP1 - que têm a idade oficial<br />
para o frequentar e a população no mesmo grupo etário.<br />
Os dados na tabela apontam para uma diferença grande entre as províncias, a favor da Cidade<br />
de Maputo, embora essa diferença tenha estado a reduzir-se ao longo dos últimos 13 anos.<br />
Os números apontam também para a fraqueza do sistema estatístico. Contém taxas superiores<br />
a 100% que, no caso da taxa líquida, não é possível.<br />
278 Desafios para Moçambique 2010 Educação, Formação Proficional e Poder
Outra forma de desigualdade, que tem preocupado desde sempre os governos de Moçambique independente,<br />
é a posição da mulher. A emancipação da mulher passa obrigatoriamente pela educação.<br />
No entanto, herdou-se da época colonial um sistema onde a rapariga era pouco representada<br />
nas escolas, com excepção do ensino secundário. Desde então, tem-se verificado uma subida na<br />
percentagem de meninas nas populações estudantis, tanto ao nível do sistema como um todo, como<br />
nas suas componentes, embora ela se tenha mantido sub-representada no ensino superior e técnico.<br />
A Figura 1 fornece uma representação gráfica da evolução da participação das raparigas e das<br />
mulheres na educação. Mostra que, aos níveis do sistema como um todo e do ensino secundário,<br />
já se aproxima dos 50%, com 47 e 44% respectivamente, em 2008. No ensino superior subiu<br />
de 12% em 1980 para 39% em 2008. A única componente do sistema de educação onde ela não<br />
tem ganho uma presença significativamente mais forte é o ensino técnico, onde a percentagem<br />
de raparigas recuperou dum valor de 16% (em 1980) para apenas 30% em 2008.<br />
FIGURA 1 PERCENTAGEM DE MULHERES NO SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO E POR COMPONENTE.<br />
60,0%<br />
Percentagem mulheres<br />
50,0%<br />
40,0%<br />
30,0%<br />
20,0%<br />
10,0%<br />
0,0%<br />
1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2008<br />
EP<br />
ESG<br />
ET<br />
ES<br />
Todos<br />
FONTE MINED (1994a, 1994b, 1997, 2000), MEC (2005, 2008) e MESCT (2003).<br />
PAPEL DO SECTOR PRIVADO<br />
No sistema colonial, as escolas privadas e não públicas - principalmente da Igreja Católica -<br />
tinham um papel importante na educação. Ligadas às missões, ensinavam o nível primário e<br />
artes e ofícios, a um grupo de alunos no meio rural. Alguns destes conseguiram avançar a sua<br />
formação, optando por uma carreira religiosa na educação, abandonando a Igreja mais tarde.<br />
Hoje, constituem figuras incontornáveis na sociedade moçambicana e no seu sistema de ensino.<br />
A independência trouxe uma ruptura abrupta com o sistema privado/religioso edificado na<br />
época colonial. Principalmente devido à insatisfação com o papel da Igreja na solidificação da<br />
hegemonia colonial, o Governo nacionalizou as escolas. Assim, a partir de 1975, existe um sistema<br />
unificado, público, gerido pelo Ministério de Educação. O fim da guerra trouxe também<br />
Educação, Formação Proficional e Poder Desafios para Moçambique 2010<br />
279
o fim do modelo de governação exclusiva do Estado. A partir de 1994, o governo permitiu<br />
o regresso das escolas privadas.<br />
TABELA 6 PESO DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO PÚBLICAS E PRIVADAS NO NÚMERO DE ALUNOS MATRICULADOS<br />
POR NÍVEL E POR SEXO.<br />
NÍVEL-SEXO 2005 2005 2005 2008 2008 2008 PERCENTAGEM PRIVADO<br />
Públicas Privadas Total Públicas Privadas Total 2005 2008<br />
EP1-M 1572276 36709 1608985 1938711 32727 1971438 1,9% 1,7%<br />
EP1-HM 3393677 77463 3471140 4109298 67668 4176966 1,9% 1,6%<br />
EP2-M 184786 8107 231412 346982 9527 356509 2,3% 2,7%<br />
EP2-HM 452888 16388 552791 781419 18831 800250 2,1% 2,4%<br />
ESG1-M 86590 17589 146422 232039 22349 254388 7,6% 8,8%<br />
ESG1HM 210128 37659 349375 532255 45960 578215 7,1% 7,9%<br />
ESG2-M 9736 3486 15467 29262 6028 35290 11,9% 17,1%<br />
ESG2HM 25737 7066 37836 69361 11747 81108 10,2% 14,5%<br />
ETE-M 408 s.i. 408 842 s.i. 842<br />
ETE-HM 1794 s.i. 1794 3068 s.i. 3068<br />
ETB-M 9489 s.i. 9489 10086 s.i. 10086<br />
ETB-HM 30036 s.i. 30036 31059 s.i. 31059<br />
ETM-M 1720 s.i. 1720 1973 s.i. 1973<br />
ETM-HM 6744 s.i. 6744 8548 s.i. 8548<br />
ES-M 4935 4441 9376 21770 7336 29106 47,4% 25,2%<br />
ES-HM 18863 9435 28298 58643 16841 75484 33,3% 22,3%<br />
Todos-M 1866208 74064 2023279 2578.386 81246 2659632 3,3% 2,7%<br />
Todos-HM 4128148 159730 4478014 5582.671 213829 5754698 3,1% 1,2%<br />
FONTE calculado com base em informação não publicada do MEC 2005e 2008 e MESCT (2003).<br />
HM = Homens e mulheres; M = Mulheres.<br />
Não há muita informação sobre o papel do sector privado no sistema nacional da educação.<br />
O único subsistema que traz uma informação completa sobre as instituições privadas é o do ensino<br />
superior. Neste sistema, a presença de universidades privadas faz-se sentir a partir de 1995<br />
(MESCT, 2003). O seu papel é significativo, chegando a cobrir até um terço da população<br />
estudantil matriculada em 2005. Desde 2005, graças a um crescimento acelerado de algumas instituições<br />
de ensino superior públicas, o peso relativo das instituições privadas do ensino superior<br />
reduziu-se, tendo cerca de 22% em 2008, embora continue significativo.<br />
O Ministério da Educação e Cultura não apresenta, duma forma sistemática, dados referentes<br />
às escolas privadas. Até 2000, nos vários relatórios por ele elaborados, referem somente escolas<br />
públicas (MINED 1994a, 1994b, 1995, 1997, 2000). Nos relatórios de 2005 e 2008, refere -<br />
-se indirectamente às escolas privadas, nos dados referentes às turmas diurnas do ensino<br />
primário e secundário geral, onde se pode ler “escolas públicas e privadas”. Assim, para estes<br />
anos, o número de estudantes total é a soma dos dados das turmas diurnas de ambos os tipos<br />
de escolas e dos dados das turmas nocturnas das escolas públicas. O número de alunos matriculados<br />
em instituições privadas é a diferença entre o número matriculado em escolas públicas<br />
e privadas e o número das turmas em diurnas em escolas públicas.<br />
O resultado desse cálculo é resumido na Tabela 6. Dos dados apresentados nesta tabela pode<br />
observar-se que:<br />
280 Desafios para Moçambique 2010 Educação, Formação Proficional e Poder
• As instituições privadas absorvem 1,2% da massa estudantil total;<br />
• As instituições privadas têm um papel de relevo no ensino secundário geral com 14,5% dos<br />
alunos no ESG2;<br />
• O peso das instituições privadas ao nível de todo o sistema de educação diminuiu, entre 2005<br />
e 2008, de 3,1% para 1,2%, graças ao crescimento do ensino superior público, enquanto ao<br />
mesmo tempo, no ensino geral secundário, o seu peso aumentou;<br />
• Em todos os subsistemas e a todos os níveis, as instituições privadas acolhem relativamente<br />
mais estudantes do sexo feminino.<br />
Não dispomos de dados sobre o peso de instituições privadas no ensino técnico. No entanto, sabemos<br />
que é bastante importante, a partir de alguns exemplos como a Instituição Dom Bosco e<br />
a ADPP. Isto implica que o papel de instituições privadas é maior que o número dado na tabela.<br />
Uma reflexão importante a fazer é sobre o modo como o ensino privado pode contribuir para<br />
a elevação da qualidade do ensino público. Uma forma directa de tal acontecer é através de parcerias<br />
entre as instituições privadas e as públicas, por exemplo na formação de professores, na<br />
realização de actividades conjuntas como competições entre escolas ou na testagem de novos<br />
modelos educativos. A forma indirecta é por pressão social, por exemplo na definição de um<br />
ranking entre escolas e publicação periódica desse mesmo ranking. Outra forma ainda é o estímulo<br />
ao surgimento de instituições privadas especializadas em determinadas áreas, como, por<br />
exemplo, a recente criação do Instituto Superior Dom Bosco, vocacionado à formação de professores<br />
para o ensino técnico e profissional.<br />
EDUCAÇÃO TÉCNICO-PROFISSIONAL COMO FACTOR<br />
DE DESENVOLVIMENTO<br />
A mudança no perfil de habilidades exigidas pelo mercado de trabalho, no sector formal, incentivou<br />
o retorno para a educação pós-básica, particularmente no que respeita a trabalhadores com<br />
pouca ou nenhuma educação e habilidades. Uma proporção considerável de novos postos de trabalho,<br />
criados pelos megaprojectos no metal, gás e indústrias de telecomunicação 2 (entre 10 mil<br />
e 20 mil postos), são para posições de qualificações médias e superiores (DINET/COREP, 2008).<br />
Porém, o sistema de educação técnico -profissional, que é responsável pela moldagem do perfil<br />
de habilidades exigidas no mercado de emprego, foi lento na resposta às demandas de mudança<br />
de mercado no sector formal. As pesquisas sobre o emprego e estudos de mercado de<br />
trabalho nas empresas do sector formal mostram que há uma ligação inadequada entre a capacidade<br />
humana disponível e as crescentes necessidades do mercado de emprego, que requer<br />
trabalhadores mais qualificados (DINET/COREP, 2008).<br />
Educação, Formação Proficional e Poder Desafios para Moçambique 2010 281
Em geral, a mão-de-obra moçambicana não tem ainda as habilidades técnicas requeridas, o<br />
que posteriormente constitui um constrangimento ao crescimento económico e ao investimento.<br />
Em 2003, aproximadamente 12% de quem fez a 7.ª classe continuou a sua formação no<br />
ensino técnico -profissional formal. 3 As raparigas apresentam uma taxa de participação e conclusão<br />
significativamente mais baixa que a dos rapazes (DINET/COREP, 2008).<br />
A educação profissional compreende os actuais subsistemas de Ensino Superior (ESP), o<br />
Ensino Técnico-Profissional (ETP) e a Formação Profissional (FP) nas suas diferentes modalidades:<br />
formal, não formal e informal.<br />
O subsistema do ensino técnico-profissional compreende os níveis Elementar (ETE), Básico<br />
(ETB) e Médio (ETM), com as especializações na área comércial, indústria, agricultura, pescas<br />
e saúde, assim como o Ensino Superior Politécnico (ESP), também com saídas profissionais nas<br />
áreas da saúde, agricultura, minas, contabilidade e auditoria, e administração pública, entre<br />
outras (MESCT, 2005).<br />
A formação e educação técnico -profissional em Moçambique são oferecidas principalmente<br />
por escolas públicas e centros de formação administrados pelos diferentes ministérios. Muito<br />
recentemente, alguns provedores privados de formação entraram no mercado e oferecem programas<br />
especializados de formação aos seus clientes do sector privado (principalmente novos<br />
investidores estrangeiros), mas estes programas ainda só beneficiam uma minoria de alunos no<br />
sistema de educação técnico-profissional.<br />
Um dos grandes problemas do actual ambiente de educação técnico-profissional é a sua fragmentação<br />
e a forma descoordenada como cada subsistema é gerido e administrado. Há falta de<br />
um quadro institucional que organize, articule, integre, regule e assegure a qualidade de intervenções<br />
de formação e programas. Este facto conduz muitas vezes a uma duplicação desnecessária<br />
de esforços e uso não optimizado dos escassos recursos de formação. Embora as<br />
instituições de educação técnico-profissional ofereçam equivalência a qualificações acadé micas,<br />
os caminhos de cruzamento de um subsistema para o outro não são sempre directos e não<br />
há nenhum mecanismo de reconhecimento da aprendizagem previamente adquirida<br />
(DINET/COREP, 2008).<br />
Segundo o mesmo documento, o sistema é também pouco flexível, o que não estimula a<br />
actualização contínua dos programas formativos de forma a responder às necessidades do mercado<br />
de emprego ou oportunidades de inovação na produção que vão surgindo.<br />
A estrutura centralizada de tomada de decisão neste subsistema, associada a uma fraca capa -<br />
cidade de gestão das instituições de formação, contribui para o uso ineficiente de recursos e impede<br />
que os provedores públicos respondam mais rapidamente às exigências específicas do<br />
mercado e ao ambiente económico local. O facto de não existir, nos órgãos de gestão, representação<br />
do sector produtivo impede que as instituições façam uma leitura atempada do ambiente<br />
ao seu redor, continuando a oferecer programas educativos já ultrapassados.<br />
282 Desafios para Moçambique 2010 Educação, Formação Proficional e Poder
Para além disso, é um subsistema que sofre de uma falta de recursos crónica, sendo um dos ensinos<br />
como menos recursos, incluindo os do Estado que gastou, em média, $95/estudante em<br />
2002 e $164/estudante em 2003. Este valores estão muito abaixo de outros países do continente<br />
africano, onde, por exemplo, a Etiópia gastou entre $200 e $280/estudante em 2002, a Tanzânia<br />
gastou entre $575 e $1292/estudante no mesmo ano, o Malawi gastava entre $238<br />
e $622/estudante em 1998, e o Botswana gastava entre o $1109 e $1842/estudante em 1996.<br />
ENSINO TÉCNICO<br />
O único grande provedor de cursos de Educação Técnico-Profissional é o Ministério da Educação<br />
e Cultura (MEC), que oferece programas a tempo inteiro de ensino técnico pré-emprego<br />
a crianças em idade escolar através de uma rede de quarenta e três escolas técnicas, nas quais<br />
o número de matrículas foi de aproximadamente 45 000 estudantes em 2005. Isto corresponde<br />
a cerca de 1% das matrículas no SNE e a cerca de 15% do total de população estudantil do nível<br />
secundário.<br />
FORMAÇÃO PROFISSIONAL<br />
A formação profissional inclui toda a formação realizada pelos Centros de Formação Profissional<br />
(CFPs) do Instituto Nacional de Emprego e Formação Profissional (INEFP) sob tutela<br />
do Ministério do Trabalho e toda a formação de curta duração realizada noutros centros de<br />
formação profissional nas empresas, escolas, ONGs, entre outras, cujo objecto principal da formação<br />
são desempregados, trabalhadores das empresas e outros adultos.<br />
ENSINO SUPERIOR POLITÉCNICO<br />
A introdução do ensino superior politécnico é muito recente no país, tendo os primeiros institutos<br />
superiores politécnicos (ISP) sido criados em 2005 e iniciado o seu funcionamento em<br />
2006 (MESCT, 2005). Antes já existiam outras instituições públicas de natureza técnica, como<br />
o Instituto Superior de Ciências de Saúde (ISCISA) que foi complementado com o surgimento<br />
do Instituto Superior de Contabilidade e Auditoria de Moçambique (ISCAM), como resultado<br />
de uma parceria público-privada, assim como o Instituto Superior de Administração Pública<br />
(ISAP). Devido à sua natureza recente, filosofia e abordagem baseada em padrões de competências,<br />
a expressão do ensino superior politécnico, em termos de estudantes, ainda é relativamente<br />
pequena comparada com o peso de outras instituições de ensino superior não<br />
politécnicas. O seu papel é, no entanto, importante para o desenvolvimento socioeconómico<br />
local, principalmente em Manica, Tete, Gaza e Maputo. Seria interessante que, do ponto de<br />
vista estratégico, se optasse mais por esta forma de expansão de ensino superior às províncias,<br />
ao invés de uma expansão de outro tipo de instituições de ensino superior menos capazes de<br />
se inserirem e responderem ao contexto local.<br />
Educação, Formação Proficional e Poder Desafios para Moçambique 2010 283
TRANSFORMAÇÕES: A REFORMA DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL (REP)<br />
Em Moçambique, parece haver a tendência de privilegiar o ensino geral em relação ao ensino profissional,<br />
pois a aspiração final da educação é um grau superior generalista e não uma vocação.<br />
Contudo, a nível mundial, as preocupações e os desafios estão centrados na qualidade da educação<br />
vocacional, a empregabilidade dos formados e na formação dos formadores do ensino<br />
técnico. Nos países industrializados, o debate sobre a educação técnica tem ocupado um lugar<br />
de destaque (Obama, 2008). Neste contexto, há um consenso de que a competitividade da economia<br />
e o desenvolvimento socioeconómico sustentável assenta fundamentalmente nas competências<br />
(conhecimentos, habilidades, valores e atitudes) da sua força de trabalho.<br />
A Reforma da Educação Profissional (REP), iniciada em 2006, é a tentativa de dar resposta aos<br />
desafios da competitividade de Moçambique, tomando também em consideração o processo<br />
de integração regional na SADC. Uma maior circulação de pessoas e bens pressupõe a formação<br />
de cidadãos profissionalmente competentes, de forma a construir uma economia competitiva.<br />
Pela primeira vez se estabelece um nexo entre a necessidade de uma maior<br />
competitividade regional e global com o desenvolvimento de recursos humanos qualificados<br />
a nível nacional.<br />
Num mundo cada vez mais global e com o país melhor integrado na Região Austral, os graduados<br />
da educação profissional moçambicanos de Mavago têm de competir, em pé de igualdade,<br />
pelos postos de trabalho não só com os graduados da Cidade de Maputo mas também<br />
com os graduados do Botswana, África do Sul, China ou de qualquer outro país do mundo. Só<br />
assim poderemos desenvolver o país de forma sustentável e quebrar, de uma vez por todas, o<br />
ciclo da pobreza através da criação de emprego, incremento da actividade produtiva e inovação,<br />
bem como da criação da riqueza para o bem -estar dos moçambicanos.<br />
No âmbito desta REP, o Quadro Nacional de Qualificações Profissionais (QNQP), junto com<br />
os seus instrumentos/sistemas associados (registo, acreditação, avaliação, garantia de qualidade,<br />
certificação, entre outras), introduz e/ou operacionaliza pela primeira vez em Moçambique<br />
o conceito de educação ao longo da vida, através de um sistema integrado, de entradas e<br />
saídas profissionais múltiplas, e do reconhecimento das habilidades adquiridas anteriormente<br />
mesmo que estas tenham sido adquiridas fora das Instituições de Educação Profissionais (IEP).<br />
Favorece, ainda, percursos de aprendizagem flexíveis porque os programas estão estruturados<br />
de forma modular e são construídos a partir de unidades de competência identificadas pelo<br />
sector produtivo. Esta forma de organização da aprendizagem permite saídas profissionais intermédias<br />
para o mercado laboral e a busca de competências específicas, em função do interesse<br />
pessoal e das necessidades do empregador. A introdução de um sistema de créditos académicos<br />
permite que se acumule e se transfira os créditos adquiridos, permitindo que um profissional<br />
continue a sua formação ao longo da sua carreira.<br />
284 Desafios para Moçambique 2010 Educação, Formação Proficional e Poder
DESAFIOS PARA A REP<br />
A educação profissional baseada em competências e de qualidade implica uma série de mudanças<br />
e de investimentos radicais em relação à situação actual deste subsistema de educação.<br />
Os desafios mais importantes que se põe ao subsistema de educação técnico-profissional, no<br />
âmbito da REP, são os seguintes:<br />
1. Governação: Criar um orgão regulador forte para o sistema da educação profissional o mais<br />
rápido possível por forma a implementar o QNQP e os mecanismos de garantia de qualidade<br />
que vão trazer a credibilidade desejada pelo sistema conjugado com envolvimento formal<br />
dos empregadores na estrutura de governação das IEP, como já acontece nos ISP;<br />
2. Articulação dentro do SNE: Melhorar a articulação com o ensino superior e geral (maior coerência<br />
e eficiência do sistema de educação);<br />
3. Melhorar a ligação entre os empregadores e as IEP: mecanismos de consulta para elaboração<br />
das Unidades de Competência, qualificações, etc., para responder às necessidades do<br />
mercado laboral;<br />
4. Unificar o sistema de educação para emprego (CFP e INEFP) com o sistema de ensino técnico<br />
(DINET e IEP’s) assim como a educação não-formal (que abrange a maioria dos profissionais<br />
moçambicanos), através da implementação do QNQP e seus sistemas associados;<br />
5. Melhorar a informação sobre o mercado laboral para facilitar a tomada de decisões do<br />
Governo, empregadores, IEP, pais, formandos e público em geral;<br />
6. Relevância: continuar e melhorar os mecanismos de consulta aos empregadores e todos os<br />
intervenientes da educação profissional iniciados pelo Secretariado Executivo da COREP e<br />
pelos ISP, para que as qualificações respondam continuamente às necessidades do sector<br />
produtivo, por forma a melhorar a empregabilidade dos graduados e, por outro lado, melhorar<br />
a competitividade das nossas empresas e economia.<br />
7. Financiamento: melhorar a qualidade e credibilidade do sistema de modo a que seja possível<br />
diversificar as fontes de financiamento à educação profissional para haver compartici -<br />
pação de custos por parte de todos os intervenientes no processo educativo (Governo,<br />
empresas, pais, estudantes, parceiros internacionais e nacionais, entre outros);<br />
8. Descentralização da gestão do sistema de educação para que ele seja mais eficiente e responda<br />
às necessidades locais, reforçando as funções e atribuições de IEP no que diz respeito<br />
à gestão de todo o processo de ensino/aprendizagem, contactos com os empregadores para<br />
estágios, mobilização de fundos, entre outros;<br />
9. Desenvolvimento da visão/modelo das instituições provedoras da educação profissional<br />
como instituições bem inseridas na comunidade respondendo continuamente às neces sidades<br />
locais e regionais. Isto implica um modelo de gestão em que as IEP tem autonomia sobre a<br />
gestão dos seus formandos, recursos humanos, financeiros e patrimoniais.<br />
Educação, Formação Proficional e Poder Desafios para Moçambique 2010 285
CONSTATAÇÕES E REFLEXÕES<br />
Os dados apresentados apontam para três importantes desafios. O primeiro é a gestão do sistema.<br />
Até agora a gestão do sistema de educação tem estado centralizada no Ministério. Todas<br />
as decisões importantes são tomadas ao nível central.<br />
A rápida expansão do sistema — com toda a pressão que cria sobre as escolas que tendem a crescer<br />
para além das suas capacidades físicas e de gestão — chama por uma descentralização de<br />
competências para as próprias unidades escolares, de modo a que possam responder, rápida e<br />
eficientemente, aos desafios que se lhes coloca.<br />
O grande desafio é encontrar uma forma que garanta, por um lado, a integridade do sistema,<br />
criando, por outro, a flexibilidade necessária mediante o estabelecimento de um sistema de financiamento<br />
e responsabilização adequado. Tomando em consideração que o ensino primário,<br />
a nível das autarquias, deve ser assumido como responsabilidade dos Conselhos Municipais, esta<br />
oportunidade pode ajudar a alavancar a reconfiguração que se pretende no sistema.<br />
Este desafio deve ser visto, também, à luz da transformação que é necessário fazer, para se passar<br />
de uma abordagem clássica de ensino para uma abordagem de aprendizagem flexível para<br />
a vida e ao longo da vida, como proposto por Carneiro (2009).<br />
Assim, a descentralização do sistema deve trazer um novo tipo de escola, tornando a educação<br />
formal e a educação informal muito menos distintas, transformando a escola num centro de<br />
aprendizagem permanente e de produção de capital social. Exemplos desta abordagem podem<br />
ser encontrados nas iniciativas, incipientes ainda, de educação à distância e no desafio das<br />
escolas se transformarem em centros de disseminação de conhecimento na sociedade, através<br />
da realização de eventos científicos e culturais e de debates sobre temas de interesse crucial<br />
para as comunidades. O segundo desafio é a necessidade de diversificar o sistema de educação,<br />
privilegiando diferentes tipos de aprendizagem, corrigindo as distorções da pirâmide educacional,<br />
oferecendo mais flexibilidade, ao trazer mais pontos de saídas para o trabalho, sem se<br />
ter de concentrar o foco nas saídas do ensino superior.<br />
No ensino superior, este desafio começou a ser abordado na Lei do Ensino Superior (5/2003).<br />
Infelizmente, a alteração desta lei em 2009 diminui as saídas do subsistema.<br />
No ensino técnico-profissional, no contexto da reforma em curso, o novo Quadro Nacional de<br />
Qualificações Profissionais aumenta as saídas deste subsistema de três para cinco. Esta reforma<br />
pode trazer uma nova dinâmica ao sistema de educação moçambicano.<br />
No entanto, os dados apontam para uma negligência deste subsistema ao longo das últimas<br />
décadas, que se pretende corrigir com a reforma em curso. Para esta reforma ter o impacto<br />
desejado no próprio subsistema e no sistema de educação como um todo, é necessário que o<br />
ensino técnico -profissional seja amplamente apoiado, de forma a que ganhe, de novo, o espaço<br />
que já ocupou anteriormente.<br />
286 Desafios para Moçambique 2010 Educação, Formação Proficional e Poder
É necessário que recupere o prestígio e a credibilidade, de forma que a sociedade veja nesta formação<br />
uma alternativa viável ao ensino geral e à necessidade, hoje percebida, de se ter uma<br />
licenciatura como objectivo último da educação.<br />
A introdução de novas qualificações, do ensino baseado em competências no ensino técnico -<br />
-profissional, a forte ligação deste subsistema com o sector produtivo e o desenho e implementação<br />
dum sistema de garantia de qualidade para as novas qualificações, são acções<br />
importantes para se resgatar essa credibilidade.<br />
A dinâmica que esta reforma introduz no sistema de educação não se limita ao subsistema de<br />
educação profissional.<br />
O sucesso na implementação de um novo sistema de educação baseado em competências pode<br />
confirmar a assunção de que, no mercado de trabalho, são igualmente importantes os conhecimentos,<br />
as habilidades e a atitude dos profissionais, ou seja, os vários saberes (saber, saber<br />
fazer, e saber ser e estar).<br />
Com efeito, no processo de desenho das qualificações profissionais, que incluiu um amplo debate<br />
e trabalho conjunto com o sector produtivo, ficou clara a necessidade de as novas qualificações,<br />
darem um peso importante ao saber ser e estar. A atitude foi entendida, por muitos empregadores,<br />
como a variável essencial na contratação de profissionais, pois, na opinião daqueles, é mais fácil<br />
ensinar conhecimentos e habilidades, dentro das empresas, do que desenvolver uma correcta<br />
atitude com o trabalho, as equipas e o próprio desenvolvimento individual de competências.<br />
As competências relacionadas com o saber ser e estar podem, assim, ser consideradas estruturantes,<br />
ou seja, é muito mais fácil a um cidadão que as possua desenvolver outras competências<br />
e integrar-se na sociedade.<br />
Por outro lado, o desenho curricular baseado em competências permite, também, que os estudantes<br />
obtenham retorno imediato sobre o que estão efectivamente a aprender e percebam,<br />
com mais clareza, a importância destas competências para a sua vida pessoal e profissional.<br />
O ensino baseado em competências, por ser normalmente mais dispendioso do que o ensino<br />
baseado em objectivos de aprendizagem, traz um desafio adicional para as escolas, que é o desafio<br />
da sustentabilidade. Esta sustentabilidade pode ser alavancada pela oferta de serviços ao<br />
mercado, o que tem um triplo papel: por um lado, forçar a escola a transformar-se num centro<br />
produtivo, condição necessária para um provedor de ensino baseado em competência; por<br />
outro, gerar receitas para a escola e, ainda, permitir testar a relevância das competências através<br />
da oferta de serviços ao mercado, que assentam nessas mesmas competências.<br />
