download da revista completa (pdf - 10.778 Kb) - Abralic
download da revista completa (pdf - 10.778 Kb) - Abralic
download da revista completa (pdf - 10.778 Kb) - Abralic
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Diretoria A B R A L I C 2005/06<br />
Presidente José Luís Jobim (UERJ/UFF)<br />
Vice-presidente Lívia Reis (UFF)<br />
1 ° Secretário Antonio Carlos Secchin (UFRJ)<br />
2° Secretário João Cezar de Castro Rocha (UERJ)<br />
1 ° Tesoureiro Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ)<br />
2 0 Tesoureira Claudia Maria Pereira de Almei<strong>da</strong> (UERJ)<br />
Conselho<br />
Audemaro Taranto Goulart (PUC/MG)<br />
Eduardo Coutinho (UFRJ)<br />
Gil<strong>da</strong> Neves Bittencourt (UFRGS)<br />
Ivia Iracema Duarte Alves (UFBA)<br />
Maria Cecília Queirós de Moraes Pinto (USP)<br />
Maria Eunice Moreira (PUC/RS)<br />
Reinaldo Martiniano Marques (UFMG)<br />
Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)<br />
Suplentes<br />
Márcia Abreu (UNICAMP)<br />
Tania Regina Oliveira Ramos (UFSC)<br />
Conselho editorial<br />
Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Enei<strong>da</strong> Maria de Souza,<br />
João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar,<br />
Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago,<br />
Sonia Brayner, Tania Franco Carvalho!, Yves Chevrel.<br />
ABRALIC<br />
C.G.C.04901271/0001-79<br />
Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)<br />
Instituto de Letras<br />
Rua São Francisco Xavier 524, 11 0 an<strong>da</strong>r - CEP 20559-900<br />
Bairro Maracanã - Rio de Janeiro 1 RJ<br />
Fone/Fax: (21) 2587-7313<br />
E-mail: abrallc@terra.com.br
4 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
© 2006 Associação Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong><br />
A Revista Brasileira de Literatura compara<strong>da</strong> (ISSN- Dl 03-6963J é uma<br />
publicação anual <strong>da</strong> Associação Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong><br />
(<strong>Abralic</strong>J, enti<strong>da</strong>de civil de caráter cultural que congrega prOfessores<br />
universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Compara<strong>da</strong>,<br />
fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em Porto Alegre, em 1986.<br />
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta <strong>revista</strong> poderá ser<br />
reproduzi<strong>da</strong> ou transmiti<strong>da</strong>, sejam quais forem os meios empregados,<br />
sem permissão por escrito,<br />
Editores<br />
José Luís Jobim<br />
Lívia Reis<br />
Antonio Carlos Secchin<br />
João Cezar de Castro Rocha<br />
Roberto Acízelo de Souza<br />
Claudia Maria Pereira de Almei<strong>da</strong><br />
Formatação e<br />
produção gráfica<br />
Tiragem<br />
Casa Doze Projetos & Edições<br />
2000 exemplares<br />
Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong> / Associação<br />
Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong> - v,l, n,l (1991 ),<br />
Rio de Janeiro: <strong>Abralic</strong>, 1991-<br />
v, ,n,9, 2006<br />
ISSN 0103-6963<br />
1 , Literatura compara<strong>da</strong> - Periódicos, I. Associação<br />
Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>,<br />
CDD 809,005<br />
CDU 82,091 (05)
5<br />
A <strong>revista</strong> e o X Congresso Internacional<br />
<strong>da</strong> ABRALlC<br />
José Luís Jobim<br />
Lívia Reis<br />
Antonio Carlos Secchin<br />
João Cezar de Castro Rocha<br />
Roberto Acízelo de Souza<br />
Claudia Maria Pereira de Almei<strong>da</strong><br />
editores<br />
Este segundo número <strong>da</strong> Revista Brasileira de Literatura<br />
Compara<strong>da</strong>, editado em nossa gestão, aponta para a possibili<strong>da</strong>de<br />
de nos igualarmos ao patamar desejado pela CAPES, de <strong>da</strong>r ênfase<br />
aos periódicos científicos que tenham periodici<strong>da</strong>de no mínimo<br />
bianual nas avaliações do QUALIS.<br />
O lançamento desta edição no X Congresso Internacional<br />
<strong>da</strong> ABRALIC, realizado entre 31 de julho e 4 de agosto de 2006,<br />
na Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro - em promoção<br />
conjunta com a Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense e a Universi<strong>da</strong>de<br />
Federal do Rio de Janeiro - faz parte também <strong>da</strong>s comemorações<br />
referentes aos 20 anos de ativi<strong>da</strong>des ininterruptas de nossa<br />
associação, como não poderia deixar de ser.<br />
Agradecemos aos pesquisadores de todo o país e do exterior<br />
que responderam ao callfor papers, e não podemos deixar de<br />
dizer que gostaríamos de ter mais espaço para acolher ain<strong>da</strong> mais<br />
artigos do que o já elevado número que ora publicamos. De todo<br />
modo, a própria diversi<strong>da</strong>de dos articulistas que contribuem para<br />
este número é uma comprovação expressiva <strong>da</strong> importância nacional<br />
e internacional desta nossa Revista, e um fato a ser celebrado.<br />
Agradecemos também aos nossos pareceristas ad hoc, que<br />
trabalharam muito e em tempo recorde, para que pudéssemos lançar<br />
este número ain<strong>da</strong> em nosso evento de 2006.<br />
Quanto ao evento em si, foi no período entre 31 de julho e<br />
04 de agosto de 2006 que se realizou o X Congresso <strong>da</strong> ABRALIC,
6 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
na Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro, envolvendo professores<br />
e pesquisadores do Brasil inteiro e do estrangeiro, e contando<br />
com mais de 2.000 inscritos.<br />
É sempre bom lembrar que a ABRALIC foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em<br />
1986, na UFRGS, <strong>completa</strong>ndo assim 20 anos em 2006. Desde<br />
então, promoveu 10 congressos e 10 encontros regionais, nas seguintes<br />
Universi<strong>da</strong>des: UFRGS, UFMG, UFF, USP, UFRJ, UFSC,<br />
UFBa, UFMG e UERJ. Seus últimos dois congressos (UFMG e<br />
UFRGS) reuniram, ca<strong>da</strong> um, cerca de 1.700 professores e pesquisadores.<br />
Hoje, a ABRALIC é a associação científica mais antiga e<br />
com maior destaque na nossa área, e a maior associação de estudos<br />
literários <strong>da</strong> América Latina. Sua diretoria é eleita bianualmente,<br />
compondo-se de 6 pesquisadores/docentes (na atual, seus membros<br />
são <strong>da</strong> VERJ, UFF e UFRJ), responsáveis por to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong>des<br />
no biênio. Há também um Conselho, integrado por ex-presidentes<br />
e por pesquisadores de destaque na área, que dialoga<br />
com a diretoria, nos assuntos de interesse <strong>da</strong> ABRALIC.<br />
O X Congresso Internacional <strong>da</strong> ABRALIC discutiu o local,<br />
o regional, o Ilacional, o inter-nacional, o planetário: lugares<br />
dos discursos literários e culturais, e teve como subtemas:<br />
Lugares dos discursos literários e culturais. Construção de identi<strong>da</strong>des:<br />
local, regional, nacional, internacional, étnica, sexual,<br />
lingüística, religiosa, de classe, de grupo. Centro e periferia. Metrópole<br />
e colônia. O colonial e o pós-colonial. Herança ibérica e<br />
Novo Mundo. Relações culturais e blocos transnacionais<br />
(MERCOSUL e União Européia). Exceção cultural e<br />
globalização. Homogenei<strong>da</strong>de e heterogenei<strong>da</strong>de. Políticas culturais<br />
nacionais e internacionais. Interseções, compartilhamentos,<br />
articulações, singulari<strong>da</strong>des, diferenças, assimetrias e hierarquias<br />
nos fluxos literários e culturais. Quadros de referência <strong>da</strong> circulação<br />
e aquisição do saber cultural e literário. As teorias e seus<br />
lugares de enunciação. Modos de ver, modos de julgar, descrições<br />
e prescrições.<br />
Como "lugar" acabou sendo a palavra-chave que presidiu<br />
tanto o Encontro Regional <strong>da</strong> ABRALIC-2005 quanto este X Congresso<br />
Internacional <strong>da</strong> ABRALIC, convém aqui reiterar a nossa<br />
concepção deste termo:<br />
"Um lugar é, antes de mais na<strong>da</strong>, uma construção elabora<strong>da</strong>
A <strong>revista</strong> e o X Congresso Internacional <strong>da</strong> ABRALIC<br />
7<br />
I Jobim, J.L. ABRALIC:<br />
Sentidos do seu lugar. Rev.<br />
Brasileira de Literatura<br />
Compara<strong>da</strong>, Rio de Janeiro, 8,<br />
p. 95-112, 2006.<br />
por várias gerações de homens e mulheres que nele habitaram<br />
ou por ele passaram, e que aju<strong>da</strong>ram a formular o sentido que<br />
tem. Ele é constituído por redes públicas de sentido, formadoras<br />
de subjetivi<strong>da</strong>de. Nele se constituem interpretações públicas<br />
simbolicamente media<strong>da</strong>s, inclusive sobre o sentido deste<br />
lugar e sobre o que significa estar inserido nele. Num lugar,<br />
circulam elementos que de algum modo impõem sentido às<br />
experiências singulares dos sujeitos, elementos em relação aos<br />
quais estes sujeitos interpretam suas experiências (e os textos<br />
que lêem), bem como direcionam suas ações. Em outras palavras,<br />
o lugar é sempre fonte de pré-concepções que de alguma<br />
maneira contribuem para a elaboração de nosso dizer, pois<br />
nele se situa o sistema de referências deste dizer - incluindo<br />
determinado universo de temas, interesses, termos etc. -, sistema<br />
que sempre já estabelece um limite dentro do qual nosso<br />
campo de enunciação se circunscreve. Lugares têm sempre<br />
história, e mesmo o apagamento de certos elementos<br />
constitutivos <strong>da</strong> história do lugar também é decorrente de razões<br />
históricas." 1<br />
Mais do que nunca, hoje, faz-se necessário estu<strong>da</strong>r as correlações<br />
entre os lugares e os discursos literários e culturais, gerando<br />
construções de to<strong>da</strong> ordem, deriva<strong>da</strong>s não só de relações políticas<br />
assimétricas, mas também de todo um quadro complexo de interseções,<br />
compartilhamentos, articulações, singulari<strong>da</strong>des, diferenças,<br />
assimetrias e hierarquias nos fluxos literários e culturais.<br />
Com o evento de 2006, pretendemos, entre outras coisas:<br />
1) Dar prosseguimento ao trabalho acadêmico que até o presente<br />
momento vem caracterizando o perfil <strong>da</strong> Associação Brasileira de<br />
Literatura Compara<strong>da</strong> (isto é, situar o estudo <strong>da</strong> Literatura em<br />
relação a problemas teóricos fun<strong>da</strong>mentais para a discussão do<br />
quadro de referências em que se situam estes estudos, bem como<br />
em relação a pesquisas desenvolvi<strong>da</strong>s em outras áreas <strong>da</strong>s Ciências<br />
Humanas); 2) Buscar uma maior integração acadêmica entre os<br />
associados, objetivando gerar novos projetos e parcerias interuniversitárias,<br />
a partir <strong>da</strong> realização dos simpósios temáticos e <strong>da</strong><br />
sinergia gera<strong>da</strong> pelo congresso; 3) Oferecer uma contribuição reflexiva<br />
em relação aos quadros de referência que delimitam fluxos<br />
literários e culturais; 4) Incentivar a emergência de novas parcerias<br />
e projetos entre pesquisadores <strong>da</strong> área; 5) Enfocar as mais recentes<br />
teorias e projetos sobre o tema do Encontro, destacando a
8 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
ativi<strong>da</strong>de literária e seu papel de ver<strong>da</strong>deira intersecção entre as<br />
diversas áreas de conhecimento, perspectiva que mantém o caráter<br />
multidisciplinar dos eventos <strong>da</strong> ABRALIC.<br />
Tivemos a presença dos seguintes pesquisadores, como conferencistas<br />
convi<strong>da</strong>dos do X Congresso <strong>da</strong> ABRALIC, todos com<br />
reconheci<strong>da</strong> qualificação e produção acadêmica: Ana Pizarro (Universi<strong>da</strong>de<br />
de Santiago de Chile), Benjamin Ab<strong>da</strong>llaJr. (USP), Edson<br />
Rosa <strong>da</strong> Silva (UFRJ), Eduardo Portella (ABL), Hans Ulrich<br />
Gumbrecht (Stanford University), Lucia Helena (UFF), Luiz Costa<br />
Lima (UERJ), Eduardo Coutinho (UFRJ), Pablo Rocca<br />
(Universi<strong>da</strong>d de la República - Uruguai), Jean-Marc Moura<br />
(Université de Lille), Luisa Campuzano (Universi<strong>da</strong>de de Havana),<br />
Patrick Imbert (Universi<strong>da</strong>de de Ottawa), Regina Zilberman<br />
(PUC-RS), Reinaldo Martiniano Marques (UFMG), Silvano Peloso<br />
(Universi<strong>da</strong>de de Roma - La Sapienza), Zilá Bernd (UFRGS).<br />
Ressalte-se que a publicação em livro <strong>da</strong>s conferências, a<br />
exemplo do que ocorreu com as palestras do Encontro Regional<br />
<strong>da</strong> ABRALIC-2006, permitirá a um público mais amplo o acesso<br />
ao resultado do evento.<br />
As ativi<strong>da</strong>des, em todos os dias do congresso, foram distribuí<strong>da</strong>s<br />
em mesas-redon<strong>da</strong>s, na parte <strong>da</strong> manhã e ao final <strong>da</strong> tarde,<br />
<strong>da</strong> qual participaram os pesquisadores convi<strong>da</strong>dos, e em Simpósios,<br />
organizados por Professores e pesquisadores, selecionados pela<br />
Comissão Organizadora. O Encontro teve o total de 10 (dez)<br />
mesas-redon<strong>da</strong>s, ca<strong>da</strong> uma com 2 (dois) conferencistas, e 71 (setenta<br />
e um) Simpósios, funcionando em um turno (manhã ou tarde),<br />
durante os dias do evento.<br />
Três universi<strong>da</strong>des participam diretamente <strong>da</strong> organização desse<br />
Encontro: Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),<br />
sede do evento, Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense (UFF) e Universi<strong>da</strong>de<br />
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A Diretoria <strong>da</strong> ABRALIC<br />
foi responsável pela organização, junto com uma Comissão<br />
Organizadora mais ampla, composta dos seguintes nomes: José Luís<br />
Jobim (UERJIUFF); Lívia Reis (UFF); Antonio Carlos Secchin<br />
(UFRJ); João Cezar de Castro Rocha (UERJ); Roberto Acízelo<br />
Quelha de Souza (UERJIUFF); Claudia Maria Pereira de Almei<strong>da</strong><br />
(UERJ); Carlin<strong>da</strong> Fragale Pate Nunez (UERJ); Ana Lúcia de Souza<br />
Henriques (UERJ); Roberto Mibielli (UFRR); Luiz Edmundo<br />
Bouças Coutinho (UFRJ); Fernando Casaes (UERJ)
A <strong>revista</strong> e o X Congresso Internacional <strong>da</strong> ABRALIC<br />
9<br />
Além dos acima nomeados, contamos com 54 monitores, indispensáveis<br />
para tornar possível a realização do X Congresso Internacional<br />
<strong>da</strong> ABRALIC. Agradecemos a eles e a todos aqueles<br />
cujo trabalho foi fun<strong>da</strong>mental para o sucesso do empreendimento.<br />
Para terminar, gostaríamos de chamar a atenção sobre o novo<br />
sistema de envio de todos os textos completos <strong>da</strong>s comunicações a<br />
serem apresenta<strong>da</strong>s em ca<strong>da</strong> simpósio, para publicarmos, de modo<br />
que, no primeiro dia do Congresso, ca<strong>da</strong> participante pudesse receber,<br />
junto com o material do congresso, os anais, com a sua comunicação<br />
já publica<strong>da</strong>.<br />
Este novo procedimento permitiu que os coordenadores de<br />
simpósios, a seu critério, pudessem fazer apenas a discussão dos<br />
trabalhos, já que estes estavam disponíveis bem antes do evento.<br />
Este é um novo procedimento, já que o próprio formato dos congressos<br />
de nossa área não beneficia um possível aprofun<strong>da</strong>mento<br />
crítico dos temas e objetos pesquisados, pois a estrutura básica de<br />
nossos congressos consiste em apresentações de cerca de 20 minutos,<br />
sem discussão posterior - ou, pelo menos, sem uma discussão<br />
que mereça, até pelo tempo a ela dedicado, ser considera<strong>da</strong> como<br />
relevante. Assim, planejar eventos nos quais, ao invés de se levarem<br />
papers que são lidos sem discussão, se possa introduzir a prática de<br />
disponibilizar os textos anteriormente para, durante o evento, dedicar-se<br />
apenas a discutir o que antes foi disponibilizado, pode levar a<br />
um maior adensamento geral <strong>da</strong>s argumentações desenvolvi<strong>da</strong>s sobre<br />
os diversos temas, pois o debate, inclusive com a verbalização<br />
de opiniões contrárias, obriga ao acuramento de posições. Ressalte-se<br />
que tanto a decisão sobre a disponibilização e circulação (ou<br />
não) dos textos antes do evento (por exemplo, através de anexos<br />
em e-mails para os participantes dos simpósios) quanto a sua forma<br />
de apresentação ou discussão no próprio evento foram decisões<br />
does) próprio(s) coordenador(es) de ca<strong>da</strong> simpósio.<br />
A todos os sócios e participantes do X Congresso Internacional<br />
<strong>da</strong> ABRALIC, nossos agradecimentos por sua contribuição.
Sumário<br />
A <strong>revista</strong> e o X Congresso Internacional 5<br />
<strong>da</strong> ABRALlC<br />
Artigos<br />
A formação, os deslocamentos: modos de escrever<br />
a história literária brasileira<br />
Joana Luíza Muylaert 1 3<br />
Antonio Candido e o projeto de Brasil<br />
Regina Zilberman 35<br />
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX<br />
Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos 49<br />
A crônica na imprensa periódica oitocentista:<br />
Machado de Assis e a formação do público leitor<br />
Patrícia Kátia <strong>da</strong> Costa Pina 65<br />
O marido <strong>da</strong> adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias<br />
de publicação de um romance como folhetim<br />
Socorro de Fátima Pacífico Vilar 79<br />
De São Paulo aI Aconcagua: una trayetoria latino americana<br />
para Monteiro Lobato<br />
Marisa Lajolo 99<br />
Euclides <strong>da</strong> Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos<br />
Délia Cambeiro 1 07<br />
Matériaux pour une étude de la réception de la littérature<br />
brésilienne en France<br />
Pierre Rivas 1 29<br />
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos<br />
trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista<br />
Andréa Borges Leão 141<br />
Os cadernos de campo de Roger Bastide:<br />
entrecruzamentos múltiplos<br />
Maria de Lourdes Patrini-Charlon 161<br />
Da representação do horror ao vazio <strong>da</strong> representação<br />
Edson Rosa <strong>da</strong> Silva 1 81
12 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
A literatura e a virtualização do texto literário<br />
Rogério Lima 191<br />
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais<br />
Ana Cláudia Viegas 213<br />
O hipotexto de N 011<br />
Luiz Gonzaga Marchezan 229<br />
Outras palavras: o Catatau de Paulo Leminski em três tempos<br />
Marília Librandi Rocha 243<br />
Narrar ou perecer: Sérgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes<br />
Ângela Maria Dias 259<br />
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de<br />
Harotdo de Campos- a Gius-eppe Ungaretti<br />
Maria Luíza Berwanger <strong>da</strong> Silva 269<br />
As ironias <strong>da</strong> ordem: Carlos Drummond de Andrade<br />
e Fernando Pessoa<br />
Maria Esther Maciel 283<br />
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado<br />
Thais Flores Nogueira Diniz 293<br />
Luuan<strong>da</strong> 40 anos: a força <strong>da</strong>s palavras mais velhas<br />
Laura Cavalcante Padilha 307<br />
Resenhas<br />
Dom Quixote: utopias<br />
André Trouche e Lívia Reis, org.<br />
Rodrigo F. Labriola 323<br />
Conceitos de literatura e cultura<br />
Eurídice Figueiredo, org.<br />
Maisa Navarro 327<br />
Jacques Derri<strong>da</strong>: pensar a desconstrução<br />
Evando Nascimento, org<br />
Carla Rodrigues 330<br />
História. Ficção. Literatura.<br />
Luiz Costa Lima<br />
Sérgio Alcides 336<br />
Apresentação dos autores 345
As relações entre culturas literárias diversas têm recebido<br />
<strong>da</strong> crítica brasileira contemporânea tratamentos distintos, conforme<br />
o ponto de vista teórico inseparável <strong>da</strong>s escolhas do crítico e<br />
<strong>da</strong> sua sensibili<strong>da</strong>de para certos temas, autores e textos, e não<br />
outros. Mas, como se sabe, nem sempre a natureza provisória e<br />
inacaba<strong>da</strong> <strong>da</strong>s interpretações é assumi<strong>da</strong> explicitamente nos textos<br />
de críticos e historiadores <strong>da</strong> literatura. A pergunta que então<br />
proponho, neste trabalho, refere-se à possibili<strong>da</strong>de de se postular<br />
histórias <strong>da</strong> literatura brasileira orienta<strong>da</strong>s para os vazios, para as<br />
rupturas do que se estabilizou como sistema nacional coerente e<br />
orgânico, cristalizando-se assim um certo modo de perceber a<br />
tradição ou a formação de textos canônicos brasileiros.<br />
Em síntese, a proposta também poderia ser nos termos, a<br />
seguir, formula<strong>da</strong>: compreendendo a formação <strong>da</strong> literatura brasileira<br />
não como linha evolutiva de uma identi<strong>da</strong>de essencialista e<br />
original a ser revela<strong>da</strong>, mas como imagem construí<strong>da</strong> no cruzamento<br />
<strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de dos diversos intérpretes, passaríamos<br />
então a identificar váriasformações <strong>da</strong> literatura brasileira, tantas<br />
quantas propuseram os historiadores desde o romantismo.<br />
Em outras palavras, o que poderíamos interpretar, talvez<br />
equivoca<strong>da</strong>mente, como desacertos <strong>da</strong> crítica, oferece-nos ao contrário<br />
os elementos indispensáveis para a afirmação de uma escrita<br />
caleidoscópica <strong>da</strong> história, diversa e dispersa, com as aporias<br />
incontornáveis e constitutivas de todo trabalho rigoroso de crítica<br />
e historiografia.<br />
A hipótese aqui apresenta<strong>da</strong> pressupõe a reavaliação de quesl3<br />
A formação, os deslocamentos:modos<br />
de escrever a história literária brasileira<br />
Joana Luíza Muylaert de Araújo<br />
(UFU)<br />
Introdução
14 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
tões teóricas pertinentes ao campo <strong>da</strong> historiografia literária, bem<br />
como ao terreno <strong>da</strong> crítica no Brasil, marca<strong>da</strong> pela insistência no<br />
descompasso <strong>da</strong>s produções literárias brasileiras em relação às literaturas<br />
européias. E, uma vez que to<strong>da</strong> opção teórica nos compromete<br />
em atitudes práticas, o ponto de vista escolhido me levou<br />
a assumir o gesto propositivo de afirmar em relação aos<br />
textos não o que teriam deixado de cumprir, mas o que neles<br />
efetivamente se realizou.<br />
Nesse gesto está implica<strong>da</strong>, portanto, uma perspectiva crítica<br />
em relação às abor<strong>da</strong>gens totalizantes <strong>da</strong> literatura brasileira,<br />
uma perspectiva plural e mais arrisca<strong>da</strong> <strong>da</strong> história literária como<br />
representações assumi<strong>da</strong>mente fragmenta<strong>da</strong>s e inacaba<strong>da</strong>s ou, nas<br />
palavras de Siegfried J. Schmidt, como construções "tão<br />
multifaceta<strong>da</strong>s quanto os historiadores que as escrevem" (OLINTO,<br />
1996, p. 116). E é desse ponto de vista que proponho examinar a<br />
possibili<strong>da</strong>de de outras escritas <strong>da</strong> história literária brasileira, além<br />
<strong>da</strong>s que vem sendo elabora<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> idéia de "formação" como<br />
um percurso evolutivo, relativamente contínuo, de estilos, formas e<br />
temas literários ou, ain<strong>da</strong>, como superação <strong>da</strong> tradição.<br />
A reflexão pretendi<strong>da</strong> implica, em síntese, afini<strong>da</strong>de com as<br />
principais vertentes <strong>da</strong> historiografia literária contemporânea, comprometi<strong>da</strong>s<br />
com a redefinição dos paradigmas que sustentaram a<br />
historiografia tradicional, dentre os quais destacam-se os de literatura<br />
nacional, de história e narrativa ficcional enquanto gêneros<br />
estanques, de época e de periodização e, particularmente, a categoria<br />
dos textos canônicos, os chamados clássicos universais <strong>da</strong><br />
literatura. São questões <strong>da</strong> teoria literária, inseparáveis <strong>da</strong><br />
historiografia, que o historiador contemporâneo - compelido a<br />
problematizar o seu ofício - deve incorporar na sua escrita. Duplo<br />
desafio, portanto: além de uma inescapável opção teórica entre as<br />
diferentes concepções a respeito <strong>da</strong> história, deve ao mesmo tempo<br />
teorizar sobre as mu<strong>da</strong>nças constantes dos padrões estéticos<br />
ou as várias representações do que chamamos literatura, pois do<br />
historiador se espera que assuma a responsabili<strong>da</strong>de crítica,<br />
explicitando seus pressupostos teóricos e seus métodos, revelando,<br />
até onde isso é possível, as marcas de sua subjetivi<strong>da</strong>de na<br />
construção <strong>da</strong>s histórias que narra e problematiza.<br />
No caso dos críticos brasileiros, distinguimos aqueles que,<br />
em seus trabalhos de crítica historiográfica, vêm promovendo des-
A fonnação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira<br />
15<br />
locamentos importantes nos modos de percepção de tudo o que<br />
se compreendeu até então como história <strong>da</strong> literatura nacional,<br />
tanto no que se refere a uma suposta brasili<strong>da</strong>de perceptível nos<br />
textos considerados quanto no que diz respeito a uma também<br />
presumível continui<strong>da</strong>de de formas e estilos sucedendo-se numa<br />
relação linear de causas e efeitos. Antes, porém, de expor algumas<br />
propostas dentre as mais representativas de uma historiografia não<br />
apenas mais plural e abrangente, mas, sobretudo, crítica de suas<br />
próprias premissas, considero necessária uma breve nota sobre o<br />
s-entido <strong>da</strong> idéia de "formação" e seus desdobramentos na<br />
historiografia literária moderna no Brasil, destacando-se os trabalhos<br />
de Antonio Candido e Roberto Schwarz.<br />
o sentido <strong>da</strong> formação na historiografia de Antonio<br />
Candido<br />
Momento decisivo para a historiografia literária brasileira é<br />
o trabalho de Antonio Candido que, na esteira aberta pela crítica<br />
de autores como Silvio Romero e José Veríssimo, desenvolverá<br />
conceitos fun<strong>da</strong>mentais como os de sistema e formação literária,<br />
pilares de seu trabalho historiográfico, construído a partir <strong>da</strong> idéia<br />
de que, como todo discurso, a história literária brasileira consiste<br />
na construção política/ideológica de um projeto mais ou menos<br />
consciente e deliberado de um conjunto de autores, leitores e instituições,<br />
interessados em solidificar a sua própria literatura. Com<br />
o necessário distanciamento em relação ao mecanicismo de algumas<br />
abor<strong>da</strong>gens sociológicas <strong>da</strong> literatura, o autor pretende, conforme<br />
ele mesmo escreve, "chegar mais perto de uma interpretação<br />
dialética", ao tratar dos "aspectos sociais que envolvem a vi<strong>da</strong><br />
artística e literária nos seus diferentes momentos" (CANDIDO,<br />
1976, p.17 -18). Para o objetivo almejado, o crítico dispõe de um<br />
conjunto de princípios balizadores <strong>da</strong>s análises que empreenderá.<br />
Em linhas gerais, a noção de sistema liter~rio, desenvolvi<strong>da</strong> pelo<br />
autor, sustenta-se· na inter-relação dos três fatores - produção,<br />
recepção e transmissão - que asseguram a formação e a continui<strong>da</strong>de<br />
de uma tradição literária no país. A respeito, escreve o autor,<br />
explicitando seu método, que a mútua dependência entre autor,<br />
obra e público interessa na medi<strong>da</strong> em que "esclarecer a produção<br />
artística", pois importa estu<strong>da</strong>r as relações <strong>da</strong> literatura com a
16 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
vi<strong>da</strong> social a partir de uma dupla perspectiva, que possibilite perceber<br />
"o movimento dialético que engloba a arte e a socie<strong>da</strong>de<br />
num vasto sistema solidário de influências recíprocas" (CANDIDO,<br />
1976, p. 24).<br />
Situar a obra de Antonio Candido, ressaltando a sua singular<br />
"dissonância" no conjunto de autores clássicos que procuraram<br />
explicar o Brasil, orientados pelo comum propósito de apreender<br />
as "linhas evolutivas mais ou menos contínuas" do processo<br />
social e cultural do país, é matéria do recente trabalho de Paulo<br />
Arantes sobre o sentido <strong>da</strong> idéia de formação, "ver<strong>da</strong>deira obsessão<br />
nacional", na ensaística brasileira.! No ensaio em questão,<br />
. interessa ao autor traçar a história crítica de uma destaca<strong>da</strong> linhagem<br />
de "intérpretes do Brasil", inicia<strong>da</strong> pelos escritores românticos<br />
e retoma<strong>da</strong> por críticos do final do século XIX, como Silvio<br />
Romero, Araripe e José Veríssimo, salientando-se a figura de<br />
Machado de Assis, e mais recentemente redefini<strong>da</strong>, a partir de<br />
novos princípios teóricos, por Antonio Candido e Roberto<br />
Schwzarz, aos quais coube resgatar criticamente a tradição, desse<br />
modo compreendi<strong>da</strong> "não como peso morto, mas como elemento<br />
dinâmico e irresolvido, subjacente às contradições contemporâneas"<br />
(ARANTES, 1997, p.34).<br />
I ARANTES, Paulo Eduardo e<br />
ARANTES, Otília Beatriz<br />
Piori. Sentido <strong>da</strong> formação.<br />
São Paulo: Paz e Terra, 1997.<br />
Roberto Schwarz: tradição e moderni<strong>da</strong>de -<br />
descompassos <strong>da</strong> cultura brasileira<br />
É na esteira aberta por Candido que Roberto Scwharz vai<br />
empreender a reflexão sobre a obra de Machado de Assis, <strong>da</strong>ndo<br />
continui<strong>da</strong>de ao que permaneceu sugerido nas últimas linhas do<br />
segundo volume <strong>da</strong> Formação <strong>da</strong> literatura brasileira. Escreve<br />
Roberto Schwarz, em conhecido ensaio sobre os descompassos<br />
<strong>da</strong> cultura brasileira, que a experiência <strong>da</strong> segregação entre as<br />
elites intelectuais do país e as classes populares passou a ser percebi<strong>da</strong><br />
como um impasse - que inviabilizava a sintonia <strong>da</strong> nação<br />
com os países europeus mais avançados - apenas a partir <strong>da</strong> metade<br />
do século XIX. 2<br />
No mencionado estudo, parte o autor de uma passagem de<br />
Sílvio Romero, em polêmico e equivocado julgamento a respeito<br />
2 SCHWARZ, Roberto. Nacional<br />
por subtração. In: -. Que<br />
horas são São Paulo: Cia <strong>da</strong>s<br />
Letras, 1989.
A fonnação. os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira<br />
17<br />
de Machado de Assis. Na passagem em questão, o crítico e historiador<br />
evolucionista, equívocos à parte, acusa no quadro intelectual<br />
brasileiro uma cisão social, um disparate: de um lado, uma<br />
pequena elite europeiza<strong>da</strong>, distancia<strong>da</strong> do grosso <strong>da</strong> população,<br />
sem outro talento senão o de "copiar"; de outro, a maioria inculta,<br />
produtores anônimos do folclore, <strong>da</strong> arte popular. A cópia, o arremedo,<br />
o pastiche seriam a conseqüência natural de uma produção<br />
intelectual realiza<strong>da</strong> por escritores, políticos e estudiosos sem nenhuma<br />
relação com o mundo à sua volta.<br />
Certo é que o problema não poderia ser reduzido a um esquema<br />
tão simples como o exposto nessa descrição realiza<strong>da</strong> pelo<br />
escritor, em que são apontados os efeitos de questões cujas raízes<br />
foram apenas aludi<strong>da</strong>s.<br />
A explicação para o descompasso cultural no interior <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />
brasileira e entre o país e as nações centrais desenvolvi<strong>da</strong>s<br />
não poderia ser de natureza racial, conforme propunha Sílvio<br />
Romero; sem considerar os disparates <strong>da</strong>s mesmas teorias raciais,<br />
basta a evidente constatação de quem imitava no caso não eram os<br />
mestiços do povo, mas a elite branca, europeiza<strong>da</strong>, como observa o<br />
autor de Que horas são O pecado original, nas palavras de Roberto<br />
Schwarz, não residia na cópia, mas no fato de que só uma classe<br />
copiava. Sílvio Romero vê nos tempos coloniais um relativo espírito<br />
de coesão nacional e atribui isso à "hábil política de segregação"<br />
que nos mantinha num circuito de idéias exclusivamente portuguesas<br />
e brasileiras. Foi apenas depois com a vin<strong>da</strong> de D. João VI para<br />
o Brasil e, sobretudo, a partir do Império, que a cópia do modelo<br />
europeu e a distância entre elite letra<strong>da</strong> e população inculta passaram<br />
a ser percebi<strong>da</strong>s como "disparate" ou "descompasso". O que<br />
sempre existiu - a imitação, a separação entre elite e classes populares<br />
- desde os tempos <strong>da</strong> colônia, tomou -se um impasse, um dilema<br />
teórico para as gerações de intelectuais a partir <strong>da</strong> metade do<br />
século XIX. Dilema teórico que expressa, por sua vez, os impasses<br />
de natureza econômica, social e política do país. Como a passagem<br />
<strong>da</strong> colônia a Estado autônomo não acarretou, no Brasil Império,<br />
uma real modificação <strong>da</strong> estrutura básica característica <strong>da</strong> antiga<br />
colônia, assenta<strong>da</strong> na escravidão e no latifúndio, o contraste entre<br />
formas de vi<strong>da</strong> do Brasil Colônia e formas modernas de civilização<br />
burguesa, entre velhos princípios e as idéias liberais apenas acentuou<br />
as dimensões de um problema já antigo.
18 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Diante desse quadro, é compreensível que tudo o que significasse<br />
moderno fosse, simultânea e paradoxalmente, desejado e renegado<br />
como ameaça estrangeira à "coesão" e à "identi<strong>da</strong>de nacional".<br />
A tese <strong>da</strong> cópia cultural proposta por Sílvio Romero surge<br />
como tentativa de explicar a discrepância entre os dois Brasis.<br />
Evitando a imitação, estaria solucionado o problema, o país se<br />
reconciliaria consigo próprio, a cultura nacional estaria salva. Mas<br />
esse, como se vê, constitui um falso problema. A renúncia à cópia<br />
é, na ver<strong>da</strong>de, impensável'e mesmo indesejável; de fato, não somos<br />
atrasados porque imitamos, antes imitamos "mal" porque somos<br />
atrasados. A cópia não constitui necessariamente um valor<br />
negativo, menos ain<strong>da</strong> é ela a causa de graves desigual<strong>da</strong>des sociais<br />
e culturais no interior de uma mesma socie<strong>da</strong>de. Mas essas,<br />
porém, são avaliações possíveis segundo uma perspectiva contemporânea<br />
nossa, do século XX; juízos portanto que não estavam<br />
no horizonte de um autor do século passado, inspirado por<br />
teorias raciais e pelo <strong>da</strong>rwinismo social, como é o caso de Sílvio<br />
Romero. Em linhas gerais, essa é a leitura crítica de Roberto<br />
Schwarz que, em nova chave, segundo a perspectiva política dos<br />
conflitos de classe, retoma o problema anunciado no século XIX.<br />
Roberto Schwarz: forma - expressão e matéria social<br />
na obra de Machado de Assis<br />
Tradicionalmente, Machado de Assis é considerado uma<br />
<strong>da</strong>s raras exceções na experiência literária nacional; escritor universal<br />
- voltado para uma temática centra<strong>da</strong> em problemas que<br />
afligem todos os homens de todos os tempos e lugares - construiu<br />
uma obra cujos procedimentos mais se aproximam dos<br />
modernos esquemas <strong>da</strong> forma narrativa contemporânea ao escritor<br />
do que <strong>da</strong> provinciana prosa de acentua<strong>da</strong> cor local. Esse<br />
aspecto do romance machadiano, porém, nem sempre foi considerado<br />
uma quali<strong>da</strong>de. Basta lembrar as antigas polêmicas em<br />
torno do sentimento nacionalista, supostamente precário e mesmo<br />
ausente, na obra do escritor.<br />
Seguindo as propostas sugeri<strong>da</strong>s pelo próprio Machado no<br />
célebre artigo "Notícia <strong>da</strong> atual literatura brasileira - Instinto de<br />
nacionali<strong>da</strong>de", Roberto Schwarz afirma o nacionalismo <strong>da</strong> fic-
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira<br />
19<br />
ção machadiana expresso na forma, não a forma como a entendem<br />
os formalistas, mas numa "forma-expressão" <strong>da</strong> estrutura do<br />
país. O que significa essa "forma-expressão" para o crítico<br />
O grande desafio para os escritores brasileiros do final do<br />
sécclo era estar em sintonia, simultaneamente, com a reali<strong>da</strong>de<br />
nacional e com a forma "mais ilustre do tempo", o romance. "Adotar<br />
o romance" implicava "acatar também a sua maneira de tratar<br />
as ideologias". O romance é uma forma importa<strong>da</strong> <strong>da</strong> Europa "cujos<br />
pressupostos, em razoável parte, não se encontravam no país, ou<br />
encontravam-se alterados". Ora, o único modo de ser verossímilisto<br />
é, de ser fiel à nossa condição já que a "dívi<strong>da</strong> externa nas<br />
letras", tão inevitável quanto nas demais esferas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, nos<br />
conduzia à imitação de uma forma imprópria, inadequa<strong>da</strong> para expressar<br />
a reali<strong>da</strong>de do país - era explicitar essa improprie<strong>da</strong>de, essa<br />
inadequação na forma importa<strong>da</strong>. E essa "façanha" coube a Machado<br />
de Assis que soube reiterar, em nível formal, os deslocamentos<br />
de ideologias, próprias de nossa formação social, utilizando para<br />
isso, de modo consciente e crítico, a forma importa<strong>da</strong>. Machado<br />
encontrou na sátira e na ironia a forma adequa<strong>da</strong> a uma nova matéria.<br />
Na segun<strong>da</strong> fase de sua obra, o escritor conseguiu obter uma<br />
forma brasileira verossímil filiando-se, como era inevitável, às tendências<br />
européias/cosmopolitas na literatura. Em outras palavras,<br />
Machado foi original porque soube imitar de modo criativo.<br />
O nacionalismo de Machado, portanto, não exclui a universali<strong>da</strong>de,<br />
presente em sua narrativa sob uma forma caricata, como<br />
é o caso de Memórias póstumas de Brás Cubas em que a<br />
indissolubili<strong>da</strong>de entre forma literária e matéria social se revela<br />
mais explícita na própria construção do enredo através do narrador.<br />
Analisando esse romance, Roberto Schwarz procura demonstrar<br />
que, por meio <strong>da</strong> atitude desabusa<strong>da</strong>, prepotente e voluntariosa<br />
do narrador-personagem, atitude que expressa um comportamento<br />
típico <strong>da</strong> elite intelectual brasileira, <strong>da</strong> qual Brás Cubas fazia<br />
parte, Machado conseguiu revelar a reali<strong>da</strong>de nacional utilizando<br />
uma forma universal importa<strong>da</strong>. Brás Cubas representa o homem<br />
culto brasileiro que "dispõe do todo <strong>da</strong> tradição ocidental", adotando<br />
a esse respeito uma atitude de superiori<strong>da</strong>de irreverente e<br />
afeta<strong>da</strong>, sem consistência crítica. O cosmopolitismo de Brás Cubas<br />
não passa de uma farsa, de uma caricatura, pois a cultura geral<br />
que ostenta se mostra "uma espécie de pacotilha, na melhor tradi-
20 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
ção pátria, em que o capricho de Brás Cubas toma como província<br />
a experiência global <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de e se absolutiza". Brás é<br />
um provinciano pretensioso que, sem nenhum respeito pelo conhecimento<br />
acumulado, banaliza "to<strong>da</strong>s as idéias e formas à disposição<br />
de um homem culto do tempo", substituindo-as constantemente<br />
de acordo com as suas velei<strong>da</strong>des pessoais. Ora, a universali<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> narrativa machadiana reside exatamente no fato de<br />
a forma romance utiliza<strong>da</strong> desmascarar, na sua própria construção,<br />
o provincianismo do narrador-protagonista. Sintetizando a<br />
proposta de Roberto Schwarz, a volubili<strong>da</strong>de do narrador é, ao<br />
mesmo tempo, tema (conteúdo) e princípio formal do romance;<br />
fórmula que, presente na prosa machadiana <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> e grande<br />
fase, assegurou, para o universo cultural brasileiro, "provinciano,<br />
desprovido de credibili<strong>da</strong>de", um lugar no primeiro plano <strong>da</strong> literatura<br />
contemporânea universal, embora reconhecido apenas bem<br />
mais tarde e, ain<strong>da</strong> assim, em círculos restritos.3 Machado teria<br />
encontrado, desse modo, a solução para o problema apresentado<br />
há algum tempo em "Instinto de nacionali<strong>da</strong>de", conforme já indicamos.<br />
Mas, como reiterou em vários artigos, o crítico entende<br />
que o ver<strong>da</strong>deiro antagonismo reside nos conflitos de classe sociais,<br />
por sua vez refletidos e refratados nas formas literárias; se as<br />
causas dos impasses nas esferas cultural e literária são em essência<br />
de natureza histórica, a crítica deve pôr em relevo as relações<br />
entre forma artística e necessi<strong>da</strong>de histórica. A insistência de<br />
Roberto Schwarz na perspectiva sociológica se contrapõe a algumas<br />
<strong>da</strong>s recentes tendências <strong>da</strong> crítica literária brasileira, mais afina<strong>da</strong>s<br />
com o pensamento desconstrutivista europeu. São vários<br />
os textos em que o autor discute essa questão, reformulando o<br />
problema <strong>da</strong> "formação", central na obra de Antonio Candido. A<br />
propósito, deve-se ressaltar o procedimento incomum, e louvável,<br />
na crítica brasileira; que é o apreço pelo pensamento crítico<br />
<strong>da</strong>s gerações anteriores, resgatado, é claro, em novas bases, conforme<br />
já apontamos ao mencionar o estudo de Paulo Arantes a<br />
esse respeito.<br />
É ain<strong>da</strong> Roberto Schwarz quem chama a atenção para a<br />
vi<strong>da</strong> intelectual no país, marca<strong>da</strong> pela ausência de "um campo de<br />
problemas reais, particulares, com inserção e duração histórica<br />
próprias, que recolha as forças em presença e solicite o passo<br />
adiante" (SCHWARZ, 1989, p.31). Embora considerando a rele-<br />
'As observações de Roberto<br />
Schwarz sobre Memórias<br />
Póstumas de Brás Cubas,<br />
comenta<strong>da</strong>s neste artigo,<br />
encontram-se em L'm mestre na<br />
periferia do capitalismo:<br />
Machado de Assis. São Paulo:<br />
Duas Ci<strong>da</strong>des, 1990.
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira<br />
21<br />
vância do problema <strong>da</strong> "formação em descompasso", conforme<br />
discutido por Roberto Schwarz e Antonio Candido, é com o olhar<br />
voltado para o que há de próprio e ajustado nos escritos brasileiros<br />
que pretendo circunscrever um campo de problemas críticos<br />
pertinentes ao conjunto <strong>da</strong> produção literária nacional e suas relações<br />
com o contexto mais amplo <strong>da</strong> literatura universal, assim<br />
denomina<strong>da</strong> provisoriamente. Ao incorporar as abor<strong>da</strong>gens críticas<br />
inspira<strong>da</strong>s na perspectiva <strong>da</strong> história literária como representação<br />
de uma tradição inventa<strong>da</strong>, sempre contingente em relação<br />
a nossas concepções e a nosso presente, encaminho essa reflexão<br />
para uma outra direção, diversa e, em certa medi<strong>da</strong>, divergente,<br />
en relação à dos dois autores mencionados, cuja historiografia se<br />
enraíza na idéia de tradição como sistema mais ou menos coerente<br />
e coeso de obras e autores nacionais.<br />
Pressupostos <strong>da</strong> idéia de "formação": recortes<br />
Em conhecido texto, tanto quanto polêmico, Haroldo de<br />
Campos (1989) pretendeu desvelar os pressupostos básicos <strong>da</strong><br />
Formação <strong>da</strong> literatura brasileira: momentos decisivos. Valendo-se<br />
de teóricos como Walter Benjamim e Derri<strong>da</strong>, entre outros,<br />
o crítico opôs as noções de "constelação" e "disseminação" aos<br />
princípios de "sistema" e "origem", eixos <strong>da</strong> historiografia de<br />
Antonio Candido. Em linhas gerais, seus argumentos se baseiam<br />
na afirmação de que a perspectiva histórica fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na origem,<br />
na suposição de um começo não inventado ou<br />
delibera<strong>da</strong>mente construído, corresponde a uma "visão<br />
substancialista <strong>da</strong> evolução literária" correlata, por sua vez, a "um<br />
ideal metafísico de entificação nacional". Sem considerar as diferenças<br />
entre a historiografia do século XIX e a proposta de<br />
Candido, ressalta o propósito comum, verificável em to<strong>da</strong>s elas,<br />
de estabelecer uma "tradição contínua" de "estilos, temas, formas<br />
ou preocupações", o que leva o crítico a reduzir a concepção<br />
historiográfica de Candido a mera reedição do modelo romântico<br />
de história literária, "volta<strong>da</strong> para o desvelamento evolutivogradualista"<br />
<strong>da</strong> literatura nacional.<br />
Outro escritor foi mais conseqüente na crítica dirigi<strong>da</strong> à<br />
Formação, sobretudo pelo êxito em conciliar o respeito ao "mestre"<br />
(LIMA, 1992, p.168) e um rigoroso exame <strong>da</strong> obra. Sóbrio
22 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
no tom e consistente na argumentação, Luiz Costa Lima inicia o<br />
ensaio com observações sobre o que denomina de "eixos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />
crítico-literária no século XX" (LIMA, 1992, p.153), visando,<br />
a partir dessas observações, situar no panorama contemporâneo<br />
o trabalho historiográfico de Candido. Ou, nas palavras do<br />
ensaísta, dirigir-se à Formação in<strong>da</strong>gando "como ela se localiza<br />
quanto aos eixos aludidos", a saber: "a questão <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
linguagem literária", "a relação <strong>da</strong> linguagem literária com a socie<strong>da</strong>de"<br />
e "a idéia de literatura nacional" (LIMA, 1992, p.153-156).<br />
Submetendo ao crivo de uma leitura crítica passagens do<br />
prefácio à segun<strong>da</strong> edição e o capítulo teórico-metodológico <strong>da</strong><br />
Formação, Costa Lima afirma inicialmente que o que poderia parecer<br />
"afastamento <strong>da</strong>s histórias orienta<strong>da</strong>s pela exclusivi<strong>da</strong>de do<br />
fator nacional" revela-se, ao inverso, dele tributário (LIMA, 1992,<br />
p.156). Tarefa na<strong>da</strong> fácil, devemos reconhecer, a de se propor a<br />
crítica de um discurso extremamente refinado e sedutor que, na<br />
sua urdidura narrativa, parece ter pretendido suprimir os rastros<br />
de seus pressupostos teóricos e juízos de valor, ao eleger "vários<br />
caminhos, conforme o objeto em foco", determinando assim "a<br />
reali<strong>da</strong>de superior do texto" (CANDIDO, 1975, p.33; 36).<br />
Ain<strong>da</strong> mais levando-se em conta a astúcia de uma crítica<br />
que, longe de negar a subjetivi<strong>da</strong>de inerente ao seu exercício, pelo<br />
contrário, incorpora-a assumindo sem meias palavras a responsabili<strong>da</strong>de<br />
de suas escolhas, conforme atesta o parágrafo final do<br />
capítulo introdutório <strong>da</strong> Formação:<br />
Sob este aspecto, a crítica é um ato arbitrário, se deseja ser<br />
criadora, não apenas registradora. Interpretar é, em grande<br />
parte, usar a capaci<strong>da</strong>de de arbítrio; sendo o texto uma<br />
plurali<strong>da</strong>de de significados virtuais, é definir o que se escolheu,<br />
entre outros. A este arbítrio o crítico junta a sua linguagem<br />
própria, as idéias e imagens que exprimem sua visão,<br />
recobrindo com elas o esqueleto do conhecimento objetivamente<br />
estabelecido (CANDIDO, 1975, p.39).<br />
Ora, o que se revela nessas, como em muitas outras passagens,<br />
é uma atitude crítica, deriva<strong>da</strong> "de uma concepção a-histórica<br />
<strong>da</strong> forma", nos termos de Costa Lima (LIMA, 1992, p.157) e<br />
de uma insustentável dicotomia entre interpretação e conhecimento<br />
objetivo. Em outras palavras, a declara<strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de crítica não
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira<br />
23<br />
se faz acompanhar de uma explicitação <strong>da</strong>s teorias e métodos<br />
adotados e, ao que se sabe, é precisamente a teoria o elemento<br />
esclarecedor <strong>da</strong> "conduta interpretativa do crítico" (LIMA, 1992,<br />
p.157). Sendo assim, "o favorecimento <strong>da</strong> tolerância metodológica"<br />
(presumivelmente solidário de uma atitude consciente de seus limites,<br />
derivados <strong>da</strong>s idiossincrasias do crítico), ao contrário do<br />
que poderia parecer, pretende na ver<strong>da</strong>de fazer desaparecer as<br />
marcas <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de inicialmente assumi<strong>da</strong> e, no mesmo passo,<br />
legitimar a objetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> crítica, uma vez cola<strong>da</strong> ao seu objeto,<br />
de fato e de direito, "a reali<strong>da</strong>de superior do texto"<br />
(CANDIDO, 1975, p.33; 36). Tomo a citar Costa Lima, que, com<br />
leve ironia, descreve o impasse desse "crítico-caçador":<br />
Ativi<strong>da</strong>de dirigi<strong>da</strong> por valores, a cadeia de decisões em que a<br />
crítica se insere - a cadeia forma<strong>da</strong> por pressupostos teóricos,<br />
operacionalização metodológica e pragmática crítica - implica<br />
que seu agente não mais pode ser confundido com um caçador<br />
que, em busca <strong>da</strong> caça, se orienta pelos rastros que a presa<br />
deixa. Ao crítico, assim como ao historiador, só cabe a analogia<br />
com o caçador se se lembrar que um e outro não só perseguem<br />
rastros, mas que, assim fazendo, produzem outros rastros:<br />
os rastros do rastreador (LIMA, 1992, p.158).<br />
Além <strong>da</strong> concepção a-histórica <strong>da</strong> forma, acima menciona<strong>da</strong>,<br />
Costa Lima acusa um outro rastro na Formação, em sintonia<br />
com o primeiro: o pretendido "distanciamento do autor", "assegurado<br />
pelo tom descritivo <strong>da</strong> narrativa" (LIMA, 1992, p.160).<br />
Esses traços do autor na obra, longe de garantir objetivi<strong>da</strong>de,<br />
são antes reveladores dos inevitáveis, incontornáveis, juízos<br />
de valor. Isso porque "a estabili<strong>da</strong>de estética" - ou visão a-histórica<br />
<strong>da</strong> forma - não se deveria apenas ao primeiro eixo <strong>da</strong> moderna<br />
historiografia no século XX (a questão <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
linguagem literária), mas a "uma concepção mais tributária de uma<br />
visão tradicional do que se estava disposto a admitir" (LIMA,<br />
1992, p.l59).<br />
Examina<strong>da</strong> a suposta evidência <strong>da</strong> idéia de sistema literário,<br />
assegura<strong>da</strong> na volumosa descrição dos fatos literários, Luiz Costa<br />
Lima lança a pergunta que Candido não fez, mas cuja resposta<br />
estaria diluí<strong>da</strong> tanto na exposição de seus pressupostos quanto<br />
nos capítulos dedicados à história dos "momentos decisivos" <strong>da</strong>
24 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
formação literária brasileira:<br />
[ ... ] quão extensa deverá ser a recepção para que se lhe tenha<br />
como dec1aradora de um sistema Bastará uma recepção atesta<strong>da</strong><br />
para que o sistema se afirme em funcionamento Se o<br />
fosse, a fama local de Gregório não justificaria sua exclusão.<br />
Se, portanto, não basta uma recepção localiza<strong>da</strong>, qual a extensão<br />
necessária (LIMA, 1992, p.162).<br />
Na passagem <strong>da</strong> Formação, abaixo destaca<strong>da</strong> por Costa<br />
Lima, reúnem-se os dois traços que confirmam "a articulação decisiva<br />
<strong>da</strong> Formação ( ... ) com o que se chamara o terceiro eixo <strong>da</strong><br />
preocupação crítica contemporânea, precisamente aquele que derivava<br />
<strong>da</strong> atitude dominante no século XIX" (LIMA, 1992, p.l64),<br />
a idéia de literatura nacional. Citando Candido, Costa Lima assinala:<br />
'[ ... ] Os escritores brasileiros que [ ... ] lançaram as bases de<br />
uma literatura brasileira orgânica, como sistema coerente e não<br />
manifestações isola<strong>da</strong>s' (LIMA, 1992, p.163). Nesta frase, estão<br />
explícitos - embora não explicados nem assumidos pelo autor <strong>da</strong><br />
Formação - os conceitos de coerência eforma orgânica derivados<br />
do funcionalismo antropológico inglês. Costa Lima, apesar<br />
de não se deter largamente nesse aspecto, ressalta "a importância<br />
decisiva desse legado na concepção de sistema" (LIMA, 1992,<br />
p.163) incorpora<strong>da</strong> na historiografia de Candido. Em síntese, afirma<br />
o autor "que o decisivo na armadura teórica <strong>da</strong> Formação é<br />
menos a idéia de articulação entre produção e recepção literárias<br />
do que sua extensão nacional e seu caráter de coerência" (LIMA,<br />
1992, p.163), favorecendo a "coesão homogeneizante" na interpretação<br />
<strong>da</strong> história <strong>da</strong> literatura brasileira. O fato de o barroco<br />
ter sido excluído <strong>da</strong> Formação se explica "não tanto porque sua<br />
circulação fosse drasticamente menor que a dos árcades, senão<br />
porque impede que se lançassem as bases de uma literatura brasileira<br />
orgânica, como sistema coerente" (LIMA, 1992, p.164).<br />
Tanto a exclusão de Gregório como a inclusão dos árcades "só se<br />
explicam porque o peso decisivo recai na qualificação de sistema<br />
nacional" (LIMA, 1992, p.164).<br />
Retomando a pergunta de Costa Lima sobre a efetiva<br />
representativi<strong>da</strong>de de um sistema literário, vejamos como o crítico<br />
formula o problema, antes enfrentado por Haroldo de Campos.<br />
Ao reivindicar o resgate do barroco, sua inclusão no cânone,
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira<br />
25<br />
Haroldo de Campos reitera o primado do nacional na escrita <strong>da</strong>s<br />
histórias literárias. Dito de outra forma, Haroldo de Campos<br />
polemiza com Antonio Candido no terreno de seu adversário e,<br />
por esse motivo sobretudo, perde força, em grande parte, o conjunto<br />
de seus argumentos. Incluir ou excluir, essa não é a questão,<br />
Tendo como alvo principalmente a idéia de sistema, Haroldo de<br />
Campos parece ter-se esquecido de formular uma pergunta decisiva:<br />
o que se entende por nacional<br />
Na esteira de João Adolfo Hansen, Costa Lima ,vem nos<br />
lembrar que a sátira barroca era p<strong>revista</strong> e codifica<strong>da</strong> nos tratados<br />
poéticos, o que "impediria, se não por vezo anacrônico, que se<br />
envolvesse a poesia de Gregório em algum propósito nacional"<br />
(LIMA, 1992, p.165).<br />
Um outro problema, portanto, no centro <strong>da</strong> polêmica sobre<br />
a formação <strong>da</strong> literatura brasileira e que gerou, assim como a questão<br />
do nacional, algumas respostas equivoca<strong>da</strong>s, contra as quais<br />
se manifestaram outros críticos, além dos aqui citados. Em relação<br />
ain<strong>da</strong> ao "seqüestro do barroco", muito oportunamente escreve<br />
Lígia Chiappini:<br />
A contradição básica de Haroldo de Campos está em, ao mesmo<br />
tempo, contestar a história contínua, a tradição que Antonio<br />
Candido se propôs a perseguir nos momentos decisivos de<br />
sua constituição, e integrar aí Gregório de Matos que, no entanto,<br />
vê como ruptura, Recusar como ideológica essa tradição<br />
e, no entanto, querer incluí-lo nela. Trata-se, no mínimo de um<br />
equívoco. Gregório só poderia entrar em um outro livro, não<br />
neste. E outro teria de ser o projeto do historiador, não este<br />
(CHIAPPINI, 1992, p.175).<br />
Devemos ain<strong>da</strong> ressaltar o anacronismo muitas vezes não<br />
percebido por críticos de Antonio Candido, que, ao postularem a<br />
inclusão de Gregório de Matos na Formação, não se dão conta<br />
dos princípios que abraçam, julgando contradizê-los. Noções como<br />
uma suposta origem absoluta (que, aliás, Candido não postulou) e<br />
uma periodização tributária <strong>da</strong> concepção romântica retomam à<br />
cena, comprometendo o adequado entendimento <strong>da</strong> Formação,<br />
apontando erros onde houve extrema coerência em relação aos<br />
propósitos do autor, devi<strong>da</strong>mente explicitados. A esse respeito,<br />
recorro mais uma vez às palavras esclarecedoras de Lígia Chiappini:
26 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
"a origem não é um problema para Antonio Candido, mas para<br />
seus críticos. O que lhe interessa não é defender uma tradição<br />
hegemônica, mas entender a constituição de uma hegemonia, projeto<br />
que ele explicita claramente para leitores que queiram entender"<br />
(CHIAPPINI, 1992, p.174), no primeiro capítulo, "Literatura<br />
como sistema".<br />
Não sendo a "origem" propriamente um problema, voltamos<br />
então ao que, ao lado <strong>da</strong> idéia de formação, motivou este<br />
texto: a idéia de sistema literário nacional, preponderante nas histórias<br />
de literatura brasileira. Eis, como vimos, uma questão bem<br />
mais complexa do que supõe uma crítica apressa<strong>da</strong>.<br />
Este e outros problemas a ele relacionados - como os vínculos<br />
entre culturas literárias hegemônicas e periféricas - têm recebido<br />
<strong>da</strong> historiografia brasileira contemporânea tratamentos distintos,<br />
conforme o ponto de vista teórico inseparável, sempre, <strong>da</strong>s<br />
escolhas e <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de do crítico para certos temas, autores e<br />
textos, e não outros.<br />
A essa altura já podemos perguntar se seria possível, dentro<br />
do registro <strong>da</strong> formação, postular histórias <strong>da</strong> literatura que não<br />
impliquem a noção de sistema nacional coerente e orgânico. Ou<br />
ain<strong>da</strong>: é possível, é desejável escrever uma história literária não<br />
propriamente desvincula<strong>da</strong> <strong>da</strong> idéia de formação mas, simultânea<br />
e paradoxalmente, dela partindo e dela se deslocando.<br />
Em outros termos: entendendo a formação <strong>da</strong> literatura brasileira<br />
não como percurso evolutivo de uma identi<strong>da</strong>de supostamente<br />
essencialista e original (ou, no entender de Candido, como<br />
"continui<strong>da</strong>de ininterrupta de obras e autores" (CAND IDO, 1975,<br />
p.25), mas como construção discursiva de seus diversos intérpretes,<br />
representação até certo ponto inseparável de seu próprio referente,<br />
seria mais apropriado falar deformações <strong>da</strong> literatura brasileira,<br />
do romantismo às mais recentes teorias <strong>da</strong> história literária.<br />
A propósito, a idéia de "formação de um sistema literário",<br />
proposta por Candido, parece se alinhar, conforme ele próprio<br />
explicitara, com o projeto romântico de construção nacional e <strong>da</strong><br />
literatura. Essa noção, como sabemos, fez escola, inaugurando<br />
uma considerável tendência do pensamento crítico brasileiro no<br />
século XX. Coube a Roberto Schwarz, nas. palavras de Paulo<br />
Arantes, "tirar as devi<strong>da</strong>s conseqüências do roteiro traçado por<br />
Antonio Candido, reapresentando o problema <strong>da</strong> formação como
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira<br />
27<br />
uma questão material de acumulação <strong>da</strong> experiência intelectual<br />
nas condições francamente proibitivas <strong>da</strong> dependência"<br />
(ARANTES, 1997, p.32-33). Desde então, "o sentimento<br />
acabrunhador <strong>da</strong> posição em falso de tudo o que concerne à cultura<br />
brasileira" (ARANTES, 1997, p.14) tem sido a tônica de to<strong>da</strong> a<br />
crítica brasileira solidária com o autor <strong>da</strong>s "idéias fora do lugar".<br />
Reconhecendo "o permanente sentimento de inadequação<br />
que desde a origem vem alimentando o mal-estar definidor de nosso<br />
trato enviesado com as idéias" (ARANTES, 1997, p.33) como<br />
uma <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de se reapresentar o problema <strong>da</strong> formação<br />
literária brasileira, penso em leituras sobre os escritos brasileiros,<br />
motiva<strong>da</strong>s por outro sentimento - o de que, em matéria de<br />
prosa ou poesia literária, nem sempre a crítica comparativa provoca<br />
sensação de descompasso ou desacerto, a menos que se identifique<br />
o historiador <strong>da</strong> literatura brasileira ao historiador <strong>da</strong> nação<br />
brasileira, incluindo aqueles cujo olhar privilegia os laços<br />
indissociáveis entre literatura e socie<strong>da</strong>de.<br />
Porque, não é redun<strong>da</strong>nte nem excessivo reiterar, o que na<br />
ver<strong>da</strong>de está em pauta é, antes, uma questão de perspectiva teórico-política,<br />
em jogo nas diversas propostas críticas <strong>da</strong> produção<br />
literária brasileira. E o ponto de vista adotado bem poderia resultar<br />
de uma outra convicção: a de que o sentimento de sermos<br />
ain<strong>da</strong> uma cultura periférica em desacerto com a cultura<br />
hegemônica central - ou "uns desterrados em nossa terra", conforme<br />
célebre formulação de Sérgio Buarque de Holan<strong>da</strong>, no parágrafo<br />
de abertura de Raízes do Brasil (1995, p.31) - não seria<br />
privilégio do brasileiro, mas sentimento comum às culturas modernas,<br />
à margem dos grandes centros de decisão política e econômica,<br />
que vem se aprofun<strong>da</strong>ndo na mesma proporção dos<br />
impasses e contradições <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de contemporânea.<br />
Na impossibili<strong>da</strong>de de se sentir em casa, familiarizado com<br />
o que seria próprio de sua cultura, na impossibili<strong>da</strong>de de superar o<br />
desterro ou acertar os ponteiros do relógio nacional, por que não<br />
assumir e incorporar a estranheza que nos constitui Por que não<br />
acentuar, nos escritos em prosa e verso de tantos escritores - desde<br />
o nosso, nem sempre compreendido, romantismo - a afirmação<br />
desse gesto em meio ao que neles eventualmente tenha se<br />
traduzido como expressão de uma melancólica ou nostálgica busca<br />
do que nunca teria ou terá existido
28 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
É com o sentimento paradoxal de estranha familiari<strong>da</strong>de<br />
que assumimos identi<strong>da</strong>des que não nos pertencem, assim, poetas,<br />
prosadores e (por que não) historiadores deveriam narrar<br />
suas histórias como se fossem um outro, com o olhar oblíquo de<br />
quem, não se reconhecendo de forma imediata no objeto que tem<br />
diante de si, precisa criar as conexões, os vínculos, ali onde as<br />
lacunas, as fraturas não permitem uma imagem coesa e coerente.<br />
A história <strong>da</strong> literatura, percebi<strong>da</strong> como busca criativa de um sentido<br />
para as experiências de uma coletivi<strong>da</strong>de, solicitaria do historiador<br />
o mesmo gesto de deslocamento, de pôr-se no lugar do<br />
outro, a que recorre o narrador ficcional. Admitindo a impossibili<strong>da</strong>de<br />
de apreensão totalizante e absoluta <strong>da</strong> experiência literária,<br />
esse historiador sustentaria na sua própria voz as múltiplas e dispersas<br />
vozes <strong>da</strong> cultura, construindo, no lugar <strong>da</strong>s histórias tradicionais<br />
teleológicas, narrativas caleidoscópicas, micro-histórias,<br />
anotações à margem.<br />
Considerações finais<br />
Gostaria de encerrar essas considerações/recortes evocando<br />
dois autores argentinos que, em seus ensaios crítico-poéticos<br />
sobre a história e a tradição literária de culturas à margem, revelam<br />
percepções inteiramente novas para quem havia se habituado<br />
a pensar o problema como impasse, beco sem saí<strong>da</strong>, ou ain<strong>da</strong> como<br />
contradição a ser, num futuro incerto, supera<strong>da</strong>.<br />
De Jorge Luis Borges, comento dois textos bastante conhecidos<br />
- "O escritor argentino e a tradição" (BORGES, 1998) e<br />
"Sobre os clássicos" (BORGES, 1999) - em que o problema se<br />
apresenta de forma clara, precisa e, arrisco afirmar, definitiva. Eles<br />
não se apresentaram casualmente à minha lembrança. Ao contrário,<br />
esses textos, em forma e tom de despretensioso ensaio, sem<br />
qualquer velei<strong>da</strong>de teórica definitiva, produzidos, pois, de um outro<br />
lugar - não propriamente acadêmico/disciplinar - pareceram-me,<br />
por isso mesmo, talvez mais apropriados ao pronunciarem uma<br />
palavra outra que não as que costumam soar dos lugares já conhecidos<br />
e percorridos.<br />
Como de costume, em sua prosa quase austera em contraste<br />
com a ironia que a perpassa, Borges surpreende ao explicitar as
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira<br />
29<br />
principais contradições implícitas na noção de obras clássicas. Clássico,<br />
nos lembra o autor, "é aquele livro que uma nação, ou um<br />
grupo de nações, ou o longo tempo decidiram ler como se em suas<br />
páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e<br />
passível de interpretações sem fim" (BORGES, 1999, p.168). Contingentes<br />
e, em certa medi<strong>da</strong>, imponderáveis, essas decisões variam<br />
tanto quanto as formações históricas sobre as quais se erigiram.<br />
Levando mais longe a provocação, relembra que, se houve<br />
um tempo em que "acreditava que a beleza era privilégio de uns<br />
poucos autores", agora sabe "que é comum e está a nossa espreita<br />
nas casuais páginas do medíocre ou em um diálogo de rua"<br />
(BORGES, 1999, p.168). Até aqui na<strong>da</strong> de muito novo nos é revelado,<br />
não fossem as palavras simples, diretas e incisivas com as<br />
quais relativiza julgamentos consagrados pela crítica a respeito de<br />
um conjunto de obras e autores, como na passagem a seguir:<br />
Para alemães e austríacos, o Fausto é uma obra genial; para<br />
outros, uma <strong>da</strong>s mais famosas formas do tédio, como o segundo<br />
Paraíso, de Milton ou a obra de Rabelais. Livros como o de<br />
Jó, a Divina Comédia, Macbeth (e, para mim, algumas <strong>da</strong>s<br />
sagas do Norte) prometem uma longa imortali<strong>da</strong>de, mas na<strong>da</strong><br />
sabemos do futuro, salvo que diferirá do presente. Uma preferência<br />
pode muito bem ser uma superstição (BORGES, 1999,<br />
p.l68).<br />
Sendo assim, a "beleza" de um texto não se revela na forma,<br />
na estrutura, na imanência textual, nem tampouco em quali<strong>da</strong>des<br />
vagas, transcendentes que nos permitiriam afirmar a existência de<br />
obras clássicas eternas. Essa "beleza" é antes resultado de um<br />
encontro do texto com o leitor ou, nas palavras Borges: "A glória<br />
de um poeta depende, em suma, <strong>da</strong> excitação ou <strong>da</strong> apatia <strong>da</strong>s<br />
gerações de homens anônimos que a põem à prova, na solidão de<br />
suas bibliotecas" (BORGES, 1999, p.168).<br />
Antes de passar ao outro texto do autor, quero ressaltar<br />
ain<strong>da</strong> o deslocamento radical <strong>da</strong> perspectiva centra<strong>da</strong> na obra (e,<br />
portanto, no autor) para uma direção, senão oposta, divergente,<br />
destacando-se nesse passo, ao mesmo tempo, a necessi<strong>da</strong>de inevitável<br />
de referências e sua extrema precarie<strong>da</strong>de, construí<strong>da</strong>s que<br />
são sobre o movediço, incerto território do tempo. Movimento<br />
divergente também no sentido de que desloca o foco para outras,
30 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
diversas, diferentes literaturas, por nós não apenas desconheci<strong>da</strong>s,<br />
mas quase sempre sequer suspeita<strong>da</strong>s. Num gesto de sincera<br />
modéstia, reconhece: "Assim, embora meu desconhecimento <strong>da</strong>s<br />
letras malaias ou húngaras seja completo, tenho certeza de que, se<br />
o tempo me propiciasse a ocasião de seu estudo, encontraria nelas<br />
todos os alimentos que o espírito requer" (BORGES, 1999, p.l68).<br />
Concluindo, na questão dos clássicos interferem as barreiras<br />
lingüística, política ou mesmo geográfica, obrigando aqueles<br />
que <strong>da</strong> literatura se ocupam a admitir as limitações de seus<br />
parâmetros de "beleza", que são também as <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de de<br />
que fazem parte. Afinal, a preferência por determinados autores e<br />
textos é tanto uma questão pessoal quanto <strong>da</strong>s "gerações de homens"<br />
que, "urgi<strong>da</strong>s por razões diversas, lêem com prévio fervor<br />
e com uma misteriosa leal<strong>da</strong>de" os livros tornados clássicos<br />
(BORGES, 1999, p.169).<br />
Isso posto, poderíamos pensar que Borges, um iconoclasta,<br />
desconsidera ou minimiza a importância dos clássicos, quando o<br />
que se passa não é exatamente assim. Em outro texto, tratando do<br />
escritor argentino e <strong>da</strong> tradição, afirma com veemência o<br />
pertencimento à cultura ocidental do escritor argentino e de todos<br />
os sul-americanos, de um modo geral (BORGES, 1998).<br />
Como no caso dos clássicos, a tradição ocidental do outro/<br />
nosso colonizador é também "um gosto adquirido", incorporado<br />
e transformado por sua vez em outra tradição, nossa, própria, e<br />
do outro simultaneamente. Numa certa medi<strong>da</strong>, não haveria como<br />
escapar desse fechamento, dessa clausura que tem condenado "o<br />
escritor à margem" ao beco sem saí<strong>da</strong> <strong>da</strong>s imitações mais ou menos<br />
bem feitas do modelo europeu ou do sonho romântico de uma<br />
literatura autêntica, surgi<strong>da</strong> de um outro lugar, de uma pátria de<br />
origem imacula<strong>da</strong>, não de outros povos mas própria supostamente.<br />
Estaríamos assim ligados à cultura ocidental por destino ou<br />
fatali<strong>da</strong>de histórica e portanto não teríamos escolha.<br />
Por outro lado, a condição de culturas e tradições à margem<br />
(uma vez que se expressam nos limites de um centro, tão<br />
imaginado quanto real, mas em relação ao qual não se percebem<br />
tão estreitamente vincula<strong>da</strong>s que não possam com ele romper sem<br />
que, com esse gesto, se sintam órfãos de origem e de valores partilhados)<br />
proporciona inespera<strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de transgredir,<br />
inovar sem a imposição de uma "devoção especial" diante de to<strong>da</strong>
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira<br />
31<br />
a cultura ocidental her<strong>da</strong><strong>da</strong>. "Creio que os argentinos, os sul-americanos<br />
em geral ( ... ) podemos lançar mão de todos os temas europeus,<br />
utilizá-los sem superstições, com uma irreverência que<br />
pode ter, e já tem, conseqüências afortuna<strong>da</strong>s", é o que nos diz<br />
Borges (BORGES, 1998, p.295), postulando o direito a ser europeu<br />
sendo argentino, descartando com essa atitude todos os lugares<br />
comuns <strong>da</strong> velha questão sobre o local e o universal.<br />
Em outros termos, é essa a perspectiva de Ricardo Piglia.<br />
"O olhar oblíquo", "a troca de lugar" deveriam constituir as quali<strong>da</strong>des<br />
do escritor do "próximo milênio", conforme uma "sexta<br />
proposta" para a literatura, imagina<strong>da</strong> pelo autor de Nome falso<br />
Homenagem a Roberto Arlt, para ser acrescenta<strong>da</strong> às de Ítalo<br />
Calvino já conheci<strong>da</strong>s. O "deslocamento" a que se refere Piglia<br />
(2001) - <strong>da</strong> periferia para o centro - não mais diz respeito ao<br />
mapeamento geográfico <strong>da</strong>s culturas hierarquiza<strong>da</strong>s. Não seria esse<br />
o sentido do gesto próprio do escritor "à margem". Piglia fala de<br />
um lugar específico - "do subúrbio do mundo" - é ver<strong>da</strong>de, mas<br />
para mostrar que esse é o lugar <strong>da</strong> linguagem, ou <strong>da</strong> literatura,<br />
nesse caso toma<strong>da</strong>s sinônimas.<br />
A ver<strong>da</strong>de tem a estrutura de uma ficção de onde outro fala.<br />
Fazer na linguagem um lugar para que o outro possa falar. A<br />
literatura seria o lugar em que sempre é outro o que vem falar.<br />
"Eu sou outro", como dizia Rimbaud. Sempre há outro aí. Esse<br />
outro é aquele que tem que saber ouvir para que isso que se<br />
conta não seja uma mera informação e tenha a forma <strong>da</strong> experiência.<br />
Parece-me, então, que poderíamos imaginar que há uma<br />
sexta proposta. A proposta que eu chamaria, então, a distância,<br />
o deslocamento, a troca de lugar. Sair do centro, deixar<br />
que a linguagem fale também na fronteira, naquilo que se ouve,<br />
naquilo que chega do outro (PIGLIA, 2001, p.3).<br />
Creio que é desse lugar distanciado em relação à própria<br />
palavra, quase sempre cristaliza<strong>da</strong>, que o historiador <strong>da</strong> literatura<br />
libertaria outros sentidos para a história que narra, libertaria a ver<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> correspondência, no limite impossível, com os fatos, aproximando-se<br />
do narrador ficcional na medi<strong>da</strong> em que cede espaço<br />
para a entra<strong>da</strong> em cena do outro que nos constitui. O historiador<br />
contaria não exatamente o que aconteceu mas, como o poeta!<br />
prosador, o que poderia ter acontecido. Ou, ain<strong>da</strong>, como quer
32 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Piglia, "O ponto cego <strong>da</strong> experiência, que quase não se pode transmitir",<br />
a menos que se "suponha uma relação nova com a linguagem<br />
dos limites" (PIGLIA, 2001, p.2).<br />
Referências<br />
ARANTES, Otília Beatriz Fiori e ARANTES, Paulo Eduardo. Sentido <strong>da</strong><br />
formação: três estudos sobre Antonio Candido, Gil<strong>da</strong> de Mello e Souza e<br />
Lúcio Costa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.<br />
BORGES, Jorge Luis. O escritor argentino e a tradição. In: --o Obras<br />
<strong>completa</strong>s. São Paulo: Globo, 1998, p.288-296, V.I.<br />
---o Sobre os clássicos. In: --o Obras <strong>completa</strong>s. São Paulo: Globo, 1999,<br />
p.167-169, v.2.<br />
CAMPOS, Haroldo de. O seqüestro do barroco na fomwção <strong>da</strong> literatura<br />
brasileira: o caso Gregório de Mattos. Salvador: Fun<strong>da</strong>ção Casa de Jorge<br />
Amado, 1989.<br />
CANDIDO, Antonio Formação <strong>da</strong> literatura brasileira: momentos decisivos.<br />
2 v. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975.<br />
CANDIDO, Antonio. A literatura e a vi<strong>da</strong> social. In: -. Literatura e socie<strong>da</strong>de:<br />
estudos de teoria e história literária. São Paulo: Editora Nacional, 1976, pp.<br />
17-39.<br />
CHIAPPINI, Ligia. Os equívocos <strong>da</strong> crítica à Formação. In: D'INCAO, Maria<br />
Angela & SCARABÔTOLO, Eloísa Faria (Orgs.). Dentro do texto, dentro<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>: ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />
Instituto Moreira SaBes, 1992, p.170-177.<br />
LIMA, Luiz Costa. Concepção de história literária na Formação. D'INCAO,<br />
Maria Angela & SCARABÔTOLO, Eloísa Faria (Orgs.). Dentro do texto,<br />
dentro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>: ensaios sobre Antonio Condido. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s<br />
Letras, Instituto Moreira SaBes, 1992, p.153-169.<br />
OLlNTO, Heidrun Krieger. (org.) Histórias de literatura. As novas teorias<br />
alemãs. São Paulo: Ática, 1996.
