O controle da natureza e as origens da dicotomia entre fato e valor
O controle da natureza e as origens da dicotomia entre fato e valor
O controle da natureza e as origens da dicotomia entre fato e valor
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Pablo Rubén Maricon<strong>da</strong><br />
lógica de 1613-1616 e no Prefácio do Tratado do vazio de P<strong>as</strong>cal. 3 Galileu e P<strong>as</strong>cal são os<br />
autores que mais claramente separam <strong>as</strong> disciplin<strong>as</strong> científic<strong>as</strong> (que visam o conhecimento<br />
<strong>da</strong> <strong>natureza</strong>) e <strong>as</strong> disciplin<strong>as</strong> morais (que, na visão de ambos, ain<strong>da</strong> fortemente<br />
limita<strong>da</strong> pela ortodoxia católica, visam a salvação). Assim, a distinção <strong>entre</strong> <strong>fato</strong> e <strong>valor</strong><br />
está claramente suposta no pleito de autonomia <strong>da</strong> ciência matemática <strong>da</strong> <strong>natureza</strong> formulado<br />
por Galileu, por exemplo, na carta de 1613 a Benedetto C<strong>as</strong>telli; pleito segundo<br />
o qual <strong>as</strong> ciênci<strong>as</strong> naturais possuem um método b<strong>as</strong>eado na experiência e na matemática<br />
que é suficiente para decidir acerca <strong>da</strong>s questões naturais independentemente <strong>da</strong><br />
autori<strong>da</strong>de teológica. Além disso, <strong>da</strong>do que, para Galileu, o método está b<strong>as</strong>eado na<br />
razão natural (sentidos, intelecto e linguagem), que é a única que os seres humanos<br />
possuem, o conhecimento científico tem vali<strong>da</strong>de universal e deve ser tomado em conta<br />
pela teologia na elaboração de interpretações <strong>da</strong>s p<strong>as</strong>sagens bíblic<strong>as</strong> que se referem a<br />
acontecimentos naturais (Galilei, 1932 [1613], p. 282). A <strong>dicotomia</strong> está, portanto,<br />
subjacente à defesa explícita que Galileu faz <strong>da</strong> autonomia <strong>da</strong> ciência com relação à<br />
esfera <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de teológica e filosófica (que mantinha a hierarquia dos <strong>valor</strong>es dominantes<br />
na cultura barroca e contra-reformista) e, particularmente, na clara afirmação<br />
<strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão na confirmação dos <strong>fato</strong>s naturais e na tese conseqüente<br />
<strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>de do conhecimento científico sobre todo conhecimento de tipo moral.<br />
P<strong>as</strong>cal, tal como Galileu, reconhece a existência de dois conjuntos de disciplin<strong>as</strong><br />
autônom<strong>as</strong>: <strong>as</strong> disciplin<strong>as</strong> naturais e <strong>as</strong> disciplin<strong>as</strong> morais.<br />
Para fazer essa importante distinção com atenção deve-se considerar que algum<strong>as</strong><br />
[disciplin<strong>as</strong>] dependem somente <strong>da</strong> memória e são puramente históric<strong>as</strong>,<br />
não tendo outro objeto que saber o que os autores escreveram; outr<strong>as</strong> dependem<br />
unicamente do raciocínio, e são inteiramente dogmátic<strong>as</strong>, tendo por objeto procurar<br />
descobrir <strong>as</strong> ver<strong>da</strong>des escondi<strong>da</strong>s (P<strong>as</strong>cal, 1998a, p. 452; grifos meus).<br />
A seguir, P<strong>as</strong>cal põe a história, a geografia, a jurisprudência, <strong>as</strong> língu<strong>as</strong> e a teologia<br />
<strong>entre</strong> <strong>as</strong> disciplin<strong>as</strong> n<strong>as</strong> quais se procura somente saber o que os autores escreveram,<br />
reconhecendo que ness<strong>as</strong> disciplin<strong>as</strong> “é somente a autori<strong>da</strong>de que nos pode esclarecer.<br />
M<strong>as</strong> onde essa autori<strong>da</strong>de tem a principal força é na teologia, porque esta é<br />
3 O uso <strong>da</strong> <strong>dicotomia</strong> <strong>entre</strong> <strong>as</strong> esfer<strong>as</strong> dos <strong>fato</strong>s e dos <strong>valor</strong>es pode ser discernido em um pequeno conjunto de cart<strong>as</strong><br />
importantes que Galileu escreveu sobre a questão <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pesquisa científica frente ao princípio de autori<strong>da</strong>de,<br />
a saber, a carta de Galileu a Benedeto C<strong>as</strong>telli de 21 de dezembro de 1613; du<strong>as</strong> cart<strong>as</strong> a monsenhor Piero Dini de 16<br />
de fevereiro e 23 de março de 1615 e, finalmente, a carta a senhora Cristina de Lorena, grã-duquesa de Toscana, de<br />
1615 9 (cf. EN, 5, p. 261-425; N<strong>as</strong>cimento, 1988). Por outro lado, para <strong>as</strong> posições de Blaise P<strong>as</strong>cal, há dois documentos<br />
importantes: o Prefácio do Tratado do vazio e a 18a Provincial (cf. P<strong>as</strong>cal, 1998a; 1998b).<br />
458<br />
scientiæ zudia, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 453-72, 2006