Este modelo tem sido utilizado, em países da região, não só no ensino técnico mas também no<br />
ensino primário e secundário. A reforma do ensino secundário, em curso, está orientada para<br />
introduzir não só algumas competências estruturais mas também uma orientação para um<br />
ensino baseado em competências.<br />
Educação, Formação Proficional e Poder Desafios para Moçambique 2010 287
É talvez importante realçar que vários modelos de ensino-aprendizagem podem e devem coexistir<br />
num sistema nacional de educação, dependendo dos níveis e da orientação da aprendizagem.<br />
Modelos de ensino por objectivos, por competências ou baseado em resolução de<br />
problemas constituem opções que criam a flexibilidade e diversidade necessária em sistemas<br />
abrangentes como é o da educação.<br />
A questão da credibilidade do ensino não é limitada ao subsistema do ensino técnico -profissional.<br />
Neste momento coloca-se em causa a qualidade do ensino em todos os subsistemas. A falta de qualidade<br />
não é apenas uma ameaça à capacidade de o cidadão exercer a sua cidadania e da sociedade<br />
de responder aos desafios que enfrenta. Traz também novos desafios no campo de igualdade.<br />
Até agora, os governos têm-se preocupado, com bastante sucesso, com a desigualdade regional<br />
e a desigualdade entre homens e mulheres. Embora ainda não se tenha conseguido resolver<br />
essas desigualdades, é claro que elas estão a diminuir. Mas ao mesmo tempo há uma parte<br />
da população estudantil que não está satisfeita com o ensino público, pois sente, e os números<br />
também o mostram, que a sua qualidade é muito baixa. Vê-se assim uma fuga dum segmento<br />
privilegiado da sociedade para instituições de ensino privado, dentro e fora do país, principalmente<br />
ao nível do ensino secundário e superior.<br />
Operando com base em princípios económicos, essas instituições aplicam propinas relativamente<br />
elevadas, fazendo com que estejam apenas acessíveis à elite nacional. Assim, assiste-se na<br />
educação ao mesmo fenómeno que na saúde: a elite da sociedade deixa de usar o sistema público.<br />
Corremos o risco de ela também se libertar, se não se libertou já, das suas obrigações de cidadania<br />
nacional, deixando de se preocupar com a qualidade do ensino público, dado que não<br />
beneficia dele. A longo prazo, essa divisão entre a elite e o resto da sociedade poderá transformar<br />
as relações de poder e hegemonia na sociedade, bem como a sua capacidade de encontrar<br />
respostas aos desafios de crescimento e desenvolvimento sustentáveis que ela enfrenta.<br />
Este desafio não deve ser analisado só nos números acima apresentados, mas também tomando<br />
em consideração as lacunas identificadas por Morin (1999) e que existem nos nossos programas<br />
educativos.<br />
Para que o desafio da qualidade seja efectivamente abordado, é necessário que se olhe para as<br />
competências a serem oferecidas nos vários programas, tendo em consideração a visão de<br />
desenvolvimento nacional, e que, ao mesmo tempo, se forme os professores que sejam capazes<br />
de ser facilitadores da aprendizagem dos estudantes, numa postura completamente diferente da<br />
que temos hoje nas nossas escolas.<br />
A formação dos professores, a par da investigação e desenvolvimento curricular, deveria ser<br />
um dos pontos centrais da governação pois sem eles não é possível transformar a escola e muito<br />
menos ter a educação como a alavanca da transformação que precisamos para construirmos<br />
sociedades sustentáveis.<br />
288 Desafios para Moçambique 2010 Educação, Formação Proficional e Poder
É assim que o debate sobre que tipo de sistema de educação precisamos em Moçambique passa<br />
necessariamente pela reflexão sobre que sociedade queremos construir. Claramente, estamos<br />
a reflectir sobre educação para a cidadania e para a sustentabilidade.<br />
EDUCAR PARA A CIDADANIA<br />
E PARA UMA SOCIEDADE SUSTENTÁVEL<br />
A aspiração do povo moçambicano é assegurar que pode construir a sua liberdade, independência<br />
e bem-estar de forma justa e pacífica, construindo uma sociedade sustentável e que, por isso,<br />
se transforma em função dos desafios sociais, culturais, económicos e ambientais que enfrenta.<br />
O debate sobre sustentabilidade tem-se intensificado, e junto à preocupação crescente com a qualidade<br />
de ensino, as mudanças climáticas, a crise financeira, as desigualdades sociais, entre outros,<br />
surgiram, então, novos conceitos de sustentabilidade e o que deve ser efectivamente sustentável.<br />
O conceito de sustentabilidade significa, cada vez mais, um processo dinâmico e progressivo, envolvendo<br />
várias dimensões e interpretações. Como definido por Fritjof Capra, mencionado por<br />
Augusto de Franco (1999), sustentável não se refere apenas ao tipo de interacção humana com<br />
o mundo, que visa proteger, preservar ou conservar o meio ambiente, para não comprometer os<br />
recursos naturais das gerações futuras. Não se limita também à manutenção prolongada de entes<br />
ou processos económicos, sociais, culturais, políticos, institucionais ou físico-territoriais.<br />
Sustentabilidade é, sim, uma função complexa, que combina de uma maneira particular cinco<br />
variáveis de estado relacionadas com as seguintes características: interdependência, reciclagem,<br />
parceria, flexibilidade e diversidade.<br />
Aplicando esta definição de sustentável à sociedade, então significa que se o objectivo dela é<br />
ser sustentável, ela terá de ser capaz de aplicar esta função complexa que combina as cinco<br />
características acima mencionadas.<br />
É por esta razão que, cada vez mais, se defende que precisamos de mais que um modelo de<br />
desenvolvimento. Precisamos de vários modelos que estão interligados, interdependentes e que<br />
reflectem visões do mundo que são localmente relevantes e culturalmente apropriadas. Modelos<br />
que tirem partido, também, da enorme riqueza que a diversidade existente na sociedade traz,<br />
e que garantam que os vários actores da sociedade estabelecem uma parceria sólida e, desta<br />
combinação entre diversidade e parceria, tragam a flexibilidade necessária em momentos de<br />
incerteza.<br />
Significa também que temos de abraçar valores, comportamentos e estilos de vida que integrem<br />
essas características, implicando a transformação de mentalidades e visões, a criação de capacidades<br />
para tornar essas visões em realidade. Esta transformação de mentalidades vai significar<br />
que os cidadãos têm de desenvolver também a capacidade de reciclar as suas competências,<br />
Educação, Formação Proficional e Poder Desafios para Moçambique 2010 289
aprendendo a aprender mas também a desaprender para aprender de novo. Para que isto aconteça,<br />
o sistema tem de ser capaz de, por um lado, criar espaços e momentos de aprendizagem<br />
flexíveis, privilegiando a aprendizagem para a vida e ao longo da vida, tomando partido de outras<br />
tecnologias e metodologias e, por outro, de desenvolver o espírito crítico e criativo em todos<br />
os seus actores. É também por esta última razão que tem de se pensar em novas competências.<br />
Como foi bem expresso na Estratégia da Educação o para Desenvolvimento Sustentável<br />
(UNESCO, 2004), a educação é o primeiro agente de transformação para se atingir a sustentabilidade.<br />
A educação é mais do que transferir conhecimento e habilidades do professor para<br />
o estudante: é construir o capital humano e reforçar a coesão social, que permite tomar as decisões<br />
e implementar as acções necessárias para o nosso futuro comum.<br />
Este futuro comum tem de ser repensado, numa época marcada pela incerteza e instabilidade.<br />
As estruturas sociais são diariamente testadas por eventos desagregadores que, de alguma forma,<br />
tentam responder, sem sucesso, ao fenómeno da homogeneização económica global desenvolvida<br />
nas últimas décadas.<br />
Se partimos então desse pressuposto, parece ser importante reflectir sobre o que um sistema<br />
nacional de educação deve fornecer para que seja possível haver essa transformação.<br />
Nessa base, será então importante analisar os conteúdos dos programas educativos desde o<br />
primário até ao superior, conjugando a mesma com a análise sobre as metodologias de ensino<br />
e aprendizagem, para se compreender o que é necessário garantir para que o poder transformador<br />
da educação seja potenciado.<br />
Edgar Morin (1999) menciona o conhecimento, o conhecimento pertinente, a identidade humana,<br />
a compreensão humana, a incerteza, a condição planetária, e a antropo-ética como os<br />
sete saberes necessários à educação do futuro, para todos os níveis do sistema de educação.<br />
Ele considera que estes saberes ou estão ausentes, ou são transmitidos de forma fragmentada<br />
ou subestimada nos actuais programas educativos, mas que deveriam estar no centro das preocupações<br />
no debate sobre a educação dos jovens, futuros cidadãos.<br />
Morin menciona a compreensão do próprio conhecimento como o saber essencial e o reconhecimento<br />
da existência de erro e ilusão no conhecimento que partilhamos. Menciona também<br />
a importância do conhecimento pertinente, enfatizando que a fragmentação do conhecimento em<br />
disciplinas impede-nos, muitas vezes, de perceber as conexões entre as mesmas, reconhecendo<br />
que são efectivamente essas conexões que permitem colocar o conhecimento no contexto, já<br />
que a realidade é una e indivisível. Isto significa que não basta conhecer somente uma parte da<br />
realidade, é preciso ter uma visão capaz de situar o conjunto.<br />
Morin chama também a atenção para o saber da identidade humana, que tem sido ignorada<br />
pelos programas de instrução. A identidade humana, mais uma vez, é um todo indivisível entre<br />
as componentes biológica e psicológica do ser humano, em interacção com um meio social<br />
e de acordo com as suas características como membro de uma espécie.<br />
290 Desafios para Moçambique 2010 Educação, Formação Proficional e Poder
O quarto saber essencial é sobre a compreensão humana. É necessário aprender como compreender<br />
os outros, comportando também uma parte de empatia e identificação. Por isso, é<br />
preciso compreender a compaixão, que significa sofrer junto. É isto que permite a verdadeira<br />
comunicação humana e facilita a transição entre uma sociedade individualista e uma sociedade<br />
que trabalha para o bem comum.<br />
O quinto aspecto é a incerteza. Apesar de, nas escolas, ensinar-se somente as certezas, como a<br />
gravitação de Newton e o electromagnetismo, actualmente a ciência tem abandonado determinados<br />
elementos mecânicos para assimilar o jogo entre certeza e incerteza, da microfísica às<br />
ciências humanas. É necessário mostrar em todos os domínios, sobretudo na história, o surgimento<br />
do inesperado. Eurípides dizia no fim de três de suas tragédias que: “Os deuses causam -<br />
-nos grandes surpresas, não é o esperado que chega, e sim o inesperado que nos acontece.”<br />
É a velha ideia de 2500 anos, que nós esquecemos sempre.<br />
O sexto saber fundamental para Morin é a condição planetária que se centra em entender, em particular,<br />
como a globalização crescente permite que tudo esteja ligado/conectado. Como argumentado<br />
por Morin (1999, p. 10 e 11), “este ponto é importante porque existe, neste momento,<br />
um destino comum para todos os seres humanos. O crescimento da ameaça letal expande -se<br />
em vez de diminuir: a ameaça nuclear, a ameaça ecológica, a degradação da vida planetária. Por<br />
isso, faz-se urgente a construção de uma consciência planetária.” O que está a ser proposto é que<br />
se ensine que tudo está interligado e, por isso, que é necessário compreender a complexidade<br />
dos problemas do planeta.<br />
O último aspecto a que Morin chamou de antropo-ético, pois a moral e a ética diferem com a cultura<br />
e natureza humana, centra-se na necessidade de dar capacidades para o indivíduo desenvolver<br />
a ética e a autonomia pessoais e, ao mesmo tempo, participar na vida da sociedade. Na<br />
verdade, é importante dar ao indivíduo a capacidade para olhar para si e desenvolver uma consciência<br />
social que leve à cidadania, para que este mesmo indivíduo possa exercer a sua responsabilidade<br />
e contribuir para a sua felicidade e dos outros.<br />
Se considerarmos esta proposta de Morin, parece então pertinente propor que os programas<br />
educativos devam ser desenhados como três círculos concêntricos de aprendizagem.<br />
No círculo central teríamos os sete saberes de Morin. Alguns exemplos podem ser encontrados<br />
nas chamadas metacompetências: competência para analisar o seu comportamento, competência<br />
para aprender rapidamente, competência para extrair informação clara e precisa de<br />
fontes múltiplas, competência para fazer a pergunta certa, competência para entender o contexto<br />
e gerir a incerteza, competência para encontrar rapidamente soluções usando o pensamento<br />
prático e o senso comum, a competência de se relacionar consigo próprio e com a<br />
sociedade assumindo uma postura ética, competência para analisar e adaptar-se rapidamente<br />
a contextos e expectativas sociais, a competência de analisar os prós e os contras e tomar a<br />
Educação, Formação Proficional e Poder Desafios para Moçambique 2010 291
melhor decisão. Estas competências são estruturantes e permitem ao cidadão criar e desenvolver<br />
novas competências.<br />
Estes saberes deverão fazer parte dos currículos dos programas educativos a todos os níveis, devendo-se<br />
garantir que os programas educativos tiram partido das condições locais, como, por<br />
exemplo, qual é a base económica da região onde a escola se situa, quais são os eventos ligados<br />
a mudanças sociais ou de ambiente (por exemplo, o impacto das mudanças climáticas) que<br />
estão a ocorrer, para introduzir, de forma integrada, os saberes estruturantes propostos por<br />
Morin.<br />
Uma oportunidade que parece não estar a ser aproveitada totalmente é os 20% de conteúdo<br />
local dos programas educativos do ensino primário moçambicano. Muito pouco se está a fazer<br />
para contextualizar e adequar a educação primária aos principais desafios enfrentados pela<br />
comunidade ao redor da escola.<br />
Por outro lado, a forma de entrega dos programas tem também de ser repensada para forçar a<br />
reflexão sobre a identidade humana e a interação social, através de uma interação diferente<br />
entre os estudantes, entre os estudantes e os professores, e entre estes e a comunidade.<br />
O segundo círculo seriam as competências básicas e essenciais, relacionadas com as ciências básicas<br />
como a matemática, as línguas, a biologia, a física e a química, entre outras. Os programas educativos<br />
deveriam desenvolver este círculo em redor da busca de solução dos problemas quotidianos<br />
através da utilização das várias ciências, dando sentido ao seu estudo e criando a capacidade de<br />
integração de vários conhecimentos e da abordagem multidisciplinar na busca de soluções.<br />
E, finalmente, um terceiro círculo que traria as competências específicas tornando a educação<br />
relevante para se utilizar as oportunidades locais de desenvolvimento. Neste círculo seria fundamental<br />
aprofundar as competências básicas e trazer novas ciências, num campo de aplicação<br />
mais específico, como por exemplo as competências necessárias para o desenvolvimento da<br />
saúde, da agricultura, das pescas, do turismo e de muitos outros sectores importantes para o<br />
desenvolvimento da sociedade.<br />
Para que os programas educativos possam ser desenhados tomando em consideração estes três<br />
círculos de competências, é importante que o sistema nacional de educação mantenha um diálogo<br />
contínuo e profundo com a sociedade, e seja desenhado para ter a flexibilidade que permite<br />
a sua transformação de forma natural e harmoniosa. É necessário, também, ter uma<br />
estratégia coordenada de desenvolvimento curricular, onde a investigação lidere, mas os processos<br />
de formação dos professores, de gestão escolar, entre outros, estejam todos alinhados<br />
para permitir este salto na qualidade e relevância dos programas de ensino.<br />
Roberto Carneiro (2009) reforça esta ideia dizendo que é necessário construir o “sentido” da<br />
educação. Para isso, é preciso encontrar novos paradigmas capazes de apoiar a mudança para<br />
uma aprendizagem transformativa, que reforça a consciência (em relação ao outro) e que efec-<br />
292 Desafios para Moçambique 2010 Educação, Formação Proficional e Poder
tivamente gere capital social. O que significa que do simples é preciso mudar para o complexo,<br />
do quantitativo para o qualitativo, e do produto educativo para o serviço educativo.<br />
Ele defende que tem de se passar da abordagem clássica de aquisição de conhecimento para<br />
uma nova abordagem que:<br />
1. Em vez de debater o que se deve ensinar e como ensinar, deve debater onde e quando aprender;<br />
2. Se mova da educação básica para uma aprendizagem flexível para a vida e ao longo da vida;<br />
3. Se mova de conhecimento selectivo para conhecimento inclusivo;<br />
4. Garanta que os que não têm conhecimento possam vir a ter.<br />
As implicações desta assunção são enormes e obrigam a pensar no processo educativo como<br />
um processo ao longo da vida e não apenas nos anos da actual educação formal, centrando -se<br />
no processo de aquisição de conhecimento, incluindo todos os actores sociais e contextos de<br />
aprendizagem e tirando partido de todas as interacções sociais para educar.<br />
Ele menciona também que não chega a aprendizagem adaptativa que responde às mudanças<br />
de ambiente, que responde às ameaças, que reage aos sintomas, que captura as tendências e incorpora<br />
os sinais prévios de mudança e que elege a flexibilidade como o principal valor. É necessário<br />
dar o passo para a aprendizagem flexível, que expande as capacidades, que promove a<br />
criatividade e o pensar diferente, que promove novas formas de olhar para o ambiente/contexto,<br />
abordando e actuando nas causas, enfim, capaz de antecipar os futuros.<br />
A maioria dos programas educativos em Moçambique estão concentrados apenas no segundo<br />
círculo, ignorando ou fornecendo de forma fragmentada e isolada as competências encontradas<br />
nos outros círculos.<br />
Para além disso, utilizam a abordagem clássica descrita por Carneiro (2009). Este foco limitado<br />
nos conteúdos e a abordagem utilizada, impede que o sistema de educação moçambicano forme<br />
os cidadãos do futuro com as competências necessárias e impede também que seja um sistema<br />
capaz de antecipar as competências do futuro e adaptar-se para poder oferecê-las, tornando -se<br />
um sistema reactivo e pouco eficaz.<br />
Ao longo dos anos muitas reformas têm sido feitas em vários dos componentes do sistema,<br />
numa tentativa de o ir adequando aos novos desafios de desenvolvimento. A introdução dos<br />
20% de conteúdo local e do ensino bilingue no ensino primário foi uma tentativa de trazer as<br />
competências do terceiro círculo, mas esta oportunidade não tem sido amplamente aproveitada<br />
por falta de conteúdos apropriados ao contexto local e a uma falta de formação dos professores,<br />
peça -chave para qualquer mudança na educação.<br />
As mais recentes reformas no ensino secundário e técnico-profissional introduzem um ensino<br />
baseado em competências e procuram trazer algumas das competências mencionadas por<br />
Educação, Formação Proficional e Poder Desafios para Moçambique 2010 293
Morin, mas ainda não são suficientemente abrangentes para efectivamente se começar a construir<br />
um sistema de educação flexível como proposto por Carneiro (2009).<br />
A questão que fica e que exige uma análise mais detalhada da evolução da educação em<br />
Moçambique é se as reformas, em curso, são o suficientemente profundas e se existe o apoio<br />
necessário para elas terem sucesso.<br />
UM NOVO MODELO DE GOVERNAÇÃO<br />
Esta nova forma de olhar para a educação e para o seu poder transformativo, reconhecendo a<br />
sua interdependência com a sociedade, de forma a ser mais relevante, com maior qualidade,<br />
e com maior integração dos vários subsistemas, irá necessariamente exigir um novo tipo de governação,<br />
que utiliza abordagens diferentes e mais integradas. Se acrescermos a estes desafios,<br />
outros como o acesso, os recursos disponíveis, a pressão pelo alcance das metas do milénio definidas<br />
apenas em termos quantitativos, entre outros, vai exigir uma profunda reflexão e reforma<br />
na forma de pensar e gerir a educação em Moçambique e, provavelmente, a tomada de decisões<br />
difíceis que trazem a educação de qualidade para o cimo das prioridades de governação.<br />
Para que esta reflexão e reforma sejam possíveis, o novo tipo de governação deverá:<br />
1. Aumentar o espaço de diálogo com a sociedade, identificando os desafios de desenvolvimento<br />
que ela enfrenta, partilhando uma visão comum e promovendo, nessa interacção, o<br />
pensamento crítico e independente necessário para uma sociedade justa e em paz;<br />
2. Assumir que olhar para o futuro exige saber lidar com incertezas, deixando assim de se ter<br />
um sistema de educação reactivo e prescritivo para termos a capacidade de antecipar futuros<br />
desafios;<br />
3. Ser capaz de transformar os desafios de desenvolvimentos em programas educativos que forneçam<br />
os vários tipos de competência necessários para o desenvolvimento nacional e regional,<br />
garantindo os três círculos de competências (estruturantes, genéricas e específicas);<br />
4. Ser capaz de endereçar o desafio da qualidade e relevância do ensino, tomando provavelmente<br />
decisões políticas difíceis no binómio acesso-qualidade, quer internamente, quer no<br />
relacionamento com os parceiros de desenvolvimento;<br />
5. Reforçar o papel do Estado em três vertentes fundamentais: a pesquisa educacional trazendo<br />
novas abordagens e modelos educacionais que garantam a relevância e a qualidade da formação;<br />
a normalização incluindo a acreditação promovendo a qualidade em todos os níveis<br />
do sistema; o investimento substancial na qualidade da educação pública através da formação<br />
de professores e investimentos nos centros educativos e o apoio contínuo ao seu traba-<br />
294 Desafios para Moçambique 2010 Educação, Formação Proficional e Poder
lho pedagógico, em condições adequadas, onde os níveis de decisão correspondem às necessidades<br />
de operação e se atribui autonomia num contexto de responsabilização;<br />
6. Desenvolver parcerias com a sociedade, através dos pais e encarregados de educação, do<br />
sector produtivo e associações profissionais, para que a educação seja um direito mas também<br />
um dever de todos;<br />
7. Garantir a flexibilidade e interdependência dos vários níveis do sistema de educação, trazendo<br />
a necessária diversificação e a inclusão de outros actores relevantes como os municípios.<br />
Estas mudanças na governação exigem um novo modelo mental assente na inclusão, no pensamento<br />
crítico e na análise das várias interdependências entre os procesoos de diálogo, pesquisa,<br />
formas novas de organização no sistema, métodos de ensino e aprendizagem mais<br />
adequados aos desafios do país e desenvolvimento curricular.<br />
NOTAS<br />
1<br />
http://www.uis.unesco.org/TEMPLATE/html/Exceltables/WEI2001/table21.xls, consultado<br />
no dia 9 de Novembro de 2009.<br />
2<br />
Estas indústrias incluem a MOZAL I e II (fábrica de alumínio), o pipeline de gás da Sasol, novos<br />
projectos de minas de carvão e areias pesadas e projectos de melhoramentos de infraestruturas<br />
nos corredores de desenvolvimento de Maputo e Beira. A contribuição dos megaprojectos para<br />
o PIB cresceu de zero em 1997 para 7% em 2002 e espera-se que suba até cerca de 10% no fim<br />
da década. Irão acrescentar cerca de 0.5 pontos percentuais anualmente ao crescimento do PIB,<br />
em média, até 2010. Até 2010 irão provavelmente contar com 2 % de emprego do sector privado,<br />
pois espera-se que as ligações cresçam no futuro.<br />
3<br />
Neste documento, a expressão Educação Técnica e Vocacional (TVE) refere-se a educação profissional<br />
baseada no currículo aprovado pelo DINET, Formação Vocacional (VT) refere-se a formação<br />
formal e não -formal no currículo aprovado pelo INEFP ou cursos de formação dados<br />
pelas ONG, igrejas e outras empresas usando os seus próprios currículos. Finalmente, Educação<br />
e Formação Técnico -Profissional (TVET) usasse como uma expressão abrangente para descrever<br />
todo o ambiente de formação formal, não-formal e informal e ensino técnico.<br />
REFERÊNCIAS<br />
Brito, Lídia, Roland Brouwer and Ana Menezes (2008) Mozambique. Chapter 10 in: Damtew<br />
Teferra and Jane Knight (eds.) Higher Education -the International Dimension. Center for<br />
International Higher Education, Boston College and the Association of African<br />
Universities, Boston, pp. 303-338.<br />
Carneiro, Roberto (2009). The future of knowledge acquisition and sharing (A Contribution to<br />
“Vision 2025”) UNESCO, Paris, 11 May 2009.<br />
Educação, Formação Proficional e Poder Desafios para Moçambique 2010 295
DINET/COREP (2008) O Desafio da Reforma de TVET em MOÇAMBIQUE: Metas,<br />
Opções e Constrangimentos. Comunicação preparada pela COREP/DINET na<br />
conferência ADEA, Maputo, 2008.<br />
Franco, Augusto (1999) Alfabetização Ecológica. Revista Século XXI, número 3, Setembro de 1999.<br />
INE (2001) Anuário Estatístico 2000. Instituto Nacional de Estatística, Maputo.<br />
MEC (2005) Estatística da Educação – Levantamento Escolar – 2005. Direcção de Planificação,<br />
Ministério da Educação e Cultura, Maputo.<br />
MEC (2008) Estatística da Educação – Levantamento Escolar – 2008. Direcção de Planificação e<br />
Cooperação, Ministério da Educação e Cultura, Maputo.<br />
MESCT (2000) Plano Estratégico do Ensino Superior em Moçambique para o Período 2000 -<br />
-2010, Volume 1. Ministério do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia, Maputo (Esboço<br />
preliminar - documento de trabalho).<br />
MESCT (2003) Indicadores de Ciência e Tecnologia em Moçambique. Observatório do Ensino<br />
Superior, Ciência e Tecnologia, Ministério do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia,<br />
Maputo.<br />
MESCT (2005) Documento -síntese de criação dos Institutos Superiores Politécnicos. Ministério<br />
do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia, Maputo.<br />
MINED (1994a) Indicadores Educacionais e Efectivos Escolares – Ensino Primário, 1983-1992.<br />
Direcção de Planificação, Ministério da Educação, Maputo.<br />
MINED (1994b) Indicadores Educacionais e Efectivos Escolares - Ensino Primário, 1993-1994,<br />
Ensino Secundário Geral, 1983-1994. Direcção de Planificação, Ministério da Educação,<br />
Maputo.<br />
MINED (1995) Estatística da Educação - Levantamento Escolar — 1995. Direcção de Planificação,<br />
Ministério da Educação, Maputo.<br />
MINED (1997) Indicadores Educacionais Ensino Primário. Direcção de Planificação, Ministério<br />
da Educação, Maputo.<br />
MINED (2000) Estatística da Educação – Levantamento Escolar – 2000. Direcção de Planificação<br />
e Cooperação, Ministério da Educação, Maputo.<br />
Morin, Edgar (1999): Seven Complex lessons in the education for the future United Nations’<br />
Educational, Cultural and Scientific Organization (UNESCO), Paris<br />
UNESCO (2004) Estratégia da Educação para o Desenvolvimento Sustentável. United Nations’<br />
Educational, Cultural and Scientific Organization, Paris.<br />
296 Desafios para Moçambique 2010 Educação, Formação Proficional e Poder
DESAFIOS DO ENSINO SUPERIOR<br />
Narciso Matos | João Mosca<br />