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira<br />
33<br />
PIGLlA, Ricardo. Uma propuesta para el nuevo milenio. Margens - Caderno<br />
de Cultura, Belo Horizonte, Mar deI Plata, Buenos Aires, n.2, out. 2001.<br />
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong>des, 1977.<br />
--o Nacional por subtração. In: --o Que horas são São Paulo:<br />
Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1989, p. 29-48.<br />
--o Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis.<br />
São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong>des, 1990.
35<br />
Antonio Candido e o projeto de Brasil<br />
Regina Zilberman<br />
(PUC-RS)<br />
Mas olhemos antes, em sua generali<strong>da</strong>de, a Formação <strong>da</strong> literatura<br />
brasileira. O livro, fun<strong>da</strong>mental como poucos outros serão<br />
em nossa cultura - do porte, digamos, de Um estadista do Império,<br />
Casa-grande e senzala, Raízes do Brasil -, é, antes de mais<br />
na<strong>da</strong>, uma história do Brasil. Mas uma história que se desenrola<br />
numa região mental diferente. Trata-se do Brasil pensando a si<br />
próprio. O monólogo interior do Brasil.<br />
Antonio Callado<br />
1 Cf. ANDERSON, Benedict.<br />
Nação e consciência nacional.<br />
Trad. de Lólio Lourenço de<br />
Oliveira. São Paulo: Ática,<br />
1989.<br />
No estudo sobre o que chama de comuni<strong>da</strong>des imagina<strong>da</strong>s,<br />
Benedict Anderson escrutina o modo como, nas diferentes regiões<br />
do globo terrestre, se constitui o sentimento de nação ou a<br />
consciência nacional. 1 Se, na Europa, a introdução <strong>da</strong> imprensa fraturou<br />
a uni<strong>da</strong>de do latim, promoveu a ascensão <strong>da</strong>s línguas vemáculas<br />
e, com isso, enfraqueceu o poder centralizador <strong>da</strong> Igreja, na América<br />
o processo foi distinto. Nesse continente, a consciência nacional<br />
associou-se ao movimento separatista, resultante do fortalecimento<br />
de uma sensibili<strong>da</strong>de singular, conforme a qual as pessoas gera<strong>da</strong>s<br />
no Novo Mundo começaram a se perceber vincula<strong>da</strong>s ao espaço<br />
natal, a se entender desde uma noção de pertença à terra de origem,<br />
a qual desejaram transformar em nacionali<strong>da</strong>de.<br />
Anderson indica que, na Europa <strong>da</strong> imprensa nascente, houve<br />
a territorialização <strong>da</strong> língua, que fragmentou a uni<strong>da</strong>de até então<br />
garanti<strong>da</strong> pela fé e pelas dinastias imperiais. Essas adquiriram cunho<br />
"nacional", condição que garantiu sua permanência na I<strong>da</strong>de<br />
Moderna. Na América, talvez seja possa afirmar que a<br />
"territorialização" foi literalmente telúrica, graças à assimilação
36 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
entre o espaço e o sentimento suscitado por ele.<br />
Provavelmente foram os Estados Unidos o lugar em que a<br />
associação entre nacionali<strong>da</strong>de e conquista do território tenha se<br />
<strong>da</strong>do de modo mais completo. Ain<strong>da</strong> que a independência tenha<br />
envolvido a área ocupa<strong>da</strong> pelas treze colônias originais, a expansão<br />
na direção do Ocidente já se anunciava no século XVIII; e, na<br />
primeira metade do século XIX, o país incorporava a Louisiania,<br />
disputava o Texas e avançava célere rumo à conquista <strong>da</strong> região<br />
junto à orla do oceano Pacífico. A Doutrina Monroe, ambígua aos<br />
olhos atuais, significou, em 1823, uma toma<strong>da</strong> de posição política<br />
que tinha como referência o desenho geográfico do Estado que se<br />
apresentava à população norte-americana.<br />
Outros povos elegeram fórmulas distintas, sem abrir mão<br />
<strong>da</strong> relação entre nacionali<strong>da</strong>de e espaço físico. Alguns colocaram<br />
a literatura na função de intermediário, transferindo-lhe a tarefa<br />
de representar o sentimento <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de que se definia por<br />
um apreço especial conferido à pátria, local de nascença e permanência.<br />
No Brasil, o processo tomou configuração particular, pois,<br />
mais do que representar ou traduzir aquele sentimento ou consciência<br />
nacional, coube à literatura substituí-lo, tomar seu lugar e<br />
constituir, ela mesma, a encarnação do nacional.<br />
Não foram os teóricos e militantes <strong>da</strong> Independência que<br />
delegaram à literatura aquela missão, pois a tarefa definiu-se algumas<br />
déca<strong>da</strong>s após a separação <strong>da</strong> metrópole. Foi preciso, inicialmente,<br />
suplantar o sentimento antilusitano experimentado pelos<br />
intelectuais que tiveram de aceitar o governo de D. Pedro I, depois<br />
apear o imperador do poder e então buscar na história os<br />
<strong>da</strong>dos que aju<strong>da</strong>riam a encorpar a consciência <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de. É<br />
que essa não podia se construir à revelia <strong>da</strong>s relações manti<strong>da</strong>s,<br />
desde o período colonial, com a Metrópole, de modo que se fez à<br />
custa <strong>da</strong> conciliação entre separatismo e aceitação <strong>da</strong> dependência<br />
econômica e cultural.<br />
O aparecimento, em 1838, de instituições como o Instituto<br />
Histórico e Geográfico Brasileiro, modelado conforme o de Paris,<br />
colaborou para que o intuito nativista se concretizasse. Mas o<br />
fato de que, no começo <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1840, seus membros ain<strong>da</strong><br />
buscassem fórmulas que ensinassem "Como se deve escrever a<br />
história do Brasil", tema do concurso promovido em 1840 e vencido,<br />
em 1845, por um estrangeiro, o cientista alemão Carl F. Philip
Antonio Candido e o projeto de Brasil<br />
37<br />
2 Cf. MARTIUS, Carl Friedrich<br />
Philipp von. Como se deve<br />
escrever a História do Brasil.<br />
Revista do Instituto Histórico<br />
e Geográfico Brasileiro. Rio<br />
de Janeiro 6 (24) : 389 - 411.<br />
Janeiro de 1845. Cf. igualmente<br />
ZILBERMAN, Regina Romance<br />
histórico, história romancea<strong>da</strong>. In: .<br />
AGUIAR, Flávio; MEIHY,<br />
José Carlos Sebe Bom;<br />
V ASCONCELOS, Sandra<br />
Guardini T. (Org.). Gêneros de<br />
fronteira. Cruzamentos entre o<br />
histórico e o literário. São Paulo:<br />
Xamã, 1997.<br />
J Cf. DENIS, Ferdinand.<br />
Resumo <strong>da</strong> história literária<br />
do Brasil. Trad. e notas<br />
Guilhermino Cesar. Porto<br />
Alegre: Lima, 1968. Cf.<br />
GARRETT, Almei<strong>da</strong>. Bosquejo<br />
<strong>da</strong> História <strong>da</strong> Poesia e Língua<br />
Portuguesa. In: _. Parnaso<br />
Lusitano. Paris: J. P. Aillaud,<br />
1826.<br />
4 SILVA, Joaquim Norberto<br />
de Sousa. "Bosquejo <strong>da</strong><br />
história <strong>da</strong> poesia brasileira."<br />
In: ZILBERMAN, Regina;<br />
MOREIRA, Maria Eunice. O<br />
berço do cânone. Porto Alegre:<br />
Mercado Aberto, 1998. p. I üO.<br />
Originalmente publicado em<br />
Modulações poéticas. Rio de<br />
Janeiro: Tipografia Francesa,<br />
1841.<br />
von Martius, é sugestivo <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des experimenta<strong>da</strong>s por aquele<br />
colegiado, numa época em que a autonomia política parecia<br />
assegura<strong>da</strong>. 2<br />
A mesma déca<strong>da</strong> de 40 do século XIX presenciou fenômeno<br />
interessante: se ain<strong>da</strong> era preciso estabelecer parâmetros para<br />
a re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> história do Brasil, que, <strong>da</strong> sua parte, não podia evitar<br />
a afirmação <strong>da</strong> presença e influência portuguesa, a história <strong>da</strong> literatura,<br />
por outro lado, já propunha algumas formulações bem defini<strong>da</strong>s.<br />
As primeiras propiciaram-nas estrangeiros interessados na<br />
trajetória literária que o país parecia dispor: em 1826, tanto o<br />
francês Ferdinand Denis, quanto o lusitano Almei<strong>da</strong> Garrett, ambos<br />
residentes na ocasião em Paris, conferiam deti<strong>da</strong> atenção aos<br />
poetas nascidos no Brasil, comparando-os a seus confrades lusitanos.<br />
3 Mas os brasileiros não demoraram a se manifestar, valendo<br />
a pena destacar que, em 1841, Joaquim Norberto de Sousa<br />
Silva,já então membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,<br />
redigia o "Bosquejo <strong>da</strong> história <strong>da</strong> poesia brasileira", bastante<br />
calcado nos predecessores Denis e Garrett, mas, ain<strong>da</strong> assim,<br />
confiante de que ''já possuíamos uma literatura, senão legitimamente<br />
nacional, - que raras o são -, ao menos em parte",4<br />
sintoma de que igualmente contabilizávamos um passado e consistíamos<br />
uma nação.<br />
A literatura corporificou doravante a nação, respondeu por<br />
ela e prestou contas, em nome <strong>da</strong> autonomia e <strong>da</strong> auto-suficiência,<br />
ausente talvez em outros setores <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> pública e social. Os<br />
historiadores <strong>da</strong> literatura converteram-se em avalistas <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de,<br />
o que, se, de um lado, aumentou sua responsabili<strong>da</strong>de,<br />
de outro, afiançou a notorie<strong>da</strong>de que alcançaram, bem como sua<br />
inserção nos aparelhos de Estado: no século XIX, o Colégio de<br />
Pedro 11 e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; no século<br />
XX, a universi<strong>da</strong>de, onde exercem seu ofício.<br />
A história <strong>da</strong> história <strong>da</strong> literatura é, pois, a <strong>da</strong> trajetória <strong>da</strong><br />
busca, encontro e afirmação <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de, expressa e materializa<strong>da</strong><br />
pelas obras que formam aquele acervo. Antônio Candido<br />
situa-se num ponto fulcral desse percurso, porque, assim como se<br />
integra ao processo, revela seus limites e aponta para suas contradições,<br />
indicando, por extensão, as alternativas que se abrem ao<br />
pesquisador a partir do modo como desempenhou sua função.
38 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
1. Uma história de formações<br />
Quando publicou, em 1959, a Formação <strong>da</strong> literatura brasileira:<br />
momentos decisivos, Antonio Candido já tinha percorrido<br />
os caminhos <strong>da</strong> história <strong>da</strong> literatura, matéria de sua Introdução<br />
ao método crítico de Sílvio Romero, de 1945, e de sua participação,<br />
com o capítulo "O escritor e o público", no projeto encabeçado<br />
por Afrânio Coutinho e intitulado A literatura no Brasil. O<br />
crítico literário talvez fosse mais notório, graças à atuação na <strong>revista</strong><br />
Clima, no começo <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1940, e nos jornais Folha<br />
de São Paulo, Diário de São Paulo e Estado de São Paulo (cujo<br />
famoso Suplemento Literário ajudou a planejar e a manter), nos<br />
anos 40 e 50, de que resultaram os estudos reunidos em Briga<strong>da</strong><br />
ligeira, de 1945, e O observador literário, de 1959. 5<br />
Quando publicado, "Formação <strong>da</strong> literatura brasileira:<br />
momentos decisivos" constituiu, contudo, seu produto mais extenso<br />
e encorpado, revelador de seu profundo conhecimento <strong>da</strong><br />
tradição <strong>da</strong> literatura brasileira, com ênfase na documentação dos<br />
séculos xvrn e XIX, cita<strong>da</strong> ao longo dos dois volumes do livro.<br />
Candido costuma falar com certa modéstia <strong>da</strong> obra, atribuindo<br />
sua feitura à encomen<strong>da</strong> do editor José de Barros Martins, que o<br />
encarregara de elaborar "uma história <strong>da</strong> literatura brasileira,<br />
aos origens aos nossos dias, em dois volumes breves, entre a divulgação<br />
séria e o compêndio", aguar<strong>da</strong>ra pacientemente "na<strong>da</strong><br />
menos de dez anos" e acolhera um texto distinto do solicitado,<br />
portador de um título não muito usual nos meios literários. 6<br />
Vale lembrar, por outro lado, que, no mesmo ano, Celso<br />
Furtado publicava a Formação econômica do Brasil e que, na<br />
déca<strong>da</strong> anterior, mais exatamente em 1942, Caio Prado Júnior<br />
editara Formação do Brasil contemporâneo: colônia, enquanto<br />
Nelson Werneck Sodré, em 1944, escrevera e publicara, pela coleção<br />
Documentos Brasileiros, <strong>da</strong> José Olympio, a Formação <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de brasileira. Um ano antes do aparecimento <strong>da</strong> Formação<br />
<strong>da</strong> literatura no Brasil, em 1958, Raymundo Faoro lançara<br />
Os donos do poder, cujo subtítulo informava tratar a obra <strong>da</strong> "Formação<br />
do patronato político brasileiro".<br />
O capítulo <strong>da</strong>s "formações" congregava importantes intelectuais<br />
e pesquisadores do Brasil até o princípio <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de<br />
60, que, por meio do título de seus livros, confessavam determi-<br />
S Cf. D'INCAO, Maria AngeIa;<br />
SCARAB6TOLC, Eloísa<br />
Faria (Org.). Dentro do texto,<br />
dentro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Ensaios sobre<br />
Antonio Candido. São Paulo:<br />
Companhia <strong>da</strong>s Letras; Poços<br />
de Cal<strong>da</strong>s: Instituto Moreira<br />
Salles, 1992.<br />
6 CANDIDO, Antonio. Prefácio<br />
<strong>da</strong> la edição. In: ___ o<br />
Formação <strong>da</strong> literatura<br />
brasileira. Momentos<br />
decisivos. 2. ed. <strong>revista</strong>. São<br />
Paulo: Martins, 1964. V. I, p.<br />
13.
Antonio Candido e o projeto de Brasil<br />
39<br />
7 IGLÉSIAS, Francisco.<br />
Introdução. In: FURTADO,<br />
Celso. Formação econômica<br />
do Brasil. Brasília: Editora<br />
Universi<strong>da</strong>de de Brasília, 1963.<br />
8 Cf. NIETZSCHE, Friedrich.<br />
El nacimiento de la tragedia.<br />
Introdução, tradução e notas<br />
Andrés Sánchez Pascual.<br />
Buenos Ayres: Alianza, 1998.<br />
9 Cf. NIETZSCHE, Friedrich.<br />
La genealogía de la moral.<br />
Introdução, tradução e notas<br />
Andrés Sánchez Pascual.<br />
Buenos Ayres: Alianza, 1998.<br />
na<strong>da</strong> afini<strong>da</strong>de intelectual entre si.<br />
No prefácio à Formação econômica do Brasil, Francisco<br />
Iglésias destaca que, ain<strong>da</strong> que o autor do livro, Celso Furtado,<br />
fosse economista, a atitude que assume na re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> obra é a do<br />
historiador. O mesmo atributo confere Iglésias a Caio Prado Júnior,<br />
que, em 1945, escreve a História econômica do Brasil. Nesse<br />
caso, destaca que o trabalho de Prado Júnior importa sobretudo<br />
para a história, tal qual o de Furtado, embora o pesquisador paulista<br />
talvez desejasse ser acolhido pelos economistas. A observação<br />
de Iglésias indica como o termo "formação", presente direta ou<br />
indiretamente nos títulos, vincula-se ao âmbito <strong>da</strong> história, apresentando-se<br />
como uma <strong>da</strong>s facetas <strong>da</strong> investigação <strong>da</strong>s genealogias.<br />
O estabelecimento <strong>da</strong>s "formações" é uma maneira de fazer<br />
história, que, desde logo, nega uma tendência do gênero, a de<br />
buscar as origens ou o ato primordial <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção. Esse procedimento<br />
vigorou no século XIX, sobretudo quando se estabilizaram<br />
as histórias nacionais, caracteriza<strong>da</strong>s pelo esforço de fixar o momento,<br />
ou a <strong>da</strong>ta, de nascimento <strong>da</strong> pátria. Aceito o episódio inicial,<br />
estruturava-se a cronologia, contínua e ascendente, na direção<br />
do aperfeiçoamento <strong>da</strong>s marcas iniciais e diferenciadoras, que viriam<br />
distinguir e assegurar o perfil nacional.<br />
O século XIX mostrou-se pródigo no que diz respeito a<br />
histórias nacionais desse feitio, modelo absorvido e assimilado pelas<br />
histórias <strong>da</strong> literatura. Também essas movimentavam-se na busca<br />
dos incidentes fun<strong>da</strong>dores, a gênese mítica, a partir <strong>da</strong> qual se<br />
construía uma tradição; marca<strong>da</strong> por especifici<strong>da</strong>des e diferenças.<br />
O pensamento romântico, valorizando as origens e a primitivi<strong>da</strong>de,<br />
colaborou para fun<strong>da</strong>mentar teoricamente a historiografia <strong>da</strong> literatura,<br />
que assim se consolidou e expandiu-se, firmando-se sobretudo<br />
graças à sua aliança com a escola e o ensino.<br />
N a passagem do século XIX para o XX, pensadores como<br />
Friedrich Nietzsche questionaram o arranjo <strong>da</strong> história, de um lado,<br />
entendendo o nascimento como um evento consagrador, e não<br />
como manifestação de primitivi<strong>da</strong>de inacaba<strong>da</strong> e imperfeita, de<br />
que é exemplo seu estudo sobre a tragédia grega;8 de outro, valorizando<br />
a pesquisa em nome <strong>da</strong>s genealogias, momento de revelação,<br />
compreensão e análise <strong>da</strong> natureza dos temas e objetos que<br />
vêm a ser matéria <strong>da</strong> reflexão do filósofo. 9<br />
A pesquisa foca<strong>da</strong> na genealogia privilegia o começo, acom-
40 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
panhando a transformação, e não sua evolução. Só que o começo<br />
é móvel, porque corresponde ao tempo em que a investigação<br />
inicia, ocasião escolhi<strong>da</strong> e fixa<strong>da</strong> pelo pesquisador, que a elege em<br />
sintonia com o tema a estu<strong>da</strong>r e a perspectiva a assumir. Se o tema<br />
perde em autonomia, o estudioso ganha em compromisso com o<br />
trabalho executado, passando, doravante, um a depender do outro.<br />
O ângulo metodológico adotado faz com que o tema depen<strong>da</strong><br />
do sujeito que o investiga; mas esse precisa responder pelas formulações<br />
apresenta<strong>da</strong>s.<br />
O modo como Antonio Candido li<strong>da</strong> com a formação <strong>da</strong><br />
literatura brasileira guar<strong>da</strong> afini<strong>da</strong>des com essa proposta de se fazer<br />
história, cujo resultado permitiu-lhe, por extensão, refletir sobre<br />
a socie<strong>da</strong>de brasileira a partir de paradigmas que suplantam as<br />
limitações impostas pela ótica romântica.<br />
2. Formação e sistema<br />
Candido explica o entendimento <strong>da</strong> noção de formação na<br />
introdução de sua obra, dividi<strong>da</strong> em quatro capítulos. O primeiro<br />
começa por uma toma<strong>da</strong> de posição, estando declarado no parágrafo<br />
de abertura que" este livro procura estu<strong>da</strong>r a formação <strong>da</strong><br />
literatura brasileira como síntese de tendências universalistas e<br />
particularistas"; 10 logo a seguir, explica que, para melhor compreender<br />
o "processo formativo", cabe distinguir entre "manifestações<br />
literárias" e "literatura propriamente dita", sendo essa<br />
considera<strong>da</strong> "um sistema de obras liga<strong>da</strong>s por denominadores<br />
comuns".11<br />
Na perspectiva de Antonio Candido, o reconhecimento de<br />
que os textos literários estão interligados garante a identificação<br />
do sistema. A literatura não se confunde com a obra; pelo contrário,<br />
ultrapassa-a, constituindo uma armação que acolhe ou rejeita<br />
criações distiI1tas que se apresentam a ela. Essa descrição não esgota,<br />
porém, a r.~,:[c de sistema, que transcende o universo artístico,<br />
ao incluir umà r~de de sujeitos e de concepções vigentes no<br />
meio onde a criação individual aparece. Eis a natureza dos denominadores<br />
comuns, assim discriminados pelo Autor:<br />
10 CANDIDO, Antonio. Op. cit.<br />
p.25.<br />
11 Id. p. 25. Ênfases do A.<br />
Estes denominadores são, além <strong>da</strong>s características internas, (língua,<br />
temas, imagens), certos elementos de natureza social e
Antonio Candido e o projeto de Brasil<br />
41<br />
12 Id. p. 25-26.<br />
psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam<br />
historicamente e fazem <strong>da</strong> literatura aspecto orgânico <strong>da</strong><br />
civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto<br />
de produtores literários, mais ou menos conscientes do<br />
seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes<br />
tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo<br />
transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzi<strong>da</strong> em estilos),<br />
que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá<br />
lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que<br />
aparece, sob este ângulo como sistema simbólico, por meio do<br />
qual as velei<strong>da</strong>des mais profun<strong>da</strong>s do indivíduo se transformam<br />
em elementos de contato entre os homens, e de interpretação<br />
<strong>da</strong>s diferentes esferas <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. 12<br />
13 CANDIDO, Antonio. "A<br />
literatura e a vi<strong>da</strong> social". In:<br />
. Literatura e socie<strong>da</strong>de.<br />
Estudos de teoria e história<br />
literária. São Paulo: Nacional,<br />
1965. p. 27. Ênfases do A.<br />
Candido refere-se a três elementos - sumariamente resumidos<br />
ao produtor literário, ao conjunto de receptores, e ao mecanismo<br />
transmissor, a linguagem - que possibilitam a uma obra<br />
literária aparecer e amalgamar-se a um processo de comunicação<br />
interpessoal. Percebe-se desde logo que o sistema conta com, pelo<br />
menos, quatro fatores, pois um deles, a linguagem, defini<strong>da</strong> de<br />
modo muito amplo no excerto citado, inclui tanto um suporte<br />
material, que varia segundo sua especifici<strong>da</strong>de, quanto um código<br />
virtual.<br />
No ensaio, <strong>da</strong>tado de época aproxima<strong>da</strong>, "A literatura e a<br />
vi<strong>da</strong> social", Candido insiste no modelo triádico, referindo-se aos<br />
"três momentos indissoluvelmente ligados <strong>da</strong> produção, e [que J<br />
se traduzem, no caso <strong>da</strong> comunicação artística, como autor, obra,<br />
público."13 Trata-se, porém, de uma simplificação de sua intuição<br />
metodológica, que, de certo modo, condiz com o modelo preferido<br />
pela teoria <strong>da</strong> comunicação, formado por seis elementos em<br />
permanente integração e comutação: 14<br />
14 Cd. JAKOBSON, Roman.<br />
Lingüística e poética. In: _.<br />
Lingüística e comunioação. 2.<br />
ed.Trad. Isidoro Blickstein e<br />
José Paulo Peso São Paulo:<br />
Cultrix, 1969. p. 123.<br />
contexto<br />
emissor ou remetente mensagem ou obra<br />
canal<br />
código<br />
recebedor ou destinatário<br />
Na perspectiva de Candido, esse modelo, ain<strong>da</strong> que orgânico,<br />
não é estático, mas dinâmico, já que a interação entre os fato-
42 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n. 9, 2006<br />
res <strong>da</strong> comunicação aciona e anima o sistema. Além disso, confere<br />
papel categórico ao público, noção coletiva que abriga os destinatários<br />
<strong>da</strong>s manifestações dos produtores literários. Por último,<br />
materializa o significado <strong>da</strong> formação, pois essa somente se concretiza<br />
quando estão presentes os sujeitos, os meios e as intenções artísticas<br />
que, conjugados, mobilizam-se para prover de cultura e de literatura<br />
a um determinado ambiente ou cenário geográfico.<br />
No Brasil, segundo Antonio Candido, "isto ocorre a partir<br />
dos meados do século XVIII, adquirindo plena nitidez na primeira<br />
metade do século XIX": 15<br />
É com os chamados árcades mineiros, as últimas academias e<br />
certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando<br />
conjuntos orgânicos e manifestando em graus variáveis<br />
a vontade de fazer literatura brasileira. 16<br />
15 CANDIDO, Antonio.<br />
Formação <strong>da</strong> literatura<br />
brasileira. V. I, p. 27.<br />
16 Id. p. 27.<br />
Amparado na noção de sistema, Candido pode enraizar a<br />
formação num determinado tempo e em certo espaço, liberandose<br />
dos atos fun<strong>da</strong>dores, dos atestados de nascimento e de batismo,<br />
<strong>da</strong>s manifestações isola<strong>da</strong>s, dos voluntarismos individuais. A<br />
formação não constitui processo abstrato, nem o sistema opera<br />
no vácuo, já que inclui, como se fosse um sétimo fator, uma <strong>da</strong><strong>da</strong><br />
intenção - no caso, a vontade de fazer literatura brasileira. O historiador<br />
<strong>da</strong> literatura retoma ao ponto de onde saíram os pesquisadores<br />
que o antecederam, para oferecer sua interpretação dos<br />
acontecimentos. O sistema pode não ter início, mas dispõe de uma<br />
finali<strong>da</strong>de, matéria principal do projeto <strong>da</strong> historiografia literária<br />
brasileira.<br />
3. Início e projeto<br />
Em 1996, Antonio Candido publicou uma Iniciação à literatura<br />
brasileira, resumo originalmente destinado a fazer parte<br />
de obra coletiva a ser publica<strong>da</strong> na Itália "no quadro <strong>da</strong>s comemorações<br />
do 5° Centenário do descobrimento <strong>da</strong> América" .17 A coletânea<br />
programa<strong>da</strong> não se concretizou, o autor conservou o original<br />
até decidir lançá-lo "como texto interno <strong>da</strong> nossa Facul<strong>da</strong>de<br />
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São<br />
Paulo", com o intuito de "oferecer aos jovens <strong>da</strong> Casa uma espé-<br />
17 CANDIDO, Antonio. Nota<br />
prévia. In: _. Iniciação à<br />
literatura brasileira. 3. ed. São<br />
Paulo: Humanitas, 1999. p. 9.
Antonio Candido e o projeto de Brasil<br />
43<br />
I8 Id. ibid.<br />
19 CANDIDO, Antonio.<br />
Apresentação. In: _./nicillção<br />
à literatura brasileira. p. 11.<br />
cie de aide mémoire que esclareça o desenho geral <strong>da</strong> literatura<br />
brasileira e sirva de complemento a textos mais substanciosos."18<br />
Mais uma vez a modéstia <strong>da</strong> apresentação não faz jus ao<br />
texto, que, ao substituir a "formação" pela "iniciação", retoma<br />
pontos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> obra de 1959. O primeiro deles aparece<br />
na introdução, em que o autor observa, primeiramente, a pertença<br />
<strong>da</strong> literatura do Brasil às "do Ocidente <strong>da</strong> Europa". A seguir, lembra<br />
que, no nosso caso, "o conceito de 'começo' é nela bastante<br />
relativo", porque, ao contrário do que ocorreu com as "literaturas<br />
matrizes" (como a portuguesa, em relação à brasileira), 19 não<br />
houve uma paulatina e simultânea constituição <strong>da</strong> língua, <strong>da</strong> literatura<br />
e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Na América, deu-se o imediato e cabal transplante<br />
de uma tradição literária já existente:<br />
20 Id. p. 12.<br />
Assim, a literatura não 'nasceu' aqui: veio pronta de fora para<br />
transformar-se à medi<strong>da</strong> que se formava uma socie<strong>da</strong>de nova. 20<br />
A seguir, o autor <strong>completa</strong> e explícita o paradoxo:<br />
21 Id. p. 13.<br />
Num país primitivo, povoado por indígenas na I<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Pedra,<br />
foram implantados a ode e o soneto, o tratado moral e a epístola<br />
erudita, o sermão e a crônica dos fatos. 21<br />
Além de paradoxal, o processo tem um significado ideológico<br />
que evidencia o papel exercido pela literatura durante a colonização<br />
e a trajetória subseqüente <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira:<br />
22 Id. p. 13.<br />
A história <strong>da</strong> literatura é em grande parte a história de uma<br />
imposição cultural que foi aos poucos gerando expressão literária<br />
diferente, embóra em correlação estreita com os centros<br />
civilizadores <strong>da</strong> Europa. 22<br />
A conclusão', surpreendente pela convicção, motiva a necessi<strong>da</strong>de<br />
de explicar o sentido <strong>da</strong> palavra "imposição":<br />
Esta imposição atuou também no sentido mais forte <strong>da</strong> palavra,<br />
isto é, como instrumento colonizador, destinado a impor e<br />
manter a ordem política e social estabeleci<strong>da</strong> pela Metrópole,<br />
através inclusive <strong>da</strong>s classes dominantes locais.<br />
Com efeito, além <strong>da</strong> sua função própria de criar formas ex-
44 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
pressivas, a literatura serviu para celebrar e inculcar os valores<br />
cristãos e a concepção metropolitana de vi<strong>da</strong> social, consoli<strong>da</strong>ndo<br />
não apenas a presença de Deus e do Rei, mas o monopólio<br />
<strong>da</strong> língua. Com isso, desqualificou e proscreveu possíveis<br />
fermentos locais de divergência, como os idiomas, crenças<br />
e costumes dos povos indígenas, e depois os dos escravos africanos.<br />
Em suma, desqualificou a possibili<strong>da</strong>de de expressão e<br />
visão-de-mundo dos povos subjugados.<br />
Essa literatura culta de senhores foi a matriz <strong>da</strong> literatura<br />
brasileira erudita. 23<br />
23 Id. p. 13.<br />
Rejeitando, por outra via, o conceito de fun<strong>da</strong>ção ou começo<br />
mítico, tal como fizera na Formação, Candido, na Iniciação,<br />
reitera o caráter motivado e pragmático que acompanha a presença<br />
e a ação <strong>da</strong> literatura no espaço americano. Mais explicitamente<br />
materialista que nos anos 50, não tem ilusões quando ao papel<br />
que exercem os aparelhos culturais e a tradição literária no processo<br />
de ocupação e colonização do Novo Mundo. Contudo, não<br />
se deixa levar pela perspectiva reducionista, tratando de evidenciar<br />
o modo dialético com que se dá o desenvolvimento <strong>da</strong> literatura<br />
nas condições impostas pelo meio - físico, econômico, socialoriginal.<br />
Eis por que lembra que cabe "discemir na literatura brasileira<br />
um duplo movimento de formação", decorrente <strong>da</strong> ação de<br />
dois fatores diversos que requereram harmonização: de um lado,<br />
a necessi<strong>da</strong>de de converter a reali<strong>da</strong>de observa<strong>da</strong>, diferente <strong>da</strong><br />
que caracterizava a literatura européia, em tema artístico, o que<br />
significou inserir o novo no corpo do tradicional; de outro, a necessi<strong>da</strong>de<br />
de alterar as formas convencionais, para que tivessem<br />
condições de absorver os <strong>da</strong>dos locais, o que significou a<strong>da</strong>ptar o<br />
velho às formulações do até então desconhecido.<br />
O jogo que se estabelece determina a permanente e<br />
irremovível tensão experimenta<strong>da</strong> pelos produtores literários brasileiros,<br />
que se expressam com mais intensi<strong>da</strong>de à medi<strong>da</strong> que o<br />
sistema se consoli<strong>da</strong>. Esse adquire forma a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade<br />
do século XVIII, reproduzindo-se na Iniciação o recorte histórico<br />
proposto na Formação, agora com nome e sobrenome, pois<br />
o período é designado "era de configuração do sistema literário",<br />
antecedido pela "era <strong>da</strong>s manifestações literárias" e sucedido<br />
pela "era do sistema literário consoli<strong>da</strong>do" .24 Sistema, por !4 Id. p. 14. Itálicos do A.
Antonio Candido e o projeto de Brasil<br />
45<br />
sua vez, recebe definição ligeiramente diversa, ain<strong>da</strong> que o pensador<br />
não resista a defini-lo conforme um modelo triádico:<br />
25 Id. p. 15.<br />
26 Em "Literatura e desenvolvimento",<br />
Candido vale-se<br />
mais uma vez <strong>da</strong> triplice repartição<br />
paraentendere descrever a escala<br />
de re-presentação do subdesenvolvimento<br />
pela literatura<br />
brasileira. Cf. CANDIDO,<br />
Antonio. Literatura e desenvolvimento.<br />
In: _. A educação<br />
pew noite & outros ensaios. São<br />
Paulo: Ática, 1987.<br />
27 Cf. VERÍSSIMO, José.<br />
História <strong>da</strong> literatura brasileira.<br />
De Bento Teixeira<br />
(1601) a Machado de Assis<br />
(1908).4. ed. Brasília: Ed. <strong>da</strong><br />
Universi<strong>da</strong>de de Brasília, 1963.<br />
Entendo aqui por sistema a articulação dos elementos que constituem<br />
a ativi<strong>da</strong>de literária regular: autores formando um conjunto<br />
virtual, e veículos que permitem o seu relacionamento, definindo<br />
uma "vi<strong>da</strong> literária": públicos, restritos ou amplos, capazes<br />
de ler ou ouvir as obras, permitindo com isso que elas<br />
circulem e atuem; tradição, que é o reconhecimento de obras e<br />
autores precedentes, funcionamento como exemplo ou justificativa<br />
<strong>da</strong>quilo que se quer fazer, mesmo que seja para rejeitar. 25 .<br />
Talvez seja o impacto do método dialético, debitado a Hegel<br />
e, depois, a Marx, que leve Antonio Candido a repartir em três<br />
parcelas a noção de sistema que elege, assim como acontece ao<br />
recorte histórico proposto, que apresenta invariavelmente três etapas.<br />
26 A etapa intermediária corresponde à antítese <strong>da</strong> primeira<br />
desde sua designação, pois, tal como na Formação e em ensaios<br />
posteriores, opõe as já menciona<strong>da</strong>s "manifestações literárias" à<br />
"literatura", correspondendo essa a uma estrutura defini<strong>da</strong> e complexa.<br />
Por decorrência, não pode encampar a divisão usual, preferi<strong>da</strong><br />
pela historiografia romântica e não desmenti<strong>da</strong> depois, entre<br />
as literaturas anterior e posterior à Independência, divisão aceita<br />
mesmo pelo na<strong>da</strong> romântico José Veríssimo, embora esse justifique<br />
a repartição em termos estéticos, e não exclusivamente históricos.<br />
27<br />
Com efeito, conforJTle Candido, tanto o que precedeu a separação<br />
política de Portugal e o Romantismo, quanto esse último<br />
movimento constituem uma única etapa, relativamente homogênea<br />
e contínua, caracteriza<strong>da</strong> não por estilos, temas ou escolas,<br />
mas pela adoção de um projeto comum.<br />
É na Formação que Candido refere-se pela primeira vez a<br />
esse projeto, descrito ain<strong>da</strong> na introdução <strong>da</strong> obra. Dado o fato de<br />
que ele define a natureza <strong>da</strong> literatura brasileira, desenhando sua<br />
personali<strong>da</strong>de e percurso, o projeto revela-se metodologicamente<br />
mais importante para a construção <strong>da</strong> história literária do que o<br />
reconhecimento do sistema e seu funcionamento. Esse constitui<br />
pré-condição <strong>da</strong> literatura, mas corresponde a uma armadura que<br />
requer preenchimento, o corpo e a alma traduzidos pelo projeto.
46 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Que, no caso <strong>da</strong> literatura brasileira, tem o seguinte teor:<br />
Os escritores neoclássicos são quase todos animados do desejo<br />
de construir uma literatura como prova de que os brasileiros<br />
eram tão capazes quanto os europeus; mesmo quando procuram<br />
exprimir uma reali<strong>da</strong>de puramente individual, segundo os<br />
moldes universalistas do momento, estão visando este aspecto.<br />
( ... )<br />
Depois <strong>da</strong> Independência o pendor se acentuou, levando a considerar<br />
a ativi<strong>da</strong>de literária como parte do esforço de construção<br />
do país livre, em cumprimento a um programa, bem cedo<br />
estabelecido, que visava a diferenciação e particularização dos<br />
temas e modos de exprimi-los. Isto explica a importância atribuí<strong>da</strong>,<br />
neste livro, à "toma<strong>da</strong> de consciência" dos autores quanto<br />
ao seu papel, e à intenção mais ou menos declara<strong>da</strong> de escrever<br />
para a sua terra, mesmo quando não a descreviam. 28<br />
Ao identificar o projeto que anima os escritores brasileiros,<br />
nascidos ou residentes na América portuguesa, Candido procede<br />
a uma importante inversão. Diferentemente dos historiadores <strong>da</strong><br />
literatura que o antecederam (e a alguns que o sucederam), ele<br />
não vai atrás <strong>da</strong> expressão nacional, que conferiria distinção e<br />
autonomia às obras produzi<strong>da</strong>s no torrão natal ou relativas a ele.<br />
Pelo contrário, ele transfere a busca para os autores estu<strong>da</strong>dos:<br />
são os intelectuais e criadores de boa parte dos séculos XVIII e<br />
XIX que trataram de se mostrar brasileiros, produzir uma arte<br />
"legitimamente americana", segundo os termos utilizados por Joaquim<br />
Norberto, antes citados, e, com isso, competirem em pé de<br />
igual<strong>da</strong>de com seus confrades europeus, em vez de emularem-nos.<br />
Candido não incorpora tal busca como sua, de modo que<br />
não precisa cobrar dos homens que fizeram a história <strong>da</strong> literatura<br />
brasileira a realização de uma idéia pré-concebi<strong>da</strong> e antecipa<strong>da</strong> pelo<br />
pesquisador. Em vez de ver o tecido pelo avesso, como segui<strong>da</strong>mente<br />
agiu a intelectuali<strong>da</strong>de nacional perante seu próprio passado,<br />
ele analisa o lado direito, verificando o que foi alcançado na direção<br />
<strong>da</strong> realização de um projeto que fez do Brasil uma nação.<br />
Nação com seus problemas e paradoxos, sem dúvi<strong>da</strong>. Como<br />
se observou antes, os românticos elegeram a literatura para, mais<br />
do que representar, corporificar a nacionali<strong>da</strong>de; <strong>da</strong> sua parte,<br />
porém, o país, povoado por iletrados, na maioria escravos, depois<br />
28 CANDIDO, Antonio.<br />
Formação <strong>da</strong> literatura<br />
brasileira. V. I, p. 28.
A rota dos romances para o Rio de laneiro no século XIX 47<br />
imigrantes oriundos de regiões muitos pobres <strong>da</strong> Europa, só poderia<br />
frustrá-los. Antes disso, como o próprio Candido destaca, a<br />
literatura tinha sido instrumento de dominação, imposição cultural,<br />
incu1cação de valores estranhos aos habitantes originais <strong>da</strong><br />
América; tinha sido também instrumento de exclusão, pois apenas<br />
no século XX, e nas últimas déca<strong>da</strong>s principalmente, as formas de<br />
expressão populares receberam atestado de legitimi<strong>da</strong>de artística,<br />
podendo ser inseri<strong>da</strong>s ao cânone e circular pela escola e pelas<br />
instituições culturais.<br />
Por tudo isso, a literatura parecia o veículo menos adequado<br />
a passar atestado de autonomia e nacionali<strong>da</strong>de a seus usuários.<br />
Foi ela, contudo, que recebeu a incumbência, e narrar sua história<br />
é igualmente acompanhar um trajeto de muitos fracassos e<br />
poucos sucessos. Trata-se, porém, de uma história consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>,<br />
frágil no que diz respeito aos resultados, mas resistente enquanto<br />
itinerário compacto e contínuo. Entendê-la eqüivale a entender a<br />
nós mesmos e a nosso lugar no trajeto percorrido, tendo, sempre<br />
que possível, a obra de Antonio Candido como nosso guia.
49<br />
A rota dos romances para o Rio de<br />
Janeiro no século XIX<br />
Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos<br />
(USP)<br />
o objetivo principal deste artigo é lançar luz sobre o mercado<br />
livreiro europeu <strong>da</strong>s primeiras déca<strong>da</strong>s do século XIX, com<br />
especial ênfase nos editores que exerceram um papel fun<strong>da</strong>mental<br />
na disponibilização e circulação dos romances ingleses no Brasil<br />
oitocentista. O interesse principal, aqui, recai sobre os mecanismos<br />
e práticas de mercado que possibilitaram que o principal porto<br />
brasileiro naquele período fosse um dos centros de irradiação e disseminação<br />
dos romances para o restante do território nacional. Trata-se<br />
de investigar um dos importantes atores no processo de difusão<br />
do gênero, na medi<strong>da</strong> em que foram responsáveis por criar condições<br />
materiais para a implantação do romance também no Brasil.<br />
O assunto de que vou tratar aqui foge do terreno propriamente<br />
literário. Ele forma, porém, junto com outros componentes,<br />
tais como a disponibili<strong>da</strong>de de equipamentos e bens culturais<br />
e a instituição de espaços públicos de leitura, a base material que<br />
possibilitou o acesso dos leitores aos livros durante o período que<br />
se seguiu à chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> Corte portuguesa ao Rio de Janeiro em<br />
1808. A abertura dos portos às nações amigas e os interesses comerciais<br />
em ambos os lados do Atlântico favoreceram a integração<br />
do país no mercado livreiro internacional, que experimentava, por<br />
sua vez, um momento de notável expansão mundial. O ato do<br />
Príncipe Regente ocorria, ao que tudo indica, num momento bastante<br />
propício para os livreiros europeus, ansiosos por expandirem<br />
suas ven<strong>da</strong>s e encontrarem novos consumidores para os livros<br />
que imprimiam e vendiam.<br />
Antes de penetrar nesse território, no entanto, gostaria de<br />
explorar alguns dos argumentos que Franco Moretti apresenta em
50 Revista Brasileira de Literatura Comp~ra<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
seu Atlas do Romance Europeu l , para, por um lado, confirmar<br />
algumas de suas observações, e por outro complicar ligeiramente<br />
o quadro que ele desenha dos mercados narrativos por volta<br />
<strong>da</strong> primeira metade do século XIX. Entre suas principais teses,<br />
Moretti demonstra a existência, nesse período, do que ele denomina<br />
de "duas superpotências narrativas" - a Grã-Bretanha e a<br />
França - como centros produtores e exportadores de ficção, fato<br />
que em si não deveria causar estranheza na medi<strong>da</strong> em que esse<br />
predomínio apenas reproduziria, no plano literário, o papel central<br />
que a base franco-britânica exerceu na "transformação do<br />
mundo entre 1789 e 1848"2. Os mapas de Moretti se restringem<br />
aos circuitos percorridos pelos romances franco-britânicos no restante<br />
<strong>da</strong> Europa e lhe permitem afirmar que, "na maior parte dos<br />
países europeus, a maioria dos romances são, muito simplesmente,<br />
livros estrangeiros"3. Embora não tenha sido seu propósito<br />
incluir na sua geografia literária os países deste lado de cá, se o<br />
tivesse feito, as constatações de Moretti dificilmente seriam diferentes.<br />
Da mesma maneira que húngaros, italianos, dinamarqueses<br />
e gregos 4 , também os leitores brasileiros iriam se familiarizar<br />
com o novo gênero por meio dos romances ingleses e<br />
franceses que, predominantemente, passaram a circular no Rio<br />
de Janeiro de modo ca<strong>da</strong> vez mais significativo a partir <strong>da</strong>s primeiras<br />
déca<strong>da</strong>s do século XIX e a se espraiar para as outras<br />
províncias do Império logo em segui<strong>da</strong>. O Brasil integrava-se,<br />
dessa forma, às rotas transatlânticas do mercado literário, que<br />
tinha seu centro na França e na Grã-Bretanha.<br />
Restaria, assim, verificar se o que Moretti lê nos mapas europeus,<br />
a preponderância expressiva dos romances canônicos e<br />
um "padrão regular e monótono" de entusiasmo pelos mesmos<br />
tipos de livros - ou, em suas próprias palavras, "uma Europa<br />
unifica<strong>da</strong> por um desejo pelo que Peter Brooks chamou de 'imaginação<br />
melodramática"'5 -, também vale para caracterizar as<br />
obras de ficção que se alugavam ou vendiam nas boticas e livrarias<br />
e que se emprestavam nos gabinetes de leitura e bibliotecas<br />
fluminenses. Um exame dos romances à disposição dos leitores<br />
brasileiros revela não apenas uma espécie de monopólio <strong>da</strong>s estantes<br />
por autores como, por exemplo, Walter Scott, Charles<br />
Dickens, Daniel Defoe e Eugene Sue, mas também exibe uma interessante<br />
diversificação de títulos e subgêneros novelísticos, pos-<br />
I Franco Moretti. Atlas of the<br />
Europea1l Novel, 1800-1900.<br />
London. Verso, 1999. Trad.<br />
bras.: Atlas do Roma1lce<br />
Europeu, 1800-1900. Trad.<br />
Sandra Guardini Vasconcelos.<br />
São Paulo. Boitempo, 2003.<br />
Ver capítulo 3, "Mercados<br />
narrativos, c. 1850", p. 153-<br />
208.<br />
2 Eric J. Hobsbawm. Ver<br />
prefácio, A Era <strong>da</strong>s<br />
Revoluções, Europa J 789-<br />
1848_ Trad. Maria Tereza<br />
Lopes Teixeira e Marcos<br />
Penchel. Rio de Janeiro. Paz e<br />
Terra, 1977, p.l5.<br />
3 Moretti, p. 197.<br />
4 Moretti, p. 197.<br />
, Moretti, p. 187.
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX 51<br />
6 Ver José de Alencar. "Como e<br />
porque sou romancista". Obra<br />
Completa. Rio de Janeiro, Ed.<br />
José Aguilar, 1959, vol. I, 125-<br />
155.<br />
7 Silver{ork: designação jocosa<br />
para se referir aos romancistas<br />
de princípios do século XIX que<br />
tratavam <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e dos<br />
costumes elegantes, deriva<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong>s descrições que o Fraser 's<br />
Magazine fazia de Edward<br />
Bulwer-Lytton como "polidor<br />
de garfos de prata". Embora<br />
Lytton afirmasse que seus<br />
propósitos eram satíricos, esses<br />
romances ofereciam aos leitores<br />
uma experiência vicária <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
em socie<strong>da</strong>de. Entre os<br />
romancistas "silver-fork"<br />
encontravam-se Lady Charlotte<br />
B ury, Lady Blessington,<br />
Benjamin Disraeli e Catherine<br />
Gore, cujos romances encontramos<br />
nos acervos dos<br />
gabinetes de leitura fluminenses.<br />
, Na sua análise <strong>da</strong> produção e<br />
circulação do romance na<br />
Europa, Moretti se vale <strong>da</strong><br />
teoria de Wallerstein para<br />
identificar os países que<br />
pertenceriam ao centro,<br />
semi periferia e periferia do<br />
sistema. Ver op. cit., p. 184.<br />
9 Moretti, p. 190.<br />
10 Moretti, p. 191.<br />
sivelmente facilita<strong>da</strong> pela posição periférica do Brasil nesse mercado.<br />
Isto é, para cá os livreiros man<strong>da</strong>ram um pouco de tudo:<br />
Richardson e Marivaux, Lesage e Sterne, Radcliffe e Paul de Kock,<br />
Charlotte Bronte e Chateaubriand, Bulwer-Lytton e Fenélon,<br />
Fielding e Dumas, só para citar alguns freqüentadores assíduos<br />
dos anúncios de jornal ou dos catálogos dos gabinetes de leitura<br />
desse período. Chegaram igualmente aqueles que Moretti afirma<br />
não terem tido presença significativa nos outros países <strong>da</strong> Europa<br />
além <strong>da</strong> Grã-Bretanha e França, como as aventuras do Capitão<br />
Marryat, tão aprecia<strong>da</strong>s por José de Alencar 6 , Ainsworth, Miss<br />
M.Elizabeth Braddon, Wilkie Collins, ou Georgiana Fullerton, as<br />
"industrial noveIs" de Elizabeth Gaskell e os romances "silverfork"7.<br />
Poderíamos pressupor, portanto, que essa diversi<strong>da</strong>de teria<br />
colocado em circulação no Brasil um amplo e importante acervo<br />
de temas, formas, procedimentos e técnicas para os primeiros<br />
brasileiros que se arriscaram no terreno <strong>da</strong> ficção. Talvez mais<br />
amplo do que tiveram à sua disposição seus sucedâneos nos países<br />
<strong>da</strong> semi-periferia e <strong>da</strong> periferia <strong>da</strong> Europa. 8<br />
Por outro lado, ao atribuir a seleção a forças culturais particulares<br />
de ca<strong>da</strong> lugar - "o padrão geográfico sugere uma afini<strong>da</strong>de<br />
cultural entre a forma específica e o mercado específico"9 -,<br />
Moretti deixa na sombra um dos elos fun<strong>da</strong>mentais nessa cadeia<br />
de circulação, pois sequer menciona o papel exercido pelo comércio<br />
livreiro no processo. Não seria razoável imaginar que, numa<br />
fase de industrialização <strong>da</strong> produção de livros, os interesses comerciais<br />
possam também ter estado na base dessas exportações<br />
Se assim for, é possível complicar ligeiramente o quadro dos mercados<br />
narrativos construído por Moretti trabalhando com a hipótese<br />
de que não são necessariamente "o catolicismo que 'seleciona'<br />
os romances religiosos para o público italiano" ou "a maior<br />
emancipação <strong>da</strong>s mulheres [que] seleciona narrativas de livre escolha<br />
emocional nos países protestantes"lO os únicos fatores responsáveis<br />
pela circulação de certas obras, e não de outras, nos<br />
diferentes países. A conclusão lógica nos levaria a supor, dessa<br />
maneira, que, se de um lado os países importavam os livros, na<br />
outra ponta livreiros de olho no mercado podem muito bem ter<br />
imposto escolhas e padrões de gosto, apostando no que já havia<br />
sido previamente testado, aprovado e se mostrara bem-sucedido<br />
no centro do sistema.
52 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Nessa perspectiva, o comércio livreiro se juntaria aos outros<br />
componentes do circuito de circulação dos livros, tais como<br />
os jornais, os periódicos especializados e os críticos, nessa função<br />
de mediação e de estabelecimento de um cânone literário que, no<br />
caso do romance, foi se construindo paulatinamente desde o século<br />
XVIII. As disputas e polêmicas entre livreiros, críticos e periódicos<br />
são um capítulo curioso <strong>da</strong> história do romance inglês<br />
setecentista e dão bem a medi<strong>da</strong> de quão influente era sua ativi<strong>da</strong>de<br />
e quão explícitos os seus interesses comerciais. ll<br />
Essas são algumas <strong>da</strong>s trilhas que gostaria de explorar nesse<br />
ensaio, na tentativa de retraçar os caminhos dos romances <strong>da</strong> Europa<br />
para o Brasil, na primeira metade do século XIX. É evidente<br />
que não se pode esquecer a presença dos livreiros franceses e<br />
portugueses no Rio de Janeiro entre 1808 e a suspensão <strong>da</strong> censura<br />
em 1821, estu<strong>da</strong>dos por Maria Beatriz Nizza <strong>da</strong> Silva, Lúcia<br />
Maria Pereira <strong>da</strong>s Neves, Tânia Bessone e Leila Algranti 12. Como<br />
salienta essa última, esse foi um período em que várias casas e<br />
editoras de origem francesa, estabeleci<strong>da</strong>s em Portugal desde o<br />
século anterior, "começaram a abrir filiais no Brasil, enviando seus<br />
representantes para atuarem no comércio de livros"13 , ativi<strong>da</strong>de<br />
que, a essa altura, não era especializa<strong>da</strong> - "eram negociantes que<br />
em meio a várias quinquilharias e objectos de luxo também vendiam<br />
livros" .14 Havia, ain<strong>da</strong>, os negociantes franceses que, fugindo<br />
<strong>da</strong> Restauração ou em busca de melhores condições de vi<strong>da</strong>, haviam<br />
entrado no Brasil a partir de 1815 e que, estabelecidos em<br />
diferentes tipos de negócio, vendiam livros.1 5 Por ora, entretanto,<br />
pode ser proveitoso inverter a direção do olhar e buscar reconstruir<br />
os circuitos de que participaram os homens que fizeram a<br />
história do livro na Europa no século XIX.<br />
Não cabe, aqui, investigar de forma exaustiva o comércio<br />
livreiro nessa primeira metade do século XIX, mas creio ser possível<br />
desenhar um quadro desse momento de expansão do comércio<br />
internacional do livro na Europa e arriscar algumas hipóteses<br />
sobre seu impacto na circulação de livros em nosso país, naquele<br />
período. Quero salientar que, embora meu recorte sejam sempre<br />
os romances ingleses, eles são representativos desse comércio internacional,<br />
que engloba britânicos, franceses, portugueses e as<br />
tão conheci<strong>da</strong>s contrafações belgas. De qualquer forma, essa expansão<br />
do comércio europeu e os efeitos que surtirá por aqui só<br />
11 Ver Sandra Guardini T.<br />
Vasconcelos. A Formação do<br />
Romance Inglês. Ensaios<br />
Teóricos. Facul<strong>da</strong>de de Filosofia,<br />
Letras e Ciências<br />
Humanas, Universi<strong>da</strong>de de São<br />
Paulo, 2000. Tese de Livre<br />
Docência, 3 vol.<br />
12 Maria Beatriz Nizza <strong>da</strong> Silva.<br />
Livro e socie<strong>da</strong>de no Rio de<br />
Janeiro (1808-1821), Revista<br />
de História, vol. XLVI, n. 94,<br />
abril-junho 1973, p. 441-457;<br />
Lúcia Maria Bastos Pereira <strong>da</strong>s<br />
Neves. Comércio de livros e<br />
censura de idéias: A activi<strong>da</strong>de<br />
dos livreiros franceses<br />
no Brasil e a vigilância <strong>da</strong><br />
Mesa do Desembargo do Paço<br />
(1795-1822). Ler Histâria, n.<br />
23, 1992, p. 61-78; Leila<br />
Mezan Algranti. Censura e<br />
comércio de livros no período<br />
de permanência <strong>da</strong> corte portuguesa<br />
no Rio de Janeiro<br />
(1808-1821). Revista Portuguesa<br />
de Histâria, voI. 23, n.<br />
1,1999,p.631-663.<br />
13 Leila Mezan Algranti.<br />
Política, religião e morali<strong>da</strong>de:<br />
a censura de livros no<br />
Brasil de D. João VI (1808-<br />
1821). In: Maria Luiza Tucci<br />
Carneiro (org.). Minorias<br />
Silencia<strong>da</strong>s. História <strong>da</strong> Censura<br />
no Brasil. São Paulo,<br />
EDUSP/ Imprensa Oficial do<br />
EstadG"FAPESp, 2002, p. 1Il-112<br />
14 Lúcia Maria Bastos Pereira<br />
<strong>da</strong>s Neves, op. cit., p. 64.<br />
i5 Ver Tânia Bessone <strong>da</strong> C.<br />
Ferreira e Lúcia Maria Bastos P.<br />
<strong>da</strong>s Neves. Livreiros franceses<br />
no Rio de Janeiro: 1808-1823.<br />
História Hoje: Balanço e<br />
Perspectivas. IV Encontro<br />
Regional<strong>da</strong>ANPUH-RJ.Riode<br />
Janeiro, Associação Nacional<br />
dos Professores Universitários<br />
de História, 1990, p. 190-202.
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX<br />
53<br />
16 Depoimentos de comerciantes<br />
estrangeiros no Rio de<br />
Janeiro, na déca<strong>da</strong> de 1810, dão<br />
notícia <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des e<br />
demora na entrega dos produtos<br />
e no desembaraço alfandegário<br />
e <strong>da</strong> falta de infra-estrutura<br />
portuária. Ver Herbert Heaton.<br />
A Merchant Adventurer in<br />
Brazil 1808-1818. The<br />
Journal of Economic History,<br />
vol. 6, n. I, maio de 1946.<br />
17 Ver Frédéric Barbier. Le<br />
Commerce Intemational de la<br />
Librairie Française au XIXe<br />
Siecle (1815-1913). Revue<br />
d'Histoire Moderne et<br />
Contemporaine. Torne XXVIII,<br />
janvier-mars 1981,p. 94-I17.<br />
18 Fonte: National Archives<br />
(PRO), CUST 9/1 e CUST 9/<br />
35, respectivamente.<br />
19 Barbier, op. cit., p. 11 O.<br />
20 "De la situation actuelle de la<br />
librairie et particulierernent des<br />
contrefaçons de la librairie<br />
française <strong>da</strong>ns le nord de<br />
l'Europe", in Revue Britannique,<br />
Paris, torne XXVI, 4e. série, mars<br />
1840, 52-97. A <strong>revista</strong> traz um<br />
quadro com valores comparativos<br />
à página 80.<br />
irão se fazer sentir a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 30, quando o Brasil já<br />
gozava de sua condição de país politicamente independente.<br />
Em tomo do decênio de 1840, as inovações, melhorias e<br />
maior rapidez nos transportes terrestres (ferrovias) e marítimos<br />
(vapores), nas transações bancárias l6 e nos serviços postais, as<br />
mu<strong>da</strong>nças nas técnicas de impressão e nos modos de produção e<br />
distribuição, soma<strong>da</strong>s à expansão do público leitor graças ao aumento<br />
<strong>da</strong> alfabetização, começavam a facilitar significativamente<br />
a circulação dos livros na Europa. O comércio livreiro, a partir<br />
principalmente de Londres e Paris, passou por um processo de<br />
profissionalização, com a substituição do antigo "bookseller" responsável<br />
pela impressão, edição e ven<strong>da</strong> ou aluguel de livros, pela<br />
figura do "publisher", o editor moderno especializado apenas na<br />
edição dos livros. Além disso, a reordenação jurídica do comércio<br />
livreiro internacional, que passou a incluir convenções, leis de<br />
proprie<strong>da</strong>de literária e acordos bilateriais entre editores, possibilitou<br />
estabelecer redes de ven<strong>da</strong>s, permitindo o contato e a relação<br />
direta entre profissionais, por meio <strong>da</strong> figura do livreiro comissário<br />
permanente. Muitas vezes, o livreiro exportador acabava por fun<strong>da</strong>r<br />
uma ver<strong>da</strong>deira sucursal no exterior, por intermédio de um membro<br />
<strong>da</strong> sua própria família l7 , como foi o caso de B.L. Garnier no<br />
Rio de Janeiro a partir de 1844. A abertura dos portos brasileiros<br />
ocorria, portanto, num momento absolutamente auspicioso para os<br />
livreiros europeus. Já em 1812, os registros alfandegários <strong>da</strong> Grã<br />
Bretanha informavam exportações <strong>da</strong> ordem de f346 em "livros<br />
impressos". E se até 1848 seu crescimento esteve longe de ser excepcional,<br />
tendo atingido apenas f404 naquele anolS , a participação<br />
<strong>da</strong> França aparece como muito mais expressiva, com 11 tonela<strong>da</strong>s<br />
de livros em português e em latim impressos ali e enviados ao<br />
Brasil em 1821. 19 Segundo <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> Revue Britannique, no ano de<br />
1838 a França expediu 230.000 francos em livros para o Brasil, ao<br />
passo que no ano anterior as contrafações belgas que também tiveram<br />
o nosso país como destino haviam somado 16.000 francos. 2o<br />
A análise <strong>da</strong>s referências bibliográficas relativas aos romances<br />
ingleses que circularam no Rio de Janeiro apresenta resultados<br />
interessantes do ponto de vista <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de editorial européia. Longe<br />
de exibir uma concentração, no entanto, o total de 99 autores e 502<br />
títulos coletados se divide entre casas editoriais diversas e procedências<br />
várias, como podemos verificar nos quadros abaixo:
54 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Autores britânicos (identificados)<br />
Séc. 18 Séc. 19<br />
30 69<br />
Obras anônimas<br />
Séc. 18 Séc. 19<br />
11 24<br />
Sem <strong>da</strong>dos<br />
9<br />
Língua<br />
Inglês<br />
Francês<br />
Português<br />
Espanhol<br />
225 títulos<br />
146 títulos<br />
128 títulos<br />
3 títulos<br />
Editoras: origem<br />
França<br />
Inglaterra<br />
Portugal<br />
Bélgica<br />
Alemanha (Leipzig)<br />
Brasil (Rio de Janeiro)<br />
EUA (Nova York)<br />
Suíça (Genebra)<br />
84 títulos<br />
81 títulos<br />
40 títulos<br />
33 títulos<br />
24 títulos<br />
11 títulos<br />
11 títulos<br />
2 títulos<br />
Tamanha dispersão dos títulos por tantas editoras européias<br />
obriga a levantar diferentes hipóteses para tentar explicar o caminho<br />
desses livros até o Brasil. Do lado de cá, as licenças concedi<strong>da</strong>s<br />
pela Mesa de Desembargo do Paço dão testemunho <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<br />
de livreiros como Paulo Martim Filho (estabelecido à Rua<br />
<strong>da</strong> Quitan<strong>da</strong>), João Roberto Bourgeois, que não só fazia negócios<br />
com Luan<strong>da</strong>, Lisboa, Porto e Londres, mas enviava livros do Rio<br />
de Janeiro para diversos cantos do Brasil, e Pierre Constant Dalbin,<br />
que foi também editor de obras de Cervantes, Fénelon,<br />
Chateaubriand e Lesage, entre outros. 21 Além disso, sabemos, por<br />
exemplo, que, assim que se abriram os portos em 1808, "os britânicos<br />
chegaram em grande número. Por volta de agosto, tinham<br />
entre 150 e 200 comerciantes ou agentes comerciais no Brasil".22<br />
21 Tânia Bessone <strong>da</strong> C. Ferreira<br />
e Lúcia Maria Bastos P. <strong>da</strong>s<br />
Neves. Livreiros franceses no<br />
Rio de Janeiro: 1808-1823. p.<br />
194 e ss. Fernando Guedes<br />
informa que a casa Rolland<br />
tinha entre seus "importantes e<br />
perduráveis clientes no Rio de<br />
Janeiro" um certo João Baptista<br />
Bourgeois. com quem Rolland<br />
fez "negócios entre 1798 e<br />
1815". Ver Fernando Guedes.<br />
O Livro e a Leitura em<br />
Portugal. Lisboa. Ed. Verbo,<br />
1987. p.148-150. nota 1.
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX 55<br />
22 Rory Miller. Britain and<br />
Latin America in the<br />
Nineteenth and Twentieth<br />
Centuries. Longman, 1993, p.<br />
42. Herbert Heaton: "Por volta<br />
do final de 1808 haviam sido<br />
enviados ao Rio de Janeiro<br />
produtos britânicos no valor de<br />
pelo menos cinco milhões de<br />
dólares. Com eles ou antes deles<br />
foram os comerciantes britânicos<br />
ou agentes comissionados às<br />
vintenas. Em setembro, era<br />
possível reunir sessenta e duas<br />
firmas britânicas no Rio para<br />
subscrever um abaixo-assinado;<br />
e, uma vez que eles descreviam a<br />
si mesmos como compreendendo<br />
'uma grande maioria dos<br />
comerciantes respeitáveis<br />
residentes aqui', parece seguro<br />
supor que, se acrescentásssemos<br />
a minoria e os não respeitáveis,<br />
alcançaríamos um total de cem<br />
negociantes britânicos apenas no<br />
Rio." In: A Merchant<br />
Adventurer in Brazil 1808-<br />
1818, op.cit., p. 6.<br />
23 Ver Geoffrey Jones.<br />
Merchants to Multinationals.<br />
British Trading Companies in<br />
the Nineteenth and Twentieth<br />
Centuries. Oxford, Oxford<br />
University Press, 2000. Há<br />
notícia de que 60 casas<br />
comerciais britânicas estavam<br />
funcionando no Rio de Janeiro<br />
em 1820. Ver D.C.M. Platt.<br />
Latin America and British<br />
Trade, 1806-1914. London,<br />
A<strong>da</strong>m & Charles Black, 1972.<br />
24 Nelson Schapochnik<br />
menciona o gabinete de leitura<br />
de Cremiêre, na Rua <strong>da</strong><br />
Alfândega, e os de Mongie,<br />
Dujardin e Mad Breton, na Rua<br />
do Ouvidor. Veja "Contextos de<br />
Leitura no Rio de Janeiro do<br />
século XIX: salões, gabinetes<br />
literários e bibliotecas", in<br />
Stella Bresciani (ed.). Imagens<br />
<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de. Séculos XIX e XX.<br />
(ANPUH/São Paulo: Marco<br />
ZeroIFAPESp, 1993), 147-162.<br />
Villeneuve, Didot, Mongie,<br />
Crémiêre, Garnier, Plancher,<br />
Dujardin eram alguns desses<br />
livreiros.<br />
Muitos começavam como "commission merchants" e serviam como<br />
agentes dos fabricantes e atacadistas britânicos, negociando diretamente<br />
com eles. Mais importante mercado latino-americano para<br />
a Grã-Bretanha até o final do século XIX23 , quando foi suplantado<br />
pela Argentina, o Brasil portanto passou a fazer parte de uma<br />
rede que, além dos negócios diretos com as editoras européias,<br />
muito provavelmente se valeu dos correspondentes e dos viajantes<br />
para estabelecer as rotas percorri<strong>da</strong>s pelos romances até chegar<br />
aos leitores brasileiros. O mercado livreiro local, mesmo que<br />
incipiente no iníci0 24 , logo se expandiu a ponto de tornar possível,<br />
algumas déca<strong>da</strong>s mais tarde, encontrar livros publicados por Aillaud<br />
e Hachette em Paris, por Routledge e Bentley em Londres, ou<br />
Bernhard Tauchnitz em Leipzig. Ele se mostrava, dessa forma,<br />
extraordinariamente atualizado em relação às mo<strong>da</strong>s literárias européias,<br />
e adotava práticas semelhantes às <strong>da</strong> famosa Mudie's<br />
Library25, que incluiu a tática de anunciar sua seleta de livros nos<br />
jornais para aquecer as ven<strong>da</strong>s e acabou por se transformar na<br />
melhor propagan<strong>da</strong> que podia haver para qualquer romance. A<br />
biblioteca circulante de New Oxford Street possuía um Departamento<br />
de Exportação para os excedentes e recebia encomen<strong>da</strong>s<br />
não só do continente europeu, mas também de locais tão distantes<br />
quanto São Petersburgo, Índia, China e América. 26 Seu maior rival<br />
era W.H. Smith, que abriu sua primeira banca de livros na<br />
Euston Station, em Londres, e por volta de 1862 possuía uma<br />
rede de 185 filiais em estações ferroviárias inglesas, fazendo negócios<br />
e entregas em to<strong>da</strong> a Inglaterra e também no estrangeiro.<br />
O tamanho desses empreendimentos pode justificar o comentário<br />
de Anthony Trollope em 1870: "We have become a novel-reading<br />
people [ ... ]"27.<br />
A história do acesso <strong>da</strong> burguesia à cultura letra<strong>da</strong>, no século<br />
XVIII, e, posteriormente, <strong>da</strong> classe operária ao mundo <strong>da</strong> ficção,<br />
no século XIX inglês se fizera graças à formação de um circuito<br />
de que participaram livreiros, bibliotecas circulantes e edições<br />
ca<strong>da</strong> vez mais acessíveis, colocando o livro ao alcance de um<br />
número ca<strong>da</strong> vez maior de pessoas. Esses circuitos letrados foram<br />
fun<strong>da</strong>mentais na formação do leitor médio. Concorreram para isso<br />
coleções como a Routledge's Railway Library, a Bentley's Stan<strong>da</strong>rd<br />
NoveIs, a The Parlour Library (com 279 títulos publicados entre<br />
1847 e 1863) e a Routledge's Stan<strong>da</strong>rd NoveIs, que reuniam ro-
56 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
mances tanto do século XVIII quanto do século XIX, como por<br />
exemplo Caleb Williams, Thaddeus of Warsaw, Frankenstein,<br />
Hungarian Brothers, Otranto, Vathek, St. Leon. A Bentley's<br />
Stan<strong>da</strong>rd NoveIs, cujas três séries somaram 158 volumes 28 , representou<br />
um notável avanço no processo de democratização de leitura,<br />
graças às suas edições baratas de romances conhecidos.<br />
Michael Sadleir afirma que "( ... ) quando [os editores] lançaram<br />
a série [Bentley's Stan<strong>da</strong>rd NoveIs] não a planejaram<br />
delibera<strong>da</strong>mente como uma série barata de ficção popular contemporânea,<br />
mas sim como uma tentativa de registrar a fama permanente<br />
de certos romances escritos desde o grande período do<br />
romance do século XVIII, que, entretanto, não haviam sido<br />
republicados adequa<strong>da</strong>mente até o momento, de forma barata e<br />
acessível"29. Entretanto, o fato é que essas coleções contribuíram<br />
decisivamente para disponibilizar obras de ficção a um contingente<br />
ca<strong>da</strong> vez mais substantivo de leitores. Público para isso havia,<br />
já que a classe operária havia começado a ganhar acesso à educação<br />
formal na Inglaterra oitocentista. (Enquanto na déca<strong>da</strong> de 1790<br />
Edmund Burke estimava a dimensão do público leitor na Grã<br />
Bretanha em cerca de 80.000 indivíduos, em torno de 1814 a<br />
Edinburgh Review contabilizava não menos de 200.000 pessoas<br />
dos setores médios <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de como o público para as leituras<br />
de entretenimento e instrução.)30<br />
Inicia<strong>da</strong> em 1831, com 126 volumes, a coleção <strong>da</strong> Bentley's<br />
Stan<strong>da</strong>rd NoveIs só se encerrou em 1862, constituindo-se, ain<strong>da</strong><br />
de acordo com Sadleir, "num marco <strong>da</strong> história <strong>da</strong> publicação de<br />
edições baratas". Em 1849, a Routledge lançava a sua prolífica,<br />
bem-sucedi<strong>da</strong> e longeva Railway Library que, sem qualquer pretensão<br />
de ater-se a textos significativos, tinha como objetivo publicar<br />
ficção popular a preços populares. Até 1899, havia publicado<br />
1.277 títulos, os famosos "yellowbacks", livros de formato<br />
pequeno e baixo preço vendidos nas bancas <strong>da</strong>s estações ferroviárias,<br />
para serem lidos durante as viagens de trem e que receberam<br />
essa denominação por causa de suas capas cuja cor predominante<br />
era o amareloY Acrescente-se ain<strong>da</strong> a Smith, Elder's<br />
Library of Romance, com apenas 15 volumes, forma<strong>da</strong> por ficção<br />
<strong>completa</strong>mente original e especializa<strong>da</strong> nas histórias romanescas,<br />
como o próprio título <strong>da</strong> coleção indica32 . Muitos desses livros<br />
aqui chegaram ain<strong>da</strong> em suas edições originais, não traduzi<strong>da</strong>s,<br />
" Tendo iniciado suas<br />
ativi<strong>da</strong>des com uma pequena<br />
loja em 1844, Charles Edward<br />
Mudie expandiu seus negócios<br />
em 1852, tendo se tomado um<br />
dos mais influentes livreiros do<br />
século XIX inglês. Era<br />
conhecido como "Leviatã<br />
Mudie". Ver Guinevere Griest.<br />
Mudie's Circulating Library<br />
and the Victorian Novel.<br />
David & Charles, [1970].<br />
26 Ver William C. Preston.<br />
Mudie's Library. Rep. Good<br />
Words, October 1894;<br />
Guinevere Griest, op. cit.<br />
27 G. Griest, op. cit.[número de<br />
página não recuperado 1<br />
28 Priorizando novas tiragens<br />
de romances em formato<br />
acessível e em grande escala,<br />
essa coleção marcou época<br />
com suas três séries: la. série<br />
(1831-1854, com 126 títulos;<br />
2a. série (1854-1856), com 22<br />
títulos; 3a. série (1859-1862),<br />
com 10 títulos, agora sob o<br />
nome geral de "BentIey's<br />
Popular Noveis". Ver Michael<br />
Sadleir, XIX-Century Fiction.<br />
A bibliographical record<br />
based on his own collection.<br />
London, Constable & Co.,<br />
1951,2 vols.<br />
29 No original: "In other words,<br />
when they [the editors]<br />
launched the series they did not<br />
deliberately foresee it as a<br />
cheap-edition series of current<br />
popular fiction, but rather as an<br />
attempt to register the<br />
permanent fame of certain<br />
noveis written since the great<br />
period of eighteenth-century<br />
novel-writing, but not hitherto<br />
fittingly reprinted in handy and<br />
cheap form". Michael Sadleir,<br />
op. cit., vol. 2, p. 94.<br />
300S <strong>da</strong>dos podem ser<br />
encontrados em William SI.<br />
Clair, The Reading Nation in<br />
the Romantic Period.<br />
Cambridge ,C ambridge<br />
University Press, 2004.
