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O controle da natureza e as origens da dicotomia entre fato e valor

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Pablo Rubén Maricon<strong>da</strong><br />

que não é outra coisa que levar a sério a questão <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de social do cientista<br />

e, em nossa época, do tecnólogo. Para tanto, é preciso colocar em questão a tese <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> ciência, segundo a qual os resultados científicos (seja na concepção <strong>da</strong> pesquisa<br />

– na escolha <strong>da</strong> estratégia que a presidirá –, seja em sua aplicação tecnológica)<br />

são neutros com relação aos interesses e aos <strong>valor</strong>es. Ela não pode ser aceita sem qualificações<br />

e restrições e deve ser considera<strong>da</strong> à luz de precauções epistemológic<strong>as</strong> e<br />

étic<strong>as</strong>. Dito de outro modo, não se sustenta a tese de que aquilo que é científico é ipso<br />

facto bom, independentemente dos interesses e <strong>valor</strong>es que possam estar envolvidos,<br />

por exemplo, no financiamento que possibilitou a condução <strong>da</strong>quele tipo de pesquisa.<br />

Tampouco a tecnologia é neutra no sentido de beneficiar <strong>as</strong> comuni<strong>da</strong>des human<strong>as</strong> independentemente<br />

de su<strong>as</strong> perspectiv<strong>as</strong> de <strong>valor</strong> ou de su<strong>as</strong> condições sociais. Ou, numa<br />

formulação de máxima generali<strong>da</strong>de, não é possível sustentar uma <strong>dicotomia</strong> <strong>entre</strong> <strong>fato</strong><br />

e <strong>valor</strong>, uma separação estrita <strong>entre</strong> o domínio <strong>da</strong> determinação <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e o domínio<br />

dos negócios, <strong>da</strong> política e do direito, nos quais são constituídos os <strong>valor</strong>es sociais.<br />

Os <strong>valor</strong>es devem ser levados em conta para a constituição de prátic<strong>as</strong> científic<strong>as</strong> ao<br />

mesmo tempo mais eficazes e mais just<strong>as</strong>, no âmbito <strong>da</strong>s ações responsáveis.<br />

O segundo comentário visa chamar a atenção para o efeito causado pelo predomínio<br />

do <strong>valor</strong> de <strong>controle</strong> <strong>da</strong> <strong>natureza</strong>, e a conseqüente aceleração do progresso científico-tecnológico,<br />

sobre <strong>as</strong> fronteir<strong>as</strong> <strong>entre</strong> o natural e o artificial (<strong>natureza</strong>/arte<strong>fato</strong>),<br />

produzindo, em conseqüência, profun<strong>da</strong>s alterações na concepção de <strong>natureza</strong> humana.<br />

O <strong>controle</strong> <strong>da</strong> <strong>natureza</strong> significou o <strong>controle</strong> dos objetos naturais a tal ponto que, no<br />

c<strong>as</strong>o <strong>da</strong> nanotecnologia, fabrica os próprios objetos, inclusive enti<strong>da</strong>des auto-replicáveis,<br />

a partir de sua própria montagem atômica ou, no c<strong>as</strong>o <strong>da</strong> biotecnologia, produzse<br />

um novo ser vivo por modificação <strong>da</strong> estrutura genética. Muitos afirmam que os organismos<br />

vivos são, na ver<strong>da</strong>de, máquin<strong>as</strong> biológic<strong>as</strong> (arte<strong>fato</strong>s), químico-moleculares.<br />

Objetos como esses são de difícil cl<strong>as</strong>sificação, pois são arte<strong>fato</strong>s (não existiriam espontaneamente<br />

na <strong>natureza</strong> se não fossem produzidos segundo um plano externo –<br />

heterônomo), m<strong>as</strong>, uma vez construídos, podem ter uma vi<strong>da</strong> autônoma, reproduzindose,<br />

nutrindo-se, isto é, tendo to<strong>da</strong>s <strong>as</strong> característic<strong>as</strong> de um ser vivo autônomo. A essa<br />

dificul<strong>da</strong>de de saber o que é <strong>natureza</strong>, o que é arte<strong>fato</strong>, <strong>as</strong>socia-se outra: a <strong>da</strong> profun<strong>da</strong><br />

modificação no próprio conceito de <strong>natureza</strong> humana. Foi a biologia evolucionista do<br />

final do século xix que chegou ao resultado científico de que os humanos são uma espécie<br />

animal, naturalizando o homem, que acaba <strong>as</strong>sim também sendo objetivado. M<strong>as</strong><br />

então também o ser humano é uma máquina biológica, um arte<strong>fato</strong> físico-químico do<br />

qual a biologia pretende que em breve terá o plano genético. Não é surpreendente, portanto,<br />

que se tenha tornado usual a designação de pós-humano para esses seres projetados<br />

pela engenharia genética. De qualquer modo, <strong>as</strong> possibili<strong>da</strong>des de intervenção<br />

cria<strong>da</strong>s pelo desenvolvimento <strong>da</strong> biotecnologia e <strong>da</strong> engenharia genética, que pode-<br />

470<br />

scientiæ zudia, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 453-72, 2006

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