INTRODUÇÃO E SITUAÇÃO ACTUAL<br />
Após a independência nacional, e sobretudo depois dos primeiros anos da década dos anos 90,<br />
o ensino superior expandiu-se em número de alunos e instituições em todo o território nacional, embora<br />
inicialmente com alguma concentração em Maputo. A formação pós-graduada teve uma evolução<br />
semelhante, primeiro no exterior e mais recentemente com mestrados e alguns doutoramentos<br />
em Moçambique, a maioria com parcerias de instituições de ensino superior estrangeiras.<br />
O mercado interno de técnicos, pelo menos em algumas áreas científicas, parece aparentemente<br />
coberto, pois existem graduados sem emprego ou com ocupações não correspondentes com as<br />
áreas e níveis de formação recebidos. Por outro lado, não existem dúvidas de que as instituições não<br />
alcançaram patamares de eficiência que as tornem competitivas em economias e mercados crescentemente<br />
abertos. Os serviços aos cidadãos (educação, saúde, transportes públicos, comunicações,<br />
segurança social, etc.) fornecidos pelo Estado e sector privado são também de baixa qualidade.<br />
Estes aparentes equilíbrios de mercado sem alterações substantivas de eficiência reflectem simultaneamente<br />
o grau de exigência, organização e complexidade da maioria das instituições moçambicanas<br />
e, por outro lado, as dificuldades dos técnicos transformarem as instituições, o que não significa<br />
linearmente deficiente preparação dos graduados. Pode significar, entre outros aspectos, resistência<br />
e escassos recursos para a criação e aplicação de inovações, mecanismos e sistemas de reprodução<br />
de poderes instalados, incompetências das hierarquias e dependências de trajectórias passadas.<br />
Mas também existe a percepção da baixa qualidade dos formandos. Preparação técnica fraca,<br />
o que significa insuficiências no saber, dificuldades no saber fazer e lacunas na cultura do saber<br />
estar com dignidade. Técnicos competentes, com atitudes competitivas de trabalho, espírito<br />
profissional e que desejam a formação ao longo da vida com o objectivo de melhorar as suas<br />
competências e, legitimamente, melhorar os rendimentos do trabalho e o prestígio social por<br />
méritos acumulados. Técnicos empreendedores, inovadores, intelectualmente questionantes e<br />
críticos, pessoas que assumam a responsabilidade patriótica do desenvolvimento, da democracia,<br />
da construção da nação e de um Estado de direito pleno.<br />
Desafios do Ensino Superior Desafios para Moçambique 2010 297
Muito embora a educação seja um sistema integrado entre os diferentes níveis, e entre a escola<br />
e a sociedade, o certo é que o ensino superior possui uma quota da responsabilidade da qualidade<br />
dos técnicos que forma, quanto mais não seja porque permanecem entre três e cinco anos<br />
na universidade, tempo suficiente para correcções e superação, pelo menos parcial, das debilidades<br />
do percurso anterior e da educação em sentido amplo recebida na vida. É sobre estes<br />
aspectos que principalmente se debruça este texto.<br />
A expansão das universidades procurou responder à procura do ensino pelo número crescente<br />
de estudantes que terminam o ensino secundário que querem e podem continuar os estudos.<br />
O Estado não se preparou para o aumento rápido do afluxo de estudantes ao ensino superior,<br />
não tendo criado novas universidades, cursos e preparado condições científicas e pedagógicas<br />
para uma diversificação da oferta (tipos de cursos) e elevação dos graus de ensino (mestrados<br />
e doutoramentos). O défice de oferta do ensino público foi sendo superado com o surgimento e<br />
desenvolvimento de universidades privadas, sem que existissem docentes formados para o crescimento<br />
de alunos e universidades verificado. Os investimentos concentraram-se em instalações.<br />
As bibliotecas, laboratórios, equipamentos pedagógicos, organização e formação em gestão<br />
universitária, foram secundarizadas. A investigação só é possível com massa crítica efectivamente<br />
a tempo inteiro e afectação de recursos, e não gera retornos financeiros de curto prazo.<br />
Uma parte importante dos docentes desmultiplicaram-se dando aulas em várias universidades,<br />
para além de múltiplas actividades economicamente mais compensadoras que o mercado oferece,<br />
para além de alguns ambicionarem carreira política. As universidades, públicas e privadas,<br />
desmultiplicam-se em pólos de ensino superior, sem corpo docente nem as demais condições<br />
científicas, pedagógicas, de infra-estruturas e de serviços em cada local. Oferecem-se cursos<br />
sem enquadramento de um projecto pedagógico.<br />
Surgem também correntes demagógicas e populistas da massificação sem qualidade, incluindo<br />
no ensino público, com a redução pouco criteriosa do número de anos de formação, turmas de<br />
muitas dezenas de estudantes, abertura de escolas em locais sem meios para fazer funcionar uma<br />
universidade, permissividade para que um docente possua várias ocupações com prejuízos para<br />
a universidade ou mesmo ausentar-se mantendo o salário, etc.<br />
Configurou-se assim um ensino superior que, na maior parte dos casos, não possui corpo docente<br />
formado, com poucos docentes efectivamente em tempo integral, sem massa crítica para o debate<br />
e investigação, com condições pedagógicas de funcionamento precárias, com projectos científicos<br />
e pedagógicos difusos. Admite-se que muitos dos investidores concebem o ensino superior como<br />
uma oportunidade de negócio e não como um serviço público de responsabilidade intergeracional.<br />
Uma parte significativa dos docentes não investigam e poucos assistem os estudantes; muitos procuram<br />
no mercado de trabalho a superação dos baixos rendimentos da função docente, o reconhecimento<br />
e prestigio social que a academia não confere e o protagonismo mediático e político que<br />
o poder oferece. Os estudantes não encontram um ambiente de exigência e rigor que faça a dife-<br />
298 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Ensino Superior
ença com o ensino secundário e por conseguinte, uma elevada percentagem pouco estuda. Gerase<br />
um ciclo de ineficácias e ineficiências de todas as partes que reproduzem mediocridade, que se<br />
reforça mutuamente e no interesse imediato dos actores principais que são os investidores e prestadores<br />
do serviço público (incluindo as universidade públicas), docentes e estudantes.<br />
O quarto actor, o Estado, não prioriza o ensino superior de qualidade, parece estar dominado<br />
pela ideologia de que o mercado tudo resolve e estabiliza automaticamente (por isso a liberalização<br />
caótica do ensino superior), está eventualmente promiscuído por pessoas que fazem da política<br />
e dos negócios (neste caso o ensino), plataformas de reforço mútuo e em beneficio próprio.<br />
Consequentemente, o Estado não adquire ou não exerce consistentemente competências de regulação<br />
e fiscalização, por exemplo, quanto às condições de abertura de instituições de ensino<br />
e de cursos, na monitorização do funcionamento pedagógico e da qualidade, na avaliação das<br />
instituições e correspondente informação à sociedade sobre as opções de ensino, etc. O Estado<br />
não esclarece sobre as áreas prioritárias de formação e investigação, as diferenças entre ensino<br />
superior universitário e politécnico, sobre o financiamento do ensino e a disponibilidade de bolsas<br />
de estudo, a aplicação de uma carreira docente e de investigação, a democraticidade das instituições,<br />
entre muitos aspectos. Não existem estratégias de formação e constituição de corpos<br />
docentes e de investigadores. E, no entanto, já existem evidências de que apenas o mercado e<br />
só por si, não estabiliza em equilíbrios, não gera qualidade, pelo menos por enquanto.<br />
Como resultado desta recente evolução, e pesem as questões acima exemplificadas, destacase<br />
que o acesso ao ensino superior aumentou, muitos moçambicanos obtiveram graus superiores<br />
aos da licenciatura, existem mais técnicos nas instituições com efeitos positivos sobre a organização<br />
e profissionalização de actividades, a sociedade está cada vez mais consciente da importância<br />
da sua própria organização e papel no desenvolvimento.<br />
Este texto aborda os temas acima referidos, na perspectiva de um contributo para o debate do<br />
ensino superior e de sugestões quanto aos percursos aconselháveis para que o ensino superior<br />
desempenhe o seu papel no desenvolvimento, no aumento do bem estar, na construção da<br />
nação e de um estado democrático e de direito, com responsabilidades e efeitos de longo prazo.<br />
Para isso, os autores consideram fundamental o debate dos seguintes aspectos:<br />
• Estratégias do ensino superior no quadro de uma sociedade e economia abertas e internacionalizadas,<br />
designadamente o dilema entre a qualidade e a massificação ou entre a consolidação<br />
e a expansão no contexto de uma economia de mercado, as complementaridades entre<br />
o ensino público e privado e entre o ensino universitário e o politécnico.<br />
• A importância da investigação e da extensão, simultaneamente como base e complemento do<br />
ensino, reforçando-se mutuamente na geração de inovação para o desenvolvimento, bem<br />
como as suas prioridades no quadro das políticas públicas, da sociedade e do desenvolvimento<br />
do tecido empresarial.<br />
Desafios do Ensino Superior Desafios para Moçambique 2010 299
• O acesso ao ensino e os sistemas de financiamento das instituições públicas e privadas, a formação<br />
do corpo docente e de investigação e a regulação das carreiras profissionais e códigos<br />
de conduta e ética para a profissionalização e reconhecimento social da academia.<br />
• A estruturação e o papel do Estado na definição e aplicação de estratégias e prioridades, na<br />
regulação do ensino superior e da investigação, na monitorização, avaliação e fiscalização do<br />
funcionamento científico, pedagógico e administrativo das instituições. Não menos importante,<br />
a criação de ambientes favoráveis à democraticidade das instituições, à plena liberdade<br />
de ensino, aprendizagem e investigação.<br />
• Finalmente, tecem-se considerações sobre a aplicação de um conjunto de medidas, desde a sua<br />
regulamentação, prazos de cumprimentos da legislação pelas instituições e medidas sancionatórias<br />
e de louvor.<br />
Para além da introdução e da breve análise da situação actual, o texto está estruturado em mais três<br />
secções. Na primeira, apresentam-se ideias sobre estratégias para o ensino superior. Na segunda secção,<br />
sobre os desafios do ensino superior, referem-se com maior detalhe aspectos que parecem<br />
aos autores serem os mais carentes de debate e constituírem condições para a prossecução das<br />
ideias sobre o ensino superior apresentadas na primeira secção. Finalmente faz-se um breve resumo.<br />
O presente trabalho não pretende ser um documento de estratégia e de políticas para o ensino<br />
superior nem tão pouco uma análise exaustiva sobre a evolução e actual situação do ensino<br />
superior. Apresenta apenas algumas ideias sobre os desafios do ensino superior e reflecte a<br />
opinião dos autores, independentemente dos debates, documentos ou leis que possam existir.<br />
Os autores entendem que uma análise ou as reflexões sobre o ensino superior não podem ser descontextualizadas<br />
e divorciadas do estado de desenvolvimento económico e social do país e muito<br />
menos ser desarticuladas de todo o sistema educativo. Porém, no quadro da edição do presente<br />
livro e considerando a limitação de espaço, o texto centra-se apenas no ensino superior.<br />
ESTRATÉGIAS DE ENSINO SUPERIOR<br />
O ensino superior responde, a longo prazo, aos desafios da construção da nação, de uma sociedade<br />
aberta e democrática com exercício activo da cidadania e do desenvolvimento económico<br />
num ambiente não protegido e competitivo à escala global. Se assim é, a educação e o<br />
ensino superior terão de se pautar por parâmetros de qualidade internacional, o que significa,<br />
nomeadamente, que os técnicos formados terão competências equivalentes e capacidades competitivas<br />
individuais para actuar em qualquer mercado de trabalho ou concorrer no seu país com<br />
técnicos estrangeiros. Isso só é possível com instituições de ensino superior de elevada qualidade<br />
que tem como variáveis de análise principalmente as seguintes:<br />
300 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Ensino Superior
• Corpo docente formado, com currículo e investigação nas áreas de ensino e integrado em<br />
redes de conhecimento internacional;<br />
• Instituições apetrechadas com recursos e meios pedagógicos que facilitam o ensino, a aprendizagem,<br />
o acesso ao conhecimento e que atribua aos estudantes competências no saber e no<br />
saber fazer, com eficácia e eficiência.<br />
• Estratégias pedagógicas assentes na exigência e no trabalho, na qualificação e na formação<br />
ampla do Homem que se quer valorizar com base no mérito, para melhor desempenho de funções<br />
e benefício pessoal e da sociedade.<br />
Estes objectivos não são compatíveis com a massificação sem qualidade, com fins demagógicos<br />
e populistas. Mau ensino representa, no futuro, a configuração de sociedades fechadas, que<br />
se reproduzem protegidas em critérios de grupos e seus interesses, que dificultam a meritocracia<br />
e a organização da sociedade democrática com crescente igualdade de oportunidades. Mau<br />
ensino alimenta organizações e economias ineficientes que apenas poderão sobreviver com<br />
mecanismos contrários às actuais tendências de integração e internacionalização económica e<br />
política. O mau ensino gera desemprego ou emprego desajustado de técnicos com suposta qualificação<br />
superior e pode provocar instabilidade social.<br />
Ademais, a expansão sem qualidade implica certamente custos por aluno superiores, pelo menos<br />
socialmente, aos que existiriam se houvesse o pagamento de propinas aos mesmos estudantes<br />
(bolseiros) para se matricularem numa universidade mais distante. O acesso ao ensino seria<br />
assegurado, a qualidade preservada e os custos seriam mais baixos.<br />
Universidades que não forem capazes de crescer e de criar massa crítica (docentes e investigadores<br />
envolvidos em acções de formação pós-graduada associada a projectos de investigação) correm<br />
o risco de optar por estratégias facilitistas em busca da sobrevivência financeira. A escala é um<br />
elemento fundamental de qualidade e sobrevivência económica. Só com dimensão é possível<br />
possuir massa crítica e aplicar estratégias integradas de formação nos diferentes níveis, investigação<br />
associada às áreas de ensino, formar corpo docente próprio (in breeding), realizar extensão universitária,<br />
atrair corpo docente de prestígio, estabelecer parcerias internacionais com instituições de mérito<br />
e participar em programas de mobilidade de estudantes, docentes e investigadores. Estes não<br />
podem ser horizontes de longo prazo porque já se está atrasado. Estes objectivos são incompatíveis<br />
com o lucro fácil e de curto prazo, com políticas incoerentes, erráticas e instáveis, ou com posturas<br />
académicas e profissionais difusas e não normalizadas que podem promover a promiscuidade, falta<br />
de ética e corrupção. Ou simplesmente opta-se pela política de não ter política, na convicção dogmática<br />
de que o mercado tudo estabilizará, criará eficiência e, com isso, a qualidade, através da eliminação<br />
dos maus concorrentes. Entretanto, os danos da má formação são quase irreparáveis.<br />
Sugere-se que, em ambiente de competição e condições semelhantes, o ensino público e privado<br />
sejam analisados e exigidos com os mesmos critérios. Os proteccionismos e privilégios<br />
Desafios do Ensino Superior Desafios para Moçambique 2010 301
da natureza pública ou os facilitismos por influência e lobby político em defesa de interesses<br />
privados devem ser eliminados, competindo aos estudantes a selecção das escolas onde<br />
desejam formar-se em função sobretudo da qualidade real e apercebida pela sociedade e as<br />
oportunidades de emprego e empregabilidade pós-formação. Nesse sentido, compete ao<br />
Estado criar contextos e ambientes que coloquem as instituições de ensino superior, públicas<br />
e privadas, em condições de partida que permitam que a competitividade não diferencie<br />
por condições diversas de financiamento, subsídios e outros proteccionismos e sim pela qualidade<br />
do ensino, investigação, capacidade de intervenção e influência na sociedade, pelos<br />
serviços prestados aos estudantes e pela percepção que a sociedade possui das diferentes<br />
universidades.<br />
Sendo o mercado aquele que afecta a maioria dos recursos (incluindo os técnicos), compete ao<br />
Estado influenciar o desenvolvimento e o funcionamento dos mercados em direcções que se<br />
enquadrem nos objectivos desejados. A investigação e formação, a inovação e os mecanismos<br />
de transferência de tecnologia, juntamente com políticas económicas direccionadas para o ensino<br />
superior são, sem dúvida, meios de alcançar esses objectivos. Neste sentido, existe toda a<br />
conveniência de que os projectos científicos e pedagógicos das instituições estejam alinhados<br />
com os objectivos do desenvolvimento.<br />
É acertado que as instituições definam as áreas de conhecimento nas quais pretendem adquirir<br />
estatuto de referência por excelência. Uma universidade não deve ter apenas cursos de “lápis<br />
e papel” que exigem pouco investimento. A especialização e complementaridade interinstitucional<br />
a nível nacional e por zonas do país constituirão os elementos de identidade e prestígio<br />
das universidades e centros de investigação. Esta articulação é possível realizar-se com entendimentos<br />
e pactos de longo prazo entre as instituições. Nenhuma universidade pode ser excelente<br />
em todas as áreas. No entanto, considerando o mercado, existem ciclos de maior procura<br />
de determinados cursos, que podem afectar negativamente uma instituição se for excessivamente<br />
especializada sendo recomendável que, para além das áreas de identidade, possuam cursos<br />
que lhes sejam complementares ou próximos de modo a ganharem sinergias (de corpo<br />
docente, instalações, equipamentos, etc.) e melhor poderem resistir aos ciclos da procura de cursos.<br />
Nessa perspectiva, é vantajoso que as universidades possuam vários cursos (também para<br />
ganhar dimensão) e que existam cursos em áreas das ciências sociais e nas tecnológicas.<br />
A especialização não implica monopólios institucionais por áreas de conhecimento. A concorrência<br />
no ensino é saudável quando regulada e legislada de forma a evitar a queda de parâmetros<br />
de qualidade, das condições de ensino e da ética. É ainda importante não haver<br />
monopólios para que existam opções de escolha dos estudantes e alternativas em casos de crise<br />
pedagógica e administrativa das instituições.<br />
A especialização, para além das opções públicas e empresariais, pode ainda considerar as<br />
vocações tradicionais das instituições ou a responsabilidade do Estado perante a sociedade na<br />
302 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Ensino Superior
prestação de serviços. Por exemplo, seria lógico que o Estado definisse como prioridades educativas<br />
as áreas da saúde, da educação e a formação em áreas técnicas estratégicas de desenvolvimento,<br />
onde o Estado possui um papel importante, como seja nas ciências agrárias, nos<br />
transportes, na energia e na administração. Para o efeito, o Estado pode utilizar alavancas económicas,<br />
fiscais e outras, que premeiam a escolha de especializações alinhadas com as polí ticas<br />
estatais e oneram as escolhas desajustadas.<br />
A massificação apenas com preservação de standards elevados de qualidade, implica que muitos<br />
estudantes que terminam o ensino secundário terão de seguir cursos médios ou profissionais,<br />
formando a pirâmide técnica dos recursos humanos qualificados do país. Esta via não<br />
significa necessariamente que a opção ensino superior versus ensino médio seja, à partida e definitivamente,<br />
uma segmentação ou hierarquização a que se condenam os estudantes que por<br />
qualquer motivo não tiveram acesso ao ensino superior. Podem existir, em diferentes momentos,<br />
mecanismos de mobilidade entre os dois níveis de ensino, por exemplo, a continuidade<br />
dos estudos no ensino superior de um técnico médio, com possibilidade de equivalência de<br />
créditos mediante critérios cuidadosos e não de forma automática por se tratarem de níveis e<br />
concepções diferentes de formação. A universidade terá ainda de estar aberta aos profissionais<br />
com experiência e que desejam aprofundar os conhecimentos, através de pós -graduações ou<br />
cursos de especialização profissional, aos quais são atribuídos créditos.<br />
Estas opções são aceites se existir clarificação acerca dos “vasos comunicantes” entre os níveis<br />
e tipos de ensino, se existir a cultura da formação ao longo da vida, se todas as profissões forem<br />
valorizadas e dignificadas e se as organizações empresariais e do Estado estiverem disponíveis<br />
para aceitar a formação dos seus técnicos.<br />
A academia, como centro privilegiado de produção, intercâmbio e transmissão de conhecimento<br />
e de ciência, não pode possuir limitações de qualquer tipo nas opções de estudo e investigação,<br />
pensamento, debate e escrita. A investigação e o ensino possuem como base a honestidade intelectual<br />
do investigador e do docente e estudante, mediante a adopção das metodologias apropriadas<br />
e reconhecidas de análise e desenvolvimento de pesquisa, a utilização criteriosa e crítica<br />
das fontes e a interpretação não condicionada dos resultados. Qualquer impedimento destes<br />
princípios deforma a investigação e a formação e gera faltas de credibilidade das instituições.<br />
Isso acontece quando existe a intenção não desejável de manipular ideologicamente o (des)conhecimento,<br />
podendo acontecer a paternidade ou rejeição das escolas de pensamento diverso.<br />
Por isso, as instituições universitárias, públicas e privadas, devem gozar de plena autonomia científica,<br />
pedagógica e administrativa. A comunidade académica tem de resistir contra intromissões<br />
que visam a formatação do ensino como transmissor direccionado de ideologias ou<br />
pensamentos que reproduzem poderes de grupos ou interesses que não sejam os da nação, da<br />
democracia, da justiça, da transparência e da plena liberdade dos cidadãos optarem pelas escolhas<br />
que entenderem. Para o efeito, é às pessoas que compõem a academia que, em primeiro<br />
Desafios do Ensino Superior Desafios para Moçambique 2010 303
lugar, compete compreender que existem incompatibilidades éticas e deontológicas entre o exercício<br />
de determinadas profissões ou funções, principalmente quando exercidas em simultâneo.<br />
A democraticidade dentro das instituições, dos seus órgãos e as eleições entre os pares, são também<br />
uma forma de reconhecimento do mérito e prestígio entre colegas, obedece a regras escritas<br />
e não escritas próprias da academia, e são contrárias às nomeações pela via do poder político<br />
ou administrativo. As universidades públicas, privadas ou associadas a vários tipos de organizações<br />
(por exemplo congregações religiosas), prestam serviços à sociedade, possuem os seus mecanismos<br />
de funcionamento autónomo e não podem ser geridas em defesa ou na reprodução de<br />
interesses do governante ou do dirigente da organização “patrão” de turno, ou mesmo ser utilizadas<br />
como instrumentos para agendas alheias ao ensino e à investigação. Se isso acontecer, a<br />
sociedade, cedo ou tarde, saberá identificar e relacionar essas conexões e compreenderá o tipo<br />
de (de)formação dos técnicos formados, por muito prestigiadas que sejam as instituições.<br />
Os corpos directivos das universidades são responsáveis por assegurar as opções científicas e as<br />
regras administrativas e financeiras das entidades tutelares e defender a autonomia. As entidades<br />
tutelares, para mais acertadamente e democraticamente desempenharem as suas funções,<br />
deveriam assentar as opções com base em órgãos de consulta envolvendo académicos e personalidades<br />
da sociedade civil de reconhecido prestígio profissional.<br />
Os órgãos de gestão científica e pedagógica funcionam com autonomia e conforme os estatutos.<br />
É vantajoso que o desempenho de funções de direcção e coordenação de órgãos de gestão<br />
universitária não recaia num mesmo elemento, de forma a evitar-se conflito de interesses e<br />
a garantir o funcionamento pleno dos órgãos conforme as suas competências estatutárias. Sugere-se<br />
que os cargos de responsabilidade nas instituições de ensino superior sejam exercidos<br />
por docentes a tempo inteiro com a categoria profissional mais elevada. Estas funções de<br />
direcção e coordenação são preferentemente exercidas por docentes que tiverem graus mais<br />
elevados e, entre estes, o de categoria profissional mais avançada.<br />
Como forma de evitar que as áreas e assuntos a investigar sejam exclusivamente condicionados<br />
pelos critérios e interesses das instituições financiadoras, as universidades e centros de investigação<br />
podem concorrer a várias fontes de financiamento, sendo que, nestes casos, são factores<br />
preponderantes de financiamento a qualidade e mérito das equipas de investigação, a relevância<br />
e actualidade dos temas e a internacionalização dos projectos propostos (por exemplo, equipas<br />
de investigação transnacionais e objectos de estudo comparados entre países e regiões).<br />
DESAFIOS DO ENSINO SUPERIOR<br />
O Estado tem como funções principais, no que concerne à educação superior, entre outras, definir<br />
e assegurar a implementação de estratégias para o ensino superior e investigação científica,<br />
304 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Ensino Superior
no quadro dos objectivos do desenvolvimento global e regionalmente integrado, da evolução<br />
económica e conforme os mecanismos de mercado. A preservação da qualidade, o incentivo à<br />
investigação, o bom funcionamento do ensino superior e das suas instituições e a ampliação do<br />
acesso ao ensino superior, são objectivos que integram o papel regulador e fiscalizador do<br />
Estado. O alinhamento do sistema de ensino no quadro das reformas a nível regional e internacional<br />
e os incentivos e afectação de recursos que garantam a internacionalização das instituições<br />
na formação, investigação e em redes de conhecimento. Indicam-se a seguir algumas<br />
acções necessárias à realização das funções descritas.<br />
ACERCA DA ABERTURA E ENCERRAMENTO DE INSTITUIÇÕES E CURSOS<br />
É discutível se a exigência de condições e requisitos para o funcionamento de uma instituição<br />
de ensino superior deva ser assegurada inicialmente ou ao fim de um determinado período<br />
após o início das actividades. Os empresários podem eventualmente sugerir opções mais liberalizadoras,<br />
alegando mesmo a autonomia universitária. Neste caso, ao Estado competeria a<br />
fiscalização a posteriori, cujas medidas podem incluir o encerramento de universidade e cursos.<br />
Outra opção seria a exigência de um conjunto de condições à partida, o que poderia retrair o<br />
desenvolvimento do ensino superior.<br />
Uma solução intermédia que os autores sugerem é o da apresentação de documentos de compromisso<br />
de cumprimento por fases das condições e requisitos pré-estabelecidos. A abertura de<br />
novas instituições e cursos, assim como o seu posterior funcionamento, deveria sujeitar-se à<br />