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX 57<br />
" Ver Chester Topp. Victorian<br />
Yellowbacks and Paperbacks,<br />
1849-1905. Denver, Hennitage<br />
Antiquarian Bookshop, 1993-<br />
1999,4 vols; Michael Sadleir.<br />
Collecting "Yellowbacks"<br />
(Victorian Railway Fiction).<br />
Constable, London, [1938], p.<br />
127-161.<br />
31 A Smith, Elder & Co. foi<br />
fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1816eerauma<strong>da</strong>s<br />
editoras de grande prestígio no<br />
século XIX, tendo publicado<br />
Charlotte Bronte, William<br />
Thackeray, Anthony Trollope,<br />
Elizabeth Gaskell e George<br />
Eliot. Ver Robin Myers &<br />
Michael Harris. A Genius for<br />
Letters. Booksellers and<br />
Bookselling from the 16th to<br />
rhe 20th century. Winchester,<br />
St. Paul's Bibliographies;<br />
Delaware, Oak Knoll Press,<br />
1995. Foi a Smith, Elder & Co.<br />
que publicou o Catálogo <strong>da</strong> Rio<br />
de Janeiro British Subscription<br />
Library.<br />
lJ Os <strong>da</strong>dos podem ser<br />
encontrados em Richard D.<br />
Altick. The English Common<br />
Reader. A Social History ofthe<br />
Jfass Reading Public, 1800-<br />
1900. 2nd ed. Columbus, Ohio<br />
State University Press, 1998.<br />
Ver Appendix B, p. 383-384.<br />
" Romances publicados em<br />
série ao preço de um penny<br />
(moe<strong>da</strong> inglesa).<br />
como é o caso de Marryat, W.H. Ainsworth e G.P.R. James (dignos<br />
representantes <strong>da</strong> Railway Library), dos anônimos The<br />
Disinherited and The Ensnared e The Mascarenhas, <strong>da</strong> Smith,<br />
Elder & Co. Outros, chegaram em tradução, vindos de Lisboa,<br />
Paris, Bruxelas ou Leipzig, como é o caso de M. Banim, M.E.<br />
Braddon, Wilkie Collins, etc.<br />
A aposta na edição ou reedição em coleções baratas dos<br />
romances favoritos do público (entre os 279 títulos <strong>da</strong> The Parlour<br />
Library, por exemplo, se reeditaram romancistas como Elizabeth<br />
Gaskell, Jane Austen, Elizabeth Inchbald, Anne Bronte, Jane<br />
Porter, etc.) rendeu ven<strong>da</strong>s que nos deixam espantados, mesmo<br />
dentro dos padrões dos dias de hoje: Guy Mannering, de Scott,<br />
vendeu 2.000 cópias no dia seguinte ao de sua publicação; Rob<br />
Roy, também de Scott, vendeu 10.000 numa quinzena e mais de<br />
40.000 até 1836; Pickwick Papers, de Dickens, vendeu um total<br />
de 800.000 exemplares até 1879; A Christmas Carol, também<br />
de Dickens, vendeu 16.000 só no dia de sua publicaçã0 33 • São<br />
números que impressionam não só como indicadores de ver<strong>da</strong>deiros<br />
fenômenos editoriais - os best-sellers do século XIX -<br />
mas também porque são prova concreta <strong>da</strong> existência de um círculo<br />
ca<strong>da</strong> vez maior de leitores e de um processo inegável de<br />
democratização do acesso ao livro.<br />
As edições baratas não se restringiram aos romances do século<br />
XVIII ou aos escritores mais consagrados como Scott e<br />
Dickens. Aos poucos, elas deram lugar à produção de novos tipos<br />
de ficção para atender à mu<strong>da</strong>nça de gosto dos leitores <strong>da</strong>s classes<br />
mais baixas. Os velhos romances reeditados em novas tiragens<br />
haviam prestado um bom serviço mas decerto devem ter começado<br />
a parecer fora de mo<strong>da</strong> aos novos leitores citadinos - sua linguagem<br />
era destoante e soava antiqua<strong>da</strong>, a vi<strong>da</strong> que retratavam<br />
parecia estranha e era necessário um estilo mais contemporâneo,<br />
mais próximo e adequado aos novos tempos.<br />
Decorrente <strong>da</strong> industrialização e <strong>da</strong> migração do campo para<br />
a ci<strong>da</strong>de, a formação de uma nova cultura urbana, se deu início a<br />
uma era de ficção de massa, nas déca<strong>da</strong>s de 1840 e 1850, confirmou<br />
no. gosto popular os nomes de Ann Radcliffe, cuja influência<br />
na ficção popular foi enorme, e de Walter Scott, cujo Ivanhoe foi<br />
onipresente e gozou de uma populari<strong>da</strong>de que atravessou o século.<br />
As penny-issue novels 34 , embora tenham elegido outros temas
58 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
e interesses, mais afeitos a essa cultura urbana, fundiram o gótico<br />
e o histórico e imitaram exaustivamente esses modelos. Segundo<br />
Louis James 35 , The Pickwick Papers (1836-7) de Dickens foi o<br />
livro mais plagiado de seu tempo. As penny-issue noveis estão<br />
fora do escopo dessa discussão, mas o que interessa ressaltar aqui<br />
é que, com freqüência, foram as edições baratas dos romances<br />
populares na Inglaterra que chegaram ao Rio de Janeiro.<br />
Até 1829, as vinte e cinco Waverley noveis de Walter Scott<br />
haviam vendido 500.000 exemplares e até 1860, em torno de 2 a<br />
3 milhões 36 • Scott também teve papel fun<strong>da</strong>mental na consoli<strong>da</strong>ção<br />
de um formato de edição que se iniciou com seu Waverley, em<br />
1814. Como significava bons negócios para as bibliotecas<br />
circulantes e gabinetes de leitura porque podia ser alugado para<br />
três leitores simultaneamente, o romance em três volumes virou<br />
mo<strong>da</strong> pelas mãos de Charles Edward Mudie, que não só ajudou a<br />
difundi-lo como lhe conferiu status, digni<strong>da</strong>de literária e serie<strong>da</strong>de,<br />
em comparação com os "yellowbacks", considerados leitura<br />
leve e de entretenimento. Mais importantes, porém, foram as conseqüências<br />
que esse formato teve na própria estruturação dos romances<br />
pelos romancistas, que se viram obrigados a levá-lo em<br />
conta e passaram a adequar suas narrativas à extensão dos "threedeckers":<br />
o uso de incidentes, a tendência a longas descrições, os<br />
enredos múltiplos, a ênfase nos retratos <strong>da</strong>s personagens, a riqueza<br />
de detalhes, as digressões autorais, as reflexões ou as conversas<br />
com o leitor. Não se trata, como se poderia supor, de simples<br />
pormenores, uma vez que esses procedimentos serão aqueles que<br />
se tornarão familiares também para os nossos escritores, desse<br />
lado de cá do Atlântico.<br />
Enquanto Richard Bentley logo adotou, também ele, o formato<br />
dos três volumes mas tratou de baixar os preços, e George<br />
Routledge e W. H. Smith apostavam nas "railway libraries", os<br />
editores franceses imediatamente reagiram com edições baratas<br />
(caso de Charpentier, Levy e Hachette, entre 1838 e 1855)37 e<br />
com as coleções do "chemin de fer"38 . Assim como os ingleses,<br />
também eles haviam se aberto para o estrangeiro (Gosselin,<br />
Bossange e Didot eram livreiros exportadores), chegando alguns<br />
inclusive a se instalar nas colônias, ou ex-, como foi o caso <strong>da</strong>s<br />
falTI11ias Bossange e Garnier, no Rio de Janeiro. 39 Os irmãos Michel<br />
e Calman Levy, por exemplo, criaram uma biblioteca familiar a<br />
35 Louis James. Fictionfor the<br />
working man, 1830·1850.<br />
London, Penguin, 1974.<br />
36 Ver WiIliam St. Clair, op.cit.,<br />
ver quadro à p. 221.<br />
37 Jean. Yves MoIlier. L'Argent<br />
et les Lettres. Histoire du<br />
Capitalisme d'Édition, 1880-<br />
1920. Paris, Fayard, 1988.<br />
38 Em lo de abril de 1852,<br />
Louis Hachette propôs-se, em<br />
nota às Compagnies de<br />
Chemins de Fer, a publicar o<br />
sucedâneo francês <strong>da</strong>s "railway<br />
noveis": "MM. L. Hachette et<br />
Cie ont eu la pensée de faíre<br />
toumer les 10isirs forcés et<br />
l'ennui d'une longue route au<br />
profit de I' agrément et de<br />
l'instruction de tous." Cf. Jean<br />
Mistler, La Librairie Hachette<br />
de 1826 à nos jours. Paris,<br />
Hachette, c. 1964, p. 123. 40<br />
Mollier, L'Argent et les Lettres,<br />
p.365. Ver também Jean<br />
MistIer, op. cit., p. 269.<br />
39 Baptiste-Louis Gamier (1823-<br />
1893) foi o irmão que se<br />
estabeleceu no Rio de Janeiro em<br />
I 844,segundoinforma Laurence<br />
Hallewell. O Livro no Brasil. são<br />
Paulo,EDUSP, 1985,p. 127-128.<br />
Martin Bossange, por sua vez,<br />
juntamente com seus dois filhos<br />
Adolphe e Hector, forma urna<br />
empresa familiar com ramificações<br />
internacionais, com lojas<br />
emLeipzig,Madri,noMéxico,em<br />
Montréal, Nápoles, Nova Iorque,<br />
OdessaeRiodeJaneiro. VerDiana<br />
Cooper-Richet. L'imprimé en<br />
Iangues étrangeres à Paris ao XIXe<br />
siecle: lecteurs, éditeurs, supports.<br />
In: Revue française d'/ústoire du<br />
livre, ns. 116-117, 3e e 4e<br />
trirrestres, 2002, p. 203-235 (p. 213).
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX 59<br />
40 Mollier, L'Argent et les<br />
Lettres, p. 365. Ver também<br />
Jean Mistler, op cit., p. 269.<br />
41 A Revue Britannique de<br />
março de 1840 ressaltava a<br />
importância dos colporteurs e<br />
<strong>da</strong> colportage na distribuição<br />
dos livros. Ver nota 16.<br />
42 Jean-Yves Mollier, op. cito<br />
43 Ver Jean-François Botrel. La<br />
librairie "espagnole" en France<br />
au XIXe siecle. In: Jean-Yves<br />
Mollier. Le Commerce de la<br />
Librairie en France au X/Xe<br />
siecle, /789-1914. Versailles,<br />
IMEC Éditions; Paris, Éditions<br />
de la Maison des Sciences de<br />
I'Homme, p. 292-3. Nota<br />
explicativa: quintal é uma<br />
antiga medi<strong>da</strong> de peso<br />
equivalente a 4 arrobas; um<br />
quintal métrico equivale a cem<br />
quilogramas.<br />
44 Frédéric Brubiec lb! Publishing<br />
Industry and Printed Output in<br />
Nineteentb-Centwy France. In:<br />
Kennetb Carpenter (ed.). Books<br />
andSociety in History. New Yorlc,<br />
R.R. Bowker, 1983, p. 199-230<br />
[p.205].<br />
45 Jean-Yves Mollier, L'Argent et<br />
/es Lettres, p. 91.<br />
46Williamst. Oair,op.cit., p. 296-<br />
297. Segundo Diana Cooper<br />
Richet, Giovanni Antonio<br />
GaIignani insta1anocentm de Paris<br />
uma livraria, um gabinete de<br />
leitura e uma casa editora, consagrados<br />
à literatura britânica e a<br />
jornais em inglês, enquanto Louis<br />
Claude Baudry lança. em 1829, a<br />
coleção Ancient and modem<br />
BritishAuthors, com 32 títulos. A<br />
partir dos anos 30, Galignani e<br />
Baudry iriam se associar, oferecendo<br />
aos leitores Walter Scott,<br />
Maria Edgeworth, Dickens e<br />
Thackeray. Ver L'imprimé en<br />
languesétrangêresà Paris au XlXe<br />
siecle: lecteurs, éditeurs, supports.<br />
In: Revue française d'histoire du<br />
livre,ns.1l6-1l7,3ee4etrimestres,<br />
2002, p. 203-235.<br />
um franco o volume e, em 1889, seu catálogo contava com 1.414<br />
títulos de 277 autores, aí incluídos Dickens, Ann Radcliffe e G.R.<br />
Reynolds,40 Enquanto uma rede de colporteurs 41 e de viajantes<br />
comerciais ou vendedores itinerantes (os "commis voyageurs")<br />
era o ponto de contato entre os comerciantes e os clientes e consumidores<br />
e garantia as exportações para a América do Sul durante<br />
o século XIX42, os números demonstram que no começo do<br />
século XX a França já havia exportado para a América Latina<br />
"(Argentina, México e Brasil, essencialmente) uma média de 1.100<br />
quintais métricos de livros em línguas estrangeiras ou mortas".43<br />
Paris, centro <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>s, tinha um público leitor capaz de<br />
transformar em best-seller qualquer aventura literária 44 e, ao final<br />
<strong>da</strong> guerra de 1815, tornou-se um dos grandes centros de publicação<br />
de textos em língua inglesa. Enquanto os irmãos Firmin Didot<br />
tinham a proprie<strong>da</strong>de literária <strong>da</strong>s obras de Scott45 , Baudry publicava<br />
textos em inglês e, já ao final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1820, os novos<br />
romances ingleses eram vendidos em Paris no prazo de três dias<br />
de sua publicação em Londres, em edições de boa quali<strong>da</strong>de e por<br />
um preço quatro vezes menor que o britânico. Também se tornaram<br />
comuns os acordos e as socie<strong>da</strong>des, como a de Baudry e<br />
Galignani, ou a de Firmin Didot e Hachette, com fins de<br />
compartilhamento <strong>da</strong> produção e distribuição dos livros. Entre<br />
1830 e 1850, Baudry e Galignani ofereciam um bom catálogo de<br />
literatura inglesa recente46 e o mesmo Baudry, assim como Aillaud<br />
e Pillet Ainé, publicava ain<strong>da</strong> traduções de romances em português,<br />
Constata-se, dessa maneira, o quanto esses livreiros e editores<br />
contribuíram para as trocas e transferências culturais e como,<br />
mesmo que indiretamente, exerceram um papel fun<strong>da</strong>mental no<br />
processo de difusão e disseminação de autores e romances em<br />
circuitos ml iro mais amplos e territórios muito mais distantes do<br />
que o dos países europeus.<br />
Ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s casas editoras tem, obviamente, sua história.<br />
Para ilustrar esses caminhos tortuosos do romance pelo mundo,<br />
valho-me dos casos mais representativos no que diz respeito àquele<br />
conjunto de 502 romances ingíeses que chegaram ao Rio de Janeiro<br />
no século XIX, O primeiro abarca um conjunto de títulos<br />
que, embora tenham sido publicados por editoras diferentes, representa<br />
a participação inglesa nesse mercado, com suas inventivas<br />
soluções para a democratização do livro. Refiro-me especifi-
60 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
camente às edições populares <strong>da</strong> Routledge, <strong>da</strong> Chapman and Hall<br />
(1849-1902), <strong>da</strong> Bentley, <strong>da</strong> J.S. Pratt e <strong>da</strong> S. Fisher, com uma<br />
contribuição diferencia<strong>da</strong> mas tendo em comum o fato de estarem<br />
to<strong>da</strong>s envolvi<strong>da</strong>s na produção de encadernações baratas. De todos,<br />
talvez George Routledge (1812-1888) seja o exemplo mais<br />
paradigmático. Tendo começado suas ativi<strong>da</strong>des como livreiro em<br />
1836, Routledge já em 1844 havia se tomado editor, publicando<br />
tanto grandes autores quanto romancistas menores, e também obras<br />
estrangeiras em inglês, como as de Lesage, Eugene Sue, Balzac,<br />
Cervantes e Dumas. 47 "Imitação delibera<strong>da</strong> e não totalmente escrupulosa<br />
<strong>da</strong> ParIour Library", edita<strong>da</strong> por Simms & M'Intyre de<br />
Belfast e cujo propósito era difundir boa literatura num formato<br />
elegante e barat0 48 , a bem-sucedi<strong>da</strong> Railway Library, a um shilling<br />
o volume reimpresso, foi a versão de Routledge para aquela série.<br />
Taca<strong>da</strong> certeira, sua iniciativa de associar o símbolo do progresso<br />
e moderni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Inglaterra vitoriana e industrial - o trem, as<br />
ferrovias e as viagens de trem - e o romance sobreviveu meio<br />
século, até 1899, e foi imita<strong>da</strong> do outro lado do Canal <strong>da</strong> Mancha<br />
por Louis Hachette e em Portugal pelo editor Manuel Antonio de<br />
Campos Júnior, com sua coleção "Leitura para Caminhos de Ferro",<br />
de 1863. 49 Tanto em Londres quanto em Paris, esforços similares<br />
em estabelecer uma política de preços baixos e edições populares<br />
criaram novos parâmetros editoriais e produziram os exemplares<br />
que atravessaram o oceano e vieram aportar no Rio de Janeiro.<br />
Seriam eles também destinados aos eventuais viajantes <strong>da</strong>s<br />
estra<strong>da</strong>s de ferro brasileiras, implanta<strong>da</strong>s a partir do decênio de<br />
1850 pelas companhias inglesas50<br />
O segundo caso diz respeito à conheci<strong>da</strong> Casa Hachette.<br />
Responsável por uma coleção de 150 volumes vendidos a um franco<br />
ca<strong>da</strong> - a Bibliotheque des Meuilleurs Romans Étrangers -,<br />
Louis Hachette ajudou a divulgar na França um conjunto de autores<br />
estrangeiros, entre os quais os ingleses ocupavam um lugar de<br />
honra: Bulwer-Lytton, CharIotte Bronte, Benjamin Disraeli,<br />
Mayne-Reid, William Thackeray e CharIes Dickens. É este último<br />
que me interessa particularmente aqui, porque representa um caso<br />
emblemático <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças que passavam a ocorrer no mundo <strong>da</strong><br />
edição. Desde 1854, algumas obras de Dickens figuravam no catálogo<br />
<strong>da</strong> Bibliotheque de Chemins de Fer e, desde as déca<strong>da</strong>s de<br />
1830 e 1840, vários de seus romances podiam ser lidos em fran-<br />
47 Ver Chester Topp. Victorian<br />
Yellowbacks, vol I.<br />
48 Michael Sadleir, op. cit.,<br />
volume lI, p. 167.<br />
49 Ernesto Rodrigues. Cultura<br />
Literária Oitocentista. Porto,<br />
Lello Editores, 1999, p. 13.<br />
500S britânicos estiveram<br />
envolvidos na construção e<br />
operação <strong>da</strong>s ferrovias brasileiras<br />
desde o início (a<br />
primeira linha foi inaugura<strong>da</strong><br />
em 1854) e nos últimos anos do<br />
Império havia vinte e cinco<br />
delas controla<strong>da</strong>s por grupos<br />
britânicos em diversos cantos<br />
do país, como por exemplo a<br />
The São Paulo Railway, The<br />
Minas and Rio Railway<br />
Company, The Recife and São<br />
Francisco Railway, etc. Fonte:<br />
Catálogo <strong>da</strong> Exposição "Os<br />
Britânicos no Brasil", São<br />
Paulo, Centro Brasileiro<br />
Britânico, 2001.
-\ rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX 61<br />
cês, seja em traduções livres como a de Mme Niboyet para As<br />
Aventuras de Mr. Pickwickem 1838, ou o David Coppeifield que<br />
Pichot havia traduzido para a Revue Britannique, tendo como<br />
ponto comum entre to<strong>da</strong>s elas a infideli<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s traduções. Para<br />
fazer frente aessa situação, emjaneiro de 1856 Dickens e Hachette<br />
assinam um contrato de publicação e logo depois Paul Lorain é<br />
escolhido para supervisionar o trabalho de tradução <strong>da</strong> série de 28<br />
romances do escritor inglês, iniciando-se uma parceria estreita entre<br />
autor, editor e tradutores que vai render frutos no sentido de uma<br />
maior profissionalização dessas relações. Além disso, Dickens assume<br />
o papel de conselheiro na escolha dos romances ingleses<br />
para tradução e coopera com Hachette nos contatos que o editor<br />
francês busca estabelecer com outros autores ingleses <strong>da</strong> época.<br />
Em minuta de carta a Dickens, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de maio de 1856, Hachette<br />
declarava:<br />
'I Citado por Jean Mistler,<br />
op.cit., p.l60. Devo to<strong>da</strong>s as<br />
informações referentes à Casa<br />
Hachette a essa obra e a Jean<br />
Yves Mollier, Louis Hachette<br />
11899-1864). Le fon<strong>da</strong>teur<br />
d'un empire. Paris, Fayard,<br />
1999.<br />
52 Sobre esse tópico, ver<br />
Herman Dopp. La Contrefaçon<br />
des Livres Français en<br />
Belgique,J 815-1852. Louvain,<br />
Liv. Universitaires, Uystpruyst<br />
Éd., 1932; François Godfroid.<br />
Nouveau Panorama de la<br />
Contrefaçon Belge. Bruxelles,<br />
Académie RoyaJe de Langues<br />
et de Littérature Françaises,<br />
[1986].<br />
Je désirerais maintenant étendre ces relations [avec Milady<br />
Fullerton, auteur de Lady BirdJ aux autres écrivains dont les<br />
ouvrages sont les plus estimés en Angleterre et son de nature à<br />
être le mieux accueillis en FranceY<br />
Como seus sucedâneos, Hachette também tinha uma ativi<strong>da</strong>de<br />
importante na exportação por meio do Départment Étranger<br />
Hachette (D.E.H.) e especial interesse na Inglaterra e Alemanha,<br />
mantendo representantes e viajantes e às vezes até mesmo seus<br />
dirigentes em an<strong>da</strong>nças pelo mundo, a partir do final do Segundo<br />
Império. O <strong>da</strong>do de que os esforços <strong>da</strong> casa editora se dirigiam<br />
sobretudo à América Latina pode ser comprovado pelo fato de<br />
que a coleção de romances ingleses em circulação no Rio de Janeiro<br />
no século XIX publicados por Hachette consta de 44 títulos,<br />
a maior por parte de um só editor.<br />
Haveria ain<strong>da</strong> que ressaltar a presença e a participação <strong>da</strong>s<br />
contrafações belgas, nessa coleção. A controvérsia que cerca a<br />
proprie<strong>da</strong>de ou improprie<strong>da</strong>de do uso do termo e sua definição é<br />
conheci<strong>da</strong> e exige uma certa cautela na sua aplicação. Associa<strong>da</strong><br />
ou não à idéia de fraude e plágio, vista como imoral e corruptora<br />
do gosto, a contrafação foi fenômeno mundial e não apenas belga,<br />
favorecido pela ausência de regras e de regulamentação internacional<br />
quanto a direitos autorais e legais. 52 Assim, tanto Aillaud, em
62 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Paris, quanto Bassompiere, em Liege, os Baudoin freres e Berthot,<br />
em Bruxelas, Chapman, em Londres, Dujardin em Gand e<br />
Tauchnitz em Leipizig, podiam ser incluídos na lista dos<br />
contrafacteurs. No entanto, foram os belgas que souberam tirar<br />
proveito <strong>da</strong> maior liber<strong>da</strong>de de imprensa vigente nos Países Baixos,<br />
livres <strong>da</strong> censura e dos impostos pesados que marcavam as<br />
ativi<strong>da</strong>des na França sob Napoleão, e a contrafação belga viveu<br />
seu período de apogeu entre 1815 e 1850, quando entrou em<br />
declínio graças à assinatura <strong>da</strong> primeira convenção franco-belga<br />
de direitos do autor, em 1852. "Une réproduction à bon marché",<br />
conforme a definiu Herman Depp53 , a contrafação belga adotou o<br />
formato reduzido (in-12, in-18 ou in-32) no lugar do in-8 D<br />
parisiense, com papel de quali<strong>da</strong>de inferior e tipos mais cerrados.<br />
E, embora a contrafação belga de livros em língua inglesa tenha<br />
sido modesta, <strong>da</strong><strong>da</strong> a universali<strong>da</strong>de do francês como língua de<br />
cultura, foram vários os livreiros belgas que publicaram autores<br />
ingleses: em 1825, P.J. de Matt de Bruxelas tinha em catálogo os<br />
romances de Walter Scott; em 1835, Wahlen publicou sua<br />
"Collection d' Auteurs Anglais Modernes", além de Banim,<br />
Blessington, Gore e Radcliffe; Méline ou Wahlen publicaram ain<strong>da</strong><br />
Bulwer, Dickens, Edgeworth, Goldsmith, G.P.R. James,<br />
Marryat, Scott, Trollope.<br />
Os franceses, é evidente, se ressentiram <strong>da</strong> concorrência<br />
belga, mas, como Emile de Girardin deixou claro, "La Bélgique a<br />
fait ce qu'elle avait le droit de faire, et ce que la France n'avait<br />
aucun scrupule de pratiquer à l' égard des livres anglais ... "54 , o que<br />
dá a medi<strong>da</strong> de quão generaliza<strong>da</strong> era a prática nos dois países.<br />
A Revue Britannique de março de 1840 comentava:<br />
MM. Galignani et Baudry, de Paris, sont les seuls qui, à force<br />
de soins et de persévérance, soient parvenus à donner à la<br />
contrefaçon des ouvrages anglaises une certaine importance.<br />
Ces éditeurs ont pour clientelle les trente mille familles anglaises<br />
qui habitent la France, la Suisse, la Savoie, l' ltalie et les diverses<br />
parties de l' Allemagne ( ... )55<br />
53 Herman Dopp, op. cit., p. 12.<br />
54 Citado por Herman Dopp, op.<br />
cit, p. 12.<br />
55 Revue Britannique, mars<br />
1840, p. 60-61.<br />
Vindos de Bruxelas, são trinta e três os títulos de romances<br />
ingleses que compõem o acervo fluminense, dos quais trinta e um<br />
em francês e dois em inglês, o que apenas confirma a avaliação <strong>da</strong><br />
mesma Revue Britannique a respeito <strong>da</strong> predominância flagrante
.-\ rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX 63<br />
56 William Todd & Ann<br />
Bowden.Tauchnitz International<br />
Editions in EnglishJ 84 J -1955. A<br />
Dibliographical history. New Yolk,<br />
BibliographicalSocietyofAm'rica,<br />
1988, p. 3.<br />
57 Idem, ibidem, p. 770 e 1022.<br />
e universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> língua francesa, considera<strong>da</strong> como "instrument<br />
de haute sociabilité" no período. Como dizia o autor (não identificado)<br />
do artigo, os editores belgas sabiam muito bem como explorar<br />
o filão que a apatia dos franceses parecia deixar de lado,<br />
aproveitando-se ain<strong>da</strong> do fato de que "aujourd'hui, Londres<br />
consomme par semaine de 12 [sic] à 1.500 francs de contrefaçons<br />
belges". É curioso lembrar que a própria Revue Britannique, originalmente<br />
edita<strong>da</strong> em Paris, tinha sua similar belga, com uma<br />
tiragem de 1.200 exemplares.<br />
Por outro lado, os títulos em inglês, originários de fora <strong>da</strong><br />
Grã-Bretanha, se concentram nas mãos de outro dos casos interessantes<br />
que vale a pena destacar. Trata-se de outro pequeno<br />
conjunto de 24 romances, que também circularam no Rio de Janeiro<br />
naquele período, todos produzidos pelo mesmo editor, um<br />
alemão de Leipzig. Bernhard Tauchnitz (1816-1895) fundou a<br />
editora em 1837 e a partir de 1841 passou a publicar uma coleção<br />
de autores britânicos e norte-americanos em inglês, um costume<br />
bem-estabelecido no continente, como o provava a parceria entre<br />
as firmas de Baudry e Galignani. 56 A editora encerrou suas ativi<strong>da</strong>des<br />
apenas em 1943, ao ser destruí<strong>da</strong> em um bombardeio. Naquele<br />
ano, a coleção havia atingido a impressionante cifra de 5.370<br />
volumes, a maior parte deles de ficção. 57<br />
O principal alvo de Tauchnitz não era o mercado britânico,<br />
mas o próprio continente europeu, e as ferrovias faziam o transporte<br />
de seus livros para diversos pontos <strong>da</strong> Europa, para <strong>da</strong>li<br />
serem enviados para o exterior: de Bremen para os Estados Unidos,<br />
de Dresden para Viena, de Paris, para a Espanha, Portugal,<br />
África e Oriente Próximo. Por contrato com os autores, os volumes<br />
não podiam ser exportados para a Grã-Bretanha, mas acabavam<br />
lá chegando pelas mãos de turistas britânicos que os compravam<br />
durante suas viagens ao continente. Uma oferta de publicação<br />
vin<strong>da</strong> de Tauchnitz significava uma consagração, e não nos<br />
surpreende saber que Dickens, Marryat e Bulwer-Lytton foram<br />
alguns dos romancistas que autorizaram o editor alemão a publicálos.<br />
Pelham, or the Adventures of a Gentleman, de Bulwer Lytton,<br />
e The Posthumous Papers ofthe Pickwick Club, deDickens, inauguraram<br />
a coleção em 1842, que anunciava como seus traços distintivos<br />
a correção do texto, a elegância exterior e os baixos preços,<br />
e podia se gabar de que, muitas vezes, a "edição internacio-
6.+ Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
nal" era lança<strong>da</strong> muito antes de sua contraparte nacional. Segundo<br />
<strong>da</strong>dos de 1937, a firma havia produzido mais de 40 milhões de<br />
exemplares e o legendário Barão de Tauchnitz havia recrutado<br />
6.000 livreiros em todo o mundo. 58<br />
Quer seja nas ediçõés de Hachette, de Tauchnitz ou <strong>da</strong><br />
Routledge Railway Library, ou em contrafações belgas, os romances<br />
ingleses que circularam no Rio de Janeiro ao longo do século<br />
XIX aju<strong>da</strong>m a contar a história dos circuitos, rotas e caminhos<br />
percorridos por esses livros a partir dos diversos centros europeus<br />
em seu longo percurso até os portos brasileiros. O que eles<br />
nos mostram é que os mercados narrativos de que fala Moretti<br />
são efetivamente sem fronteiras. Por ocasião do centenário de<br />
Tauchnitz, um outro editor, Walter Hutchinson (1887 -1950), prestou-lhe<br />
uma homenagem, lembrando-lhe as realizações:<br />
There are no boun<strong>da</strong>ries in literature - neither race nor creed,<br />
and books, I sometimes think, fonu probably the best basis for<br />
that true internationalism which it is hoped will one <strong>da</strong>y be<br />
established in the world. Baron Tauchnitz, whose Centenary it<br />
is to be fittingly celebrated throughout the world, was, in my<br />
opinion, one of the greatest of embassadors, for he made<br />
available to millions of people the works of the greatest authors<br />
af alI nations. Baron Tauchnitz's brilliant idea developed into<br />
an internatianal institution and few men have left behind them<br />
in their work a more enduring memoriaP9<br />
" Cf. Tauchnitz-Edition. The<br />
British Library, London, 1992.<br />
59 Idem, ibid.<br />
Mesmo que se ouça nessas palavras um certo exagero<br />
encomiástico, característico dessas ocasiões, é forçoso reconhecer<br />
que, assim como ocorreu no caso de Tauchnitz, o grande feito<br />
desses homens foi ligar os continentes por meio dos livros. Foi<br />
graças a esses espíritos empreendedores, ao seu faro para os negócios<br />
e à sua ousadia que os livros se tornaram mais baratos, que<br />
as tiragens aumentaram e que obstáculos foram transpostos para<br />
que os romances chegassem às mãos de seus leitores, mesmo que<br />
eles fossem em pequeno número e estivessem distantes, do outro<br />
lado do oceano.
65<br />
A crônica na imprensa periódica<br />
oitocentista : Machado de Assis e a<br />
formação do público leitor<br />
Patrícia Kátia <strong>da</strong> Costa Pino<br />
(UESC)<br />
I. Orali<strong>da</strong>de e jornalismo<br />
1 CAMPOS, Humberto de.<br />
"Elogio do Analfabetismo". 1.1.:<br />
Diário <strong>da</strong> Tarde. Ilhéus, 28 de<br />
março de 1933,. p.2<br />
, Idem.<br />
No dia 28 de março de 1933, o escritor Humberto de Campos<br />
publicou, na página dois do Diário <strong>da</strong> Tarde, periódico ilheense<br />
de destaque na socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> época, o protesto "Elogio do Analfabetismo",<br />
de onde destaco o fragmento a seguir: "Brasileiro que<br />
sabe ler o nome não pega mais no cabo <strong>da</strong> enxa<strong>da</strong>, abandona a<br />
lavoura, e vem para a ci<strong>da</strong>de ... "l . Sua concepção de ordem social,<br />
cultural e econômica fica clara no texto em questão: há indivíduos<br />
privilegiados - os donos <strong>da</strong>s terras - que podem e devem estu<strong>da</strong>r,<br />
dominar as letras e os cálculos; há, por outro lado, aqueles que,<br />
desprovidos <strong>da</strong> posse <strong>da</strong>s mesmas e de quaisquer outros bens,<br />
devem contentar-se em "servir aos senhores". Campos termina a<br />
crônica: "Quem planta alfabeto não apanha feijão"2 . Ou seja, para<br />
esse intelectual, poucos deveriam ler e escrever, e muitos deveriam,<br />
com seu suor cotidiano, sustentá-los, na eterna reprodução<br />
de uma ordem social patriarcal, capitalista e, mais que tudo, cruel.<br />
Esse patriarcalismo brasileiro remonta aos tempos coloniais<br />
e vem do outro lado do oceano. A Metrópole construiu, nos séculos<br />
em que explorou nossas riquezas materiais e humanas, um país<br />
dividido entre os que tinham e sabiam e os que não tinham e não<br />
conseguiam nunca saber. Não tínhamos escolas, ou as tínhamos<br />
em pequeníssimo número; não tínhamos imprensa; não tínhamos<br />
meios de produção e ampla circulação de conhecimento, enfim.<br />
Somente a partir de 1808, o Brasil conquistou o direito de<br />
contar, oficialmente, com tipografias, direito este que, nos sendo
66 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
negado nos séculos precedentes, reduziu nossas letras impressas<br />
à marginali<strong>da</strong>de. Com a chega<strong>da</strong> de D. João VI e a transferência<br />
<strong>da</strong> Corte para cá, entramos, tardiamente, na era <strong>da</strong> imprensa. Mas,<br />
tudo o que é impresso deman<strong>da</strong> leitura, supõe-se. E como, até<br />
então, o impresso era raro, a habili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> leitura era um tanto<br />
ociosa, pelo menos, no que tange aos grupos populares e, em<br />
particular, às mulheres e aos negros.<br />
Na parte introdutória deA letra e a voz, Paul Zumthor estu<strong>da</strong><br />
três formas de orali<strong>da</strong>de: a primária, própria de grupos analfabetos,<br />
sem contato algum com a escrita; a mista, que sofre influência<br />
externa <strong>da</strong> escrita; a terceira, chama<strong>da</strong> segun<strong>da</strong>, que se refaz<br />
pelo papel e pela tinta. Assim ele distingue cultura escrita<br />
(possuidora de uma escritura) e cultura letra<strong>da</strong>, na qual " ... to<strong>da</strong><br />
expressão é marca<strong>da</strong> mais ou menos pela presença <strong>da</strong> escrita ... "3<br />
Mesmo volta<strong>da</strong>s para a I<strong>da</strong>de Média européia, as reflexões<br />
de Paul Zumthor abrem caminho para que se reflita sobre as práticas<br />
culturais oitocentistas brasileiras. Nós não eliminamos radicalmente<br />
a orali<strong>da</strong>de; aqui, escrita e oral partilham a cultura. A<br />
voz surge como alternativa para o olho, permitindo que a leitura<br />
fique na interseção visual/auditivo e contactando diretamente o<br />
universo oral do leitor.<br />
a Brasil do início do século XIX era carente de editoras,<br />
livrarias e periódicos. Com o correr do século, a situação mu<strong>da</strong><br />
em parte, surgem livreiros, editores de periódicos 4 • Mas os leitores,<br />
esses espécimes raros, deman<strong>da</strong>vam uma ver<strong>da</strong>deira empreita<strong>da</strong><br />
de caça por parte dos produtores de bens culturais impressos.<br />
Essa precarie<strong>da</strong>de, se criou obstáculos para a formação de<br />
grupos de leitores, por outro lado, viabilizou o aproveitamento<br />
dos protocolos de comunicação oral que reinavam por estas plagas,<br />
deu margem à sua incorporação aos padrões do impresso, aproximando<br />
este último de possíveis receptores.<br />
Tal incorporação, como a entendo, significou, de certa forma,<br />
fazer do papel e <strong>da</strong> tinta substitutos do corpo e <strong>da</strong> voz dos<br />
contadores de causas, dos porta-vozes <strong>da</strong>s instâncias administrativas<br />
etc, num processo de modernização <strong>da</strong>s ações de produção e de<br />
recepção. Se, nas práticas culturais marca<strong>da</strong>s pela orali<strong>da</strong>de, o tom,<br />
o gesto, dão suporte à voz, no âmbito <strong>da</strong>s práticas letra<strong>da</strong>s, tornouse<br />
necessário o estabelecimento de instrumentos que orientassem a<br />
recepção do impresso, mediando o trânsito do oral para o escrito.<br />
3 ZUMTHOR, Paul. A letra e<br />
a voz: a "literatura" medieval.<br />
Tradução de Amálio Pinheiro e<br />
Jerusa Pires Ferreira. São<br />
Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />
1993.p.18<br />
4 PINA, Patrícia Kátia <strong>da</strong> Costa.<br />
Literatura e jornalismo no<br />
oitocentos brasileiro. Ilhéus,<br />
EDITUS, 2002. p.29-59.
A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação 00 público leitor 67<br />
5 LAJOLO, Marisa e<br />
ZILBERMAN, Regina. A<br />
formação <strong>da</strong> leitura no Brasil.<br />
São Paulo, Ática, 1996. p. 16<br />
Segundo Marisa Lajolo e Regina Zilberman, " ... só existem o<br />
leitor, enquanto papel de materiali<strong>da</strong>de histórica, e a leitura, enquanto<br />
prática coletiva, em socie<strong>da</strong>des de recorte burguês, onde se<br />
verifica no todo ou em parte uma economia capitalista."5 Leitor e<br />
consumidor são, portanto, termos equivalentes no dezenove, não<br />
só brasileiro. Enquanto indivíduo de carne e osso, o leitor do<br />
dezenove é o mantenedor do comércio cultural: orientar seu gosto,<br />
estabelecer modos de habituá-lo a determinado tipo de texto e/ou<br />
de publicação eram ações autorais/editoriais importantíssimas.<br />
Nesse contexto, o jornalismo foi fun<strong>da</strong>mental. Suas características<br />
- periodici<strong>da</strong>de, universali<strong>da</strong>de, varie<strong>da</strong>de de temas e<br />
matérias, atuali<strong>da</strong>de, difusão - fazem dessa prática cultural um<br />
grande instrumento de agregação de público (leitores e/ou ouvintes).<br />
O jornalismo desenha o espaço social, marca seus contornos,<br />
suas áreas de interseção; tudo, nas páginas dos jornais, tem uma<br />
seqüência, obedece a uma ordem. Dessa forma, os produtores de<br />
cultura impressa, especificamente, os tipógrafos e editores de jornais,<br />
desde os inícios do século XIX, constroem suas páginas, a<br />
fim de que pudessem atender às necessi<strong>da</strong>des e expectativas dos<br />
indivíduos que, em função <strong>da</strong> nova ordem social e econômica,<br />
passavam a ser vistos como consumidores em potencial.<br />
Em 1859, Machado de Assis publica, no Correio Mercantil,<br />
uma apologia ao Jornal:<br />
6 ASSIS, Joaquim Maria<br />
Machado de. "O Jornal e O<br />
Livro". In.: --o Obra<br />
<strong>completa</strong>. 5ed. Rio de Janeiro,<br />
Nova Aguilar, 1985. V.3.<br />
p.943-944<br />
Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal é um<br />
sintoma, um exemplo desta regeneração. A humani<strong>da</strong>de, como<br />
o vulcão, rebenta uma nova cratera quando mais fogo lhe ferve<br />
no centro. A literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em<br />
que preenchesse fim do pensamento humano Não; nenhum<br />
era vasto como o jornal, nenhum liberal, nenhum democrático,<br />
como ele. Foi a nova cratera do vulcão. 6<br />
Aos vinte anos de i<strong>da</strong>de, o Bruxo do Cosme Velho lança um<br />
de seus feitiços, através do texto "O Jornal e O Livro", do qual foi<br />
retirado o fragmento acima. O feitiço a que me refiro é a confissão<br />
pública de sua paixão pelo jornalismo, paixão que ele almejava<br />
contagiante.<br />
Referindo-se ao jornal como uma alavanca de Arquimedes<br />
no que tange à inteligência humana, é à possibili<strong>da</strong>de jornalística<br />
de penetração social que Machado de Assis rende homenagem.
68 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, 0.9, 2006<br />
Para enfocar a importância do jornalismo, o romancista fluminense<br />
faz uma breve reflexão sobre as relações entre a imprensa e o livro:<br />
o livro era um progresso; preenchia as condições do pensamento<br />
humano Decerto; mas faltava ain<strong>da</strong> alguma cousa; não<br />
era ain<strong>da</strong> a tribuna comum, aberta à família universal, aparecendo<br />
sempre com o sol e sendo como ele o centro de um sistema<br />
planetário. A forma que correspondia a estas necessi<strong>da</strong>des,<br />
a mesa popular para a distribuição do pão eucarístico <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de,<br />
é proprie<strong>da</strong>de do espírito moderno: é o jornaP ,--o op. cit., p.945<br />
o livro era pouco: de circulação restrita, de manuseio difícil,<br />
interessando diretamente quase que apenas a um grupo seleto<br />
de indivíduos cujos hábitos culturais foram estabelecidos quer no<br />
convívio escolar e acadêmico, quer no convívio social com outros<br />
indivíduos de formação cultural erudita, caso do próprio Machado<br />
de Assis, o livro só atendia em parte aos anseios de difusão<br />
cultural próprios desse escritor e de seus contemporâneos.<br />
Reside aí a importância do jornal: diários, semanais, quinzenais<br />
ou mensais, os periódicos vinham preencher uma imensa lacuna<br />
no Brasil oitocentista - vinham mediar as relações entre a<br />
cultura oraliza<strong>da</strong>, ou auditiva, que se constituiu e firmou no Brasil<br />
Colônia, e a cultura letra<strong>da</strong>, pauta<strong>da</strong> pela inserção e circulação do<br />
impresso como mídia veiculadora e organizadora do pensamento.<br />
Erafáciller um jornal: suas folhas se dobravam, era pouco volumoso,<br />
podia ser guar<strong>da</strong>do até nas algibeiras. Podia ser lido na<br />
esquina, compartilhado por muitas pessoas. O jornal incluía, assim,<br />
os trânsitos cotidianos oitocentistas em suas possibili<strong>da</strong>des<br />
de apropriação, as quais já estavam p<strong>revista</strong>s e configura<strong>da</strong>s em<br />
sua materiali<strong>da</strong>de, em sua forma.<br />
Na teorização de Luiz Costa Lima, há uma distinção entre<br />
orali<strong>da</strong>de e auditivi<strong>da</strong>de. O primeiro conceito é por ele entendido<br />
como próprio de culturas desconhecedoras <strong>da</strong> escrita, as quais<br />
têm na palavra fala<strong>da</strong> o instrumento maior para a construção e a<br />
manutenção <strong>da</strong> memória e <strong>da</strong>s tradições grupais. O segundo, por<br />
sua vez, caracteriza o uso de estratégias de aprendizagem, produção<br />
e circulação de conhecimentos de natureza oral, por parte de<br />
culturas que conhecem e dominam a escrita. A auditivi<strong>da</strong>de, assim,<br />
traz um peso negativo, pois implica o desprestígio do escrito<br />
e do impresso. Para o referido pesquisador, " ... a cultura auditiva
A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor<br />
69<br />
8 LIMA, Luiz Costa. "Da<br />
Existência Precária: O Sistema<br />
Intelectual no Brasil". In.:-.<br />
Dispersa deman<strong>da</strong>: ensaios<br />
sobre literatura e teoria. Rio de<br />
Janeiro, Francisco Alves, 1981.<br />
p.16<br />
é profun<strong>da</strong>mente uma cultura de persuasão. Mas <strong>da</strong> persuasão<br />
sem o entendimento. Donde, <strong>da</strong> persuasão sedutora."8 Considerando<br />
a cultura brasileira como marca<strong>da</strong> pela auditivi<strong>da</strong>de, Luiz<br />
Costa Lima a caracteriza como uma espécie de reino do espetáculo,<br />
onde viceja o ornamental e ilusório. Como se organizaria a<br />
empresa jornalística nesse Brasil espetaculoso<br />
Ao jornal caberia a tarefa de estabelecer um universo de<br />
receptores, a partir <strong>da</strong>quilo que era vivenciado no cotidiano <strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de. Os antecessores do jornal diário - dentre eles destaque-se<br />
a leitura coletiva, em praça pública, de ordens, leis, avisos<br />
oficiais - supriram, por alguns séculos, as necessi<strong>da</strong>des de comunicação<br />
dos que aqui viviam e contribuíram para que se estabelecesse<br />
uma tradição de orali<strong>da</strong>de. O jornal dialoga com as marcas<br />
deixa<strong>da</strong>s por essa tradição, revi sita-a e a coloca em interação com<br />
as mu<strong>da</strong>nças culturais trazi<strong>da</strong>s pelo século XIX.<br />
Trata-se de um processo por demais complexo, no qual o<br />
jornalismo brasileiro tenta se inserir desde 1808, com a chega<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> Família Real, a Imprensa Régia, a Gazeta do Rio de Janeiro e<br />
o Correio Braziliense, tendo, a princípio, Portugal como referência<br />
e, com o periódico de Hipólito <strong>da</strong> Costa, o Brasil como núcleo<br />
explícito de suas tentativas de construção de um grupo receptor<br />
expressivo, que consumisse o produto cultural, fazendo-o circular<br />
mais ampla e livremente.<br />
lI. O jornal e sua importância como suporte <strong>da</strong> escrita<br />
Para Machado de Assis,<br />
9 ASSIS, Joaquim Maria<br />
Machado de. Op. cit., idem.<br />
o jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução.<br />
Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica,<br />
porque é um movimento <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de abalando to<strong>da</strong>s as<br />
suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas<br />
existentes do mundo literário, do mundo econômico e do<br />
mundo social. 9<br />
Além de mu<strong>da</strong>r as práticas de produção literária, e isso por<br />
envolver um público amplo, "democrático", diferente <strong>da</strong>s elites<br />
habitua<strong>da</strong>s ao consumo do livro, o jornal - e os demais periódicos,<br />
acrescente-se - abalaria as estruturas <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des a ele
70 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
sujeitas. E por que tal convicção No Brasil, especialmente, porque<br />
o jornalismo, na ótica machadiana, efetuaria um processo de<br />
educação informal, levando esse novo público, historicamente<br />
habituado aos ornamentos discursivos que incentivavam a crença<br />
e a adesão às idéias alheias, a fazer contato com uma maneira de<br />
produzir e divulgar bens culturais cuja ênfase vai para o individual,<br />
o particular, o reflexivo.<br />
Cumpre ressaltar que a questão não é problematizar uma<br />
possível ameaça ao livro pela "populari<strong>da</strong>de" do jornal. André<br />
Belo assinala que<br />
o sentimento de que o livro estava ameaçado apareceu pela<br />
primeira vez na segun<strong>da</strong> metade do século XIX, no momento<br />
em que, por razões econômicas, culturais e tecnológicas, a leitura<br />
dos jornais se popularizou, chegando a novas franjas de<br />
leitores que não liam livros habitualmente. 10<br />
As relações entre livro e jornal medem-s~ exatamente pelo<br />
tipo de público a que ca<strong>da</strong> uma dessas mídias atende, pelos usos a<br />
que ca<strong>da</strong> uma dessas mídias pode se submeter. O livro tem um<br />
leitor raro no Brasil Colônia e no Brasil Império, raro por inúmeras<br />
razões: pouca escolari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> população, desprestígio histórico<br />
<strong>da</strong> leitura em favor <strong>da</strong> audição, preço <strong>da</strong>s publicações etc. Para<br />
Marisa Lajolo e Regina Zilberman, " ... 0 livro configura-se como<br />
lugar em que a noção de proprie<strong>da</strong>de mostra a cara, conferindo<br />
visibili<strong>da</strong>de a um princípio fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de capitalista.<br />
construí<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> idéia de que bens têm donos, fazem parte<br />
<strong>da</strong>s transações comerciais ... "1l O livro é patrimônio, é bem durável,<br />
pertence a uma ordem social liga<strong>da</strong> à noção de permanência e<br />
de valor material agregado. O livro não era e não é para "qualquer<br />
um". Infelizmente ...<br />
O jornal responde a uma deman<strong>da</strong> diferencia<strong>da</strong>: seu consumidor<br />
queria e quer um contato com o cotidiano imediato, quer<br />
entretenimento barato, quer conhecimento suficiente para "manter<br />
a prosa na esquina". E mais que tudo: não queria - e ain<strong>da</strong> não<br />
quer - perder a segurança de se sentir parte de um processo maior,<br />
um processo que não o exclui através de mecanismos de seleção<br />
que o caracterizam negativamente em comparação com segmentos<br />
sociais privilegiados.<br />
:0 BELO, André. História &<br />
liwo e leitura. Belo Horizonte,<br />
Autêntica, 2002. p.20<br />
11 LAJOLO, Marisae<br />
ZILBERMAN, Regina. O<br />
preço <strong>da</strong> leitura: leis e números<br />
por detrás <strong>da</strong>s letras. São Paulo,<br />
Ática, 2001. p.l8
A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor 7\<br />
12 LIMA, Luiz Costa.<br />
"Machado de Assis: Mestre de<br />
Capoeira 11". In.: Jornal do<br />
Brasil. Caderno Idéias. Rio de<br />
Janeiro, 4 de janeiro de 1997.<br />
p.5<br />
Em "Machado de Assis: Mestre de Capoeira lI", publicado<br />
no Caderno Idéias do Jornal do Brasil, a propósito <strong>da</strong> edição <strong>da</strong>s<br />
crônicas machadianas feita por J ohn Gledson, Luiz Costa Lima dá<br />
uma pequena amostra de como se configuraria o caráter auditivo<br />
<strong>da</strong> cultura brasileira na página jornalística: "Ora, curiosamente, o<br />
êxito de Machado dependia de que seus leitores estivessem habituados,<br />
como ele próprio diria, às letras grandes, tipos in oitavo,<br />
com muitas ilustrações nas margens."12 Essa transposição para o<br />
impresso de elementos ornamentais, sugestivos de práticas culturais<br />
auditivas, era efetivamente necessária para que o jornal pudesse<br />
ter acesso aos novos consumidores que na época ganhavam<br />
visibili<strong>da</strong>de - para que pudesse, sim, seduzi-los. E nessa afirmação<br />
não vai nenhum desdouro, é uma questão de "economia de<br />
mercado".<br />
A socie<strong>da</strong>de brasileira, até a difusão <strong>da</strong> imprensa, em meados<br />
de século XIX, mantém hábitos culturais formados no âmbito<br />
<strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, isto é, o leitor brasileiro foi criado nos liames <strong>da</strong><br />
palavra-espetáculo. O ornato o seduz, a reflexão o afasta. É preciso<br />
reeducá-lo. Para Machado de Assis, o jornal é a mídia adequa<strong>da</strong><br />
para levar essa tarefa a bom termo, conjugando práticas orais e<br />
práticas letra<strong>da</strong>s.<br />
Segundo Lúcia Santaella, a linguagem jornalística insere-se<br />
perfeitamente no mundo de consumo capitalista:<br />
13 SANTAELLA, Lúcia.<br />
Cultura <strong>da</strong>s mídias. 2ed. São<br />
Paulo, Experimento, 2000.<br />
p.53<br />
o jornal, por seu lado, após um primeiro momento (suas fases<br />
ain<strong>da</strong> artesanais) de importação de beletrismo literário, foi<br />
gra<strong>da</strong>tivamente desenvolvendo seu próprio know-how (pós-industrialização)<br />
buscando para si uma imagem de objetivi<strong>da</strong>de,<br />
economia e imparciali<strong>da</strong>de que o mosaico jornalístico parecia<br />
realizar, satisfazendo a necessi<strong>da</strong>de de condensação informativa<br />
e fornecendo ao leitor doses cotidianas para sua reserva de<br />
acontecimento - (ficção). J3<br />
Enquanto suporte de informação e cultura, o jornal pode<br />
suprir as necessi<strong>da</strong>des intelectuais do leitor. Mesmo em sua fase<br />
inicial, no Brasil do século XIX, ele poderia ser lido em qualquer<br />
lugar, por uma ou por várias pessoas, poderia ser alvo de uma<br />
leitura coletiva, alcançando, assim, até mesmo receptores analfabetos<br />
- poderia ser, também, emprestado, vencendo limites, imposições<br />
e dificul<strong>da</strong>des financeiras.
72 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
A viabilização <strong>da</strong> leitura como ato social, <strong>da</strong> leitura por grupos,<br />
<strong>da</strong> audição do lido, faz do jornal o elemento revolucionário a .<br />
que se refere Machado de Assis.<br />
EmA ordem dos livros, Roger Chartier ressalta a importância<br />
do meio material do impresso para a efetivação de um processo<br />
receptivo:<br />
Manuscritos ou impressos, os livros são objetos cujas formas<br />
coman<strong>da</strong>m, se não a imposição de um sentido ao texto que<br />
carregam, ao menos os usos de que podem ser investidos e as<br />
apropriações às quais são suscetíveis. As obras, os discursos,<br />
só existem quando se tomam reali<strong>da</strong>des físicas, inscritas sobre<br />
as páginas de um livro, transmiti<strong>da</strong>s por uma voz que lê ou<br />
narra, declama<strong>da</strong>s num palco de teatro. 14<br />
o suporte <strong>da</strong> escrita, então, influi diretamente no processo de<br />
recepção. O livro, ao surgir, incrementou uma elitização <strong>da</strong> leitura:<br />
quer voltado para o estudo, quer para o lazer, o livro deman<strong>da</strong>, em<br />
geral, uma leitura particular e silenciosa, a partir <strong>da</strong> qual o leitor<br />
dialoga tão só com o lido. O livro é objeto de status, de determinação<br />
do lugar social dos grupos que com ele são habitua<strong>da</strong>s.<br />
Luiz Costa Lima, em "Comunicação e Cultura de Massa" ,<br />
afirma que, no século XIX europeu, há imensa quanti<strong>da</strong>de de publicações,<br />
entre jornais, romances-folhetim etc, mas não há, ain<strong>da</strong><br />
uma efetiva "cultura de massa", uma vez que se mantém enorme<br />
distância entre produções culturais destina<strong>da</strong>s à elite citadina, ao<br />
homem urbano, e ao homem rural, por exemplo. Segundo ele, "A<br />
comunicação cultural tem suas centrais indica<strong>da</strong>s nos mapas <strong>da</strong>s<br />
ci<strong>da</strong>des: são os teatros e seus sucedâneos, os chás recitativos, os<br />
jornais matinais, as salas de concerto." 15 Isso significa que, na<br />
ótica do teórico em questão, nem a produção cultural que se queria<br />
volta<strong>da</strong> para novos e amplos segmentos sociais efetivava seus<br />
objetivos de circulação e consumo. Mas, já é um começo de mu<strong>da</strong>nça,<br />
já é um sinal de incorporação de frações sociais até então<br />
excluí<strong>da</strong>s do circuito cultural.<br />
Ao relacionar livros e jornais, Luiz Costa Lima tem um ponto<br />
de vista conteudístico: entre a a<strong>da</strong>ptação de um <strong>da</strong>do assunto para<br />
um livro e para um artigo de jornal há uma boa distância, o que<br />
não impediria que "questões graves" fossem trata<strong>da</strong>s nos dois<br />
veículos. Na ver<strong>da</strong>de, enquanto mídias <strong>da</strong> escrita, livros e jornais<br />
14 CHARTIER, Roger. A ordem<br />
dos livros: leitores, autores e<br />
bibliotecas na Europa entre os<br />
séculos XIV e XVII. Tradução<br />
de Mary Del Priore. Brasília,<br />
Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />
Brasília, 1994. p.8<br />
l' LIMA, Luiz Costa.<br />
"Comunicação e Cultura de<br />
Massa". In.: MOLES, Abraham<br />
A. et alii. Teoria <strong>da</strong> cultura de<br />
massa. Introdução, comentários<br />
e seleção de Luiz Costa<br />
Lima. 4ed. Rio de Janeiro, Paz<br />
e Terra, 1990. p 40
A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor<br />
73<br />
\6 CHARTIER, Roger. Op. cit.,<br />
p.16<br />
têm funções, em geral, diferencia<strong>da</strong>s: pela periodici<strong>da</strong>de curta,<br />
pela freqüência <strong>da</strong> publicação, pela multiplici<strong>da</strong>de de assuntos<br />
enfocados em uma mesma edição, as folhas tendem a tratar panoramicamente<br />
o que noticiam, informando o público dos aspectos<br />
essenciais de ca<strong>da</strong> fato; os livros, por outro lado, dão um enfoque<br />
verticalizado aos assuntos que abor<strong>da</strong>m e isso, no mínimo, por<br />
uma questão de volume e extensão.<br />
Segundo Roger Chartier, "O essencial é compreender como<br />
os mesmos textos podem ser diversamente apreendidos, manejados<br />
e compreendidos" .16 Essa diversi<strong>da</strong>de não implica, necessariamente'<br />
marcas de hierarquização, não faz, por exemplo, o livro<br />
melhor que o jornal, mas aponta para a relação indispensável entre<br />
conteúdo e suporte material do texto.<br />
Em "Do Livro À Leitura", Chartier trabalha com a questão<br />
<strong>da</strong> posse do livro e com a questão dos usos do impresso e <strong>da</strong>s<br />
formas de apropriação do mesmo, colocando a história do impresso<br />
como uma história <strong>da</strong>s práticas culturais a ele associa<strong>da</strong>s:<br />
ele expõe duas formas de abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> história do impresso e <strong>da</strong><br />
leitura - a que enfoca a produção de textos e a que abor<strong>da</strong> a produção<br />
de livros. O que importa para a investigação <strong>da</strong> leitura via<br />
produção de textos são as senhas, explícitas ou implícitas, trabalha<strong>da</strong>s<br />
pelo autor, suas instruções ao leitor, as quais têm duas estratégias,<br />
a saber, inscrever no texto convenções sociais ou literárias<br />
e empregar técnicas que objetivam a produção de um determinado<br />
efeito:<br />
17 __ • "Do Livro à Leitura".<br />
In.: -. et alii. Práticas <strong>da</strong><br />
leitura. Tradução de Cristiane<br />
Nascimento. Introdução de<br />
Alcir Pécora. São Paulo,<br />
Estação Liber<strong>da</strong>de, 1996. p.96<br />
Existe aí um primeiro conjunto de dispositivos resultantes <strong>da</strong><br />
escrita, puramente textuais, desejados pelo autor, que tendem a<br />
impor um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma<br />
maneira de ler que lhe é indica<strong>da</strong>, seja fazendo agir sobre ele<br />
uma mecânica literária que o coloca onde o autor deseja que<br />
esteja. 17<br />
Essas instruções, no entanto, se cruzam com outras, relaciona<strong>da</strong>s<br />
ao suporte material <strong>da</strong> escrita e que envolvem questões tipográficas,<br />
como disposição e divisão dos textos, ilustrações etc. Tal<br />
trabalho editorial, essa maquinaria externa ao texto, interage com<br />
ele, e traz implícito o tipo de leitor a que o impresso se dirige:
74 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Os dispositivos tipográficos têm, portanto, tanta importância<br />
ou até mais, do que os 'sinais' textuais, pois são eles que dão<br />
suportes móveis às possíveis atualizações do texto. Permitem<br />
um comércio perpétuo entre textos imóveis e leitores que mu<strong>da</strong>m,<br />
traduzindo no impresso as mutações de horizonte de expectativa<br />
do público e propondo novas significações além <strong>da</strong>quelas<br />
que o autor pretendia impor a seus primeiros leitores. 18<br />
o enfoque do suporte material <strong>da</strong> escrita abre, portanto,<br />
espaço para o social. Os protocolos de leitura implicados no impresso<br />
indiciam os possíveis usos que ca<strong>da</strong> grupo social pode fazer<br />
dele. Como afirma Márcia Abreu: "A leitura não é prática neutra.<br />
Ela é campo de disputa, é espaço de poder."19 A percepção <strong>da</strong><br />
problemática envolvi<strong>da</strong> no consumo do impresso implicou, desde<br />
seus começos, um investimento em estratégias capazes de abrir<br />
caminhos para que livros, jornais, folhetos, enfim, pudessem circular<br />
produtivamente nas socie<strong>da</strong>des.<br />
Faustino Xavier de Novaes, em tom bastante divertido, publica<br />
em O Futuro, uma "Chronica", texto bastante interessante,<br />
do qual retiro o seguinte fragmento, para reflexão: "Um periódico<br />
que encerra cinco artigos, ocupando 40 páginas, e uma gravura, e<br />
que só desagra<strong>da</strong> pelo formato, é um excelente periódico. Faltalhe<br />
só crescer, ou diminuir, e tudo isso poderá suceder com o<br />
tempo."20 Pode-se perceber que o cronista parece se <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong><br />
importância do suporte material do impresso em seu processo de<br />
consumo e apropriação: tamanho, quanti<strong>da</strong>de de textos, de páginas,<br />
presença de ilustrações, localização <strong>da</strong>s mesmas, relação entre<br />
o lugar do texto e o dos anúncios, enfim, são fatores decisivos,<br />
ao que tudo indica, na relação entre o bem cultural impresso<br />
e seu possível e desejado consumidor.<br />
No século XIX brasileiro, ao que tudo indica, independentemente<br />
de o escrito circular no livro ou no jornal, sua transformação<br />
em moe<strong>da</strong> cultural de troca cotidiana foi objetivo comum a<br />
to<strong>da</strong> a nossa elite intelectual. O consumo <strong>da</strong> cultura impressa tornou-se<br />
capital nessa época. Aumentá-lo era priori<strong>da</strong>de, ao contrário<br />
do desejo de Humberto de Campos, expresso no protesto de<br />
1933, cuja abor<strong>da</strong>gem deu início a este estudo. Para isso, era preciso<br />
tornar essa cultura impressa não apenas um instrumento de<br />
educação distensa, informal: o consumidor educado dentro de determinados<br />
padrões passaria a exigir a permanência desses mes-<br />
IS __ • Op. cit., p.98<br />
19 ABREU, Márcia. "Prefácios:<br />
Percursos <strong>da</strong> Leitura". In.:-.<br />
(org.). Leitura, história e<br />
história <strong>da</strong> leitura. Campinas,<br />
Sp, Mercado <strong>da</strong>s Letras,<br />
Associação de Leitura do<br />
Brasil; São Paulo, FAPESP,<br />
2002. p.IS<br />
20 NOVAES, Faustino Xavier<br />
de. "Chronica". In.: O Futuro:<br />
periodico litterario. Fun<strong>da</strong>ção<br />
Casa de Rui Barbosa, Rev20 1,<br />
V.I, n I, set.l862. p.1
.:.. ~rônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor<br />
75<br />
mos padrões. Ele teria as marcas dos textos que lhe eram impostos,<br />
até porque essa imposição não era explícita. Era preciso revolucionar<br />
o horizonte de expectativas <strong>da</strong> época.<br />
IH. Na impossibili<strong>da</strong>de de uma conclusão ...<br />
21 ASSIS, Joaquim Maria<br />
\, lachado de. "29 de outubro de<br />
1893". In.: --o A semana. Rio<br />
de Janeiro/São Paulo/Porto<br />
Alegre, W. M. Jackson Inc.,<br />
1957. V. I. p.409<br />
No dia 29 de outubro de 1893, Machado de Assis publica,<br />
em A Semana, uma curiosa crônica. Trata-se <strong>da</strong> representação de<br />
uma conversa entre uma leitora insatisfeita e um cronista, que se<br />
afastara <strong>da</strong> coluna na semana anterior por problemas de saúde. A<br />
leitora reclama a presença do cronista, colocando sob suspeita a<br />
doença alega<strong>da</strong> e imputando ao texto a característica de soporífero.<br />
21 É uma leitora ousa<strong>da</strong>, sem dúvi<strong>da</strong>.<br />
O espaço deixado vago por Machado de Assis na Gazeta de<br />
Notícias do dia 22 de outubro foi ocupado por um texto de Ferreira<br />
de Araújo, diretor do referido periódico. Houve, apenas, uma alteração<br />
no título <strong>da</strong> seção usualmente ocupa<strong>da</strong> pelo escritor<br />
fluminense: em lugar de "A Semana", "Uma Semana". Trocar a<br />
definição do "A" pela indefinição do "Uma" poderia <strong>da</strong>r ao leitor<br />
habituado à coluna uma idéia de exceção, camuflando a lacuna e,<br />
simultaneamente, exibindo-a.<br />
Ferreira de Araújo demonstra grande empenho em desculpar-se<br />
com o leitor:<br />
"-. Op. cit., p.435<br />
Doente o cronista, doente ou alistado em um batalhão de voluntários,<br />
voluntário ou preso sem noção de culpa, preso ou<br />
na<strong>da</strong>dor barrigudo, força é que alguém o substitua por esta vez<br />
só, amigo leitor, que há tempos trazes o pala<strong>da</strong>r apurado pelo<br />
manjar dos deuses, que todos os domingos te servem. 22<br />
O absurdo <strong>da</strong>s desculpas evidencia a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s mesmas:<br />
somente por doença, guerra ou prisão o cronista poderia<br />
afastar-se do jornal, quebrando uma cadeia de publicações que<br />
simultaneamente criava e alimentava o horizonte de expectativas<br />
do leitor oitocentista. Era necessário ocupar o lugar deixado por<br />
Machado de Assis. Outra questão que ressalta do fragmento acima:<br />
o leitor é um "amigo", alguém a quem não se poderia decepcionar,<br />
um "amigo" que já se habituara a encontrar "manjares<br />
jornalísticos" naquela mesma seção do periódico, todo domingo.
76 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
o hábito estabelecido pelo cronista machadiano parece ter<br />
um papel fun<strong>da</strong>mental na interação do jornal com o receptor:<br />
resguardá-lo, ao que tudo indica, é essencial. Na crônica de 29 de<br />
outubro, em que retoma Machado de Assis, um outro aspecto dessa<br />
necessi<strong>da</strong>de de se criarem e alimentarem hábitos de recepção<br />
aparece no diálogo do cronista com a leitora ousa<strong>da</strong> e irrequieta:<br />
- Não, não me mande embora, deixe-me ficar ain<strong>da</strong> um instante.<br />
É tão bom vê-la, mirá-la ... E depoi's, advirto que estou apenas<br />
na tira oitava, e tenho de <strong>da</strong>r, termo médio, doze.<br />
- Vamos; fale por tiras.<br />
- Tomara poder falar-lhe por volumes, por bibliotecas. Não<br />
esgotaria o assunto: tudo seria pouco para dizer os seus feitiços<br />
e o gosto que sinto em estar a seu lado. 23<br />
o cronista parece ficar à mercê do consumidor: pede que<br />
este continue a lê-lo. Só que a advertência de que um determinado<br />
número de tiras deveria ser preenchido, além de apontar para a<br />
obrigação profissional do jornalista - que deve ocupar um determinado<br />
espaço no papel, espaço este que lhe é prévia e sistematicamente<br />
indicado - dá outra dimensão ao relacionamento escritor/jornal/público:<br />
o termo mediano desse circuito - o jornal -<br />
tinha sua organização particular, a qual precisava ser segui<strong>da</strong> pelos<br />
dois outros termos - escritor e público, isso para que se estabelecessem<br />
hábitos de consumo para a mercadoria adquiri<strong>da</strong>, empresta<strong>da</strong><br />
ou ouvi<strong>da</strong>, i.e., a fim de que o que estivesse impresso<br />
pudesse ser conhecido. Assim, o aparecimento repetitivo <strong>da</strong> mesma<br />
coluna, nos mesmos dias, em um <strong>da</strong>dO periódico, seria, de um<br />
lado, garantia de circulação para o jornal e, de outro, garantia de<br />
distração para o consumidor.<br />
Dividir o espaço do papel impresso entre o texto literário<br />
ou não e anúncios de Semolina, espartilhos, máquinas de costura;<br />
usar o texto como moldura para uma ilustração central; conversar<br />
familiarmente com os leitores; publicar as seções sempre na mesma<br />
página e em dias pré-determinados; usar linhas separadoras de<br />
colunas e condutoras do olhar do leitor; trabalhar com tipos maiores<br />
para facilitar a leitura. 24 To<strong>da</strong>s essas estratégias, muitas delas<br />
simbolizando uma incorporação de práticas culturais auditivas ao<br />
espaço <strong>da</strong> escrita, funcionaram para persuadir, seduzir, envolver o<br />
receptor oitocentista brasileiro.<br />
23 _. Idem, p.409<br />
24 PIN A, Patrícia Kátia <strong>da</strong><br />
Costa. Op. cit., p.149-162
A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor<br />
77<br />
To<strong>da</strong>s elas indiciam o imenso valor cultural <strong>da</strong> página<br />
jornalística nesse processo de construção de hábitos de leitura e<br />
consumo do impresso, permitindo que se reflita sobre sua funcionali<strong>da</strong>de<br />
social, sobre como o jornal, enquanto suporte <strong>da</strong> escrita<br />
- literária ou não -, contribuiu para uma espécie de educação<br />
informal do público, tomando-se, até hoje, mídia privilegia<strong>da</strong> no<br />
reino <strong>da</strong> escrita, configurando-se como a alavanca de Arquimedes<br />
a que se referiu Machado de Assis, em 1859.<br />
Referências<br />
ABREU, Márcia. "Prefácios: Percursos <strong>da</strong> Leitura". In.: -. (org.). Leitura,<br />
história e história <strong>da</strong> leitura. Campinas, Sp, Mercado <strong>da</strong>s Letras, Associação<br />
de Leitura do Brasil; São Paulo, FAPESP, 2002.<br />
ARAÚJO, Ferreira de. "22 de outubro de 1893". In.: ASSIS, Joaquim Maria<br />
Machado de. A semana. Rio de Janeiro/São PaulolPorto Alegre, W. M. Jackson<br />
Inc., 1957. v.I.<br />
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. "29 de outubro de 1893". In.: --o A<br />
semana. Rio de Janeiro/São PaulolPorto Alegre, W. M. Jackson Inc., 1957. VI.<br />
--o "O Jornal e ° Livro". In.: -. Obra <strong>completa</strong>. 5ed. Rio de Janeiro,<br />
Nova Aguilar, 1985. V.3.<br />
BELO, André. História & livro e leitura. Belo Horizonte, Autêntica, 2002.<br />
CAMPOS, Humberto de. "Elogio do Analfabetismo". In.: Diário <strong>da</strong> Tarde.<br />
Ilhéus, 28 de março de 1933,<br />
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na<br />
Europa entre os séculos XIV e XVII. Tradução de Mary Del Priore. Brasília,<br />
Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Brasília, 1994.<br />
--o "Do Livro à Leitura". In.: -. et alii. Práticas <strong>da</strong> leitura. Tradução de<br />
Cristiane Nascimento. Introdução de Alcir Pécora. São Paulo, Estação<br />
Liber<strong>da</strong>de, 1996.<br />
--o Cultura escrita, literatura e história. Porto Alegre, Artmed, 2001.
78 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>. n.9. 2006<br />
LAJOLO. Marisa e ZILBERMAN, Regina. A formação <strong>da</strong> leitura no Brasil.<br />
São Paulo, Ática, 1996.<br />
--o O preço <strong>da</strong> leitura: leis e números por detrás <strong>da</strong>s letras. São Paulo,<br />
Ática, 2001.<br />
LIMA, Luiz Costa. "Da Existência Precária: O Sistema Intelectual no Brasil".<br />
In.: . Dispersa deman<strong>da</strong>: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de<br />
Janeiro, Francisco Alves, 1981.<br />
--o "Comunicação e Cultura de Massa". In.: MOLES, Abraham A. et alii.<br />
Teoria <strong>da</strong> cultura de massa. Introdução, comentários e seleção de Luiz Costa<br />
Lima. 4ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990.<br />
--o "Machado de Assis: Mestre de Capoeira II". In.: Jornal do Brasil,<br />
Caderno Idéias. Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1997.<br />
NOVAES, Faustino Xavier de. "Chronica". In.: O Futuro: periodico litterario.<br />
Fun<strong>da</strong>ção Casa de Rui Barbosa, Rev201, V.I, n 1, set.l862.<br />
PINA, Patrícia Kátia <strong>da</strong> Costa. Literatura e jornalismo no oitocentos<br />
brasileiro. Ilhéus, EDITUS, 2002.<br />
SANTAELLA, Lúcia. Cultura <strong>da</strong>s mídias. 2ed. São Paulo, Experimento, 2000.<br />
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a "literatura" medieval. Tradução de Amálio<br />
Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1993.
79<br />
o marido <strong>da</strong> adúltera, de Lúcio de Mendonça,<br />
ou as estratégias de publicação de um romance<br />
como folhetim<br />
Socorro de Fátima Pacífico Vilar<br />
(UFPB/Cnpq)<br />
o marido <strong>da</strong> adúltera faz parte <strong>da</strong>quele rol de obras do<br />
século XIX que foram relega<strong>da</strong>s por certa história <strong>da</strong> literatura<br />
brasileira que "dividia o tempo em segmentos demarcados pelo<br />
surgimento de grandes escritores e grandes livros" (DARNTON,<br />
1990, p. 132). No Brasil, além de esquecidos alguns livros, também<br />
o foram o suporte por onde circularam - predominantemente<br />
o jornal- e os leitores que os leram e participaram indiretamente<br />
<strong>da</strong> sua elaboração. É nosso objetivo portanto, trazer para o centro<br />
do debate tanto a figura de Lúcio de Mendonça, como escritor<br />
importante do século XIX, como também o seu romance e o papel<br />
que o jornal desempenhou na formulação de um gênero literário,<br />
fun<strong>da</strong>mental para a formação <strong>da</strong> literatura brasileira, que é o<br />
romance-folhetim.<br />
Para não fugir a essa tradição de escritor jornalista ou jornalista<br />
escritor tão peculiar ao século XIX, a carreira de Lúcio de<br />
Mendonça, autor de O marido <strong>da</strong> adúltera, objeto de análise deste<br />
ensaio, esteve desde muito cedo liga<strong>da</strong> ao jornal. Sabe-se que,<br />
quando aluno do Colégio Pimentel, em 1864, fundou e manteve<br />
como re<strong>da</strong>tor e proprietário um pequeno jornal, A Aurora<br />
Fluminense. Em 1867, já na Corte, fun<strong>da</strong> outro jornal A Tesoura,<br />
que é ilustrado. Na déca<strong>da</strong> de 70 passa a trabalhar no jornal A<br />
República, como tradutor e noticiarista, ao lado de Machado de<br />
Assis, José de Alencar, Quintino Bocaiúva, entre outros, convivendo<br />
assim com várias gerações de escritores. Depois <strong>da</strong> passagem<br />
pelo jornal Colombo do interior de Minas Gerais, Lúcio de<br />
Mendonça volta ao Rio de Janeiro em 1888 e fun<strong>da</strong> o jornal O<br />
Escân<strong>da</strong>lo, porta-voz do caráter militante desse autor: "Chamase<br />
O Escân<strong>da</strong>lo esta <strong>revista</strong> porque vivemos num tempo tristíssimo,
80 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
delimitado, constrito, impregnado de convenção e de mentira tempo<br />
que é escan<strong>da</strong>loso dizer a ver<strong>da</strong>de. Pois havemos de dizê-la,<br />
nua e crua, em todos os assuntos, custe o que custar, doa a quem<br />
doer" (MENDONÇA, 1934, p.32).<br />
Com o fim desse jornal, Lúcio de Mendonça passa a trabalhar<br />
na a re<strong>da</strong>ção de O País e do Jornal do Brasil. No Rio, estabelece<br />
contato com outros escritores, entre os quais Par<strong>da</strong>l Mallet,<br />
Olavo Bilac, Luís Murat e Raul Pompéia. Com Machado de Assis,<br />
Medeiros de Albuquerque e outros, ele fun<strong>da</strong> a "Panelinha", que<br />
consistia de encontros mensais, em que aproveitavam almoços e<br />
jantares para discutir interesses <strong>da</strong> profissão. Em 1889, outro lugar<br />
de reunião desses intelectuais, para um diário chá <strong>da</strong>s cinco<br />
foi a re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Revista Brasileira, onde Lúcio de Mendonça,<br />
agora membro do Supremo Tribunal Federal, teria ressuscitado a<br />
idéia de criar a Academia Brasileira de Letras, "a ser fun<strong>da</strong><strong>da</strong> oficialmente<br />
pelo governo republicano". Desde então, a "Academia<br />
passou a ser tema de interesse dos debates dos presentes, que,<br />
concor<strong>da</strong>ndo com Lúcio, iniciaram uma intensa campanha pelas<br />
páginas dos jornais em prol do apoio governamental na<br />
implementação do plano acadêmico" (RODRIGUES, 2001, p. 34).<br />
Talvez porque, como afirma João Paulo Rodrigues, o projeto original<br />
de uma Academia patrocina<strong>da</strong> pelo Estado tenha falhado, o<br />
nome de Lúcio de Mendonça é muito pouco lembrado na criação<br />
<strong>da</strong> Academia, cabendo todo o mérito de fun<strong>da</strong>dor à figura Machado<br />
de Assis. Além do caráter de fun<strong>da</strong>dor, Machado de Assis foi<br />
responsável pela idéia equivoca<strong>da</strong>, segundo João Paulo Rodrigues,<br />
de que a instituição tinha e tem caráter "apolítico": "Era [Machado<br />
de Assis] o exemplo maior de escritor que havia conseguido se<br />
manter puro, o que significava que conservara sua produção e sua<br />
postura afasta<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ingerência política ( ... )" (Idem, p. 60).<br />
Apenas em 1901, em um jantar em que se reuniram vários<br />
escritores em um almoço oferecido por Lúcio, em homenagem ao<br />
lançamento do seu livro Horas do bom tempo, "Valentim Magalhães<br />
proclama-o, em público, 'o ver<strong>da</strong>deiro fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Academia<br />
Brasileira" (Idem, p. 68). Sobre sua participação no surgimento<br />
<strong>da</strong> Academia, Coelho Neto assim comenta:<br />
Lúcio era o mais corajoso e solícito dos aios <strong>da</strong> pobrezinha.<br />
Foi ele que a vacinou com a linfa <strong>da</strong> perseverança. Foi ele que
o marido <strong>da</strong> adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim<br />
81<br />
a curou <strong>da</strong> coqueluche, que lhe pôs ao pescoço o colar de âmbar<br />
para evitar as crises de dentição, que a batizou no templo <strong>da</strong>s<br />
musas e que lhe incutiu na alma a grande fé, tônico que a fortaleceu<br />
para vencer os percalços <strong>da</strong> primeira infância ... "(Apud,<br />
MENDONÇA, p. 175)".<br />
I Sua obra consiste principalmente<br />
de livros de poesia<br />
(conf. MENDONÇA, 1934)e<br />
alguns trabalhos jurídicos, além<br />
<strong>da</strong> sua colaboração em jornal.<br />
Foi no jornal Colombo, onde Lúcio de Mendonça trabalhou<br />
de março de 1879 a junho de 1885, que foram publicados os capítulos<br />
do folhetim O marido <strong>da</strong> adúltera, seu único romance l . Como<br />
a maioria dos jornais e folhas <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des do interior, o pequeno<br />
jornal <strong>da</strong> província de Campanha, do estado de Minas Gerais, tanto<br />
circulou por todo o estado e país, como fez circular em suas<br />
páginas matérias e artigos dos principais jornais <strong>da</strong> corte e de outras<br />
províncias. O certo é que este romance só foi publicado em<br />
livro em 1882, pela tipografia de Oliveira Andrade, proprietário<br />
do jornal Colombo.<br />
Lúcio de Mendonça dedica O marido <strong>da</strong> adúltera, que chama<br />
de "ensaio de romance", ao colega Dr. Esperidião Eloy de B.<br />
Pimentel Filho, a quem confessa, pedindo a benevolência do amigo<br />
que do romance na<strong>da</strong> pode esperar como obra de arte, uma<br />
vez que fora<br />
Escrito para folhetim do Colombo, quase sempre à hora de<br />
fechar-se o correio <strong>da</strong> Campanha, e impresso em folha de livro<br />
logo depois <strong>da</strong> publicação periódica, sem tempo de corrigir-se,<br />
sem prévia leitura do trabalho completo, o que deu causa a<br />
numerosas retificações posteriores ( ... ) (p. 22)<br />
Na sua dedicatória, Lúcio de Mendonça encena uma concepção<br />
bastante corrente no século XIX acerca do jornal. Morando<br />
em São Gonçalo, ele enviava pelo correio o folhetim a ser<br />
publicado no jornal Colombo, <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Campanha. Assim, o<br />
texto escrito para o jornal é sempre fruto <strong>da</strong> urgência, redigido ao<br />
calor <strong>da</strong> hora, sem burilamento ou correção, o que caracteriza o<br />
demérito com que foram toma<strong>da</strong>s as publicações em jornais. Ao<br />
mesmo tempo, a divulgação de um romance em jornal era essencial<br />
para os autores, pois ele <strong>da</strong>va projeção aos folhetins, muitos<br />
dos quais, rapi<strong>da</strong>mente transformados em livros, de onde eram<br />
apaga<strong>da</strong>s as marcas que lhes <strong>da</strong>va o jornal. É o que se observa no<br />
depoimento de Coelho Neto, autor de obra tão volumosa que, ao
82 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
contrário <strong>da</strong> pressão sempre alega<strong>da</strong> como transtorno pelos escritores,<br />
sentia grande prazer enquanto escrevia, mas se assustava<br />
depois com os erros ali encontrados: "Tenho um processo de trabalho<br />
constante. Só as novelas foram acaba<strong>da</strong>s e retoca<strong>da</strong>s antes<br />
de serem entregues aos editores. ° resto <strong>da</strong> minha obra tem sido<br />
escrito dia a dia para os jornais. Assim fiz a Capital Federal, o Rei<br />
fantasma, O turbilhão" (In RIO, 1907, p. 56).<br />
Talvez porque tenha lhe faltado essa revisão é que no romance<br />
de Lúcio de Mendonça percebemos de forma bastante evidente<br />
as características do romance-folhetim, revelando, como está<br />
implícito nas palavras do autor, que o jornal imprime um modo de<br />
escrever e constitui um gênero que lhe é bastante peculiar. Tratase<br />
do romance-folhetim, cujo "texto é definido externamente pela<br />
forma como é apresentado: o fragmento cotidiano do jornal que<br />
vai por sua vez constituindo fascículos que levam ao todo do volume"<br />
(MEYER, 1996, p. 159). Em outras palavras, segundo<br />
Antonio Hohlfeldt (2003, p. 40), citando Lise Queffélec, a caracterização<br />
do romance-folhetim francês possui as seguintes características<br />
do ponto de vista <strong>da</strong> sua estrutura e circulação:<br />
Seu suporte é o jornal e, por isso, ele deve possuir atuali<strong>da</strong>de<br />
em seus temas; divulgado na seqüência diária do ro<strong>da</strong>pé do<br />
jornal, exige rapidez de escrita mas, ao mesmo tempo desenvolvimento<br />
do próprio enredo, exigindo por vezes o retomo de<br />
alguma personagem ou não valorizando determina<strong>da</strong> figura para<br />
a qual o romancista havia reservado um papel de maior significação<br />
na narrativa.<br />
Há ain<strong>da</strong> que se considerar o romance-folhetim a partir do<br />
tipo de conteúdo e do público que o lê. Assim temos que havia os<br />
romances para homens, o romance para mulheres e aqueles destinados<br />
a crianças e jovens; naqueles dedicados às mulheres, como<br />
é o caso de O marido <strong>da</strong> adúltera, prevalecem os de narrativa<br />
"lacrimenjante ou sentimental", as narrativas de "alcova", cujo<br />
relato principal diz respeito à traição (HOHLFELDT, p. 45).<br />
Mesmo correndo o risco de to<strong>da</strong> a generalização, podemos<br />
afirmar que O marido <strong>da</strong> adúltera e A conquista de Coelho Neto<br />
são uns dos raros romances do século XIX que deixam explícita<br />
essa íntima relação entre jornal e literatura. Em A conquista, Coelho<br />
Neto tem como objetivo mostrar o jornal e sua importância
o marido <strong>da</strong> adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim<br />
83<br />
nas conquistas e na "odisséia" de to<strong>da</strong> uma geração de escritores,<br />
a quem dedica o livro. Como ele mesmo afirma na dedicatória,<br />
dele é apenas a memória, que utiliza para tratar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de todos<br />
os que "venceram" e não perderam a esperança. Seu romance traz<br />
para o centro do debate, o modo como alguns dos principais intelectuais<br />
<strong>da</strong> época se utilizaram e trabalharam no jornal. Entre eles,<br />
Aluisio de Azevedo, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, José do Patrocínio,<br />
Par<strong>da</strong>l Mallet, Guimarães Passos e Paula Ney (OLIVEIRA,<br />
1985, p. XIII). No romance A conquista, o autor encena esse cotidiano<br />
de trabalho através do personagem Anselmo, que todos<br />
identificam com ele próprio. Nele, Anselmo afirma que "levantava-se<br />
muito cedo, tomava o seu banho e descia para a ci<strong>da</strong>de,<br />
sentando-se imediatamente à mesa de trabalho. Escrevia o artigo<br />
de fundo, a Boêmia, romance au jour le jour, a crônica do dia,<br />
redigia o noticiário e to<strong>da</strong>s as seções" (p.21O).<br />
Em A conquista, a literatura ganha um suporte e uma<br />
materiali<strong>da</strong>de e os escritores deixam de ser príncipes de poetas e<br />
passam à condição de empregados e trabalhadores. Como afirma<br />
Cristiane Costa em Pena de aluguel, esse brilhante estudo sobre a<br />
relação entre os escritores e o jornal, "o jornalismo também estava<br />
longe de ser uma profissão bem-remunera<strong>da</strong>. Para conseguir<br />
melhor ren<strong>da</strong>, até os mais famosos escritores eram polígrafos obrigados<br />
a se dividir por vários órgãos de imprensa" (2005, p.55).<br />
Mas apesar <strong>da</strong> presença constante <strong>da</strong> literatura e do jornal, não há<br />
na construção do romance os elementos próprios a outros livros<br />
do mesmo autor, construídos para e no jornal, como Capital Federal,<br />
o Rei fantasma, O turbilhão, acima referidos.<br />
Segundo Flora Sussekind, em um dos raríssimos estudos<br />
motivados pelo romance O marido <strong>da</strong> adúltera, "o papel preponderante<br />
do jornal na organização <strong>da</strong> narrativa e como elemento<br />
que se faz referência a todo o momento" (1993, p.219). O romance<br />
Marido <strong>da</strong> adúltera é construído por cartas <strong>da</strong> personagem<br />
central Laura e do amigo de Luís, seu marido, Otávio à re<strong>da</strong>ção<br />
do jornal O Colombo. Denomina<strong>da</strong>s respectivamente de "Cartas<br />
de uma desconheci<strong>da</strong>" e "As confidências do morto". Em ambas,<br />
o autor utiliza mais do que as cartas aos leitores do jornal, pois faz<br />
uso <strong>da</strong>s cartas pessoais de Luís dirigi<strong>da</strong>s ao amigo e de cartas de<br />
Laura a amiga Malvininha, bem como de uma cópia de seu livro<br />
de lembranças. Todo esse artifício próprio ao romance-folhetim,
84 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
conforme analisaremos a seguir, serve para contar a história de<br />
uma moça do interior que, ao se mu<strong>da</strong>r para o Rio de Janeiro,<br />
deixa-se seduzir pelo primeiro rapaz que encontra. Baseado no<br />
determinismo, o autor tenta provar a influência <strong>da</strong> família no caráter<br />
de Laura, a personagem principal. Aliás, é a família quem vê<br />
em Luís, jovem bacharel, a oportuni<strong>da</strong>de de tramar o casamento<br />
<strong>da</strong> filha, a fim de "reparar" o erro do passado. Luís, por sua vez,<br />
ama Eugenia que é obriga<strong>da</strong> a casar com um jovem rico. Laura<br />
depois de casa<strong>da</strong> vai com o marido para o interior, onde passa a<br />
traí-lo, movi<strong>da</strong> pelo tédio e pela falta de amor. O último caso de<br />
Laura será na casa <strong>da</strong> irmã, que era uma cortesã, famosa pelos ruidosos<br />
casos amorosos com homens ricos. Numa rocambolesca trama,<br />
Luís toma conhecimento do adultério e se mata em segui<strong>da</strong>.<br />
Em O marido <strong>da</strong> adúltera, do título ao leitor implícito, do<br />
uso que a narradora faz do pseudônimo, passando pelas cartas em<br />
que são conta<strong>da</strong>s as desventuras <strong>da</strong> adúltera e do seu marido,<br />
observamos as marcas explícitas dessa relação. Na ver<strong>da</strong>de, até<br />
mesmo o capítulo inicial, "À re<strong>da</strong>ção do Colombo" onde Laura<br />
pede ao re<strong>da</strong>tor para que publique por sua vez, reproduz o argumento<br />
do primeiro capítulo de Os dramas de Paris, de Ponson du<br />
Terrail, onde este vai contar como submeteu um manuscrito ao<br />
diretor do jornal La Patrie, que constava de mais de 100 folhetins,<br />
(MEYER, 1996, p.147).<br />
Entre as tantas razões para se justificar o pouco caso que a<br />
história <strong>da</strong> literatura teve com a contribuição do jornal para sua<br />
consoli<strong>da</strong>ção, pode-se incluir a rígi<strong>da</strong> divisão que colocou em lados<br />
opostos jornalistas e escritores, ou que identificou a literatura<br />
com a "alta cultura e o jornalismo com a cultura de massa". Cristiane<br />
Costa tenta retomar e compreender os laços que uniram o jornalismo<br />
e a literatura e in<strong>da</strong>gar sobre essas enti<strong>da</strong>des que são autor jornalista<br />
e autor literário e de "como e quando os dois campos se<br />
constituem em separado. Para ela, "somente na déca<strong>da</strong> de 20 do<br />
século passado é que a literatura (ou, antes, o beletrismo) será expulsa<br />
do jornal", mas "essa separação será tão naturaliza<strong>da</strong> que se<br />
esquecerá que as duas ativi<strong>da</strong>des começararnjuntasem 1808" (2005,<br />
p. 14). Para analisar essa relação nas primeiras déca<strong>da</strong>s do século<br />
XX, a autora toma como base o célebre Momento Literário, de<br />
João do Rio, especificamente uma <strong>da</strong>s cinco perguntas: "O jornalismo,<br />
especialmente no Brasil, é um fator bom ou mal para a arte
o marido <strong>da</strong> adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim<br />
85<br />
literária" (Rio: 1907, p. XVIII). As respostas, sejam em forma<br />
de cartas, seja através <strong>da</strong>s ent<strong>revista</strong>s, foram publica<strong>da</strong>s primeiramente<br />
na Gazeta de Notícia - seguindo um caminho bem conhecido<br />
do texto literário - e só em 1907 tiveram sua publicação em<br />
livro. Segundo nota de seu editor, os depoimentos fizeram tanto<br />
sucesso, "que os principais jornais dos principais Estados não duvi<strong>da</strong>ram<br />
em aplicá-los às respectivas literaturas" (Idem, p.VII).<br />
Em geral, tinha-se uma visão ambígua do jornal. Ao mesmo<br />
tempo em que se reconhecia sua importância para a formação <strong>da</strong><br />
literatura brasileira e para a consoli<strong>da</strong>ção e reconhecimento <strong>da</strong><br />
carreira do autor, revelava-se o que consistia a queixa mais comum:<br />
o teor superficial, ligeiro e pouco profundo dos textos produzidos<br />
em jornal, marcados pela necessi<strong>da</strong>de de serem produzidos<br />
de forma rápi<strong>da</strong> e cotidiana, fazendo com que os jornalistas<br />
escrevessem sob pressão. Acreditava-se que, movidos pela pressão,<br />
dificilmente conseguiriam produzir algo de quali<strong>da</strong>de. Na<strong>da</strong><br />
diferente do que afirmava, em 1859, Machado de Assis na crônica<br />
"O folhetinista". Para ele, o folhetinista é uma planta européia que<br />
se alastrou pelo mundo afora "por onde maiores proporções tomava<br />
o grande veículo do espírito moderno, o jornal" (1986, p.<br />
967). Ele não tem dúvi<strong>da</strong>s que o folhetinista é uma "nova enti<strong>da</strong>de<br />
literária", que une a "arte do útil e do fútil, o parto curioso e<br />
singular do sério, consorciado com o frívolo", com dias tecidos a<br />
ouro, a não ser por aqueles em que tinha que escrever, quando<br />
"passam-se séculos nas horas que o folhetinista gasta à mesa a<br />
construir a sua obra". Essa dificul<strong>da</strong>de, segundo o autor, originase<br />
do "cálculo e do dever". Essa imagem do folhetim - que será o<br />
espaço por excelência do literário -, do romancista, do poeta e do<br />
jornal cria<strong>da</strong> por Machado de Assis é modelo de uma concepção<br />
que se fortalecerá durante o século XIX. Esta lógica do literário<br />
como o fútil útil, parece nortear a personagem José do Patrocínio<br />
do romance A conquista, de Coelho Neto, que ao propor a criação<br />
de um jornal, inclui a crônica literária, mas com a ressalva de<br />
que para ele, as "duas coisas sérias do jornal são o noticiário e a<br />
gerência" (COELHO NETO, 1985, p. 150).<br />
Na desvalorização do texto publicado em jornal, está implícita<br />
a valorização do livro pelo tempo que se lhe podia dispensar<br />
na revis~~, na correção dos erros tipográficos e até mesmo para<br />
evitar-se algo muito comum aos folhetins que era a inverossimi-
86 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
lhança, muitas vezes constata<strong>da</strong> na morte de um personagem que<br />
voltava à trama muitos meses e capítulos depois, em um sinal claro<br />
de que o autor não lia o escrevia e era traído pela memória. Na<br />
ver<strong>da</strong>de, o escritor de folhetins contava com a desatenção do seu<br />
leitor, ou leitora, como sempre explicitou Machado de Assis, uma<br />
vez que estes eram publicados emjornais que circulavam em dias<br />
alternados, às vezes semanalmente, outras vezes quinzenalmente.<br />
É o caso do jornal Colombo, onde primeiramente foi publicado o<br />
romance em questão, que saía apenas nos dias 2, 8, 14,20 e 26 de<br />
ca<strong>da</strong> mês (MENDONÇA, 1934, p.23). Mesmo que fosse publicado<br />
em dias espaçados, os leitores do jornal, a quem Lúcio de ~lendonça,<br />
editor do Colombo e personagem do romance não queria<br />
desagra<strong>da</strong>r, prezavam a seqüência, o desenrolar de to<strong>da</strong> história e<br />
a perspectiva de desenlace final, razão por que ele temeu que a<br />
carta que <strong>da</strong>va início àquela história não fosse segui<strong>da</strong> por outras:<br />
"publica-se a primeira carta (que ela havia dirigido aos re<strong>da</strong>tores<br />
para que fosse publica<strong>da</strong>). Mas as outras Mas publicar a primeira<br />
e ter talvez de seqüestrar as seguintes É na<strong>da</strong> menos que excitar<br />
a curiosi<strong>da</strong>de dos leitores e deixá-la insacia<strong>da</strong>: má ação em todo<br />
caso, talvez desgosto para os assinantes, descortesia com certeza"<br />
(p. 25). A preocupação com os leitores revela as injunções<br />
que este começava a exercer no tocante às assinaturas dos jornais.<br />
Observe-se que não há por parte do re<strong>da</strong>tor do jornal qualquer<br />
manifestação no sentido de não publicar a carta. Por isso,<br />
que no gesto de Laura <strong>da</strong> certeza <strong>da</strong> publicação de suas cartas,<br />
assim como no do amigo de Luís o outro narrador <strong>da</strong> história,<br />
revela-se uma imagem bastante próxima do que ocorria nos jornais:<br />
esse era um espaço propício a vários gêneros literários 2 • À<br />
parte todos os propósitos políticos e libertários do jornal, dirá<br />
Silva Ramos em O momento literário, há uma "feição essencialmente<br />
mercantil <strong>da</strong>s folhas diárias, revela<strong>da</strong> nas pequeninas preocupações<br />
de furos, curiosi<strong>da</strong>des de senhoras vizinhas, folhetins de<br />
sensação, ao pala<strong>da</strong>r <strong>da</strong>s cria<strong>da</strong>s de servir ( ... ) (1907, p. 179)".<br />
Deixando de lado os preconceitos de Silva Ramos, suas observações<br />
talvez nos ajudem a entender por que alguns escritores trataram<br />
de "retirar" de seus textos as marcas do jornal. Afinal, as<br />
folhas e jornais eram muitos e to<strong>da</strong> a colaboração era bem-vin<strong>da</strong>.<br />
Como sugerem as palavras do editor Lúcio de Mendonça em relação<br />
ao desejo de Laura de ter suas cartas publica<strong>da</strong>s: "aí vão para<br />
, Para Flora Sussekind (1993,<br />
p. 2 I 6), o fato de o missivista ir<br />
se tornando o narrador principal<br />
do relato, deve-se à simpatia do<br />
diretor de O Colombo, uma vez<br />
que este não poderia deixar de<br />
se aliar a "alguém que encara o<br />
jornal como um espaço<br />
polêmico, plural, à semelhança<br />
<strong>da</strong> imagem liberal que sonha<br />
para0 país".
) marido <strong>da</strong> adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim<br />
87<br />
a imprensa as suas cartas, e irão pelo mesmo caminho as que vierem.<br />
Se, porém, como é mais provável, Laura de M. quer fazer<br />
romance sentimental, ain<strong>da</strong> que ver<strong>da</strong>deiro, que o faça embora; só<br />
temos que lhe agradecer a colaboração, que é interessante" (p.<br />
26). Não havia seleção, nem critérios para a publicação dos textos<br />
no jornal e grande parte do que se publicava era ou anônimos, ou<br />
sob pseudônimos.<br />
Como argutamente observa Flora Sussekind (1993), o jornal<br />
exerce no romance o papel de protagonista, pois que foi através<br />
dele que Laura conheceu Luís Marcos, naquilo que era muito<br />
comum: os bacharéis iniciarem (muitos evidentemente não conseguiram<br />
passar dos anônimos e <strong>da</strong> "colaboração solicita<strong>da</strong>") sua<br />
carreira literária, publicando em jornais de São Paulo, o que foi o<br />
caso do próprio Lúcio de Mendonça. Laura "já conhecia o nome<br />
de Luís Marcos, e sabia de cor muitos versos dele publicados em<br />
folhas de São Paulo que o bacharel man<strong>da</strong>va à família" (p. 59/60).<br />
O jornal era O Apóstolo lido não só por Laura, mas por sua amiga<br />
beata que também já conhecia o rapaz de nome e lamentava que<br />
ela viesse a casar "com um inimigo <strong>da</strong> religião" (p. 99). Há também<br />
o episódio, já notado por Flora Sussekind, em que Laura,<br />
planejando um futuro na Corte para ela, imagina uma carreira<br />
jornalística para o marido para a qual tinha os pré-requisitos necessários:<br />
"tinha amizades no jornalismo fluminense, podia obter<br />
que o tomassem para colaborador de alguma <strong>da</strong>s folhas diárias" ... (p.<br />
123). Há inclusive um momento irônico, visto pelo próprio Luís,<br />
minutos antes de ele mesmo ler em um jornal a sua nefasta história.<br />
Ao entrar em uma barbearia, enquanto esperava viu um rapaz<br />
"muito embebido na leitura de umjornal do dia, em que colaboravam<br />
escritores novos. Imaginei pelo interesse, que estaria lendo<br />
algum artigo dele próprio" (p. 148). É através <strong>da</strong> leitura de jornais<br />
que Luís toma conhecimento <strong>da</strong> traição <strong>da</strong> mulher. É também pelo<br />
jornal que seu amigo se inteira <strong>da</strong> morte dele. No jornal, ele reconhece<br />
a história de Luís e identifica no pseudônimo a ver<strong>da</strong>deira<br />
autora do folhetim.<br />
Mais que isso, o jornal era o lugar <strong>da</strong>s disputas amorosas,<br />
palco dos amores impossíveis, dos amores risíveis, revelados numa<br />
guerra de textos nem sempre tidos por "literários", seja através de<br />
poemas amorosos - muitas vezes em forma de carta - seja em<br />
trovas populares, mas todos de uma forma preponderantemente
88 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
marcados pelo anonimato, escondidos pelo pseudônimo, recurso<br />
utilizado por praticamente todos os escritores e muitos leitores<br />
que viam seus textos publicados, como fez Laura, com o nome<br />
Ângela do folhetim que Luís leu. Dentro <strong>da</strong> narrativa mesma, percebe-se<br />
que anteriormente esta história, que era li<strong>da</strong> através de<br />
cartas, veio a público, em um jornal, quando um "amigo literato<br />
distinto" propôs a Otávio que se revelasse a traição de Laura,<br />
"num conto engenhoso, que só os interessados entendessem" (p.<br />
145). Outro uso para o jornal também está descrito no romance.<br />
Trata-se de uma fala de João, padrinho de Laura, inconformado<br />
com o fato de sua família não lhe ter procurado quando passaram<br />
aperto financeiro: "-Diabo! - dizia com voz vela<strong>da</strong> de comoção.<br />
- Por que não me escreveram ... para to<strong>da</strong> parte do mundo ... ain<strong>da</strong><br />
que fosse pelo jornal .. "( p. 53).<br />
Muito nos aju<strong>da</strong>ria poder consultar os originais onde foi<br />
publicado pela primeira vez O marido <strong>da</strong> adúltera, para determinar<br />
com precisão o número de exemplares e meses em que foi<br />
<strong>da</strong>do a público. Mas pela estrutura dos capítulos e a informação<br />
de que O Colombo saia pelo menos 5 vezes por mês, podemos<br />
nos aproximar desse tempo real. O livro é composto de 14 partes,<br />
divi<strong>da</strong>s entre as cartas que Laura escreve aos leitores do jornal e<br />
aquelas que escreve a sua amiga Malvininha, além <strong>da</strong>s memórias<br />
do seu livro de lembranças, que formam os IX capítulos denominados<br />
de "Cartas de uma desconheci<strong>da</strong>"; a outra parte denomina<strong>da</strong><br />
de "As confidências do morto", refere-se às cartas do narrador<br />
ao jornal e àquelas de Luís que lhe chegaram às mãos. Ao todo<br />
são 6 cartas distribuí<strong>da</strong>s em 3 capítulos. Essa varie<strong>da</strong>de de gêneros<br />
e multiplici<strong>da</strong>de de vozes, ou "virtuosismo rocambolesco"<br />
como observa Marlyse Meyer, ao analisar os romances de Poison<br />
du Terrail, são constituí<strong>da</strong>s pelas "famosas gavetas características<br />
do romance arcaico ... ". Segundo a autora (1996, p. 159):<br />
Internamente o texto apresenta os mais variados processos narrativos,<br />
que emprestam todos os modelos para compor uma<br />
vertiginosa construção em abismo estrutura<strong>da</strong> em embuste e<br />
ardil como forma de articulação do enredo: embuste de ver<strong>da</strong>de,<br />
embuste de mentira, vítimas de mentira (cúmplices e préinformados)<br />
etc.
o marido <strong>da</strong> adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim<br />
89<br />
Nessa "construção em abismo", há o embuste <strong>da</strong> narradora,<br />
"ardilosa" como mulher e também como narradora; se ela enganou<br />
o marido, engana agora os leitores. Primeiramente, faltando<br />
com a ver<strong>da</strong>de, quando surge um outro narrador, amigo de Luís,<br />
o marido traído, que resolve contar a ver<strong>da</strong>deira versão <strong>da</strong> história.<br />
História do passado aliás que ele conhecia em detalhes, mas<br />
que resolvera ocultar do seu amigo; era o segredo de Laura, seu<br />
envolvimento com o jovem oficial rio-grandense. Se por um lado<br />
Laura escreve para que seu exemplo seja "lição proveitosa a algumas<br />
outras", supondo serem as leitoras quem liam os seus escritos<br />
e os romances-folhetins, por outro, o missivista duvi<strong>da</strong> que seja<br />
uma mulher aquela quem escreve as cartas. Trata-se de outro<br />
embuste, agora com relação à própria escrita: "Digo que deve ser<br />
um homem porque não é de pena feminina aquele estilo embebido<br />
de reali<strong>da</strong>de; o mais que digo vê-se pela desapie<strong>da</strong><strong>da</strong> nudez em<br />
que se revelam os fatos vergonhosos dessa vi<strong>da</strong> de mulher" (p.<br />
73). Não se trata de falta de capaci<strong>da</strong>de ou de talento para escrever<br />
um romance, mas <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de que estes romances têm do<br />
engodo, do ardil para o "bom" an<strong>da</strong>mento do folhetim.<br />
Considerando que a maioria <strong>da</strong>s cartas e dos capítulos<br />
corresponde ao espaço do jornal destinado ao folhetim, à exceção<br />
do capítulo VI, muito longo, que provavelmente foi dividido em<br />
sua publicação, temos que este romance levou algo em torno de 4<br />
meses para ser publicado. Como um bom romance-folhetim, escrito<br />
quase sempre no limite <strong>da</strong> hora, como sugere a dedicatória<br />
do autor, O marido <strong>da</strong> adúltera possui um "mistério do passado"<br />
(MEIYER, 1996) que vai nortear to<strong>da</strong> a trama. Primeiramente,<br />
em relação à própria Laura que esconde do marido o fato de já<br />
haver tido um relacionamento no passado, o que na moral<br />
oitocentista já se constitui como um adultério; Luís Marcos por<br />
sua vez amava Eugênia que casou com um homem rico. Em meio<br />
a esses pequenos segredos, há um maior que não é o adultério,<br />
nem o motivo pelo qual ela o pratica, mas a pergunta principal:<br />
teria, portanto o suicídio de Luís Marcos relação com esse episódio<br />
Teria o marido tomado conhecimento <strong>da</strong> traição de Laura<br />
Como se deu a traição Este era o ver<strong>da</strong>deiro mote para o desenrolar<br />
do folhetim.<br />
Contrariando o estereótipo do folhetim sobre adultério, nesse<br />
romance a adúltera não é puni<strong>da</strong> com a morte, nem com a reclu-
90 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
são, porém, sua "falta"deveria ser repara<strong>da</strong> com a expiação pública<br />
do seu remorso. A narrativa tem início com a personagem Laura<br />
de M. justificando a publicação de sua história como sendo uma<br />
forma de provar aos amigos dele que agora compreendia, "ain<strong>da</strong><br />
que muito tarde, o homem honrado que foi [seu] marido - para<br />
desgraça sem remédio e para meu desesperado remorso" (MEN<br />
DONÇA, 1974, p. 23)3. Mas o narrador faz questão de mostrar<br />
ao leitor que se trata de mais um engodo dela, posto que depois<br />
<strong>da</strong> morte do marido, "só depois de gasta e repeli<strong>da</strong>, tendo descido<br />
to<strong>da</strong> a escala <strong>da</strong> degra<strong>da</strong>ção, é que se foi refugiar na província se<br />
na devoção, refugium peccatorum", onde passa a escrever sua<br />
história (p. 152).<br />
Pois qual não é a surpresa do leitor contemporâneo - que<br />
pode voltar as páginas do texto e confirmar que o marido estava<br />
morto quando ela deu início à narrativa - quando no último capítulo,<br />
surge uma carta do marido de Laura, o dr. Luís Marcos de<br />
Lima, ao missivista narrador em que conta como tomou conhecimento<br />
<strong>da</strong> traição <strong>da</strong> mulher. A citação é longa, mas será fun<strong>da</strong>mental<br />
para acompanharmos como a narrativa construí<strong>da</strong> com esses<br />
fragmentos diários não tem compromisso com a verossimilhança,<br />
mas com movimento vertiginoso <strong>da</strong> elaboração "simultânea":<br />
'.-\ partir dessa citação, fart;<br />
referência apenas ao número <strong>da</strong><br />
página do romance de Lúcio de<br />
\1endonça.<br />
Na estação, comprei as folhas do dia, a Gazeta, o Jornal, a tal<br />
folha dos rapazes. Na travessia fui lendo a Gazeta; no ferrocarril,<br />
abri o jornal, e embrenhei-me nas correspondências <strong>da</strong><br />
Europa até que me faltou luz. A poucos quilômetros <strong>da</strong> estação<br />
terminal, abri o jornalzinho. Atraiu-me o folhetim ...\ngela,<br />
assinado por um pseudônimo auspicioso; mas , à proporção<br />
que me adiantava, a leitura ia ganhando para mim um interesse<br />
terrível. Ângela era um feliz retrato de Laura, completo. minucioso,<br />
desenhando até um imperceptível defeito que ela tem no<br />
lábio inferior. O marido, designado apenas por doutor, era eu,<br />
visto através de um baixo ódio que eu não conhecia (p. 149).<br />
Voltemos pois ao primeiro capítulo como leitores <strong>da</strong> narrativa<br />
integral, publica<strong>da</strong> em livro, desconfiados do fazer folhetinesco.<br />
Nele, a protagonista dirige sua carta aos leitores do jornal Colombo,<br />
tempos após a morte do seu marido. Como se observa na passagem<br />
acima, a história que Luís lê, a mesma história publica<strong>da</strong> em<br />
o Colombo, está conta<strong>da</strong> em outro jornal, o tal jornalzinho "em
'J marido <strong>da</strong> adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim<br />
91<br />
que colaboravam escritores novos"(p. 148). Portanto, temos aqui<br />
duas possibili<strong>da</strong>des bastante plausíveis em se tratando de um folhetim.<br />
Primeiramente, o folhetim Ângela, não representaria uma<br />
outra história apenas pareci<strong>da</strong> com a sua, como somos quase obrigados<br />
a considerar. Mesmo cor' a total inverossimilhança desta<br />
passagem, esta seria a mesma história escrita por Laura com a<br />
finali<strong>da</strong>de de precipitar o fim trágico e intensificar embuste e o<br />
ardil <strong>da</strong> personagem. Nesse caso, levando em conta a forma de<br />
escrever e ler um folhetim, a coerência não se <strong>da</strong>ria com os capítulos<br />
iniciais, mas com aquilo que tinha sido recentemente publicado,<br />
pouco importando se o que se passava naquele momento<br />
diferia do início do romance. A citação acima é do último folhetim,<br />
separado do clímax <strong>da</strong> narrativa por uma cópia de carta, em<br />
que com tom momo, Luís se despede do amigo narrador e<br />
confidencia o amor impossível que nutria por Eugenia, bem como<br />
o sofrimento ao se despedir dela. Esse capítulo, referente à quinta<br />
carta <strong>da</strong>s "Confidências do morto" é precedido pela "Cópia do<br />
meu livro de lembranças", onde Laura, sem nenhum pudor ou<br />
culpa - diferentemente do que afirmava no primeiro capítulo -<br />
narra sua aventura com o jovem estu<strong>da</strong>nte de medicina, na mansão<br />
<strong>da</strong> sua irmã em S. Lourenço, tal qual descrito pelo folhetim<br />
Ângela. O capítulo do folhetim termina com a inespera<strong>da</strong> viagem<br />
do marido e a possibili<strong>da</strong>de de ela passar três dias e três noites<br />
com o amante.<br />
Segundo, a outra possibili<strong>da</strong>de, bastante plausível do ponto<br />
de vista do romance-folhetim, é a de Otávio ter levado a cabo a<br />
sugestão do amigo "literato distinto" de revelar tudo a Luís, através<br />
"de um conto engenhoso, que só os interessados entendessem",<br />
e que foi publicado no jornalzinho lido pelo marido traído.<br />
Seja qual for a solução encontra<strong>da</strong> pelo autor, ambas, são perfeitamente<br />
adequa<strong>da</strong>s ao desfecho de um folhetim publicado emjornaI.<br />
O importante para a ação deste tipo de romance é que ele<br />
descobrisse os atos <strong>da</strong> mulher. Descobri-lo pelo jornal então, é<br />
uma forma de negociar o sentido do texto, diminuindo a assimetria<br />
entre este e o leitor (ISER, 1999, p. 28), favorecendo a produção<br />
de sentido do qual o leitor também participa, haja vista que ele<br />
está lendo a mesma história também numa folha de jornal. Dessa<br />
forma, temos aqui uma estratégia sabi<strong>da</strong> dos escritores do século<br />
XIX, que pela boca <strong>da</strong> personagem Teixeira, médico e filósofo de
92 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
A conquista consiste em oferecer ao público leitor que "está ain<strong>da</strong><br />
no período infantil do deslumbramento", os romances preferidos<br />
que "são os de complicado enredo, os magnificentes, os emaranhados<br />
que não passam de ampliações de contos de fa<strong>da</strong>s para<br />
crianças grandes. Não há ain<strong>da</strong> o critério estético, não sei se posso<br />
dizer assim. O leitor não se preocupa com a substância nem<br />
com a forma; a inverossimilhança é o seu ideal, quanto mais irreal<br />
melhor" (COELHO NETO, p. 132, Grifos nossos).<br />
Filiado à estética realista, O marido <strong>da</strong> adúltera, ao mesmo<br />
tempo em que "aumenta a complexi<strong>da</strong>de do espaço de jogo" (ISER,<br />
1999, p. 69), ao apresentar a trama sob vários olhos, precisa de<br />
alguma forma manter presente o contexto citado, na referência<br />
implícita que faz a outros romances do gênero. Dessa forma, o<br />
adultério, ou a tese naturalista que o romance tenta provar - a de<br />
que o caráter <strong>da</strong> personagem foi forjado pela herança familiar e<br />
pelas condições do meio - compreende a "citação" <strong>da</strong> "alta literatura",<br />
alia<strong>da</strong> aos ingredientes fun<strong>da</strong>mentais do "baixa literatura"<br />
característica do romance-folhetim, publicado no jornal. Assim é<br />
que, para Lúcio de Mendonça, editor do jornal e personagem do<br />
romance, a primeira carta de Laura revela um "caso literário dos<br />
mais atraentes e dos menos embaraçosos" numa alusão explícita a<br />
um assunto comum a esse gênero de romance, ao mesmo tempo<br />
em que ela "por mais que nos queira prevenir em sentido contrário,<br />
é, apesar de sua desgraça, ou por amor dela própria, uma<br />
romântica. Sinto dizer-lho: mas está se vendo ... " (p. 25). Assim,<br />
ao considerá-la romântica, o autor traz para dentro do texto outras<br />
personagens de romances realistas, por sua vez, leitoras de<br />
folhetins e romances românticos, cujo paradigma é a personagem<br />
Ma<strong>da</strong>me Bovary, aludi<strong>da</strong> seja pelo adultério, seja pelo tédio que<br />
sentia quando passou a morar em B. depois do seu casamento,<br />
como relata em carta para a amiga Malvininha:<br />
Malvininha, está decidido: a tal roça, que os senhores poetas<br />
nos impigem como um ninho de tranqüilas felici<strong>da</strong>des, é um<br />
mar morto de tranqüila pasmaceira, de inesgotável aborrecimento!<br />
[ ... ]<br />
Mas as horas vazias de trabalho precisavam ser cheias de outra<br />
equivalente ocupação se é que outra assim existe; e não o eram.
o marido <strong>da</strong> adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim<br />
93<br />
Desta falta me veio o tédio, que é caminho certo <strong>da</strong> perdição<br />
para as naturezas imaginativas, como infelizmente é minha vi<strong>da</strong><br />
Cp. 120)<br />
Os amores de folhetim e o adultério estão presentes também<br />
na leitura que o narrador, amigo de Luís, faz do Processo<br />
Clémenceau, de Alexandre Dumas Filho e discute com Luís e<br />
Otávio, no tempo em que eram estu<strong>da</strong>ntes em São Paulo. Nele, o<br />
marido adulterado mata a adúltera, uma jovem que ele mal conhecia,<br />
mas com quem resolvera casar. O narrador defende a conduta<br />
do marido traído. Já Luís argumenta de forma contrária, justificando<br />
que como o homem casara com sua fantasia - já que não<br />
conhecia a família, nem a origem <strong>da</strong> mulher - fora ele e não ela<br />
quem traiu. O fato é que Luís Marcos, ao acusar o marido que<br />
mata a adúltera, está se condenando, assumindo para si to<strong>da</strong> a<br />
responsabili<strong>da</strong>de pelo que viria a fazer <strong>da</strong>li a dois anos. Suas palavras<br />
são ao mesmo tempo antecipação e excesso folhetinesco na<br />
medi<strong>da</strong> em que toma mais "vil" a traição de Laura que o enganou<br />
antes do casamento; ele já é uma "vítima <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de" antes mesmo<br />
de ela vir à tona, pois se este o não previu, se o não evitou, é<br />
com certeza, culpado (p. 76).<br />
Ao contrário do narrador, Luís Marcos vê como única saí<strong>da</strong><br />
para o marido traído do Processo Clémenceau, o "dever de matar-se".<br />
Otávio, seu amigo e narrador, embora fique sabendo do<br />
segredo de Laura, evita escrever para o amigo contando, na esperança<br />
de encontrá-lo em breve. Mas os ardis supostamente montados<br />
pela família dela para que passe a noite com Laura e o casamento<br />
de Eugênia, seu ver<strong>da</strong>deiro amor, precipitam e exigem dele<br />
o casamento. O amigo por sua vez, o sujeito pré-informado a qual<br />
se refere Marlyse Meyer, toma-se cúmplice do passado de Laura,<br />
levando o amigo a ser vítima <strong>da</strong> mentira. Porém, ao narrar a história,<br />
tenta de alguma forma justificar aos leitores de o Colombo a<br />
sua atitude.<br />
Outra estratégia de romance folhetim trazi<strong>da</strong> para este romance<br />
diz respeito ao passado do próprio Luís Marcos. Este também<br />
tinha um segredo que nunca chegou a conhecer. Na segun<strong>da</strong><br />
carta do seu amigo, ficamos sabendo "que a família a que Luís,<br />
enjeitado, apenas julgava pertencer por adoção e cari<strong>da</strong>de, era<br />
sua pelo sangue, e a herança do homem que o criou, renuncia<strong>da</strong>
94 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
por ele em favor dos colaterais, não era mais do que uma restituição,<br />
e desfalca<strong>da</strong>, <strong>da</strong> herança do próprio pai". Assim, quando mais<br />
tarde o tio movido pela culpa, na tentativa de reparar seu erro,<br />
instituiu Luís seu herdeiro universal, este sem o saber repudiou a<br />
herança num gesto heróico e de desprendimento.(p. 82).<br />
Outro aspecto típico do folhetim é o título que nos remete<br />
diretamente ao assunto tratado, sem as sutilezas machadianas de<br />
nomear D. Casmurro um romance sobre adultério. Nesse caso, o<br />
título é até redun<strong>da</strong>nte, pois segundo Marlyse Meyer, o adultério<br />
é sempre do gênero feminino (1996, p. 253). Na ver<strong>da</strong>de, esse<br />
título revela uma <strong>da</strong>s nuances dos romances-folhetins, publicados<br />
em jornais, que antecipavam o lançamento de um novo romance,<br />
a poucos dias de finalizar o que estava em publicaçã0 4 • Muitas<br />
vezes, esses anúncios vinham até mesmo sem o nome do autor, o<br />
que revela a importância de um título direto, chamativo, que antecipasse<br />
para o leitor de folhetins o teor <strong>da</strong>quilo que iria ler como<br />
algo já conhecido. Assim foram Anjos e demônios, de Aléxis<br />
Bouvier, Os companheiros do crime, E. Chavett, A carne de Oscar<br />
Metinier, Caixão Negro de George Pradel, entre tantos. Coelho<br />
Neto trata desse aspecto quando conta a João do Rio a história<br />
do seu livro Rajah de Pendjab. Como estava precisando de<br />
dinheiro propôs escrever um folhetim para substituir aquele que<br />
fora perdido pela Gazeta. Sugeriu como título O príncipe encantado,<br />
o que não foi aceito por se tratar de um "'título velho".<br />
Sugeriu Rajah de Pendjab, que foi aceito e proposto para <strong>da</strong>r<br />
início em dois dias: "E a reclame foi feita para um romancista<br />
francês, de que a Gazeta deu o retrato reproduzindo a cara do<br />
Humphreys" ... (RIO, 1907, p. 57).<br />
Em seu ensaio, "O romance epistolar e a vira<strong>da</strong> do século"<br />
Flora Sussekind (1993, p. 211) chama a atenção para o fato de<br />
que "o romance brasileiro também passou ao largo <strong>da</strong> trilha<br />
epistolar", razão pela qual ela dedica seu estudo a dois exemplares<br />
desse gênero: O marido <strong>da</strong> adúltera e A correspondência de<br />
uma estação de cura de João do Rio, de 1918. Embora escassa no<br />
romance, a carta freqüentou com muita assidui<strong>da</strong>de o jornal, principalmente<br />
nas polêmicas e debates, como aquela que travam Laura<br />
e Luís pela versão ver<strong>da</strong>deira <strong>da</strong> história. Na carta cabiam os vários<br />
tipos de texto literário: poesia, narrativa,"ensaio". Pelo menos<br />
nos jornais paraibanos, desde 1854, encontramos cartas polêmi-<br />
4 Quando faço referência à<br />
circulação do texto literário em<br />
jornais, ela diz respeito aos<br />
jornais paraibanos nos quais<br />
desenvolvo pesquisa. Faltamme<br />
<strong>da</strong>dos sobre os jornais que<br />
circularam no Rio de Janeiro,<br />
mas creio que o processo<br />
verificado nas Províncias<br />
repetia aqueles <strong>da</strong> Corte.
o marido <strong>da</strong> adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim<br />
95<br />
cas, de caráter político e cartas mais pessoais, como aquelas que<br />
Laura, Luís e seu amigo escrevem. Ain<strong>da</strong> está por se fazer uma<br />
pesquisa sobre os gêneros utilizados pelos jornais, que foram apagados<br />
depois de sua publicação em livro.<br />
Ein uma nota de Vi<strong>da</strong> literária no Brasil- 1900, Brito Broca<br />
informa que o gênero epistolar tomava-se comum em algumas<br />
<strong>revista</strong>s, entre elas O Pirralho (1911 - 17) e que aquela era uma<br />
voga francesa(BROCA, 1958, p. 229). Exemplo dessa utilização<br />
<strong>da</strong> carta pelo cânone <strong>da</strong> literatura brasileira, é o <strong>da</strong>s cartas escritas<br />
por Machado de Assis que, não se adequando aos propósitos dos<br />
priorizados por Afrânio Coutinho, organizador de suas obras<br />
<strong>completa</strong>s, prefere juntar to<strong>da</strong>s sob o epíteto de Miscelânea, nome<br />
bastante apropriado, pois que sob essa rubrica se enquadrava to<strong>da</strong><br />
a sorte de escritos. Mas o certo é que nessa Miscelânea se incluem<br />
várias cartas, entre as quais "Carta à re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> imprensa acadêmica",<br />
publica<strong>da</strong> no jornal de mesmo nome, de São Paulo, cujo<br />
teor visa responder a críticas que foram feitas a sua comédia Caminho<br />
<strong>da</strong> porta. Outra, dirigi<strong>da</strong> a Henrique Chaves e publica<strong>da</strong> na<br />
Gazeta de Notícias, faz o necrológio de José Telha Ferreira de<br />
Araújo. Há ain<strong>da</strong> outro exemplo clássico do uso de cartas no jornal,<br />
que são aquelas que deram a José de Alencar notorie<strong>da</strong>de,<br />
quando começou a escrevê-las sobre a Confederação dos Tamoios,<br />
publica<strong>da</strong>s em 1856, com o pseudônimo de Ig, no Diário do Rio<br />
de Janeiro, nas quais critica o poema épico de Domingos Gonçalves<br />
de Magalhães, dileto do Imperador e considerado então o maior<br />
poeta <strong>da</strong> literatura brasileira (LIRA NETO, 2006).<br />
Na ver<strong>da</strong>de, a carta é um dos elementos fun<strong>da</strong>mentais para<br />
uma <strong>da</strong>s "marcas sui generis"do folhetim que é o exagero amplificador.<br />
A perspectiva levanta<strong>da</strong> por Marlyse Meyer (Idem, 160),<br />
na análise <strong>da</strong> obra de Ponson du Terrail, e bastante apropria<strong>da</strong> ao<br />
romance de Lúcio de Mendonça, demonstra que "um bom exemplo<br />
desse excesso são as cartas, as narrativas intercala<strong>da</strong>s, as leituras<br />
de depoimentos, testamentos, etc ... ". Como já comentamos,<br />
O marido <strong>da</strong> adúltera lança mão dessa estratégia para cativar o<br />
leitor e prolongar o enredo folhetinesco, além de permitir as tais<br />
gavetas literárias a que se refere Marlyse Meyer. Do ponto de<br />
vista de Laura, há a carta intencionalmente elabora<strong>da</strong> para a leitora<br />
do jornal Colombo, com vistas ao propósito nobre de tirarem<br />
delas "lição proveitosa". Do ponto de vista <strong>da</strong> construção do
96 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
folhetim e dos leitores que o lêem, uma adúltera arrependi<strong>da</strong>, tentando<br />
provar as conseqüências de uma "educação corruptora e<br />
falsa" não é matéria de interesse. Tanto que sua primeira traição -<br />
do ponto de vista <strong>da</strong> moral oitocentista - ao manter relações com<br />
o jovem estu<strong>da</strong>nte, é perdoa<strong>da</strong> por um padre. É preciso, portanto,<br />
provar o seu engodo e para isso, surgem as cartas que escreve<br />
para Mal vininha - "acabado produto <strong>da</strong> educação com que se criara,<br />
entre mimos babões e brutali<strong>da</strong>des viloas, na ociosi<strong>da</strong>de, na<br />
ignorância e no namoro" - cujo caráter assim descrito pelo narrador<br />
aproxima-a mais do perfil de Laura e justifica por que a escolheu<br />
para fazer suas confidências. Nelas não é a adúltera arrependi<strong>da</strong><br />
quem narra, mas a mulher entedia<strong>da</strong>, insatisfeita com o marido e o<br />
casamento. Seu livro de lembranças, por sua vez, vai revelar a<br />
"ver<strong>da</strong>deira" Laura, que se deixa seduzir por uma única frase do<br />
estu<strong>da</strong>nte, com quem terá um caso. Do lado do narrador, as cartas<br />
que publica como "As confidências do morto" são compostas <strong>da</strong><br />
memória desse narrador e de cartas escritas por Luís a ele que,<br />
cúmplice involuntário <strong>da</strong> mulher, se sentirá na obrigação de restaurar<br />
a ver<strong>da</strong>de e eximir-se <strong>da</strong> culpa.<br />
Enfim, pode-se concluir, que o estranhamento causado as<br />
soluções estéticas de O marido <strong>da</strong> adúltera causam certa estranheza<br />
ao leitor contemporâneo, porque desnu<strong>da</strong> em sua estrutura<br />
as estratégias e o modelo de narrar próprios ao folhetim. Estes,<br />
por sua vez, fazia-se a partir de um leitor real, o leitor de jornal.<br />
"Leitor intencionado, ficção do leitor no texto" (lSER, 1996, p. 79),<br />
a quem autor e narrador originalmente se dirigiram, cujas injunções<br />
foram determinantes na elaboração do romance-folhetim.
=" marido <strong>da</strong> adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim<br />
97<br />
Referências<br />
BROCA, Brito. A vi<strong>da</strong> literária no Brasil-1900. Rio de Janeiro: MEC, 1958<br />
COELHO NETO. A conquista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985<br />
COSTA, Cristiane. Pena de aluguel. Escritores jornalistas no Brasil 1904-<br />
2004. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2005<br />
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourrette. Mídia, Cultura e Revolução.<br />
São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1990.<br />
HOHLFELDT, Antonio. Deus escreve direito por linhas tortas.O romancefolhetim<br />
dos jornais de Porto Alegre entre 1850 e 1900. Porto Alegre:<br />
EDPUCRS, 2003. (Coleção Memória <strong>da</strong>s Letra, 12)<br />
ISER, Wo1fgang. "Teoria <strong>da</strong> Recepção". In ROCHA, João Cezar de. Teoria<br />
<strong>da</strong> ficção. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999<br />
___ o O ato <strong>da</strong> leitura. São Paulo: Ed 34,1996. V. 1<br />
LIRA NETO. O inimigo do Rei. Uma biografia de José de Alencar. São Paulo:<br />
Globo, 2006<br />
MENDONÇA, Edgar e Carlos Sussekind de. Rio de Janeiro: Civilização<br />
Brasileira, 1934 (Publicação <strong>da</strong> Academia Brasileira)<br />
MENDONÇA, Lúcio de. O marido <strong>da</strong> adúltera. Rio de Janeiro: Três, 1974<br />
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />
1996<br />
OLIVEIRA, Franklin. "Ler Coelho Neto" In COELHO NETO. A conquista.<br />
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985<br />
RODRIGUES, João Paulo Coelho de. A <strong>da</strong>nça <strong>da</strong>s cadeiras. Literatura e<br />
política na Academia Brasileira de Letras (1896 - 1913). Campinas: Editora<br />
<strong>da</strong> Unicamp, Cecult, 2001<br />
SUSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993
99<br />
1 Texto presentado en la 8'<br />
Jomadns Andinns de Literatura<br />
wtitw Americana (Lima, 9 a 13<br />
de agosto de 2004).<br />
De São Paulo 01 Aconcagua: una<br />
trayectoria latinoamericana para<br />
Monteiro Lobato 1<br />
Marisa Lajolo<br />
(Unicamp)<br />
Para Octavio Ianni, in memoriam<br />
, "São muitos os estudos sobre<br />
o romance, a poesia, o teatro, o<br />
cinema, a pintura e a música,<br />
entre outras linguagens, nos<br />
quais está presente, explícita ou<br />
subjacente, a idéia de"<br />
nacional". ( ... ) Sem prejuízo<br />
<strong>da</strong>s contribuições realiza<strong>da</strong>s e<br />
possíveis a partir do emblema<br />
nacional, cabe experimentar a<br />
perspectiva aberta pela idéia de<br />
contato, intercâmbio, permuta,<br />
aculturação, assimilação,<br />
hibridismo, mestiçagem ou,<br />
mais propriamente, transculturação."<br />
(p.94-95) In: Ianni,<br />
Octavio. "Transculturação".<br />
In: -. Enigmas <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de<br />
mundo. Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira. 2000<br />
J Sus cuentos fueron publicados<br />
bajo los siguientes títulos:<br />
Urupês. São Paulo: Ed. Revista<br />
do Brasil, 1918; Ci<strong>da</strong>des<br />
.\fortas. São Paulo: Ed. Revista<br />
do Brasil, 1919; Negrinha. São<br />
Paulo: Revista do Brasil e<br />
Monteiro Lobato & Cia. 1920<br />
Muchos son los estudios sobre la novela, la poesía, el teatro,<br />
el cine, la pintura y la música - entre otros tantos lenguajesen<br />
los cuales se encuentra presente - de forma explicita o<br />
subyacente la idea de " nacional" ( ... ) Sin prejuicio de las<br />
contribuciones realiza<strong>da</strong>s y posibles a partir deI emblema nacional<br />
cabe experimentar la perspectiva abierta por la idea de<br />
contacto, intercambio, permuta, aculturación, asimilación,<br />
hibridismo, mestizaje o - mas propiamente dicho -<br />
transcul turación 2<br />
EI escritor brasileno José Bento Monteiro Lobato nació en<br />
Taubaté -ciu<strong>da</strong>d deI interior paulista- en 1882. Su abuelo -el<br />
Vizconde de Tremembé-, era propietario de ti erra en una región<br />
de agricultura y economía decadentes a partir de fines deI siglo<br />
XIX. La madre de Monteiro Lobato era hija ilegítima deI Vizconde,<br />
pero ese origen -en aquella época estigmatizado- no impidió que<br />
su hijo se tomase heredero deI abuelo.<br />
De su origen rural, Monteiro Lobato parece haber mantenido<br />
una sensibili<strong>da</strong>d bien sintoniza<strong>da</strong> con personajes, situaciones y<br />
paisajes interioranos. Sus cuentos magistrales 3 giran en tomo a la<br />
identi<strong>da</strong>d de este campesino -el polémico jeca tatu-,<br />
inevitablemente atropellado por el progreso, que en las primeras<br />
déca<strong>da</strong>s deI siglo XX arruinó pequenas ciu<strong>da</strong>des deI interior<br />
paulista. De ahí surge la metáfora ciu<strong>da</strong>des muertas , la cual <strong>da</strong>
100 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
título aI libro en cuyo afí.o de lanzamiento (1919) vendió más<br />
de cuatro mil ejemplares. pn 1918 Urupês tuvo tres ediciones,<br />
alcanzando la estupen<strong>da</strong> cifra de cinco mil ejemplares. Reedita<strong>da</strong><br />
aI afí.o siguiente, en 1919 la obra parece haber llegado a doce<br />
mil ejemplares. Ci<strong>da</strong>des Mortas vendió 4 millares durante el<br />
afí.o de su lanzamiento, y ambos libros (Urupês y Ci<strong>da</strong>des Mortas)<br />
fueron reeditados en 1920, cuando junto con el nuevo título<br />
-Negrinha-, prosiguieron su carrera de éxito, totalizando<br />
20 mil ejemplares en 1920.<br />
Como todos los jóvenes de su c1ase social, Monteiro Lobato<br />
estudió Derecho y se graduó en 1904. En 1907 fue nombrado<br />
promotor público en otra pequefí.a ciu<strong>da</strong>d deI interior paulista -<br />
Areias-, y allí vivió durante algunos afí.os. Con la muerte deI abuelo<br />
en 1911, Monteiro Lobato here<strong>da</strong> la hacien<strong>da</strong> a la cual se mu<strong>da</strong><br />
con su familia (se había casado en 1908). Desde allí envía artículos<br />
para la prensa, colaborando con el periódico O Estado de São<br />
Paulo y con la Revista do Brasil. Ambos eran vehículos de gran<br />
circulación y de sóli<strong>da</strong> respetabili<strong>da</strong>d.<br />
Fue en un gran periódico paulista que en 1914 Monteiro<br />
Lobato publicó los dos artículos que tornaron famoso su nombre<br />
en todo el país: "Velha praga" (12 de noviembre de 1914) y<br />
"Urupês" (23 de diciembre deI mismo afí.o). En ambos, Lobato<br />
hacía una crítica áci<strong>da</strong> e implacable a las costumbres interioranas.<br />
Es en la Revista do Brasil que, poco tiempo después, inicia su<br />
trayecto de éxitos como editor y empresario de cultura.<br />
De colaborador, Monteiro Lobato se convierte en propietario<br />
de la Revista do Brasil. En efecto, en 1917 vende la hacien<strong>da</strong>, se<br />
mu<strong>da</strong> a São Paulo y aI afí.o siguiente compra la Revista do Brasil.<br />
Y es desde la mesa de re<strong>da</strong>cción de tal <strong>revista</strong>, que comienza a<br />
planear y construir una dimensión latinoamericana para la literatura.<br />
Para su literatura, para la literatura brasilefí.a, para la literatura<br />
latinoamericana.<br />
Son tradicionales, ai menos en la tradición de los estudios<br />
literarios brasilefí.os que conozco, las investigaciones que tratan<br />
de "encontrar" o "construir" convergencias temáticas y estéticas<br />
entre intelectuales latinoamericanos brasilefí.os y no brasilefí.os.<br />
Investigaciones de este tipo son instigantes, sin embargo pueden<br />
enriquecerse aún más con estudios que le confieran materiali<strong>da</strong>d a<br />
las convergencias estéticas y críticas que ellas rastrean. Esta
Je São Paulo ai Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato<br />
101<br />
verti ente de recorte materialista, histórico y recepcional resulta<br />
esencial para desarrollar un discurso crítico comprometido con<br />
una teoría literaria de América Latina, en oposición a una teoría<br />
literaria en América Latina.<br />
Siguiendo la estela de Ángel Rama, Cornejo Polar, y Antonio<br />
Cândido, este trabajo parte de la hipótesis de que no siempre<br />
las categorías críticas forja<strong>da</strong>s en los centros hegemónicos<br />
responden de manera satisfactoria a las prácticas literarias vigentes<br />
en la periferia. Del centro a la periferia es el rayo que cubre la<br />
distancia entre las expresiones teoría literaria en América Latina<br />
y Teoría Literaria de América Latina.<br />
Monteiro Lobato puede ser una clave para el estudio de<br />
estas relaciones literarias latinoamericanas. Por lo tanto es hacia<br />
él que llamo la atención de los colegas, invitándolos a revisitar la<br />
obra deI escritor que habitó en los estantes de lectura y en los<br />
corazones infantiles de América Latina, de México a la Patagonia,<br />
de los Andes aI Pão de Açúcar.<br />
Monteiro Lobato fue uno de los primeros arquitectos de la<br />
utopía de una América uni<strong>da</strong> por libros y lectores ... Asi que en su<br />
vasta obra podemos rastrear manifestaciones reincidentes -aunque<br />
tenues y efímeras- de un proyecto para la formación de un sistema<br />
literario latinoamericano.<br />
Desde la perspectiva de Antonio Candido, la existencia de<br />
un sistema literario resulta fun<strong>da</strong>mental para que se pue<strong>da</strong>n discutir<br />
las diferentes articulaciones de la literatura con la socie<strong>da</strong>d. En<br />
el caso de nuestra América, tal sistema necesita responder a las<br />
diferentes e inestablés articulaciones entre las diversas literaturas<br />
latinoamericanas, y de to<strong>da</strong>s y de ca<strong>da</strong> una de ellas con la socie<strong>da</strong>d<br />
pluriétnica, polilingüística y no homogéneamente letra<strong>da</strong> de<br />
nuestros países.<br />
Las relaciones entre autores, obras y públicos, la mediación<br />
de intermediarios entre estos tres polos de la lectura literaria, las<br />
formas históricas asumi<strong>da</strong>s por tales relaciones y mediaciones, la<br />
base técnica disponible y la legislación que reglamenta el comercio<br />
nacional e internacional de libros, junto a los <strong>da</strong>tos cuantitativos<br />
y cualitativos de públicos disponibles, son elementos que le<br />
confieren materiali<strong>da</strong>d a (concretizan) lo que se estudia cu ando<br />
se estudia literatura, sobretodo desde una perspectiva historicocomparativa<br />
.
102 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
En el material sobre el cual me apoyo para la construcción<br />
de este sistema comienza a revelarse de forma modesta y doméstica,<br />
a través de una carta de 1920. En ella Monteiro Lobato, ya<br />
de gran renombre y propi~tario de la Revista do Brasil, le escribe<br />
a Luís <strong>da</strong> Câmara Cascudo (1898-1986), entonces un intelectual<br />
to<strong>da</strong>vía inédito de una lejana provincia deI nordeste brasileno (Rio<br />
Grande do Norte). La carta es pequena, sin embargo, ya documenta<br />
el empeno de Lobato en la construcción de una red entre<br />
intelectuales de diferentes puntos de América: en la misma le anuncia<br />
a Câmara Cascudo el envío de una obra argentina, de la cual<br />
había recibido algunos ejemplares para distribuirIos en Brasil:<br />
Y espero man<strong>da</strong>rle un libro interesante que la "Nosotros", <strong>revista</strong><br />
argentina, me encomendó que distribuya entre nuestros<br />
hombres de letras.<br />
Esta promesa fija la figura de Monteiro Lobato como<br />
intermediario y difusor de la literatura argentina en territorio<br />
brasileno, aI colocar en circulación a escritores deI país vecino, no<br />
sólo más allá de las fronteras argentinas, sino también más allá deI<br />
eje Rio de Janeiro -São Paulo.<br />
Muchas y muchas cartas deI acervo de Monteiro Lobato<br />
deposita<strong>da</strong>s en la UNICAMP por sus herederos refuerzan y<br />
detallan este su papel de divulgadorA. EI autor integra una red de<br />
intelectuales -en especial brasilenos y argentinos- que no sólo<br />
intercambiaban libros y divulgaban sus respectivas producciones,<br />
sino que también debatieron y desarrollaron proyectos para<br />
viabilizar el intercambio literario entre sus países. En la Revista do<br />
Brasil, Monteiro Lobato publica a escritores argentinos, aI tiempo<br />
que varios de sus textos circulan por Argentina durante los anos<br />
veinte deI siglo pasado. 5<br />
Estas traducciones muestran que no fue apenas desde la<br />
posición de distribuidor que Monteiro Lobato dia curso aI (hasta<br />
hoy) ambicioso proyecto de <strong>da</strong>r amplitud latinoamericana a un<br />
proyecto cultural y literario. Algunos anos más tarde, también<br />
consiguió una abun<strong>da</strong>nte (y hasta hoy probablemente iniguala<strong>da</strong>)<br />
circulación de sus obras en la América hispánica.<br />
En carta de 1943 ,el comenta con su esposa las grandes<br />
expectativas que depositaba en el mercado argentino:<br />
4 Los herederos de Monteiro<br />
Lobato depositaron un valioso<br />
acervo dei escritor en el Centro<br />
de Documentação Alexandre<br />
Eulálio, en el Instituto de<br />
Estudos <strong>da</strong> Linguagem, de<br />
Unicamp. La investigación de<br />
dicho acervo - de la cual este<br />
trabajo es un resultado parcial<br />
- cuenta con financiamiento de<br />
la Fapesp y dei CNPq.<br />
5 Urupês es publicado en<br />
Argentina en J 921, en la<br />
Biblioteca de Novelistas<br />
Latinoamericanos (trad. de<br />
Benjamin Garay), y en ese<br />
mismo ano la <strong>revista</strong> Nosotros<br />
(a. 15, v. 38, n. 145, mayo de<br />
1921, pp. 96-100) publica el<br />
ensayo "Letras brasilenas:<br />
visión general de la literatura<br />
brasilefia". También en ese afio<br />
La Novela semanal (a. 5, n.<br />
183, 16 de mayo) publica el<br />
cuento "Negrinha" con el título<br />
de "Alma negra" (Cf Artundo,<br />
Patrícia. Tesis de Doctorado.<br />
USP,2OO2).
De São Paulo ai Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato<br />
103<br />
6 Maria Pureza <strong>da</strong> Nativi<strong>da</strong>de<br />
Lobato era la esposa de<br />
"'Ionteiro Lobato .<br />
7 Ruth Monteiro Lobato<br />
(t 916- XXXX) fué la ultima<br />
ruja de Monteiro Lobato y D.<br />
Purezinha.<br />
Purezinha 6 :<br />
( ... )<br />
Recibí el contrato de la edición de todos mis libras infantiles en<br />
espanol en la Argentina. Todos. Y para comenzar saldrá un<br />
bloque de cinco. El negocio me parece excelente, pues alIá podré<br />
tener una renta tal vez mayor que la de aquí, y de ese modo<br />
podré reservar una de esas rentas para ir acumulando una<br />
fortunita para ti y para Ruth 7. Mi preocupación ahora son<br />
sólo tú y Ruth. He de dejarlas bien. Tranquilicénse. Ahorrando<br />
unos 5 contos por ano, en pocos anos estarán seguras -y habrá<br />
la renta de mis libras aquí y alIá. Hasta 60 anos después de mi<br />
muerte. No le temas aI futuro ( ... )<br />
Efectivamente la promesa se cumple, aunque sólo en parte.<br />
ÉI no se hace rico, pero su obra circula por to<strong>da</strong> América Latina.<br />
Y algunos anos después de esta carta, Lobato sigue el camino de<br />
sus libros: entre junio de 1946 y junio de 1947 se mu<strong>da</strong> a la Argentina,<br />
donde junto a algunos amigos fun<strong>da</strong> la editora Acteon.<br />
La persistencia con que Monteiro Lobato invierte en Argentina<br />
es reforza<strong>da</strong> por una carta de ( 13 de) agosto de 1946 envia<strong>da</strong><br />
desde Buenos Aires aI amigo brasileno Otaviano (Alves de Lima).<br />
En ella , Monteiro Lobato muestra una agu<strong>da</strong> percepción de las<br />
especifici<strong>da</strong>des y potenciali<strong>da</strong>des dei mercado argentino (en<br />
oposición ai brasileno). En ese sentido demuestra un tino comerciai<br />
poco común entre los hombres de letras, si bien ésto ya lo<br />
había probado con anteriori<strong>da</strong>d en los anos 20, cu ando transformó<br />
una pequena casa editorial en la mayor editorial brasilena.<br />
EI escritor atribuye la pujanza dei mercado editorial argentino<br />
a la gran difusión del idioma espanol, así como a una legislación<br />
que prácticamente subsidia la producción dellibro, aI no tas ar su<br />
materia prima:<br />
En el campo editorial, Argentina goza de dos grandes ventajas<br />
sobre Brasil: 1) el papel para libras entra libre de derechos de<br />
aduana; 2) existe un mercado exterior para la producción. EI<br />
ano pasado la praducción de libras fue de diez mil tonela<strong>da</strong>s,<br />
de las cuales cinco mil fueran exporta<strong>da</strong>s. Fíjate que maravilla.<br />
Ahí no exportamos libra alguno y sobre el papel importado<br />
tenemos una tasa equivalente aI 100% deI precio de costa.<br />
Solamente existe exencÍón para el papel de periódicos y revis-
104 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
tas. Esto explica el tremendo desarrollo de la industria editorial<br />
argentinas.<br />
Es así que a lo largo de to<strong>da</strong> su vi<strong>da</strong>, Monteiro Lobato fue<br />
multiplicando sus lazos con el mundo editorial/literario<br />
latinoamericano. De regreso a Brasil, en carta a otro amigo -<br />
Godofredo Rangel - relata que<br />
8 Nunes, Cassiano (org),<br />
Monteiro Lobato vivo. RJ.<br />
MPM Propagan<strong>da</strong> / Record<br />
1986, p. 122<br />
( ... ) este mes escribí 20 libritos nuevos para la Editorial Codex<br />
de Buenos Aires, libritos juguetes, de poco texto y muchas<br />
ilustraciones colori<strong>da</strong>s. Saldrán en dos lenguas. Y abora voy a<br />
escribir unos seis para un editor de México -que más tarde<br />
también podrán salir aquí. -( ... ) (30.07.1947)<br />
Ya en su Historia dei mundo para los ninas 9 - la versión<br />
que Lobato <strong>da</strong> de la conquista de América por los espanoles tiene<br />
un acento critico poco comun en livros infantiles anteriores a lo<br />
politicamente cierto de nuestros días. Ya en aquel entonces<br />
ensefiaba Lobato que<br />
La conquista de América por los europeos fue una tragedia<br />
sangrienta . i A hierro y fuego i era la divisa de los predicadores<br />
dei cristianismo . Mataran a diestra y siniestra , destruyeron<br />
todo 10 que encontraron y llevaron todo el oro que había. Otro<br />
espanol , llamado Pizarro, hizo en el Perú lo misino con los<br />
incas, otro pueblo civilizado, muy adelantado que existía allí<br />
(108)<br />
9 Se trata de una a<strong>da</strong>ptación dei<br />
libro Child's history of the<br />
world de Y.M.Hiller , publica<strong>da</strong><br />
en 1933 en Brasil, y que<br />
alcanzara 9 ediciones hasta<br />
1943. En 1947 la versión<br />
espaiiola de este Iibro se publica<br />
en dos volúmenes por el<br />
editorial argentino Arnericalee.<br />
Unacuartaedición (traducción<br />
deM.J. de Soza) sale alaluzen<br />
1956 por el editorial Losa<strong>da</strong> (<br />
copyright by Editorial<br />
Americalee) . Ias citas vienen<br />
de esta edición .<br />
Las lecciones de este narrador las aprendían bien los<br />
personajes que, a semejanza de lo que se quería que se pasase<br />
con los lectores, preguntan a quien les contaba la historia:<br />
- Pero, l, qué diferencia hay, abuelita, entre estos hombres y<br />
aquel Átila, o aquel Gengis Khan, que marchá hacia Occidente<br />
con los terribles tártaros, matando, arrasando y saqueándolo<br />
todo l,(1l0)<br />
A esta tan sencilla cuanto actual pregunta, le contesta<br />
Dona Benita ,la abuela tantas veces en la obra de Lobato alter<br />
ego deI escritor :
De São Paulo al Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato<br />
105<br />
- La unica diferencia es que la historia ha sido escrita por los<br />
occidentales, y na<strong>da</strong> más natural que lleven el agua a su molino.<br />
De ahí que nuestros historiadores consideren como fieras a<br />
los tártaros de Gengis Khan y como heroes a los conquistadores<br />
europeos. ( 110)<br />
Se ve asi muy temprano en su obra, la comprensión critica<br />
de Monteiro Lobato respecto la historia de Latinoamérica. Pero<br />
es cu ando to<strong>da</strong>vía vivía en la Argentina, que el <strong>da</strong> retoques finales,<br />
y casi inesperados, aI antiguo proyecto de una literatura de identi<strong>da</strong>d<br />
latinoamericana. En esta nueva versión de la antigua utopía, la<br />
latinoamericani<strong>da</strong>d lobatiana va más allá deI intercambio deI mercado<br />
editorial latinoamericano. Lobato , desde Buenos Aires,<br />
propone la latinoamericanización de su discurso literario y se<br />
prepara para ello.<br />
( ... ) me voy aI Peru. Esto aquí, de la misma forma que ahí, no<br />
tiene profundi<strong>da</strong>d. Son dos países que comenzaron con la llega<strong>da</strong><br />
dei europeo. Pero el Peru ya tenía mil metros de profundi<strong>da</strong>d<br />
cuando el europeo llegó. De modo que allá existe una<br />
superposición de civilizaciones y razas - cosa mucho más<br />
interesante que este inrnigracionismo de aquí y de ahí.<br />
10 La carta es cita<strong>da</strong> por Edgar<br />
Cavalheiro que, infelizmente,<br />
no indica la fecha ni la<br />
localizaci6n de las cartas; pero<br />
la veraci<strong>da</strong>d de la fuente es<br />
confinna<strong>da</strong> por otras cartas<br />
deposita<strong>da</strong>s en la Unicamp, que<br />
también se refieren al abortado<br />
proyecto peruano de Monteiro<br />
Lobato.Ell4deenerode 1947,<br />
porejempl0, e1 escritor informa<br />
a su amigo Rangel que "(. .. )<br />
Habiendo ya visto y hecho<br />
amistad con los árboles de<br />
Buenos Aires, puedo mu<strong>da</strong>rme<br />
de país y ando pensando en eso.<br />
Escogiendo uno. Por el<br />
momento Perú está en primer<br />
lugar ( ... )"<br />
Como se ve la inspiración para este salto cualitativo<br />
latinoamericano de su proyecto literario viene deI Peru 10 :<br />
( ... ) En estos tres meses me voy ai Peru, a vivir por allá algún<br />
tiempo, a incarme, llamarme, guanacarme, chinchilarme, etc.,<br />
y escribir rni mayor libro: mi pandilla de allá deI Sitio, hundi<strong>da</strong><br />
en el Peru de Atahualpa, presencia el drama de la conquista por<br />
los fascinerosos Pizarro y Almagro, los nazistas de la época.<br />
( ... )<br />
Incarse, llamarse, guanacarse, chinchilarse es una lin<strong>da</strong><br />
metáfora deI ritual de iniciación latinoamericana para un escritor<br />
brasilefío: pues solo después de incarse, guanacarse, llamarse<br />
y chinchilarse, Monteiro Lobato se cree listo para escribir un<br />
libro sobre<br />
( ... ) to<strong>da</strong> la tragedia de la destrucción de los incas, aztecas y<br />
mayas por los espaõoles invasores.l,La historia de América se
106 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
sabe por boca de quién iDel Aconcagua! Sólo un Aconcagua<br />
puede tener la necesaria ausencia de ánimo para contar la cosa<br />
como realmente fue, sin false<strong>da</strong>des patrióticas, nacionalistas,<br />
raciales o humanas ... Cp. 233)11 .<br />
II Cavalheiro, Edgar, Monteiro<br />
Lobato: vi<strong>da</strong> e obra. Tomo 2.<br />
São Paulo: Editora Brasiliense.<br />
3'. Ed., 1962, p. 233.<br />
Infelizmente, el plan no se realiza. Lobato no viaja aI Peru,<br />
ni escribe ellibro anunciado. Deja la tarea inconclusa para que<br />
otros la realicen, tal vez hoy, quizás nosotros . Dicho sea de paso,<br />
aI recontar desde otra perspectiva la tragedia brasilefí.a de Canudos,<br />
tal vez Vargas Llosa haya <strong>da</strong>do un gran paso en ese sentido<br />
de nosotros contarmos la historia los unos de los otros. EI caso es<br />
que Monteiro Lobato regresó a São Paulo y murió un afí.o después,<br />
el 04 de julio de 1948.<br />
No obstante no haber escrito la historia de América por boca<br />
deI Aconcagua, esto no impide que Lobato ocupe un lugar importante<br />
en la historia de la literatura de esta América. En la historia<br />
de la literatura de la<br />
América deI Sur<br />
América deI Sol<br />
América de Sal,<br />
para hablar como un contemporáneo de Monteiro Lobato, Oswald<br />
de Andrade. Así, bien antes de la formalización de las teorías de la<br />
globalización, Monteiro Lobato parece haber sido un escritor<br />
latinoamericano que percibió la fecundi<strong>da</strong>d de la mira<strong>da</strong> oblicua<br />
con que, observándonos los unos a los otros, vamos construyendo<br />
una identi<strong>da</strong>d que , sin embargo sus múltiplas fauces, tiene en<br />
ca<strong>da</strong> una y en to<strong>da</strong>s sus verti entes la solidez fuerte deI Aconcagua<br />
o deI Pão de Açúcar. Identi<strong>da</strong>d de la cual los estudios literarios<br />
tienen que <strong>da</strong>r cuenta lo que puede empiezar por construirse una<br />
base de <strong>da</strong>tos de las relaciones letra<strong>da</strong>s y literarias latinoamericanas<br />
y por inventar la epistemología de la oblicui<strong>da</strong>d.