aprovação, pelo órgão estatal de tutela, ou à verificação através de missões de avaliação e inspecção,<br />
de condições e requisitos como os seguintes:<br />
• Um projecto científico e pedagógico que se enquadre na estratégia do ensino superior e<br />
assegure os parâmetros de qualidade e estabilidade institucional definidos;<br />
• Compromisso ou existência de um corpo docente em qualidade (graus), quantidade e tipo de<br />
contratação (tempo parcial, integral e exclusividade), com parâmetros para cada nível de formação<br />
(bacharelatos, licenciaturas, mestrados e doutoramentos). No caso das novas instituições<br />
e cursos, são definidas fases de cumprimento parcial para cada condição e requisito,<br />
sendo que, na última fase, o corpo docente possui a estrutura definida;<br />
• Para a aprovação de novas instituições, apresentação do projecto de construção ou reabilitação<br />
de instalações;<br />
• Para novos cursos, verificação das características técnicas e demonstração de condições<br />
pedagógicas à partida (infra-estruturas – salas de aulas, laboratórios de acordo com os cursos,<br />
biblioteca, etc.);<br />
• Garantias de idoneidade da instituição investidora e estabilidade financeira ou demonstração<br />
de acesso aos recursos necessários.<br />
Desafios do Ensino Superior Desafios para Moçambique 2010 305
Sugere-se que na análise das propostas de cursos, as organizações da sociedade civil especializadas<br />
contribuam na definição dos currículos e das condições científicas e pedagógicas.<br />
No caso de não verificação das condições e requisitos de funcionamento por missões de avaliação<br />
externa e inspecção, as instituições têm um prazo de correcção. A persistência pode<br />
conduzir ao encerramento da instituição ou do curso. O Estado define as condições e procedimentos<br />
de encerramento de instituições.<br />
QUALIDADE DO ENSINO E DAS INSTITUIÇÕES<br />
O órgão de tutela do ensino superior deve possuir uma definição de indicadores ou de critérios<br />
de verificação do conceito de qualidade que permitam a avaliação e classificação das instituições<br />
e dos cursos. Os indicadores e as suas ponderações na nota final das instituições podem<br />
mudar em função do objectivo de qualidade a alcançar em cada fase. Em qualquer circunstância,<br />
destacam-se, entre outras, as seguintes:<br />
• Qualidade do corpo docente (graus, formação adequada aos cursos, avaliação curricular e<br />
regime de contrato);<br />
• Condições pedagógicas de ensino, principalmente: salas de aula, acervo bibliotecário, acesso<br />
a meios informáticos, Internet, bibliotecas on line e pacotes software conforme os cursos, laboratórios<br />
e sua utilização;<br />
• Investigação, medida por projectos aprovados e em curso, obras publicadas (diferenciadas por<br />
tipo de publicação) e grau de internacionalização (veja mais adiante);<br />
• Funcionamento regular, autónomo e conforme os estatutos, dos órgãos de gestão científica,<br />
sobretudo o conselho científico e o conselho pedagógico;<br />
• Outros serviços acessíveis aos estudantes (acesso a computadores, reprografia, livraria, bar, etc.);<br />
• Actividades de extensão universitária medida por acções junto da comunidade (estudos, consultorias,<br />
observatórios e seminários, conferências, debates realizados em eventos organizados<br />
por terceiros, etc.);<br />
• Actividades extracurriculares realizadas pela universidade, como conferências, seminários,<br />
eventos da associação de estudantes, desporto universitário, etc.;<br />
• Percepção dos estudantes sobre diferentes aspectos da universidade e do ensino, informação<br />
a ser obtida por questionário normalizado.<br />
Não menos importante que a avaliação das instituições é a dos cursos. Neste caso, os principais<br />
indicadores podem ser os seguintes:<br />
• Formação do corpo docente com exigências diferenciadas, por nível de formação;<br />
306 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Ensino Superior
• Propõe-se que o corpo docente dos bacharelatos e licenciaturas seja constituído, de forma<br />
transitória, num prazo não superior a cinco anos, pelo menos com a seguinte estrutura de<br />
doutorados e mestres: pelo menos um doutor por área de conhecimento, e três mestres por<br />
ano lectivo, todos efectivamente em tempo integral;<br />
• Sugere-se que os mestrados e doutoramentos sejam leccionados apenas por doutorados. Para o<br />
nível de mestrado, exige-se que as disciplinas sejam leccionadas por doutorados com investigação<br />
relevante e actual na área de conhecimento da disciplina a leccionar. No caso de doutoramentos,<br />
para além das condições respeitantes ao mestrado, as instituições possuirão investigação<br />
e curriculum relevante e actual na área de conhecimento relacionado com o doutoramento;<br />
• Pelo menos metade dos indicadores referidos para os mestrados e doutoramentos devem ser<br />
preenchidos por docentes em tempo integral;<br />
• Sugere-se que, num período de até 25 anos, todo o corpo docente permanente das universidades<br />
seja efectivamente em tempo integral e com o grau de Doutor. (Aconselha-se a estabelecer<br />
metas intermédias obrigatórias quinquenais até ao 25.º ano – veja mais adiante);<br />
• Biblioteca especializada na área de conhecimento (número de obras e conforme a bibliografia<br />
relevante para as disciplinas do curriculum do curso) e acesso a bibliotecas on line;<br />
• Laboratórios adequados ao nível de ensino e área de conhecimento;<br />
• Funcionamento normal dos órgãos de coordenação e dos órgãos científicos e pedagógicos do<br />
curso.<br />
É importante que se estabeleçam prazos de cumprimento total e parcial dos requisitos indicados.<br />
As classificações necessitam possuir uma escala com ponderações para cada um dos aspectos<br />
referidos, o que permite a avaliação e o estabelecimento de um ranking das universidades e cursos<br />
que se sugere seja periódico (no mínimo de três anos). Os rankings estarão disponíveis on<br />
line no site do órgão estatal de tutela e divulgados anualmente nos meios de comunicação.<br />
Como a qualidade do ensino é também avaliada pelos empregadores, propõe-se que cada universidade<br />
analise obrigatoriamente, e por um período não superior a três anos, quais as ocupações<br />
que os graduados desenvolvem, definindo-se para o efeito um modelo de avaliação<br />
único para todas as universidades e atendendo às especificidades de cada curso. Esta análise integra<br />
a avaliação das universidades e a sua valoração no ranking das instituições de ensino superior,<br />
é publicada para conhecimento público e pode ser utilizado pelas universidades nas suas<br />
acções de marketing. Sugere-se que esta avaliação seja realizada com organizações da sociedade<br />
civil especializadas (por exemplo, as ordens profissionais).<br />
Sugere-se a necessidade de existência de um regulamento de qualidade, onde se definam<br />
os critérios de avaliação e respectivas ponderações, a constituição das equipas de avaliação,<br />
os procedimentos durante a avaliação, as possibilidades de reclamação da instituição avaliada<br />
e as penalizações.<br />
Desafios do Ensino Superior Desafios para Moçambique 2010 307
AVALIAÇÕES E INSPECÇÕES<br />
Compete ao Estado monitorar o bom funcionamento das instituições e dos cursos, através de<br />
missões de avaliação externa e por meio de inspecções transparentes e competentes. É desejável<br />
que as avaliações científicas e pedagógicas possuam uma periodicidade regular, no mínimo<br />
trienal. A transparência é assegurada com a constituição aleatória das equipas a partir de uma<br />
bolsa de avaliadores do ensino superior, sendo que nenhum membro da equipa pode possuir<br />
relações laborais ou de outro tipo com a entidade a avaliar. É importante envolver elementos<br />
de organizações da sociedade civil nas equipas de avaliação de forma a incluir padrões de<br />
valoração apercebidos e necessários no contexto da evolução do mercado.<br />
A competência é obtida através da obrigatoriedade de todos os membros da equipa possuírem<br />
o grau de Doutor e desta ser chefiada pelo membro com categoria profissional mais elevada,<br />
preferentemente um Professor Catedrático. Em caso de empate, prevalece o critério da antiguidade<br />
na categoria. As áreas de formação dos membros das equipas corresponderá em pelo<br />
menos a 2/3 às áreas dos cursos ou das instituições a avaliar. Nenhuma instituição deverá ser<br />
avaliada por uma equipa cujo coordenador possua uma categoria inferior ao Professor ou<br />
investigador mais qualificado da instituição ou curso avaliado.<br />
As avaliações têm por objectivo essencial o contributo para a melhoria da qualidade e do funcionamento<br />
das instituições e dos cursos. As recomendações das avaliações possuem prazos de<br />
correcção, findos os quais se procede à verificação pela mesma equipa de avaliadores. A não<br />
consideração das recomendações implica penalizações que podem, em caso extremo, significar<br />
o encerramento da instituição ou do curso e, em casos justificados, determinar o levantamento<br />
de processos-crime dos responsáveis. É importante possuir legislação que regule as condições de<br />
encerramento de instituições e cursos assim como a defesa e sem prejuízo dos interesses dos<br />
estudantes através de transferência para outras instituições, bolsas de estudos excepcionais, etc.<br />
O bom funcionamento das equipas de avaliação sugere a existência de lei onde, por exemplo,<br />
sejam definidos os assuntos a avaliar, os métodos de recolha de informação, as classificações a<br />
atribuir, o funcionamento e modo de intervenção na instituição avaliada e o tipo de relatório<br />
a elaborar, os mecanismos de reclamação da instituição avaliada, entre outros aspectos.<br />
Para além de avaliações e inspecções regulares, poderão ser determinadas inspecções extraordinárias<br />
quando são detectados, verificados ou aconteçam fenómenos que não permitam o normal<br />
funcionamento científico, pedagógico e administrativo das instituições ou dos cursos.<br />
Nestes casos, as equipas de inspecção são constituídas de modo similar às de avaliação, assim<br />
como os procedimentos de intervenção e actuação.<br />
Sugere-se que as instituições possuam periodicamente, num intervalo não inferior a dois anos,<br />
avaliações internas (das instituições e dos cursos), que têm por objectivo preparar as avaliações<br />
externas e dar indicações para que os órgãos de gestão académica tomem as medidas correctivas<br />
pertinentes. As metodologias de avaliação interna são definidas pelas próprias instituições,<br />
308 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Ensino Superior
sugerindo-se o máximo de convergência com a metodologia de avaliação externa, que será<br />
igual para todas as universidades e cursos segundo as áreas de conhecimento. As avaliações internas<br />
são feitas por equipas constituídas por professores doutorados, coordenadas pelo membro<br />
que possuir maior qualificação. As equipas são nomeadas pelo Reitor ou Director do centro<br />
de ensino ou investigação.<br />
Compete a cada instituição definir os procedimentos resultantes das avaliações internas, bem<br />
como das penalizações, se for o caso.<br />
FORMAÇÃO DO CORPO DOCENTE<br />
Compete ao Estado acompanhar e incentivar a formação do corpo docente, cuja execução é<br />
da responsabilidade das instituições de ensino superior. Esta acção compreende:<br />
• Definição de critérios e ritmos de selecção de futuros docentes, privilegiando os melhores<br />
estudantes de cada curso;<br />
• Estabelecimento de programas individuais de formação (leccionação com tutor, frequência de<br />
mestrados, doutoramentos, participação em trabalhos de investigação, elaboração de trabalhos<br />
de pesquisa, etc.);<br />
• Cada docente em formação e com contrato em tempo integral terá um tutor que o orienta no<br />
processo de formação e o integra em diversas actividades formativas, de investigação e de<br />
aquisição de experiência;<br />
• Existência de contratos de trabalho de pelo menos cinco anos e que preservem o investimento<br />
realizado pelas instituições patronais ou pelas instituições que financiaram a formação;<br />
• Estabelecimento de formas de acompanhamento do docente em formação.<br />
A formação do docente apenas se considera completa com a obtenção do grau de Doutor.<br />
As carreiras de docência, de investigação e do pessoal técnico, devem ser iguais para todas as<br />
universidades, públicas e privadas, sendo as categorias atribuídas mediante critérios definidos<br />
para todas as universidades que permitem o reconhecimento automático ou por procedimentos<br />
estritamente administrativos por todas as instituições. Não obstante, as tabelas salariais poderão<br />
variar conforme as instituições, sugerindo-se, no entanto, que para cada categoria<br />
profissional, sejam pactuados valores máximos e mínimos a praticar pelas universidades.<br />
Esta sugestão pretende que no futuro as possíveis mobilidades do corpo docente entre instituições<br />
não seja essencialmente motivada por razões salariais.<br />
Sugere-se que a legislação acerca da actividade docente seja completada ou revista (carreira<br />
profissional, estatuto docente, código de ética e conduta).<br />
As instituições e a sociedade necessitam de valorizar e dignificar a profissão de docência e inves -<br />
tigação, seja materialmente, seja através da criação de incentivos de mérito e de resultados.<br />
Desafios do Ensino Superior Desafios para Moçambique 2010 309
Os salários da academia devem reflectir a responsabilidade social e os níveis de formação, e que<br />
sejam suficientemente aliciadores para que os docentes desempenhem integralmente as suas<br />
funções, sem necessidade de outras fontes de rendimento, que impliquem ausência sistemática<br />
e duradoura do local de trabalho.<br />
O académico tem de estar vinculado a resultados, por exemplo, haver exigência de publicações<br />
e em que tipo de edições, participação em reuniões científicas e congressos, desenvolver<br />
investigação, etc. Havendo incentivos, também há lugar para sanções, prevendo-se mesmo penalizações<br />
na carreira profissional ou descida de categoria (por exemplo, no caso de não cumprimento<br />
dos indicadores de produção científica por mais de dois anos sucessivos). É também<br />
importante que as organizações públicas e privadas acolham as solicitações de informação para<br />
pesquisa de forma aberta e sem sentimentos de receio ou secretismo injustificado.<br />
Ao Estado, para além de incentivar a formação de corpo docente, o que diz respeito às respectivas<br />
universidades, competirá apoiar através da disponibilização de bolsas. O acesso a bolsas<br />
específicas para a formação de docentes e investigadores, são de candidatura livre e sem<br />
diferenciação relativamente à relação contratual com uma universidade pública ou privada.<br />
A prioridade e quantidade de bolsas a atribuir dependerá dos recursos existentes e das áreas de<br />
conhecimento definidas pelo órgão estatal de tutela em conformidade com as políticas e<br />
estratégias de ensino superior e da investigação. O valor das bolsas poderá variar conforme os<br />
níveis de formação e com ponderação pelo custo de vida dos países de formação.<br />
As universidades privadas poderão também conceder bolsas ou ajudas em semelhantes condições<br />
das bolsas do Estado.<br />
Os critérios de selecção apenas contemplam requisitos de mérito (médias das formações anteriores,<br />
trabalho realizado em grupos de investigação com financiamento, obras publicadas, participação<br />
em congressos, coordenação de órgãos de gestão académica, experiência de leccionação<br />
– tempo e níveis leccionados, etc.). Para tornar os processos transparentes, é necessário que existam<br />
tabelas uniformes de valorização dos curricula concorrentes às candidaturas, que podem ser<br />
as mesmas dos critérios de avaliação de docentes para a progressão da carreira profissional.<br />
O Estado terá ainda como função acompanhar e fiscalizar os resultados dos bolseiros e as suas<br />
relações contratuais pós-formação, de forma a assegurar-se que os compromissos assumidos<br />
sejam cumpridos ou, se for o caso, legalmente processados em casos de incumprimento. Os contratos<br />
podem supor o reembolso de pelo menos parte dos valores concedidos durante um<br />
período de entre uma e duas vezes o tempo em que perdurou a formação.<br />
ACESSIBILIDADE AO ENSINO SUPERIOR<br />
O alargamento da acessibilidade ao ensino superior é um objectivo permanente. É importante que<br />
o Estado possua orçamentado um valor para bolsas de estudo, a serem atribuídas aos estudantes<br />
com melhores médias de acesso à universidade. O acesso às bolsas está condicionado a que o<br />
310 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Ensino Superior
endimento da família directa (pais ou lar acolhedor) não seja superior a um montante a definir.<br />
Igualmente é necessário definir critérios acerca dos documentos de prova dos rendimentos.<br />
Compete ao órgão estatal que tutela o ensino superior definir o número de bolsas por áreas de<br />
formação (de acordo com a estratégia do ensino superior) e por província (por exemplo, proporcional<br />
ao número de finalistas do ensino secundário, com um ou dois factores de ponderação<br />
pelos desequilíbrios económicos, sociais e educacionais de cada zona, com o objectivo de<br />
reduzir no tempo essas disparidades). O valor mensal da bolsa pode reunir três parcelas que são<br />
aplicadas conforme os casos:<br />
• Um montante base igual por nível de formação para custear propinas, material de estudos e<br />
outros gastos cobrados pelas universidades. O valor da bolsa anual pode ser estimado com<br />
base na média dos custos pedagógicos acima referidos das universidades do país e por tipo de<br />
curso. Caso o estudante opte por uma universidade mais barata, o valor é ajustado no momento<br />
da atribuição da bolsa ou quando é conhecida a universidade. Em caso contrário, o diferencial<br />
da propina é da responsabilidade do estudante;<br />
• Quando implicar estudos fora da província em que conclui o ensino secundário ou do local<br />
de residência dos pais ou do lar acolhedor, um montante extra variável em função do valor<br />
da passagem de autocarro (excepto se apenas for possível por via aérea), por ano, de e para<br />
local de residência;<br />
• Outra parcela extra de alojamento e alimentação para os que estudam fora do local de residência.<br />
Neste caso, existem duas opções: um valor idêntico para todo o país ou ponderado<br />
conforme o custo de vida do local em que se encontra a universidade a frequentar.<br />
As duas últimas parcelas apenas são possíveis se não existirem os cursos desejados na província<br />
onde terminou o ensino médio e o onde se localiza o local de residência dos pais ou lar acolhedor.<br />
O estudante bolseiro é livre de eleger a universidade onde deseja estudar e as bolsas não condicionam<br />
tal escolha, excepto se implicar valores extra de transporte alojamento e alimentação,<br />
conforme o parágrafo anterior. Nestes casos, o estudante paga as suas deslocações.<br />
O órgão de tutela do ensino superior pode definir a valorização mínima a obter nas avaliações<br />
externas e no ranking das universidades e cursos para serem elegíveis pelos estudantes bolseiros<br />
e outros custos adicionais.<br />
Sugere-se que a legislação acerca das candidaturas, condições de obtenção da bolsa, critérios<br />
de selecção, condições de manutenção da bolsa, penalizações por infracções ou não cumprimentos<br />
do articulado dos deveres e obrigações do bolseiro e valores das bolsas nas suas diferentes<br />
componentes e situações.<br />
As universidades deverão ser incentivadas a possuir residências universitárias que se sugere que<br />
tenham regulamentação própria.<br />
Desafios do Ensino Superior Desafios para Moçambique 2010 311
Os bolseiros terão contratos com as instituições financiadoras no sentido de reembolsarem os<br />
valores em períodos que poderão variar entre uma e duas vezes o período em que perdurou a<br />
formação. Pode-se ainda contemplar a obrigatoriedade de prestação de serviços após a graduação<br />
em instituições e locais a serem indicadas pela instituição financiadora.<br />
As bolsas estatais são administradas por órgãos específicos no ministério de tutela e deverão<br />
existir regulamentos específicos. Também neste caso é obrigatório o reembolso em condições<br />
semelhantes às já referidas, o que permitirá a criação de um fundo estatal de bolsas com um elevado<br />
grau de sustentação financeira.<br />
Ao Estado competirá estimular as instituições financeiras nacionais, grandes empresas, fundos<br />
de cooperação e outros agentes económicos e sociais internos e internacionais, a financiarem<br />
directamente bolsas de estudo estabelecendo com os beneficiários os acordos pós-formação.<br />
Estes acordos respeitam as normas gerais estabelecidas pelo Estado acerca dos contratos e<br />
compromissos laborais pós-graduação. Pode-se ainda sugerir que as próprias universidades,<br />
individualmente, captem esses interesses de financiadores para bolseiros da respectiva universidade<br />
ou centro de investigação.<br />
Finalmente, o Estado pode incentivar – por meio fiscal – o sector privado e outros filantropos<br />
a financiarem o sistema de bolsas.<br />
FINANCIAMENTO DO ENSINO SUPERIOR<br />
Com o objectivo de criar um ambiente e contextos semelhantes de competitividade entre as instituições<br />
públicas e privadas, sugere-se que as formas de financiamento das instituições de ensino<br />
superior sejam semelhantes entre si, apenas ponderadas pelo número de estudantes<br />
e critérios de valorização da qualidade das instituições e dos cursos.<br />
Propõe-se uma alteração fundamental em relação à situação actual. Em lugar de o Estado<br />
financiar as universidades públicas, passa a financiar bolsas de estudo. Esta possibilidade colocaria<br />
todas as instituições de ensino superior em condições semelhantes de competitividade pelo<br />
factor preço dos estudos. Os factores de competitividade seriam os já referidos.<br />
As fontes de receitas das instituições de ensino superior seriam as seguintes:<br />
• Matrículas, propinas e outras receitas pedagógicas dos estudantes, incluindo dos bolseiros;<br />
• Investimento e ajudas públicas em casos extraordinários, conforme o descrito mais abaixo;<br />
• Financiamentos aprovados para projectos de investigação;<br />
• Receitas provenientes da actividade de extensão universitária;<br />
• Financiamento comercial, interno ou externo, para investimento ou funcionamento. Neste<br />
aspecto, sugere-se que sejam negociadas condições especiais junto do sistema financeiro ou<br />
existam linhas de crédito dirigidas para este efeito.<br />
312 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Ensino Superior
O Estado suportaria os gastos de investimento das instituições públicas e as universidades privadas<br />
custeariam os custos por conta e risco das entidades instituidoras. Financiamentos públicos<br />
extraordinários (por exemplo, na aquisição de equipamentos muito caros), tanto para<br />
universidades públicas como privadas, poderão ser considerados para casos como o de cursos<br />
com elevadas exigências de investimentos em laboratórios, exigindo-se para o efeito a criação de<br />
regulamentação específica (por exemplo, contratos-programa a serem regulamentados). Estes<br />
financiamentos extraordinários seriam em função do tipo de curso e por estudante inscrito.<br />
A prazo, o financiamento público extraordinário terá em conta não os estudantes inscritos mas<br />
o número de estudantes graduados no respectivo curso. De forma a evitar os efeitos das variabilidades<br />
anuais pode-se sugerir o financiamento com base na média dos alunos graduados nos<br />
últimos três ou cinco anos.<br />
Sugere-se que o Estado regulamente incentivos fiscais permanentes e isenção durante um período<br />
de dez a vinte anos, para o caso de novos investimentos, sobretudo em equipamento de<br />
laboratório, novas tecnologias e infra-estruturas construídas de raiz. Igualmente sugere-se a revisão<br />
das tarifas alfandegárias para o material pedagógico (laboratórios, livros, softwares, etc.),<br />
a ser importado pelas instituições e com destinos de ensino e investigação.<br />
Em caso de inviabilidade de instituições e cursos, o Estado avaliará as situações individualmente,<br />
sendo possíveis dois casos:<br />
• Optar por não subsidiar as instituições, tomando medidas quanto à transferência dos estudantes<br />
para outras universidades;<br />
• Optar por financiamento extra não superior a três anos que permita o ajustamento pedagógico<br />
e financeiro da instituição. Findos os três anos, as instituições terão de sobreviver com base<br />
nas fontes de financiamento estabelecidas ou por recurso ao mercado de capitais;<br />
• As duas possibilidades terão legislação própria.<br />
Para que estas modalidades de financiamento do ensino superior sejam possíveis, o Estado necessita<br />
de reforçar o orçamento dedicado à educação, neste caso ao ensino superior, alcançando<br />
gradualmente durante cinco anos, pelo menos os níveis em relação ao PIB e ao<br />
orçamento do Estado semelhante aos países desenvolvidos. O handicap permanecerá em<br />
termos de valor total gasto por estudante universitário ou per capita, podendo-se encontrar<br />
fórmulas imaginativas de procurar a convergência a longo prazo.<br />
INVESTIGAÇÃO E EXTENSÃO<br />
A investigação é uma componente essencial das instituições de ensino superior e a sua valoração<br />
ponderará de forma significativa na classificação das instituições e seu consequente posicionamento<br />
no ranking das universidades.<br />
Desafios do Ensino Superior Desafios para Moçambique 2010 313
Para este efeito, o conceito de investigação é concebido num sentido mais restrito. Investigação<br />
de assuntos novos, de adaptação de resultados e de conhecimentos, estudos sobre a realidade<br />
moçambicana realizada por equipas com pelo menos dois investigadores doutorados e vários<br />
mestres e pessoal docente e de investigação em formação, sendo factores de valoração o envolvimento<br />
de investigadores de mais de um país e de objectos de estudos comparados de mais de<br />
uma realidade. Projectos financiados por instituições especializadas de um ou mais países ou por<br />
patrocinadores da sociedade civil interessadas nos resultados. A investigação deve ter resultados<br />
dados a conhecer em reuniões científicas, congressos e através da publicação em revistas e livros.<br />
Para ganhar sinergias, é vantajoso que a investigação esteja integrada no projecto científico<br />
pedagógico de cada instituição. Investigação, formação nos diferentes níveis, formação dos corpos<br />
docentes, publicação e intervenção na sociedade, reforçam-se mutuamente, aumenta a qualidade<br />
do ensino e o conhecimento da realidade, contribuindo deste modo para estreitar<br />
a ligação entre as componentes teóricas e práticas da formação.<br />
Na linha da especialização e de forma a criar excelência e elementos de identidade científica institucional,<br />
as universidades ganhariam com alguma definição de campos de intervenção específicos,<br />
evitando a concorrência negativa e a sobreposição de esforços quando os recursos são<br />
extremamente escassos.<br />
As linhas de especialização contribuiriam para a configuração de projectos científicos e pedagógicos<br />
consistentes. Por exemplo, uma universidade que se especializa e quer ser excelente<br />
em economia terá de possuir todas as cadeias de formação nesta área, investigar a economia<br />
de Moçambique e a integração regional, formar docentes próprios e para outras universidades,<br />