107<br />
Euclides <strong>da</strong> Cunha e Vargas Llosa:<br />
dois olhares sobre Canudos<br />
Délio Combeiro<br />
(UERJ)<br />
U ma sintética introdução<br />
Nunca será demasiado avivar-se a memória para o<br />
terrível massacre de Canudos, que em 5 outubro de 2007 <strong>completa</strong>rá<br />
110 anos, para a figura de seu idealizador e a de seus seguidores.<br />
Muitos títulos encontrará o pesquisador, ou um simples leitor,<br />
cuja curiosi<strong>da</strong>de intelectual o leve à in<strong>da</strong>gação. Desde o aparecimento<br />
de Os sertões, surgiram numerosos documentos - alguns<br />
ficcionais -, que, por vezes, fixaram alguns estereótipos a<br />
respeito <strong>da</strong> rica temática, mas, não se pode negar, acumulam importante<br />
material de estudo. São inúmeras críticas a uma possível<br />
influência - o comentado Facundo, de Domingo Sarmiento -; à<br />
dura dicção euclidiana em julgar o fenômeno - o Conselheiro e<br />
sua gente são casos patológicos -; além de tantos outros instigantes<br />
juízos. Além disso, ao mesclar segmentos interpretativos, outros<br />
de cunho criativo, com forte dose de imaginação sobre o fato,<br />
provoca classificações, que a situam como uma obra híbri<strong>da</strong>, circulando<br />
entre a História e a Literatura. Raros textos, entretanto,<br />
conseguiram subtrair-se à influência <strong>da</strong> análise de Euclides e, sem<br />
dúvi<strong>da</strong>, o autor denunciou o crime cometido contra uma coletivi<strong>da</strong>de,<br />
também provocou uma interpretação do Brasil.<br />
Para esse breve trabalho de marcas comparatistas,<br />
cotejam-se trechos de Os sertões com os d' A guerra do fim do<br />
mundo, de Vargas Llosa, obra também extensa e cerra<strong>da</strong>. Pela<br />
impossibili<strong>da</strong>de de nele comentarem-se as inúmeras articulações e<br />
cenas <strong>da</strong> trama complica<strong>da</strong> e bastante enovela<strong>da</strong>, privilegiar-seão<br />
algumas passagens onde se evidenciam mais vivamente a refle-
108 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, 0.9, 2006<br />
xão de Llosa sobre Canudos. Focaliza-se o diálogo respectivamente<br />
entre as personagens ficcional e histórica Galileu Gall e frei<br />
João Evangelista. Pretende-se refletir sobre a representação literária<br />
dos elementos evidenciados nas primeiras linhas desse ensaio.<br />
Uma tentativa de cotejo<br />
Quando esteve no Rio de Janeiro, ao ser ent<strong>revista</strong>do sobre<br />
por que escrevera uma obra sobre o sertão brasileiro, Vargas Llosa<br />
explicou que fizera um roteiro para a Paramount, em parceria<br />
com Rui Guerra. Não se realizou o filme - La guerra particular<br />
ou Los papeles deI infierno - mas, desejando escrever a "Guerra<br />
e Paz" latino-americana, ele transformou o roteiro em livro. Deslumbrado<br />
com Os sertões, assinala ter sido a obra fator importante<br />
para escrever A guerra do fim do mundo, confessando que,<br />
através dela, o trágico episódio não fora <strong>completa</strong>mente esquecido,<br />
como outros violentos choques havidos na América Latina.<br />
Sobre Canudos, lera imensa bibliografia, assinalando a falta<br />
de representativi<strong>da</strong>de dos vencidos nos textos pesquisados. Portanto,<br />
em seu reescrever palimpséstico, retocando, à sua maneira,<br />
o mosaico euclidiano, entrelaçou vozes representativas de níveis<br />
sociais, econômicos e culturais. A escrita de Vargas Llosa articula<br />
acontecimentos verídicos já longamente descritos por Euclides<br />
<strong>da</strong> Cunha, porém, mesmo tendo como fonte a famosa obra, questiona<br />
o texto núcleo e abre imaginativos vôos, não só na construção<br />
<strong>da</strong> narrativa, bem como nos meandros <strong>da</strong> fábula. Recriando,<br />
por outro viés, a epopéia <strong>da</strong>queles seres despossuídos do arraial<br />
baiano, Llosa pintou um monumental painel de imagens - misto<br />
de crônica e situações factuais - ao repensar, em perspectiva crítica/criadora,<br />
o que chamou de um "mal-entendido nacional".<br />
Munido do distanciamento crítico, ao inverso de Euclides, devido<br />
à separação temporal quanto às ocorrências de Canudos, vai mesclando<br />
reflexões dialéticas às novas faces e visões do que teria<br />
sucedido à época, por meio de um narrador onisciente e inúmeras<br />
personagens. Desse modo, no mundo contemporâneo, sua escrita<br />
ilumina, com agudeza, aquele sangrento episódio <strong>da</strong> História do<br />
Brasil.<br />
Prêmio Ernest Hemingway de 1985, essa representação <strong>da</strong>
Euclides <strong>da</strong> Cunha e Vargas LJosa: dois olhares sobre Canudos<br />
109<br />
epopéia brasileira - uma alegórica luta entre ordem e transgressão<br />
- entrelaça experiências pessoais de diversas personagens ver<strong>da</strong>-<br />
. deiras e fictícias, que emergem na trama, enre<strong>da</strong><strong>da</strong>s em montagem<br />
bem atual. Os episódios sempre fragmentados retar<strong>da</strong>m a<br />
trama, modificam os focos narrativos, em alternado jogo de ações,<br />
que, pouco a pouco, pelos vários pontos de vista introduzidos por<br />
um único narrador onisciente, vão-se fechando e concluindo, em<br />
micro estruturas aparentemente estanques. Embora independentes,<br />
elas se coligam por mestria técnica: na concepção de Baktin,<br />
trata-se de uma escrita polifônica, em que vozes em contraponto,<br />
tal qual na partitura musical, harmonizam-se, unem-se, em igual<strong>da</strong>de<br />
de importância, sem haver sobreposição hierárquica de discurso.<br />
Com essa técnica Llosa sugere ao leitor a impossibili<strong>da</strong>de<br />
de a ver<strong>da</strong>de sobre aqueles fatos ser totalmente conheci<strong>da</strong>.<br />
O tempo narrativo reflete a fragmentação <strong>da</strong>quele universo<br />
em múltiplas linhas cronológicas, estrutura<strong>da</strong>s em constante fluxo<br />
de i<strong>da</strong>s e vin<strong>da</strong>s, com imagens foca<strong>da</strong>s/desfoca<strong>da</strong>s, mas que se<br />
interligam num "plot", ou seja, em uma intriga subjacente, nervo<br />
<strong>da</strong> ação que tudo coman<strong>da</strong>: a história de Canudos e a energia<br />
magnetizadora do Conselheiro. Pode-se dizer que, na obra, a sinuosi<strong>da</strong>de<br />
temporal (re)trabalha os fatos, na tentativa de<br />
compreendê-los, sem estabelecer visões binárias redutoras, tentando<br />
criar um tertius inclusivo e auxiliar na leitura plural do homem<br />
em situação.<br />
A arquitetura textual sugere uma estrutura mutante - de<br />
certa forma caleidoscópica - pois os episódios amarram/desamarram,<br />
em sucessão cambiante de quadros, impressões e sensações,<br />
produzindo, em síntese, a ação global, deflagradora <strong>da</strong> questão<br />
política e religiosa nacionais. A narrativa, portanto, prima pela<br />
ausência de um ponto de vista único ou exclusivo, com seus artifícios<br />
desconstrutores, ramifica-se em histórias particulares coliga<strong>da</strong>s<br />
à grande História. Tudo emerge do ataque a Canudos que,<br />
no relato, está acontecendo, bem como <strong>da</strong> influência que a expedição<br />
ao arraial suscitou na vi<strong>da</strong> de ca<strong>da</strong> personagem.<br />
Apesar de desencadeador <strong>da</strong> "guerra do fim do mundo",<br />
Conselheiro não assume a força <strong>da</strong> enunciação. Tudo o que se<br />
sabe a seu respeito afIora indiretamente pela descrição, atos ou<br />
diálogos de certas personagens que gravitam pelas bor<strong>da</strong>s do relato.<br />
Ancora<strong>da</strong> na História e na ficção, A guerra do fim do mundo
110 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
conserva alguns nomes históricos <strong>da</strong> obra euclidiana, entre eles,<br />
Moreira César, que aparece em ação, como representante <strong>da</strong> ordem.<br />
Nela é qualificado de temperamento "fanático" e "obsessivo":<br />
acusações freqüentes, em Os sertões, mas em relação ao<br />
Conselheiro. Cria também outros, de conotações não raro irônicas<br />
ou de marcas universalmente expressivas, que, por analógicas<br />
ilações, suscitam reflexão pelo pensamento renovador que demonstram.<br />
Expressivo exemplo é Galileu Gall, cujo nome composto<br />
lembra dois cientistas: Galileu, físico, astrônomo e escritor italiano<br />
do século XVI-XVII (1564-1642), introdutor <strong>da</strong> luneta na astronomia,<br />
além de outras inovações científicas e seu<br />
posicionamento diante <strong>da</strong> Inquisição; Gall, o médico alemão Franz<br />
J osef Gall (1758-1828), criador <strong>da</strong> frenologia, teoria que estu<strong>da</strong> o<br />
caráter e as funções intelectuais e humanas, baseando-se na conformação<br />
do crânio.<br />
Aliás, na obra de Vargas Llosa, essa personagem - amálgama<br />
de dois cientistas - desempenha relevante papel crítico. Com a<br />
luneta de seu olhar inquiridor, tudo para ele é objeto de pesquisa,<br />
de questionamentos <strong>da</strong> ordem lógica e social. Na novela, ele é<br />
também frenólogo, além de um revolucionário politicamente<br />
engajado, com posições anarquistas, também é correspondente<br />
de um jornal francês, cujo nome Etincelle de la révolte já acena<br />
para a própria centelha <strong>da</strong> lucidez, o gérmen do fogo, o estopim<br />
clarificador <strong>da</strong> rebeldia, através de idéias desconstrutoras. O<br />
iconoclástico Galileu Gall parece ser um alter ego do narrador,<br />
que, por meio deste, exercita sua posição diante dos fatos, valorizando<br />
os atos libertários <strong>da</strong>quele herege nos confins de Belo Monte.<br />
Entre inúmeros <strong>da</strong> galeria imaginária de Llosa, há o Jornalista<br />
Míope, irônico epíteto, transformado em onomástico, pois<br />
no desenrolar <strong>da</strong> narrativa jamais é dito o seu ver<strong>da</strong>deiro nome.<br />
Sem dúvi<strong>da</strong>, o autor pontua também sua crítica em relação ao<br />
jornalista Euclides <strong>da</strong> Cunha, ao enxergar, com lentes deturpa<strong>da</strong>s/<br />
desfoca<strong>da</strong>s, a veraci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ocorrências, segundo a opinião<br />
subliminar que mina do texto. Gall enxerga melhor do que o Jornalista<br />
Míope, que forçado a fugir chega ao arraial <strong>completa</strong>mente<br />
desvinculado com o mundo de Canudos. Ele deseja escrever<br />
um livro para relatar a guerra, porém perdera os óculos - portanto,<br />
não via - e ficara sem pena e sem tinta durante a fuga - logo,<br />
não escrevia. Por isso, lembra Euclides, criticado por sua visão
Euclides <strong>da</strong> Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos<br />
111<br />
míope <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de de Canudos.<br />
Em diversifica<strong>da</strong>s elucubrações, Llosa transita por vários<br />
patamares em tomo <strong>da</strong> História aconteci<strong>da</strong>. Apreende o problema,<br />
contorna-o através de olhares diversificados, inverte-o em<br />
choques de abor<strong>da</strong>gens que se "dialetizam" na narrativa in fieri,<br />
ou seja, no próprio processo de escrita. Em meio às entrelinhas,<br />
nas dobras e subterrâneos do discurso, múltiplas são as peripécias<br />
<strong>da</strong>s personagens impregna<strong>da</strong>s de situações críticas.<br />
No ludismo verbal de tempos e de espaços acoplados, delineia-se<br />
na obra o comportamento e a psicologia do Conselheiro,<br />
caracterizando seu desempenho no grupo, como organizador político<br />
- o mito do herói civilizatório - como orientador espiritual<br />
- o mito do guardião do sagrado congregador.<br />
O narrador abre o texto com o retrato físico do Conselheiro,<br />
aludindo a seu aspecto alto e magro que parece "estar sempre<br />
de perfil". Os mesmos trajes usados aproximam-no do perfil<br />
eternizado por Euclides <strong>da</strong> Cunha: a mesma túnica de azulão e as<br />
sandálias de pastor. Os detalhes focalizam parte de seus hábitos<br />
simples, desprovidos de qualquer preocupação corporal, chegam<br />
ao famoso epíteto - Conselheiro - que lhe deu fama e, aos poucos,<br />
compõe-se a aura mítica do chefe político-religioso. Em segui<strong>da</strong><br />
ao primeiro retrato físico e psicológico, tem-se lírica descrição<br />
do ambiente natural dos vilarejos do sertão, à hora do<br />
crespúculo, do qual participavam os que se sentiam amparados<br />
por suas palavras. Nesse momento, todos o "escutavam em silêncio,<br />
( ... ) o interrompiam para tirar dúvi<strong>da</strong>s milenaristas,<br />
escatológicas. Terminaria o século Chegaria o mundo em 1900"<br />
(VARGAS LLOSA, 1987,p.17). Essas e outras alusões fornecem<br />
subsídios para uma interpretação de ele estar ligado à experiência<br />
do sagrado, não só pelas previsões e anúncios <strong>da</strong>s desgraças dos<br />
últimos dias, mas pela força de sua presença coroa<strong>da</strong> de intensa<br />
atmosfera mística. O epíteto de Conselheiro, que Antônio Vicente<br />
Mendes Maciel recebeu, também corresponde àjustiça divina e à<br />
humana, reunindo as funções essenciais de conselheiro do espírito<br />
e <strong>da</strong> carne. Além <strong>da</strong> força carismática que exercia sobre o outro,<br />
ele atraía seus ouvintes - já seguidores ou não - por meio <strong>da</strong> potência<br />
<strong>da</strong> linguagem que empregava em seus sermões.<br />
Euclides <strong>da</strong> Cunha afirmou que na apreciação dos fatos o<br />
tempo substitui o espaço para a focalização <strong>da</strong>s imagens e que o
112 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
historiador precisa de certo afastamento dos quadros que contempla,<br />
desta forma, nota-se a preocupação em compor um quadro<br />
mais fiel possível dos acontecimentos já ocorridos. Sem<br />
aprofun<strong>da</strong>rem-se opiniões de que sua obra suscita várias interpretações<br />
quanto à sua classificação, Euclides preocupou-se em transmitir<br />
um relato compromissado com a ver<strong>da</strong>de impessoal dos acontecimentos,<br />
com a história e não imaginá-los - oposto a Vargas<br />
Llosa, que, longe do espaço e do tempo de Canudos, acrescentou<br />
a ver<strong>da</strong>de ficcional <strong>da</strong> trama romanesca à reali<strong>da</strong>de história do<br />
administrador <strong>da</strong>quela ci<strong>da</strong>de santa. A vi<strong>da</strong> material em Canudos<br />
era dividi<strong>da</strong> por tarefas entre os adeptos, porém passava obrigatoriamente<br />
pelo crivo do líder, ratificando sua função de chefe<br />
religioso e de legislador político. No entanto, interferir no mundo<br />
imaterial, no sobrenatural, apenas o Conselheiro poderia fazer,<br />
sobretudo nos tempos de luta contra o Anticristo, pois eram dele<br />
as profecias do que haveria de acontecer. Ele já revelara em seus<br />
sermões que as forças do "cão" viriam prendê-lo e passar na faca<br />
to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de. Por isso, com as perseguições <strong>da</strong>s tropas, com o<br />
"começo do fim do mundo", to<strong>da</strong> Canudos se uniu em tomo do<br />
Conselheiro.<br />
Nos dois escritores, encontra-se referência à tolerância do<br />
Conselheiro quanto ao amor livre e à pregação contra a República,<br />
"porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre.<br />
Nos conselhos diários não cogitava <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> conjugal, traçando<br />
normas aos casais ingênuos" (VARGAS LLOSA, 1987, p.146).<br />
Também no texto de Llosa, acentua-se o fato de os seguidores<br />
negarem o casamento civil e praticarem, com base nas leis propostas<br />
pelo chefe, algo que a personagem Lélis Pie<strong>da</strong>de - reproduzindo<br />
a fala do consenso - comenta ser promíscuo e representar<br />
a instituição do amor livre. A personagem acrescenta que, com<br />
tal prova de corrupção e de heresia, as autori<strong>da</strong>des expulsarão os<br />
fanáticos. Tal é a visão preconceituosa <strong>da</strong> personagem, nas freqüentes<br />
discussões dialéticas que atravessam o livro, engrandecido<br />
pelas possibili<strong>da</strong>des de diferentes leituras dos fatos.<br />
A rebeldia quanto às normas do estado civil salienta-se nos<br />
dois autores, confirmando-se acentuado interesse por temas de<br />
insubordinação libertária de minorias. No caso dos iconoclastas,<br />
o repúdio às leis <strong>da</strong> República significava estarem apenas preocupados<br />
com as de Deus, confirma<strong>da</strong>s no casamento religioso. Para
Euclides <strong>da</strong> Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos<br />
113<br />
eles, era de vital importância a união frente a Deus e não diante<br />
dos homens.<br />
Quanto à rebeldia, Canudos é descrito como reduto de<br />
revoltosos durante o relato de Oall sobre encontro com Frei João<br />
Evangelista do Monte Marciano - participante do famoso Relatório<br />
sobre os acontecimentos. Nas considerações do revolucionário,<br />
Canudos sugere, dependendo do olhar que o aborde, um utópico<br />
falanstério, à maneira de Fourier, ou refúgio de insurretos<br />
desobedientes <strong>da</strong>s leis. Em comentário ao célebre Relatório, o<br />
jornalista e frenólogo coloca a visão do Frei, que, enviado pelo<br />
Arcebispo <strong>da</strong> Bahia ao povoado devido a denúncias de heresia,<br />
fica assustado e enojado com o que viu. Porém, refletindo sobre o<br />
relato do capuchinho, Oall conclui que, logicamente, por causa <strong>da</strong><br />
condição de religioso, sua experiência no arraial deveria ter sido<br />
difícil de compreender, até mesmo amarga. Para suas conclusões<br />
nortea<strong>da</strong>s por princípios libertadores, diz Oalileu Oall que:<br />
Para um ser livre o que o Relatório deixa entrever por entre<br />
suas remelas eclesiásticas é apaixonante. A pretexto de refrear<br />
o casamento civil, o povo de Canudos aprendeu a unir-se e a se<br />
desunir livremente sempre que homem e mulher estejam de acordo,<br />
pois, ( ... ) seu condutor e guia - a quem chamam de Conselheiro<br />
- ensinou-lhes que todos os seres são legítimos pelo simples<br />
fato de nascer (VARGAS LLOSA, 1973, p. 56).<br />
Sem dúvi<strong>da</strong>, ele é um advogado <strong>da</strong>s normas circulantes em<br />
Canudos, comunga com o ideário <strong>da</strong> harmonia entre os seres envoltos<br />
pelo mesmo desejo. A ent<strong>revista</strong> do frenólogo com o<br />
capuchinho é a oportuni<strong>da</strong>de de reforçar a geografia libertária de<br />
Canudos, opondo-se, então, à idéia de distopia eterniza<strong>da</strong> por<br />
Euclides, ao utilizar famosos sintagmas depreciativos como "urbs<br />
monstruosa", "refúgio de fanáticos", e "civitas sinistra do erro",<br />
Tal encontro fictício, entre Oall e o padre, realizado no refeitório<br />
do Mosteiro é comentado com entusiasmo pelo correspondente;<br />
confirmaria, também, nesse diálogo, a opinião de que em Canudos<br />
a gente humilde e sem experiência praticava coisas que os<br />
revolucionários europeus consideravam necessárias para implantar<br />
a justiça na Terra. Sublinha-se aqui um dos veios essenciais: os<br />
seres são mobilizados religiosamente pelo anseio de eqüi<strong>da</strong>de social.<br />
Em Euclides, o líder, que não escondia o horror que tinha
114 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
pelo sexo feminino, chegando a não encará-las, é comparado ao<br />
frígio Montano, no que tange a restrições impostas à aparência<br />
física <strong>da</strong>s mulheres, proibi<strong>da</strong>s de se cui<strong>da</strong>rem. Já os seguidores, a<br />
uma "farândola de vencidos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, gente ínfima e suspeita, avessa<br />
ao trabalho, heróis <strong>da</strong> faca" (CUNHA, 1993, p.120).<br />
O relato do capuchinho enfatiza haver no arraial uma multidão<br />
de seres esquálidos, ca<strong>da</strong>véricos, amontoados em cabanas de<br />
barro e palha, além de armados até os dentes "para proteger o<br />
Conselheiro, que as autori<strong>da</strong>des tinham tentado matar antes"<br />
(V ARGAS LLOSA, 1987 ,p.57). O padre assegurava ter visto em<br />
Canudos facínoras perigosos, mencionando para Galileu o nome<br />
de João Satã, um dos tenentes do Conselheiro. Tal constatação<br />
estarrecera o religioso que, em missão ao lugar, interpelou o próprio<br />
bandido sobre a existência de delinqüentes numa aldeia que<br />
se diz cristã. O padre recebeu como resposta que o desejo do<br />
Conselheiro era o de fazê-los homens bons e que se algum dia roubaram<br />
ou mataram foi pela condição em que viviam. Se fossem<br />
banidos <strong>da</strong>li cometeriam novos crimes. Além disso, entendiam a<br />
cari<strong>da</strong>de do chefe como a que Cristo praticara. A declaração entusiasma<br />
o anarquista, que a ela se refere em carta endereça<strong>da</strong> a revolucionários<br />
europeus: "Essas frases, companheiros, coincidem com a<br />
filosofia <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de" (VARGAS LLOSA, 1987, p. 57).<br />
A novela de Llosa, portanto, desenha uma geografia <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />
e <strong>da</strong> fartura, sedimenta<strong>da</strong> no mito de um espaço utópico,<br />
criado literariamente com esse nome por Morus e, de certa forma,<br />
materializado em Canudos por seus habitantes, pois respeitavam<br />
o direito do outro e os bens coletivos. O arraial é enfocado como<br />
um lugar de paz, abençoado, recebendo os seguidores o mesmo<br />
tratamento que Jesus Cristo dispensara a seus fiéis, sugerindo a<br />
aproximação do Conselheiro com o Filho de Deus. Com isso, a<br />
narrativa desenha a figura do líder como um protetor, um salvador<br />
- um soter - levando sua palavra a fim de redimir não apenas<br />
os sofrimentos materiais, a miséria, mas o crime, o pecado. Se em<br />
A guerra do fim do mundo, Canudos aparece como terra de acolhi<strong>da</strong><br />
e aperfeiçoamento espirituais, incrusta<strong>da</strong> numa geografia protetora,<br />
salvática e sobretudo revolucionária, onde o chefe legislava<br />
em leis fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s no ius profano e no fas divino, em Os<br />
sertões, a socie<strong>da</strong>de foi interpreta<strong>da</strong> como bastante negativa. Gall<br />
engrandece os seguidores, comenta que as pessoas de Canudos
::c:dides <strong>da</strong> Cunha e Vargas L1osa: dois olhares sobre Canudos<br />
115<br />
chamam-se a si mesmas de jagunços, palavra que quer dizer revoltados<br />
e que para elas Anticristo e República são a mesma coisa,<br />
considerando as palavras do líder religioso uma ver<strong>da</strong>deira<br />
música revolucionária para seus ouvidos. O novo regime, perturba<br />
a estrutura consigna<strong>da</strong>, é considerado o responsável por todos<br />
os males, alguns abstratos, sem dúvi<strong>da</strong>, mas também pelos concretos<br />
e reais, como a fome e os impostos. Já em Euclides, jagunço<br />
não possui a mesma conotação: no texto de Llosa recebe uma<br />
carga romântica. O significado de revoltado, atribuído à palavra<br />
jagunço na obra do peruano, não encontra aproximação na do<br />
brasileiro, que o representa como um bandido. Deve-se também<br />
considerar que a interpretação de Gall torna a palavra<br />
engrandecedora e heroicizante, pois, etimologicamente, jagunço<br />
não remete a revoltado. Jagunço prende-se a zaguncho, uma arma<br />
de arremesso, semelhante à azagaia. O valor semântico atribuído<br />
ao termo liga-se à ação defensiva <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> Guar<strong>da</strong> Católica do<br />
Conselheiro e de seus fiéis, tratados como fanáticos e revolucionários,<br />
em A guerra do fim do mundo e como facínoras, em Os<br />
sertões.<br />
Na crítica à fala conservadora do capuchinho, Gall duvi<strong>da</strong><br />
de que ele e sua ordem sejam grandes entusiastas do novo, pois, a<br />
República, paraíso de maçons, significou um enfraquecimento <strong>da</strong><br />
Igreja. Para o religioso, os conselheiristas formavam uma seita<br />
político-religiosa insubordina<strong>da</strong> contra o governo constitucional<br />
do país, Canudos era um Estado dentro do Estado, pois lá não se<br />
aceitavam as leis, as autori<strong>da</strong>des não eram reconheci<strong>da</strong>s nem o<br />
dinheiro <strong>da</strong> República admitido. Preocupado com as mu<strong>da</strong>nças no<br />
vilarejo, garantia que, <strong>da</strong> mesma forma com que se instituíra a<br />
promiscui<strong>da</strong>de de sexos, também se estabelecera em Canudos a<br />
promiscui<strong>da</strong>de de bens: tudo era de todos. Para Gall, contrário a<br />
essa visão, o Conselheiro praxilizava idéias sociais novas no sertão,<br />
ain<strong>da</strong> que tão antigas no espírito humano. As "novas" idéias<br />
sociais, segundo o revolucionário, encontravam-se taticamente vela<strong>da</strong>s<br />
sob pretextos religiosos, devido ao nível cultural dos<br />
conselheiristas. Ao final de uma carta, ele pergunta aos destinatários<br />
se não era notável que no fundo do Brasil um grupo de insurretos<br />
formasse uma socie<strong>da</strong>de em que se aboliu o casamento, além do<br />
dinheiro; onde a proprie<strong>da</strong>de coletiva substituiu a individual.<br />
Fiel a ideais políticos reformadores, afirma não participar
116 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
<strong>da</strong> consternação de Frei Marciano, quanto aos fenômenos observados<br />
em Canudos, pois o que experimentava com a concreta<br />
realização de uma possível utopia na Terra era "alegria e simpatia<br />
por esses homens graças aos quais, dir-se-ia, no fim do Brasil,<br />
renasce de suas cinzas a Idéia que a reação acredita haver enterrado<br />
na Europa no sangue <strong>da</strong> revoluções derrota<strong>da</strong>s" (VARGAS<br />
LLOSA, 1987, p.59).<br />
Portanto, a partir <strong>da</strong> fala de uma personagem fictícia, Galileu<br />
Gall, e de uma outra histórica, Frei Marciano, constrói-se no texto<br />
literário, através de dialético questionamento, a figura<br />
emblemática do Conselheiro conforme a concepção míticomessiânica,<br />
quando um salvador viria para exercer o poder religioso<br />
e o político em uma Terra desprovi<strong>da</strong> <strong>da</strong> dor e do mal. Em<br />
sutil intertextuali<strong>da</strong>de com as len<strong>da</strong>s apocalípticas do fim do mundo<br />
e com a escrita de Os sertões, Vargas Llosa retoma, em várias<br />
passagens, o filão mítico tão difundido na cultura luso-brasileira,<br />
oriundo <strong>da</strong> Península Ibérica, desenvolvido, sobretudo, por<br />
Ban<strong>da</strong>rra, nas Trovas, e por Vieira, em A história do futuro.<br />
Retornando-se ao foco em que Gall se manifesta com insistentes<br />
reflexões questionadoras, tem-se, em outra carta, remeti<strong>da</strong><br />
aos mesmos correligionários, relatos concernentes a experiências<br />
junto a homens do povo, defensores dos objetivos do "santo guia".<br />
Comenta a vitória dos fiéis contra os sol<strong>da</strong>dos do governo, diz<br />
que os acontecimentos constatados de que os jagunços derrotaram<br />
cem sol<strong>da</strong>dos que marchavam contra Canudos "confirmavam<br />
os indícios revolucionários". Contudo, acrescenta, refletindo sobre<br />
a estratégia dos seguidores, que intuições e ações corretas se<br />
misturavam com superstições inverossímeis. Deste modo, apesar<br />
de entusiasmo pelas práticas <strong>da</strong>queles homens rudes, ele consegue<br />
emitir dialética visão, situando-se entre dois horizontes: louva<br />
as corretas ações, mas vislumbra arraigados aspectos supersticiosos<br />
entre os fiéis <strong>da</strong>quele cenobita. Em certa medi<strong>da</strong>, nesse elo<br />
de uma práxis concreta, desconstrutora do status quo vigente<br />
concomitante a aspectos arcaicos de arraiga<strong>da</strong>s crendices, reanima-se,<br />
na escrita de Llosa, a própria ambiência em que eclodiu a<br />
utopia do Conselheiro: em Euclides, "um infeliz [que] destinado à<br />
solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior,<br />
bater de encontro a uma civilização, indo para a história como<br />
poderia ter ido para o hospício" (CUNHA,1993, p.120). Quanto
Euclides <strong>da</strong> Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos 117<br />
a superstições, a intuições dos conselheiristas convém notar seus<br />
comentários cientificistas sobre a dúbia psicologia do grupo:<br />
o clã tumultuário de Antônio Conselheiro ( ... ) continuou a<br />
marcha do desnorteado apóstolo, pervagando no sertão. ( ... )<br />
Não cogitava de instituições garantidoras de um destino na<br />
Terra. Eram-lhe inúteis Canudos era o cosmos ( ... ) transitório<br />
e breve: um ponto de passagem terminal, de onde descampariam<br />
sem demora ( ... ) (CUNHA, 1993, p. 36).<br />
Demonstra-se, assim, a diminuição de valor na análise do<br />
clã do Conselheiro. Tem-se o perfil "tumultuário", em que o condutor<br />
se configura um homem sem rumo, um "desnorteado apóstolo".<br />
Para Euclides, Canudos não possui a chave soteriológica,<br />
não havendo ali uma conjuntura estável, garantindo a seus prosélitos<br />
eficaz apoio material. Aquele topos não seria um eterno cosmos,<br />
mas um caos transitório e breve. Já em Vargas LIosa, superstições<br />
e intuições são motivos que participam do traço particular<br />
<strong>da</strong> psicologia do grupo de maneira positi va, desprovi<strong>da</strong> de linguagem<br />
cientificista, caracterizadora do pensamento euclidiano.<br />
Ain<strong>da</strong> por intermédio de GalI, em carta aos amigos, tem-se<br />
a tentativa de questionamento racional, porém, não depreciativo,<br />
segundo a lógica do revolucionário. Ele vai atrás de todos os indícios<br />
clarificadores do problema, sem pretender a Ver<strong>da</strong>de absoluta.<br />
Logo, sem descartar quaisquer hipóteses, questiona:<br />
São os símbolos religiosos, místicos, dinásticos, os únicos capazes<br />
de sacudir a inércia de massas submeti<strong>da</strong>s há séculos à<br />
supersticiosa tirania <strong>da</strong> Igreja e, por isso, utiliza-os o Conselheiro<br />
Ou tudo isso é obra do acaso Nós sabemos, companheiros,<br />
que na história não há acasos, e por arbitrária que<br />
pareça, há sempre uma racionali<strong>da</strong>de encoberta atrás <strong>da</strong> mais<br />
confusa aparência. Imagina o Conselheiro a perturbação histórica<br />
que está provocando Trata-se de um intuitivo ou de um<br />
espertalhão Nenhuma hipótese é descartável, e, menos que as<br />
outras, a de um movimento popular espontâneo, não premeditado.<br />
A racionali<strong>da</strong>de está grava<strong>da</strong> na cabeça de todo homem,<br />
mesmo na do mais inculto ( ... ) (VARGAS LLOSA, 1987, p. 93).<br />
Advogando a racionali<strong>da</strong>de, aliás tônica que permeia o discurso<br />
de Euclides, refletindo as coordena<strong>da</strong>s dos fins do século
118 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
XIX, Gall utiliza esse artifício lógico através de teses e antíteses,<br />
pois diz que nenhuma hipótese é descartável, a fim de ratificar o<br />
valor de Canudos e de seu fun<strong>da</strong>dor. Valoriza, entretanto, uma<br />
racionali<strong>da</strong>de "outra", diferente do pragmatismo cartesiano que<br />
se manifesta na observação de Euclides <strong>da</strong>queles "sertanejos broncos";<br />
abre, assim, a possibili<strong>da</strong>de de que se perceba com novo<br />
olhar os que não comungam a fala oficial. A tentativa de Gall é de<br />
compor uma explicação convincente e não preconceituosa, para<br />
aqueles fatos advindos de um chamado profético, de marcas<br />
escatológicas, de um imaginado corte <strong>da</strong> História pelo líder e que<br />
culminaram na formação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Em Os sertões, o arraial concretizou<br />
a irracionali<strong>da</strong>de geográfica pelas mãos de um pietista<br />
ansiando pelo reino de Deus e abrigaria uma hor<strong>da</strong> de loucos.<br />
Sublinhando a irracionali<strong>da</strong>de e a psicose coletiva, os seguidores<br />
teriam sido atraídos para lá pelos "despropósitos do Santo<br />
endemoninhado" cuja missão pervertedora levou-os a um "fanatismo<br />
que não tem mais limites". O lugar era visto como uma<br />
distopia insana, "uma ci<strong>da</strong>de dobra<strong>da</strong> por um terremoto", um<br />
"dé<strong>da</strong>lo desesperador" e um "baralhamento caótico" que "traíam<br />
a fase transitória entre a caverna e a casa (00') traduzindo, mais do<br />
que a miséria do homem, a decrepitude <strong>da</strong> raça" (CUNHA, 1993,<br />
p. 232-239). Já o texto de Llosa fornece outros pontos de observação<br />
contrastantes, quanto aos elementos humanos e geográficos<br />
encontrados em Os sertões.<br />
Eternizando por meio do texto ficcional a compreensão do<br />
fenômeno como um todo harmonioso, lê-se no autor peruano que<br />
"a diversi<strong>da</strong>de humana coexistia em Canudos sem violência, em<br />
meio a uma soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de fraterna e um clima de exaltação que os<br />
escolhidos não haviam conhecido" (VARGAS LLOSA, 1987, p.<br />
97). Em Llosa, não se encontra alusão ao "diagnóstico" euclidiano<br />
<strong>da</strong>do a Canudos de loeus horrendus <strong>da</strong> loucura e do banditismo.<br />
A população não é considera<strong>da</strong> uma turba de "temperamento<br />
vesânico" guia<strong>da</strong> por um chefe "dominador incondicional", por<br />
um "grande desventurado" e "retrógrado do sertão". O texto de<br />
Llosa alude sim a uma heteróclita comuni<strong>da</strong>de de necessitados e<br />
de abandonados: índios, negros, brancos, mulatos, homens considerados<br />
de bem - ou mesmo bandidos - todos juntos em uma<br />
comuni<strong>da</strong>de de destino, unidos em constante harmonia de pensamento<br />
e de objetivos, como desejava Charles Fourier. Eram co-
Euclides <strong>da</strong> Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos<br />
119<br />
man<strong>da</strong>dos pelo Conselheiro, que delegava à Guar<strong>da</strong> Católica a<br />
defesa do território sagrado e, como diz o narrador sobre o "santo",<br />
o santuário atraía peregrinos de todo o mundo, também a<br />
atenção do Anticristo República.<br />
Em A guerra do fim do mundo, a fala depreciativa encontra<strong>da</strong><br />
na obra de Euclides é assumi<strong>da</strong> por personagens <strong>da</strong> classe<br />
dominante e do poder constituído. Um diálogo entre Moreira César<br />
e o barão de Canabrava - rico latifundiário <strong>da</strong> região - retoma<br />
idéias conti<strong>da</strong>s em Os sertões quanto aos "escolhidos". Note-se<br />
que o famoso coronel <strong>da</strong> República fala dos seguidores como hereges<br />
dementes, incendiários e ladrões de fazen<strong>da</strong>s, que matavam<br />
com balas explosivas e fuzis modernos. No entanto, o barão, suspeito<br />
de proteger os "jagunços", desmente as afirmações, declarando<br />
que tudo não passava de uma manobra para se fazer todo o<br />
país acreditar que Canudos significava aquele perigo tão propalado.<br />
Acrescenta, ain<strong>da</strong>, a seus argumentos:<br />
Esses miseráveis não têm armas modernas de nenhum tipo. As<br />
balas explosivas são projéteis de limonita, ou hematita par<strong>da</strong><br />
se prefere o nome técnico, um mineral que ( ... ) os sertanejos<br />
usam em seus bacamartes há muito tempo. ( ... ) Os fuzis ingleses,<br />
sim. Foram trazidos por Epaminon<strong>da</strong>s Gonçalves, seu mais<br />
fervoroso partidário na Bahia, e para nos acusar de aliança<br />
com uma potência estrangeira e os jagunços. E quanto ao espião<br />
inglês de Ipupiará, ele também o fabricou, man<strong>da</strong>ndo assassinar<br />
um pobre-diabo que, para sua desgraça, era ruivo. O<br />
senhor sabia disso (VARGAS LLOSA, 1987, p.92).<br />
Mas a crítica atualiza<strong>da</strong>, tendo como idôneo apoio reflexivo<br />
Ataliba Nogueira, repensou a perseguição ao Conselheiro e a destruição<br />
de Canudos. A partir de conceitos desenvolvidos pelo estudo<br />
<strong>da</strong> revisão de Os sertões por A. Nogueira,<br />
deduz-se não ser apropriado o título de herege <strong>da</strong>do ao fun<strong>da</strong>dor<br />
de Canudos. Antônio Conselheiro não pregava idéias heterodoxas.<br />
Não pode ser chamado de gnóstico, muito menos de<br />
bronco, pois sabia ler e escrever, deixando obras de fé cujo<br />
lastro é de raiz ortodoxa católica. Ratifica-se, dessa forma, que<br />
ele não se opôs aos dogmas <strong>da</strong> Igreja, ( ... ) nunca se nominou<br />
Messias, muito menos Salvador,( ... ) mas se negava a seguir
120 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
ordens de seus representantes. Portanto não foi um dissidente<br />
radical <strong>da</strong> Igreja romana, como afirmou Euclides <strong>da</strong> Cunha. °<br />
estudioso viu a dinâmica do fenômeno capta<strong>da</strong>, de alguma forma,<br />
porum espírito pré-concebido. (...) Quanto a possíveis anseios<br />
de esperanças escatológicas (...), seria possível que tais fantasias<br />
místicas circulassem no imaginário coletivo dos conselheiristas,<br />
<strong>da</strong> mesma forma que circularam em vários grupos religiosos de<br />
várias épocas (CAMBEIRO, 2003, p. 468-470).<br />
Tal linha crítica, segui<strong>da</strong> por Roberto Ventura, atribui<br />
o ataque ao temor <strong>da</strong>s classes dirigentes de que o arraiallibertário<br />
se tomasse ameaça regional e nacional do ponto de vista <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de,<br />
além de constituir-se em um Estado dentro do Estado,<br />
como diz o capuchinho a Galileu Gall. Para R.Ventura, a destruição<br />
de Canudos<br />
se deveu menos ao anti-republicanismo do Conselheiro do que<br />
a fatores políticos, como os conflitos entre facções partidárias<br />
na Bahia, a atuação <strong>da</strong> Igreja contra a atuação pouco ortodoxa<br />
dos beatos e pregadores e as pressões dos proprietários de terras<br />
contra a comuni<strong>da</strong>de, cuja expansão trazia escassez de mãode-obra<br />
e rompia o equilíbrio político <strong>da</strong> região. (VENTURA,<br />
1997, p. 90).<br />
Assim, o diálogo entre o coronel <strong>da</strong> República e o latifundiário<br />
demonstra que o tema <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de é fun<strong>da</strong>mental, sendo<br />
trabalhado em A guerra do fim do mundo. Também o diálogo<br />
entre Gall e um determinado jagunço abor<strong>da</strong> a questão <strong>da</strong> terra<br />
como ponto de honra para os proprietários <strong>da</strong> região se defenderem<br />
contra outras possíveis investi<strong>da</strong>s dos "conselheiristas fanáticos".<br />
Ao tentar explicar que a perseguição ao Conselheiro e a sua<br />
Jerusalém eram uma defesa <strong>da</strong> burguesia contra o ataque de minorias<br />
carentes à proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, o jagunço negou ser esta<br />
a ver<strong>da</strong>deira causa.<br />
Para o ponto de vista <strong>da</strong>quele homem simples, o poder,<br />
representado no coronel, enviara sol<strong>da</strong>dos porque os fiéis estavam<br />
construindo templos, visto que a República queria acabar<br />
com a religião, oprimir a Igreja, os fiéis e to<strong>da</strong>s as ordens religiosas.<br />
Pior ain<strong>da</strong>: instituíra o casamento civil. Replicando as afirmativas<br />
do conselheirista sobre a interpretação <strong>da</strong>s causas <strong>da</strong>
Euclides <strong>da</strong> Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos<br />
121<br />
guerra, Gall diz que<br />
abolir a proprie<strong>da</strong>de e o dinheiro estabelece uma comuni<strong>da</strong>de<br />
de bens, faça-se em nome do que quer que seja, mesmo no de<br />
nebulosas abstrações, é algo ousado e valioso para os deser<strong>da</strong>dos<br />
do mundo, um começo de redenção para todos. E que essas<br />
medi<strong>da</strong>s desencadearão contra eles, cedo ou tarde, uma dura<br />
repressão, pois a classe dominante jamais permitirá que frutifique<br />
semelhante exemplo: neste país há pobres de sobra para<br />
tomar to<strong>da</strong>s as fazen<strong>da</strong>s. O Conselheiro e seus seguidores têm<br />
consciência <strong>da</strong>s forças que estão acionando (VARGAS<br />
LLOSA, 1987, p. 92).<br />
Confinuando o diálogo existente nas duas obras, tem-se também<br />
a alusão ao movimento <strong>da</strong> Vandéia, acontecido durante a<br />
Revolução Francesa. Esse sectarismo manifestado aos ideais revolucionários<br />
do século XVIII, comentado pela personagem de<br />
Vargas Llosa como movimento retrógrado, inspirado pelos padres,<br />
foi também objeto de comparação com as leis internas de<br />
Canudos. Em Os sertões, Euclides <strong>da</strong> Cunha refere-se aos acontecimentos<br />
de Canudos como "a nossa Vandéia", aludindo a ela em<br />
seu livro e também em um artigo na imprensa, a possíveis "forças<br />
monarquistas em luta contra a República ain<strong>da</strong> jovem ... "<br />
(ANDRADE,2002,p.122).<br />
Canudos - historicamente um "divórcio trissecular entre o<br />
litoral e o sertão" (ANDRADE, 2002, p. 179) - em Llosa representa<br />
um autêntico paraíso concretizado, em Euclides, mesmo<br />
guar<strong>da</strong>ndo o caráter de um éden, o arraial é definido como um<br />
primitivo abrigo de fanáticos e de bandidos. Para o peruano, o<br />
Conselheiro é retratado como agente de um singular, expressivo e<br />
importante fenômeno de uma ci<strong>da</strong>dela libertária, sem dinheiro,<br />
sem patrões, sem polícia, sem padres, sem banqueiros nem proprietários,<br />
um mundo construído com a fé e o sangue dos pobres<br />
mais pobres. Comparando-se o texto de Euclides com o de Llosa,<br />
mas respeitando-se as devi<strong>da</strong>s diferenças de época e de visão,<br />
conclui-se, parcialmente, que em Vargas Llosa existe uma continui<strong>da</strong>de<br />
literária do mito do chefe e <strong>da</strong> utopia salvadora, símbolo<br />
de um mundo sem mal<strong>da</strong>de, sem doenças, nem miséria. Tal espaço<br />
fora criado e liderado por Antônio Conselheiro, ser carismático<br />
capaz de preparar os fiéis em uma comuni<strong>da</strong>de sonha<strong>da</strong>, uma re-
122 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
produção <strong>da</strong> Canaã e <strong>da</strong> Jerusalém bíblicas para o milênio tão<br />
esperado e propiciador <strong>da</strong> volta ao Paraíso. Entretanto, Euclides<br />
<strong>da</strong> Cunha cita nomes e termos correntes à época, para descrever e<br />
esboçar, ante o olhar de futuros historiadores, o que chamou de<br />
um crime. Ele pretendia descrever o acontecimento sob a ótica<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de lógica e acabou seduzido também por pretensas manifestações<br />
sebastianistas encontra<strong>da</strong>s em quadrinhas dentro dos<br />
casebres e anota<strong>da</strong>s em sua caderneta, embora isso fosse refutado<br />
por estudiosos, dentre estes, Ataliba Nogueira e Roberto Ventura.<br />
Porém, cabe enfatizar que, se Euclides se preocupava<br />
principalmente com o fato histórico, com a visão científica e racional<br />
do fenômeno, Vargas Llosa, ao contrário, investiu na romanesca<br />
recriação <strong>da</strong> história, de forma diversa, imaginativa, que,<br />
sem abandonar o factual, descreve literariamente o movimento de<br />
Canudos. Confirma-se na obra do escritor peruano a perspectiva<br />
mítico-sagra<strong>da</strong> do fenômeno e, por ironia, essa constatação se<br />
estende, ain<strong>da</strong>, à obra euclidiana, pois, ao assinalar crendices e<br />
ignorâncias míticas/místicas, sublinha a permanência de algo primordial<br />
naquela socie<strong>da</strong>de. Inconscientemente e sob a égide <strong>da</strong><br />
cientifici<strong>da</strong>de, que deseja demonstrar e esclarecer, em seu relato<br />
histórico-cientificista deu relevância suficiente aos mitos que transitavam<br />
no universo de Canudos. Perpetuava-se no texto dos dois<br />
escritores o momento em que se consoli<strong>da</strong>va, na socie<strong>da</strong>de arcaica<br />
de Canudos, a metamorfose de temas confluentes, tais como:<br />
milenarismo, heresia, utopia, messianismo. Desta forma, manifestaram<br />
<strong>da</strong>dos armazenados no imaginário cultural, captaram em<br />
épocas diversas <strong>da</strong> História fenômenos que eternizaram as ações<br />
humanas e canalizaram para o texto a emergência do mito do chefe<br />
político-religioso.<br />
Na tentativa de concluir sem esgotar possibili<strong>da</strong>des de outras<br />
futuras reflexões, pode-se dizer que a figura literária do Conselheiro,<br />
em Os sertões, é negativa. O autor alude ao chefe como<br />
um evangelizador fatal e sinistro. Interpreta ter sido o Conselheiro<br />
quem arrastara aquela pobre gente para uma desgraça incalculável.<br />
A obra, apesar de registrar o mito atualizado de uma figura<br />
carismática, carece <strong>da</strong> intenção engrandecedora, encontra<strong>da</strong> em<br />
Vargas Llosa. Já em A guerra do fim do mundo, focalizaram-se<br />
também as supostas ligações anti-republicanas de Canudos, desenvolvendo-se,<br />
<strong>da</strong> mesma forma, o mito do chefe político-religi-
::
124 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
co. Mas como se explica então, senhor Essas conversões, essa<br />
paz de espírito, a felici<strong>da</strong>de de tantos miseráveis<br />
- E como se explicam os crimes, a destruição de proprie<strong>da</strong>des,<br />
os ataques ao Exército - interrompe o Coronel (VARGAS<br />
LLOSA, 1987, p.256-257).<br />
Além <strong>da</strong> interferência <strong>da</strong>s personagens Gall, Frei Damião e<br />
Padre Joaquim, chega-se a uma configuração de Canudos, do<br />
Conselheiro e dos fiéis, através do Jornalista Míope, que apresenta<br />
outro ângulo do fenômeno. Os pensamentos do Jornalista sobre<br />
tudo o que se passava e o futuro <strong>da</strong> guerra são investigados<br />
pelo narrador.<br />
Acompanhando os acontecimentos, estava presente no instante<br />
<strong>da</strong> conversa entre o Padre e o Coronel. Após o encontro, o<br />
Jornalista Míope foi tocado por questões instigantes, buscando<br />
mentalmente respostas esclarecedoras. Ele faz in<strong>da</strong>gações para<br />
compreender se Canudos podia ser explicado somente através dos<br />
conceitos de conjuntura, rebeldia, conspiração, intrigas dos políticos<br />
que pretendiam a volta <strong>da</strong> Monarquia. Com as palavras do<br />
padre tivera a certeza de que não era bem assim. Para ele, formava-se<br />
o contorno de algo "difuso, desatualizado, incomum, algo<br />
que seu ceticismo não o impede de chamar divino ou diabólico ou<br />
simplesmente espiritual" e que uma dúvi<strong>da</strong> sobre a ver<strong>da</strong>de o leva<br />
à pergunta: "O que é então (VARGAS LLOSA, 1987, p.233).<br />
Uma conclusão parcial<br />
Justamente tal pergunta gerou, nos textos literários e críticos<br />
uma série de conceitos os mais variados sobre o fato. Uma<br />
polêmica se instala quanto ao comportamento de alguns seguidores,<br />
encarregados <strong>da</strong> defesa de Canudos contra ataques externos.<br />
Nas descrições de Euclides <strong>da</strong> Cunha e Vargas Llosa, os adeptos<br />
aparecem como guerreiros e se igualam na força aos militares.<br />
To<strong>da</strong>via, é considerado estranho um grupo de pessoas religiosas<br />
apresentarem uma milícia arma<strong>da</strong>. Os jagunços, em Os sertões e<br />
em A guerra do fim do mundo, formaram a Guar<strong>da</strong> Católica, ambígua<br />
designação <strong>da</strong>s "tropas" conselheiristas. Os dois autores<br />
atestam a existência de uma briga<strong>da</strong> de defesa composta de fanáticos<br />
e de antigos perseguidos pela polícia. Outra observação é
::udides <strong>da</strong> Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos<br />
125<br />
feita a respeito de armamentos, citados pelo dois autores, mas<br />
refutado, no incidente <strong>da</strong>s madeiras, pela crítica revisionística, em<br />
especial de A. Nogueira. Quanto ao porte de armas, a explicação<br />
é simplifica<strong>da</strong>, já que normalmente um sertanejo traz sempre algo<br />
que o defen<strong>da</strong> do ataque de um animal ou de um salteador em<br />
suas incursões pelo mato.<br />
Sejam eles jagunços armados - significando um revoltado<br />
ou um bandido - ou simples fiéis fanáticos, deve-se recorrer à<br />
força do Conselheiro que, em suas peregrinações e sermões persuasivos,<br />
conseguiu arrastar todos os componentes <strong>da</strong> margem<br />
para a página <strong>da</strong> existência. Tentando colocar o ser humano<br />
acima dos desejos e paixões <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> material, ela atraía a atenção<br />
dos ouvintes com suas promessas de um futuro restaurador, de<br />
uma romântica ordem social igualitária. Por se sentirem atacados,<br />
constituíram um grupo defensivo, apavorados pelo medo de serem<br />
dispersados. Os bens que conseguiram recolher, trazidos por<br />
aqueles que aderiam à causa, eram de todos. Eles temiam que<br />
acabassem em mãos do Anticristo República, a força<br />
desarticuladora de Canudos - para Euclides, um "dé<strong>da</strong>lo<br />
desesperador de becos estreitos, ( ... ) em absoluta desordem, ( ... )<br />
[obra de] uma multidão de loucos" (VENTURA, 1992, p.91) -<br />
porém experimentado como omphalos, como o centro do mundo,<br />
pelos seguidores.<br />
Em A guerra do fim do mundo, Antônio Conselheiro é, para<br />
alguns, um santo e um revolucionário desejando efetivar, socialmente,<br />
ideais igualitários. Para os representantes do poder é um<br />
fanático rodeado de bandidos. Já em Os sertões, é um doente paranóico<br />
aliciador dos desprovidos que viam na sua figura e palavra<br />
a única salvação propaga<strong>da</strong> em seus sermões. O organizador<br />
religioso e político sugerido por Vargas Llosa, em Euclides <strong>da</strong><br />
Cunha, é um louco apóstolo extravagante, perseguido por estigma<br />
atávico, portador de uma "psicologia especial". Ressaltado<br />
por Vargas Llosa como um líder organizador, preocupado não<br />
apenas em salvar os homens do Anticristo República, emA guerra<br />
do fim do mundo, ele é o líder social e religioso de seus seguidores,<br />
munido de autori<strong>da</strong>de necessária para livrá-los do pecado e<br />
conduzi-los à salvação após o juízo final.<br />
Assinala-se que a essência rebelde e a síntese revolucionária<br />
<strong>da</strong> utopia imagina<strong>da</strong> e concretiza<strong>da</strong> por Antônio Conselheiro é
126 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
indica<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> por Gall, aquele idealista que se identifica com o<br />
líder e com o arraial. Mas sua preocupação é com o material, com<br />
o quotidiano, assim, afasta seu questionamento sobre a desigual<strong>da</strong>de<br />
entre os homens do campo metafísico e místico, não se empenha<br />
em responder às questões que lhe coloca, a personagem<br />
Jurema:<br />
- O senhor acredita que o Conselheiro foi man<strong>da</strong>do pelo Bom<br />
Jesus Acredita nas coisas que ele anuncia Que o mar será<br />
sertão e o sertão mar Que as águas do Vaza-Barris vão virar<br />
leite e suas barrancas, cuzcuz de milho pra que os pobres comam<br />
(VARGAS LLOSA, 1987, p.233).<br />
Para finalizar, destaca-se a passagem em que durante sua<br />
viagem rumo a Canudos, a fim de conhecer a ci<strong>da</strong>de prometi<strong>da</strong> e<br />
seu fun<strong>da</strong>dor, Gall encontra um grupo de sertanejos que vagava<br />
e lhes fala <strong>da</strong> seguinte maneira, em clara adesão àquele tão criticado<br />
projeto:<br />
_ Não percais a coragem, irmãos, não sucumbais ao desespero.<br />
Não estais apodrecendo em vi<strong>da</strong> porque um fantasma escondido<br />
atrás <strong>da</strong>s nuvens assim o decidiu, mas porque a socie<strong>da</strong>de<br />
está mal forma<strong>da</strong>. Estais assim porque não comeis, porque<br />
não tendes médicos nem remédios, porque ninguém se<br />
preocupa convosco, porque sois pobres. Vosso mal se chama<br />
injustiça, abuso, exploração. Não vos resigneis, irmãos. Do<br />
fundo de vossa desgraça, rebelai-vos, como vossos irmãos de<br />
Canudos. Ocupai as terras, as casas, apoderai-vos dos bens<br />
<strong>da</strong>queles que se apoderaram de vossa juventude, que roubaram<br />
vossa saúde, vossa humani<strong>da</strong>de ... (VARGAS LLOSA,<br />
1987, p. 233).
Euclides <strong>da</strong> Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos 127<br />
Referências<br />
ANDRADE, O. de Souza. História e interpretação de Os sertões. 4.ed. rev. e<br />
aum. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002.<br />
CAMBEIRO, D. A figura literária de soter e herege em Os sertões, de Euclides<br />
<strong>da</strong> Cunha. In: MALEVAL, M. A. T. e PORTUGAL, ES. (orgs.) Estudos<br />
galego-brasileiros. Rio de Janeiro: H. P. Comunicações, 2003.<br />
CUNHA, E. <strong>da</strong>. Os sertões. São Paulo: 1993, Cultrix.<br />
CURTIUS, E. Literatura européia e I<strong>da</strong>de Média latina. São Paulo: Hucitecl<br />
USP,1996.<br />
NOGUEIRA, A. António Conselheiro e Canudos. São Paulo: Editora Nacional,<br />
1974.<br />
VENTURA, R. Canudos como ci<strong>da</strong>de iletra<strong>da</strong>: Euclides <strong>da</strong> Cunha na urbs<br />
monstruosa. In: B. A. Junior e I. M. Alexandre (orgs). Canudos: palavra de<br />
Deus sonho <strong>da</strong> terra. SãoPaulo: SENAClBoitempo, 1997.<br />
VARGAS LLOSA, M. A guerra do fim do mundo. 16.ed. Rio de Janeiro:<br />
Francisco Alves, 1987.
129<br />
Motérioux pour une étude de lo réception<br />
de lo littéroture brésilienne en Fronce<br />
1 Ce texte est la version<br />
3ugmentée d'une communi<br />
.:ation, « Littérature brésilienne<br />
en France : limites et fondements<br />
», au colloque de<br />
i' Université de Pau organisé par<br />
!e Centre de Recherches<br />
Poétiques et Histoire Iittéraire :<br />
Bourlinguer en écriture. Les<br />
:nfluences croisées francobrésiliennes<br />
organisé par Eden<br />
víana Martin et Nadine Laporte,<br />
(janvier 2006), inédite, à<br />
paraitre. Ce texte s' adressait au<br />
départ à un public français non<br />
spécialisé. 11 reprend des<br />
éléments parus <strong>da</strong>ns France<br />
Brésil (direct. Michel Riaudel,<br />
ADPF, 2005), « La réception de<br />
la littérature brésilienne en<br />
France », p.67-72. 11 integre<br />
également des éléments de la<br />
communication du colloque sur<br />
« La formation du roman au<br />
Brésil ». Pour Ie détail des<br />
ceuvres traduites, je renvoie à la<br />
Bibliographie francobrésilienne<br />
de Georges Raeders<br />
(Rio de Janeiro, 1960) qu'on<br />
complétera avec Estela dos<br />
Santos Abreu: Brasil França,<br />
ouvrages brésiliens traduits en<br />
France (B.N., Rio, 2004).<br />
Pour I'histoire de la traduction<br />
et de la réception de cette<br />
littérature,je renvoie à mes deux<br />
livres Encontro entre literaturas<br />
.' França Portugal<br />
Brasil (Hucitec, 1995) et<br />
Dialogos interculturais<br />
(Hucitec, 2005). On se reportera<br />
aussi à Mario Carelli, Cultures<br />
croisées, Nathan, 1993 et à<br />
Marie Hélene Catherine Torres :<br />
Variations sur l' étranger <strong>da</strong>ns<br />
les lettres.' cent ans de<br />
traductions françaises des<br />
lettres brésiliennes (Artois<br />
Presses, Université 2004).<br />
Pierre Rivas<br />
(Sorbonne Nouvelle, Paris 111)<br />
La littérature brésilienne se situe, <strong>da</strong>ns le systeme de la<br />
littérature mondiale, comme ultra-périphérique, au sens ou les<br />
organismes intemationaux parlent de centre, périphérie, semipériphérie,<br />
périphérique longtemps par rapport au Portugal, luimême<br />
périphérie de la Péninsule ibérique. La relation Centre<br />
Périphérie, théorisée un temps, <strong>da</strong>ns le sillage post Braudel de<br />
I' «économie-monde» a élaboré I' idée de dépen<strong>da</strong>nce culturelle:<br />
une littérature du soupçon, entre plagiat et épigonisme, voire<br />
exotisme, la frappant d'illégitimité, car transposant des idées<br />
«intempestives hors de leur lieu»l<br />
Pareillement périphérique, la place du portugais <strong>da</strong>ns le<br />
systeme mondial de la traduction, ses flux et refluxo Les<br />
spécialistes ont montré que les langues du monde constituent un<br />
systeme de communication hiérarchisé, qui se vérifie <strong>da</strong>ns le flux<br />
des traductions. 11 y a des langues dominantes et des langues<br />
dominées. L'anglais est aujourd'hui la langue hypercentrale :<br />
50 % des traductions se font à partir d'elle ; puis des langues<br />
centrales : le français (10 %) et I' allemand ; puis des langues semipériphériques<br />
: espagnol, italien ; les autres langues : arabe, russe,<br />
chinois, portugais, se situent au-dessous de 1 % (on voit donc<br />
que la hiérarchie d'une langue est indépen<strong>da</strong>nte de son extension :<br />
il y a des langues internationales et des langues régionales, même<br />
avec des milliards de locuteurs). 11 y a une relation entre hiérarchie<br />
des langues et flux des traductions; si paradoxal que cela paraisse,<br />
plus une langue est dominante et plus on traduit à partir d' elle et<br />
moins elle traduit vers elle. Le systeme anglo-saxon est tres auto-
130 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
centré; la France s'est longtemps nourrie d'elle-même ; elle<br />
traduit aujourd'hui plus de littérature brésilienne que les USA2.<br />
Le handicap brésilien est ici encore manifeste: position<br />
périphérique ; une langue «rare» selon la terminologie officielle,<br />
et Iongtemps non institutionnalisée <strong>da</strong>ns l'enseignement (et à<br />
I' avenir incertain et menacé aujourd'hui).<br />
Handicap encore: une insularité géo-culturelle face aux vingt<br />
Amériques hispaniques qui n'ont jamais perdu le contact avec<br />
I' ancienne métropole espagnole, laquelle leur a servi de relais et<br />
de chambre d'échos <strong>da</strong>ns le monde hispanique et le reste du monde,<br />
en particulier grâce aux maisons d'édition à Barcelone, et au<br />
rôle d'agents littéraires. Tel n'est pas le cas du Portugal, exmétropole<br />
qui a vu sa colonie grandir et s' auto-centrer, ou les<br />
relations littéraires se sont distendues au point, parfois, de s' ignorer.<br />
Handicap encore: I' écrivain hispano-américain écrit pour un<br />
immense public, vingt pays, une ex-métropole attentive, <strong>da</strong>ns une<br />
langue intemationale. Cela explique le «boom» latino-américain,<br />
auquelle Brésil ne participe pas. L'écrivain brésilien écrit <strong>da</strong>ns<br />
une langue méconnue et sans échos autres, parfois, que son «état»<br />
régionaI, hors de grands centres légitimant (São Paulo, Rio). En<br />
ce sens, la littérature brésilienne est une littérature «mineure», au<br />
sens de Deleuze, «périphérique» au sens néo-marxiste. L'héritage<br />
portugais Iui-même, prestigieux et trop ignoré, est une voix<br />
solitaire, élégiaque et désaccordée face à I' ostentation espagnole.<br />
Le Portugal salazariste a longtemps tenu à I' écart cette littérature<br />
d'un modemisme subversif et, malgré le Prix Camões, ces deu x<br />
littératures se connaissent mal.<br />
La littérature hispano-américaine a su trouver depuis<br />
longtemps sa consécration à Paris, capitale de la République<br />
Mondiale des lettres, qui a intemationalisé ces littératures, imposant<br />
Borges malgré la réticence de ses compatriotes, ou Paz. La présence<br />
d'écrivains, diplomates ou en exil, d'universitaires, de colonies<br />
importantes «d'expatriés» ont été des relais fon<strong>da</strong>mentaux, en<br />
particulier <strong>da</strong>ns l'université. Tel n'est pas le cas pour les Brésiliens,<br />
émigrant peu, et I' enseignement de leur Iangue a été essentiellement<br />
investie par des Portugais.<br />
Se pose donc ici le problême central des intermédiaires et<br />
des traducteurs. Ferdinand Denis a été au XIxe siêcle le fon<strong>da</strong>teur<br />
des études brésiliennes (et, d'une certaine maniêre, l'apôtre et le<br />
2 HEILBRON, 1. et SAPIRO, G.<br />
in Actes de la Recherche en<br />
Sciences sociales, n° 144. Les<br />
traductions représentaient en 2003,<br />
2,8 % du total de la production<br />
éditoriaIe ~ricaine.
\'Iatériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France<br />
131<br />
.1 SurcesnoIm,cf.rresdeuxlivres<br />
cités en note 12, et le colloque<br />
Lisbonne atetier du lusitanisme<br />
.trançais, études réunies par 1.<br />
PENJON et P. RIVAS, Paris,<br />
Presses Sorbonne Nouvelle, 2005,<br />
l04p.<br />
" Voir «V Latbaud, agent secret<br />
des littératures luso-brésiliennes en<br />
France» et «Demiere tentation de<br />
V Latbaud,le Brésil", in Cahier<br />
des Amis de V. Larbaud,<br />
respectiverrent n° 34, 1997,87 p.<br />
et n° 5, nouvelle série, Edit des<br />
Cendres, 2005, 157 p. (études<br />
réunies par P. RIVAS).<br />
5 Je renvoie à mon article
132 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Paradis vert amazonien, mais aussi à Alcides Maya, ou au caboclo<br />
de C. Neto. Ce sera aussi le cas de I' autre important intermédiaire,<br />
Jean Duriau. Les trois collaborent à la Revue de ['Amérique [atine<br />
qui est entre les deux guerres, la principale revue ouverte à ces<br />
pays. Ajoutons qu'ils sont pareillement hostiles aux avant-gardes<br />
littéraires tenues pour jeux gratuits du parisianisme. Or le Brésil<br />
doit se libérer de ces modeles. À peine sacrifient-ils au «roman<br />
psychologique et mon<strong>da</strong>in» d' A. Peixoto.<br />
Les «fortunes contrastées» de Machado de Assis et Graça<br />
Aranha relevent pareillement de stratégies idéologiques,<br />
diplomatiques et mon<strong>da</strong>ines. Le succes de ce dernier relevant de<br />
I' antigermanisme alors frénétique en France, de son «nacionalismo<br />
para barressiano» (G. Freyre), et, accessoirement, du «roman<br />
philosophique à idées» mis à la mo de par Paul Bourget. Bergson<br />
le loue comme «le représentant par excellence de la pensée<br />
brésilienne». Pour O. Lima, présentant Machado en Sorbonne, le<br />
plus grand éloge est de le placer entre Mérimée, Renan ou Daudet;<br />
de le réduire, en fait, à la tradition de la latinité quand Aranha<br />
serait aux avant-postes du combat pour la civilisation. Canaan,<br />
pour Jacques Bainville, est I' équivalent des Déracinés de Barres.<br />
Machado est un artiste, Aranha un penseur, trop peu «Brésilien».<br />
II faudra attendre Roger Bastide pour le restituer au lecteur français<br />
à sa brésilianité intérieure fonciere <strong>da</strong>ns sa préface à la traduction<br />
de Quincas Borba en 1955. La traduction de Dom Casmurro en<br />
1936 avait quelque peu déplacée les références, d' Anatole France<br />
vers Sterne (René Lalou <strong>da</strong>ns les Nouvelles littéraires) et voire<br />
Dickens (Gahisto <strong>da</strong>ns le Mercure de France en 1937). Tous ces<br />
traducteurs sont plus sensibles au courant loca liste (ils traduisent<br />
C.Neto, M. Lobato, A. Azevedo, etc.) qu'au versant cosmopolite<br />
(ni Machado, ni les modernistes) ; à la poésie néoparnassienne<br />
(Bilac), pas à la modernité poétique - accessoirement Ribeiro<br />
Couto, en poste en France.<br />
Ces stratégies officielles de 1 'idéologie de la latinité rendent<br />
ainsi hommage, en Sorbonne, en 1909, à Machado de Assis sans<br />
lui rendre justice: honoré, à peine traduit et inaperçu. On lui<br />
préférera Graça Aranha, plus idéologue. Son statut rappellera assez<br />
celui de Eça de Queirós à qui on préférera Teixeira de Pascoaes,<br />
plus idiosyncrasique. Mais le roman réaliste européen, Galdos,<br />
Verga, Fontane, ne trouvera pas plus de curiosité en France,
\latériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France 133<br />
attentive à-Ia- seuIe- singularité- anglaise ou -russe: La politiqueofficielle<br />
fait traduire Nabuco ou Rui Barbosa sans aucun écho.<br />
Les relations mon<strong>da</strong>ines, la comédie des gens de lettres faciliteront<br />
les traductions de A. Celso ou A. Peixoto et plus encore celle de<br />
Graça Aranha. Mais beaucoup de ces traductions sont à compte<br />
d'auteur (Eneas Ferraz, etc.).<br />
L'absence de relais éditoriaux est ici manifeste malgré la<br />
présence de l'éditeur Garnier, O Bom Ladrão, dont Figueiredo<br />
Pimentel disait que son représentant au Brésil ignorait tout de<br />
cette littérature.<br />
L' officialité incline à une lecture sollicitée de cette littérature.<br />
Ainsi de I'Anthologie de Victor Orban publiée en 1913, à la demande<br />
de O. Lima, et qui est bien contestable et trop officielle. Un<br />
paradigme regne encore, celui, dysphorique, de I' anthropologie<br />
des Lumieres, de De Paw à Buffon et Hegel: continent de<br />
«l'immaturité physique et morale ... pays inachevés ... enfants<br />
inconscients [simple] écho du vieux monde» ... expression d'une<br />
vie étrangere, dit Hegel <strong>da</strong>ns la Raison <strong>da</strong>ns l'histoire.<br />
«La formation du roman brésilien», laborieuse et difficile<br />
est le propos du livre en français de B. Costa, le Roman au Brésil<br />
(1918). Il cite à peine «Mémoires d'un sergent de la Milice», qui<br />
n' aurait qu'une valeur documentaire. Ronald de Carvalho, <strong>da</strong>ns la<br />
Revue de Geneve d' avril 1921 sera moins fervent de Aranha, plus<br />
ouvert à Macedo, attentif à Lima Barreto, «un Sterne plus ému,<br />
un Gorki moins rude». Les références de B. Costa sont «Ia haute<br />
littérature française» : Bourget, Hermant, MareeI Prevost, Anatole<br />
France. Voulant analyser les «moments mentaux» du Brésil,<br />
montrer «I'éclosion du roman au Brésil, son développement», il<br />
retient quatre écri vains de référence: Machado de Assis, la colonne<br />
ionienne, sobre et élégante; A. Azevedo, naturaliste «dorique»,<br />
Coelho Neto, néo romantique composite, et, culmination et<br />
couronnement, Graça Aranha, colonne corinthienne (à I' exception<br />
de Machado, tous ces écrivains sont aujourd'hui absents des<br />
librairies françaises, comme le sont Abel Hermant, MareeI Prevost.<br />
Paul Bourget).<br />
Graça Aranha et Coelho Neto seront les écrivains les plus<br />
traduits, ou les plus loués. lei se vérifie encore la géographie<br />
littéraire du Brésil français: Alencar, Azevedo, etc., tous écrivains<br />
du Nord, du Nord Est, du Maranhão, de Bahia, de l' Amazonie,
134 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
attentifs à une lignée d'expression sociale, romantique ou réaliste,<br />
aux «scenes de la nature» quasi ou franchement exotiques. Ce<br />
sont des écrivains «bombásticos», boursouflés, qu' on qualifierait<br />
de néo-baroque, ou d' épais sensualisme.<br />
Vn peu de cette constance pourrait se retrouver <strong>da</strong>ns le<br />
succes de J. Amado en France, qui fut considérable et qui, s' il doit<br />
un peu au départ, aux stratégies politiques, l'a incontestablement<br />
transcendé, en faisant l' écrivain le plus lu et par un lectorat<br />
largement ouvert. Mais son succes permet de revenir sur la lecture<br />
«idéologique» et téléologique de Costa, pour qui le roman brésilien<br />
- à I' image du français - devrait passer du pur phénoménisme de<br />
Macedo ou de Almei<strong>da</strong>, du grossier sensualisme de Azevedo (et<br />
sans doute aurait-il pensé ainsi de Amado), au «grand» roman<br />
idéologique de Aranha. On a à juste titre soutenu que la matrice<br />
du roman brésilien du XIXe siecle ne se trouve pas <strong>da</strong>ns le roman<br />
européen du XIXe siecle, mais <strong>da</strong>ns celui du XVIIle siecle chez<br />
Steme ou Diderot, et, au-delà, chez Cervantes ou Rabelais, comme<br />
le dit Milan Kundera. D'ou la modemité, aujourd'hui reconnue,<br />
de Macedo ou de Manuel Antonio de Almei<strong>da</strong>.<br />
Il faudra attendre, <strong>da</strong>ns la lecture et la réception de la<br />
littérature brésilienne en France, les travaux de Roger Bastide apres<br />
la Seconde guerre, pour qu'un changement de paradigme, décisif,<br />
se produise et que la littérature brésilienne soit reconnue <strong>da</strong>ns son<br />
altérité et Machado <strong>da</strong>ns sa radicale et universelle différence. Mais<br />
le modemisme brésilien, la littérature du Sud, reste encore<br />
largement étrangere au lectorat français. La «dépen<strong>da</strong>nce» parait<br />
jouer en sa défaveur. «Simple écho du vieux monde» Le saut<br />
qualitatif du modemisme brésilien par rapport aux avant-gardes<br />
européennes échappe encore à nos ethnocentrismes.<br />
L'unité de la littérature brésilienne est faite de tension entre<br />
deux pôles, le cosmopolitisme et le localisme pour reprendre<br />
I' opposition de Antonio Candido. Littérature à double registre,<br />
fatalité de I'héritage colonial - entre Mémoire européenne et<br />
Fon<strong>da</strong>tion américaine, entre tentation centrifuge et vocation<br />
centripete, entre Machado de Assis, écrivain de stature<br />
intemationale à la mesure d'un Flaubert, et Euclides <strong>da</strong> Cunha,<br />
I' auteur de l' épopée nationale des Sertões, entre Clarice Lispector<br />
qui n'est pas indigne de V. Woolf et Jorge Amado, le chantre de<br />
Bahia. S'il fallait réduire tres vite l'horizon d'attente du lecteur
~ fatériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France<br />
135<br />
• Voir mon article
136 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, 0.9, 2006<br />
Cendrars n' avait que sarcasmes pour ces modernistes de São Paulo<br />
qui I' avaient accueilli si généreusement, assurant qu' il ne resterait<br />
d' eux que « quelques romans illisibles et une pincée de plaquettes<br />
rares », leur préférant Bahia et Pernambuco, «les deux mamelles<br />
des Belles Lettres et des Arts Brésiliens [ ... ] qui ont mis le Brésil<br />
<strong>da</strong>ns le grand courant de la littérature mondiale à côté des USA»<br />
(préface à I'Enfant de la plantation de Jose Lins do Rego, repris<br />
<strong>da</strong>ns Trop c' est trop). II y aurait à dire et à redire sur les propos et<br />
sur la position de Cendrars <strong>da</strong>ns le champ littéraire français d' alors.<br />
II y a un double malentendu, de Cendrars, Robinson Suisse<br />
s'ensauvageant <strong>da</strong>ns le Brésil «archa'ique» et fuyant les milieux<br />
littéraires (à la maniere de Jean Jacques) et des modernistes tentant<br />
de fonder une tradition nationale que «le pirate du Lac Léman»,<br />
«pourri de littérature» dit Mario de Andrade pourrait compromettre<br />
<strong>da</strong>ns son utopie de la «tabula rasa ».7 II y a un double malentendu<br />
entre Cendrars et les Modernistes à propos de deux Brésils - des<br />
deux Brésils. Mais les choses n' ont guere changé, même apres<br />
qu' on a traduit, édité, étudié, le Modernisme 8 • Et le succes<br />
d' Amado perdure.<br />
Le Brésil est bien la contre-figure du modele français. Face<br />
à une littérature du soupçon, s' épuisant en psychologisme,<br />
minimalisme, néoclassicisme, formalisme, narcissisme<br />
autofictionnel, le roman nordestin affirme sa confiance <strong>da</strong>ns le récit,<br />
son abandon au Iyrisme, sa force tellurique, sa dimension épique:<br />
I' émergence de ce que Milan Kundera appelle «le roman du Sud<br />
et sa généalogie : Rabelais, l' oralité, le créole, I' esthétique de<br />
I' invraisemblance, Rushdie, Naipaul, Garcia Marquez,<br />
Chamoiseau» .<br />
Face à I'utopie de lamodernité à I'heure de la mondialisation<br />
arasante, le roman du Sud - y compris Faulkner et Glissantoppose,<br />
selon I'expression d'Homi Bhabha (O local <strong>da</strong> cultura)<br />
«des cultures de la contre modernité, résistant à leurs oppressives<br />
technologies assimilationistes». Le Brésil est le pays de I' «homem<br />
cordial» contre I' individu sérialisé.<br />
Mais I' altérité brésilienne ne se réduit pas à la nature tropicale,<br />
la vitalité du Noir ou I'énigme de l'Indien. Le mystere des origines<br />
et la fascination de la transe exportent beaucoup de stéréotypes et<br />
de clichés alimentant en retour et multipliant les fantasmes français<br />
et leurs écrits sur le Brésil, et pas seulement chez Cendrars.<br />
7 l' ai esquissé ces poiots in<br />
«Ceodrars Homme Nouveau,<br />
Nouveau Monde», in Europe,<br />
spéciaI Ceodrars, o o 566, juin<br />
1976 ; <strong>da</strong>ns «B1aise Cendrars et<br />
I' avant -garde» in Blaise Cendrars<br />
20 ans apres, Klincksieck, 1983,<br />
et <strong>da</strong>ns
Matériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France<br />
137<br />
Cette réception - et cette veine française - désesperent le<br />
Brésil du Sud face à la persistante méconnaissance de leur avantgarde<br />
littéraire et de leurs grands écrivains classiques. Littérature<br />
exotique d' exportation: putes aguichantes et voyous au grand creur.<br />
Mais la France a exporté aussi nos paysans madrés de Maupassant<br />
et les Marseillais de Pagnol. Et on a plus lu à l' étranger Hervé<br />
Bazin que Julien Gracq.<br />
11 faudrait ici distinguer entre auteurs lus - et trop «lisibles»<br />
(Gide de Amado) et auteurs reconnus <strong>da</strong>ns le canon littéraire à<br />
I' étranger - cas des hispano-américains Borges, Cortázar, Paz.<br />
Machado de Assis est une référence pour Susan Sontag ou Carlos<br />
Fuentes. Son reuvre, relue à la lumiere, non plus de Anatole France,<br />
mais de Steme, voire de Dostolevski ou de Pirandello, est un peu<br />
mieux reconnue d'une élite restreinte et mérite de I' être <strong>da</strong>vantage.<br />
Le seul auteur brésilien qui a trouvé un certain statut littéraire<br />
est Clarice Lispector, à travers Helene Cixous; le relais se fait à<br />
travers la littérature féministe qu'elle n'a jamais prétendu<br />
représenter. Elle est une référence <strong>da</strong>ns un certain systeme littéraire<br />
français, mais en marge, que sa qualité littéraire transcende<br />
infiniment.<br />
Entre le grand lectorat - Amado - et les instances de<br />
légitimation - Clarice - qu'y a-t-il Des noms, souvent éphémeres.<br />
Le modemisme pauliste n'a pas trouvé son public, même restreint<br />
à une élite et Graciliano Ramos pas beaucoup plus. La prégnance<br />
en France du roman nordestin et amazonien est corroborée par les<br />
tropismes des chercheurs français. Lévi-Strauss, RogerBastide<br />
enseignant à São Paulo, mais travaillant sur 1'lndien et le Noir et<br />
ignorant les travaux de leurs collegues du Sud (Sergio Buarque de<br />
Holan<strong>da</strong> ne sera traduit - Racines du Brésil- que tres tardivement<br />
alors que Gilberto Freyre est traduit et fêté à Cerisy-Ia-Salle). Les<br />
manifestations de cette Année du Brésil- de I' ouverture indienne<br />
au Grand Palais aux musiques nordestines et aux expositions sur<br />
l' Amazonie en sont encore la preuve.<br />
La réception d 'une littérature étrangere donne toujours lieu<br />
à des malentendus : la place de Poe en France, celle de Laforgue,<br />
de Corbiere ou de Supervielle en Angleterre le montre assez. La<br />
différence brésilienne est particulierement manifeste s' agissant de<br />
la poésie et sa réception spécifique. Vn lectorat partout réduit et<br />
<strong>da</strong>vantage en traduction ; la nécessité de traducteurs inspirés
138 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
maitrisant la langue source et la langue cible ; des maisons d' édition<br />
dévouées. Mais il faut dire encore que la trajectoire de la poésie<br />
brésilienne au XXe siêcle est irréductible, elle ne recoupe pas les<br />
grands courants poétiques internationaux, le Surréalisme par<br />
exemple, à l'écart des grandes ten<strong>da</strong>nces, y compris su<strong>da</strong>méricaines.<br />
Le Modernisme, <strong>da</strong>ns sa radicalité, et le concrétisme,<br />
derniêre utopie de I' avant -garde, ont pu retenir I' intérêt de quelques<br />
revues, de quelques maisons d' édition et paraitre même parfois<br />
confisquer toute la parole poétique brésilienne <strong>da</strong>ns des chapelles<br />
ou des ghettos de revues. Quelques grands ont été traduits (Carlos<br />
Drummond de Andrade, Ferreira Gullar). Mais on ne trouve aucun<br />
recueil de Bandeira, de João Cabral de Melo Neto. On peut se<br />
féliciter de voir traduit quelques figures féminines exemplaires:<br />
Ana Cristina Cesar, Hil<strong>da</strong> Hilst, etc. Là encore, c' est la singularité<br />
de cette poésie, à I' écart des grandes ten<strong>da</strong>nces, qui peut expliquer<br />
leur isolement : un certain schématisme formeI, une réticence<br />
certaine aux images, un ostinato rigore <strong>da</strong>ns la philosophie de la<br />
composition, une radicalité extrême <strong>da</strong>ns I' expérimentation, aucun<br />
de ces grands poêtes qui aient connu la consécration d'un Neru<strong>da</strong>,<br />
d'un Borges, d'un Paz, d'un LezamaLima. De grands poêtes exilés<br />
et ensevelis <strong>da</strong>ns leur insularité.<br />
La facile séduction brésilienne et son exotisme réducteur<br />
cachent la difficile altérité brésilienne et son opacité. Le vertige de<br />
I' altérité peut se tradu ire <strong>da</strong>ns les épiphanies de Clarice Lispector<br />
mais plus difficilement <strong>da</strong>ns I' ethos amazonien ou I' aridité du sertão.<br />
- qui est une image de I'âme - chez Euclides <strong>da</strong> Cunha ou<br />
Guimaraes Rosa: le paradis vert est surtout un enfer 9 • La culture<br />
orale, qui est la matrice de cette littérature, donne sa séduction<br />
aux romans de J. Amado, et sa difficile appréhension à ceux de G.<br />
Rosa.<br />
Pour Hegel, l'Europe désormais, c'était la Prose. L'Épopée,<br />
la Poésie, le Mythe étaient le terrain et le terreau du Nouveau<br />
Monde, pays ou I'on rencontre le Diable, les Esprits, la Mort, le<br />
Double, le Merveilleux médiéval ; pour la théorie post-coloniale,<br />
les sociétés périphériques sont la mémoire et le laboratoire des<br />
contre-cultures. Ceci se vérifie au Brésil plus qu'ailleurs. D'ou<br />
peut-être la difficulté d'appréhender ces lectures sinon à travers<br />
stéréotypes et clichés Mais est-ce une bonne approche que ce<br />
réductionnisme socio-critique ou idéologique <br />
9 La veine nordestine a retenu<br />
I' édition française. L' autre grande<br />
fascination est I' Amazonie. Mais<br />
le grand livre amazonien pour le<br />
lecteur français est F orêt vierge,<br />
l'reuvre du portugais Ferreira de<br />
Castro
Matériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France<br />
l39<br />
10 On trouvera un état de la<br />
question <strong>da</strong>ns le n° 919/1920<br />
d' Europe, Littérature du Brési~<br />
nov.-déc. 2005, organisation<br />
Michel RIAUDELet P. RIVAS<br />
et <strong>da</strong>ns France Brésil, ADPF,<br />
2005, sous la direction de M.<br />
RIAUDEL, qui releve I'état<br />
présent des traductions<br />
disponibles actuellernent <strong>da</strong>ns la<br />
librairie française. On trouvera<br />
également<strong>da</strong>ns cetouvrage,sous<br />
le titre «La réception de la<br />
littérature brésilienne en France»,<br />
une prerniêre ébauche de ce texte<br />
sur les Matériaux ici repris,<br />
élargi et augmenté.<br />
Cetlcprésenlaliondel'é1mpresem<br />
de la littérature brésilienne en<br />
France, sommaire, rapide,<br />
panoramique, certainement<br />
arbitraire, s' adresse à des lecteurs<br />
français non avertis. On peut la<br />
prendre, de même que ces<br />
Matériaux, comrne une vision<br />
française qui, à ce titre, avec ses<br />
limites et ses limitations peut<br />
intéresserle~brésilien<br />
comrne docwnent.<br />
En conclusion, faisons le point sur I' état présent de cette<br />
réception de la jeune littérature lO •<br />
On peut la résumer par ces deux pôles constitutifs dês I' origine,<br />
entre tradition naturaliste et régionale et cosmopolitisme<br />
international. La lignée néo-naturaliste de la «Génération de 90»<br />
s'établit pour nous <strong>da</strong>ns la tradition fon<strong>da</strong>trice de notre imaginaire<br />
comme terre de la sauvagerie, de la violence, de la cruauté. Les<br />
Nouveaux Cannibales sont les jeunes des banlieues sensibles, «les<br />
sauvageons» de la périphérie. Ce sont les romans de lafavela: ainsi<br />
de la Cité de Dieu de Paulo Lins, de Tant et tant de chevaux de Luiz<br />
Ruffato ou des romans de Patricia Melo. Trafiquants de drogue,<br />
psychopathes, marginaux, romans de la violence urbaine, dont le<br />
pêre est Rubem Fonseca. Littérature à la lisiêre du document, de<br />
l'image, <strong>da</strong>ns un néo-naturalisme exacerbé, un hyper réalisme brutal,<br />
alimenté par et alimentant les media, telenovelas ou films -<br />
assurant ainsi continuité et rupture <strong>da</strong>ns notre horizon d' attente et<br />
nos premieres images : la Terre du Mal, de I' exces, de la démesure.<br />
L' image édénique, la nostalgie des origines, notre rêverie<br />
récurrente, primitiviste et amazonienne s'infléchit en nostalgie non<br />
plus de I' espace, mais du temps et de la mémoire chez Milton<br />
Hatoum, auteur amazonien mais habité de sa mémoire libanaise et<br />
orientale, tissant de songe une élégie mélancolique. Cette veine<br />
orientale (Raduan Nassar) voire orientaliste (Alberto Mussa)<br />
dessine, <strong>da</strong>ns une littérature généralement expressionniste, un filon<br />
qui déréalise le réel. Ce travail de déréalisation est au centre de<br />
romans de Chico Buarque (Bu<strong>da</strong>pest) et de Bernardo Carvalho,<br />
plus maniériste et post modeme (Mongolia, Neuf nuits) traduisant<br />
l'incertitude, la perplexité, l'instabilité d'un Brésil déraciné de son<br />
terreau rural et perdu <strong>da</strong>ns ce Nouveau Brésil.<br />
Vision dilacérée de ces deux Brésils, entre enfer et paradis,<br />
qui s'inscrit <strong>da</strong>ns la lignée d'un imaginaire brésilien de Cendrars à<br />
Orsenna, de Peret à Rufin, voire <strong>da</strong>ns l'émergence d'un roman noir<br />
français chez Bernard Mathieu ou Mathieu Térence, entre euphorie<br />
et dysphorie, enchantement et désenchantement du monde. Le succes<br />
intemational de Paulo Coelho, <strong>da</strong>ns son formatage de best-sellers<br />
déterritorialisé, laisse peut-être encore sourdre un peu de cette<br />
prégnance d'une quête et d'une nostalgie d'un autre monde.
141<br />
I A pesquisa de que resulta este<br />
texto só foi possível graças a uma<br />
tempora<strong>da</strong> de estudos no Centre<br />
de Recherche sur le Brésil<br />
Contemporain <strong>da</strong> École des<br />
Hautes Études en Science<br />
Sociales, Paris, onde realizei, no<br />
priIreim seJreStre do ano de 2005,<br />
um estágio pós-doutoral. Para<br />
tanto, contei com a orientação de<br />
Jean Hébrard e obtive bolsa de<br />
estudos <strong>da</strong> CAPES.<br />
Lições de viagens, devoção religiosa e<br />
sobrevivência nos trópicos: o Brasil no<br />
romance juvenil francês oitocentista 1<br />
República mundial <strong>da</strong>s letras juvenis<br />
Andréa Borges Leão<br />
(UFC)<br />
2 Sobre os <strong>da</strong>dos biográficos de<br />
Amelie Schoppe, consultar<br />
Brinker-Gabler (1986). Maria<br />
Teresa Cortez (2003) apresenta<br />
um estudo sobre a representação<br />
do Brasil na novela alemã Die<br />
Auswanderer Nach Brasilien<br />
Oder Die Hütte Am<br />
Gigitonhonha, de Amelie<br />
Schoppe, no qual oferece<br />
indicações sobre o percurso<br />
intelectual <strong>da</strong> autora<br />
Amelie Weise Schoppe nasceu em Fehmarn, uma ilha ao<br />
norte <strong>da</strong> Alemanha, no dia 09 de outubro de 1791. Com o pai, o<br />
Dr. Friedrich, foi inicia<strong>da</strong> na arte de curar, e, após a morte do<br />
"médico <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de", em 1798, mudou-se para Hamburg. Lá, instalou-se<br />
na casa de um tio acabando por abrir uma escola para<br />
meninas, em 1823, com uma educadora chama<strong>da</strong> Fanny Tarnow.<br />
Antes disso, Amelie cumpriu o destino <strong>da</strong>s moças de seu tempo:<br />
casou-se com um jurista, teve três filhos e ficou viúva. Seu casamento<br />
não lhe trouxe muita felici<strong>da</strong>de. Após a morte do marido,<br />
passou a escrever livros com o objetivo de sustentar a família.<br />
Publicou, então, obras com lições de sabedoria e moral a fim de<br />
guiar as crianças na vi<strong>da</strong> prática, além de colaborar para muitas<br />
<strong>revista</strong>s e editar jornais de mo<strong>da</strong> na Alemanha e em Paris, dentre<br />
os quais se destaca a Revista Para Jovens Iduna. Suas obras somam<br />
mais de 200 títulos e, além do francês, algumas foram<br />
traduzi<strong>da</strong>s para o inglês, o holandês e o tcheco. Em 1851, a escritora<br />
emigrou para os Estados Unidos onde faleceu no dia 25<br />
de setembro de 1858 2 •<br />
Julie Nicolase Delafaye-Bréhier nasceu na ci<strong>da</strong>de francesa<br />
de Nantes, então capital <strong>da</strong> Bretanha, no dia 15 de março de 1785.<br />
Seus pais eram um casal de burgueses comerciantes, Jean Julien<br />
Marie Bréhier e Marie Jeanne Pichon. Em 1793, Julie trocou a<br />
Bretanha por Saintonge, a região de sua mãe, abandonando o catolicismo<br />
e tornando-se protestante. Cresceu educa<strong>da</strong> pelo tio,<br />
Auguste, um cura constitucional e poeta a quem a escritora dedi-
142 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
cou seu livro L'[ntérieur d'une Famille ou Le Récit du Voyageur.<br />
Com o pai, não menos afetuoso e severo que o tio, Julie definiu-se<br />
escritora. No texto <strong>da</strong> dedicatória - À la mémoire de mon pere -<br />
do livro Le Robinsonfrançais, publicado logo após a morte de<br />
Bréhier, a autora traça o perfil de uma figura austera a qual nunca<br />
teve coragem de glorificar em vi<strong>da</strong>. A conduta do pai lhe servira<br />
para a composição dos personagens. Em 1812, casou-se com o<br />
médico Gratien-Claude Delafaye. Julie cultivou uma longa relação<br />
de amizade literária com seu primeiro editor, o livreiro especializado<br />
em coleções juvenis Alexis Eymery, dedicando-lhe o livro<br />
Le petit voyageur en Gréce ou lettres du jeune Evariste et de<br />
safamille. Julie Nicolase, ou Mme. Delafaye-Bréhier, consagrouse<br />
escritora de sucesso de livros juvenis classificados como romance<br />
moral, gênero bastante popular. Faleceu em 1850, após<br />
concluir sua maior obra - o romance histórico Histoire de ducs de<br />
Bretagne: raconté par um pere ases enfants, publicado pela casa<br />
Lehuby, herdeira dos Eymery, em 1851 3 •<br />
O que há em comum entre as trajetórias individuais dessas<br />
duas mulheres de letras Se partirmos de suas origens sociais,<br />
linhagem materna e paterna, e de suas estratégias de aliança no<br />
universo letrado, suas inserções na República <strong>da</strong>s Letras, veremos<br />
duas figuras femininas típicas do período: familiarmente bem<br />
dota<strong>da</strong>s por capitais escolar e cultural, os quais convertem em<br />
educação e escrita. Essas mulheres constituem-se pólo dominado<br />
no mundo <strong>da</strong> produção intelectual. Às vezes, de tão discretos,<br />
seus trabalhos são, por longos anos, invisíveis, o que, no<br />
entanto, não as impede de cultivar a singulari<strong>da</strong>de do próprio<br />
nome, reivindicando publicamente suas autorias. Os exercícios<br />
de cópia, o gosto pelas cartas e pelas narrativas dialoga<strong>da</strong>s que<br />
orientam os romances epistolares, a prática dos deveres de estilo,<br />
o cui<strong>da</strong>do com os usos <strong>da</strong>s palavras, to<strong>da</strong>s as experiências <strong>da</strong><br />
intimi<strong>da</strong>de, levam as duas escritoras à entra<strong>da</strong> num lento percurso<br />
de afirmação <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong>de, que tem corno conseqüência<br />
imediata o investimento na carreira literária através <strong>da</strong> escrita de<br />
livros para ajuventude. Não por acaso as duas caprichavam nos<br />
prefácios e dedicatórias que antecediam os textos de seus livros,<br />
segre<strong>da</strong>ndo detalhes de suas vi<strong>da</strong>s domésticas, desenhando-se<br />
como criadoras singulares e, claro, preparando elas mesmas a<br />
recepção de seus romances.<br />
3 Para os <strong>da</strong>dos biográficos de<br />
Julie Nico1ase Delafaye-Bréhier,<br />
consultar D' Amat e Prevost<br />
(1982). E os seguintes documentos:<br />
Catalogue Général<br />
des Livres Imprimés de la<br />
Bibliotheque Nationale (s/d);<br />
Catalogue Général de la<br />
Librairie Française Pen<strong>da</strong>nt 25<br />
ans (1840-1815).
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista<br />
143<br />
Amelie Weise Schoppe e Julie Nicolase Delafaye-Bréhier<br />
têm em comum um élan criador e a paixão pela educação moral.<br />
Partilham um universo de temas, preocupações e referências comuns<br />
que define suas autorias no gênero <strong>da</strong> literatura de formação<br />
pe<strong>da</strong>gógica. Como mulheres de letras cumprem seus papéis<br />
no longo processo de interiorização <strong>da</strong>s obrigações sociais através<br />
dos dispositivos de imposições e apropriações <strong>da</strong>s práticas de<br />
leitura. Afinal, o leitor que aprende a lição, domina a emoção.<br />
Amelie e Julie Nicolase ocupam lugar de honra nas experiências<br />
que orientam o processo de civilização (Elias, 1994), e, a uma<br />
certa altura de suas carreiras, chamam a atenção dos livreiroseditores.<br />
Daí a conveniência em publicá-las e a aposta feliz no<br />
sucesso comercial de suas obras.<br />
Uma outra disposição bem mais desafiadora revela o traço<br />
de união entre as duas: uma rica imaginação literária, misto de<br />
sensibili<strong>da</strong>de e razão, que as conduz ao exotismo tropical. Amelie<br />
e Julie Nicolase elegem o Brasil e o sistema de relações coloniais<br />
como tema de um de seus romances juvenis. As duas escritoras<br />
parecem contar com as mesmas fontes de inspiração e trabalho,<br />
que orientam a trama dos enredos e a descrição de personagens<br />
índios e negros americanos, viajantes e emigrantes europeus, tão<br />
próximos e distantes. Lendo seus livros, chega-se à conclusão de<br />
que as duas <strong>da</strong>mas estavam muito bem informa<strong>da</strong>s sobre a história<br />
do Brasil e de que seus conhecimentos não eram apenas documentais<br />
e livrescos.<br />
De início, suas obras destacam-se pela excelente aceitação<br />
obti<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles que' referen<strong>da</strong>m as leituras na Europa do século<br />
XIX: os livreiros-editores e o público leitor. No ano de 1828, é<br />
publicado, em Berlim, um romance de Amelie Schoppe intitulado<br />
Os Emigrantes no Brasil ou Cabana de Gigitonhonha. Ilusão, sabedoria<br />
e moral para viver, que conta a história <strong>da</strong> vin<strong>da</strong> de uma<br />
família de emigrantes alemães para o Brasil. Esse livro conhece uma<br />
longa vi<strong>da</strong> na França. Inicialmente é traduzido livremente do alemão<br />
por Mlle. R. Du Puget para a Librairie de L'Association pour<br />
la Propagation et la Publication de Bons Livres, tal era a recomen<strong>da</strong>ção<br />
de suas lições de sabedoria e moral para viver.<br />
Em 1839, a narrativa alemã dos Emigrantes no Brasil inicia<br />
sua longa carreira de imitações francesas (a<strong>da</strong>ptações livres do<br />
texto original) feitas por Louis Friedel para a Biblioteca <strong>da</strong> Juven-
144 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
tude Cristã dos impressores-livreiros católicos Alfred Mame, de<br />
Tours. A obra é devi<strong>da</strong>mente aprova<strong>da</strong> pelo Arcebispo <strong>da</strong>quela<br />
província. Em 1842, alcança a 3° edição, em 1853, está na 7°, e<br />
em 1870 comemora uma 9° edição de puro sucesso pe<strong>da</strong>gógico e<br />
comercial. A partir de 1851, é traduzi<strong>da</strong> do alemão também em<br />
sucessivas edições por F-C. Gerard, para a livraria-editora<br />
Mégard, de Rouen. Na nova casa, compõe a Biblioteca Moral <strong>da</strong><br />
Juventude e ganha, em 1862, o título de Robinson Brasileiro. Suas<br />
tiragens variam entre 3.000 a 4.000 exemplares, garantindo sucesso<br />
de ven<strong>da</strong>s para os Mégard até 1866. A partir <strong>da</strong>í, a obra é<br />
publica<strong>da</strong> até o ano de 1918 pela casa editora Eugene Ar<strong>da</strong>nt, de<br />
Limoge, não mais como tradução, e sim como imitação de F. C.<br />
Gerard, indicando a transação de compra e ven<strong>da</strong> entre os livreiros.<br />
O romance Os Portugueses <strong>da</strong> América - lembranças históricas<br />
<strong>da</strong> guerra do Brasil em 1635 (contendo um quadro interessante<br />
dos costumes e usos <strong>da</strong>s tribos selvagens, e detalhes instrutivos<br />
sobre a situação dos colonos nessa parte do Novo Mundo),<br />
de Julie Nicolase Delafaye-Bréhier, tem sua trama ambienta<strong>da</strong><br />
durante as batalhas <strong>da</strong> primeira fase <strong>da</strong> ocupação holandesa em<br />
Pernambuco. Obtém aprovação do Arcebispo de Paris no dia 28<br />
de outubro de 1846. Dois meses após, em dezembro, obtém sua<br />
inscrição na Bibliographie de la France - founal Géneral de<br />
L'imprimerie et de la Librairie, para ser definitivamente publicado<br />
pela casa Lehuby, em 1847. Classifica<strong>da</strong> como uma obra destina<strong>da</strong><br />
à juventude, mais precisamente como uma "Americana ao<br />
uso <strong>da</strong> juventude", chega a três tiragens no ano de sua publicação.<br />
A primeira, publica<strong>da</strong> em um volume in-8 ilustrado com 12<br />
litogravuras em duas cores, preto e branco, pelos artistas Auguste<br />
Lemoine, Janet-Lange e Giraud, é vendi<strong>da</strong> aos livreiros a 250 francos<br />
(o exemplar custa 6 francos). A segun<strong>da</strong>, oferece as mesmas<br />
ilustrações, mas baixa de preço, custando 175 francos. Já a terceira,<br />
vem nas cores ouro, vermelho, azul e violeta, num exemplar de<br />
charmosa capa e apresenta nova que<strong>da</strong> de preço: to<strong>da</strong> a tiragem<br />
custa apenas 100 francos.<br />
Este artigo analisa o modo pelo qual os livros Os Emigrantes<br />
no Brasil ou Cabana de Gigitonhonha (na versão francesa de<br />
P-C Girard), e Os Portugueses <strong>da</strong> América colocam o problema<br />
<strong>da</strong> colonização, <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> instrução religiosa e <strong>da</strong> aplicação<br />
mOfal. O ponto de vista adotado é o de uma sociologia
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista<br />
145<br />
histórica <strong>da</strong>s práticas culturais (Chartier, 1990). Associando a categoria<br />
de representação do mundo social aos modos de produção,<br />
difusão e apropriação dos objetos culturais, essa abor<strong>da</strong>gem<br />
privilegia, na análise do trabalho de construção dos significados<br />
<strong>da</strong>s obras, o estudo dos processos a partir dos quais os textos<br />
conhecem suas publici<strong>da</strong>des.<br />
N as histórias imagina<strong>da</strong>s por Amelie e Julie Nicolase, os<br />
povos selvagens adquirem o estatuto de modelos e contra-modelos<br />
postos ao uso dos leitores e de seus pais em to<strong>da</strong>s as etapas<br />
<strong>da</strong> educação moral. A popularização de suas obras, com sucessivas<br />
reedições e imitações por todo o século XIX, produz<br />
gerações de leitores europeus que, na on<strong>da</strong> <strong>da</strong> expansão do comércio<br />
de livraria para a América Latina, acabam encontrando<br />
os leitores de além-mar, como as crianças e os jovens brasileiros.<br />
Isto supõe a existência de um universo cultural comum entre<br />
as duas comuni<strong>da</strong>des de leitura, com os mesmos modos de<br />
recepção <strong>da</strong>s mensagens, os mesmos preconceitos e categorias<br />
de percepção do mundo social <strong>da</strong> América Portuguesa, configurando<br />
uma república mundial <strong>da</strong>s letras juvenis.<br />
Em 1858, mais de dez anos após a primeira edição parisiense,<br />
Os Portugueses <strong>da</strong> América entram para a biblioteca de obras instrutivas<br />
e recreativas do catálogo de ven<strong>da</strong> <strong>da</strong> Livraria de Baptiste<br />
Louis Garnier e passam a ser adquiridos na loja <strong>da</strong> Rua do Ouvidor.<br />
O romance entra no Brasil como obra importa<strong>da</strong>, jamais obtendo<br />
tradução para o português. Os Emigrantes no Brasil igualmente<br />
não foram traduzidos para o português e muito menos entraram<br />
para as coleções de livros importados <strong>da</strong> livraria francesa.<br />
Lições de viagens: o romance moral sobre o Brasil<br />
No século XIX, a formalização do Brasil como nação não é<br />
recurso exclusivo <strong>da</strong> historiografia ou <strong>da</strong>s narrativas ficcionais de<br />
escritores brasileiros. Antônio Candido (1959) nos chama a atenção<br />
para a importância do pensamento crítico do francês Ferdinand<br />
Denis, que, pioneiramente, no livro Résumé de I 'histoire littéraire<br />
du Portugal suivi du résumé de l'histoire littéraire du Brésil (1826),<br />
reconhece e confere tratamento literário aos temas nativistas, à<br />
natureza e ao índio brasileiro. A consciência de autonomia e independência<br />
<strong>da</strong> literatura brasileira em relação a Portugal formula<strong>da</strong>
146 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
por Denis, que viveu alguns anos no Brasil, acaba por contagiar<br />
um grupo de jovens escritores que, entre os anos de 1832 e 1838,<br />
morava em Paris. Dentre eles, estava José Gonçalves de Magalhães<br />
e Manuel de Araújo Porto-Alegre. Em 1836, Magalhães<br />
publica um ensaio sobre a história <strong>da</strong> literatura brasileira na <strong>revista</strong><br />
do grupo denomina<strong>da</strong> Niterói, no qual traça seu programa de<br />
renovação estética fincando os marcos do início francês do romantismo<br />
brasileiro.<br />
Ao lado dos homens de letras e de ciências que se formavam<br />
em viagens pe<strong>da</strong>gógicas a Paris, os livreiros estrangeiros estabelecidos<br />
no Rio de Janeiro são personagens decisivos para a<br />
criação do mito nacional. O projeto intelectual que orienta suas<br />
parti<strong>da</strong>s para a América Latina e, uma vez firmado o negócio <strong>da</strong><br />
livraria, as trocas internacionais possibilita<strong>da</strong>s pela circulação dos<br />
textos, a importação e tradução de obras clássicas, sua distribuição<br />
em função de categorias específicas - como as i<strong>da</strong>des - para<br />
posterior organização em coleções temáticas - como as Bibliotecas<br />
Juvenis -, assinalam práticas que vão muito além <strong>da</strong> pura e<br />
simples relação comercial com os clientes ou <strong>da</strong> imposição de<br />
modelos culturais.<br />
A categoria de "brasileiro", com a correlata invenção <strong>da</strong>s<br />
tradições nacionais, não se define apenas pelo trabalho estilístico<br />
<strong>da</strong> escrita. A rede de edição sobre a América e, como parte dela,<br />
sobre o Brasil, forma<strong>da</strong> em países como a França e a Alemanha,<br />
também contribui para a invenção nacional. Essa produção toma<br />
por base tanto registros descritivos, dos quais os livros de viagens<br />
e os compêndios de história natural são bons exemplos, como<br />
romances destinados ao público juvenil, os quais elegem a vi<strong>da</strong> e<br />
a natureza tropical - as florestas com histórias rechea<strong>da</strong>s de<br />
heroísmos e barbáries dos índios, a escravidão negra e a vin<strong>da</strong> dos<br />
emigrantes -, como temas e guias para desenvolver o senso moral<br />
dos jovens leitores. A prática <strong>da</strong> ven<strong>da</strong> de livros é também a disseminação<br />
de idéias e modelos de escrita.<br />
A voga do exotismo tropical na produção literária para a<br />
juventude mostra que a conjuntura que antecede a especialização<br />
e industrialização do mercado editorial francês é marca<strong>da</strong><br />
por um sistema estético produtor de singulari<strong>da</strong>des, com amplo<br />
espaço para os países americanos, e para o Brasil em particular,<br />
ao mesmo tempo em que se desenvolvem as apostas do comér-
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista<br />
147<br />
cio de livraria na expansão internacional. Enquanto a livraria<br />
francesa se instala no Brasil, a partir de meados do século XIX,<br />
ou mais exatamente, enquanto os livreiros Garnier desenvolvem<br />
o livro na Corte do Rio de Janeiro, o Brasil é produzido literariamente<br />
na França.<br />
No Rio de Janeiro oitol;entista, já podemos vislumbrar um<br />
princípio de diferenciação do incipiente público leitor. Haja vista a<br />
varie<strong>da</strong>de temática <strong>da</strong>s coleções classifica<strong>da</strong>s nos catálogos, por<br />
exemplo, de ven<strong>da</strong> <strong>da</strong> Livraria de Baptiste-Louis Garnier para os<br />
anos de 1857-1858, que vão desde as obras importa<strong>da</strong>s de recreação<br />
juvenil, as novelas e romances ilustrados franceses, os livros<br />
de artes militares, de história natural e religião, dos dicionários e<br />
compêndios escolares em várias línguas, até as obras de legislação,<br />
comércio ou economia política. Esses livros, saídos dos prelos<br />
franceses e belgas, podiam ser lidos ou tomados de empréstimo<br />
nos clubes e gabinetes de leituras de obras estrangeiras. Alguns<br />
anos antes, havia um, de proprie<strong>da</strong>de do francês Cremieux,<br />
situado na Rua <strong>da</strong> Alfândega, que tinha como sócio e freqüentador<br />
assíduo o jovem José de Alencar. Foi lá que o futuro escritor conheceu<br />
os romances "marítimos" de Walter Scott e Cooper, assim<br />
como os clássicos de Alexandre Dumas e Balzac, Arlincourt,<br />
Frederico Soulié e Eugene Sue (Alencar 1998: 54-55).<br />
Ademais, sabemos, por intermédio de Márcia Abreu (2003:<br />
118-131), que de há muito os cariocas apreciavam as leituras de<br />
livros importados. Com a abertura dos portos, levas de estrangeiros,<br />
adultos e crianças, passaram a residir no Brasil e, certamente,<br />
a se constituir público leitor para os clássicos ingleses, franceses e<br />
espanhóis. Alguns jovens conheciam autores como Berquin,<br />
Fénelon ou Mme. Leprince de Beaumont. Mesmo com a fiscalização<br />
exerci<strong>da</strong> pelo Desembargo do Passo, entre os anos de 1808 e<br />
1826, aponta ain<strong>da</strong> Abreu (2003: 124), era expressiva a presença<br />
de livros juvenis importados no Rio de Janeiro. Exemplo do título<br />
Les escoliers en Vacance, de Mme. Delafaye-Bréhier, que teve<br />
autoriza<strong>da</strong> sua entra<strong>da</strong> e permanência no Brasil. Destaca-se, no<br />
período, a presença <strong>da</strong>s governantas estrangeiras nos espaços<br />
europeizados <strong>da</strong>s famílias - as senhoras professoras. Essas <strong>da</strong>mas<br />
tinham como função a educação sentimental de crianças e jovens<br />
(Leite, 1997). Elas modelavam, assim, de acordo com suas referências<br />
culturais e lingüísticas, o gosto de seus discípulos.
148 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Por isso mesmo, Baptiste-Louis Garnier mantém, num de<br />
seus catálogos (1857-1858), quase duzentos títulos em francês<br />
classificados como lembranças, crônicas, anedotas, geografias,<br />
viagens e descrições. Em muitos deles, o Brasil figura como tema.<br />
A literatura de viagem atrai a curiosi<strong>da</strong>de pelo pitoresco <strong>da</strong> aventura,<br />
realçando a coragem dos marinheiros diante <strong>da</strong>s intempéries<br />
na travessia, narrando histórias de naufrágios e fazendo descrições<br />
romancea<strong>da</strong>s dos modos de vi<strong>da</strong> e crenças de povos desconhecidos,<br />
quase sempre os índios americanos. Na França, as bibliotecas<br />
de educação moral e formação religiosa passam a incluir<br />
títulos que se destacam pelas interpretações <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des ditas<br />
selvagens (indígenas e africanas) oferecendo uma forma de<br />
instrução que não representa perigo para a fé porque fun<strong>da</strong><strong>da</strong> nos<br />
ritos <strong>da</strong> conversão, do batismo e do matrimônio.<br />
Além dos romances, as descrições metódicas <strong>da</strong>s cinco partes<br />
do mundo, Europa, Ásia, África, América e Oceania, os mapas,<br />
tratados de geografia, pequenos fragmentos do universo, estimulam<br />
o interesse pela ciência natural, pelas visitas aos museus<br />
e o convite aos gabinetes. Mas, aos olhos desembaraçados de uma<br />
criança, as serpentes, monstros e festins antropofágicos devem<br />
em muito mais aguçar os medos e satisfazer a curiosi<strong>da</strong>de. Nesse<br />
momento, o descobridor Cristóvão Colombo entra para o panteão<br />
dos heróis <strong>da</strong> juventude e sua história passa a constar nas biografias<br />
de crianças célebres, servindo como modelo cultural. Tanto é<br />
que o famoso escritor Julio Veme acaba romanceando sua biografia.<br />
Com relação aos escritos sobre o Novo Mundo, é principalmente<br />
sobre a vi<strong>da</strong> do índio brasileiro que recai o novo projeto de<br />
aplicação <strong>da</strong>s regras morais. Seus costumes, a alegria emana<strong>da</strong><br />
dos cantos, <strong>da</strong>nças e festins, as caça<strong>da</strong>s e len<strong>da</strong>s apaixona<strong>da</strong>s sobres<br />
suas origens, tomam-se motivos para reflexões sobre os excessos<br />
provocados pela barbárie, como a condenável prática <strong>da</strong><br />
antropofagia, que até os podia excluir dos domínios <strong>da</strong> civili<strong>da</strong>de,<br />
mas, ao contrário do esperado, os elege como preferidos dos leitores.<br />
A Europa testemunha o nascimento de uma paixão romântica<br />
e juvenil pelo exotismo tropical.<br />
Esses temas constam nas coleções de livros juvenis <strong>da</strong> livraria<br />
parisiense dos irmãos Garnier e, uma vez firmado o gosto do<br />
público francês pela literatura de viagem, são exportados para o<br />
Brasil. Para os leitores europeus, representam o conhecimento <strong>da</strong>
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista<br />
149<br />
4 Não se pode desconhecer que o<br />
século XIX foi marcado pela<br />
leitura como competência<br />
universal dos franceses e que a<br />
extensão <strong>da</strong> familiari<strong>da</strong>de com o<br />
objetos escrito, impresso e<br />
manuscrito, só tenha sido possível<br />
tardiamente aos brasileiros. Mas,<br />
estu<strong>da</strong>ndo os catálogos de ven<strong>da</strong><br />
parna juventude <strong>da</strong> livraria carioca<br />
Garnier, tive a dimensão do<br />
leitorado juvenil diretamente<br />
educado em francês, que era<br />
numeroso o suficiente para<br />
justificar a oferta dos quase<br />
duzentos títulos de livros<br />
importados. A respeito <strong>da</strong> leitura<br />
no século XIX naFrnnça, consultei<br />
Crubellier (1990) e Hébrard<br />
(\990).<br />
diferença, mas para os leitores brasileiros, as descrições funcionam<br />
acima de tudo como espelho e memória. Um universo cultural<br />
comum liga, por laços de afini<strong>da</strong>de na leitura, uma elite intelectual<br />
e juvenil do.Yelho e do Novo Mund0 4 • E para os produtores<br />
de textos, "a descoberta <strong>da</strong> América e os fracionamentos <strong>da</strong><br />
cristan<strong>da</strong>de tornam-se instrumentos de um duplo trabalho de classificação<br />
e conhecimento: a relação com o homem selvagem e<br />
com a tradição religiosa" (Certeau 2000: 213). É nesse domínio<br />
que uma cultura encontra-se com a outra.<br />
O gênero classificado como viagem, ain<strong>da</strong> que composto<br />
de textos heterogêneos entre si, acaba por fazer parte de um<br />
outro gênero de perfil mais ficcional - o romance de formação<br />
moral. As descrições são apropria<strong>da</strong>s pelo novo regime literário<br />
e passam a intervir como referências e contra-referências nas<br />
etapas p<strong>revista</strong>s para a educação. Preferencialmente, o romance<br />
moral destina-se aos adolescentes. Seus objetivos são confessos<br />
- a aplicação dos princípios cristãos através <strong>da</strong>s ações modelares<br />
dos personagens. Define-se como literatura espiritual, diverti<strong>da</strong><br />
e instrutiva. Seus livros visam a produzir uma sensibili<strong>da</strong>de<br />
engaja<strong>da</strong> na crença e antes de serem publicados necessitam passar<br />
pelos comitês eclesiásticos de leitura, que funcionam como<br />
primeiros censores, anteriores mesmo aos livreiros e aos pais.<br />
Esses comitês inauguram um sistema jurídico-religioso de controle<br />
dos textos. Os editores Mégard, de Rouen, grandes distribuidores<br />
de livros de coleções infantis por to<strong>da</strong> a França e, através<br />
dos Garnier, difusores <strong>da</strong> literatura francesa para o Brasil,<br />
não dispensam o exame prévio <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des responsáveis pela<br />
educação religiosa. Essa prática assinala uma submissão ao que<br />
Jean-Yves Mollier (2000) chama de "lógica <strong>da</strong> deman<strong>da</strong> social"<br />
- no caso, atendendo aos objetivos <strong>da</strong> Igreja Católica -, característica<br />
do antigo regime <strong>da</strong> produção editorial.<br />
Se a observação dos sentimentos de homens primitivos,<br />
quase próximos aos animais, e o estabelecimento de comparações<br />
com os homens civilizados, nutre uma imaginação literária, acaba<br />
também por suprir necessi<strong>da</strong>des de ordem pe<strong>da</strong>gógica. Uma viagem<br />
para o Brasil mobiliza sentimentos de medo e fascínio, ao<br />
mesmo tempo que nutre sonhos de fortuna alimentados pelas notícias<br />
<strong>da</strong>s terras férteis e <strong>da</strong>s minas de pedras preciosas. É o que<br />
propõe a saga dos Emigrantes no Brasil. Amelie Schoppe, sua
150 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, 8.9,2006<br />
autora, tira todos os proveitos <strong>da</strong>s situações de incerteza e perigo,<br />
caminhando na tradição pe<strong>da</strong>gógica dos contos de advertência,<br />
prevenindo os jovens europeus contra o fascínio e a cegueira <strong>da</strong><br />
ilusões. Fazer a América era o mesmo que escolher o abandono -<br />
a orfan<strong>da</strong>de.<br />
A literatura "novomundista" de aplicação moral compara a<br />
escravidão branca, a qual se vêem submetidos os emigrantes no<br />
Brasil, com o sistema <strong>da</strong> escravidão negra, levando os leitores a<br />
incorporar, ou a manter bem sólido, o valor moderno <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />
do indivíduo - principal conquista <strong>da</strong> Revolução Francesa.<br />
Note-se que o âmbito de circulação do romance moral é o<br />
universo cultural juvenil, não contando ain<strong>da</strong> essa classe de textos<br />
com o estabelecimento <strong>da</strong> Sociologia como ciência explicativa<br />
do comportamento. Os modelos e contra-modelos oferecidos<br />
pelos índios e negros escravos americanos, a antropofagia, as<br />
fugas e insurreições, a constituição de uma estrarlha República<br />
dos Palmares, entre uns, e os maus hábitos <strong>da</strong> nudez, entre outros,<br />
ambos relacionados à heresia, à per<strong>da</strong> do decoro <strong>da</strong> civili<strong>da</strong>de<br />
e aos perigos de embrutecimento dos comportamentos, ou,<br />
tudo posto ao contrário, as virtudes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> natural, deveriam<br />
levar a moci<strong>da</strong>de a voltar-se para o seu interior e, partindo <strong>da</strong><br />
intimi<strong>da</strong>de, compreender os motivos <strong>da</strong> ação e fortalecer suas<br />
relações com a crença.<br />
O bom e o mau selvagem, figuras do pensamento romântico<br />
europeus, entram no projeto moral pe<strong>da</strong>gógico na condição de<br />
parâmetros de comparação frente às desvantagens e máculas <strong>da</strong><br />
civilização. Por isso mesmo, o romance moral pode igualmente<br />
surtir efeitos contrários, uma vez que as práticas e significações<br />
produzi<strong>da</strong>s pela leitura nem sempre correspondem aos anseios e<br />
imposições dos autores e livreiros-editores. E, se o novo leitor se<br />
identificasse com a vi<strong>da</strong> nas florestas tropicais, livre de bússolas,<br />
mapas ou quaisquer constrangimentos morais Acima de tudo,<br />
qual o efeito disso para os leitores brasileiros<br />
Para colocar a morali<strong>da</strong>de em ação faz-se necessária, acima<br />
de tudo, a pronta adesão <strong>da</strong>s mulheres de letras, como Amelie e<br />
Julie Nicolase, aproximando-as dos eclesiásticos. Observa-se um<br />
processo de transferência de sacrali<strong>da</strong>de dos padres para as escritoras,<br />
nesse momento particular <strong>da</strong> disputa pela posse do poder<br />
legítimo sobre a aplicação <strong>da</strong> moral, trava<strong>da</strong> entre o conhecimen-<br />
5Há uma vasta linhagem do<br />
pensamento intelectual europeu<br />
sobre o fudio americano, e, por<br />
conseguinte, sobre os brasileiros.<br />
Destaco as fontes clássicas dos<br />
séculos XVI e XVIII; Montaigne<br />
eRousseau. UmafillVedeconsulta<br />
muito iIqxxtanteé o livro pioneiro<br />
de Afonso Arinos de Melo Franco<br />
(2005).
Uções de viagens. devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista<br />
151<br />
to cientifico, que já se esboça, e a tradição <strong>da</strong> velha Igreja Católica,<br />
detentora <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de intelectual. Deste modo, as funções<br />
femininas mais se adequam à posição eclesiástica. A posição<br />
dos arcebispos que cumpriam a função de revisores de textos.<br />
Ora, uma autora deveria se situar no curso do processo de<br />
civilização, cabendo-lhe articular <strong>da</strong> melhor forma possível um<br />
discurso sobre as diferenças. A vi<strong>da</strong> dos habitantes dos trópicos<br />
- sempre relaciona<strong>da</strong> a um sistema regulador de censuras e proibições<br />
- se tornaria mais compreensível, e, até, mais suportável,<br />
se posta em uma operação escriturária.<br />
Lições de sobrevivência nos trópicos: os emigrantes no<br />
Brasil<br />
Antes do aparecimento <strong>da</strong>s versões francesas <strong>da</strong> novela de<br />
Amelie Schoppe, a narrativa de viagem pe<strong>da</strong>gógica basea<strong>da</strong> na<br />
imaginação do mundo colonial como mundo naturalizado (selvagem<br />
e preguiçoso), que, de acordo com Francis Marcoin (1999),<br />
experimenta as delícias <strong>da</strong> geografia através <strong>da</strong> errância romanesca,<br />
já havia mostrado to<strong>da</strong> sua força aos jovens leitores europeus.<br />
Em 1839, Alexis Eymery escreve e publica uma coleção de livros<br />
- de pequeno formato e com muitas páginas - sobre aventuras de<br />
viagens a várias partes do mundo, incluindo o continente americano<br />
e, ao sul dele, o Brasil- Universo em miniatura ou as viagens<br />
do pequeno André sem sair de seu quarto. Utilizando a técnica do<br />
diálogo entre pai e filho, mais que adequa<strong>da</strong> ao estilo confessional<br />
do romance de formação, esses livros apresentam quadros instrutivos<br />
e divertidos para guiar a infância no conhecimento <strong>da</strong>s quatro<br />
partes do mundo: África, Ásia, América e Oceania.<br />
A passagem pelo Brasil inicia-se com o elogio ao jovem<br />
príncipe, herdeiro <strong>da</strong> Casa de Bragança. Em segui<strong>da</strong>, passeia-se<br />
pelo enorme bazar no qual se transformara o comércio do Rio de<br />
Janeiro realçado pela descrição de ruas estreitas por onde desfi<br />
Iam escravos carregando <strong>da</strong>mas indolentes nas liteiras. Sobressaem<br />
as perucas e bijuterias. Mas o Brasil imaginado por André é,<br />
antes de tudo, um reino de pedras preciosas, rubis. diamantes e<br />
com muitos papagaios, situado entre a floresta <strong>da</strong> Tijuca e o distrito<br />
de Diamants. Ap~nta-se, então, o vale do rio Gigitonhonha<br />
(Jequitinhonha), metáfora de mais uma ilha deserta. No romance
152 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
de Amelie, o vale é porto de salvação para uma família de<br />
Robinsons oitocentistas perdi<strong>da</strong> no Brasil tropical. As margens<br />
férteis do rio Gigitonhonha é palco <strong>da</strong> trama imagina<strong>da</strong> no livro<br />
Os Emigrantes no Brasil.<br />
Com uma série de advertências aos jovens europeus sobre<br />
as ameaças e os perigos <strong>da</strong> parti<strong>da</strong> para os países <strong>da</strong> América do<br />
Sul, a narradora tem como objetivo denunciar a experiência <strong>da</strong>s<br />
várias famílias de colonos alemães em princípios do século XIX,<br />
oferecendo pistas <strong>da</strong>s armadilhas nas quais se viam envolvi<strong>da</strong>s<br />
logo no embarque. No porto de Amsterdã, de onde partiam os<br />
navios para o Rio de Janeiro, capitães inescrupulosos propunham<br />
a assinatura de contratos de compra e ven<strong>da</strong> <strong>da</strong> força de trabalho<br />
dos emigrantes, em troca do pagamento <strong>da</strong> viagem. Entra em cena<br />
o drama <strong>da</strong> escravidão branca. Nesse romance, a ênfase <strong>da</strong>s viagens<br />
recai sobre a aplicação de uma moral religiosa entre cristã e<br />
moderna, combinando os desígnios de Deus à preservação dos<br />
direitos individuais do ci<strong>da</strong>dão. Por isso mesmo, a narradora ao<br />
tirar o máximo de proveito <strong>da</strong>s advertências e conselhos acaba<br />
por instaurar uma pe<strong>da</strong>gogia do medo.<br />
Na tradição dos Robinsons que partem em família (Soriano,<br />
1982), Riemann é um fazendeiro viúvo e arruinado pela seca que<br />
assola seu país. Um dia, ouve trechos de uma canção que diz: o<br />
Brasil não é longe <strong>da</strong>qui. Toma, então, a decisão de partir <strong>da</strong> Alemanha<br />
em direção ao Brasil, levando sues filhos: Conrad, o mais<br />
velho, Anna, Marguerite e Wilhelm. Um deles, entretanto, deveria<br />
sacrificar-se pelos outros. Tamanha provação só poderia recair<br />
sobre Conrad, o primogênito, que vende-se ao capitão do navio.<br />
A travessia é marca<strong>da</strong> por infortúnios, fome e sede, algumas tempestades,<br />
além de doenças como o « mal do mar ».<br />
Ao chegar no Rio de Janeiro, uma ci<strong>da</strong>de de ruas estreitas,<br />
cheia de Igrejas e magníficas casas (cenário semelhante ao descrito<br />
por Eymery), o proprietário do jovem alemão leva-o ao mercado<br />
de escravos negros. A família resta petrifica<strong>da</strong> diante de tantos<br />
horrores. No mercado, a liber<strong>da</strong>de de Conrad é novamente vendi<strong>da</strong>.<br />
Desta vez, o comprador é o inspetor do jardim imperial, um<br />
homem bastante rico. Conrad desaparece <strong>da</strong>s vistas de seu pai e<br />
de seus irmãos.<br />
Enquanto isso, Riemann segue para o Palácio do Governador,<br />
a fim de obter os papéis que o tomam proprietário de um
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista<br />
153<br />
terreno no vale de Gigitonhonha, a maior mina de diamantes do<br />
Brasil. Antes <strong>da</strong> viagem, ouve as advertências de um secretário<br />
alemão do Palácio: não comprar jamais diamantes dos negros<br />
que trabalham nas minas, são todos roubados e as penas para<br />
esse delito são bastante severas. Esses conselhos, fala a narradora,<br />
devem servir de regras de conduta, porque as lições de<br />
moral próprias ao gênero no qual foi classificado a novela de<br />
Amelie devem agir através dos personagens. A essa altura, o pai<br />
Riemann já se deu conta de que as promessas feitas aos emigrantes<br />
jamais se cumpriam.<br />
Ao chegar em Gigitonhonha, a familia de heróis descreve a<br />
mesma trajetória de Robinson Crusoé, o personagem de Daniel<br />
Defoe. Riemann e seus filhos são europeus civilizados postos diante<br />
<strong>da</strong>s aventuras <strong>da</strong> natureza: alimentam-se de legumes e frutas<br />
frescas ofereci<strong>da</strong>s pela terra fértil, e de peixe do rio. Constróem<br />
uma cabana, fabricam os utensílios domésticos com a argila do<br />
lugar, modelam toscos instrumentos de trabalho necessários ao<br />
cultivo <strong>da</strong> terra e ousam até reunir troncos de árvores para fabricar<br />
uma canoa. Afinal, como os leitores poderiam se apropriar dos<br />
(des )caminhos postos à fanu1ia Riemann Responde a narradora:<br />
aprendendo com a experiência e com as situações de necessi<strong>da</strong>de.<br />
Bem adianta<strong>da</strong> a narrativa, a família conhece Claus, um sol<strong>da</strong>do<br />
alemão que servia no exército brasileiro. O novo amigo compra,<br />
por uma bagatela, o diamante de um negro a quem protegia.<br />
O escravo escondera (na ver<strong>da</strong>de, roubara) a pedra de seus feitores<br />
num dia de trabalho nas minas. Claus, então, oferece o diamante<br />
a Riemann, que com ele poderia reaver a liber<strong>da</strong>de do filho.<br />
Apresenta-se à família um dilema moral, ao mesmo tempo que<br />
jogo educativo para o leitor: como aceitar a oferta de um roubo<br />
Riemann, então, parte para o Rio de Janeiro. Chegando lá,<br />
reencontra o funcionário alemão, M. Albrecht, que conhecera no<br />
Palácio do Governo. Após narrar suas heróicas robinsona<strong>da</strong>s, o<br />
emigrante pede aju<strong>da</strong> ao amigo a fim de restituir o diamante à<br />
Coroa. Não foi difícil. Nessa época, o Brasil possuía uma jovem<br />
imperatriz <strong>da</strong> Áustria que gostava de proteger os alemães. Triunfa<br />
o caminho do bem. Comovi<strong>da</strong> com a história <strong>da</strong> escravidão branca,<br />
a Princesa D. Maria Leopoldina, esposa do Imperador D. Pedro<br />
I, restitui a liber<strong>da</strong>de a Conrad. É feita a vontade de Deus e a<br />
família Riemann fun<strong>da</strong> uma colônia alemã no Brasil.
154 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>. n.9. 2006<br />
Lições de devoção religiosa: Os portugueses <strong>da</strong><br />
América<br />
Para alimentar a produção do sistema literário do qual tratamos,<br />
havia uma vasta bibliografia sobre o Brasil em disponibili<strong>da</strong>de<br />
no mercado do livro europeu, que ia desde as sucessivas<br />
edições dos relatos dos viajantes do século XVI - as experiências<br />
de Jean de Léry e André Tevet na França Antártica -, passando<br />
pelas fontes documentais do século XVIII, como o estudo de<br />
Rocha Pitta, até chegar às viagens de exploração e missões dos<br />
naturalistas contemporâneos, como Henry Koster, Spix e Martius<br />
e Auguste de Saint-Hilaire, à boa acolhi<strong>da</strong> <strong>da</strong> sociologia dos costumes<br />
brasileiros do próprio Ferdinand Denis, ou o célebre compêndio<br />
de história pátria Histoire du Brésil depuis sa découverte<br />
en 1500 jusqu' en 1810, de Alphonse de Beauchamp, publicado,<br />
em três tomos no ano de 1815 pela casa de Alexis Eymery.<br />
Em Os Portugueses <strong>da</strong> América, Julie Nicolase Delafaye<br />
Bréhier tece uma história situa<strong>da</strong> em terras do Nordeste brasileiro,<br />
na ci<strong>da</strong>de de Olin<strong>da</strong>, e em tempos coloniais, 1635, período <strong>da</strong><br />
ocupação holandesa. Os personagens são colonos portugueses,<br />
do sangue azul <strong>da</strong> casa de Bragança, índios tapuias, de feroz origem<br />
tupinambá, e negros sublevados na República de Palmares. O<br />
texto narra a execução de um plano de vingança - seqüestro seguido<br />
de cativeiro na floresta tropical - imaginado pelos índios<br />
contra seus senhores e algozes, os colonos portugueses. Duas<br />
<strong>da</strong>mas, Élvire e Héléna, são rapta<strong>da</strong>s pelas suas escravas domésticas,<br />
a velha Mocap - mentora do plano -, e ajovem mestiça Yassi<br />
Miri, ama de leite do pequeno Sebastião, filho de Élvire. Amiip,<br />
escravo pessoal de Dom Aleixo, marido de Élvire, também adere<br />
ao plano. Aproveitando-se <strong>da</strong> confusão causa<strong>da</strong> no dia <strong>da</strong> ocupação<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de pelos holandeses, Mocap foge com as duas mulheres,<br />
Yassi-Miri e Sebastião, tomando o rumo <strong>da</strong> tribo dos tapuias.<br />
Só ela, a velha tupinambá, conhece os desvãos <strong>da</strong> floresta e seu<br />
retomo para sua tribo acompanha<strong>da</strong> de duas senhoras cativas era<br />
prova maior de triunfo e conquista.<br />
Enquanto ocorre o rapto <strong>da</strong>s senhoras brancas, Dom Aleixo<br />
segue, com ArraYp, para o forte de Matias de Albuquerque. Depois<br />
de travar longos debates teológicos com seu escravo - to<strong>da</strong>s<br />
as criaturas não são filhas de um mesmo Deus, então, o que justi-
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista<br />
155<br />
"Em várias passagens, encontramos<br />
as famosas descrições de<br />
Jean deLél)' e Andréa 1bevet<br />
fica a captura e os maus tratos aos índios, quer saber Arralp -, o<br />
nobre português toma-se prisioneiro dos negros-ci<strong>da</strong>dãos sublevados<br />
<strong>da</strong> República de Palmares. Testemunha a organização de<br />
uma República tropical, com deveres e direitos, mas, horroriza-se<br />
ante as bebedeiras nas festas <strong>da</strong> colheita do milho, que levavam a<br />
excessos. A escravidão, para os povos selvagens, brutalmente livres,<br />
se bem conduzi<strong>da</strong> e cristianiza<strong>da</strong>, poderia ser uma etapa <strong>da</strong><br />
civilização, defende a narradora.<br />
A imaginação européia do mundo colonial é naturaliza<strong>da</strong>, e o<br />
desafio maior para a trama do romance moral é a cristianização <strong>da</strong> raça.<br />
Dom Aleixo consegue libertar-se, mas, an<strong>da</strong>ndo alguns passos,<br />
encontra um grupo de índios ferozes, que o fazem refém. Desta<br />
vez, o nobre português é presa de um festim canibal. Prestes a ser<br />
devorado - chega até a jogar pedras nos executores, segundo o<br />
costume narrado pelos viajantes do século XVI6 - é salvo por um<br />
missionário inaciano. Reencontra Arralp e descobre a traição.<br />
Abre-se uma via para a inversão de papéis entre dominantes<br />
e dominados - e se os senhores se tomassem escravos e os<br />
escravos,senhores<br />
O pano de fundo <strong>da</strong> narrativa, a ocupação holandesa <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />
de Olin<strong>da</strong> serve apenas como cenário para o desenvolvimento<br />
<strong>da</strong> trama. Todos os personagens se encontram na floresta. Durante<br />
uma longa jorna<strong>da</strong> pela mata tropical, enfrentando serpentes,<br />
monstros e rios, as duas <strong>da</strong>mas vão confrontando seus valores<br />
aos dos tapuias, afirmando os preceitos <strong>da</strong> religião católica, a fé<br />
nos sacramentos e a inexorável conversão dos bárbaros americanos.<br />
Ignoram seus destinos. Ao fim, correm o risco de serem devora<strong>da</strong>s.<br />
Nesse momento, ameaças e preces não surtem mais o<br />
menor efeito, lembram "o vento que sopra em uma planície deserta".<br />
As duas escravas fugitivas regozijam-se com a nova situação,<br />
movi<strong>da</strong>s por um forte sentimento - selvagem, civilizado ou cristão<br />
- de vingança, definido pela narradora como "compromisso<br />
com a digni<strong>da</strong>de", perdi<strong>da</strong> nos maus tratos <strong>da</strong> escravidão, o que<br />
abre uma discussão sobre a fideli<strong>da</strong>de e o medo <strong>da</strong> traição à raça.<br />
Desenrola-se novo debate teológico sobre a humani<strong>da</strong>de dos<br />
índios, suas virtudes e vícios, a condenável prática <strong>da</strong> antropofagia,<br />
o ressentimento, tanto dos índios brasileiros em relação aos<br />
portugueses, quanto destes em relação aos holandeses, a quem<br />
reputavam de povos heréticos. Afinal, Deus não se manifesta em
156 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
to<strong>da</strong>s as coisas Mas seria preciso cristianizar a barbárie, civilizála,<br />
ain<strong>da</strong> que a civili<strong>da</strong>de fosse representa<strong>da</strong> também como<br />
corrupção <strong>da</strong> natureza e frivoli<strong>da</strong>de artificial cortesã, revelando a<br />
narrativa, a essa altura, um confronto de inspiração tipicamente<br />
roussseauniana. Na composição dos personagens estão as proprie<strong>da</strong>des<br />
que definem as figuras do bom e do mau selvagem.<br />
Em OI in<strong>da</strong>, Héléna levava a vi<strong>da</strong> lasciva dos colonos portugueses.<br />
Nasci<strong>da</strong> no Brasil, filha de um senhor de engenho arruinado,<br />
Dom Álvaro Rodriguez, é inclemente no castigo aos escravos.<br />
Já Élvire, nasci<strong>da</strong> em Portugal, é modelo de boa cristã. Aos<br />
selvagens que a seqüestraram, aplica a virtude do perdão. Para<br />
embaralhar um pouco esse jogo colonial e colocar o problema <strong>da</strong><br />
mestiçagem, a autora faz os personagens indígenas descenderem<br />
de uma pequena tribo que fora governa<strong>da</strong> pelo português Diogo<br />
Álvares Correia, o Caramuru. Eles também demonstram, a seus<br />
modos, alguma polidez e desvelo para com o sofrimento <strong>da</strong>s cativas.<br />
Essas senhoras jamais se habituaram aos rigores do trabalho.<br />
Entremeando ficção e episódios <strong>da</strong> história, Mme. Delafaye<br />
Bréhier não demonstra medo de se ferir ou perder nessa estra<strong>da</strong>.<br />
As florestas, animais,jibóias, festins, caça<strong>da</strong>s e a poligamia selvagem,<br />
bizarros costumes dos índios brasileiros, são realisticamente<br />
narrados aos jovens europeus.<br />
No cativeiro <strong>da</strong>s duas <strong>da</strong>mas portuguesas, feitas escravas<br />
de suas escravas tapuias, colocam-se dois graves problemas de<br />
ordem moral e religiosa. O primeiro diz respeito à educação do<br />
pequeno Sebastião, que deveria, pelos novos costumes, furar seu<br />
lábio inferior e orná-lo com uma pedra azul. Aos olhos de sua<br />
mãe, isto parece uma mutilação. O chefe tapuia, ver<strong>da</strong>deiro sultão<br />
selvagem, apaixona-se pela portuguesa Héléna, desejando-a para<br />
sua sétima esposa. Como poderia uma cristã casar-se com um<br />
homem já por seis vezes casado Na ocasião em que Héléna sai<br />
para buscar água no rio, as outras esposas do chefe, descontentes<br />
com a iminência <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de posição para uma estrangeira, raptam-na,<br />
torturam-na, arrastando-a pelos cabelos, para finalmente<br />
amarrá-la ao tronco de uma árvore perto <strong>da</strong> qual passa um rio<br />
habitado por serpentes venenosas. Héléna desaparece, e o chefe,<br />
colérico, expulsa Mocap e sua derradeira cativa, Élvire, <strong>da</strong> tribo.<br />
Os personagens seguem mais uma rota de aventuras pelo deserto,<br />
desta vez, de volta à ci<strong>da</strong>de de Olin<strong>da</strong>. Mocap morre de sede du-
Lições de viagens. devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista<br />
157<br />
rante a travessia, não sem antes ser batiza<strong>da</strong> por Élvire, que junto<br />
com Yassi-Miri e o pequeno Sebastião, acaba sendo encontra<strong>da</strong><br />
por Dom Aleixo. Anos após, Héléna também é reencontra<strong>da</strong>, vivendo<br />
no deserto com uma farru1ia holandesa, demente. O cristianismo<br />
triunfa sobre os vícios e poucas virtudes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> selvagem.<br />
A escravidão, de acordo com a moral <strong>da</strong> história, é, de fato, etapa<br />
necessária para o longo e tumultuado processo de civilização e <strong>da</strong><br />
conversão ao cristianismo.<br />
Na composição de seu romance moral, Mme. Delafaye<br />
Bréhier se baseia claramente nos clássicos relatos de viagens do<br />
século XVI - nos textos de Jean de Léry, Viagem à terra do<br />
Brasil, e de André Thevet, As singulari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> França Antártica.<br />
Não consta que ela mesma tivesse feito viagem ao Brasil. Se,<br />
como diz Michel de Certeau (2000), os itinerários dos viajantes<br />
são previamente esboçados nas operações <strong>da</strong> escrita, mesmo em<br />
configurações históricas diferencia<strong>da</strong>s, Mme. Bréhier, Jean de<br />
Léry e André Thevet acabam compondo um mesmo texto. Porque<br />
os três tomam posse de um mesmo objeto literário, a descrição<br />
do índio brasileiro.<br />
A história dos Portugueses <strong>da</strong> América conduz seus leitores<br />
ao questionamento dos papéis sociais, que, mesmo na rigidez<br />
emana<strong>da</strong> pela ordem <strong>da</strong>s coisas do século XIX, não estão para<br />
sempre fixados. A história colonial também pode ser escrita ao<br />
contrário. As regras de dependência e assimilação dos colonizados<br />
em relação aos colonizadores podem ser desloca<strong>da</strong>s. A narrativa<br />
do cativeiro tapuia de senhores portugueses acaba por tecer<br />
um sistema de contradições que culmina com uma desmontagem<br />
do mundo de certezas <strong>da</strong> colônia portuguesa no Brasil, ain<strong>da</strong> que<br />
essa desmontagem esteja limita<strong>da</strong> pelo final triunfante do cristianismo.<br />
Afinal, a literatura de Julie Nicolase Delafaye-Bréhier não<br />
poderia contradizê-la.<br />
O mais sedutor é que to<strong>da</strong> essa história foi composta muitos<br />
anos antes de José de Alencar imaginar O Guarani, com o heroísmo<br />
do índio brasileiro e to<strong>da</strong> nossa mitologia de fun<strong>da</strong>ção. Sendo<br />
assim, só nos resta imaginar o escritor cearense saindo <strong>da</strong> Livraria<br />
Gamier, ou antes do gabinete de leitura do francês Cremieux, com<br />
Os Portugueses <strong>da</strong> América nas mãos.
158 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Consideraçãoes finais<br />
o modo como se organizava a escrita sobre o Brasil na França<br />
oitocentista deixa evidente uma rede de relações de<br />
interdependência funcional entre as mulheres de letras, seus tradutores<br />
e os livreiros-editores responsáveis pela classificação e<br />
organização dos livros nas coleções juvenis. A novi<strong>da</strong>de pe<strong>da</strong>gógica<br />
representa<strong>da</strong> pelo Brasil como tema do romance moral uniase<br />
ao empreendimento comercial <strong>da</strong> difusão internacional dos livros<br />
franceses.<br />
Nesse sentido, o empreendimento comercial dos irmãos<br />
Garnier na América Latina desempenhou papel decisivo. Com a<br />
livraria francesa no Brasil intensificava-se o movimento <strong>da</strong>s trocas<br />
culturais entre o Velho e o Novo Mundo. Enquanto Baptiste<br />
Louis Garnier instalava-se na corte do Rio de Janeiro, em 1844, o<br />
Brasil era produzido literariamente na França. Os livros analisados<br />
demonstram ver<strong>da</strong>deiro sistema produtor de singulari<strong>da</strong>des<br />
que, seguindo a tradição <strong>da</strong>s narrativas de viagem do séc. XVI,<br />
alimentava um grosso filão do mercado editorial europeu - as<br />
bibliotecas cristãs e morais <strong>da</strong>juventude -, ao mesmo tempo em<br />
que <strong>da</strong>va os rumos <strong>da</strong> invenção literária do Brasil.<br />
Referências<br />
ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras,<br />
Associação de Leitura do Brasil (ALB), São Paulo: Fapesp, 2003.<br />
ALENCAR, José de. Como e Por Que Sou Romancista: autobiografia literária<br />
emforma de carta. Porto Alegre: Marcado Aberto, 1998.<br />
BRINKER-GABLER, Gisela (org). Lexikon deutsch-sprachiger<br />
Schriftstellerinne 1800-1945. Dtv - München, 1986.<br />
Catalogues de la Librairie de B. L. Garnier, Rio de Janeiro, 1857, 1858,<br />
1920. Bibliotheque Nacionale de France.
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista<br />
159<br />
CANDIDO, Antônio. Formação <strong>da</strong> literatura brasileira (momentos decisivos)<br />
- 2° volume (1836 - 1880). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1959.<br />
Catalogue Général des Livres Imprimés de la Bibliotheque Nacionale.<br />
Catalogue Général de la Librairie Française Pen<strong>da</strong>nt 25 ans ( 1840 - 1865).<br />
CERTEAU, Michel de. A Escrita <strong>da</strong> História. Rio de Janeiro: Forense<br />
Universitária, 2000.<br />
CHARTIER, Roger. Por uma Sociologia Histórica <strong>da</strong>s Práticas Culturais.<br />
In: História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Editora<br />
Difel, 1990.<br />
CORTEZ, Maria Teresa. Entre o Bem e o Mal- A representação do Brasil na<br />
novela Die Auswanderer Nach Brasilien Oder Die Hütte Am Gigitonhonha<br />
de Amalie Shoppe. Universi<strong>da</strong>de do Minho. Centro de Estudos Humanísticos.<br />
Braga: 2003.<br />
CRUBELLIER, Maurice. L' élargissement du publico In: Histoire de I' édition<br />
française - Le temps des éditeurs - Du romantisme à la Belle Époque. Paris:<br />
Fayard, 1990.<br />
D' AMAT, Roman, e PREVOST, M .. Biographie Française - Tomo Quinzieme.<br />
Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1982.<br />
DELAFAYE-BRÉHIER, Julie. Les Portugais D 'Amérique - Souvenirs<br />
historiques de la guerre du Brésil en 1635. Paris: Lehuby, 1847.<br />
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,<br />
1994.<br />
HÉBRARD, Jean. Les nouveaux lecteurs. In: Histoire de l'éditionfrançaise<br />
- Le temps des éditeurs - Du romantisme à la Belle Époque. Paris: Fayard.<br />
1990.<br />
EYMERY, Alexis. L'univers en miniature, ou les voyages du petit André<br />
sans sortir de as Chambre - Amérique. Paris: Désirée Eymery, Editeur, 1839.<br />
LEITE, Mirian Lifchitz Moreira. Livros de viagem (1803-1900). Rio de<br />
Janeiro: Editora UFRJ, 1997.<br />
LÉRY, Jean. Viagem à Terra do Brasil. Belo Horizonte São Paulo: Editor::.<br />
Itatiaia Limita<strong>da</strong> / Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, 1980.<br />
MARCOIN, Francis. La Comtesse de Segur ou le bonheur immobile. Arr::.s<br />
Artois Presse Université, 1999.<br />
MELO FRANCO, Afonso Arinos. L '/ndien brésilien et la Ré\'olutioll<br />
française. Les origines brésiliennes de la théorie de la bollté naturelle. La<br />
Table Ronde, 2000.
160 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
MOLLIER, Jean-Yves. La construction du systeme éditorial français et son<br />
expansion <strong>da</strong>ns le monde du XVIlle au XXe siecle. In : Les mutations du livre<br />
et de l' éditions <strong>da</strong>ns de monde du XVIlle siecle à I' an 2000. Actes du Colloque<br />
Internacional. Sherbrooke, 2000. Sous la direction de Jacques Michon et Jean<br />
Yves Mollier.<br />
SORIANO, Marc. Guide de la littérature pour la jeunesse : courants,<br />
problemes, choix d'auteurs. Paris: Flammarion, 1982.<br />
SCHOPPE, Amelie. Les Émigrants au Brésil (par P. C. Gerard). Limoges:<br />
Eugene Ar<strong>da</strong>nt Éditeur. s/d.<br />
THEVET, André. Singulari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> França Antártica a que outros chamam<br />
de América. Companhia Editora Nacional, 1944.
161<br />
Os cadernos de campo de Roger<br />
Bastide: entrecruzamentos múltiplos<br />
Maria de Lourdes Patrini-Charlon<br />
(UFRN)<br />
Este trabalho de análise dos cadernos de campo de Roger<br />
Bastide inscreve-se na dupla dimensão <strong>da</strong> antropologia e <strong>da</strong> história<br />
cultural. Os cadernos de campo do antropólogo representam<br />
um conjunto notável de escritura autográfica preparatória no seio<br />
dos quais encontram-se expostos os passos de uma produção e do<br />
itinerário de sua viagem à África do Oeste, em 1958. Neste artigo,<br />
proponho-me a examinar a varie<strong>da</strong>de e o conteúdo do material<br />
manuscrito e dos suportes sobre os quais repousa a escritura do<br />
pesquisador francês. As diferentes ações de escritura, assim como<br />
a varie<strong>da</strong>de de suportes e de conteúdos, serão apresentados através<br />
<strong>da</strong> "mise en relation", realiza<strong>da</strong> pela interlocução observa<strong>da</strong><br />
nos manuscritos encontrados nos arquivos do "fundo Bastide".<br />
Essa "mise en relation" está presente entre a escritura e o suporte,<br />
entre as práticas de escritura, entre os suportes, entre os <strong>da</strong>dos e,<br />
igualmente, entre as vozes de pesquisadores que, de uma forma<br />
ou de outra, são sujeitos participantes <strong>da</strong> pesquisa do estudioso.<br />
Estarei privilegiando a escritura de campo e, enquanto suporte, os<br />
cadernos, porque eles estão em relação direta com o meu real<br />
objeto de pesquisa. O material selecionado e os conteúdos privilegiados<br />
pela minha pesquisa encontram-se classificados na« categoria<br />
» NOTES, na « rubrica» Notes de lecture et de voyages.<br />
do inventário elaborado pelo Institut Mémoires de L' édition<br />
Contemporaine (IMEC), na França.