possuir relações estreitas com o tecido económico e os centros de decisão económica, possuir<br />
parcerias com universidades e centros de investigação de excelência estrangeiros, possuir<br />
capacidade editorial e estar presente em eventos científicos no país e no estrangeiro e manter<br />
relações de extensão com a sociedade. Formam-se assim núcleos de prestígio. Nenhuma<br />
universidade pode ser excelente em todas as áreas.<br />
A investigação é financiada por fundos adstritos a instituições públicas que têm por responsabilidade<br />
incentivar e promover a investigação. Para o efeito, o Estado direcciona os recursos da investigação<br />
para o financiamento de projectos relacionados com as áreas prioritárias de<br />
desenvolvimento. O financiamento de bolsas de estudo que incluam investigação (nível de doutoramento<br />
e pós-doutoramento) enquadram-se nos critérios de atribuição de bolsas para a formação<br />
do corpo docente e não é considerado como financiamento à investigação. A investigação pode<br />
ainda ser financiada por organizações internacionais, pelo tecido empresarial e pela sociedade civil.<br />
Em qualquer circunstância, os centros de investigação e as universidades concorrem a concursos<br />
públicos abertos e sem restrições quanto à natureza pública ou privada das instituições concorrentes.<br />
A adjudicação dos concursos de investigação, será com base em critérios objectivos<br />
de mérito e capacidade das equipas e instituições proponentes, como por exemplo:<br />
314 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Ensino Superior
• Constituição das equipas e curriculum dos investigadores relacionado com o tema a investigar<br />
nos últimos cinco anos;<br />
• Curriculum de investigação dos últimos cinco anos dos centros de investigação e universidades<br />
onde se realizará a investigação;<br />
• A internacionalização das equipes, medido pelo objecto e abrangência da investigação (transnacional)<br />
e pela constituição das equipas de investigação (investigadores de várias nacionalidades<br />
e residentes nos países onde se realizam as partes nacionais dos projectos de investigação<br />
internacional);<br />
• A importância e actualidade do objecto da investigação e sua conformidade com a instituição<br />
financiadora e a política e estratégia de investigação de Moçambique;<br />
• A consistência e coerência da proposta de investigação;<br />
• Os custos e os tempos propostos.<br />
É importante que seja definida a ponderação das pontuações dos critérios acima sugeridos e de<br />
outros.<br />
A avaliação das propostas deve ser realizada por equipas constituídas por investigadores<br />
doutorados da respectiva área de conhecimento, chefiada se possível por um investigador ou<br />
docente com categoria de topo de carreira. A composição da equipa de avaliação é obtida aleatoriamente<br />
com base numa bolsa de avaliadores por área de conhecimento. Para projectos<br />
internacionais, a equipa de avaliação das propostas terá de ser constituída por avaliadores de<br />
vários países. Sugere-se que as equipas de avaliadores sejam compostos por investigadores e<br />
docentes mais experientes, o que determina que a bolsa de avaliadores estará hierarquizada.<br />
O chefe da equipa de avaliação não pode ter um grau e uma categoria profissional inferior ao<br />
do coordenador da proposta de projecto de investigação.<br />
Os investigadores ou as equipas de investigação assinarão contratos de serviços, com clara definição<br />
de responsabilização pelo alcance dos resultados esperados e previstos nas propostas, assim<br />
como a prestação rigorosa de contas e de relatórios conforme os concursos. Como na maioria dos<br />
casos nas universidades existe a carreira docente, as categorias desta devem estar compatibilizadas<br />
com as categorias da carreira profissional de investigador, para permitir equiparações das<br />
equipes aquando das propostas de projectos por universidade e não por centros de investigação.<br />
As universidades e os centros de investigação promoverão formas de publicação periódica em<br />
revistas, congressos e outras reuniões científicas, sites próprios, livros, etc., dos resultados dos trabalhos<br />
de investigação e de outras formas de trabalho científico. Todas as publicações serão sujeitas<br />
a referee de pelo menos um avaliador de formação pelo menos igual ao do autor ou do<br />
coordenador da publicação ou do projecto de investigação a partir do qual se elaborou o texto.<br />
A extensão universitária não se enquadra na categoria de investigação e os trabalhos são realizados<br />
por contrato entre as universidades e centros de investigação com as instituições públi-<br />
Desafios do Ensino Superior Desafios para Moçambique 2010 315
cas, privadas ou da sociedade civil requerentes desses serviços. Portanto, extensão é categorizada<br />
como prestação de serviços e não investigação.<br />
Não obstante, a extensão deve ser incentivada e promovida por ambas as partes interessadas (universidades<br />
e centros de investigação) e pelas empresas e outras instituições privadas e da sociedade civil<br />
e considerada na avaliação das instituições com ponderações específicas, conforme acima referido.<br />
APARELHO DE ESTADO DO ENSINO SUPERIOR E DA INVESTIGAÇÃO<br />
Os autores sugerem a constituição de um ministério dedicado ao ensino superior, à investigação<br />
científica e ao desenvolvimento tecnológico que normalize, coordene, regule, faça a monitorização<br />
e a fiscalização das áreas da sua competência, e que promova a investigação, inovação<br />
e a transferência tecnológica em coordenação com as instituições de ensino superior, e centros<br />
de investigação, públicos e privados. A internacionalização do sistema de ensino superior e de<br />
investigação, assim como a integração em comunidades de conhecimento supranacionais são<br />
um objectivo para a conquista de prestígio e credibilidade das instituições moçambicanas. Neste<br />
quadro, a convergência do sistema de ensino superior e da investigação no contexto da regionalização<br />
e globalização serão uma prioridade, simultaneamente que preserve as identidades<br />
culturais e as necessidades do desenvolvimento de Moçambique.<br />
O objectivo final será a responsabilidade de qualificação das universidades e centros de investigação<br />
moçambicanos com parâmetros de elevada e excelente qualidade, segundo critérios internacionais,<br />
num prazo de vinte e cinco anos após o inicio da implementação de uma estratégia<br />
de qualificação das instituições de ensino superior e de investigação.<br />
IMPLEMENTAÇÃO DA ESTRATÉGIA<br />
Sugere-se que sejam definidos prazos para se alcançarem as metas-objectivos para a qualificação do<br />
ensino superior e da investigação, assim como fases intermédias para obtenção de metas parciais.<br />
Sugere-se que seja definido o período de 25 (vinte e cinco anos) para tornar o sistema de ensino<br />
superior e da investigação moçambicana equiparada e com níveis e parâmetros internacionais<br />
de qualidade elevada e excelente, o que significa:<br />
• Todos os docentes do ensino superior e dos centros de investigação serem doutorados, em<br />
tempo integral e com investigação e níveis de publicação relevante nas áreas de conhecimento<br />
respectivas;<br />
• Todas as instituições universitárias possuírem investigação nas áreas de formação aos diferentes<br />
níveis, devendo existir pelo menos duas áreas de conhecimento com formação de doutoramento;<br />
316 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Ensino Superior
• Todas as instituições possuírem regularmente, ao longo dos anos, projectos de investigação<br />
internacionalizados e realizados por equipas com académicos e investigadores de prestígio<br />
nacional e internacional;<br />
• Todas as universidades deverão estar capacitadas com meios pedagógicos ajustados a cada<br />
nível de ensino;<br />
• Todas as universidades cumprirão com os princípios que caracterizam uma instituição de ensino<br />
superior, no que respeita aos seus órgãos de gestão, bem como a elementos de identidade<br />
simbólica.<br />
O cumprimento total das metas referidas será escalonado por fases para cumprimentos parciais<br />
ao fim de períodos intermédios (5, 10, 15, 20 e 25 anos).<br />
Os autores sugerem que não existam níveis de permissividade e que os casos de não cumprimento<br />
das metas parciais implique o encerramento compulsivo das instituições, conforme o<br />
referido no ponto que abordou a questão das avaliações e inspecções. Só assim se assegurará<br />
a formação de instituições de ensino superior e de investigação de excelência, evitando-se a<br />
massificação sem qualidade.<br />
Para a implementação das estratégias sugere-se:<br />
• Primeiro, que seja proposto e aprovado todo o ordenamento legal referente ao ensino superior<br />
e à investigação, num prazo de dois anos;<br />
• Segundo, que durante um a dois anos, todas as instituições de ensino superior e de investigação,<br />
sejam pré-avaliadas e feitas recomendações de superação com prazos estabelecidos, num<br />
máximo de três anos. Nesta fase, não haverá penalizações nem estabelecimento de rankings das<br />
instituições e dos cursos;<br />
• Terceiro, findo este período de preparação e ajustamentos, que seja feita a primeira avaliação<br />
da qual podem resultar sanções ou, em caso extremo, encerramento de instituições e cursos.<br />
Esta avaliação é considerada o ponto de partida de implementação de estratégia de qualificação<br />
do ensino superior e da investigação.<br />
Considerando um prazo de 25 anos para a qualificação final do ensino superior e da investi gação<br />
e conforme os três passos prévios acima indicados, o cronograma geral será o seguinte:<br />
2 anos 3. O ano 5. O ano 10. O ano 15. O ano 20. O ano 25. O ano<br />
Legislação<br />
X<br />
Pré-avaliação das instituições<br />
X<br />
Primeira avaliação<br />
X<br />
Avaliações intermédias X X X X<br />
Desafios do Ensino Superior Desafios para Moçambique 2010 317
CONCLUSÃO<br />
Existe a percepção consensual que o ensino superior, assim como todo o sistema educativo, está<br />
carente de qualidade e de instituições prestigiadas. A função docente necessita de maior reconhecimento<br />
social e de incentivos materiais e profissionais e, por outro lado, ausências de profissionalismos<br />
e ética invadem a academia. A investigação científica é muita limitada e nalgumas<br />
áreas científicas inexistente. A internacionalização das instituições e o acesso a redes de conhecimento<br />
não é uma realidade.<br />
Para além das dificuldades materiais, existe sobretudo ausência de capacidade ou vontade de<br />
definir políticas e estratégias e, sobretudo, de as aplicar. A desresponsabilização do Estado nas<br />
funções de regulação e fiscalização pode não resultar apenas de incompetência ou desinteresse.<br />
Pode ser, ainda e principalmente, resultante da assumpção ideológica de que o mercado tudo<br />
resolve e encontra os desequilíbrios com maior eficiência e menores distorções que aquelas que<br />
seriam introduzidas por intervenções do Estado.<br />
A nossa história recente já demonstrou que os extremos são indesejáveis. Nem o planeamento<br />
centralizador e aniquilador do mercado e das liberdades de escolha dos indivíduos nem o mercado<br />
irrestrito e desregulado encontraram boas soluções e resultados.<br />
Nesta proposta, os autores procuram combinar Estado e mercado, regulação e iniciativas privadas,<br />
fiscalização e liberdade de actuação com responsabilidade, honestidade e transparência<br />
de forma normalizada e legislada de funcionamento do ensino superior e das suas instituições.<br />
Os autores procuram colocar em igualdade de circunstâncias as instituições públicas e privadas<br />
na concorrência e competitividade, retirando a politização institucional, a instrumentali -<br />
zação das universidades públicas em função de agendas da governação de cada momento.<br />
Como denominador comum, as ideias apresentadas confluem na defesa e construção da qualidade<br />
do ensino e das instituições, da investigação e das relações entre o ensino superior e a<br />
investigação com a sociedade, como forma para mais e melhor desenvolver o país, contribuir<br />
para uma crescente equidade social, facilitando a mobilidade através da aproximação de possibilidades<br />
de acesso ao ensino superior.<br />
Os autores estão cientes de que algumas ideias são heterodoxas na convicção de que são fórmulas<br />
que contribuem para os objectivos pretendidos, gerando climas e contextos de competitividade<br />
e redução de proteccionismos que introduzem desigualdades de oportunidades e mesmo injustiças.<br />
As ideias são lançadas a debate na expectativa de merecerem reflexão da sociedade.<br />
318 Desafios para Moçambique 2010 Desafios do Ensino Superior
DESAFIOS NO DOMÍNIO DA HABITAÇÃO<br />
Júlio Carrilho | Luís Lage<br />
ENQUADRAMENTO<br />
Durante muito tempo (1) o país ficou embalado/anestesiado pelo facto de se lhe ter disponibilizado,<br />
de uma forma instantânea e sem custos, cerca de 100 mil habitações, fruto da nacionalização<br />
dos prédios de rendimento; (2) o país ficou igualmente, pelas circunstâncias e opções<br />
políticas, apetrechado de um sistema de empresas estatais e de uma certa organização social que<br />
permitia ao governo de algum modo transferir uma grande parte da responsabilidade da realização<br />
de construção de habitações para terceiros, nomeadamente através da mobilização de<br />
empresas, ODM, GD, etc. Parecia assim que o Governo ficaria mais livre para dar mais ênfase<br />
à acção de infra-estruturação, à experimentação de formas de ordenamento reordenamento<br />
das áreas periféricas de ocupação não planificada, ao estudo de modos de habitar tradicionais,<br />
à insistência da importância do Planeamento Físico como base para a garantia de habitação salubre<br />
ordenada e sustentavelmente enquadrada do ponto de vista da gestão da ocupação do<br />
solo, à experimentação limitada de lançamento de operações de auto-construção “assistida”.<br />
Na época da independência, a ideia de autoconstrução estava na “moda” pelo mundo e acrescentou-se-lhe<br />
o adjectivo “assistida”, para sublinhar a ideia de alguma responsabilidade do próprio<br />
governo no apoio à provisão de habitações duráveis para as famílias de mais baixos<br />
rendimentos, famílias que, tradicionalmente e como sempre, têm sido os principais sujeitos da<br />
provisão de casas para si próprias, exceptuando alguns investimentos muito pontuais, em contexto<br />
urbano, que a JBCP (Junta dos Bairros e Casas Populares) e a Fundação Salazar realizaram<br />
no período final da ocupação colonial. A isto também se somou a introdução daquilo que<br />
parecia ser a panaceia de provisão de casas, através da pré-fabricação, tão extensivamente usada<br />
nos países socialistas e no processo de reconstrução pós-guerra na Europa, trazendo-se assim<br />
para o país as técnicas de prefabricação ligeira cubana, designada por “Painéis Sandino”, adoptando-se<br />
a ideia de espalhá-los paulatinamente pelas províncias, e tendo a guerra interrompido<br />
este processo que, diga-se, para alguns era um erro.<br />
Desafios no Domínio da Habitação Desafios para Moçambique 2010 319
ALGUMAS DIMENSÕES DA TRANSFORMAÇÃO<br />
DAS PERIFERIAS URBANAS NO DOMÍNIO DA HABITAÇÃO<br />
Passados trinta anos após a independência o desafio da habitação não apenas se agravou, ficando<br />
cada vez mais evidente a necessidade de políticas específicas para ele dirigidas, como ficou mais<br />
claramente revelado que a provisão de abrigo é uma das áreas onde se concentra uma boa parte<br />
do esforço de poupança e criatividade das famílias de mais baixos rendimentos. Com efeito, é difícil<br />
encontrarem-se hoje casas de caniço ou de materiais predominantemente naturais, por exemplo,<br />
na cintura suburbana da cidade de Maputo. Em trabalho conjunto feito com o Conselho<br />
Municipal desta cidade em 2005, o Centro de Estudos do Desenvolvimento do Habitat da<br />
Faculdade de Arquitectura (CEDH) calculou que ascendiam a 200 mil o número de habitações<br />
“informais”, em cimento, blocos e outros materiais industriais, substituindo quase por completo<br />
a prática anterior de construção em caniço, como primeira etapa de construção de habitação.<br />
Isto é: praticamente toda a cintura suburbana de Maputo, por diversas razões entre as quais também<br />
se encontra a de escassez/tendência para o esgotamento e afastamento dos locais de colheita<br />
do próprio caniço e afins, se petrificou, se cimentou, num processo frenético de busca de melhoria<br />
das condições de abrigo, sem o medo antigo de a casa ser destruída por não conformidade com<br />
o Plano Urbanístico, não obstante esta regra não ter sido formalmente eliminada.<br />
Quantificando este processo, podemos dizer que em 34 anos a periferia de Maputo foi “cimentando-se”,<br />
passando de cerca de 31% de habitações sólidas com paredes de alvenaria em 1980,<br />
para cerca de 55% em 1997, e para 81% em 2007.<br />
Calcula-se que, nestes cerca de 34 anos depois da independência, foram assim investidos mais<br />
de um bilião de dólares americanos pelas famílias da cintura “informal” de Maputo, se tivermos<br />
como referência casos especificamente observados em 1999, no Bairro de Mafalala, para definição<br />
do custo dessa construção, a qual rondava em média os 5000 USD. A consciência institucional<br />
desta potencialidade pode abrir caminho a uma visão mais fecunda de enquadramento<br />
financeiro e técnico do problema da melhoria das condições de abrigo das famílias com menores<br />
rendimentos. Note-se que, segundo um estudo recente da Massala Consult, uma parte<br />
substantiva do microfinanciamento bancário para bens de consumo foi desviada para melhorias<br />
na habitação, contra o que estava previamente estabelecido.<br />
UMA ABORDAGEM AOS DESAFIOS DA HABITAÇÃO<br />
Com o crescimento avassalador das periferias não planificadas das cidades temos hoje o desafio<br />
de pensar na habitação não apenas como facto técnico-financeiro, mas como processo integrado<br />
e transversal expresso em política ou estratégia própria (a política ou estratégia de habitação)<br />
320 Desafios para Moçambique 2010 Desafios no Domínio da Habitação
em que é necessário estabelecer várias abordagens, dentre as quais: (a) a abordagem por prioridades<br />
conforme contribuição, possibilidades e pressão das necessidades dos grupos ou camadas<br />
sociais diferentes; (b) a abordagem dos mecanismos financeiros a desencadear, sem o que<br />
qualquer iniciativa global falhará, como nos demonstram as acções anteriores, por exemplo a<br />
da autoconstrução assistida; (c) a abordagem da padronização técnica e de qualidade (projectos,<br />
elementos construtivos, materiais, tecnologias); (d) a abordagem da participação de diversos<br />
agentes (empresas privadas, cooperativas, associações, etc.); (e) a abordagem da provisão<br />
de abrigos dignos e sustentavelmente pensados como elemento de uma política social, nomeadamente<br />
para estabilização de determinados agentes e grupos profissionais; e principalmente<br />
(f) a abordagem da realidade tal como ela se nos apresenta, com os seus limites e potencialidades,<br />
traduzida na enorme capacidade de as famílias fazerem grandes sacrifícios e poupanças<br />
pela sua própria casa, o que possibilita acções de base para a melhoria das condições de habitação,<br />
através de operações de regularização fundiário/urbanística implicando a planificação<br />
simultânea das áreas a regularizar e melhorar, dignificando a condição de cidadania das famílias<br />
e retirando-as gradualmente do estigma da informalidade. Para que seja bem-sucedida e<br />
sustentada ao nível técnico e urbanístico, este último tipo de operação exige enquadramento administrativo<br />
no quadro da estrutura municipal e do seu Plano de Estrutura, visando-se uma gestão<br />
tendencialmente unitária do território da cidade, hoje, e quiçá por muito tempo, ainda com<br />
carácter dicotómico. Do nosso ponto de vista, este tipo de operações parecem ser mais exequíveis,<br />
com maior potencialidade de participação dos interessados (através de parcerias induzidas<br />
com ganhos múltiplos), com resultados mais rápidos e extensos, e mais consentâneas não só<br />
com os estudos como também com as experiências já feitas (Manica, Dondo, Vilakulo, Chimoio,<br />
Monapo, Nacala). Elas têm sido defendidas a nível académico e técnico, mas ainda não foi<br />
possível fazer compreender o seu alcance noutras instâncias, nomeadamente nas institucionais.<br />
CONCLUSÃO<br />
Tratar da habitação não deve, do nosso ponto de vista, considerar apenas a função de abrigo<br />
ou a casa no sentido estrito. Tratar da questão da habitação significa tratar-se designadamente<br />
de cinco importantes componentes que permitem enquadrar a casa no processo legal de transformações<br />
territoriais, em que a função residir seja objecto principal. Referimo-nos neste âmbito<br />
aos aspectos ligados a (1) Lei, (2) Solo/Lugar, (3) Integração urbana/territorial pela via do<br />
plano, (4) Infra-estrutura e (5) Casa e mecanismos da sua provisão pelas famílias. A não consideração<br />
destes cinco aspectos inviabiliza, torna insustentável, ou torna muito difícil, tratar da<br />
questão da habitação numa perspectiva de sustentabilidade e conferir às famílias abrangidas a<br />
qualidade plena de citadinos. Com estes cinco pontos queremos dizer que o direito à habita-<br />
Desafios no Domínio da Habitação Desafios para Moçambique 2010 321
ção digna implica (1) garantia de enquadramento legal das operações visando a habitação,<br />
(2) garantia de segurança de ocupação do lote respectivo, (3) garantia de enquadramento territorial<br />
no quadro dos horizontes de planificação estabelecidos para as diferentes localizações,<br />
(4) garantia de serviços técnicos mínimos para uma vida salubre, (5) garantia de mecanismos<br />
financeiros e técnicos para a construção do lugar de abrigo e lar.<br />
Ao se propor acções de melhoria de condições de habitação das famílias urbanas mais carenciadas<br />
através da regularização fundiária/urbanística não se está a propor a cristalização da desordem<br />
das cinturas urbanas construídas à margem das leis, como por vezes se sugeriu. Trata-se<br />
sim de conferir a estas zonas as condições mínimas de segurança e de conforto urbano, a custos<br />
mais adequados às capacidades do país, num quadro planificado e legalmente suportado, que<br />
conduza à solução dos problemas de registo e titulação, conferindo-se a essas famílias a mesma<br />
margem de manobra que existe nas zonas formais, no processo de planificação familiar com<br />
vista à melhoria das suas condições de vida, nomeadamente através da sua integração no sistema<br />
de serviços urbanos existentes (água, luz, saneamento, transportes e outros), nos processos<br />
de compra e venda, nos processos de reabilitação, reconstrução e construção, e nos<br />
processos urbanos de usufruto de direitos e deveres e de negociação correntes (impostos, taxas,<br />
hipotecas, arrendamento, e outros).<br />
É importante referir que a garantia de sustentabilidade dos objectivos acima referidos não se<br />
obtém sem a integração adequada e específica da gestão pública das cinturas informais no quadro<br />
da governação da cidade. Esta integração deverá ser cuidadosamente pensada, tendo em<br />
conta as condições específicas actuais (dualidade urbana) e visando, a prazo, a integração num<br />
todo unitário a gestão das diferentes zonas das cidades.<br />
REFERÊNCIAS<br />
Carrilho, J., Lage, L. et al. 2000. Um olhar para o habitat informal moçambicano: de Lichinga a<br />
Maputo. Maputo: Publicações FAPF.<br />
Carrilho, J. et al. 2005. Regularização do solo urbano nas áreas informais da Cidade de Maputo.<br />
Maputo: Publicações FAPF.<br />
Carrilho, J., Lage, L. et al. 2008. Mozambique Urban Sector Profile. Nairobi: United Nations<br />
Human Settlements Programme (UN-HABITAT).<br />
Carrilho, J., Lage, L. e Trindade, C. 2005. Elaboração e implementação de planos de requalificação<br />
dos assentamentos informais. Maputo: Publicações FAPF.<br />
Allen, Ch., Johnsen, V. 2008. Moçambique. Um panorama dos constrangimentos ao desenvolvimento<br />
do sector de financiamento à habitação. Maputo: Massala Consult.<br />
Forjaz, J. et al. 2005a. Melhoramento dos assentamentos informais. Maputo: Publicações FAPF.<br />
Forjaz, J. et al. 2005b. Ordenamento de assentamentos informais na Cidade de Manica. Maputo:<br />
Publicações FAPF.<br />
322 Desafios para Moçambique 2010 Desafios no Domínio da Habitação
PARTE IV<br />
MOÇAMBIQUE<br />
NO MUNDO<br />
DESAFIOS DE INTEGRAÇÃO<br />
E COOPERAÇÃO
MOÇAMBIQUE NO MUNDO<br />
A COMPETIÇÃO SUBTIL<br />
Abdul Magid Osman | Nelson Saúte<br />
INTRODUÇÃO<br />
Para compreender ou equacionar a posição de Moçambique no Mundo, é necessário empreender,<br />
ainda que sucintamente, um quadro histórico das alterações dramáticas que ocorreram<br />
no passado (longínquo e recente) ao nível da região austral de África – cuja influência é<br />
decisiva — e ao nível planetário — sobretudo a correlação de forças entre o Ocidente e o chamado<br />
Bloco Socialista —, cujas tensões, no contexto da Guerra Fria, por exemplo, são representativas<br />
da dimensão, extensão e consequências do conflito —, o que não só marca o<br />
posicionamento de Moçambique, mas lhe determina o percurso perante estas transformações,<br />
algumas das quais absolutamente vorazes.<br />
Moçambique procede de uma relação, quase sempre complexa, entre o centro e a periferia,<br />
onde a solidariedade e o conflito se cruzam permanentemente. Desapoiado pelo Ocidente<br />
aquando da sua emancipação política, primeiro, irá encontrar no bloco socialista, o apoio necessário<br />
para encetar a luta que está na origem da sua independência política.<br />
Também é importante pensar a relação com uma economia semiperiférica, como a sul-africana,<br />
semiperiférica no plano global, mas absolutamente central tendo em vista os países que<br />
gravitam à sua volta, de onde podemos assacar uma interdependência que não se pode iludir.<br />
Neste contexto, é importante atentar à política de “engajamento construtivo”, o “instrumento”<br />
utilizado para retirar Moçambique da esfera de influência do chamado “bloco comunista”.<br />
Acrescente-se que a exigência para a obtenção da ajuda de que o país dramaticamente necessitava<br />
nos tremendos anos 80, em plena emergência, seria a sua adesão ao Banco Mundial e do<br />
FMI, ou seja a adequação da sua política económica ao chamado “Consenso de Washington”.<br />
A inserção de Moçambique na economia global tem de ter em conta o facto de estar a emergir<br />
um novo paradigma nas relações económicas e políticas mundiais com o surgimento dos<br />
chamados BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China — com particular destaque para o último, com<br />
a concentração anormal de riqueza nos países produtores de petróleo e com novas formas de<br />
luta, em particular pelos militantes muçulmanos que obrigam à revisão da doutrina militar.<br />
Moçambique no Mundo Desafios para Moçambique 2010<br />
325
Por isso, há, para além dos habituais parceiros do Ocidente, novos actores na definição dos<br />
contornos da economia moçambicana.<br />
Ao nível da sub-região, os contornos das relações económicas de Moçambique e a África do<br />
Sul e o desenvolvimento dos sectores energético, ferro-portuário e do turismo, são de uma importância<br />
vital. Moçambique é claramente dependente do seu vizinho, mesmo no que se refere<br />
às suas relações ao nível global, o que obriga o país a procurar afirmar-se com subtileza e de uma<br />
forma firme para desenvolver e fazer valer os seus interesses nacionais.<br />