162 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
A escritura de campo de Bastide: o pesquisador -<br />
escritor<br />
Se Gustave Flaubert deu início a uma nova geração, a dos<br />
"escritores - pesquisadores"!, podemos dizer que Roger Bastide<br />
pertence a uma geração de "pesquisadores - escritores". Seus<br />
manuscritos constituem uma quanti<strong>da</strong>de considerável de notas<br />
autográficas e de notas de trabalho que dão a dimensão <strong>da</strong> força<br />
de investigação e de verificação do antropólogo que, além de uma<br />
curiosi<strong>da</strong>de científica sempre presente, fez de seu objeto de estudo<br />
a causa de seu percurso. Segundo suas próprias palavras, "escrever"<br />
é sempre retirar <strong>da</strong>s profundezas do "eu" todos os tesouros<br />
escondidos, to<strong>da</strong>s as flores noturnas do subconsciente, e é<br />
também, por conseqüência, despertar todos os demônios e os deuses<br />
escondidos, liberar os antepassados". (Bey lier, 1944a: 3-4) 2.<br />
Bastide concebe uma problemática central sobre os contatos<br />
culturais e sistemas simbólicos em um campo bem preciso e<br />
que ele jamais abandonará. Seu campo de observação será a França,<br />
a África do Oeste e o Brasil. Sua escritura de campo revela sua<br />
escolha e confirma seu engajamento e busca constante concernentes<br />
a essas questões:<br />
Lundi J 8 aotu -lettre n. J 5, Bastide anota em seu Cahier -<br />
Mon Journal 3 : COl1versation avec V. sur la comparaisoll entre<br />
Eguns à Bahia et ici 4 •<br />
Se em suas pesquisas Bastide privilegia a comparação, ele<br />
confere ao mesmo tempo uma importância consideráwl às trocas<br />
assimiláveis, ao modo assimétrico sobre a forma na qual as coisas<br />
se passam, sabendo como levar em conta o resultado de um produto<br />
híbrido. Desde o início de sua produção sobre o Brasil, Bastide<br />
procurou conhecer bem as relações íntimas existentes entre os<br />
negros e brancos na socie<strong>da</strong>de brasileira, marca<strong>da</strong>s por<br />
distanciamentos e reaproximações múltiplas. Ele se perguntava<br />
freqüentemente: "Comment penser le contradictoire" (Beylier,<br />
1978: 221). Para ele o Brasil é um exemplo <strong>da</strong> interpenetração de<br />
civilizações e é o lugar onde se realiza o cruzamento de tradições<br />
intelectuais distintas. Segundo o pesquisador, esse cruzamento lhe<br />
permitia compreender as especifici<strong>da</strong>des do país e de seu povo e<br />
também de onde ele extrairia os instrumentos conceituais necessários<br />
para a análise de seu objeto de estudo. Para Roger Bastide<br />
I Ver artigo de BIASI, Pierre·<br />
Marc de. "Notion de carne! de<br />
travail : le cas F1aubert". In:<br />
Carnets d'écrivai/ls. Paris,<br />
Éditions du Centre National de<br />
la recherche scientifique<br />
(CNRS), 1990, pp. 23-56.<br />
1 BEYLIER, Charles. "Le sujet<br />
et l'objet". In: BASTIDE,<br />
Roger. Images du /lordes te<br />
mystique e/l no ir et bla/lc.<br />
Pandora/Des Sociétés, Paris,<br />
1978. p. 222. (Bey1ier cite<br />
Bastide). (tradução nossa).<br />
3 MO/l ]our/1al estará no texto<br />
sempre em itálico, pois esta<br />
denominação foi <strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />
Bastide ao ca/lier I.<br />
4 Neste texto to<strong>da</strong>s as citações<br />
de Bastidc estarão em itálico.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos<br />
163<br />
, Todos os documentos<br />
manuscritos de Roger Bastide<br />
sobre sua viagem de estudos à<br />
África são inéditos.<br />
6 Sobre esta experiência,<br />
Bastide escreveu um artigo que<br />
foi publicado com fotos de<br />
Pierre Verger na <strong>revista</strong><br />
Etnografia, n.18, Museu<br />
Nacional de Etnografia e<br />
História. Junta Distrital do<br />
Porto, 1968. (N. O.) e em<br />
Verger-Bastide: dimen,w"jes de<br />
uma amizade, Rio de Janeiro,<br />
Bertrand Brasil, 2002. No<br />
entanto, o texto manuscrito<br />
encontrado no caderno de<br />
campo é ain<strong>da</strong> inédito.<br />
7 VERGER, Pierre. "Roger<br />
Bastide". In: LUHNING,<br />
Angela (org) Verger-Bastide:<br />
dimens(jes de uma amizade,<br />
Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,<br />
2002, pp.255-257.<br />
, LUHNING, Angela (org)<br />
Verger-Bastide : dimens(jes de<br />
uma amizade, Rio de Janeiro,<br />
Bertrand Brasil, 2002, pp. 39-<br />
54.<br />
'Conforme conceito desenvolvido<br />
por Paul Ricoeur em<br />
Temps et Récits. Paris, Seuil,<br />
3v. 1985.<br />
era necessário ir ain<strong>da</strong> mais longe em sua compreensão, por isso<br />
quis conhecer as fontes, ver, entender, enfim estar no campo. Assim,<br />
ele parte em viagem para a África do Oeste (Benin e Nigéria)<br />
em 1958, por setenta e dois dias. Durante sua permanência nessa<br />
região africana, ele recolhe um corpus que reúne mitos, narrativas,<br />
rituais, canções, provérbios, <strong>da</strong>nças, expressões típicas e fatos<br />
folclóricos 5 • Ele compartilhou esta experiência com seu amigo,<br />
o antropólogo Pierre Verger 6 • É, pois, o próprio Verger quem<br />
nos informa dizendo que, infelizmente, Bastide não redigiu o livro<br />
que queria ter preparado a partir <strong>da</strong>s notas obti<strong>da</strong>s na África - e<br />
complementa: "Fato lamentável, pois não há dúvi<strong>da</strong> de que ele<br />
teria sabido nos transmitir tudo o que havia visto, com aquela<br />
mistura de poesia e humor que ele sabia incluir na sua obra de<br />
sociólogo"7. Em "As múltiplas ativi<strong>da</strong>des de Roger Bastide na<br />
África (1958)" 8 , Pierre Verger reafirma ain<strong>da</strong>: "Bastide, infelizmente,<br />
não publicou um livro apresentando o conjunto de impressões<br />
e experiências vivi<strong>da</strong>s por ele durante sua esta<strong>da</strong> no Golfo de<br />
Benin ( ... )". Além <strong>da</strong>s articulações menciona<strong>da</strong>s, nessa matéria<br />
manuscrita e inédita há outras presentes entre a escritura de campo<br />
e as notas de leitura, os desenhos, as fotos e os mapas de itinerários.<br />
Trata-se de uma escritura que acolhe ain<strong>da</strong>: seleção mais<br />
ou menos voluntária dos fatos, deslocamentos, organizações cronológicas<br />
e diacrônicas de acontecimentos que, elaborados dentro<br />
de uma dinâmica, serão os responsáveis pela construção de<br />
uma trama 9 entre os documentos manuscritos. Assim, jogos de<br />
interações constantes são estabelecidos, revelando as interferências<br />
entre o "eu" e o "grupo", um "eu" que não sai jamais impune<br />
<strong>da</strong> experiência, pois com Bastide não há de um lado o observador<br />
e do outro a reali<strong>da</strong>de que ele estu<strong>da</strong>.<br />
Os manuscritos: articulações em vários sentidos<br />
1 - Dos manuscritos com o inventário<br />
Entre os documentos e o inventário há uma dinâmica que é<br />
absolutamente estabeleci<strong>da</strong> no momento <strong>da</strong> organização e <strong>da</strong> distribuição<br />
dos documentos. Isso requer do pesquisador muita atenção,<br />
pois ele deve estar sempre pronto a usar sua experiência para<br />
perceber exatamente onde se encontram os pontos nevrálgicos
164 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
<strong>da</strong>s relações entre os manuscritos: Como foram estabelecidos<br />
Quais os critérios e caminhos escolhidos pelos técnicos que os<br />
manusearam ordenando-os, com o objetivo de <strong>da</strong>r-lhes coerência<br />
Definir o lugar mais adequado para ca<strong>da</strong> um dos documentos<br />
é, sem dúvi<strong>da</strong>, o primeiro desafio para quem vai realizar este trabalho,<br />
chegar a um conjunto no qual ca<strong>da</strong> peça deve estar em<br />
relação corri as outras, respeitando sempre o tempo, o espaço, o<br />
contexto, a história dos documentos e a tradição terminológica, o<br />
que não é tão evidente como pode parecer à primeira vista. Nos<br />
arquivos do "fundo Bastide" não temos documentos classificados<br />
sob a categoria "cadernos de campo" e nem "cadernos de trabalho",<br />
por exemplo. Esses são alguns <strong>da</strong>dos que indicam que o<br />
pesquisador tem que construir suas próprias trilhas no inventário,<br />
para isso ele tem que conhecer minimamente o objeto de estudo e<br />
a obra do estudioso. Por exemplo: o primeiro título consultado<br />
[LE CANDOMBLÉ DE BAHIA ET LA CÉRÉMONIE DE aNDO (KOBE)] pertence<br />
à "categoria" NOTES, logo à "rubrica" Notes de lecture et<br />
des voyages. A descrição dos documentos contidos nesse título<br />
anuncia, entre outros documentos: Mss - cahier de notes avec<br />
quelques dessins. Na reali<strong>da</strong>de, o que havia era um caderno do<br />
tipo brochura (50 páginas), com um título sobre a capa <strong>da</strong> frente:<br />
Le candomblé de Bahia, escrito por Bastide. Na quarta capa (verso),<br />
Bastide anotou: Cérémonie de Ondo, Kobe, 22 juillet, (fête<br />
des Ignames Neuves). O título do inventário anuncia, mas não<br />
explica nem especifica seu conteúdo. Em um mesmo conjunto<br />
(pasta) estão reunidos o candomblé <strong>da</strong> Bahia e a cerimônia de<br />
ando. Isso vai exigir explicações mais precisas, principalmente se<br />
considerarmos que nesse caderno há duas práticas de escritura<br />
diferentes: uma de trabalho e a outra de campo. Qual percurso<br />
deverá percorrer o pesquisador para concluir que o caderno em<br />
que o antropólogo registrou suas notas de campo <strong>da</strong> cerimônia de<br />
ando corresponde à esta<strong>da</strong> de Bastide na África, em 1958 Sabemos<br />
muito bem que Bastide esteve na África diversas vezes. Se as<br />
notas de campo correspondem apenas a um dia de observação, o<br />
dia 22 de julho, como encontrar o ano correspondente A <strong>da</strong>ta<br />
coloca<strong>da</strong> na capa do caderno não traz o ano. Como precisar as<br />
<strong>da</strong>tas com tais incertezas se o pesquisador está com esses documentos<br />
pela primeira vez nas mãos O título é o primeiro entre<br />
mais de sessenta existentes nessa categoria do inventário lO • Na<br />
10 Entretanto, a pesquisa que eu<br />
estava realizando na categoria<br />
Notes, na rubrica Notes de<br />
lecture et de voyages,<br />
mostrava-me a ca<strong>da</strong> dia que, se<br />
os cadernos de campo<br />
realmente existissem, havia<br />
uma grande chance de eles<br />
estarem classificados naquela<br />
rubrica.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos<br />
165<br />
rubrica Notes de lecture et de voyages encontramos dois<br />
subconjuntos: notas de leituras e de viagens. O caderno em questão<br />
não se insere nem em notas de viagens nem tão pouco em<br />
notas de leitura. Ele foi denominado simplesmente caderno de<br />
notas, sem qualquer outra especificação. Isso me levou a pensar<br />
que havia uma grande possibili<strong>da</strong>de de o conteúdo ter sido<br />
priorizado na classificação dos documentos, sem levar em conta<br />
os suportes e tão pouco as práticas de escritura, a não ser aquelas<br />
já consagra<strong>da</strong>s, como a correspondência. Para mim algo estava<br />
claro: a nomenclatura 'caderno de campo' estava excluí<strong>da</strong> dessa<br />
classificação, até porque o interesse por essa prática de escritura<br />
autográfica é bem recente. Na reali<strong>da</strong>de, Bastide dividiu materialmente<br />
esse caderno em duas partes, utilizando ações de escritura<br />
diferentes. Na frente, trata-se de um caderno de trabalho e no<br />
verso de um caderno de campo. Na frente temos a correção por<br />
página do livro Le Candomblé <strong>da</strong> Bahia-Brésil: evidentemente<br />
não se trata de notas de leitura, nem de viagem, nem de campo,<br />
pois estas notas estariam mais próximas de notas de trabalho, ao<br />
invés disso, trata-se de correções <strong>da</strong>s provas preparatórias <strong>da</strong> edição<br />
do livro. No verso, temos as notas que Bastide tomou durante<br />
uma cerimônia de Ondo, a que assitiu em Kobe, África do Oeste,<br />
em 1958, mas isso eu só pude descobrir e confirmar depois de ter<br />
avançado bastante na leitura dos documentos. Primeiramente, foi<br />
necessário encontrar o Cahier I - Mon ]ounal e depois de muito<br />
trabalho de análise consegui estabelecer as relações. Em seu diário<br />
de campo, no dia 22 de agosto, ele registra o acontecimento,<br />
apenas anunciando o fato' e dizendo: voir autre cahier. Essa<br />
bipartição <strong>da</strong> classificação em lecture / voyage assim como a de<br />
caderno de notas não foi feita por Bastide. No conjunto em que<br />
foi colocado este caderno de "notas", como foi denominado, há,<br />
igualmente, um texto manuscrito de Roger Bastide sobre o êxtase.<br />
Esse texto se refere provavelmente ao capítulo V: "La structure<br />
de l'extase", de seu livro Le Candomblé de Bahia-Brésil. Nesse<br />
sentido, constatamos que essa classificação não é satisfatória, nem<br />
globalmente do ponto de vista dos títulos, nem localmente do ponto<br />
de vista dos documentos e muito menos do ponto de vista dos<br />
suportes. Ressaltamos que se os cadernos de campo encontrados<br />
fazem parte <strong>da</strong> "rubrica" notes de leitura e de voyages, essa "rubrica"<br />
abriga uma vasta nomenclatura: caderno de notas, caderno
166 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
de viagem, diário de viagem, carnê de viagem, notas de viagem,<br />
notas de visitas e carnê de notas. Essas são to<strong>da</strong>s as denominações<br />
que foram <strong>da</strong><strong>da</strong>s ao suporte cadernos. Nesse caso, percebese<br />
muito bem que a noção de "caderno" e de "viagem" é um tanto<br />
quanto ambígua. Inicialmente, é preciso esclarecer que nós não<br />
podemos misturar caderno de campo, caderno de trabalho, caderno<br />
de viagem se quisermos respeitar a tradição terminológica. Para<br />
o técnico que elabora o inventário é, sem dúvi<strong>da</strong>, difícil reconhecer<br />
a importância de certos elementos que caracterizam os manuscritos<br />
e as práticas de escritura. Entretanto, para o pesquisador<br />
se <strong>da</strong>r conta, num primeiro contato, de que um caderno utilizado<br />
frente e verso, sem <strong>da</strong>ta <strong>completa</strong>, contendo práticas de escritura<br />
e conteúdos diferentes possa ser identificado, ao menos<br />
em uma de suas partes como um caderno de campo e que possua<br />
relação estreita com as anotações diárias feitas por Bastide no<br />
Cahier 1- Mon Journal durante sua esta<strong>da</strong> em 1958, na África,<br />
não é também na<strong>da</strong> simples. Um documento é às vezes colocado<br />
em um título que, de início, pode parecer revelador, mas que esconde<br />
elementos e, em alguns casos, os mais importantes. A escritura<br />
de campo desse caderno foi organiza<strong>da</strong> de forma particular, o<br />
antropólogo elaborou seu texto respeitando as partes <strong>da</strong> cerimônia<br />
assisti<strong>da</strong>. ele não se serviu de uma escritura diária. A<br />
especificação f suporte. conteúdo, escritura) dos cadernos está<br />
longe de ser estabeleci<strong>da</strong> segundo uma terminologia mais adequa<strong>da</strong><br />
e a escolha do título notes de lecture et de voyage não dá<br />
senão uma indicação muito geral do conteúdo <strong>da</strong> rubrica. Assim,<br />
um documento manuscrito (reunido em um título específico) pode<br />
pertencer a um "título", que normalmente indica seu conteúdo,<br />
mas ele pode estar, às vezes, em relação mais estreita com outros<br />
documentos, ou seja, fazendo parte de outros conjuntos. em títulos<br />
diferentes. Dessa forma, a leitura de outros documentos colocados<br />
em títulos ou até mesmo de rubricas diferentes é necessária<br />
para se encontrar o fio orientador. Os outros documentos do mesmo<br />
conjunto não são sempre esclarecedores, eles exigem também<br />
outros percursos mais elaborados <strong>da</strong> parte do pesquisador. Enfim,<br />
o corpus é extremamente diverso e heterogêneo, por isso trabalhoso,<br />
exigindo conhecimentos específicos sobre os seus conteúdos.<br />
Apesar de todos os esforços para se <strong>da</strong>r certa clareza, um<br />
inventário merece ser sempre retrabalhado, pois há continuamen-
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos<br />
167<br />
te a necessi<strong>da</strong>de de novos ajustes. Com as evidências que ternos,<br />
cabe ao pesquisador descobrir os caminhos nos quais o inventário<br />
foi construído para poder reorganizar sua busca. Mesmo se a construção<br />
do inventário obedeceu a técnicas propaga<strong>da</strong>s, é preciso<br />
saber que as evidências seqüenciais não são sempre credíveis,<br />
porque as ver<strong>da</strong>deiras chaves não são encontra<strong>da</strong>s senão após<br />
muito trabalho. Com isso, quero dizer que as rotas apresenta<strong>da</strong>s<br />
pelo inventário são preciosas para que o pesquisador possa começar<br />
seu trabalho, mas cabe a ele assumir a tarefa de restabelecer<br />
um novo caminho onde os documentos manuscritos serão deslocados<br />
de um lado a outro, para serem recolocados em contato<br />
com os seus pares, formando um conjunto coerente.<br />
2 - Dos suportes com a escritura de campo<br />
Para Roger Bastide a escolha do suporte é urna questão de<br />
menor importância. Folhas avulsas de todos os tamanhos e cores,<br />
diversos tipos de papéis assim corno materiais destinados a um<br />
uso bem preciso, tais corno os envelopes, os calendários ou as<br />
cartas de visita podem ser suportes para os seus registros. Da<br />
mesma forma que nos cadernos convivem práticas de escritura<br />
diferentes, encontramos a prática de escritura de campo em urna<br />
varie<strong>da</strong>de de suportes. Essa diversi<strong>da</strong>de vai exigir urna disposição<br />
considerável para a leitura de documentos que, se à primeira vista<br />
não se assemelham aos materiais que estão sendo buscados, podem,<br />
no entanto, conter a chave para certos mistérios. A prática<br />
tem nos mostrado que as classificações dos manuscritos e seus<br />
suportes jamais podem nos <strong>da</strong>r urna garantia e que os desvios<br />
merecem, algumas vezes, mais atenção que a rota bem traça<strong>da</strong>.<br />
Deixando de examinar um documento, estaremos arriscando deixar<br />
para trás algo precioso. Corno selecionar to<strong>da</strong> essa matéria<br />
Talvez seja menos complicado quando se procura o manuscrito<br />
de urna obra específica, mas quando se trata de escrituras preparatórias<br />
corno os registros de campo, o pesquisador deve absolutamente<br />
esmiuçar todo o inventário, pois a ausência de urna nomenclatura<br />
que defina suporte e conteúdo exige urna busca que<br />
vá além <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> terminologia utiliza<strong>da</strong> e que ultrapasse a<br />
questão <strong>da</strong>s evidências. Exemplo: as folhas azuis avulsas classifica<strong>da</strong>s<br />
e descritas no inventário corno 'algumas notas de leitura' no
168 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
título [CAHIER DE VOYAGES : DAHOMEY ET NIGERIA I] contêm, além<br />
<strong>da</strong>s notas de leitura e referências bibliográficas, uma classificação<br />
e uma descrição com algumas indicações <strong>da</strong>s páginas dos conteúdos<br />
de ca<strong>da</strong> um dos cadernos de campo elaborados por Bastide<br />
durante sua permanência na África em 1958. A leitura minuciosa<br />
dessas folhas levou-me a descobertas preciosas, que significaram<br />
um ponto de chega<strong>da</strong> e ao mesmo tempo um ponto de parti<strong>da</strong>.<br />
Nessas folhas, Bastide elabora índices sobre alguns conteúdos de<br />
seus cadernos, mas onde estariam os suportes com tais conteúdos<br />
Assim uma lista de assuntos com as páginas numera<strong>da</strong>s do<br />
Cahier I continua até a página 188, onde ele anota: Yhovisme<br />
(sublinhado por Bastide). Nesse Cahier I, o pesquisador ressalta<br />
as páginas que abrigam suas notas de leitura. No entanto, quem<br />
conhece bem esse caderno sabe que as notas de leitura estão na<br />
mesma seqüência em que se encontram a escritura profissional,<br />
diária, com <strong>da</strong>dos obtidos no campo e também algumas extraí<strong>da</strong>s<br />
de arquivos documentais, além <strong>da</strong> escritura pessoal. Na prática de<br />
escritura de campo não vamos encontrar sempre a lineari<strong>da</strong>de e a<br />
seqüência habitual tão deseja<strong>da</strong>. No caso de Bastide, podemos<br />
dizer que tanto para a classificação dos cadernos quanto para as<br />
ações de escritura e para os suportes, as tônicas são a varie<strong>da</strong>de e<br />
a diversi<strong>da</strong>de.<br />
Seguindo a classificação do antropólogo (na folhas l,4 azuis)<br />
saltamos do caderno I ao caderno 111 e mais tarde, ele retorna ao<br />
caderno 11.<br />
Cahier des Baptêmes à Agoue 1846 - 1880 n. lll"<br />
+ [esses sinais estão no manuscrito]<br />
p.l - Bres. cath.<br />
Bres. Et armé de Français<br />
p. 15 - Bres. cath. (1956)<br />
p. 17 - Bres. cath. Histoire + p.l8 (Fétichisme)<br />
p. 19 - Les maisons brésiliennes à Lagos (articIe)<br />
A lista vai até a página 29 - cimetieres, inscriptions '2 .<br />
Ao lado <strong>da</strong>s páginas acima cita<strong>da</strong>s, Bastide anota entre colchetes<br />
: [Papiers à part Brésiliens Porto Novo, liste, mariages<br />
etc.]<br />
"Indicação e descrição do<br />
conteúdo de algumas páginas<br />
do caderno UI.<br />
12 Esses conteúdos <strong>da</strong>s páginas<br />
fazem referências aos <strong>da</strong>dos<br />
oriundos de documentos.<br />
Em segui<strong>da</strong> e após o traço de separação habitual há a lista<br />
de páginas do caderno 11.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos<br />
169<br />
"Indicação e descrição do<br />
conteúdo de algumas páginas<br />
do caderno 11.<br />
p. 1 - Visite Negres à Chacha<br />
Mais adiante, ao lado <strong>da</strong>s páginas, ele anota: n.lI 13<br />
p. 13 - Port des esc1aves Oui<strong>da</strong>h<br />
p. 15 - Baptêmes à Oui<strong>da</strong>h. 1876 - 1881 / 1866 - 1873<br />
Bastide anota ao lado <strong>da</strong> p. 15 : Suite carnet ;aune -1880 e<br />
embaixo dessa informação:<br />
+ cahier bleu c1air - 1875.<br />
É interessante observar que, diferente do Cahier I, os conteúdos<br />
<strong>da</strong>s páginas não se referem somente às notas de leitura no<br />
Cahier 11 e no Cahier 111, ou seja, encontramos exemplos extraídos<br />
do campo nesses cahiers, por exemplo: p.lO - Visite d'<br />
Almei<strong>da</strong>; e igualmente anotações oriun<strong>da</strong>s de fonte documental,<br />
por exemplo: p.15 - Baptêmes à Oui<strong>da</strong>h et p. 87 - Rôle Bres.<br />
Guerre 1914.<br />
Assim, num mesmo caderno convivem notas de trabalho,<br />
de campo e anotações pessoais. Talvez a necessi<strong>da</strong>de de traçar<br />
um percurso, organizando seus instrumentos de trabalho e seus<br />
<strong>da</strong>dos em relação ao seu objeto de estudo é que motivou Bastide<br />
a elaborar esses índices dos cadernos. De qualquer forma, para<br />
mim, esta classificação foi extremamente útil. A partir dessas informações,<br />
pude identificar e selecionar alguns dos cadernos existentes<br />
no inventário. Entre os meus achados, eu sabia faltava ain<strong>da</strong><br />
encontrar outros cadernos. A varie<strong>da</strong>de de documentos é uma<br />
constatação, seja do ponto de vista do material, seja em relação<br />
ao conteúdo e ao suporte. No entanto, isso não me impediu de<br />
penetrar nesses conjuntos e, assim, tentar analisar a escritura do<br />
antropólogo, conhecendo mais de perto suas experiências de trabalho<br />
de campo. Normalmente, a escritura de campo e seus suportes<br />
(cadernos, carnês) constituem-se em tomo de uma exigência<br />
material, <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de textual e por isso o pesquisador tenta<br />
evitar a priori o uso de folhas avulsas, mas isso está claro que<br />
para Bastide é uma norma que se transgride. Escrever, anotar,<br />
registrar são as ações que orientam a conduta do estudioso e isso<br />
ocorre sempre dentro de uma dinâmica. Freqüentemente, ele interrompe<br />
seus registros para anotar uma questão que será refleti<strong>da</strong><br />
e discuti<strong>da</strong> mais tarde, faz desenhos, esboços diversos, faz referências<br />
a títulos de obras, menciona trabalhos de outros pesquisadores,<br />
enfim, sua escritura profissional revela um diálogo<br />
permanente entre o "aqui" e o "agora", momento performático <strong>da</strong>
170 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
ação do pesquisador e sua experiência acumula<strong>da</strong>. Bastide elabora<br />
inventários para tudo: sobre seus artigos, leituras, livros, publicações,<br />
listas de obras li<strong>da</strong>s ou para serem li<strong>da</strong>s, correspondências,<br />
nomes de pessoas e de amigos e isso tudo pode estar em meio<br />
às notas de campo. Apesar de muitas vezes constatarmos a sua<br />
falta de interesse por um suporte mais adequado ao exercício de<br />
seu ofício, ele demonstra, de uma maneira particular, muito rigor<br />
nas suas ações de escritura. No entanto é possível que, para esta<br />
viagem de pesquisa, ele tenha escolhido alguns cadernos como<br />
suporte, pois ele chegou mesmo a elaborar durante a viagem de<br />
1958 um diário de campo14 - Mon Jounal, como ele mesmo<br />
denominou. Eu diria que Roger Bastide, além do pouco interesse<br />
que demonstra pelo suporte, parece preferir os suportes mais simples<br />
e os mais acessíveis. Prova disso é que, entre os cadernos de<br />
campo de Bastide examinados, o Mon Journal é um simples caderno<br />
do tipo escolar, dois outros trazem sobre a capa a denominação<br />
de caderno de "rascunho" e um outro é um caderno de<br />
publici<strong>da</strong>de (Air France). Enfim, todos os cadernos se assemelham<br />
a cadernos escolares.<br />
14Entre os cadernos encontrados,<br />
este é o único que foi<br />
construído com a escritura<br />
diária, dia-a-dia, durante os 72<br />
dias que passou na África, em<br />
1958.<br />
3 - Entre as práticas de escritura do Mon Journal<br />
Para tratar dessa articulação interna, ou seja, <strong>da</strong> "mise en<br />
relation" que observamos nas ações escriturais de Roger Bastide<br />
no interior de um mesmo caderno - o Cahier I - Mon Journal,<br />
podemos começar dizendo que ele contém a escritura nômade e a<br />
sedentária que pode se efetuar através de duas ações e em dois<br />
momentos distintos. O antropólogo serve-se desse caderno, enquanto<br />
suporte, também em dois momentos distintos e com funções<br />
distintas: suporte nômade e suporte sedentário. Entretanto,<br />
no que se refere às práticas de escritura, as fronteiras não são<br />
assim tão delimita<strong>da</strong>s. Em ca<strong>da</strong> um desses momentos, podemos<br />
ter a presença <strong>da</strong> escritura profissional e a pessoal. Assim, num<br />
mesmo dia ou numa mesma página, podemos encontrar notas com<br />
descrições dos <strong>da</strong>dos obtidos no campo, notas de leitura, referências<br />
bibliográficas, registros de comentários posteriores, resumos<br />
de observações, algumas notas à margem e anotações pessoais.<br />
Em meio a esta varie<strong>da</strong>de observei ain<strong>da</strong> a presença de anotações<br />
feitas após a observação, frases conclusivas que resumem reflexões,
Os cadernos de campo de Roger Bas\ide: entrecruzamentos múltiplos<br />
171<br />
15 Conforme a classificação<br />
feita por Bastide, há duas<br />
denominações: Journal ou<br />
cahier.<br />
novas hipóteses, diferentes problemas, lembretes (Ver V. photos),<br />
enfim, na<strong>da</strong> parece escapar <strong>da</strong> pena do pesquisador que mantém<br />
tudo sob controle. Importante ressaltar que, ao lado <strong>da</strong> escrita diária<br />
obti<strong>da</strong> no trabalho de campo, há ain<strong>da</strong> a presença de outros<br />
<strong>da</strong>dos, mas dessa vez oriundos de arquivos (fonte documental)<br />
O Cahier I - Mon Journal é do tipo quadriculado, brochura,<br />
192 páginas, capa cartona<strong>da</strong> de cor cinza, formato 22cmx 16,<br />
Sem, tipo escolar. As páginas do caderno foram numera<strong>da</strong>s, elas<br />
comportam somente a escritura manuscrita, desenhos e esboços<br />
também de autoria do antropólogo. Ele preencheu to<strong>da</strong>s as páginas<br />
com uma caneta do tipo esferográfica azul com uma escrita<br />
minúscula, de leitura difícil. Como já foi dito anteriormente, estão<br />
presentes nesse caderno a escritura profissional e a pessoal, distribuí<strong>da</strong>s<br />
<strong>da</strong> seguinte maneira por Bastide 15 : <strong>da</strong> página 1 à página<br />
182 - escritura de campo - Mon Journal- e as 10 páginas finais<br />
foram consagra<strong>da</strong>s quase que exclusivamente à escritura pessoal.<br />
No entanto, a parte destina<strong>da</strong> à escritura profissional, como já foi<br />
bem evidenciado, não contém somente a escritura de campo:<br />
Mercredi 27 aout lettre n022<br />
( ... ) Visite du tombeau du roi Glebe. Enorme mausolée,<br />
avec son lit au centre et moustiquaire, pour que son âme puisse<br />
se reposer. ( ... ) Apres visite au cartier des forgerons - bijoutiers.<br />
Essas páginas estão entremea<strong>da</strong>s por notas de pesquisa documental,<br />
de leitura e também pela escritura pessoal :<br />
Puis lu un peu. L'apres-midi ai pris documents potitiques sur<br />
Brésiliens à la commission des Affaires Politiques du<br />
Gouvernement. Passé I' apres-midi et la soirée à les tire et à<br />
prendre des notes.<br />
Às vezes estas interferências se dão de forma ain<strong>da</strong> mais<br />
surpreendentes. Nesse caso, a escritura profissional se justapõe<br />
com a pessoal, intensificando-se mutuamente:<br />
Samedi 16 aout lettre n013<br />
Aujourd'hui fait un peu de correspon<strong>da</strong>nce. Je ne suis pas sorti.<br />
V. est un peu fatigué. V. me parle malgré son mal de tête à<br />
nouveau de Ondo. Lui se demande, étant donné que le rituel. ..
172 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
(...)<br />
Mercredi 27 aout lettre N°22<br />
Départ à 11 h30 de Oui<strong>da</strong>h. Nous passons para Alla<strong>da</strong>, Agun,<br />
Bohian. Arrivée à Abomey, à prés de 14h. l'avais mangé<br />
quelques bananes en route (...).<br />
Algumas vezes, quando a escritura pessoal ganha espaço,<br />
ela é sempre entremea<strong>da</strong> por uma escritura de memória, de agen<strong>da</strong><br />
que acaba por remeter de forma mais ou menos direta ao<br />
trabalho de pesquisa:<br />
Lundi 15 septembre lettre 37<br />
Ce matin course et promenades <strong>da</strong>ns Porto Novo<br />
Vendredi - 29 aoút - Écrire à Christiane (fille de R.Bastide)<br />
Lundi 1 ° septembre<br />
Le soir Cotonou. Diner chez Platonoff. Rentré vers 11h Y2.<br />
Bavardé avec V. presque vers 1 heure.<br />
Dimanche 14 septembre<br />
Ce matin resté à la maison p. travailler. Un peu de fievre<br />
No entanto, a partir <strong>da</strong> página 183, ele anota:<br />
« Appendices l6 » (páginas não numera<strong>da</strong>s). Desta vez a escritura<br />
profissional está menos presente, trata-se sobretudo de uma escritura<br />
pessoal: contabili<strong>da</strong>de, listas de compras e de presentes para<br />
a família. Temos aqui a presença do Bastide organizador de listas<br />
intermináveis. Entretanto, a escritura profissional entra sorrateiramente<br />
e se mistura à escritura pessoal de uma forma menos acentua<strong>da</strong>,<br />
mas suficientemente verificável.<br />
16 Como já explicamos, trata-se<br />
apenas de uma divisão material<br />
do suporte, pois em matéria de<br />
ações de escrituras, elas<br />
continuam a transgredir as<br />
fronteiras <strong>da</strong>s partes materialmente<br />
estabeleci<strong>da</strong>s.<br />
4 - Da escritura profissional com a correspondência e a<br />
fotografia<br />
Na obra autográfica de Roger Bastide há uma forte presença<br />
de colaboradores, como se houvesse uma sociabili<strong>da</strong>de de criação.<br />
Nos traços <strong>da</strong> sua escritura autográfica o coletivo junta-se<br />
ao individual. A importância <strong>da</strong> correspondência se faz num diálogo<br />
a quatro mãos e confirma uma vez mais o atributo coletivo<br />
bem marcado na sua escritura. Em seu diário de campo - Mon<br />
lournal, ao lado <strong>da</strong> <strong>da</strong>ta ele registra o número <strong>da</strong> carta que escreveu<br />
assim como o número <strong>da</strong> foto que certamente está relaciona-
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos<br />
l73<br />
<strong>da</strong> com as notas ali registra<strong>da</strong>s. Exemplo:<br />
p. 25, ele anota: Lundi 28 - Lettre nO 1.<br />
p. 27 : Mardi 29 -lettre n02<br />
Vendredi 5 Septembre. Lettre nO 28 (photo 3)<br />
Fizemos a leitura de grande parte <strong>da</strong> correspondência de<br />
Roger Bastide. No que concerne aos destinatários sei que uma<br />
grande parte era de amigos e colegas de profissão; representantes<br />
de órgãos públicos interessados em pesquisas científicas, representantes<br />
de editoras e <strong>revista</strong>s especializa<strong>da</strong>s. Bastide sempre<br />
trocou cartas (profissionais e pessoais) com seus alunos, seus exalunos<br />
e colegas de profissão. O Cahier I, Mon Journal informanos<br />
que, além <strong>da</strong>s cartas destina<strong>da</strong>s aos amigos e colegas, estão<br />
também registra<strong>da</strong>s as que ele enviava à sua família.<br />
A carta por definição é algo que se compartilha. Ela tem<br />
muitos aspectos: enquanto prática de escritura, é um objeto que<br />
se troca, um ato no qual estão em cena "eu, ele e os outros". A<br />
carta, um texto autográfico, distanciado de seus atores toma-se<br />
documento. Assim, enquanto documento a correspondência vai,<br />
como outros documentos, estabelecer uma rede de relações,<br />
possibilitando interlocuções com os destinários/remetentes, mas<br />
igualmente com os <strong>da</strong>dos de campo registrados por Bastide em<br />
seus cadernos e seu objeto de estudo.<br />
Na África, em 1958, em Mon Journal, Bastide conserva<br />
ain<strong>da</strong> viva a questão do "desafio popular", discussão manti<strong>da</strong> com<br />
intelectuais brasileiros durante déca<strong>da</strong>s:<br />
Mercredi 27 aout - lettre n.22<br />
Visite du Palais des Rois ( ... ) lmportance du symbolisme. Le<br />
symbolisme dicté par les proverbes. Ce qui fait que I' objet a à<br />
la fois 1 sens concret et 1 sens abstrait. II y a là 1 trait de<br />
mentalité africaine que je retrouve <strong>da</strong>ns le desafio: la mentalité<br />
rébus.<br />
A leitura <strong>da</strong> correspondência é que tomou possível, primeiramente,<br />
a compreensão mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> deste registro de campo<br />
e ain<strong>da</strong> me deu a oportuni<strong>da</strong>de de acompanhar o debate sobre<br />
o "desafio" que durante déca<strong>da</strong>s Bastide, pacientemente, manteve<br />
com escritores, poetas e intelectuais brasileiros.
174 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Uma quanti<strong>da</strong>de considerável de cartas endereça<strong>da</strong>s a<br />
Bastide consta do arquivo (de Mário de Andrade, Câmara Cascudo,<br />
Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, entre outros). Algumas delas<br />
tratam de assuntos bem precisos, discutem conceitos e produções<br />
científicas (17 cartas de Lévis-Strauss11 ), outras abor<strong>da</strong>m diretamente<br />
a pesquisa, algumas tratam diretamente de questões pessoais<br />
e há aquelas em que a escritura profissional e a pessoal convivem<br />
no texto em perfeita harmonia. Nesse sentido, citaríamos as<br />
cartas de Pierre Verger 18 • Das 44 cartas classifica<strong>da</strong>s no título<br />
[Bibliographie (Voyage Afrique)], algumas delas tratam especificamente<br />
<strong>da</strong> viagem à África, em 1958. Nelas o antropólogo P.<br />
Verger coloca-se à disposição para receber e acompanhar o amigo<br />
e colega no seu itinerário de pesquisa. Envia também informações<br />
detalha<strong>da</strong>s sobre a viagem e a chega<strong>da</strong>. Sobre a confirmação<br />
destas trocas preliminares que antecederam a viagem de Bastide,<br />
podemos encontrar algo similar na primeira página do M on<br />
Joumal, de Roger Bastide.<br />
No que se refere às fotografias ali anota<strong>da</strong>s, elas são na<br />
maioria de autoria de Pierre Verger. Isso vai possibilitar, sem dúvi<strong>da</strong>,<br />
a produção de uma iconografia <strong>da</strong>s idéias, mas também dos<br />
documentos manuscritos e inéditos de Roger Bastide.<br />
Uma folha branca avulsa (A4) traz uma lista feita por Bastide<br />
sobre sua produção de artigos, os que ele tinha a intenção de escrever<br />
e publicar. Esta lista nos informa o interesse do pesquisador em<br />
divulgar os resultados de seu trabalho realizado durante sua esta<strong>da</strong><br />
na África com Pierre Verger. Aqui também o material fotográfico,<br />
principalmente o de Pierre Verger, é integrado a sua produção.<br />
17 A autorização para a leitura<br />
<strong>da</strong>s cartas foi concedi<strong>da</strong> por<br />
Claude Lévi-Strauss através de<br />
carta manuscrita.<br />
18 Recebi, igualmente, autorização<br />
<strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Piem: Verger<br />
(Salvador/BA) para ler as<br />
cartas de P. Verger.<br />
1- Livre - Remontée aux Sources R.B - Photos V. (10 à 14)<br />
2- Bulletin Etudes Dahoméennes - (pour Lombard) - P.V et<br />
R.B Description d'une cérémonie religieux -<br />
Photos V.<br />
3- Pour Monod - Bulletin IFAN - (simple article sur Ies<br />
aspects) R.B<br />
Une étude sur les Brésiliens<br />
4- Peut être ultérieurement livre les plus développé sur les<br />
Brésiliens d' Afrique qui a déjà un éditeur si Monod ne Ie prend<br />
pas, la VI Secteur va Ie demander<br />
5- Pour le Congres : Rapport Général sur Ies Marchés -<br />
P.VetR.B<br />
6- Pour Annales de L.Febvre Iong article sur les Marchés -
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos<br />
175<br />
P. V. et R.B 2 à 4 Photos V.<br />
7- Articles Revue de Paris: Fêtes d'Oxum ou autre<br />
eérémonie R.B<br />
5 - Das viagens com os temas<br />
19 Temos neste caso mais uma<br />
prova que a classificação do<br />
inventário considerou mais a<br />
pertinência entre os conteúdos.<br />
As viagens de trabalho se sucedem na vi<strong>da</strong> de Bastide. Em<br />
ca<strong>da</strong> uma delas, o pesquisador carrega consigo os seus temas de<br />
estudo, bagagem cara ao estudioso que segue sempre acompanhado<br />
de suas problemáticas e hipóteses. E, assim, fazendo parte<br />
<strong>da</strong> mesma trama, os fios se multiplicam (<strong>da</strong>dos), fortificando os<br />
laços (relações e conclusões) que a experiência outorga ao estudi-<br />
0so. Os documentos reunidos no título [CAHIER DE VOYAGES :<br />
DAHOMEY ET NIGERIA I], especificamente uma folha branca avulsa<br />
que traz um texto de Bastide sobre o Bumba-meu-boi (Burrinha),<br />
ilustra de forma exemplar o que acabo de afirmar. Este texto faz<br />
parte do mesmo conjunto do Mon Joumal, diário de campo de<br />
1958 19 , e está <strong>da</strong>tado: (Dimanche 27 mars 19~6 - Oui<strong>da</strong>h.<br />
Association Francisco <strong>da</strong> Rocha).<br />
Ain<strong>da</strong> não encontrei mais informações sobre esta viagem à<br />
África feita por Bastide em 1966. Entretanto, os <strong>da</strong>dos de campo<br />
obtidos por Bastide confirmam que a viagem de 1966 aconteceu,<br />
pois identifiquei em sua escritura de campo uma comparação entre<br />
os <strong>da</strong>dos obtidos nessa viagem e na viagem anterior, realiza<strong>da</strong><br />
em 1958. A escritura conti<strong>da</strong> na folha avulsa interage com a escritura<br />
diária, Bastide estabelece relações entre as viagens, entre os<br />
<strong>da</strong>dos, fazendo mais uma vez circular no tempo, no espaço e no<br />
contexto o seu objeto de estudo:<br />
Aujourd'hui <strong>da</strong>ns la même ville de Oui<strong>da</strong>h, variation par rapport<br />
à ee qui j' avais vu la demiere fois = il semble done bien que si<br />
même strueture ou sehéma, grand rôle de spontanéité créatrice<br />
des animateurs.<br />
( ... ) Noter aussi variation des masques vu encore même type,<br />
mais le Water mamy, malgré ses 2 serpents, avec sa figure<br />
blanche, ses lunettes = 1 vieille <strong>da</strong>nse créole <strong>da</strong>vantage que<br />
mythique). Par les bouviers avec son grand chapeau de paille<br />
etc. (ver p.2 do diário de campo, de 1958).<br />
O confronto de relações que assinalamos durante esse tra-
176 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
balho está mais uma vez presente na varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s práticas de<br />
escritura assumi<strong>da</strong>s pelo estudioso. Para ilustrar o que acabo de<br />
afirmar, podemos citar o artigo sobre a "Burrinha" publicado em<br />
2002. Ao lê-lo, sentimos a presença <strong>da</strong> escritura preparatória realiza<strong>da</strong><br />
no campo, fonte imprescindível para que uma outra ação de<br />
escritura desse a luz ao artigo, tornando pública uma experiência<br />
única e pessoal. Da mesma forma, pude perceber numa leitura em<br />
seqüência as relações estreitas existentes entre as duas produções<br />
escriturais, apesar de ca<strong>da</strong> uma estar escrita em uma língua diferente,<br />
pois o artigo foi publicado em português, e parece <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong>de<br />
ao primeiro, estabelecendo uma relação circular entre a<br />
escritura de campo e escritura <strong>da</strong> obra.<br />
No artigo "A Burrinha de Uidá", (texte de Roger Bastide et<br />
photos de Pierre Verger), publicado no livro VERGERlBASTIDE<br />
- Dimensões de uma amizade, temos a revelação de um desejo<br />
que será responsável por mais uma viagem, e a confirmação <strong>da</strong><br />
busca permanente de temas que lhe são caros e que circulam nos<br />
interstícios <strong>da</strong> terras do Brasil e <strong>da</strong> África. Assim escreveu Bastide:<br />
"Foi essa vontade de rever o. Brasil que me levou, nestas férias, a<br />
ir ter com meu amigo Pierre Verger entre os « brasileiros» de<br />
Uidá, de Porto Novo e de Lagos, que ele conhece tão bem. E o<br />
Brasil- esse Brasil importado para a terra africana pelos descendentes<br />
dos antigos escravos que voltaram para lá com a religião, a<br />
língua e os costumes do Brasil - mais uma vez realizou meus desejos:<br />
no próprio dia em que desembarquei do avião, sem ter tido<br />
tempo de desfazer a mala, de me instalar, Verger me arrastou a<br />
Ui dá para assistir a uma "Burrinha" deliciosamente brasileira."<br />
(Bastide, 2002: 77)<br />
Primeira página do diário de campo:<br />
13 juillet<br />
Arrivée Kotonou - Verger m'attend avec camionnette IFAN<br />
20 • Beau temps, mais nuages vers le soir. Départ pour Oui<strong>da</strong>h 21<br />
(40 Km environ) un dtner chez M. Bisson, ma ire. La maison<br />
me rappelle étrangement le Brésil " on mange dehors, en se<br />
servant soi-même, parmi les fleurs, les arbres, sous un<br />
manguier. Paysage un peu récifien22 • un peu Apipucos.<br />
Plusieurs membres de la «colonie française », blancs ou<br />
Martiniquais, Guyanais - Le matin, visite du marché - L' apresmidi,<br />
visite du quartier « Brésil ». Répétition de la<br />
20 IFAN: Institut français de<br />
I' Afrique noire<br />
21 Oui<strong>da</strong>h = Uidá.<br />
22 Os dicionários Larousse<br />
(2002) e Le PerU Roberr (CD<br />
2001-2003) trazem o substantivo<br />
récif e o adjetivo<br />
récital - e - aux. A forma<br />
utiliza<strong>da</strong> por Bastide não consta<br />
nesses dicionários. A palavra<br />
recifien talvez faça parte <strong>da</strong>s<br />
conheci<strong>da</strong>s a<strong>da</strong>ptações (francês<br />
e português) cria<strong>da</strong>s e utiliza<strong>da</strong>s<br />
por Bastide.<br />
23 "Burrinha" é o nome que<br />
recebe em Dahomey a festa<br />
popular do "Bumba-meu-boi".
Os cadernos de campo de Roger 8astide: entrecruzamentos múltiplos<br />
177<br />
24 A palavra fazen<strong>da</strong>ire pode<br />
ser o mesmo caso <strong>da</strong> palavra<br />
recifien: a<strong>da</strong>ptações lingüísticas.<br />
25 Escolhi esse sinal (=)<br />
para representar as palavras não<br />
legíveis.<br />
26 Escolhi esse sinal (l1I1I1I/) para<br />
representar as rasuras do texto.<br />
« Burrinha 23 ». 2 pandeiros, 2 tambours (plusieurs noms<br />
donnés, «marcha» = marcha militaire) - Danses de 2 masques<br />
(masques achetés chez commerçants) ,- apparition de<br />
« cheval marin », tres bien - La déesse des eaux avec son<br />
allure de <strong>da</strong>me fazen<strong>da</strong>ire2 4 , avec ses lunettes, etc., et ses<br />
serpents caraibes (quelle peut bien être l' origine de ce masque<br />
) avec ses 2 <strong>da</strong>mes d'honneur, 1 plus « brésilienne »<br />
d' allure et I' autre plus africaine, avec coiffure africaine, toute<br />
jeune est tres jolie, dignité de reine, orgueil. Répétition des<br />
sambas. Loi de la mémoire collective .- fragments de phrases<br />
brésiliennes et tn::n:::n:(25 phrases détachées, remplissage ave c<br />
de phrases africaines (syncrétisme linguistique), mais intérêt I<br />
11111j26 Verger leur copie les chants plus nettement brésiliens<br />
de Porto-Novo - La fê te était tombée en désuétude, le nouveau<br />
maire qui veut redonner vie à Oui<strong>da</strong>h (peu I' égal à Kotonou)<br />
IIIII demande de la reprendre.<br />
As viagens, os temas, as ações de escrituras, os autores e as<br />
experiências colocam-se em relação dinâmica onde também vozes<br />
se cruzam. O exemplo mostra como surge <strong>da</strong> escritura de<br />
Verger a escritura de Bastide, desta vez vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> experiência do<br />
campo que ambos compartilharam. Deixando para trás o contato<br />
diário com o campo de pesquisa, mu<strong>da</strong> a ação <strong>da</strong> escritura, preserva-se<br />
a experiência vivi<strong>da</strong>, mu<strong>da</strong>-se a ação do olhar, dá-se continui<strong>da</strong>de<br />
à trama, fios intermináveis, "mise en relation" de uma<br />
prática, de uma obra, de uma vi<strong>da</strong> e assim a viagem continua e é<br />
Bastide quem diz:"Mas outros deveres me esperam em Paris, e eu<br />
não verei outra vez as 'iaôs' de Xangô, que me fizeram sonhar em<br />
pleno coração de África, e as suas irmãs que estão do outro lado<br />
do oceano"(Verger:2003, p.SO).
178 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Referências<br />
BAKHTIN M. (Volochinov), Marxismo e filosofia <strong>da</strong> linguagem.- 6e. ed.,<br />
São Paulo: Hucítec, 1992.- 196 p.<br />
BARTHES R. O prazer do texto. São Paulo, Perspectiva, 1980<br />
BIASI Pierre-Marc de et alii, Carnets d'écrivains, Paris, Éditions du Centre<br />
National de la Recherche Scientifique, 1990.- 253p.<br />
BIASI Pierre-Marc de. Camets de travail. Edition gritique et génétique établie<br />
par Pierre-Marc de Biasi. Paris, Balland ; 1988. 1000p.<br />
BOURDIEU P., LINS D. (org.) et allii , Cultura e subjetivi<strong>da</strong>de, Campinas,<br />
Papirus, 2000.- 115p.<br />
CHARTIER Roger. Culture écrite et soeiété. L'ordre des livres (XIV- XVII),<br />
Paris, Albin Michel, 1996.<br />
CANCLINI Nestor Garcia, Culturas Híbri<strong>da</strong>s, São Paulo: EDUSP,1998.- 385 p.<br />
CERTEAU M. de, L'lnvention du quotidien, Paris :Union Générale<br />
d'Éditions,1980.- 374p.<br />
Écrits Intimes, In: Magazine Littéraire, Paris, n0252-253, avril/1988.- pp-<br />
18-108.<br />
ELIAS N., Engagement et Distaneiation, Paris: Pocket, 1993.- 258 p.<br />
--o La societé des individus. Paris, Fayard, 1997.<br />
FABRE, Daniel. Par écrit. Ethnologie des écritures. Paris, E.H.E.S.S., 393p.<br />
GADAMER H-G., L'Actualité du beau, Aix-en-Provence : Alinéa, 1992.-<br />
209 p.<br />
Verité et Méthode - les grandes lignes d'une herméneutique<br />
philosophique. Paris, Seuil, 533p.<br />
GEERTZ c., lei et là-bas - L' Anthropologue comme auteur, Paris: Métailié,<br />
1996.- 147 p.<br />
GOODY 1., Entre l'oralité et l'écriture, Paris: PUF,1994.- 323 p.<br />
GRADHIVA. Revue d'histoire et d'anthropologie. (dossier: archives et<br />
anthropologie) Paris, Éditions Jean-Michel Place, n °30/31, 200 1/2002.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos<br />
179<br />
HABERMAS Jurgen, Dialética e hermeneutica, Porto Alegre, L&P, 1987.<br />
HEBRARD, Jean. «Tenir unjournal. L'écriture personnelle et ses supports ».<br />
Cahiers IRTM. Paris, n020, p. 9-50.<br />
HECKMAN, Susan, Hermenêutica e sociologia do conhecimento. Lisboa,<br />
70, 1986.<br />
JAUSS,. H.R. Pour une esthétique de la réception, Paris, Gallimard, 1978.<br />
LECARME 1., LECARME-TABONE Eliane., L'autobiographie, Paris: 1997.- 313 p.<br />
LEIRIS Michel, L'Afriquefantôme, Paris, Gallimard, 1981. 656p.<br />
LEJEUNE.Ph., Le Moi des demoiselles. Enquête sur le jounal de jeune<br />
fille, Paris:Seuil,1993.-<br />
Pour l'autobigraphie, Paris: Seuil, 1998.<br />
L'autobiographie en France, Paris: Armand Colin, 1998.- 192 p.<br />
LEJEUNE Ph. Bibliog raphie - des etudes en langues française sur la literature<br />
personnelle & les récits de vie,. Paris, Université Paris X, ritm22, 2000.-<br />
113p.<br />
Je est un autre, Paris: Seuil, 1980.- 328p.<br />
--o Écrire sur soi, In: Magazine Littéraire, Paris, n0367, juillet-aoí1t11988.<br />
p.76.<br />
-- et allii, "L'autobiographie", In: Poétique, Paris, Seuil, n056, nov./83.<br />
pp.-417-484. "Les écritures de I'intime - La correspon<strong>da</strong>nee et le journal",<br />
Actes du colloque de Brest - 23-24-25 oet., 1997 (testes rassembles et présentés<br />
par Pierre-Jean Dufief), Paris, Champion, 2000.-296p.<br />
LÉVI-STRAUSS. Claude. Tristes Tropiques. Paris, Plon. 1955. 504p.<br />
MALINOWSKI B, Journal d'ethnographe, Paris, Seuil, 1985. 320p.<br />
MAUSS MareeI. Manuel d'ethnographie. Paris, Payot, 1947.<br />
MORIN Edgar, Journal d'um livre Uuillet 19801 aoí1t 1981), Paris: Inter<br />
Editions, 1981.- 229p.<br />
OLSON D. R. et TORRANCE N., Cultura escrita e orali<strong>da</strong>de, São Paulo:<br />
Átiea, 1995.- 267 p.<br />
PETRUCCI, Armando.Jeux des lettres. Formes et usages de ['inscription en<br />
Italie lJi-2fJ siecles, Paris, E.H.E.S.S. 1993. 245p.
180 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>. n.9. 2006<br />
RICOEUR. Paul., Temps et Récit - 3. Le temps raconté, Paris: Seuil,<br />
1985.- 533 p.<br />
Soi-même comme un autre, Paris: Seuil, 1990.- 425 p.<br />
Teoria <strong>da</strong> interpretação. Lisboa, 70, 1976.<br />
VERGER Pierre. Flux et reflux de la traite des negres entre le golfe de Bénin<br />
et Bahia de Todos os Santos. Paris, Mouton &Co., 1968. 72Op.<br />
VERGER, Pierre Fatúmbi. Dieux d'Ajrique. Paris, Revue noire, 1995.
181<br />
Da representação do horror ao vazio<br />
<strong>da</strong> representação<br />
Edson Rosa <strong>da</strong> Silva<br />
(UFRJ / CNPq)<br />
* BATAILLE, Georges.<br />
L'Érotisme. Paris: Minuit,<br />
1957 (1979), p.4I.<br />
L'horreur, en effet, ne s' annule que par un exces d'horreur.<br />
Georges Bataille. L'Érotisme*<br />
IMALRAUX, André. Satume;<br />
le destin, I' art et Goya. Paris:<br />
Gallimard, 1978. Doravante, S,<br />
seguido do número <strong>da</strong> página.<br />
2 Longe de qualquer interpretação<br />
romântica <strong>da</strong> arte como<br />
meio de salvação do artista,<br />
importa perguntanno-nos em<br />
que sentido a arte pode realmente<br />
ser um anti destino. Se<br />
não pode constituir um<br />
instrumento eficaz no combate<br />
contra a violência e a morte,<br />
pode ao menos, como diria<br />
Malraux no prefácio de Le<br />
Temps du mépris ''tentar <strong>da</strong>r<br />
aos homens consciência <strong>da</strong><br />
grandeza que ignoram em si<br />
mesmos" (Le temps du mépris.<br />
Paris, Gallimard, 1935, p. 9).<br />
Ou, se pensarmos na questão <strong>da</strong><br />
metamorfose através dos<br />
tempos, havemos de entender<br />
que o antidestino <strong>da</strong> arte - ou<br />
seja: o fato de sempre escapar<br />
à fixação <strong>da</strong>s formas e do<br />
sentido - é a bem dizer seu<br />
primeiro destino enquanto obra<br />
de arte.<br />
o livro que André Malraux escreveu sobre o pintor espanhol<br />
Goya em 1950, intitulado Satume', sempre me pareceu<br />
revelador de sua relação com a idéia de sagrado e a idéia de morte.<br />
Não com a idéia de religião, mas com uma dimensão sagra<strong>da</strong><br />
. que ultrapassa qualquer crença ou ritualização dogmática. É a partir<br />
desse sagrado que, segundo Malraux, obse<strong>da</strong> Goya e «que nos<br />
a..tinge por seu caráter negativo» (S, 156) que ele analisa a obra<br />
~troz do pintor espanhol. Mas como se manifesta esse sagrado<br />
Não seria certamente por uma «invisível presença sugeri<strong>da</strong> pelos<br />
mitos» ou por uma luz que para ele apontasse, diz Malraux, que<br />
acrescenta a seguir: «O único meio que possui a arte de tentar a<br />
expressão [de tal sagrado] é o de restabelecer o contato com tudo<br />
aquilo que transforma o artista apenas num momento de passagem:<br />
o sangue, o mistério, a morte» (S, 157).<br />
Duas idéias estão embuti<strong>da</strong>s aí: a de que o artista não pode<br />
resgatar de forma romântica e nostálgica o que a morte destruiu<br />
(o que me leva a contestar uma compreensão ingênua <strong>da</strong> famosa<br />
afirmação de Malraux: «A arte é um antidestino»2 , que não cabe<br />
aqui discutir); e a outra idéia que afirma que é só pelo contato<br />
com a morte que o artista conseguirá exprimir o sagrado,<br />
É claro que este sagrado a que me refiro não é o sagrado<br />
dicotômico do cristianismo: é o sagrado pleno, aquele que,<br />
etimologicamente, reúne puro e impuro, aquele que, no rastro <strong>da</strong><br />
reflexão de Nietzsche, poderíamos chamar de sagrado dionisíaco,
182 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
em que não há dualismos nem separações, em que se encontram<br />
criação e destruição, prazer e dor. Ao tratar do tema <strong>da</strong> violência<br />
e do sagrado, Georges Bataille, não sem sugerir a filiação<br />
nietzschiana, insiste ao longo de sua obra na íntima relação entre<br />
o homem e a animali<strong>da</strong>de, e acentua a tensão que o abjeto, a<br />
souillure, introduz no humano, estabelecendo assim um vaziofora-<strong>da</strong>-humano<br />
onde as antinomias se esvanecem, onde a experiência<br />
(que Bataile chama sempre de experiência interior) confronta<br />
o que se pensa e o que se vive. É nesse timbre que busca<br />
conjugar to<strong>da</strong>s as formas do aparentemente humano com as inevitáveis<br />
conseqüências do inumano que diz, em O erotismo, que «o<br />
horror <strong>da</strong> morte não se acha unicamente ligado ao aniquilamento<br />
do ser, mas ao apodrecimento que lança as carnes mortas na fermentação<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>» 3 •<br />
Tento construir, assim, um instrumental conceitual que me<br />
permita tratar o abjeto como um cruzamento de sentidos, em<br />
que se encena um paradoxo: o do abjeto (ab-jectum) rejeitado<br />
pelo humano, mas que do humano provém. O abjeto é uma metáfora<br />
<strong>da</strong> repulsa / atração <strong>da</strong> morte. Eis por que a representação<br />
do horror sempre choca e, ao mesmo tempo, fascina o humano.<br />
Eis porque o mal, muitas vezes temido e rechaçado, é,<br />
por vezes, necessário e desejado.<br />
É sobre esse jogo antitético - extremamente baudelairiano<br />
- que gostaria de discorrer, comparando alguns episódios que<br />
me parecem altamente significativos dentro dos romances de<br />
André Malraux nos quais podemos contemplar a beleza terrível<br />
e sagra<strong>da</strong> <strong>da</strong> morte, a fascinação do mal e os processos <strong>da</strong> abjeção:<br />
o primeiro trata do momento em que Claude e Perken, personagens<br />
do romance La Vaie royale [A Estra<strong>da</strong> real, 1930] que<br />
se passa na floresta do Camboja, reencontram Grabot, personagem<br />
prisioneiro de uma tribo selvagem local; e o outro é aquele<br />
em que Garine e o narrador do romance Les Conquérants [Os<br />
Conquistadores, 1928], que trata <strong>da</strong> guerra de Cantão, em 1925,<br />
na China, encontram o corpo de um combatente alemão terrivelmente<br />
torturado.<br />
3 BATAILLE, Georges, op. cit.,<br />
p.63.
Da representação do horror ao vazio <strong>da</strong> representação<br />
183<br />
*<br />
Je suis la plaie et le couteau !<br />
Je suis le soufflet et la joue !<br />
Je suis les membres et la roue,<br />
Et la victime et le bourreau !<br />
4« L'héautontimorouménos »,<br />
in : Oeuvres completes, t. I.<br />
Paris: Gallimard, 1975,78.<br />
5 To<strong>da</strong>s as citações dos<br />
romances remetem à<br />
edição coletiva <strong>da</strong> Pléiade:<br />
MALRAUX, André. Romans.<br />
Paris: Gallimard, 1976. A<br />
página será indica<strong>da</strong> entre<br />
parênteses, precedi<strong>da</strong> <strong>da</strong> sigla<br />
do romance em questão: VR<br />
(La Voie Royale), C (Les<br />
Conquérants), CH (La<br />
Condition Humaine). As<br />
traduções são de minha<br />
responsabili<strong>da</strong>de.<br />
Charles Baudelaire 4<br />
As primeiras alusões à vi<strong>da</strong> de Grabot o fazem mergulhar<br />
numa atmosfera de len<strong>da</strong> e de mistério. Enquanto buscamos com<br />
Claude, um arqueólogo, e Perken, um aventureiro conhecedor <strong>da</strong><br />
região, os templos khmers perdidos na floresta asiática, participamos<br />
ao mesmo tempo <strong>da</strong> ansie<strong>da</strong>de de Perken à medi<strong>da</strong> que nos<br />
aproximamos <strong>da</strong> região onde se encontra aquele personagem. A<br />
partir <strong>da</strong> terceira parte do romance, a busca arqueológica deixa de<br />
constituir o centro de interesse <strong>da</strong> expedição, cedendo o lugar à<br />
luta do Perken pela libertação de Grabot.<br />
Ao partir para a região dos conflitos na Ásia, esse personagem<br />
não o fizera tão simplesmente por interesses econômicos ou<br />
políticos; buscava, sobretudo, responder a uma necessi<strong>da</strong>de imperiosa<br />
de «acertar as contas consigo mesmo»5 (VR, 219). Voltase<br />
para sua própria solidão. Algo o separa dos outros e o torna<br />
diferente: é a sua coragem. Esse é o germe do conflito que também<br />
vai dominar Tchen, o famoso terrorista <strong>da</strong> Condição Humana.<br />
Para esses dois personagens, arriscar a vi<strong>da</strong> é um prazer, já<br />
que a morte não lhes causa medo; ao contrário, ela os fascina.<br />
Gtabot é capaz de ultrapassar todos os limites para expor-se e<br />
perder-se, para gozar de um prazer terrível: o prazer de sua própria<br />
dor. É nesse sentido que, segundo Bataille, a per<strong>da</strong> se instala<br />
como um meio de aquisição de um poder sobre si mesmo e uma<br />
nova força sobre o mundo. É nesse sentido que ultrapassa a dimensão<br />
humana para alcançar uma dimensão sagra<strong>da</strong>, na qual o<br />
gesto <strong>da</strong> morte e o ato do sofrimento participam <strong>da</strong> força de um<br />
sacrifício ritual.<br />
É assim que a mutilação, que Grabot se impõe causando a<br />
destruição do próprio olho com pus blenorrágico, permite-lhe, na<br />
experiência <strong>da</strong> dor, a vitória <strong>da</strong> coragem sobre o medo. Diante de<br />
um escorpião que lhe causa forte repulsa, sua atitude é a mesma:<br />
ao invés de fugir, expõe-se e deixa-se picar de propósito (VR,
184 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
245-246). Toma-se assim um agente do mal, um transgressor.<br />
Como os reis <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des primitivas que, no momento de<br />
sua entronização, transgrediam as leis mais sagra<strong>da</strong>s e eram agredidos<br />
pelos súditos que os sujavam de sangue e excrementos para,<br />
assumindo o abjeto, conquistarem o poder de exorcizar a própria<br />
abjeção: contaminando-se com o impuro, absorviam o veneno do<br />
mal. A singulari<strong>da</strong>de do gesto de Grabot confirma seu isolamento.<br />
Com efeito, não é o ato de violência que lhe impõe a<br />
marginalização. Pelo contrário, sua exclusão precede o ato e exige<br />
o sacrifício, pois a exclusão é a marca <strong>da</strong> eleição. Enquanto<br />
pharmakos, espécie de vítima sacrificial, ele encerra a ambigüi<strong>da</strong>de<br />
característica do sagrado: etimologicamente a palavra latina<br />
sacer, sacra, sacrum possui dois sentidos que se excluem: sagrado<br />
e maldito, aquilo que não se pode tocar sem sujar e o que não<br />
se pode tocar sem se sujar. Carregando no seu próprio corpo o<br />
bem e o mal, Grabot se distingue fisicamente do homem comum,<br />
tomando-se dessa forma o ponto de convergência <strong>da</strong>s diferenças,<br />
o objeto multiforme, o homem-animal, humano-inumano, resolução<br />
<strong>da</strong>s antíteses.<br />
Prisioneiro dos selvagens, Grabot é condenado a empurrar<br />
a mó de um moinho, como num círculo infernal absurdo. Quando<br />
Claude e Perken penetram na palhoça sem janelas para libertá-lo,<br />
eles o reencontram como um objeto aterrorizador, « um rosto<br />
aviltado» (VR, 260), cujos olhos não vêem, um corpo brutalizado<br />
(por ele mesmo e pelos outros). A reação dos dois traduz o embaraço<br />
angustiante diante do desconhecido que o corpo do escravo<br />
ain<strong>da</strong> misterioso lhes impõe. A impossibili<strong>da</strong>de de aproximar-se<br />
dele reside no fato de que «suas pálpebras estica<strong>da</strong>s cola<strong>da</strong>s em<br />
um osso ausente» <strong>da</strong>vam a esse rosto o aspecto de uma degra<strong>da</strong>ção<br />
terrível. Grabot parecia um cadáver, imagem <strong>da</strong> decadência<br />
humana.<br />
Exorcizar o mal é, para ele, antes de tudo, encarná-lo, assumindo<br />
assim uma forma inumana. Assustadora ilustração do paradoxo<br />
<strong>da</strong> paixão de viver e <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de com a morte, contra cujo<br />
absurdo luta sem tréguas. E o melhor meio de fazê-lo é antecipar<br />
sua forma abjeta, é incorporá-la com to<strong>da</strong> a consciência, consciência<br />
semelhante à do Sísifo de Camus, opondo-se dessa forma ao<br />
jogo do destino, atacando-o com as mesmas armas.<br />
Nesse sentido, o rosto de Grabot que tentei esboçar, evoca,
Da representação do horror ao vazio <strong>da</strong> representação<br />
185<br />
a meu ver, a figura do homem em uma espécie de nudez fora do<br />
tempo. Sem voz e sem visão, esse corpo assusta e fascina, como<br />
se alcançasse o silêncio mais eloqüente e a visão mais ilimita<strong>da</strong>.<br />
Se aludi à análise que faz Malraux dos desenhos de Goya, é que<br />
vejo ali, sob a forma de um ensaio, a mesma imaginação que gerou<br />
os personagens romanescos. Falando dos torturados dos Desastres<br />
<strong>da</strong> guerra, Malraux afirma: "Quando o que ele pinta tem<br />
relação com o atroz - que o tenha visto, que lhe tenham contado<br />
ou que ele mesmo imagine - Goya mantém sua ligação com o<br />
intemporal. O supliciado, o homem de braços cortados suspensos<br />
nos galhos, que evocam a tortura milenar [ ... ] estão nus - fora do<br />
tempo." (S, 115). Ora não poderíamos evocar aqui Grabot, que<br />
acabamos de ver<br />
*<br />
Leurs yeux, dont la divine étincelle est partie,<br />
Comme s'ils regar<strong>da</strong>ient au loin, restent levés<br />
Au ciel ; on ne les voitjamais vers les pavés<br />
Pencher rêveusement leur tête appesantie.<br />
Ils traversent ainsi le noir illimité,<br />
Ce frere du silence étemel.<br />
.« Les Aveugles » ,<br />
BAUDELAIRE, Charles, op.<br />
cit,92.<br />
Charles Baudelaire 6<br />
Garine e o narrador de Les Conquérants encontram em uma<br />
sala o corpo do combatente alemão Klein terrivelmente torturado,<br />
ao lado de três reféns chineses.<br />
Diante desses corpos mortos e degra<strong>da</strong>dos, os personagens<br />
se sentem confusos, como se se encontrassem subitamente face a<br />
face com algo misterioso e incompreensível. Com efeito, a sensação<br />
de estranhamento que os invade é a súbita revelação de um<br />
outro mundo. Eis o que diz o narrador: «esses corpos de pé têm<br />
algo, não de fantástico, mas de surreal nessa luz e nesse silêncio.<br />
Consigo respirar de novo agora, e, com o ar que aspiro, invademe<br />
um odor que a na<strong>da</strong> se assemelha, animal, forte e insípido ao<br />
mesmo tempo: o odor dos cadáveres» (C, 129).<br />
A presença dos mortos transforma inteiramente o espaço<br />
em que se encontram. A posição ereta dos corpos contra a parede
186 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
dá uma dimensão diferente a esses cadáveres que não têm a postura<br />
habitual dos mortos, mas que parecem invadir, de certa forma,<br />
o mundo dos vivos. Donde a reação do narrador que, penetrando<br />
na luz radiante e no silêncio, vê aí algo que ultrapassa os<br />
limites do real. Tudo se transformou, como o ar, dominado por<br />
um odor animal mais forte do que a presença dos homens.<br />
É um momento ao mesmo tempo de ruptura e de reencontro:<br />
ruptura com a vi<strong>da</strong> e reencontro do humano com o inumano.<br />
E desse encontro nasce, como uma força estranha e dominadora,<br />
a fascinação. Os corpos torturados de Klein e dos três chineses<br />
projetam na atmosfera silenciosa <strong>da</strong> sala uma aura sagra<strong>da</strong>. E,<br />
diante dessas vítimas, Garine e o narrador são submetidos a uma<br />
experiência mística: aproximam-se <strong>da</strong> morte e estabelecem com<br />
ela laços de intimi<strong>da</strong>de.<br />
Aos olhos do narrador, o corpo de Klein impõe-se como a<br />
imagem concreta <strong>da</strong> tortura. E à descrição inicial do romance,<br />
quando o texto apresenta o militante como um homem grande e<br />
forte, vem sobrepor-se a de um corpo mutilado, com «uma enorme<br />
mancha no meio do rosto: a boca rasga<strong>da</strong> com uma navalha)),<br />
diante do qual o narrador desvia os olhos: « feri<strong>da</strong>s abertas, grandes<br />
manchas escuras de sangue coalhado, olhos revirados, todos<br />
os corpos se parecem. Foram torturados ... » (C, 130). É impossível<br />
não se pensar em Goya diante deste quadro! Como Goya,<br />
Malraux rompe com a tradição do belo, do real agradável à vista,<br />
e descobre em um percurso por outros já trilhado a beleza do mal.<br />
Por isso, sua obra é pontilha<strong>da</strong> de quadros atrozes que, como o de<br />
Klein e como a produção do pintor espanhol, trazem a revelação<br />
ou a sedução do horrível: « A terrível forma <strong>da</strong> sedução chama-se<br />
fascinação»7. Ora, diante de Klein e dos Chineses, achamo-nos<br />
diante desse in temporal de que fala Malraux a propósito de Goya<br />
- a tortura milenar - que nos transporta para fora do tempo.<br />
A chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> mulher de Klein introduz nesse quadro já tão<br />
denso e sobrenatural um personagem novo. Imóvel diante <strong>da</strong>quele<br />
corpo, sem chorar, ela o contempla. De súbito, cai de joelhos.<br />
Não reza. Parece atraí<strong>da</strong> pelas marcas <strong>da</strong>s atroci<strong>da</strong>des, como se,<br />
por elas, e apenas por elas, se lhe revelasse naquele momento a<br />
significação mais profun<strong>da</strong> do sangue: a eterna questão <strong>da</strong> morte<br />
dos homens. E num gesto de amor, essa mulher-sem-nome, essa<br />
mulher-sofrimento, «toma nos braços o corpo» do marido (C, 131),<br />
7 \1ALRAUX, André. Dessins<br />
de Goya au Musée du Prado.<br />
Genêve : Skira, 1947, p. XIII.