O país não se pode alhear destes fenómenos planetários e sub-regionais e é necessário equacioná-los<br />
no quadro do futuro imediato e a médio e longo prazos, quando se pensa Moçambique<br />
no Mundo.<br />
A ECONOMIA NOS PRIMEIROS ANOS DA INDEPENDÊNCIA NACIONAL<br />
Devido a circunstâncias históricas e geopolíticas traduzidas no apoio do Ocidente — primeiro<br />
expresso e mais tarde camuflado —, para manter e perpetuar a situação colonial, a Frelimo foi<br />
“empurrada” a buscar o apoio do bloco socialista, mais disponível, na altura, para apoiar as lutas<br />
de libertação nacionais.<br />
A recusa do apoio do Ocidente expressa-se na recusa de fornecimento de material bélico aos<br />
combatentes de libertação nacional e na recusa em aplicar sanções económicas à potência<br />
colonizadora – Portugal.<br />
Esta recusa de apoio militar mantém-se quando Moçambique independente tem de enfrentar<br />
a guerra de desestabilização promovida pelo regime de Ian Smith (ex-Rodésia) e, mais tarde,<br />
pelo regime de apartheid da África de Sul. Durante este período de guerra de desestabilização,<br />
a dependência em termos de material bélico do bloco socialista, em particular de União Soviética,<br />
é total.<br />
Logo a seguir à independência, a economia de Moçambique sofre um abalo com o êxodo dos<br />
portugueses, decapitando o país de capacidade técnica e gerencial.<br />
Este abalo é agravado com a aplicação de sanções à Rodésia e sobretudo com acções de<br />
sabotagem económica do regime de apartheid descritas mais à frente.<br />
Os primeiros anos de governação ocuparam-se fundamentalmente com a gestão das questões<br />
urgentes provocadas pelo abandono dos portugueses (v.g. nomeação de comissão administrativas)<br />
e pelas carências que se manifestam em todos os sectores da vida económica e social.<br />
Num esforço titânico de organização e de mobilização, o país consegue suster a queda e iniciar<br />
alguma recuperação económica, sem contudo atingir os níveis do tempo colonial que, em 1973,<br />
tivera o seu ano emblemático, tendo atingido um PIB real per capita de USD 418, o que em termos<br />
de dólares de 2009 equivale a USD 2000.<br />
326 Desafios para Moçambique 2010 Moçambique no Mundo
ACÇÃO DE DESESTABILIZAÇÃO DO REGIME DE APARTHEID<br />
E A CRESCENTE DEPENDÊNCIA DE AJUDA EXTERNA<br />
O regime de apartheid não se limitou a estrangular economicamente Moçambique, com a<br />
redução do tráfego ferro-portuário e do número de trabalhadores moçambicanos nas minas<br />
sul-africanas, acompanhada da abolição da prática de pagar com ouro quantificado a preço<br />
oficial uma parte das remessas dos mineiros moçambicanos. A acção de desestabilização<br />
assumiu várias formas – militar, destruição de infra-estruturas económicas.<br />
A carência em divisas resultam não só do estrangulamento económico do regime do apartheid<br />
mas também da queda de exportações tradicionais. Esta carência foi inicialmente superada – e<br />
de uma forma inepta – com o endividamento externo. Os bancos internacionais, devido ao incumprimento<br />
sistemático do serviço de dívida, recusaram novos financiamentos, foi necessário<br />
procurar outros apoios já que o bloco socialista, com excepção da União Soviética (que para<br />
além de material bélico, passou a fornecer combustíveis, bens de consumo e outros itens de consumo<br />
corrente), não dava apoio à Balança de Pagamentos, nem ajuda alimentar, indispensável<br />
para a sobrevivência de milhares de deslocados que a guerra de desestabilização provocara, entretanto.<br />
Moçambique deixou de ter acesso a créditos bancários e passava a reunir regularmente<br />
com o Clube de Paris e o Clube de Londres para reescalonar a sua dívida externa.<br />
A necessidade de outros apoios torna-se mais premente porque o apoio de alguns países como Líbia,<br />
Iraque, Argélia e, de certo modo, Angola, no fornecimento a crédito de combustíveis, foi limitado.<br />
Os governos ocidentais, embora discordando das políticas económicas seguidas por Moçambique,<br />
sentem a necessidade moral e humanitária de apoiar, pois o país era vítima de uma agressão<br />
brutal do regime de apartheid, para além dos prejuízos que assumira com a aplicação das<br />
sanções à Rodésia decretadas por Conselho de Segurança das Nações Unidas.<br />
Neste contexto, no âmbito dos Programas de Emergência, conseguiram-se apoios financeiros<br />
e em especial de várias centenas de milhões de USD, valor quase todo ele proveniente de países<br />
ocidentais, incluindo os EUA.<br />
Este apoio económico do Bloco Ocidental, a par do apoio militar da União Soviética, permite<br />
o statu quo político, económico e militar no país, não obstante a guerra, mas cresce a pressão<br />
dos países ocidentais, primeiro para o abandono do modelo de economia planificada e, depois,<br />
para uma solução negociada para a situação militar.<br />
O regime no poder não pôde ignorar esta pressão, pois a dependência em relação aos países<br />
ocidentais aumentara notavelmente e era insustentável a posição de se manter fora das duas instituições<br />
financeiras multilaterais, fundamentais no edifício económico do Ocidente – Banco<br />
Mundial e FMI.<br />
A guerra tinha um desiderato económico e político muito claro. Toda a espinha dorsal da economia<br />
moçambicana foi desarticulada. O sistema ferro-portuário foi aquele que mais sofreu,<br />
Moçambique no Mundo Desafios para Moçambique 2010 327
dado que era o backbone system da economia do país, fortemente atrasada, sem indústrias de<br />
expressão, muitas delas no sector da transformação terciária, algumas inclusive dependentes<br />
do sistema ferroviário e portuário.<br />
Moçambique, por outro lado, tinha necessidade de apoio do Ocidente, não só para resolver os problemas<br />
económicos mas também para neutralizar a África do Sul, de quem temia uma invasão<br />
após o recrudescimento da guerra, designadamente ataques da aviação sul-africana, e da violação<br />
do território. Tentou e conseguiu uma aproximação aos EUA e a outras potências ocidentais.<br />
É neste contexto que emerge a política de “engajamento construtivo”, defendida pelos americanos.<br />
Ronald Reagan, por recomendação de Margareth Thatcher, resolve melhorar o seu<br />
relacionamento com Moçambique.<br />
REESTRUTURAÇÃO DA ECONOMIA DE MOÇAMBIQUE — PRE<br />
Com a adesão ao FMI e ao Banco Mundial e depois de algumas tentativas de reformas liberalizantes,<br />
Moçambique lança, em 1987, um programa de reajustamento económico – PRE, que<br />
tem por objectivos:<br />
• Abertura de espaço à iniciativa privada, nas áreas de agricultura de comércio e de transporte;<br />
• Liberalização do mercado de produtos não essenciais, como hortofrutículas e pecuária;<br />
• A reestruturação das empresas estatais e a diminuição do papel do Estado na sua gestão;<br />
• Eliminação de barreiras internas à circulação de produtos;<br />
• Redução substancial dos desequilíbrios financeiros internos e reforço das contas externas e<br />
reservas;<br />
• Reintegração dos mercados paralelos nos oficiais, o que foi alcançado com sucesso.<br />
A mudança estrutural da economia aconteceu, por outro lado, num contexto de grandes mutações<br />
no quadro da política e economia internacionais. A queda do Muro de Berlim, o fim da<br />
Guerra Fria, o colapso do regime do apartheid, permitiram a criação de um contexto favorável<br />
à mudança política na África Austral. Em 1990 é aprovada uma nova Constituição de Moçambique,<br />
que liberaliza o sistema político, introduzindo-se o multipartidarismo em oposição<br />
ao sistema vigente, de partido único, que vigorava desde 1975.<br />
A transição não foi apenas da economia, pois Moçambique deslocou-se também para a esfera<br />
de influência do Ocidente e a conclusão deste processo culminou com o Acordo de Paz.<br />
A Frelimo como um dos movimentos de libertação mais fortes da África, conseguiu, superando<br />
condições extraordinariamente adversas, um novo alinhamento e mudando completamente o<br />
paradigma económico e mais tarde o paradigma político. No processo cometeu erros estraté-<br />
328 Desafios para Moçambique 2010 Moçambique no Mundo
gicos graves – se calhar o mais importante foi subestimar a força do regime de Apartheid e dos<br />
que apoiavam e cujas consequências ainda hoje se sentem.<br />
Acontecimentos extraordinários, para além da capacidade própria da Frelimo, ajudaram este desfecho<br />
final e em vez de um Estado falhado, Moçambique tem uma nova janela de oportunidades<br />
para se tornar num país próspero, democrático e com taxas cada vez mais reduzidas de pobreza.<br />
O QUADRO ECONÓMICO ACTUAL<br />
E A CONTINUA DEPENDÊNCIA EXTERNA<br />
Não obstante a transição política, militar e económica de sucesso, Moçambique continua a enfrentar<br />
problemas económicos e sociais estruturais graves, em particular uma agricultura incipiente,<br />
com produtividade baixíssima do sector de subsistência, mesmo quando comparada<br />
com outros países africanos. Esta falta de produtividade do sector familiar traduz a reduzida<br />
capacidade da investigação científica e técnica aplicada e dos serviços de extensão rural.<br />
Em consequência, os actuais níveis de produção e/ou comercialização de bens tradicionais,<br />
com excepção do açúcar, ainda não atingiram valores anteriores à Independência Nacional.<br />
Se tivermos em conta que a população rural de Moçambique aumentou substancialmente e<br />
que o grosso da produção de algodão, copra, castanha de caju, milho e outros provêm do sector<br />
familiar, compreendemos como a falta de produtividade do sector familiar afecta o poder<br />
de compra dos camponeses, isto associado ao facto de a agricultura comercial ser também<br />
pouco expressiva com excepção do açúcar, o que torna Moçambique dependente das importações<br />
para os produtores essenciais como arroz, trigo, milho, batata, cebola, etc. para as quais<br />
tem condições naturais para ser, pelo menos, auto-suficiente.<br />
Mesmo o sector ferro-portuário não recuperou os níveis anteriores à Independência Nacional,<br />
não obstante os grandes investimentos efectuados no sector. Em condições normais o Porto de<br />
Maputo, admitindo um taxa média de crescimento anual de 4%, estaria a manusear 50 milhões<br />
de toneladas/ano.<br />
Embora as exportações de Mocambique tenham crescido de uma forma notável, graças aos novos<br />
projectos, em particular Mozal , Sasol e HCB, o impacto no Orçamento Cambial e Orçamento<br />
de Estado, é bastante reduzido, pois tanto a Mozal e, de certo modo, a Sasol funcionam como ilhas<br />
autónomas em termos cambiais e de impostos. A recuperação de HCB criou uma nova fonte de<br />
divisas para o País e de receitas para o Orçamento de Estado. Os lucros colossais da Mozal, por<br />
outro lado, não criam capacidades adicionais para o investimento em Moçambique, pois uma<br />
parte importante de lucros são expatriados, o que já não sucede com a HCB.<br />
Em consequência, a dependência de Moçambique da ajuda externa continua significativa, pois<br />
o Orçamento de Estado depende em 46% desta ajuda, que, no essencial, provém de países da<br />
Moçambique no Mundo Desafios para Moçambique 2010 329
OCDE com a tradição de conceder donativos sob forma de ajuda directa e programada ao Orçamento<br />
de Estado ou à Balança de Pagamentos, o que não acontece com outros países com<br />
quem Moçambique mantém também relação de cooperação. Felizmente, a crise económica internacional<br />
não afectou o fluxo de ajuda externa e assume-se que a mesma esteja assegurada<br />
para o ano fiscal de 2010.<br />
Contudo, para sair da actual crise, os governos dos países da OCDE foram obrigados a endividar-se<br />
para financiar os programas de estímulos económicos, pelo que, em breve, serão obrigados<br />
a introduzir medidas de austeridade para a redução de despesas públicas, incluindo a<br />
ajuda externa, o que cria algumas preocupações sobre a continuidade do nível da ajuda externa<br />
de que países, como Moçambique, actualmente beneficiam.<br />
Para além da dependência crucial dos países da OCDE, em termos de ajuda externa, Moçambique<br />
está muito dependente da África do Sul, quer em termos de comércio externo e, sobretudo,<br />
em termos de projectos estruturantes (grandes projectos). Com efeito, a África do Sul é<br />
o único — ou de longe o maior — consumidor de gás natural, de energia de Cahora Bassa e dos<br />
serviços ferro-portuários moçambicanos.<br />
E na ausência de uma indústria alimentar nacional e de serviços de apoio, Moçambique depende<br />
da África do Sul para as suas importações mais básicas, mas, o que é mais grave, é o facto de os grandes<br />
projectos em discussão, sobretudo na área de energia e no sector ferro-portuário, dependerem<br />
da África do Sul, enquanto consumidor com credibilidade junto dos financiadores internacionais.<br />
Sem a participação activa da África do Sul é pouco provável que estes projectos sejam implementados<br />
nos próximos anos. A dependência da África do Sul estende-se também a outros sectores,<br />
como os de recursos minerais e indústria pesada (ferro), pois as multinacionais sul-africanas dispõem<br />
do know how, incluindo a credibilidade para mobilizar outros parceiros internacionais e o financiamento<br />
internacional. A recente decisão da Billiton “de abandonar” o projecto de areias pesadas<br />
de Chibuto é reveladora da nossa dependência em relação a África do Sul. Somos claramente periféricos<br />
em relação à economia sul-africana, mais estruturada e sólida, fortemente industrializada.<br />
Esta dependência que se estende a todos os sectores da vida económica e social – trabalho,<br />
turismo, educação, saúde, etc. — irá crescer com o tempo. Contudo, é absolutamente fundamental<br />
que estas relações de dependência sejam mútuas e que Moçambique não se torne no parceiro<br />
cada vez mais pobre desta relação, isto é, não se torne ainda mais subdesenvolvido, como<br />
fornecedor de matérias-primas básicas e importador de produtos com maior valor acrescentado.<br />
A ÁFRICA DO SUL E OS BRIC<br />
No quadro do desenvolvimento dos países que compõem os BRIC – Brasil, Rússia, Índia e<br />
China, que são considerados como as futuras potências económicas ao nível global — existe um<br />
330 Desafios para Moçambique 2010 Moçambique no Mundo
potencial considerável (com excepção da Rússia), em particular para a exploração e exportação<br />
do carvão. As multinacionais indianas e sobretudo brasileiras vão jogar um papel decisivo.<br />
Mas no caso particular da China, que já é hoje uma potência económica ao nível mundial, com<br />
uma capacidade enorme para exportar capital, isto é: de investir com recursos próprios, o que<br />
não acontece com outros países dos BRIC, pelo menos na mesma dimensão, as relações são<br />
ainda incipientes se compararmos com os investimentos chineses em outros países africanos.<br />
Os financiamentos e as ajudas chinesas são utilizadas para projectos de representação – Assembleia<br />
da República, Centro de Conferências Joaquim Chissano, Ministério dos Negócios Estrangeiros,<br />
Estádio Nacional, Procuradoria Geral da República, Palácio da Justiça, Aeroporto Internacional de<br />
Maputo, etc., mas não em projectos que aumentem a nossa capacidade produtiva. Existe um grande<br />
potencial por explorar neste novo eixo económico mundial, como veremos.<br />
A grande dependência da ajuda externa de países da OCDE continuará a ser a principal condicionante<br />
para os próximos 5 anos. A ausência ou redução substancial desta ajuda externa tem<br />
certamente consequências dramáticas para o país.<br />
Como a ajuda externa está condicionada a progressos no regime democrático e no combate à corrupção,<br />
os países da OCDE, incluindo as instituições financeiras multilaterais – Banco Mundial, FMI,<br />
Banco Africano, etc. - são também “parceiros” políticos para além de o serem a nível económico.<br />
Questiona-se legitimamente se a ajuda externa não é mais nociva que benéfica. Embora não seja<br />
objecto deste artigo elaborar sobre esta questão, muito estudada e debatida, existe um consenso<br />
de que a eficácia e eficiência da ajuda externa dependem de outros factores tais como:<br />
uma Administração Pública eficiente e com um mínimo de red tapes, um sistema económico<br />
fluído e com um mínimo de transactions costs, com sistema de transportes, de energia eficiente<br />
e competitivo, um sistema de educação e de saúde abrangente e com qualidade.<br />
Qualquer país, incluindo Moçambique, pode sobreviver sem a ajuda externa, mas com um<br />
sacrifício enorme, sobretudo das populações mais vulneráveis. A situação dramática do Zimbabwe,<br />
nos últimos anos, ilustra bem este facto e dos sacrifícios não resultaram um aumento de<br />
capacidade produtiva zimbabweana, pelo contrário, perde-a em sectores fundamentais.<br />
Embora o sector da Agricultura tenha sido definido com prioritário, é aquele que menos recursos recebe,<br />
quer em termos de ajuda externa, quer em termos de investimento privado nacional e estrangeiro.<br />
É verdade e é significativo que o investimento em infra-estruturas: estradas, energia, educação,<br />
saúde e outros equipamentos contribuem para o desenvolvimento agrário, mas a experiência revela<br />
que não bastam estes investimentos, pois em países como Moçambique é necessária uma intervenção<br />
directa. A debilidade da rede de extensionistas e o fracasso do PROAGRI revelam que a agricultura<br />
não recebeu recursos e atenção consentâneas com a prioridade política que lhe foi atribuída.<br />
A definição dos contornos das relações económicas de Moçambique e da África do Sul e o desenvolvimento<br />
dos sectores energético, ferro-portuário e do turismo são de uma importância<br />
vital neste quadro.<br />
Moçambique no Mundo Desafios para Moçambique 2010 331
Como acontece com todos os países vizinhos de outros economicamente mais fortes – como<br />
é o caso de México e Canadá em relação aos Estados Unidos, Portugal em relação a Espanha,<br />
Holanda, Bélgica, Hungria e Áustria em relação a Alemanha, etc., Moçambique não pode “fugir”<br />
da influência económica da África do Sul. Também como acontece com os países acima referidos,<br />
Moçambique não ganha com uma confrontação económica aberta com a África do Sul,<br />
pelo contrário, tem tudo a perder. Mas Moçambique precisa de se afirmar com subtileza e de<br />
uma forma firme para desenvolver os interesses nacionais.<br />
PAPEL DE MOÇAMBIQUE NO QUADRO ENERGÉTICO<br />
DA ÁFRICA AUSTRAL<br />
Os projectos na área de energia — Cahora Bassa, barragem de Mphanda Nkwa, as centrais térmicas<br />
de carvão e gás, uma linha de alta tensão de Tete para a África do Sul — dependem, em<br />
grande medida, da África do Sul como principal consumidor. Mas a África do Sul tem alguma<br />
relutância em aumentar a sua dependência energética em relação a Moçambique, preferindo desenvolver<br />
capacidades próprias, incluindo centrais nucleares. A despeito, a África do Sul tem<br />
dificuldades com o seu programa energético, extremamente ambicioso, sendo obrigado a solicitar<br />
financiamento ao Banco Mundial (o que não sucedera até então), pelo que pode ser<br />
“obrigado” a aceitar outras soluções. Moçambique tem aqui claramente uma oportunidade.<br />
Se a África do Sul tem dificuldades em mobilizar financiamentos e sendo este na prática o garante,<br />
como consumidor, de qualquer financiamento que os projectos em Moçambique venham<br />
a obter, as dificuldades para Moçambique serão ainda maiores.<br />
Hoje, a nível mundial, o único país com capacidade para financiar e executar os projectos<br />
moçambicanos é a China, que tem, além disso, uma necessidade imperiosa de converter os<br />
seus activos financeiros em USD (mais de dois triliões de USD) em outros tipos de activos. Pelo<br />
que a triangulação Moçambique, China e África do Sul é uma das poucas alternativas para a<br />
implementação do nosso programa energético.<br />
A China mostrou, no passado, disponibilidade para financiar e construir a barragem Mphanda<br />
Nkwa, mas foram adoptadas outras opções numa altura em que não existiam grandes restrições<br />
no financiamento internacional.<br />
Estes projectos, bem como outros no domínio do carvão e do gás natural, determinarão o<br />
futuro económico de Moçambique, pelo que tem uma grande importância estratégica e, por<br />
isso, aparecem com uma intervenção e coordenação ao mais alto nível, determinadas por interesses<br />
nacionais, que não são necessariamente idênticos aos interesses privados nacionais.<br />
A preocupação legítima de criar uma burguesia nacional e assegurar a sua participação na vida<br />
económica e social não pode ser levada a cabo com sacrifício de interesses nacionais, tanto<br />
332 Desafios para Moçambique 2010 Moçambique no Mundo
mais que esta participação assumiu outras formas mais transparentes e abrangentes sem tornar<br />
os interesses nacionais reféns de interesses privados.<br />
O comportamento social, político e económico das elites políticas tem de estar vinculado aos<br />
“interesses nacionais” ou ao chamado “interesse geral”. É aqui onde se joga uma característica<br />
das sociedades nacionais subdesenvolvidas, não só do ponto de vista económico, mas também<br />
da perspectiva do comportamento e da estruturação dos grupos sociais.<br />
Mesmo ao nível do Estado, a importância destes projectos exige a criação de unidades especializadas,<br />
compostas por quadros motivados (incluindo remunerações especiais) e com capacidade<br />
para dirigir estes processos complexos.<br />
A China e Índia são já players globais, consumindo cada vez mais matérias-primas e exportando<br />
produtos manufacturados; são, por isso, excelentes mercados para produtos moçambicanos,<br />
mas ao mesmo tempo, juntamente com a África do Sul, uma grande ameaça ao processo de<br />
industrialização de Moçambique.<br />
Moçambique tem de olhar para os BRIC e, sobretudo, para a China, motor do crescimento económico<br />
mundial, como parceiros de uma nova etapa na economia do mundo, cuja estrutura<br />
a nível mundial passa por uma decisiva alteração.<br />
UM NOVO PARADIGMA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS<br />
Este novo quadro coloca-nos perante novos desafios para a compreensão de fenómenos, igualmente<br />
novos, muitas vezes não tão facilmente discerníveis. Um deles é a mudança do paradigma<br />
da relação dominadora Norte-Sul, para um novo eixo Sul-Sul, onde as multinacionais<br />
emergentes desenham uma nova página em termos de Investimento Directo Estrangeiro (IDE),<br />
uma das formas da mundialização financeira, cujo maior paradigma foram as multinacionais tradicionais<br />
do Norte, ao longo do século XX. Inclusive a própria definição de multinacional<br />
alterou-se. Este modelo foi sendo alterado pela realidade dinâmica da economia mundial,<br />
dominada no século passado pelo eixo triádico Estados Unidos-Japão-Europa, que era responsável<br />
por grande parte do PIB mundial.<br />
Nos anos 90, as multinacionais dos países desenvolvidos desinvestiram fora do eixo triádico<br />
e assistimos à emergência das multinacionais dos países em desenvolvimento, concentradas, sobretudo<br />
no domínio da indústria e de serviços, que são o verdadeiro motor da economia global,<br />
hoje. Estes países foram responsáveis, em 2007, antes da crise financeira internacional, por<br />
uma grande parcela do PIB mundial em PPP (PPP, quando se refere a PIB, significa “Purchasing<br />
Power Parity”. Verifica-se que, em termos de PPP, os emergentes respondem por um PIB<br />
algo à volta de metade do PIB mundial). Não foi por acaso que, em plena crise mundial, estes<br />
países impuseram um novo fórum.<br />
Moçambique no Mundo Desafios para Moçambique 2010 333
Com a abertura das economias da China, Índia, Brasil e Rússia, a força de trabalho mundial duplicou.<br />
Dentro de uma década, por força dos emergentes, haverá mais de um bilião de novos<br />
consumidores a nível global. Os países em desenvolvimento, em 2007, participaram com 40%<br />
das exportações mundiais. Nos anos 70, respondiam apenas por 20%. Estes países são consumidores<br />
de mais de metade da energia consumida hoje no planeta. Mais de 70% das reservas<br />
mundiais estão sob a guarda dos bancos centrais destes novos países.<br />
A China e o seu vertiginoso crescimento são, em grande medida, responsáveis por este quadro,<br />
é certo. Mas o papel da Índia e do Brasil não é de todo negligenciável. Esta nova realidade está<br />
não só a mudar a estrutura da economia global, como representa um novo quadro político e<br />
social, que é um claro repto para outros.<br />
A China, a Índia e o Brasil (e a Rússia e a África do Sul, é claro) quebraram os padrões e os modelos<br />
de desenvolvimento e criaram uma nova dinâmica, um novo movimento, com as suas economias.<br />
No campo do IDE, as multinacionais dos países emergentes também nos colocam<br />
perante questões novas. Novas características, volume, natureza, motivos e padrões de internacionalização.<br />
Mas a característica mais inovadora é a cooperação do seu eixo Sul-Sul, com forte<br />
apelo a dinâmicas regionais, desfazendo a força do eixo Norte-Sul. Isto é um sinal importante<br />
em termos políticos, e vale a pena pensarmos. Em 1990, as empresas emergentes contribuíam<br />
no Sul com 7% dos investimentos. Este número situava-se em 13% em 2005. É significativo.<br />
Estas economias expandem em dois sentidos: regionalmente, mas globalmente. Para além da<br />
retirada das multinacionais do Norte, nos anos 90, o acesso de alguns países ao petróleo e ao<br />
gás, com a consequente política de integração energética, casos da África do Sul e do Golfo,<br />
estão na base deste novo movimento e cooperação Sul-Sul. Antes de expandirem para o resto<br />
do mundo, estas multinacionais dos países emergentes consolidam a sua força regional e em países<br />
em desenvolvimento ou mesmo subdesenvolvidos. Tendem a investir geograficamente perto<br />
dos seus países de origem, mas também culturalmente onde melhor percebem o mercado.<br />
A onda das privatizações, que sucedeu no período em causa, também é uma das razões desta<br />
expansão. Indústria extractiva e telecomunicações, isto é, indústria e serviços são os domínios<br />
onde se concentram grande parte dos seus investimentos.<br />
A mão-de-obra chinesa e indiana educada, obediente e abundante fazem já da China e, no<br />
futuro, da Índia, grandes plataformas industriais inundando o mundo de produtos industriais<br />
baratos e, ao contrário do que se supõe, com qualidade. As indústrias sul-africanas, sobretudo<br />
as têxteis e de confecções, são já vítimas deste processo global.<br />
A enorme população chinesa e indiana põe em causa o modelo tradicional seguido por outros países<br />
exportadores como a Correia de Sul, Taiwan, Singapura, Malásia e outros que começaram por<br />
exportar produtos manufacturados simples, de mão-de-obra intensiva, para, em seguida, se dedicarem<br />
a gamas mais sofisticadas de produtos manufacturados, abrindo espaço para outros países<br />
também asiáticos — e também populosos — Vietname, Paquistão, Indonésia e Bangladesh.<br />
334 Desafios para Moçambique 2010 Moçambique no Mundo
Dificilmente Moçambique poderá competir com estes países na arena internacional, pelo que<br />
importa expandir a sua actividade onde tem vantagens competitivas explícitas, como é o caso<br />
do sector energético, de transportes e turismo, sem esquecer a agricultura que continua sendo<br />
de vital importância para Moçambique, que nas suas relações com o mundo e em particular os<br />
seus parceiros internacionais devem considerar como uma área de cooperação por excelência<br />
e não como um sector marginal como tem acontecido até agora!<br />
Moçambique no Mundo Desafios para Moçambique 2010 335
MOÇAMBIQUE NA ROTA DA CHINA<br />
UMA OPORTUNIDADE<br />
PARA O DESENVOLVIMENTO?<br />
Sérgio Chichava 1 337<br />
A crescente aproximação político-económica entre a China e os países africanos tem gerado<br />
inúmeros debates nos mais diversos fóruns de discussão. Para muitos, ela constitui um dos eventos<br />
mais marcantes nas relações Sul-Sul dos últimos anos, e, para alguns autores, tal aproximação<br />
representaria a mudança mais importante que a África conheceu desde o final da Guerra<br />
Fria (Alden et al., 2009:119). Alguns dados sustentam esta afirmação: entre 2000 e 2006, as trocas<br />
comerciais entre os dois blocos multiplicaram-se por dez (Beuret & Michel, 49:2008); o stock<br />
do investimento directo chinês em África passou de 49 milhões de dólares americanos em 1990<br />
para 2,6 biliões de dólares em 2006, tendo-se a China transformado no terceiro parceiro económico<br />
da África, depois da União Europeia e dos Estados Unidos (Besada et al., 2008).<br />
A importância da China em África e da África para a China é atestada também pelo facto de, em 2000,<br />
sob impulso da China, ministros africanos e autoridades chinesas terem-se encontrado em Pequim<br />
para criar um fórum de cooperação China-África (FOCAC), e pelo facto de, em Novembro de 2006,<br />
num ano que foi considerado como o “ano da África”, ter-se realizado a maior cimeira de sempre entre<br />
os dois blocos na capital chinesa onde estiveram presentes delegações de 48 dos 53 países que formam<br />
o continente africano. Nesta cimeira, a China prometera que, até 2009, o número de produtos<br />
africanos isentos de tarifas de importação no mercado chinês passaria de 190 para 440 (Harsch, Janeiro<br />
2007). Entretanto, é preciso sublinhar que, embora o comércio entre a China e a África tenha<br />
registado um crescimento espectacular, este continua marginal em comparação com as relações comerciais<br />
da China com outros continentes, representando, em 2007, apenas 3,3% e, em 2008, 4,1%<br />
das trocas comerciais que a China realiza com o exterior. Por seu lado, a África ainda exporta menos<br />
para a China do que aquilo que exporta para a União Europeia, por exemplo (Lafargue, 2009).<br />
Em muitos países ocidentais, o interesse cada vez maior da China nos países do continente<br />
africano é visto com certa inquietação: para além das óbvias perdas comerciais que tal fenómeno<br />
traz a estes países, a China é também acusada de fazer recuar a democracia em África, cooperando<br />
com regimes ditatoriais, autocratas e corruptos como os do Sudão, Zimbabwe e Angola,<br />
por exemplo (Human Rights Watch: 1 de Novembro de 2006). A China seria também responsável<br />
pela degradação ambiental em África. 2<br />
Moçambique na Rota da China Desafios para Moçambique 2010
Outros afirmam que esta cooperação nada mais é que “neocolonialismo”, uma reedição oriental<br />
das velhas relações de exploração ocidentais em relação a África, com este continente apenas<br />
a fornecer matéria-prima barata para as empresas chinesas e recebendo, em troca, produtos<br />
manufacturados.<br />
Mas não é só do Ocidente que vêm as críticas. Mostrando-se preocupados, algumas vozes em<br />
África, nomeadamente organizações da sociedade civil, intelectuais e partidos ou movimentos<br />
na oposição, também têm criticado certas posturas de empresas ou do governo chinês. Uma das<br />
exigências de Laurent Nkunda, então líder do Congresso Nacional para a Defesa do Povo<br />
(CNPD) na sua luta contra o governo da República Democrática do Congo, era a revisão dos<br />
contratos mineiros assinados com a China, considerados desastrosos para o país. 3 Na Zâmbia,<br />
onde conflitos entre os trabalhadores de uma mina local e seus patrões chineses levaram à<br />
morte de alguns mineiros, a China esteve no centro da campanha eleitoral de 2006, com Michael<br />
Sata, um dos importantes líderes da oposição local, a acusá-los de explorarem os zambianos e<br />
os seus recursos sem trazer mais-valia para o país, ameaçando expulsá-los caso vencesse as<br />
eleições. 4 Mais recentemente, este mesmo dirigente foi acusado pelo presidente Rupiah Banda<br />
de bloquear o investimento chinês na Zâmbia. 5<br />
Contrariamente ao pessimismo ocidental, e às inquietações da sociedade civil, dos intelectuais<br />
e dos políticos da oposição africana, boa parcela das elites políticas africanas no poder 6 vê a<br />
China como um parceiro fiável e, principalmente, menos impertinente em termos políticos do<br />
que as potências ocidentais, uma vez que pouco interfere nas discussões atinentes à resolução<br />
de seus problemas internos. De facto, não só não interfere como exige respeito pelos seus<br />
assuntos internos: uma das condições básicas definidas pela China para o estabelecimento de<br />
quaisquer tipos de relações políticas e económicas com este país, a qual vai detalhada no<br />
“Documento sobre Políticas da China para a África”, é a defesa do “princípio de uma só China”,<br />
com a rejeição das manifestações independentistas do Taiwan (Ministry Of Foreign Affairs Of<br />
the People’s Republic China, MFAPRC, 12 de Janeiro de 2006).<br />
Em termos políticos, esta afirmação do presidente moçambicano Armando Guebuza é clara<br />
acerca do estado de espírito das elites políticas moçambicanas (e africanas) em relação à China:<br />
O que leva o povo chinês a África é uma vontade genuína e solidária de ajudar os povos do continente<br />
africano a acelerarem seu desenvolvimento, tal como naqueles anos em que se envolveram no<br />
apoio de libertação do colonialismo. (Agência Lusa, 11 de Agosto de 2008).<br />
Para Guebuza, portanto, dizer que a China quer explorar os africanos não passaria de uma<br />
acusação de má-fé do Ocidente e não seria novidade:<br />
338 Desafios para Moçambique 2010 Moçambique na Rota da China
Já nessa altura [da luta contra o colonialismo], alguns países ocidentais acusavam a China de<br />
estar exportando o seu sistema comunista, mas nós já sabíamos que não passava de uma acusação<br />
infundada. (Ibid.)<br />
Neste contexto, muitos têm sido os debates, principalmente em relação ao investimento de<br />
capital chinês (e seu impacto) no continente africano e a exploração dos recursos naturais do<br />
continente por empresas chinesas. Tomando o caso da madeira — um dos principais produtos<br />
procurados pela China em África — o objectivo deste artigo é de, por um lado, mostrar como<br />
a promiscuidade entre interesses de certos sectores da elite política moçambicana em pleno<br />
processo de acumulação primitiva e de algumas empresas chinesas põe em risco a perspectiva<br />
de Moçambique beneficiar de uma relação saudável e sustentável para a sua economia e, também,<br />
para o seu meio ambiente, e, por outro lado, mostrar os riscos que a exportação de matérias-primas<br />
não processadas e extremamente dependentes das flutuações do mercado para a<br />
China, representa, sem dúvida, uma reedição das relações que a África estabeleceu com o Ocidente,<br />
e limita a perspectiva de desenvolvimento do continente africano.<br />
A ideia defendida aqui é que, diferentemente do que acontece hoje, com boas políticas, Moçambique<br />
pode tirar partido da exploração de suas matérias-primas, diversificando a sua base produtiva<br />
e investindo-as no desenvolvimento de infra-estruturas, recursos humanos e novas tecnologias.<br />
DO APOIO CHINÊS AOS MOVIMENTOS ANTICOLONIAIS<br />
À INDEPENDÊNCIA DE MOÇAMBIQUE<br />
Para além de ter apoiado movimentos anticoloniais (Frente de Libertação de Moçambique,<br />
Frelimo, Comité Revolucionário de Moçambique, Coremo, por exemplo), durante a colonização<br />
portuguesa, a China foi um dos primeiros países a reconhecer e a estabelecer relações diplomáticas<br />
com Moçambique, fazendo-o a 25 de Junho de 1975, dia da independência do país.<br />
A partir de então, vários acordos bilaterais em vários domínios, com particular destaque para<br />
a saúde e agricultura, foram concluídos. Já em 1976 havia médicos chineses em Moçambique,<br />
trabalhando no principal hospital de Maputo (aqui o acordo previa o envio, em cada dois anos,<br />
de uma equipa de 12 profissionais de saúde para Moçambique) e, em 1977, falava-se do estabelecimento<br />
de grandes machambas estatais produzindo arroz em Moamba, Sul de Moçambique,<br />
com a ajuda da China (Eadie & Grizzelli, 1979:224).<br />
Pese embora o facto de os dois países terem estabelecido relações diplomáticas logo após a independência<br />
de Moçambique, tais relações não conheceram grandes desenvolvimentos, o que<br />
se deveu (1) fundamentalmente, ao papel jogado pela China na guerra civil angolana, ao apoiar<br />
a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita) em detrimento do Movimento<br />
Moçambique na Rota da China Desafios para Moçambique 2010 339
Popular de Libertação de Angola (MPLA), atitude vivamente contestada pela Frelimo; (2) ao<br />
facto de, em 1977, a Frelimo ter-se declarado “marxista-leninista” com mais inclinação para o<br />
bloco soviético do que para o lado chinês. É preciso notar que, embora a Frelimo tenha adoptado<br />
o marxismo-leninismo, sempre procurou uma posição de equilíbrio para não se vincular em<br />
definitivo nem a Moscovo nem a Pequim 7 ; (3) A condenação pela Frelimo da invasão chinesa<br />
ao Vietname e (4) do apoio chinês ao regime cambodjano de Pol Pot em 1979; (5) o facto de a<br />
Frelimo não ter condenado a invasão soviética ao Afeganistão, Moçambique fazendo então parte<br />
dos três países africanos (os outros foram Angola e Etiópia) que votaram contra a resolução das<br />
Nações Unidas condenando a invasão (Jackson, 1995:416). Esta última atitude chegou a provocar<br />
um pequeno incidente diplomático entre os dois países, tendo Yang Shouzeng 8 , então embaixador<br />
chinês em Maputo, deixado Moçambique em companhia da equipa de médicos<br />
chineses em 1980, em sinal de protesto, regressando apenas em 1981, quinze meses depois (ibid.).<br />
Se isto pode ser considerado como sinal de normalização das relações entre os dois países durante<br />
este período, e embora Joaquim Chissano, na altura ministro dos Negócios Estrangeiros, e<br />
Samora Machel, antigo presidente de Moçambique, tenham visitado a China em Maio de 1982<br />
e Julho de 1984, respectivamente, nenhuma alta autoridade chinesa visitou Moçambique, facto<br />
que só viria acontecer em 1987, com a visita do então conselheiro de Estado e ministro dos<br />
Negócios Estrangeiros, Wu Xuequian. Depois foi a vez do também então ministro dos Negócios<br />
Estrangeiros Qian Qichen visitar Moçambique em Agosto de 1988, tendo na altura assinado<br />
um pacote de ajuda avaliado em 12 milhões de dólares americanos (Taylor, 1984:451).<br />
A aproximação do governo moçambicano à China deve ser enquadrada no contexto de crise<br />
económica e política em que se encontrava o regime de Maputo devido ao colapso do seu<br />
projecto socialista e aos efeitos da guerra civil, que tinham, entre outros, obrigado a, em 1984,<br />
normalizar relações com outros países, nomeadamente a vizinha África do Sul, país com o qual<br />
sempre mantivera relações extremamente tensas, e a aderir ao Fundo Monetário Internacional<br />
(FMI) e ao Banco Mundial (BM).<br />
O COMEÇO DE UMA NOVA ERA?<br />
À semelhança de outros países africanos, Moçambique viu a sua cooperação com a China ganhar<br />
bastante importância a partir dos anos 90. Durante este período, os dois países assinaram<br />
vários acordos de cooperação, sobretudo na área de defesa e segurança, educação e infra-estruturas,<br />
isto ao nível bilateral. Neste último sector, pode-se destacar o financiamento chinês<br />
para a construção do novo edifício do parlamento moçambicano (terminado em 2000, e que<br />
também teve financiamento da Dinamarca), do Centro de Conferências Joaquim Chissano<br />
(2003) e do Ministério dos Negócios Estrangeiros (2004), tudo isto em Maputo. Na área da<br />
340 Desafios para Moçambique 2010 Moçambique na Rota da China
defesa e segurança, pode-se dizer que Moçambique conta com a China (embora também possa<br />
se destacar a Índia) para modernizar e profissionalizar este sector, seriamente afectado durante<br />
os dezasseis anos de guerra civil. Aqui o destaque vai para a construção de um bairro militar<br />
nos arredores de Maputo (avaliado em cerca de 7 milhões de dólares americanos), a assistência<br />
técnica e logística às forças armadas e à polícia moçambicanas (oferta de viaturas, diverso<br />
equipamento electrónico incluindo computadores, uniformes, formação, treino, etc.) e, por fim,<br />
ao programa de desminagem (em 2001). A ajuda às forças armadas e à polícia foi aprovada<br />
aquando da visita de Li Peng, na altura primeiro-ministro, a Maputo, em Maio de 1997, e foi<br />
reforçada com a visita do então conselheiro do Estado e ministro da Defesa da China, Chi<br />
Haotian, em Novembro de 1998.<br />
Em 2001, estes dois países assinaram dois acordos: de Comércio e de Promoção e Protecção Recíproca<br />
do Investimento. Ao mesmo tempo também foi criada uma Comissão Mista para a Economia<br />
e Comércio, e uma parte da dívida moçambicana (69%), na altura avaliada em 22 milhões<br />
e que oficialmente tinha expirado em Novembro de 1999, foi perdoada (MFAPRC: 2006 9 ).<br />
Moçambique e a China ainda cooperam na área da ciência e tecnologia, estando prevista a instalação<br />
de dois centros de investigação agrária, em Umbelúzi (2008) e Moamba (2010), ambos na<br />
província de Maputo, num investimento avaliado em 700 milhões de dólares americanos. 10 Entre<br />
2001 e 2007, o comércio bilateral entre a China e Moçambique atingiu cerca de 280 milhões de<br />
dólares americanos, ou seja, oito vezes mais do que era em 2001, passando da 27ª posição na lista<br />
dos principais investidores no país para a sexta. 11 Ao investir 76,8 milhões de dólares americanos<br />
em 2008, correspondentes a quinze projectos, a China passou da sexta posição para segunda, sendo<br />
ultrapassada apenas pela África do Sul (Centro de Promoção de Investimentos, CPI:2009). Alguns<br />
estudos estimavam que, em 2006, Moçambique fazia parte de oito países africanos (os outros são<br />
Angola, Congo-Brazzaville, República Democrática do Congo, a Etiópia, a Guiné Equatorial, Gana,<br />
Sudão, Zimbabwe e Zâmbia) que mais ajuda receberam da China, tendo estes países recebido mais<br />
de 80% dos empréstimos chineses concedidos a África (Reisen & Ndoye, 2008:32).<br />
No seio dos Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOP), Moçambique é o segundo maior<br />
parceiro da China 12 , depois de Angola, e o quarto no seio dos países da Comunidade dos Países<br />
de Língua Portuguesa (CPLP), depois do Brasil, Portugal e Angola 13 . Em termos da distribuição<br />
regional, e segundo os dados do CPI referentes ao período que vai de 1990 a 2007, o<br />
padrão de investimento chinês não foge à regra e encontra-se concentrado em Maputo, sul de<br />
Moçambique. Com efeito, Maputo contava com 13 dos 31 projectos aprovados (CPI:2009).<br />
Igualmente, é preciso salientar a atribuição do estatuto de destino turístico privilegiado a Moçambique,<br />
bem como o perdão da dívida moçambicana à China, estimada em cerca de 20 milhões<br />
de dólares americanos, acordado aquando da visita de Hu Jintao a Maputo em Fevereiro<br />
de 2007, e o aumento de 190 para 442 produtos moçambicanos com acesso livre ao mercado<br />
chinês, como outros factos que testemunham o intensificar da cooperação entre os dois países 14 .<br />
Moçambique na Rota da China Desafios para Moçambique 2010 341
Embora não se tenha dados, pode-se dizer também que o peso da China no sector da construção<br />
e obras públicas é muito importante, tendo, em 2008, os empreiteiros moçambicanos mostrado<br />
um certo descontentamento com a situação, pois, segundo eles, a quase totalidade dos<br />
concursos públicos neste sector eram ganhos por empresas chinesas envolvidas em esquemas<br />
pouco claros com as autoridades moçambicanas. 15 Em 2008, estimava-se que mais de um terço<br />
das estradas moçambicanas, num total de 600 quilómetros, estavam a ser construídas por empresas<br />
chinesas (Emmy Boost: 2008). Igualmente, a reabilitação ou construção dos sistemas de<br />
abastecimento de água em algumas capitais provinciais (incluindo Maputo, a capital, e Beira,<br />
oficialmente, a segunda cidade do país) está (ou esteve) a cargo dos chineses. A construção de<br />
um estádio nacional nos arredores de Maputo, avaliada em 57 milhões de dólares (a terminar em<br />
2010), a reabilitação e modernização do principal aeroporto de Moçambique, Mavalane, em<br />
Maputo, avaliada em 70 milhões de dólares (conclusão das obras prevista para 2010), e o financiamento,<br />
de 2,3 biliões de dólares americanos, da barragem de Mpanda Nkuwa, projectada para<br />
ser uma das mais importantes de África (cujo princípio das obras está previsto para 2010), são<br />
também testemunhos da importância da China no sector da construção e obras públicas.<br />
De acordo com o Departamento Económico e Comercial da Embaixada da China em Maputo<br />
(8 de Maio de 2008), em 2008 havia em Moçambique 41 empresas chinesas, as quais empregavam<br />
11 214 moçambicanos e cujas áreas de actividade concentravam-se, essencialmente, na<br />
agricultura, pesca, indústria e construção. Nesta altura, as exportações moçambicanas para a<br />
China estavam largamente centradas na madeira, pescado e produtos agrícolas.<br />
O CASO DA MADEIRA<br />
O crescimento económico da China fez deste país um dos grandes consumidores de hidrocarbonetos<br />
e dos recursos florestais. No que diz respeito especificamente à madeira, a China é<br />
apenas ultrapassada pelos Estados Unidos. Isto, para além de criar uma pressão no mercado internacional,<br />
apresenta-se como um desafio para os países africanos, chamados a adaptarem-se<br />
à nova conjuntura sem pôr em causa o seu equilíbrio interno.<br />
Fácil de explorar, sem necessidade de grandes custos e de tecnologia de ponta, a madeira tornou-se<br />
em muito pouco tempo — e na ausência de petróleo — no principal produto de exportação<br />
de Moçambique para a China. Com efeito, em 2006, a madeira cobria mais de 90% das exportações<br />
de Moçambique a este país asiático. Neste mesmo ano, Moçambique, ocupando o sexto lugar, fazia<br />
parte dos dez principais exportadores de madeira para a China, numa lista liderada pelo Gabão<br />
(Canby et al., 2008). Na Comunidade dos Países da África Austral (SADC), Moçambique era apenas<br />
ultrapassado pela Suazilândia (ibid). Para além de ser o principal produto de exportação para a<br />
China, a madeira também faz parte da lista dos principais produtos de exportação de Moçambique.<br />
342 Desafios para Moçambique 2010 Moçambique na Rota da China
Para além de envolver empresários chineses, a exploração da madeira também envolve empresários<br />
moçambicanos, com uma parte não negligenciável ligada à elite política do país e<br />
partido no poder, mas, também, à oposição. 16<br />
Comparável apenas às queixas sobre a violação das normas laborais moçambicanas por empresas<br />
chinesas 17 , a exploração da madeira suscitou e tem suscitado viva controvérsia no seio<br />
da sociedade moçambicana. Com efeito, organizações da sociedade civil moçambicana têm-se<br />
mostrado agastadas com a forma como este recurso está sendo explorado. Acusam a elite política<br />
do país (sobretudo ligada à Frelimo) de, numa atitude típica de uma burguesia compradora<br />
em conivência com empresários chineses, explorarem a madeira de forma desenfreada e<br />
sem respeito às normas em vigor neste sector. Em 2006, um relatório encomendado pelo Fórum<br />
das Organizações não governamentais da Zambézia (FONGZA) intitulado “A Chinese take<br />
away” e consagrado à província da Zambézia, uma das regiões mais ricas em recursos florestais,<br />
punha em causa importantes dirigentes da Frelimo, dentre os quais o antigo presidente de<br />
Moçambique, Joaquim Chissano, e o antigo governador da Zambézia, Bonifácio Gruveta, de,<br />
em conluio com os chineses, desflorestar a Zambézia (C. Mackenzie, 2006).<br />
Outro relatório, datado de 2008 e elaborado por três organizações da sociedade civil moçambicana,<br />
a Associação Amigos da Floresta, a Associação Rural de Ajuda Mútua (ORAM) e Justiça<br />
Ambiental (JA), afirmava que já não havia mais madeira a explorar na Zambézia. Igualmente, afirmava<br />
que elementos ligados à Frelimo vendiam as suas licenças a estrangeiros, ganhando dinheiro<br />
sem nada fazerem. Esta situação não é específica à Zambézia, pois um pouco por todo<br />
lado são reportados casos de violação das leis (exploração de madeira para além dos limites<br />
estabelecidos por lei, exportação de madeira em toros e não processada infringindo a lei), corrupção<br />
e tráfico e contrabando de madeira. Estas situações levaram grupos de cidadãos moçambicanos<br />
a escreverem publicamente ao Presidente da República, Armando Guebuza — ele<br />
próprio com interesses na madeira — pedindo a sua intervenção. Aquando da visita do presidente<br />
chinês a Maputo em Fevereiro de 2007, algumas vozes da sociedade civil aproveitaram o<br />
momento para denunciar a situação. É o caso do Marcelo Mosse, do Centro de Integridade<br />
Pública (CIP), e do sociólogo Carlos Serra, que endereçaram cartas abertas a Armando Guebuza.<br />
O primeiro, para além de criticar o processo obscuro do enriquecimento ilícito da elite política<br />
moçambicana em parceria com algumas empresas chinesas, dizia que a cooperação com a China<br />
era bem-vinda se fosse feita de maneira transparente e fosse benéfica para os povos dos dois países,<br />
e não somente uma reedição da situação colonial (Mosse, 7 de Fevereiro de 2007). Já o<br />
segundo exigia a nomeação imediata de uma comissão de inquérito para averiguar o que realmente<br />
estava a acontecer nas florestas moçambicanas (Serra, 30 de Janeiro de 2007). 18<br />
A situação é preocupante se se tomar em conta que alguns estudos indicavam, já em 2003<br />
— muito antes da eclosão dos escândalos e numa altura em que a procura da chinesa da madeira<br />
moçambicana era de apenas 81 milhões de m 3 de madeira em toro, contra 212 m 3 em 2007,<br />
Moçambique na Rota da China Desafios para Moçambique 2010 343
(Global Timber: 2009) — que entre 50 a 70% da madeira, correspondente a cerca de 1524 milhões<br />
de dólares americanos, produzida anualmente é exportada ilegalmente (F. Gatto: 2003).<br />
Não obstante, e apesar de todas estas críticas e denúncias, a situação não mostra sinais de melhorias.<br />
Se a fragilidade do Estado moçambicano é um dos factores de explicação, uma vez que faltam<br />
meios para controlar a exploração da madeira, a falta de vontade política é outro: este negócio envolve<br />
altas figuras do Estado e do partido Frelimo, e nunca nenhum deles foi questionado por isto.<br />
Outro ponto: para além de envolver a elite política do país, o contrabando da madeira também envolve<br />
escalões mais baixos da função pública, a polícia e os serviços aduaneiros (alfândegas).<br />
Entretanto, devido à crise financeira internacional, e embora não haja dados estatísticos oficiais,<br />
as exportações de madeira conheceram uma drástica redução, à semelhança do que aconteceu<br />
com outros países, sobretudo africanos, como os Camarões e Gabão 19 . Se em 2007 a<br />
China importou de Moçambique, 212 milhões m 3 de madeira em toros, em 2008 esta cifra caiu<br />
para 157 milhões de m 3 (Global Timber: 2009). Também aponta-se como razões de baixa procura<br />
chinesa pela madeira o fim de grandes obras relacionadas com os Jogos Olímpicos (Tassé<br />
& Nforgang, 2008). Em Moçambique, fala-se de muitas empresas madeireiras detidas por<br />
chineses e por moçambicanos encerradas um pouco por todo o país, sobretudo no Norte e<br />
Centro. Só em Nacala-Porto, província de Nampula, falava-se do encerramento de oito das<br />
14 empresas que existiam, fazendo perder emprego a 1500 trabalhadores, as outras estando a<br />
funcionar com enormes dificuldades. Igualmente, milhares de metros cúbicos de madeira estavam<br />
a deteriorar-se nos estaleiros do porto local por falta de mercado. 20 É preciso salientar<br />
também que não foi só exportação da madeira que foi atingida pela crise financeira internacional.<br />
Estimativas indicam que, no primeiro trimestre de 2009, as exportações moçambicanas tinham<br />
caído em 36%, comparados em igual período de 2008 (Munguambe, 21 de Agosto de 2009).<br />
Embora a contribuição do sector florestal seja ainda pouco significativa para a economia de Moçambique,<br />
representando no caso das exportações, cerca de 1% do total (Munguambe, 21 de<br />
Agosto de 2009), valor certamente inferior ao que é exportado sem passar pelo circuito oficial<br />
— não restam dúvidas de que, num contexto em que a economia moçambicana é dominada<br />
apenas por um produto, o alumínio, produto que sozinho representa mais de 60% das exportações,<br />
esta contribuição é importante na diversificação da base produtiva e conjugado com<br />
outros pode ser decisivo na mitigação da dependência de Moçambique em relação a recursos<br />
externos. Lembre-se que a economia de Moçambique depende enormemente da ajuda externa,<br />
com mais de 50% do orçamento do Estado proveniente de doações. E se as estimativas que indicam<br />
que a madeira exportada ilegalmente representa entre 50 a 70% do total da madeira produzida<br />
num ano estiverem correctas, então a contribuição da madeira na economia do país<br />
seria mais importante do que parece ser. A utilização dos recursos gerados pela economia florestal<br />
pode, pois, ser usada para diversificar a base produtiva da economia moçambicana,<br />
criando ligações entre os diferentes sectores, protegendo-se assim da queda dos preços da<br />
344 Desafios para Moçambique 2010 Moçambique na Rota da China
madeira no mercado internacional. Com efeito, a economia moçambicana é descrita como<br />
sendo extremamente concentrada em grandes projectos de natureza extractiva e energética,<br />
com fracas ligações económicas internas (Castel-Branco, 2006, 2008, 2009).<br />
Um dos desafios que se coloca a Moçambique, um Estado fraco, sem grande capacidade de controlo<br />
do seu território e das suas fronteiras (terrestres e marítimas), é, portanto, controlar o tráfico<br />
ilegal da madeira, sabido que mesmo Estados teoricamente fortes enfrentam este problema.<br />
Igualmente, Moçambique está neste momento a passar por um processo de acumulação primitiva<br />
envolvendo essencialmente pessoas ligadas à elite política local, que por vezes põe em<br />
contradição interesses particulares com interesses nacionais. Conciliar isto sem pôr em causa<br />
a estabilidade política do país assim como o seu desenvolvimento sustentável revela-se aqui<br />
uma das questões a serem equacionadas com bastantes cautelas.<br />
A aposta forte na industrialização do sector madeireiro, conjugada com uma legislação firme<br />
contra todo o tipo de abusos, devia ser uma prioridade. Moçambique pode seguir o exemplo<br />
de alguns países africanos bastante avançados na indústria florestal, nomeadamente os Camarões.<br />
21 Embora nos Camarões ainda haja madeira saindo ilegalmente, a obrigação de se criar<br />
fábricas de processamento e tratamento de madeira em cada unidade de exploração florestal<br />
desde 1997 bem como a interdição de exportar madeira em toro à partir de 1999, fez da indústria<br />
madeireira camaronesa — cuja floresta é considerada a segunda mais importante de<br />
África depois da floresta da República Democrática do Congo — um dos sectores mais importantes<br />
da economia deste país, e muito contribuiu para reduzir a desflorestação. Hoje, a madeira<br />
é o segundo produto de exportação e a indústria madeireira, o segundo maior empregador, depois<br />
da função pública. Portanto, sem ser panaceia para os problemas que enfermam este sector,<br />
a industrialização do sector madeireiro, para além de ser uma fonte segura de receitas,<br />
contribuiria com postos de trabalho e contra a desflorestação.<br />
Apesar de o governo de Moçambique ter aderido à Iniciativa de Transparência nas Indústrias<br />
Extractivas (ITIE), cujo objectivo central é conduzir a uma gestão transparente e responsável<br />
dos recursos minerais energéticos e florestais, se não forem criadas capacidades internas de<br />
controlo (isto depende em grande parte da vontade política) e enquanto interesses pessoais<br />
primarem sobre o colectivo, a corrupção minar os sistemas de regulação deste sector, o risco<br />
de Moçambique não tirar mais-valia dos recursos florestais é grande.<br />
É preciso sublinhar que Moçambique não é um caso isolado. Em quase todos os países exportadores<br />
de madeira, a situação é mais ou menos idêntica. O tráfico de madeira tem contornos<br />
internacionais, e uma parte importante da madeira que circula no mercado internacional provém<br />
do contrabando. Por exemplo, em 2006, estimava-se que 1/5 das exportações europeias<br />
de madeira provinham de circuitos ilegais (Jean Bakouma: Julho de 2009). Ainda, perto de 80%<br />
da exploração florestal da Indonésia, entre 60 e 80% da Amazónia brasileira e 50% dos Camarões<br />
é ilegal (Greenpeace: Março de 2008).<br />
Moçambique na Rota da China Desafios para Moçambique 2010 345
Por seu lado, a China, para além de ser um dos grandes importadores de madeira ilegal, é também<br />
um dos grandes exportadores de madeira ilegalmente explorada, atrás da Rússia e da Indonésia<br />
(ibid). Fazer face a isto é, sem dúvida, um grande desafio para Moçambique e para<br />
África, onde muitas vezes são as próprias elites que deviam fazer o controlo que estão implicadas<br />
no contrabando. Tentar mascarar os problemas que enfermam a cooperação entre os<br />
dois países com justificações do género “a China apoiou-nos no combate libertador e sem contrapartidas”<br />
(durante a luta contra o colonialismo português), ou “os que criticam a China estão<br />
ao serviço do Ocidente” ou são apenas movidos por xenofobia (ou chinofobia) 22 , racismo, ou<br />
ódio, como pretende por exemplo, Sérgio Vieira, figura histórica da Frelimo, não constitui solução<br />
para este problema, pois para além de dissimular o que actualmente se passa no sector<br />
madeireiro ou noutras empresas chinesas muitas vezes acusadas de violação da lei laboral, a conjuntura<br />
e os interesses em jogo hoje não são os mesmos de outrora.<br />
O apoio chinês à luta contra o colonialismo não pode, pois, constituir argumento para hipotecar<br />
o futuro do país. Aliás, este argumento assemelha-se à ideia de certos dirigentes da Frelimo<br />
de que, pelo facto de terem dirigido a luta contra o colonialismo, outorgam-se o direito natural<br />
ao enriquecimento. Há que encarar os problemas de frente e de maneira realista, olhando<br />
para as vantagens e desvantagens que podem advir da relação entre a China e Moçambique.<br />
NOTAS<br />
1<br />
O autor agradece os comentários e sugestões de Jonas Pohlmann.<br />
2<br />
Ver, por exemplo, Mail and Guardian (2009), “Jane Goodall accuses China of plundering Africa”,<br />
11 de Março, http://www.mg.co.za/article/2009-03-11-jane-goodall-accuses-china-ofplundering-africa<br />
(acedido a 4 de Setembro de 2009).<br />
3<br />
Sobre este assunto ver, por exemplo, 7 sur 7 (2008), “En dénonçant les contrats chinois, Nkunda<br />
veut séduire l'Occident”, 19 de Novembro, (http://www.7sur7.be/7s7/fr/1505/Monde/arti-<br />
cle/detail/493565/2008/11/19/En-denoncant-les-contrats-chinois-Nkunda-veut-seduire-l-<br />
Occident.dhtml) (acedido a 5 de Outubro de 2009)<br />
4<br />
Para mais detalhes, ver Sebastien Berger, (2008), “Anti-China candidate Michael Sata hopes<br />
to become Zambia president”, 30 de Outubro, http://www.telegraph.co.uk/news/ worldnews/africaandindianocean/zambia/<br />
3287332/Anti-China-candidate-Michael-Sata-hopesto-become-Zambia-president.html<br />
(acedido a 7 de Setembro de 2009)<br />
5<br />
Mining Weekly (2009), “Zambia opposition moves to block Chinese mine deal”, 25 de Junho,<br />
http://news.mining.com/2009/06/25/zambia-opposition-moves-to-block-chinese-mine-deal/<br />
(acedido a 7 de Setembro de 2009).<br />
6<br />
Thabo Mbeki, antigo presidente sul-africano, é das poucas vozes de entre os líderes africanos a<br />
defender que, para a África tirar partido da sua relação com a China, deve ter o cuidado de não<br />
reeditar os erros do passado, no qual apenas era um simples exportador de matérias-primas para<br />
346 Desafios para Moçambique 2010 Moçambique na Rota da China
o Ocidente, recebendo em troca produtos manufacturados. Ver, por exemplo, BBC (2006),<br />
“Mbeki warns on China-Africa ties”, 14 de Dezembro http://news.bbc.co.uk/2/hi/business/<br />
6178897.stm (acedido a 7 de Setembro de 2009).<br />
7<br />
Esta atitude também tinha sido observada durante a luta armada contra o colonialismo português,<br />
onde a Frelimo sempre procurou diversificar as suas fontes de apoio. Da mesma forma, isso não<br />
quer dizer que a adopção do “marxismo-leninismo” significasse a existência de unanimidade no<br />
seio da Frelimo sobre que tipo de socialismo ou modelo de desenvolvimento se devia seguir.<br />
Sobre este ponto, ver, por exemplo, Thomas Henriksen (1978), “Marxism and Mozambique”,<br />
Affrican Affairs, vol. 77, n 309, pp. 441-462.<br />
8<br />
Yang Shouzeng foi o segundo embaixador da China em Moçambique. Sobre embaixadores chineses<br />
em Moçambique, ver Ministry Of Foreign Affairs Of the People’s Republic China (2007),<br />
“Chinese Ambassadors to Mozambique”, 13 de Abril, http://www.fmprc.gov.cn/eng/ziliao/wjrw/3607/3610/t18172.htm<br />
(acedido a 21 de Setembro de 2009).<br />
9<br />
Ver também People’s Daily (2001), China Cancels Part of Mozambique's Debt, 12 de Julho,<br />
http://english.people.com.cn/ 200107/12/eng20010712_74776.html (acedido a 5 de Outubro<br />
de 2009).<br />
10<br />
Notícias Online (2008), “China apoia projectos de investigação agrária”, 22 de Janeiro, (acedido<br />
a 5 de Outubro de 2009).<br />
11<br />
China View (2008), “Ambassador: Cooperation between China, Mozambique achieves substantive<br />
progress”, 11 de Julho, http://news.xinhuanet.com/english/2008-07/11/content_8528377.htm<br />
(acedido a 5 de Outubro de 2009).<br />
12<br />
De notar que de entre os PALOP (Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau são os outros<br />
membros), São Tomé e Príncipe é o único país que não têm relações com a China em virtude<br />
de ter apoiado a independência de Taiwan.<br />
13<br />
Agência Lusa (2008), “Pequim elogia relações comerciais com países lusófonos”, 11 de Março,<br />
http://www.agencialusa.com.br/index.php?iden=14565 (acedido a 4 de Setembro de 2009).<br />
14<br />
Agência Lusa (2007), “China reforça apoio a sector agrícola de Moçambique”, 9 de Fevereiro,<br />
http://www.agencialusa.com.br/index.php?iden=6233 (acedido a 5 de Outubro de 2009).<br />
15<br />
Zambézia Online (2007), “Empreiteiros nacionais acusam governo de proteger empresas chinesas”,<br />
6 de Novembro, http://www.zamezia.co.mz/content/view/3624/2/ (acedido a 5 de<br />
Outubro de 2009).<br />
16<br />
Afonso Dhlakama, líder da Renamo, o maior partido da oposição, é referenciado como accionista<br />
da Socadiv Holding Lda., empresa especializada na exploração de madeira, criada em 2007,<br />
ver The Indian Ocean Newsletter (2007), Afonso Dhlakama goes into business in Mozambique, 1<br />
de Dezembro.<br />
17<br />
Os conflitos entre empresas chinesas e trabalhadores moçambicanos são também os aspectos negativos<br />
que tem ensombrado a relação entre os dois países e tem sido deveras denunciados quer<br />
Moçambique na Rota da China Desafios para Moçambique 2010 347
pela imprensa, quer por organizações da sociedade civil. Aliás, esta situação não foge muito<br />
àquilo que tem acontecido um pouco noutros países africanos.<br />
18<br />
Para além desta, Carlos Serra voltou a escrever outra carta aberta ao presidente Guebuza em<br />
Maio de 2007. Ver C. Serra (2007), “Carta Para o Senhor Presidente da República, Armando Emílio<br />
Guebuza”, Media Fax, Maputo, 5 de Maio. Para ter uma ideia do debate que esta questão<br />
suscitou, ver C. Serra (2007), “Os caçadores locais das feiticeiras de Salém (8) (ou os cinco mosqueteiros)”,<br />
30 de janeiro, http://oficinadesociologia.blogspot.com/ 2007_04_01_archive.html<br />
(acedido a 5 de Outubro de 2009).<br />
19<br />
Neste país que em 2006 era considerado o terceiro maior exportador africano de madeira para a<br />
China (Canby et al), o sindicato dos exploradores florestais estima em cerca de 30% a proporção<br />
de encomendas anuladas entre Junho e Outubro de 2008. Ver Étienne Tassé, Charles Nforgang,<br />
Cameroun. La crise financière abat le bois africain, InfoSud Belgique Agence Presse, 18 de Dezembro<br />
de 2008. No Gabão, primeiro exportador de madeira para a China, e onde este industria da<br />
madeira é considerada o segundo empregador depois da função pública, a crise financeira internacional<br />
obrigou a despedimentos massivos de trabalhadores, fecho de algumas empresas e a redução<br />
das exportações. Ver Info Plus Gabon (2008), Gabon : La production gabonaise de grumes<br />
est en crise, 10 de dezembro, http://www.infosplusgabon.com/article.php3?id_article=2865 8,<br />
(acessado a 2 de Outubro de 2009).<br />
20<br />
Sobre a falência do sector madeireiro ver Notícias Online (2009), “Província de Nampula: faliu<br />
negócio de madeira”, 18 de Junho, (acessado a 14 de Setembro de 2009; Affrica All (2009), “Mozambique:<br />
1,500 jobs lost in timber industry in Nacala”, 18 de Junho, http://allafrica.com/stories/200906180765.html<br />
(acedido a 14 de Setembro de 2009.<br />
21<br />
Sobre a indústria florestal nos Camarões ver por exemplo, François Pinta, Timothée Fometé<br />
(2004), “Filère bois au Cameroun: vers une gestion durable dês forêts et une transformation<br />
industrielle performante?”, Bois et forêts des tropics, 281, p. 71-86.<br />
22<br />
Ver por exemplo, Sérgio Vieira (2007), “Sobre o perigo amarelo”, Domingo, Maputo, 25 de<br />
Fevereiro.<br />
REFERÊNCIAS<br />
Agência Lusa (2008), “Presidente de Moçambique defende apoio chinês a África”, 11 de Agosto,<br />
http://www.agencialusa.com.br/index.php?iden=18209 (acedido a 31 de Agosto de<br />
2009).<br />
Alden, Chris, Large, Dan, de Oliveira, R. Soares (2008), “Chine-Afrique: facteur et résultante de<br />
la dynamique mondiale”, Afrique Contemporaine, n.º 228, pp. 119-133.<br />
Bakouma, Jean (2009), “Bois illégal Ebauche de solution européenne”, Courrier de la Planète, 88,<br />
Julho, http://www.courrierdelaplanete.org/88/article3.php#1 (acedido a 5 de Outubro<br />
de 2009).<br />
348 Desafios para Moçambique 2010 Moçambique na Rota da China
Beuret, Beurrait, Michel, Michel, Serge, “La Chine a-t-elle un plan en Afrique?”, Afrique<br />
Contemporaine, n.º 228, pp. 49-68.<br />
Besada, Hany, Wang, Yang, Whalley, John, “China's Growing Economic Activity in Africa”,<br />
Working Paper w14024, Maio 2008.<br />
Canby, Kerstin, Hewitt, James, Bailey, Luke, Katsigris, Eugenia, Xiufang, Sun (2008), “Forest<br />
products trade between China & Africa. An analysis of imports and exports”,<br />
http://www.forest-trends.org/documents/publications/ChinaAfrica Trade.pdf. (acedido<br />
a 20 de Setembro de 2009)<br />
Castel-Branco, Carlos (2006), Como Está a Economia Moçambicana? Algumas Reflexões.<br />
Primeiro Curso de Actualização de Jornalistas da Área Económica, ISCTEM, Maputo,<br />
04 de Maio.<br />
Castel-Branco, Carlos (2008), as consequências directas das crises no panorama nacional<br />
moçambicano. Comunicação apresentada na IV Conferência Económica do Millenium<br />
BIM “Os efeitos das 3 crises — financeira, produtos alimentares e petróleo — sobre as<br />
economias de África e de Moçambique em particular, Maputo, 4 de Dezembro.<br />
Castel-Branco, Carlos (2009), “O Complexo Extractivo-Energético e as Relações Económicas<br />
entre Moçambique e a África do Sul”, Conference paper 16, II Conferência do Instituto<br />
de Estudos Sociais e Económicos (<strong>IESE</strong>), Maputo, 22-23 de Abril.<br />
Chichava, Sérgio (2008), “Mozambique and China: from politics to business?”, Discussion paper<br />
n 05, www.iese.ac.mz/lib/.../DP_05_MozambiqueChinaDPaper.pdf (acedido a 31 de<br />
Agosto de 2009).<br />
CIP (2009), Projectos autorizados no ano de 2008, Maputo.<br />
Corporate Foreign Policy (2009), “China-Angola Trade Relations Get Problematic”, 5 de<br />
Fevereiro, http://corporateforeignpolicy.com/africa/china-angola-trade-relations-getproblematic<br />
(acedido a 4 de Setembro de 2009).<br />
Departamento Económico e Comercial da Embaixada da República Popular da China na<br />
República de Moçambique (2008), “China gerou mais de 11 mil empregos desde 1990”,<br />
8 de Agosto, http://mz2.mofcom.gov.cn/aarticle/bilateralvisits/<br />
200805/20080505521809.html (acedido a 5 de Outubro de 2009).<br />
Gail, Eadie, Grizzell, Denise (1979), “China's Foreign Aid, 1975-78”, The China Quarterly, n. 77,<br />
Cambridge, Cambridge University, pp. 217-234.<br />
Gatto, Del Filippo (2003), Forest Law Enforcement in Mozambique. An Overview (Draft<br />
version), DNFB & FAO, Maputo, Moçambique.<br />
Global Timber (2009), “Mozambique” http://www.globaltimber.org.uk/mozambique.htm<br />
(acedido a 5 de Outubro de 2009).<br />
Greenpeace (2008), “La nécessité d’une législation européenne contre le commerce de bois<br />
illégal et pour une utilisation durable des resources forestières”, Março,<br />
Moçambique na Rota da China Desafios para Moçambique 2010 349
www.greenpeace.org/.../legislation-europeenne-contre-le-commerce-illegal-de-bois.pdf<br />
(acedido a 5 de Outubro de 2009).<br />
Harsch, Ernest (2007), “Big leap in China-Africa ties. Beijing offers continent more aid, trade and<br />
business”, Africa Renewal, Janeiro, http://www.un.org/ecosocdev/geninfo/afrec<br />
/vol20no4/204-china-africa-ties.html, (acessado a 5 de Outubro de 2009).<br />
Henriksen, Thomas (1978), “Marxism and Mozambique”, Affrican Affairs, vol. 77, n.º 309, pp.<br />
441-462.<br />
Human Rights Watch (2006), “China-Africa Summit: Focus on Human Rights, Not Just Trade”,<br />
1 de Novembro, http://www.hrw.org/en/news/2006/11/01/china-africa-summit-focushuman-rights-not-just-trade<br />
(acedido a 4 de Setembro de 2009).<br />
Jackson, Steven F. (1995), “China's Third World Foreign Policy: The Case of Angola and<br />
Mozambique, 1961-93”, The China Quarterly, n.º 142, pp. 388-422.<br />
Lafargue, François (2009), “La Chine en Afrique : une réalité à nuance”, 10 de Agosto,<br />
http://www.diploweb.com/La-Chine-en-Afrique-une-realite-a.html (acedido a 5 de<br />
Outubro de 2009).<br />
Mackenzie, Catherine, (2006), Forest governance in Zambézia, Mozambique. A Chinese Take<br />
Away! Final report for FONGZA, Maputo.<br />
MFAPRC (2006), “China's African Policy”, 12 de janeiro,<br />
http://www.fmprc.gov.cn/eng/zxxx/t230615.htm (acedido a 5 de Outubro de 2009).<br />
MFAPRC (2006), “Mozambique”, 10 de Outubro, http://www.china.org.cn/<br />
english/features/focac/183432.htm (acedido a 5 de Outubro de 2009).<br />
MFAPRC (2007), “Chinese Ambassadors to Mozambique”, 13 de Abril,<br />
http://www.fmprc.gov.cn/eng/ziliao/wjrw/3607/3610/t18172.htm (acedido a 21 de<br />
Setembro de 2009).<br />
MFAPRC (2007), “Hu Jintao Holds Talks with His Mozambican Counterpart”, 2 de Fevereiro,<br />
(acedido a 5 de Outubro de 2009).<br />
Mosse, Marcelo (2007), “Carta aberta a Hu Jintao”, Canal de Moçambique, Maputo, 2 de<br />
Fevereiro.<br />
Munguambe, Titos (2009), “Exportações caem 36 por cento em 2009”, Notícias. Economia &<br />
Negócios, 21 de Agosto, pp. 4 e 5.<br />
Pinta, François, FOMETE, Timothée (2004), “Filière bois au Cameroun: vers une gestion<br />
durable des forêts et une transformation industrielle performante?” Bois et forêts des<br />
tropics, 281, pp. 71-86.<br />
Reisen, Helmut, NDOYE, Sokhna (2008), “Prudent versus Imprudent Lending to Africa: From<br />
Debt Relief to Emerging Lenders”, Working Paper 268, OECD Development Centre.<br />
350 Desafios para Moçambique 2010 Moçambique na Rota da China
Serra, Carlos (2007), “Carta para o Senhor Presidente da República, Armando Emílio Guebuza”,<br />
30 de Janeiro, http://oficinadesociologia.blogspot.com/2007/01/carta-para-o-senhorpresidente-da.html<br />
(acedido a 5 de outubro de 2009).<br />
Tasse, Étienne, NFORGANG, Charles (2008), Cameroun. La crise financière abat le bois<br />
africain, InfoSud Belgique Agence Presse, 18 de Dezembro, pp. 1-3.<br />
Taylor, Ian (1998), “China's Foreign Policy towards Africa in the 1990s”, The Journal of Modern<br />
African Studies, n.º 3 (36), Cambridge, Cambridge University, pp. 443-460.<br />
The Indian Ocean Newsletter (2007), “Afonso Dhlakama goes into business in Mozambique”, 1<br />
de Dezembro.<br />
Vieira, Sérgio (2007), “Sobre o perigo amarelo”, Domingo, Maputo, 25 de Fevereiro.<br />
Moçambique na Rota da China Desafios para Moçambique 2010 351
OUTRAS PUBLICAÇÕES DO INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIAIS E ECONÓMICOS (<strong>IESE</strong>)<br />
LIVROS<br />
Cidadania e governação em Moçambique – comunicações apresentadas na Conferência Inaugural<br />
do Instituto de Estudos Sociais e Económicos. (2009)<br />
Luís de Brito, Carlos Castel-Branco, Sérgio Chichava e António Francisco (organizadores)<br />
<strong>IESE</strong>: Maputo<br />
Reflecting on economic questions – papers presented at the inaugural conference of the Institute<br />
for Social and Economic Studies. (2009)<br />
Luís de Brito, Carlos Castel-Branco, Sérgio Chichava and António Francisco (editors)<br />
<strong>IESE</strong>: Maputo<br />
Southern Africa and Challenges for Mozambique – papers presented at the inaugural conference<br />
of the Institute for Social and Economic Studies. (2009)<br />
Luís de Brito, Carlos Castel-Branco, Sérgio Chichava and António Francisco (editors)<br />
<strong>IESE</strong>: Maputo<br />
WORKING PAPERS (ARTIGOS EM PROCESSO DE EDIÇÃO PARA PUBLICAÇÃO)<br />
WP n.º 1: Aid Dependency and Development: a Question of Ownership? A Critical View.<br />
(2008)<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/AidDevelopmentOwnership.pdf<br />
DISCUSSION PAPERS (ARTIGOS EM PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO/DEBATE)<br />
DP n.º 6: Recursos naturais, meio ambiente e crescimento económico sustentável em Moçambique.<br />
(2009)<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/DP_2009/DP_06.pdf<br />
DP n.º 5: Mozambique and China: from politics to business. (2008)<br />
Sérgio Inácio Chichava<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/dp_2008/DP_05_MozambiqueChinaDPaper.pdf<br />
DP n.º 4: Uma Nota Sobre Voto, Abstenção e Fraude em Moçambique (2008)<br />
Luís de Brito<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/dp_2008/DP_04_Uma_Nota_Sobre_o_Voto_Abstencao_e_Fraude_em_Mocambique.pdf<br />
DP n.º 3: Desafios do Desenvolvimento Rural em Moçambique. (2008)<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
Desafios para Moçambique 2010 353
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/dp_2008/DP_03_2008_Desafios_DesenvRural_Mocambique.pdf<br />
DP n.º 2: Notas de Reflexão Sobre a "Revolução Verde", contributo para um debate. (2008)<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/dp_2008/Discussion_Paper2_Revolucao_Verde.pdf<br />
DP n.º 1: Por uma leitura sócio-histórica da etnicidade em Moçambique (2008)<br />
Sérgio Inácio Chichava<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/dp_2008/DP_01_ArtigoEtnicidade.pdf<br />
IDeIAS (BOLETIM QUE DIVULGA RESUMOS DE TEMAS DE INVESTIGAÇÃO EM CURSO)<br />
N.º 27: Sociedade civil e monitoria do orçamento público (2009)<br />
Paolo de Renzio<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_27.pdf<br />
N.º26: A relatividade da pobreza absoluta e segurança social em Moçambique (2009)<br />
António Francisco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_26.pdf<br />
N.º 25: Quão fiável é a análise de sustentabilidade da dívida externa de Moçambique? Uma análise<br />
crítica dos indicadores de sustentabilidade da dívida externa de Moçambique (2009)<br />
Rogério Ossemane<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_25.pdf<br />
N.º 24: Sociedade civil em Moçambique e no Mundo (2009)<br />
António Francisco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_24.pdf<br />
N.º 23: Acumulação de reservas cambiais e possíveis custos derivados — Cenário em Moçambique<br />
(2009)<br />
Sofia Amarcy<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_23.pdf<br />
N.º 22: Uma análise preliminar das eleições de 2009 (2009)<br />
Luis de Brito<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_22.pdf<br />
N.º 21: Pequenos provedores de serviços e remoção de resíduos sólidos em Maputo (2009)<br />
Jeremy Grest<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_21.pdf<br />
N.º 20: Sobre a transparência eleitoral (2009)<br />
Luís de Brito<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_20.pdf<br />
354 Desafios para Moçambique 2010
N.º 19: “O inimigo é o modelo”! Breve leitura do discurso político da Renamo (2009)<br />
Sérgio Chichava<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_19.pdf<br />
N.º 18: Reflexões sobre Parcerias Público-Privadas no Financiamento de Governos Locais (2009)<br />
Eduardo Jossias Nguenha<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_18.pdf<br />
N.º 17: Estratégias individuais de sobrevivência de mendigos na cidade de Maputo: Engenhosidade<br />
ou perpetuação da pobreza? (2009)<br />
Emílio Dava<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_17.pdf<br />
N.º 16: A primeira Reforma Fiscal Autárquica em Moçambique (2009)<br />
Eduardo Jossias Nguenha<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_16.pdf<br />
N.º 15: Protecção social no contexto da bazarconomia de Moçambique (2009)<br />
António Francisco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_15.pdf<br />
N.º 14: A Terra, o desenvolvimento comunitário e os projectos de exploração mineira (2009)<br />
Virgílio Cambaza<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_14.pdf<br />
N.º 13: Moçambique: de uma economia de serviços a uma economia de renda (2009)<br />
Luís de Brito<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_13.pdf<br />
N.º 12: Armando Guebuza e a pobreza em Moçambique (2009)<br />
Sérgio Inácio Chichava<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_12.pdf<br />
N.º 11: Recursos naturais, meio ambiente e crescimento sustentável (2009)<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/ideias/Ideias_11.pdf<br />
N.º 10: Indústrias de recursos naturais e desenvolvimento: Alguns comentários (2009)<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/ideias/Ideias_10.pdf<br />
N.º 9: Informação estatística na investigação: Contribuição da investigação e organizações de<br />
investigação para a produção estatística (2009)<br />
Rosimina Ali, Rogério Ossemane e Nelsa Massingue<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_9.pdf<br />
Desafios para Moçambique 2010 355
N.º 8: Sobre os votos nulos (2009)<br />
Luís de Brito<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_8.pdf<br />
N.º 7: Informação estatística na investigação: Qualidade e metodologia (2008)<br />
Nelsa Massingue, Rosimina Ali e Rogério Ossemane<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/ideias/Ideias_7.pdf<br />
N.º 6: Sem surpresas: Abstenção continua maior força política na reserva em Moçambique…<br />
Até quando? (2008)<br />
António Francisco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_6.pdf<br />
N.º 5: Beira — O fim da Renamo? (2008)<br />
Luís de Brito<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/ideias/Ideias_5.pdf<br />
N.º 4: Informação estatística oficial em Moçambique: O acesso à informação (2008)<br />
Rogério Ossemane, Nelsa Massingue e Rosimina Ali<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/ideias/Ideias_4.pdf<br />
N.º 3: Orçamento participativo: um instrumento da democracia participativa (2008)<br />
Sérgio Inácio Chichava<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_3.pdf<br />
N.º 2: Uma nota sobre o recenseamento eleitoral (2008)<br />
Luís de Brito<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_2.pdf<br />
N.º 1: Conceptualização e Mapeamento da Pobreza (2008)<br />
António Francisco e Rosimina Ali<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_1.pdf<br />
RELATÓRIOS DE PESQUISA CONTRATADA<br />
Mozambique Independent Review of PAF’s Performance in 2008 and Trends in PAP’s Performance<br />
over the Period 2004-2008. (2009)<br />
Carlos Nuno Castel-Branco, Rogério Ossemane, Nelsa Massingue and Rosimina Ali.<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/PAPs_2008_eng.pdf<br />
(também disponível em versão em língua Portuguesa no link http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/PAPs_2008_port.pdf).<br />
Mozambique Programme Aid Partners Performance Review 2007. (2008)<br />
Carlos Nuno Castel-Branco, Carlos Vicente and Nelsa Massingue<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/PAPs_PAF_2007.pdf<br />
356 Desafios para Moçambique 2010
COMUNICAÇÕES, APRESENTAÇÕES E COMENTÁRIOS<br />
Comentários ao relatório “Alguns desafios da indústria extractiva”, de Thomas Selemane (2009)<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ComentariosdeCastelBranco-RelCIP.pdf<br />
Algumas Considerações Críticas sobre o Relatório de Auto-avaliação de Moçambique na<br />
Área da "Democracia e Governação Política". (2008)<br />
Luis de Brito, Sérgio Inácio Chichava e Jonas Pohlmann<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/MARP_rev_3.pdf<br />
Estado da Nação – pontos que o Presidente da República deveria abordar no seu discurso no<br />
Parlamento Moçambicano. (2008)<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/Pontos_para_a_entrevista_sobre_estado_da_nacao.pdf<br />
Os megaprojectos em Moçambique: que contributo para a economia nacional? (2008)<br />
Comunicação apresentada no Fórum da Sociedade Civil sobre a Indústria Extractiva. Maputo.<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/Mega_Projectos_ForumITIE.pdf<br />
As consequências directas das crises no panorama nacional moçambicano (2008)<br />
Comunicação apresentada na IV Conferência Económica do Millennium BIM “Os efeitos das 3<br />
crises — financeira, produtos alimentares e petróleo — sobre as economias de África e de Moçambique<br />
em particular”. 4 de Dezembro. Maputo.<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/noticias/2009/Texto_BIM_2008.pdf<br />
Alternativas africanas ao desenvolvimento e ao impacto da globalização – Notas críticas Soltas<br />
(2007)<br />
Comunicação apresentada na mesa redonda “Alternativas africanas ao desenvolvimento e ao impacto<br />
da globalização”, 1.º Encontro Académico Espanha-Moçambique “Estudos Africanos:<br />
Perspectivas Actuais”, 14-15 de Novembro de 2007, organizado pelo Centro de Estudos Africanos<br />
da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. Também publicada sob o título “Os interesses<br />
do Capital em África” na revista Sem Terra, n.º 49 (Março/Abril de 2009), São Paulo.<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/Alternativas%20africanas_CEA_UEM.pdf<br />
Banco Mundial e a Agricultura, Uma discussão crítica do Relatório do Desenvolvimento<br />
Mundial 2008 – Comentário crítico apresentado no lançamento do RDM 2008 em Moçambique.<br />
(2007)<br />
Carlos Nuno Castel-Branco<br />
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/Banco%20Mundial%20lanca%20relatorio%20sobre%20<br />
Agricultura.pdf<br />
Desafios para Moçambique 2010 357