Da representação do horror ao vazio <strong>da</strong> representação<br />
187<br />
recuperando, assim, no romance (e na obra, onde a presença feminina<br />
é tão reduzi<strong>da</strong>) a imagem terna <strong>da</strong> Pietà. A figura <strong>da</strong> mãe<br />
não é incompatível com o universo cruel e violento que aí vivemos<br />
e ain<strong>da</strong> menos com a mulher do militante alemão. Aliás, a<br />
Pietà é ela própria uma figura plena de contrastes, pois reúne para<br />
sempre (como um destino petrificado!) a dor e o amor. Ela abraça<br />
a morte com um gesto convulsivo: «sacode a cabeça com um<br />
movimento incrivelmente doloroso de todo o busto .... ». Esfregando-se<br />
contra o sangue derramado, maculando o próprio corpo<br />
com os restos do humano, essa pobre mulher acentua o caráter<br />
absurdo <strong>da</strong> morte: «com uma terrível ternura, esfrega seu rosto,<br />
de forma selvagem, sem um soluço, no lençol ensangüentado, nas<br />
chagas» (C, 131).<br />
Esse quadro tão expressivo que Malraux nos apresenta reúne<br />
também - e de forma magistral- pela presença <strong>da</strong> mulher ama<strong>da</strong><br />
ao lado do cadáver do marido as figuras de Eros e de Tânatos.<br />
Em outras palavras, funde numa mesma imagem dois gestos que<br />
se assemelham fun<strong>da</strong>mentalmente: o do amor e o do sacrifício. E<br />
com seu gesto de amor, a mulher confunde-se com a morte, em<br />
uma comunhão fascinante e terrível, em um diálogo que, embora<br />
mudo, diz muito mais do que qualquer tratado sobre a morte.<br />
Os exemplos que apresentei como formas de pensar e de<br />
representar o abjeto são apenas dois momentos dos inúmeros que<br />
encontramos nas literaturas e nas artes. Na<strong>da</strong> de novo. A primeira<br />
questão que me movia nessa reflexão era delimitar um espaço de<br />
significação do abjeto que é, ain<strong>da</strong>, a meu ver, e continuará sendo,<br />
muito amplo, pois envolve manifestações diversas de um gesto<br />
que lança longe (ab-jecta) aquilo que nos repulsa, mas que, por<br />
outro lado, não se pode inteiramente separar do ser humano. A<br />
segun<strong>da</strong> questão referia-se à aura sagra<strong>da</strong> que esse abjeto instaura.<br />
O terrorista é um sacrificador: o homem-bomba imola e Se<br />
imola. Por isso, emaranhando vozes como Bataille. Kriste\"3..<br />
Nietzsche, mesmo se nem sempre mencionados. circunscreYi esse<br />
abjeto em torno <strong>da</strong> morte e de seus avatares.<br />
A terceira questão é pensar a representação do abjeto e in<strong>da</strong>gar<br />
sobre sua eficácia. É inegável que a arte constitui para o<br />
*
188 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
artista um manancial de vi<strong>da</strong>, um espaço de ressurreição onde,<br />
apesar <strong>da</strong> violência e <strong>da</strong> morte, reencontra ou tenta reencontrar<br />
ain<strong>da</strong> o equilíbrio <strong>da</strong>s coisas. O artista cria, instaura novas relações,<br />
um novo mundo (mesmo que imaginário). Seu gesto tem<br />
força demiúrgica, tem poder contra a violência. Mas até que ponto<br />
Em Notas de literatura, onde Adorno discute a função <strong>da</strong><br />
obra engaja<strong>da</strong>, essa pergunta assume um lugar de destaque. Referindo-se<br />
à peça de Sartre, quando alguém pergunta em Morts sans<br />
sépulture se há sentido em viver enquanto existem homens que<br />
batem em outros até que os ossos se quebrem, diz que uma pergunta<br />
se impõe ao mesmo tempo: a arte ain<strong>da</strong> pode existir Em<br />
um diálogo com o espanhol Alvear, professor de História <strong>da</strong> Arte,<br />
Scali, intérprete de Masaccio e de Piero della Francesca, professor<br />
<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Florença, diz no romance A Esperança,<br />
que relata a guerra civil espanhola de 1936: «Nas Igrejas do sul,<br />
onde combatemos, vi diante de quadros enormes manchas de sangue.<br />
As telas perdem sua força» (E, 835). Ao que responde Alvear:<br />
« Seriam necessárias outras telas, só isso».<br />
O que Alvear queria dizer com isso não fica claro. Creio<br />
que ca<strong>da</strong> tempo exige sua arte, novos engajamentos, e novas representações.<br />
Que escritores e artistas venham apresentando constantes<br />
protestos contra a violência que grassa ao nosso redor, não<br />
há a menor dúvi<strong>da</strong>. O que eu queria arriscar como reflexão é observar<br />
que, ao lado de inúmeras formas concretas de representação,<br />
a representação do vazio tem ca<strong>da</strong> vez mais lugar e é plena<br />
de sentido.<br />
Temos assistido na literatura e nas artes a uma reflexão constante<br />
sobre a ausência, o vazio, o silêncio. A linguagem perfeita<br />
do silêncio escaparia a to<strong>da</strong> e qualquer materiali<strong>da</strong>de física que a<br />
pudesse macular. A ausência do livro, para Blanchot, parece não<br />
querer corporificar a obra, mas alimentar o processo, como se,<br />
pela não existência, na<strong>da</strong> se pudesse corromper.<br />
Penso que há uma migração <strong>da</strong> representação concreta para<br />
uma representação pela ausência. Dois exemplos me vêm à lembrança.<br />
Visitei em julho de 2004 o Judisches M useum em Berlim,<br />
construído pelo arquiteto Daniel Liebeskind. O museu é organizado<br />
a partir de três eixos que se entrecortam: o <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de,<br />
o do exílio e o do holocausto. São salas altas, grandes, corredores
Da representação do horror ao vazio <strong>da</strong> representação<br />
189<br />
imensos e tudo quase vazio. Há salas com quadros de artistas<br />
judeus e outras salas vazias, numa ausência eloqüente de quadros<br />
que sumiram, foram destruídos, ou nunca existiram. Talvez se<br />
pudesse chamar isso de uma instalação do Vazio <strong>da</strong> Morte. A sala<br />
<strong>da</strong>s máscaras humanas, de aço, sobre as quais somos convi<strong>da</strong>dos<br />
a caminhar, causando um barulho metálico, agressivo, hostil -<br />
barulho abjeto - do humano desumanizado é algo que causa dor e<br />
repulsa.<br />
O segundo exemplo é o monumento que, naquele julho, ain<strong>da</strong><br />
estava por terminar: pedras tumulares negras em pleno centro de<br />
Berlim, a algumas quadras apenas <strong>da</strong> porta de Brandenburg.<br />
Túmulos vazios, plenos de lembranças. Era o centro do III Reich.<br />
Parece um cemitério. Mas não há corpos. Só pedras. É o monumento<br />
<strong>da</strong> ausência.<br />
Creio que é possível pensar essa ausência-plena. Plena de<br />
memória, vazia de forma humana. Ain<strong>da</strong> não sei bem como elaborar<br />
essa reflexão. Mas parece-me que a forma vazia, tal qual a<br />
linguagem do silêncio, é uma forma de proteger o já desumanizado,<br />
ou pelo menos de impedir a sua nova desumanização. Forma precária,<br />
talvez, de preencher o vazio com a memória que não se<br />
apagou. Parece um simples jogo de palavras, mas não é. Pelo menos<br />
para mim não é. Cria-se o espaço <strong>da</strong> morte, onde não há morte,<br />
porque a morte na<strong>da</strong> pode contra a morte.<br />
Fiquei perplexo como diante do sagrado. Recolhido. Emocionado.<br />
Muito mais do que diante <strong>da</strong> exibição abjeta dos cabelos,<br />
<strong>da</strong>s malas e dos sapatos de Auschwitz.<br />
Estou convencido de que a ausência é uma nova forma de<br />
reflexão e de representação <strong>da</strong> catástrofe e do horror.
191<br />
A literatura e a virtualização do texto<br />
literário<br />
Rogério Limo<br />
(UnB)<br />
'Lady Makby, marido Ideal<br />
(1895), in Beckson, Karl (Org).<br />
O melhor de Oscar Wilde.<br />
Tradução Dau Bastos. Rio de<br />
Janeiro: Garamond, 2000.<br />
'Ulman, Ellen. Perto <strong>da</strong><br />
máquina. Tradução Márcio<br />
Grillo. São Paulo: Conrad<br />
Editora do Brasil, 200 I, p. 123.<br />
Na<strong>da</strong> mais perigoso do que ser demasiado moderno: corre-se o risco<br />
de sair de mo<strong>da</strong> muito rapi<strong>da</strong>mente.<br />
Oscar Wilde I<br />
Viver virtualmente é uma arte. Como qualquer arte, a virtual i<strong>da</strong>de não<br />
é nem estável nem segura.<br />
Ellen Ullman 2<br />
o pós-moderno e a literatura Frankenstein<br />
lKolata, Gina. Clone: os<br />
caminhos para Dolly e as<br />
implicações éticas, espirituais e<br />
científicas. Tradução Ronaldo<br />
Sérgio De Biasi. Rio de Janeiro:<br />
Campus, 1998, p. 21.<br />
4Perrone-Moisés, Leyla.<br />
Derri<strong>da</strong> no Rio. Folha de São<br />
Paulo, Caderno Mais! São<br />
Paulo, 8 de julho de 2001.<br />
'Huxley, Aldous. Admirável<br />
mundo /lOvo. Tradução Vi<strong>da</strong>l<br />
de Oliveira e Lino Vallandro.<br />
26a. edição - São Paulo:<br />
Editora Globo, 2000, p. 9-10.<br />
'Kolata, Gina. Clone: os<br />
caminhos para Dolly e as<br />
implicações éticas, espirituais e<br />
científicas. Tradução Ronaldo<br />
Sérgio De Biasi. Rio de Janeiro:<br />
Campus, 1998, p. 7.<br />
Chamamos atenção para a seguinte questão: talvez se deva<br />
pensar a questão do virtual, ou de sua invasão do território literário,<br />
enlaçando, pelo menos para começar, três referências inevitáveis:<br />
complexi<strong>da</strong>de, veloci<strong>da</strong>de, interdisciplinari<strong>da</strong>de. Elas nos<br />
proporcionarão, combina<strong>da</strong>mente, outras possibili<strong>da</strong>des de reflexão.<br />
E neste momento, diante <strong>da</strong> polimorfia do virtual, <strong>da</strong> lentidão<br />
<strong>da</strong> letra e <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> imagem, a saí<strong>da</strong> jamais terá de ser<br />
a clonagem <strong>da</strong> literatura.<br />
Segundo Gina Kolata a clonagem é uma metáfora e um espelho.<br />
"Ela nos força a contemplar a nós mesmos e os nossos<br />
valores e a decidir o que é importante para nós e por quê."3 Para<br />
Jacques Derri<strong>da</strong> a clonagem se configura como uma repetição<br />
calcula<strong>da</strong> <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de genética de um indivíduo 4 , <strong>da</strong> mesma forma<br />
como Huxley denuncia o fato em seu Admirável Mundo Novo<br />
ao descrever a fria racionali<strong>da</strong>de do Processo Bokanovisky5. A<br />
bokanovskização é a metáfora de Huxley para a aplicação <strong>da</strong> linha<br />
de montagem fordiana à reprodução humana. A clonagem<br />
implica na produção e não na geração de um ser 6 ; essa afirmação<br />
coloca a literatura em um impasse entre a criação e a produção.
192 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
A clonagem <strong>da</strong> literatura deve ser interpreta<strong>da</strong> como uma<br />
repetição em série <strong>da</strong>quilo que já está posto pela própria literatura.<br />
O pós-modernismo opera justamente no sentido contrário ao<br />
<strong>da</strong> clonagem, que entendemos estar muito mais afeita ao cânone<br />
ou próximo do que Barthes chama de texto legíveU Os textos<br />
legíveis "São produtos (e não produções) que constituem a enorme<br />
massa de nossa literatura". 8 Esses são textos <strong>da</strong> esfera do possível<br />
e não do virtual.<br />
O pós-moderno trabalha com os signos cristalizados <strong>da</strong> cultura<br />
e tem por finali<strong>da</strong>de questionar valores estabelecidos e elaborar<br />
um novo objeto artístico, utilizando como material de sua composição<br />
elementos <strong>da</strong> própria cultura. 9 É possível que com esse<br />
tipo de ação viéssemos a ter uma literatura Frankenstein JO , mas<br />
não uma literatura clona<strong>da</strong>. "A literatura sempre antecipa a vi<strong>da</strong><br />
nunca a copia: ela a mol<strong>da</strong> segundo seus próprios objetivos".!! Os<br />
corpos textuais, legíveis, produzido pela literatura pós-moderna<br />
são corpos fraturados, dotados de virtuali<strong>da</strong>des e virtualizações<br />
(problematizações) internas ao texto e externas ao seu funcionamento,<br />
enquanto artefato técnico de comunicação de uma forma<br />
de arte em transformação.<br />
A literatura e a mídia digital<br />
O advento <strong>da</strong> mídia digital de massa e <strong>da</strong>s recentes<br />
tecnologias de informação/comunicação colocou em xeque o papel<br />
tradicional <strong>da</strong> literatura e <strong>da</strong> arte como um todo, desencadeando<br />
um movimento de autoquestionamento a partir de seus próprios<br />
fun<strong>da</strong>mentos. Estes questionamentos ocorrem sob diversos<br />
aspectos, dentre os quais podemos citar: a noção e concepção de<br />
autoria, a fragmentação <strong>da</strong> narrativa, as novas relações textuais<br />
- cria<strong>da</strong>s a partir do conceito de hipertexto (matriz de textos<br />
potenciais), <strong>da</strong> relação textolimagem, <strong>da</strong> interativi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong><br />
virtualização do texto literário e <strong>da</strong> introdução do conceito de<br />
ciberliteratura.<br />
Diante deste quadro, começa a ser esboça<strong>da</strong> uma poética <strong>da</strong><br />
literatura pós-moderna e de suas relações com o mundo virtual,<br />
atentando-se especialmente para as obras que procuram redefinir<br />
e ampliar o estatuto do literário seja pelo diálogo intersemiótico<br />
7Barthes, Roland. SfZ: uma<br />
análise <strong>da</strong> novela Sarrasine de<br />
Honoré de Balzac. Tradução<br />
Lea Novaes. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 1992, p.38.<br />
'Ibidem, p. 39.<br />
9Lima, Rogério. O <strong>da</strong>do e o<br />
Óbvio: o sentido do romance na<br />
pós-moderni<strong>da</strong>de. Brasília:<br />
Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />
Brasília/Editora Uni versa,<br />
1998.<br />
1°0 termo Frankenstein ou<br />
Frankensteinização tem sido<br />
usado por diversos segmentos <strong>da</strong><br />
crítica e autores como Nízia<br />
Villaça e Rosa Maria Rodríguez<br />
Mag<strong>da</strong> para desig-nar o texto<br />
literário pós-moderno em suas<br />
diversas formas de realização e<br />
elementos textuais integrados<br />
por ele. Nízia Villaça com o<br />
apelo à metáfora do termo alude<br />
"ao fato de que o texto<br />
eletrônico, no complexo informático/com<br />
unicacional,<br />
participa de um imaginário<br />
maquínico que, visto a partir de<br />
um horizonte do corpo enquanto<br />
<strong>da</strong>do natural, é considerado<br />
agente de desumanização,<br />
robotização, controle tecnológico."<br />
VJllaça, Nízia. "Robinson<br />
Crusoé, Babel, Prankenstein e<br />
outros mitos: corpo e tecnologia.<br />
In Villaça, Nízia.GÓes,<br />
Fred e Kosovski, Ester (Orgs.).<br />
Que corpo é esse Novas<br />
perspectivas. Rio de Janeiro:<br />
Mauad, 1999.<br />
Para Rosa María Ro-drigues<br />
Mag<strong>da</strong>, "Nos encontramos en<br />
el seno de la frankensteinizaçíon<br />
de la cultura, de la socie<strong>da</strong>de y<br />
de lavi<strong>da</strong>. Mientras las<br />
socie<strong>da</strong>des avanza<strong>da</strong>s nos<br />
ofrecem un modelo hologramático,<br />
retroviral, de redes<br />
informáticas, de fusión cyborg<br />
entre la biología y la técnica, el<br />
mundo en su conjunto nos<br />
retroatrae al territorio preindustrial<br />
do monstruoso, fragmentos<br />
distorsionados e irrecic1ables de<br />
un sigl0 que se acaba, deformes<br />
presencias milenaristas, la
A literatura e a virtualização do texto literário<br />
193<br />
multiplici<strong>da</strong>d heterogenia de<br />
nuestros fantasmas recientes<br />
engarzados en una fisiología<br />
excrescente, descomunal y atroz.<br />
Síntesi imposible, monstruosa<br />
por tanto, de la historia en<br />
nuestro presente, y presencia<br />
acechante dei monstruo de lo<br />
otro que en vano pretendemos<br />
recluir más aliá de nuestros<br />
limites de seguri<strong>da</strong>d.<br />
Con la denominación "modelo<br />
Frankenstein" pretendo metaforizarestas<br />
dos vertientes: porun<br />
lado, la pervivencia de los restos<br />
ca<strong>da</strong>véricos de nuestro pasado:<br />
teoóas, estéticas, religiones ...<br />
que retornan en una<br />
contemporanei<strong>da</strong>d convulsa,<br />
que no compone sin más un<br />
mosaico de <strong>da</strong>tación diversa sino<br />
que lo integra en un dinamismo<br />
redivivo y mutante; y, por otro<br />
lado, plasmar la presencia y eI<br />
horror de lo monstruoso en los<br />
limites de nuestra conciencia y<br />
nuestrageografía: el extranjero,<br />
el fanático, el violento, el<br />
marginal, las minoóas diferentes<br />
y ladiferenciaen suma." Mag<strong>da</strong>,<br />
Rosa María Rodríguez. El<br />
modelo frankenstein: de la<br />
diferencia a la cultura post.<br />
Madrid: Editorial Tecnos, 1997.<br />
11 Vivian, em "A decadência <strong>da</strong><br />
mentira", 1891. In Beckson,<br />
Karl (Org). O melhor de Oscar<br />
Wilde. Tradução Dau Bastos.<br />
Rio de Janeiro: Garamond,<br />
2000.<br />
12 Guattari, Félix. Da Produção<br />
<strong>da</strong> Subjetivi<strong>da</strong>de. In Imagem<br />
máquina. São Paulo: Editora<br />
34, 1993.<br />
13 Kubrick, Stanley. 2001 Uma<br />
Odisséia no Espaço. MGMI<br />
UA HOME VIDEO, VÍDEO<br />
ARTE DO BRASIL, 1968.<br />
63Deleuze, Gilles e Guattari.<br />
Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.<br />
Vol. I. Tradução<br />
Aurélio Guerra Neto e Célia<br />
Pinto Costa. São Paulo: Editora<br />
34, la Reimpressão, 1996, p.<br />
16.<br />
do texto com imagens, sons e movimentos, seja pelo<br />
questionamento de conceitos sobre leitura, autoria, narrativa e<br />
representação. No bojo de to<strong>da</strong>s as discussões surgi<strong>da</strong>s em torno<br />
<strong>da</strong> literatura neste final de século e que, atualmente, têm merecido<br />
lugar de destaque no campo <strong>da</strong>s ciências humanas está, sem dúvi<strong>da</strong>,<br />
a questão relativa ao pensamento e à produção literária na era<br />
do digital. Diante deste fato, buscamos com este trabalho refletir<br />
sobre as seguintes questões: até que ponto, e de que maneira, se<br />
diferenciam a forma e a sensibili<strong>da</strong>de literária <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de e<br />
<strong>da</strong> pós-moderni<strong>da</strong>de frente ao avanço <strong>da</strong> tecnologia digital e como<br />
se processará a relação leitor/texto diante do novo quadro que se<br />
estrutura Para responder a essas questões trabalharemos com a<br />
crítica <strong>da</strong> cultura que irá nos fornecer instrumental teóricoinvestigativo<br />
para que tornemos possível a formulação de alguns<br />
pressupostos teóricos acerca de uma nova lógica existencial para<br />
o sentido <strong>da</strong> literatura, num mundo dominado por imagens, veloci<strong>da</strong>de,<br />
informação em tempo real.<br />
Definitivamente, - como diz Félix Guattari 12 - entramos<br />
na era <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de maquínica, não de uma subjetivi<strong>da</strong>de<br />
reterritorializa<strong>da</strong>, mas de uma subjetivi<strong>da</strong>de controla<strong>da</strong> pelas máquinas:<br />
mídias, bancos de <strong>da</strong>dos, a temporali<strong>da</strong>de dos computadores<br />
(tempo real), telecomunicações. Não se trata aqui de dizer<br />
que as máquinas tomarão o poder e dominarão o homem % a<br />
ficção científica já fez essa previsão e ela não se concretizou, não<br />
<strong>da</strong> forma como foi profetiza<strong>da</strong> ou como o computador HAL 9000,<br />
de 2001 Uma odisséia no espaçol3, tentou impor a sua lógica<br />
coisifica<strong>da</strong> de máquina. Mas de apenas constatar o fato de que,<br />
ca<strong>da</strong> vez mais, e com maior intensi<strong>da</strong>de, a nossa subjetivi<strong>da</strong>de<br />
está entrando em máquina: esta é a era que Guattari classifica<br />
como era <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de <strong>da</strong> informática planetária. Segundo Freeman<br />
Dyson, não há nenhum perigo concreto de que a inteligência humana<br />
venha a ser supera<strong>da</strong> pela artificial, pois está continuará a<br />
ser uma ferramenta sob controle humano. 14 O perigo real reside<br />
no uso e na conformação que pode ser <strong>da</strong><strong>da</strong> às máquinas abstratas<br />
(políticas, econômicas, científicas, e outros)15 que podem agenciar<br />
a nossa consciência e sensibili<strong>da</strong>de de forma <strong>da</strong>nosa.
194 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
o virtual como problema<br />
Segundo Jean Baudrillard, hoje não pensamos o virtual; somos<br />
pensados por ele. Baudrillard abor<strong>da</strong> a questão do virtual de<br />
forma bastante negativa. Segundo ele, não é possível imaginarmos<br />
o quanto o virtual já transformou to<strong>da</strong>s as representações<br />
que temos do mundo. O virtual, na sua opinião, caracteriza-se<br />
pela eliminação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, mas não só, pois também inclui o<br />
apagamento <strong>da</strong> imaginação do real, do político, do social "- não<br />
somente a reali<strong>da</strong>de do tempo, mas a imaginação do passado e do<br />
futuro (a isso chamamos, em função de uma espécie de humor<br />
negro, de "tempo real")."16<br />
O virtual apresenta-se como uma ilusão que é perpassa<strong>da</strong> e<br />
domina<strong>da</strong> pela entra<strong>da</strong> em cena <strong>da</strong> informação, pelo fim do pensamento<br />
com o surgimento <strong>da</strong> inteligência artificial. Para esclarecer<br />
o seu pensamento, Baudrillard usa um exemplo bastante delicado,<br />
devido ao fato de estar situado ao longo do acontecimento mais<br />
assustador e mais incompreensível de nossa história moderna: a<br />
exterminação dos judeus nos campos de concentração nazistas e<br />
os que negam a sua ocorrência histórica, os chamados<br />
negacionistas. A postura negacionista é absur<strong>da</strong> e aberrante, pois<br />
vai contra a reali<strong>da</strong>de histórica e objetiva <strong>da</strong> exterminação. No<br />
tempo histórico os fatos aconteceram e as provas estão ao alcance<br />
de qualquer um, que as queira investigar. Mas Baudrillard chama<br />
a atenção para o fato de não estarmos mais no tempo histórico;<br />
de agora em diante estamos no tempo real. No tempo real não<br />
há mais prova de na<strong>da</strong>. É impossível verificar a exterminação no<br />
tempo real. O negacionismo é visto como um absurdo na sua própria<br />
lógica, mas aju<strong>da</strong> a esclarecer por meio do próprio absurdo o<br />
surgimento de uma outra dimensão:<br />
% paradoxalmente chama<strong>da</strong> tempo real, mas onde precisamente<br />
a reali<strong>da</strong>de objetiva desaparece, não somente a do acontecimento<br />
presente, mas também a do acontecimento passado e a<br />
do futuro. Tudo se esgotando numa total simultanei<strong>da</strong>de que os<br />
atos aí não acham sentidos, os efeitos não acham suas causas e<br />
a história não pode mais aí se refletir. 17<br />
14 Dyson, Freeman./nfinito em<br />
to<strong>da</strong>s as direções. Tradução<br />
Laura Teixeira Motta. São<br />
Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />
2000, p. 342.<br />
15 Deleuze, GiIles e Guattari,<br />
Félix. Mil Platôs: capitalismo<br />
e esquizofrenia. Vol. 5.<br />
Tradução Peter Pá! Pelbart e<br />
Janice Caiafa. São Paulo:<br />
Editora 34, p. 227.<br />
16 Baudrillard, Jean. Tela Total.<br />
Porto Alegre: Sulina, 1997, p.<br />
73.<br />
17 Ibidem, p. 73.<br />
O tempo real é visto por Baudrillard como um gênero de
A literatura e a virtualização do texto literário<br />
195<br />
" Lévy, Pierre. O que é o<br />
virtual. Tradução Paulo Neves.<br />
São Paulo: Ed. 34, 1996.<br />
(Coleção Trans) p. 18.<br />
buraco negro, onde na<strong>da</strong> penetra sem sofrer um esvaziamento de<br />
sua substância. Os campos de exterminação - argumenta o filósofo-<br />
tornam-se virtuais e só têm existência na tela do virtual.<br />
Todos os horrores decorrentes do Holocausto e os testemunhos<br />
<strong>da</strong> sua ocorrência são lançados, apesar dos negativistas, apesar de<br />
nós, no que ele chama de abismo do virtual onde os acontecimentos<br />
ou os fatos só existem o tempo que existem e na<strong>da</strong> mais.<br />
A visão de Baudrillard em relação ao virtual é altamente<br />
cética e desencanta<strong>da</strong>. Ele pressente no virtual a desestabilização<br />
<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e a derrota do pensamento histórico e crítico. Com<br />
isso ele quer dizer, na ver<strong>da</strong>de, que há o triunfo do tempo real<br />
sobre o presente, sobre o passado, sobre to<strong>da</strong> e qualquer forma de<br />
articulação lógica <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />
O mesmo não pode ser dito de Pierre Lévy que busca nos<br />
seus trabalhos uma compreensão diferencia<strong>da</strong> do virtual. Lévy<br />
apresenta uma visão mais positiva, pois vê no virtual a sua oposição<br />
ao atual. Fugindo ao senso comum o autor retira o conceito<br />
de virtual <strong>da</strong> ordem <strong>da</strong> ilusão, <strong>da</strong> ausência de existência. Desta<br />
forma, ele passa a ser entendido não como oposição ao real,<br />
mas ao atual. Vírtuah<strong>da</strong>de e atuali<strong>da</strong>de são apenas duas maneiras<br />
de ser diferente. A atualização pertence à esfera <strong>da</strong> solução<br />
de um problema, invenção de uma solução para um complexo<br />
problemático; enquanto que a virtualização pode ser entendi<strong>da</strong><br />
como o movimento inverso <strong>da</strong> atualização, ou seja, ela está situa<strong>da</strong><br />
no contexto <strong>da</strong> problematização. Porém, não deve ser entendi<strong>da</strong><br />
como uma desrealização (transformação de uma reali<strong>da</strong>de<br />
num conjunto de possíveis), mas como uma transformação<br />
de uma identi<strong>da</strong>de, um deslocamento do "centro de gravi<strong>da</strong>de<br />
ontológico" do objeto considerado que, ao invés de se orientar<br />
para uma solução (atualização), "a enti<strong>da</strong>de passa a encontrar<br />
sua consistência essencial num campo problemático". Virtualizar<br />
uma enti<strong>da</strong>de qualquer deve ser entendido como encontrar uma<br />
questão geral à qual ela se relaciona: consiste em fazer mover a<br />
enti<strong>da</strong>de em direção a essa interrogação e em reorientar a atuali<strong>da</strong>de<br />
de parti<strong>da</strong> como resposta a uma questão particular. 18 Partindo<br />
desta conceituação, buscamos virtualizar a construção do<br />
sentido na narrativa <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> pós-moderni<strong>da</strong>de, pois entendemos<br />
que o texto do romance no seu percurso do moderno<br />
para o pós-moderno se desterritorializou rumando na sua
196 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
virtualização (problematização) para uma ressurgência <strong>da</strong> cultura<br />
do texto.<br />
o virtual e suas relações<br />
Devemos fazer aqui algumas observações acerca de alguns<br />
conceitos como real e virtual, possível e atual, atualização e<br />
virtualização. Considerando, inicialmente, a oposição entre real e<br />
virtual, no seu uso ordinário, a palavra virtual é utiliza<strong>da</strong> para<br />
indicar ausência de existência, a não-materiali<strong>da</strong>de de uma "reali<strong>da</strong>de"<br />
tangível. O real pertence à ordem do tenho, o virtual está<br />
situado na ordem do terás, estando, dessa forma, circunscrito ao<br />
campo semântico <strong>da</strong> ordem <strong>da</strong> ilusão (ideal, ilusório, imaginado,<br />
imaginário, irreal, quimérico, utópico, possível). Esta compreensão<br />
do virtual, produzi<strong>da</strong> no âmbito do senso comum, tem como<br />
maior conseqüência - advin<strong>da</strong> <strong>da</strong> ironia fácil desse pensamento<br />
- a produção de um entendimento enganoso e grosseiro <strong>da</strong> relação<br />
real-virtual e, conseqüentemente, <strong>da</strong>s diversas formas de<br />
virtualização. Ain<strong>da</strong> que demasiado grosseiro para constituir uma<br />
teoria geral, essa maneira de enfocar a questão tem um fundo de<br />
ver<strong>da</strong>de que se revelará bastante útil, conforme poderá ser constatado<br />
mais adiante.<br />
A respeito <strong>da</strong>s novas relações pessoais e comerciais<br />
estabeleci<strong>da</strong>s ou impostas pelas novas formas de vi<strong>da</strong> media<strong>da</strong><br />
pela tecnologia digital e do virtual, Ellen Ullman escreve:<br />
Houve um tempo (ain<strong>da</strong> vivo na memória) em que "virtual"<br />
era uma palavra livre no idioma. Significava "quase ver<strong>da</strong>deiro"<br />
ou "para todos os efeitos, mas não por completo. Não de<br />
fato". A pessoa podia dizer: "Eu estava virtualmente feliz".<br />
Encontrava-se feliz de fato Não, porque junto com o "virtualmente"<br />
havia um quê de falsi<strong>da</strong>de, alguma coisa ausente, um<br />
estado inefável de que a felici<strong>da</strong>de não era tanta assim. Então,<br />
dizer "tenho uma empresa virtual" deveria significar que tenho<br />
uma empresa que não é tão real assim, algo próximo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />
de uma empresa, mas sem algum elemento essencial.<br />
Outras pessoas, por exemplo.<br />
Entretanto, a palavra "virtual" já não vaga livre no idioma. Foi<br />
aprisiona<strong>da</strong> pelas máquinas. Hoje "virtual" significa viver nesse<br />
lugar - que não é tão aqui assim - do computador e do
A literatura e a virtualização do texto literário<br />
197<br />
19 Ulman, ElIen. Perto <strong>da</strong><br />
máquina. Tradução Márcio<br />
Grillo. São Paulo: Conrad<br />
Editora do Brasil, 2001, p. 120.<br />
20 Hollan<strong>da</strong>, Aurélio Buarque<br />
de. Novo Aurélio Século XXI:<br />
Dicionário <strong>da</strong> Língua Portuguesa<br />
- Dicionário Eletrônico.<br />
Rio de Janeiro: Editora Nova<br />
FronteiralLexikon Informática,<br />
2000.<br />
21 Lévy, Pierre. O que é o<br />
virtual. Tradução Paulo Neves.<br />
São Paulo: Ed. 34, 1996.<br />
(Coleção Trans) p.IS.<br />
22 Deleuze, Gilles. Diferença e<br />
repetição. Tradução Luiz<br />
Orlandi, Roberto Machado. Rio<br />
de Janeiro: Graal, 1988, p.33S.<br />
23lbdem, p. 339-340.<br />
software. A palavra conserva um quê de ausência, <strong>da</strong>quilo que<br />
não é real. Mas, de alguma forma, essa negação virou uma<br />
coisa boa. Ter vi<strong>da</strong> efêmera e vagar nesse lugar indefinível que<br />
agora conhecemos como ciberespaço é considerado excelente.<br />
Os semideuses vivem ali. "Tenho uma empresa virtual" - ótimo,<br />
maravilha, formidável. 19<br />
o vocábulo virtual na sua origem do latim escolástico<br />
virtuale significa aquilo que existe como facul<strong>da</strong>de, porém sem<br />
exercício ou efeito atual. Suscetível de se realizar; potencial. Dizse<br />
do que está predeterminado e contém to<strong>da</strong>s as condições essenciais<br />
à sua realização. Opõe-se, nesta acepção, à idéia de potencial<br />
e atuaPO . "O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado,<br />
no entanto, à concretização efetiva ou formal". 21 Exemplificando,<br />
a semente contém virtualmente a árvore. Em termos filosóficos, e<br />
como vimos na acepção <strong>da</strong> palavra elenca<strong>da</strong> acima, o virtual não<br />
se opõe ao real, porém se coloca em total oposição ao atuaF2 . As<br />
categorias virtuali<strong>da</strong>de e atuali<strong>da</strong>de se configuram somente como<br />
dois modos de ser diferente.<br />
Conforme escreve Deleuze:<br />
o virtual possui uma plena reali<strong>da</strong>de. Do virtual, é preciso<br />
dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonância:<br />
"Reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos", e<br />
simbólicos sem serem fictícios. O virtual deve ser mesmo definido<br />
como uma estrita parte do objeto real-como se o objeto<br />
tivesse uma de suas partes no virtual e aí mergulhasse como<br />
numa dimensão objetiva. 23<br />
Deleuze traz à luz a distinção entre possível e virtual, chamando<br />
a atenção para o perigo de se confundir o virtual com o<br />
possível:<br />
Com efeito, o possível opõe-se ao real; o processo do possível<br />
é, pois, uma "realização". O virtual, ao contrário, não se opõe<br />
ao real; ele possui uma plena reali<strong>da</strong>de por si mesmo. Seu processo<br />
é a atualização. É um erro ver nisso apenas uma disputa<br />
de palavras: trata-se <strong>da</strong> própria existência. Ca<strong>da</strong> vez que colocamos<br />
o problema em termos de possível e de real somos forçados<br />
a conceber a existência como um surgimento bruto, ato<br />
puro, salto que se opera sempre atrás de nossas costas, subme-
198 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
tido à lei do tudo ou na<strong>da</strong>. Que diferença pode haver entre o<br />
existente e o não existente, se o não existente já é possível,<br />
recolhido no conceito, tendo to<strong>da</strong>s as características que o conceito<br />
lhe confere como possibili<strong>da</strong>de A existência é a mesma<br />
que o conceito, mas fora do conceito. Coloca-se, portanto, a<br />
existência no espaço e no tempo, mas como meios indiferentes,<br />
sem que a produção <strong>da</strong> existência se faça num espaço e num<br />
tempo característicos. A diferença só pode ser então o negativo<br />
determinado pelo conceito: seja a limitação dos possíveis entre<br />
si para se realizarem, seja a oposição entre o possível e a reali<strong>da</strong>de<br />
do real. O virtual, ao contrário, é a característica <strong>da</strong> Idéia;<br />
é a partir de sua reali<strong>da</strong>de que a existência é produzi<strong>da</strong>, e produzi<strong>da</strong><br />
em conformi<strong>da</strong>de com um tempo e um espaço imanentes<br />
à Idéia. 24<br />
Em segundo lugar, o possível e o virtual se distinguem ain<strong>da</strong><br />
porque um remete à forma de identi<strong>da</strong>de no conceito, ao passo<br />
que o outro designa uma multiplici<strong>da</strong>de pura na Idéia, que exclui<br />
radicalmente o idêntico como condição prévia. Enfim, na<br />
medi<strong>da</strong> em que o possível se propõe à "realização", ele próprio<br />
é concebido como a imagem do real, e o real como a semelhança<br />
do possível,25<br />
o possível, como coloca Deleuze, é exatamente igual ao<br />
real, já constituído, porém caracteriza-se como um real<br />
fantasmático, desrealizado, desprovido de existência, que congrega<br />
um conjunto de possíveis. Segundo a leitura que Lévy faz de<br />
Deleuze, "A realização de um possível não é uma criação, no sentido<br />
pleno do termo, pois a criação implica também a produção<br />
inovadora de uma idéia ou de uma forma".26 Sendo a diferença<br />
entre possível e real puramente lógica. Para o narrador deA biblioteca<br />
de Babel, de Jorge Luis Borges, - em sua busca pelo livro<br />
que contivesse todos os livros - o possível na sua relação com o<br />
real é a própria garantia de existência de um objeto. "Não me<br />
parece inverossímil que nalguma divisão do universo haja um livro<br />
total". Em nota a esta especulação ele afirma:<br />
Repito-o: basta que um livro seja possível para que exista. Somente<br />
está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é<br />
ao mesmo tempo uma esca<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> que, sem dúvi<strong>da</strong>, haja livros<br />
que discutem e neguem e demonstrem essa possibili<strong>da</strong>de e outros<br />
cuja estrutura corresponde à de uma esca<strong>da</strong>. 27<br />
24 Ibdem, p. 335-336.<br />
25 Ibid, p. 340.<br />
26 Lévy, Pierre. o que é o<br />
virtual. Tradução Paulo Neves.<br />
São Paulo: Ed. 34, 1996.<br />
(Coleção Trans) p. 16<br />
27 Borges, Jorge Luís. "A<br />
biblioteca de Babel" In<br />
Ficções. 6ª edição. Tradução<br />
Carlos Nejar. São Paulo:<br />
Globo, 1995, p. 90.
A literatura e a virtualização do texto literário<br />
199<br />
28 Ibidem. p.16.<br />
Na relação <strong>da</strong>s oposições estabeleci<strong>da</strong>s o virtual não se opõe<br />
ao real, mas sim ao atual. O virtual se configura como um complexo<br />
problemático: um nó de tendências ou forças que segue uma<br />
situação, um acontecimento, um objeto ou uma enti<strong>da</strong>de qualquer,<br />
e que aponta para um processo de resolução que se materializa<br />
na atualização. Desta forma, a virtuali<strong>da</strong>de pode ser entendi<strong>da</strong><br />
como uma problemática inerente a um ser, já a atualização se<br />
caracteriza como a solução, que não estava previamente enuncia<strong>da</strong>,<br />
de um problema. Segundo Lévy a atualização é criação, "invenção<br />
de uma forma a partir de uma configuração de forças e de<br />
finali<strong>da</strong>des".28 É possível apontar uma relação entre o pós-moderno<br />
e atualização devido às características desta nova forma de<br />
sensibili<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> atualização A resposta a esta pergunta é afirmativa.<br />
Lido pela ótica do virtual, o pós-moderno contém em si a<br />
virtualização, que se presentifica sob a forma de problematização<br />
- característica que lhe é imanente - e a atualização, que se estabelece<br />
como resposta às questões impostas pelo pós-moderno.<br />
Na relação entre possível e real, vimos que o possível é o<br />
real desrealizado à espera de uma dotação de reali<strong>da</strong>de que o retire<br />
do limbo. O que toma o real semelhante ao possível. Na correlação<br />
de forças entre virtual e atual não há nenhuma relação de<br />
similari<strong>da</strong>de, pois se o real é análogo ao possível, o atual não guar<strong>da</strong><br />
nenhuma relação de semelhança com o virtual, pois a sua função é<br />
responder a ele. A relação entre virtual e atual se configura <strong>da</strong><br />
seguinte forma: o virtual se apresenta como problema e o atual<br />
como solução para esse problema, resultando <strong>da</strong>í a atualização.<br />
Lévyescreve:<br />
Se a execução de um programa informático, puramente lógica,<br />
tem a ver com o par possível/real, a interação entre humanos e<br />
sistemas informáticos tem a ver com a dialética do virtual e do<br />
atual.<br />
A montante, a re<strong>da</strong>ção de um programa, por exemplo, trata um<br />
problema de modo original. Ca<strong>da</strong> equipe de programadores<br />
redefine e resolve diferentemente o problema ao qual é confronta<strong>da</strong>.<br />
A jusante, a atualização do programa em situação de<br />
utilização, por exemplo, num grupo de trabalho, desqualifica<br />
certas competências, faz emergir outros funcionamentos, desencadeia<br />
conflitos, desbloqueia situações, instaura uma nova<br />
dinâmica de colaboração ... O programa contém uma
200 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
virtuali<strong>da</strong>de de mu<strong>da</strong>nça que o grupo - movido ele também<br />
por uma configuração dinâmica de tropismos e coerções -<br />
atualiza de maneira mais ou menos inventiva. 29<br />
29 Ibid, p.l7.<br />
o processo <strong>da</strong> virtualização<br />
o processo <strong>da</strong> virtualização se constrói e pode ser definido<br />
justamente como um movimento na contramão <strong>da</strong> relação e do<br />
movimento que vai do virtual ao atual: atualização. Pois, na economia<br />
<strong>da</strong> virtualização a ordem dos fatores é inverti<strong>da</strong>, alterando<br />
substancialmente o produto. O ponto de parti<strong>da</strong> agora é a atualização<br />
(uma "solução") na direção de um problema, ou seja, constitui-se<br />
como uma passagem do atual em direção ao virtual, gerando<br />
dessa forma a virtualização. Ao contrário do possível (realização,<br />
ocorrência de um estado pré-definido) a virtualização não<br />
é uma desrealização (a transformação de uma reali<strong>da</strong>de num conjunto<br />
de possíveis), mas uma mu<strong>da</strong>nça de identi<strong>da</strong>de, "um deslocamento<br />
do centro gravitacional ontológico do objeto considerado".30<br />
Em lugar de deixar-se conhecer de maneira exata, de expor-se<br />
com precisão por meio de sua atuali<strong>da</strong>de, ou seja, pelo viés<br />
<strong>da</strong> solução, a enti<strong>da</strong>de transita para um campo problemático, onde<br />
descobre sua consistência essencial. 31 Retomando, a virtualização<br />
de uma enti<strong>da</strong>de qualquer se fun<strong>da</strong> no movimento de invenção de<br />
um problema geral à qual ela esteja relaciona<strong>da</strong>, em fazer transitar<br />
o objeto em direção a essa questão e redefinir a atuali<strong>da</strong>de de<br />
parti<strong>da</strong> como resposta a uma questão particular. O virtual tem<br />
para si a "reali<strong>da</strong>de de uma tarefa a ser cumpri<strong>da</strong>, assim como a<br />
reali<strong>da</strong>de de um problema a ser resolvido; é o problema que orienta,<br />
condiciona, engendra as soluções, mas estas não se assemelham<br />
às condições do problema". 32<br />
Para exemplificar o processo <strong>da</strong> virtualização Lévy utiliza a<br />
transformação do espaço de trabalho na era digital:<br />
30 Ibid, p.l7.<br />
31 Ibid, p.18.<br />
32 Deleuze, Gilles. Diferença e<br />
repetição. Tradução Luiz<br />
Orlandi, Roberto Machado. Rio<br />
de Janeiro: Graal, 1988, p.341.<br />
Tomemos o caso, muito contemporâneo, <strong>da</strong> "virtualização" de<br />
uma empresa. A organização clássica reúne seus empregados<br />
no mesmo prédio ou num conjunto de departamentos. Ca<strong>da</strong><br />
empregado ocupa um posto de trabalho, precisamente situado<br />
e seu livro de ponto especifica os horários de trabalho. Uma<br />
empresa virtual, em troca, serve-se principalmente de<br />
teletrabalho; tende a substituir a presença física de seus empre-
A literatura e a virtualização do texto literário 201<br />
JJ Lévy, Pierre. O que é o<br />
virtual. Tradução Paulo Neves.<br />
São Paulo: Ed. 34, 1996.<br />
(Coleção Trans) p. 18.<br />
gados nos mesmos locais pela participação numa rede de comunicação<br />
eletrônica e pelo uso de recursos e programas que<br />
favorecem a cooperação. Assim, a virtualização <strong>da</strong> empresa<br />
consiste, sobretudo, em fazer <strong>da</strong>s coordena<strong>da</strong>s espaço-temporais<br />
do trabalho um problema sempre repensado e não uma<br />
solução estável. O centro de gravi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> organização não é<br />
mais um conjunto de departamentos, de postos de trabalho e<br />
livros de ponto, mais um processo de coordenação que<br />
redistribui sempre diferentemente as coordena<strong>da</strong>s espaço-temporais<br />
<strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de de trabalho e de ca<strong>da</strong> um dos seus membros<br />
em função de diversas exigências. 33<br />
Constatamos aí a ocorrência <strong>da</strong> desterritorialização do trabalho,<br />
fato este que tem gerado diversas controvérsias no que diz<br />
respeito às rápi<strong>da</strong>s transformações tecnológicas que os setores produtivos<br />
têm sofrido e as interferências e mu<strong>da</strong>nças que estas transformações<br />
impõem à organização do trabalho e aos trabalhadores.<br />
A autora e engenheira de software norte-americana Ellen<br />
Ullman descreve com perfeição, em seu ensaio autobiográfico, o<br />
que é viver essa deriva <strong>da</strong> empresa virtual e o quanto ela pode<br />
gerar de assombro:<br />
Mas a vi<strong>da</strong> virtual <strong>da</strong>s empresas tecnológicas exige algo além<br />
<strong>da</strong> inspiração. O que se mostra indispensável é passar para o<br />
resto do mundo uma idéia de existência real. Devemos parecer<br />
uma empresa no sentido habitual <strong>da</strong> palavra, com a sala cheia<br />
<strong>da</strong>quele zumbido empreendedor. Não há na<strong>da</strong> mais estranho do<br />
que estar de calça moletom suja e atender ao telefone dizendo<br />
"Ellen Ullman aqui" com voz madura e eficiente. É como projetar-me<br />
(sic) num outro universo, onde visto um terninho e<br />
meu ca~elo está limpo, algum lugar que não tem na<strong>da</strong> a ver<br />
com o mundo que habito de moletom. Enquanto falo ao telefone<br />
- com um cliente ou diretor -, tenho a consciência de que<br />
coloquei a voz de maneira correta e de que vêem como desejei<br />
ser vista: uma mulher inteligente e empreendedora num apartamento<br />
requintado de paredes de tijolo. Desligar então é quase<br />
doloroso. Clique. Volto a mim mesma: criatura a na<strong>da</strong>r sozinha<br />
no mar do tempo.<br />
Além de certa entonação de voz, a facha<strong>da</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />
construí<strong>da</strong> é totalmente eletrônica - e, portanto, virtualiza<strong>da</strong><br />
mais uma vez. Endereço na internet com nome <strong>da</strong> empresa; fax<br />
com nome <strong>da</strong> empresa saindo do outro lado; secretária eletrô-
202 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
nica que atende com voz de recepcionista, não a nossa; número<br />
de telefone terminado em zero alguma coisa, para pensarem<br />
que telefonaram para nossa linha priva<strong>da</strong>, e não para a única<br />
que temos; timbres feitos por impressora a laser; recibos produzidos<br />
em Excel, Quattro Pro ou QuickBooks - tudo isso e<br />
mais alguma coisa para criar a ilusão necessária e inequívoca<br />
de existência padrão. É meio assustador pensar na facili<strong>da</strong>de<br />
que é fazer tudo isso.34<br />
A desmaterialização dos espaços tradicionais se corporifica<br />
sob uma nova forma de localização no ciberespaço: o endereço<br />
eletrônico, virtual. A desterritorialização total ocorre com a configuração<br />
do pontocom:<br />
Agora até Wall Street quer deixar Wall Street. Alguns meses<br />
depois voltei de Nova York, li um artigo no Wall Street Joumal:<br />
a Bolsa de Valores de Nova York precisa de mais espaço para<br />
equipamentos eletrônicos e já fala em sair <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Serão<br />
mais lojas fecha<strong>da</strong>s em Wall Street, na ver<strong>da</strong>deira Wall Street,<br />
o lugar que um dia foi o sustentáculo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Imaginei como<br />
se chamaria depois <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça: www.wallstreet.com<br />
Mas por que a bolsa não deveria se mu<strong>da</strong>r Por que os profissionais<br />
<strong>da</strong> área não deveriam viver como os diretores, fazendo<br />
telecomutação de suas lin<strong>da</strong>s casas em Connecticut A Nas<strong>da</strong>q<br />
é apenas um grande sistema de informações. 35 Então, por que<br />
não a Bolsa de Valores de Nova York O prédio na Wall com a<br />
Broad, na esquina do nosso, poderia talvez se transformar em<br />
atração para turistas. Talvez alguns corretores de carne e osso,<br />
pudessem ficar ali com suas camisas de corretor e gritar pelo<br />
microfone para transmissão de identificação de voz no sistema.<br />
Por que não As ci<strong>da</strong>des parecem ter se transformado em<br />
franquias de parque de diversões .36 As grandes lojas <strong>da</strong> Times<br />
Square são exatamente as mesmas Virgin, Gap, e Disney <strong>da</strong><br />
Union Square, em São Francisco, <strong>da</strong> Praça Catalunha, em<br />
Barcelona, ou do Champs Élysées. Os mesmos Mickey Mouses,<br />
Levis e hamburguesas. Então, por que não grandes lojas <strong>da</strong><br />
Bolsa de Nova York37<br />
A percepção <strong>da</strong> invasão do campo do real pelo virtual é um<br />
sentimento que paira sobre todos os que se dispõem a uma olha<strong>da</strong><br />
rápi<strong>da</strong> aos acontecimentos a sua volta. Em meio a tanta veloci<strong>da</strong>-<br />
H Ulman, Ellen. Perto <strong>da</strong><br />
máquina. Tradução Márcio<br />
Grillo. São Paulo: Conrad<br />
Editora do Brasil, 2001, p. 123.<br />
" Grifo nosso<br />
'" Grifo nosso.<br />
37 Ulman, Ellen. Perto <strong>da</strong><br />
máquina. Tradução Márcio<br />
Grillo. São Paulo: Conrad<br />
Editorado Brasil; 2001, p. 71.
A literatura e a virtualização do texto literário<br />
203<br />
38 Auster, Paul e Wang, Wayne.<br />
Sem Fôlego. Produção: Peter<br />
Newman/lnteral Production em<br />
associação com NDFIEURO<br />
SPACE "BLUE IN THE<br />
FACE" com Harvey Keitel -<br />
Madona - Michel J. Fox - Jim<br />
Jarmusch -Lou Reed - Roseanne<br />
- Mira Sorvino - Lily Tomlin .<br />
Elenco: Heidi Levitt, figurino:<br />
Claudia Brown, Di-retor de<br />
Fotografia: A<strong>da</strong>m Holender .<br />
A.S.C, editor: Christopher<br />
Tellefsen. 1995, tempo<br />
aproximado 89 minutos, EUA.<br />
39 Jean-Claude Carriere em<br />
ent<strong>revista</strong> a Catherine David in<br />
David, Catherine et al.<br />
Ent<strong>revista</strong>s sobre () fim dos<br />
tempos. Tradução de José<br />
Laurenio de Melo. Rio de<br />
Janeiro: Rocco, 1999.<br />
de é preciso diminuir a marcha e an<strong>da</strong>r mais devagar. Assim como<br />
o personagem criado por Paul Auster para o filme Sem Fôlego 38 ,<br />
Auggie Wren. Wren, ao mostrar um álbum de fotografias para<br />
Paul Benjamin, e logo após este reclamar que eram sempre as<br />
mesmas fotos tira<strong>da</strong>s de um único ângulo e de um mesmo lugar,<br />
responde para Benjamin "V á mais devagar ou você não entenderá<br />
na<strong>da</strong>". Guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as devi<strong>da</strong>s proporções, esta é a mesma postura<br />
adota<strong>da</strong> por Jean-Claude Carriere em seu elogio <strong>da</strong> lentidão: "O<br />
principal é talvez não ter um relógio digital, domar ca<strong>da</strong> dia, tomar<br />
o seu tempo em vez de ser tomado por ele". 39<br />
Baudrillard, tomado pela sensação de canibalismo do real<br />
pelo virtual, alerta para a disneylandização dos espaços comerciais<br />
e industriais produtivos invadidos pelo virtual aponta<strong>da</strong> por<br />
Ulman:<br />
No começo dos anos 80, quando a metalúrgica Lorena entrou<br />
em crise definitiva, os poderes públicos tiveram a idéia de atenuar<br />
esse desabamento criando um parque europeu do lazer,<br />
parque de temática "inteligente", destinado a <strong>da</strong>r fôlego à região:<br />
foi chamado de SchtroumpfIand. O diretor <strong>da</strong> siderurgia<br />
defunta tornou-se diretor do parque de atrações, e os<br />
metalúrgicos desempregados foram recontratados como<br />
"Schtroumpfmen" no quadro desse novo SchtroumpfIand. Infelizmente,<br />
quando o parque teve, por razões diversas, de fechar<br />
as portas, os ex-metalúrgicos convertidos em<br />
"Schtroumpfmen" acharam-se desempregados. Destino Sombrio<br />
que, depois de ter feito as vítimas reais do trabalho gerou<br />
os fantasmas do lazer, e finalmente os desempregados de ambos.<br />
Mas SchtroumpfIand era apenas uma miniatura. O empreendimento<br />
Disney tem outra dimensão. Para se ter uma idéia, é<br />
preciso saber que Disney "Illimited", depois de ter anexado<br />
uma <strong>da</strong>s maiores redes de televisão americana, está prestes a<br />
comprar a rua 42, em Nova York, a parte "quente" <strong>da</strong> rua 42,<br />
para fazer uma zona de atração erótica, sem mexer em na<strong>da</strong>,<br />
ou quase, ali: simplesmente transformar ao vivo, in situ, um<br />
palco sagrado <strong>da</strong> pornografia em sucursal <strong>da</strong> Disneyworld.<br />
Transformar os empresários <strong>da</strong> pornografia, as prostitutas,<br />
como os metalúrgicos de SchtroumpfIand, em figurantes de seu<br />
próprio mundo, uniformizados, museificados, disneificados.<br />
Como foi que o general Schwarzkopf, estrategista <strong>da</strong> guerra
204 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
do Golfo, comemorou a sua "vitória" Com uma gigantesca<br />
party na Disneyworld. Digna conclusão, com essa alegria coletiva<br />
no templo do imaginário para uma guerra virtua1. 4o<br />
'" Baudrillard, Jean. "Disneyworld<br />
Company" in Tela Total. Tradução<br />
Juremir Machado <strong>da</strong> Silva Porto<br />
Alegre: Sulina, 1997,p.l22.<br />
Desterritorialização e identi<strong>da</strong>de<br />
A questão <strong>da</strong> desterritorialização do trabalho e a per<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
identi<strong>da</strong>de são os temas principais do filme A rede 41 , filme que<br />
segue a tradição <strong>da</strong>s produções de entretenimento no sistema dos<br />
grandes estúdios hollywoodianos. Em A rede a personagem principal,<br />
Ângela Bennett - uma experta em encontrar defeitos (bugs)<br />
em programas de computadores, que tem o seu escritório de trabalho<br />
em sua residência - após receber de um colega de trabalho<br />
um arquivo contendo um programa de computador se vê no meio<br />
de uma conspiração. A conspiração envolve a segurança de sistemas<br />
de informação do governo americano e uma grande<br />
corporação que pretender monopolizar o mercado de programas<br />
de segurança informatiza<strong>da</strong> do país.<br />
Como Bennett tem acesso ao plano <strong>da</strong> conspiração, por meio<br />
de um disquete de computador, que supostamente conteria um<br />
programa defeituoso enviado por seu amigo, a corporação busca<br />
eliminá-la substituindo a sua identi<strong>da</strong>de pela identi<strong>da</strong>de de uma<br />
criminosa perigosa, procura<strong>da</strong> pela polícia. Devido ao fato de<br />
Ângela Bennett viver totalmente em função de seu trabalho -<br />
sempre em casa conecta<strong>da</strong> à Internet -, desterritorializa<strong>da</strong> e<br />
virtualiza<strong>da</strong>, apenas mantendo vínculos mínimos com o mundo<br />
real e sem existência exterior até mesmo para a vizinhança, não<br />
consegue provar a ninguém, quando confronta<strong>da</strong> pela polícia, que<br />
ela é quem diz ser. Isto ocorre devido ao fato de nem mesmo os<br />
seus vizinhos mais próximos nunca a terem visto, ou de a terem<br />
visto muito poucas vezes para que pudessem fixar uma identificação<br />
segura <strong>da</strong> personagem. A única pessoa que poderia provar<br />
que ela quem diz ser é sua mãe. Porém, essa sofre do mal de<br />
Alzheimer, ou seja, não tem memória (função cognitiva), melhor<br />
dizendo é portadora de uma memória em ruína, num processo<br />
crescente de "desconexão cortical"42. A mãe de Bennett não é<br />
capaz de estabelecer a relação dialética entre recor<strong>da</strong>ção e esquecimento,<br />
principal característica <strong>da</strong> memória43 e, dessa forma,<br />
garantir o reconhecimento e a confirmação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> per-<br />
41 Winkler, Irwin. A rede (The<br />
Net). Sandra B ullock, Jeremy<br />
Northam, Denis Miller Rot,<br />
John Brancato e Michael Ferris.<br />
Produzido por Irwin Winkler e<br />
Rob Cowan. Cor. Aprox. 105<br />
minutos. Aventura. Copyright<br />
1995 Columbia Pictures<br />
Industries Inc. Distribuição<br />
Columbia Tristar Home Vídeo,<br />
LK-TEL Vídeo. Sony Music<br />
Enterteinement (Brasil) Ind. e<br />
Com. Lt<strong>da</strong> (Distribuição<br />
Exclusiva).<br />
4'Leibing, Annette. "O homem<br />
sozinho numa estação: a<br />
doença de Alzheimer e as<br />
práticas do esquecimento no<br />
Brasil". In Leibing, Annettee<br />
Benninghoff-LühI, Sibylle<br />
(Orgs.). Devorando o tempo:<br />
Brasil, o país sem memória.<br />
São Paulo: Editora Man<strong>da</strong>rim,<br />
2001.<br />
43 Humberto Eco em ent<strong>revista</strong><br />
a Catherine David in David,<br />
Catherine et a!. Ent<strong>revista</strong>s<br />
sobre o fim dos tempos.<br />
Tradução de José Laurenio de<br />
Melo. Rio de Janeiro: Rocco,<br />
1999.
A literatura e a virtualização do texto literário 205<br />
sonagem. No filme, identi<strong>da</strong>de está diretamente liga<strong>da</strong> à memória,<br />
que estaciona<strong>da</strong> em bancos de <strong>da</strong>dos oficiais tornou-se um objeto<br />
frágil e passível de todo o tipo de ataque digital, podendo, por<br />
essa via, vir a ser altera<strong>da</strong> a qualquer momento conforme adverte<br />
Ângela Bennett:<br />
44 Winkler, Irwin. A rede (The<br />
Net). Sandra Bullock, Jeremy<br />
Northam, Denis Miller Rot,<br />
John Brancato e Michael Ferris.<br />
Produzido por Irwin Winkler e<br />
Rob Cowan. Cor. Aprox. 105<br />
minutos. Aventura. Copyright<br />
1995 Columbia Pictures<br />
Industries Inc. Distribuição<br />
Columbia Tristar Home Vídeo,<br />
LK-TEL Vídeo. Sony Music<br />
Enterteinement (Brasil) Ind. e<br />
Com. Lt<strong>da</strong> (Distribuição<br />
Exclusiva).<br />
45 Lévy, Pierre. O que é ()<br />
virtual. Tradução Paulo Neves.<br />
São Paulo: Ed. 34, 1996.<br />
(Coleção Trans) p. 25.<br />
46 Integrante <strong>da</strong> Escola de<br />
Crítica Alemã juntamente com<br />
Erich Auerbach, Leo Spitzer e<br />
Frederic Gundolf. A crítica<br />
alemã, inicialmente em 1915,<br />
no interior <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de,<br />
depois em processo de<br />
imigração sob o regime nazista,<br />
produziu trabalhos fun<strong>da</strong>mentais<br />
que, por seu método e<br />
espírito de síntese - herdeiros<br />
de vasta tradição - renovaram<br />
o panorama dos estudos<br />
literários.<br />
Pense. O mundo todo está dentro de um computador ... Tudo. A<br />
sua carteira de motorista, registro <strong>da</strong> Previdência ... Cartão de<br />
crédito, histórico médico, está tudo lá ... Tudo está lá ... Tudo<br />
está guar<strong>da</strong>do numa sombra eletrônica que todos temos ... Implorando<br />
para ser altera<strong>da</strong>. Eles fizeram isso comigo e farão<br />
com você também. 44<br />
Ao longo de to<strong>da</strong> a trama <strong>da</strong> narrativa de A Rede a personagem<br />
busca recuperar a sua identi<strong>da</strong>de rouba<strong>da</strong> e provar a sua inocência<br />
em crimes que não havia cometido. A questão <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />
é um dos temas que passou a dominar a cena <strong>da</strong>s discussões<br />
críticas no final do século XX, impulsiona<strong>da</strong> pelo avanço <strong>da</strong>s novas<br />
tecnologias de comunicação e conseqüente desenvolvimento<br />
do ciberespaço, lugar onde as identi<strong>da</strong>des se diluem e se transformam<br />
de maneira vertiginosa.<br />
Pierre Lévy escreve:<br />
As coisas só têm limites claros no real. A virtualização, passagem<br />
à problemática, deslocamento do ser para a questão, é algo<br />
que necessariamente põe em causa a identi<strong>da</strong>de clássica, pensamento<br />
apoiado em definições, determinações, exclusões, inclusões<br />
e terceiros excluídos. Por isso a virtualização é sempre<br />
heterogênese, devir outro, processo de acolhimento <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de.<br />
Convém evidentemente não confundir a heterogênese com seu<br />
contrário próximo e ameaçador, sua inimiga, a alienação, que eu<br />
caracterizaria como reificação, redução à coisa, ao "real". 45<br />
No âmbito <strong>da</strong> crítica literária, entre tantas, há algumas questões<br />
que apontamos como exemplos de processos de virtualização<br />
do entendimento <strong>da</strong> literatura: a primeira delas se refere ao crítico<br />
Ernst-Robert Curtius 46 e a sua proposição de procedimento crítico<br />
de apagamento de to<strong>da</strong>s as fronteiras temporais e espaciais,<br />
que configuram o impedimento <strong>da</strong> proliferação de uma visão<br />
universalista no estudo crítico-literário. Ain<strong>da</strong> que Curtius tenha
206 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
elaborado as bases do seu procedimento crítico tendo em mente a<br />
preservação e guar<strong>da</strong> <strong>da</strong> literatura européia, numa clara manifestação<br />
do mais puro eurocentrismo, ignorando até mesmo a literatura<br />
norte-americana, no momento em que o mundo já havia se<br />
fragmentado por causa do avanço totalitarista do nacional socialismo<br />
na Alemanha e <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial. 47 Ao propor a<br />
eliminação <strong>da</strong>s fronteiras temporais e espaciais, Curtius virtualizou<br />
a questão <strong>da</strong> crítica e <strong>da</strong> teoria literária, em sua época, assim como<br />
Albert Béguin 48 que via com grande desconfiança as categorias literárias'<br />
os estilos, as zonas geográficas: "A fixação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do espírito<br />
em categorias estáveis não é benéfica à inteligência dessa vi<strong>da</strong>".<br />
A segun<strong>da</strong> questão diz respeito ao romance Iracema, de<br />
José de Alencar. O romance de Alencar é considerado uma <strong>da</strong>s<br />
obras mais importantes <strong>da</strong> literatura brasileira, e responde pela<br />
representação <strong>da</strong> construção <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de brasileira em sua<br />
narrativa. Esta é uma questão que coloca o romance numa posição<br />
de acomo<strong>da</strong>ção na série literária brasileira, representa<strong>da</strong> pelo<br />
Romantismo e sua realização no Brasil. Analisado pelo viés <strong>da</strong><br />
virtualização é possível reinvestir o romance de uma<br />
problematização que o recoloca na cena <strong>da</strong> crítica não como obra<br />
canônica <strong>da</strong> literatura brasileira, mas como obra que carrega consigo<br />
questões que não foram toca<strong>da</strong>s, e por isso mesmo, não foram<br />
resolvi<strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong> narrativa, devido ao fato de não se<br />
configurarem como preocupação do autor, à época em que foi<br />
escrito o romance, ou de a figura feminina e os problemas que<br />
suscita não encontrar ecos substanciais, no círculo de leitores e<br />
intelectuais do século XIX, relativos à sua condição perante a<br />
crítica. Uma <strong>da</strong>s questões em Iracema que vali<strong>da</strong>m uma leitura<br />
pelo processo de análise <strong>da</strong> virtualização refere-se à identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
personagem situa<strong>da</strong> no âmbito <strong>da</strong> expressão objetiva <strong>da</strong> natureza.<br />
Como conseqüência desta opção na elaboração <strong>da</strong>s caracterÍsticas<br />
<strong>da</strong> personagem se cria condições para a sua dominação pelo<br />
colonizador branco e sua conseqüente per<strong>da</strong> de identi<strong>da</strong>de. Desta<br />
forma, teremos a sua destruição em favor <strong>da</strong> manutenção do status<br />
quo do branco dominador que, para a personagem, no seu primeiro<br />
encontro, aparece como sedutor e depois como "marido".<br />
O processo de esvaziamento, per<strong>da</strong> e destruição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />
de Iracema, levam-na a romper com as leis de seu povo, <strong>da</strong><br />
própria natureza, e instaura uma desordem absoluta, restando à<br />
47 Tadié, Jean-Yves. A crítica<br />
literária no século XX.<br />
Tradução Wilma Freitas Ronald<br />
de Carvalho. Rio de Janeiro:<br />
Bertrand Brasil, 1992, p. 53<br />
48 Albert Béguin (1901-1957)<br />
integrante <strong>da</strong> escola de<br />
Genebra juntamente com<br />
Marcel Raymond, George<br />
Poulet. Jean Rousset e Jean<br />
Starobinski; fazia a chama<strong>da</strong><br />
crítica <strong>da</strong> consciência cujas<br />
bases de trabalho critico seguiam<br />
o itinerário do sentido e<br />
buscavam <strong>da</strong>r, com esse mesmo<br />
movimento, sentido à literatura,<br />
ao mundo e a nós mesmos.
A literatura e a virtualização do texto literário<br />
207<br />
49Balandier, Georges. A<br />
desordem: elogio do movi·<br />
menta. Tradução de Susana<br />
Martins. Rio de Janeiro:<br />
Bertrand Brasil, 1997.<br />
50Lévy, Pierre. O que é o<br />
virtual. Tradução Paulo Neves.<br />
São Paulo: Ed. 34, 1996.<br />
(Coleção Trans) p. 25<br />
51 Silva, Anazildo Vasconcelos<br />
<strong>da</strong>. Semiotização literária do<br />
discurso. Rio de Janeiro: Elo,<br />
1984.<br />
52Maranhão,Haroldo. Memorial<br />
do fim: a morte de machado de<br />
Assis. São Paulo: Marco Zero,<br />
1991.<br />
53 Deleuze, GilIes e Guattari.<br />
Mil platôs: capitalismo e<br />
esquizofrenia. VaI. 1. Tradução<br />
Aurélio Guerra Neto e Célia<br />
Pinto Costa. São Paulo: Editora<br />
34, la Reimpressão, 1996, p.<br />
25.<br />
personagem a fuga. A fuga é o movimento49 que encaminha a<br />
personagem para a recomposição <strong>da</strong> ordem, ain<strong>da</strong> que ela mesma<br />
não saiba disso. Quanto mais Iracema se afasta de seu povo mais<br />
se aproxima do abismo no qual irá cair. Com a quebra dos laços<br />
tribais e familiares, a personagem é lança<strong>da</strong> em um não-lugar, um<br />
território vazio. Desterritorializa<strong>da</strong> resta à personagem apenas o<br />
sofrimento e a morte. Iracema passa a ter uma existência<br />
virtualiza<strong>da</strong> (problematiza<strong>da</strong> e não-presencial), pois a sucessão<br />
de seus atos a transforma em um problema para a sua tribo; pesa<br />
sobre a personagem uma fatali<strong>da</strong>de: "O guerreiro que possuísse a<br />
virgem de Tupã morreria", e, conseqüentemente, a sacerdotisa,<br />
pela quebra de seus votos.<br />
A virtualização se configura na passagem do ser para a questão<br />
que põe em deman<strong>da</strong> a identi<strong>da</strong>de clássica, idéia basea<strong>da</strong> em<br />
definições, determinações, exclusões, inclusões e terceiros excluídos.<br />
50 A questão do não-lugar se adequa muito bem ao caso de<br />
Iracema, pois diferentemente do limbo que a colocaria no reino<br />
do possível-já que limbo significa esquecimento, e o que é esquecido<br />
está desrealizado e, a qualquer momento, pode ser lembrado<br />
- garantindo, desta forma, a sua possibili<strong>da</strong>de de sobrevivência.<br />
O não-lugar não oferece condições de sobrevivência ao<br />
personagem, pois este se encontra em total desconformi<strong>da</strong>de com<br />
o seu mundo. A per<strong>da</strong> <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de será cobra<strong>da</strong> pelo espaço e<br />
to<strong>da</strong>s as suas convenções sociais, no momento de imposição <strong>da</strong><br />
sua lógica narrativa; como conseqüência <strong>da</strong> imposição <strong>da</strong> lógica<br />
do espaço, a única saí<strong>da</strong> para o personagem está na sua morte. 51<br />
O conceito de não-lugar está relacionado a outro conceito que é o<br />
de não-presença. Com o exemplo de Iracema, inserimos a questão<br />
do não estar presente ou <strong>da</strong> virtualização como êxodo.<br />
Outra obra na qual podemos exemplificar a ocorrência <strong>da</strong><br />
virtualização como forma problematizadora é Memorial do fim: a<br />
morte de Machado de Assis, de Haroldo Maranhão 52 • Memorial<br />
do fim integra a categoria de escritura que pode ser classifica<strong>da</strong><br />
como rizomorfa53 e hipertextual. O hipertexto que a obra traz<br />
consigo é construído por fragmentos <strong>da</strong> ficção machadiana e por<br />
elementos culturais e históricos do mundo no qual essa obra esteve<br />
e está imersa. Memorial do fim virtualiza pontos importantes<br />
<strong>da</strong> literatura machadiana e <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong> obra machadiana, do próprio<br />
fazer literário e <strong>da</strong>s relações do autor com as figuras históri-
208 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
cas do seu tempo, atualizando-as. Tomando a atualização como<br />
criação e invenção de uma forma, partindo de uma estruturação<br />
dinâmica de forças e de finali<strong>da</strong>des, é possível afirmar que o romance<br />
na pós-moderni<strong>da</strong>de produz e introduz quali<strong>da</strong>des novas<br />
na narrativa, produz uma transformação <strong>da</strong>s idéias, um ver<strong>da</strong>deiro<br />
devir que realimenta o virtual, enquanto força<br />
problematizadora. 54 Questões <strong>da</strong> mesma ordem aparecem no romance<br />
A laranjeira, de Carlos Fuentes.<br />
A Laranjeira é forma<strong>da</strong> por cinco novelas, frutos de uma<br />
mesma árvore, que simbolicamente significa a fecundi<strong>da</strong>de para<br />
vários povos e está intimamente liga<strong>da</strong> à história <strong>da</strong> conquista do<br />
continente americano e à formação do imaginário dos espanhóis<br />
conquistadores e dos povos conquistados.<br />
A narrativa de A Laranjeira é bastante sedutora, apesar de<br />
carregar consigo o tema <strong>da</strong> morte como fio condutor de suas cinco<br />
novelas. As duas margens é o título <strong>da</strong> primeira <strong>da</strong>s cinco novelas<br />
que é narra<strong>da</strong> por Jerónimo de Aguilar, espanhol que participou<br />
<strong>da</strong> Conquista <strong>da</strong> América como língua (intérprete castelhano/<br />
náhuatle) de Hernán Cortés. Jerónimo de Aguilar,<br />
machadianamente, faz um balanço amargo <strong>da</strong> grande empresa<br />
marítima espanhola e <strong>da</strong>s traições dos conquistadores e dos conquistados.<br />
O narrador de As duas Margens, a mais importante <strong>da</strong>s<br />
cinco novelas, ao longo de sua narrativa toca em questões fun<strong>da</strong>mentais<br />
<strong>da</strong> cultura.<br />
Com a sua autori<strong>da</strong>de de morto ele passeia pela crônica histórica,<br />
por uma discussão sobre o uso <strong>da</strong> língua como instrumento<br />
de dominação e traição, levantando questões acerca <strong>da</strong> vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
narrativa e sobre a morali<strong>da</strong>de do conquistador e do conquistado.<br />
História e ficção se misturam ao longo <strong>da</strong>s cinco novelas,<br />
sempre media<strong>da</strong>s por um narrador morto, ou que logo estará morto,<br />
como ocorre ao personagem Vince Valera, narrador de Apolo e as<br />
putas. As putas são sete anãs que trabalham para uma cafetina<br />
conheci<strong>da</strong> como Branca de Neve, que não sabem o que fazer com<br />
seu cliente morto em pleno mar, durante uma orgia sexual, num<br />
caíque que não sabem conduzir e sem comi<strong>da</strong>. Em meio a essa<br />
situação tragicômica, só o que lhes resta, para resolver o problema<br />
de comi<strong>da</strong>, é usar o pênis de Vince Valera como isca para<br />
pescar. Enquanto se deteriora, Valera pode perceber a ver<strong>da</strong>deira<br />
,. Lima, Rogério. O <strong>da</strong>do e o<br />
óbvio: a significação no<br />
romance <strong>da</strong> pós-moderni<strong>da</strong>de.<br />
Brasília: Editora Universi<strong>da</strong>de<br />
de BrasílialUniversa, 1998.
A literatura e a virtualização do texto literário<br />
209<br />
alma dessas mulheres do México, mas não a si próprio. Ele não sabe<br />
o que representa, e nem pode saber ver<strong>da</strong>deiramente quem é, pois<br />
como morto está impedido de olhar-se no espelho.<br />
Em Os filhos do Conquistador há um embate ácido entre os<br />
dois filhos de Cortés: Martin I, filho do conquistador com espanhola<br />
Juana de Zúfíiga, e Martin 11, com a índia Malinche. Num<br />
diálogo longo, provocativo e cheio de rancor aparecem as contradições<br />
<strong>da</strong> Conquista, as traições <strong>da</strong> Coroa a Cortés e o menosprezo<br />
pelos filhos de espanhóis nascidos na América. A morte aparece<br />
como espetáculo e o sentimento dominante é o de nostalgia de<br />
" Numância, antiga ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> um país que não chegou a nascer.<br />
Espanha (a modema Sória).<br />
Em As duas Numâncias55 o tema <strong>da</strong> narrativa e <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> história aflora, a duali<strong>da</strong>de surge como problema, o duplo se<br />
apresenta como uma questão que atormenta filosoficamente o<br />
narrador. A narrativa é discuti<strong>da</strong> como uma invenção que satisfaz<br />
a curiosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele que não consegue saber o que se passa além<br />
dos muros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de sitia<strong>da</strong>. O espelhamento e o estilhaçamento<br />
do eu e <strong>da</strong> narrativa são temas caros em As duas Numâncias.<br />
A última novelaAs duas Américas fala de um paraíso descoberto<br />
por Colombo, que nele permaneceu e se estabeleceu,<br />
lançando apenas uma garrafa ao mar com a sua descrição e localização,<br />
com a finali<strong>da</strong>de de <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> sua descoberta à Coroa<br />
espanhola. Colombo permanece no seu paraíso durante anos,<br />
até que finalmente chegam os japoneses e suas grandes<br />
corporações e globalizam a América, transformando-a em um<br />
não-lugar, num grande parque de diversões do turismo internacional,<br />
tendo Colombo como seu testa-de-ferro e gerente. O<br />
destino <strong>da</strong> América na visão de Carlos Fuentes é extremamente<br />
irônico e trágico, pois na busca de sua identi<strong>da</strong>de não há espelho<br />
que lhe sirva para lhe mostrar quem ela é ver<strong>da</strong>deiramente.<br />
Fuentes se comporta como o personagem Políbio, narrador de<br />
As duas Numâncias, que imagina o que se passa dentro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />
cerca<strong>da</strong> para, perversamente, dizê-lo ao general romano conquistado.<br />
Imaginar e narrar a América é fun<strong>da</strong>mental. Esse gesto<br />
é perverso, mas é também caridoso, pois sem a ficção não<br />
saberíamos o que aconteceu à América.<br />
Lévy chama atenção para o fato de que:<br />
Fazer de uma coerção pesa<strong>da</strong>mente atual (a <strong>da</strong> hora e <strong>da</strong> geo-
210 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
grafia, no caso) uma variável contingente tem a ver claramente<br />
com remontar o inventivo de uma "solução" efetiva em direção<br />
a uma problemática, e, portanto, com a virtualização ( ... ).<br />
Era, portanto, previsível encontrar a desterritorialização, a saí<strong>da</strong><br />
<strong>da</strong> "presença", do "agora" e do "isto" como uma <strong>da</strong>s vias<br />
régias <strong>da</strong> virtualização. 56<br />
Assim como Albert Béguin via com grande desconfiança a<br />
fixação de categorias literárias, estilos ou zonas geográficas como<br />
ação não benéfica à inteligência dessa vi<strong>da</strong>, e por este motivo propunha<br />
a eliminação destes entraves conceituais, o pós-moderno<br />
impõe às categorias história e ficção o mesmo que o virtual opera<br />
em relação a espaço e tempo, ou seja, transforma-as em um variável<br />
contingente que remonta uma "solução", que remete a uma<br />
problematização <strong>da</strong> forma de narrar na pós-moderni<strong>da</strong>de e dos<br />
elementos que são motivadores <strong>da</strong> ficção pós-moderna, sendo,<br />
por esse motivo, uma virtualização, rigorosamente nos padrões<br />
que foram definidos anteriormente.<br />
56 Lévy, Pierre. o que é o<br />
virtual. Tradução Paulo Neves.<br />
São Paulo: Ed. 34, 1996.<br />
(Coleção Trans) p. 21<br />
Vetores de virtualização<br />
A literatura é o campo do virtual e <strong>da</strong> virtualização por excelência<br />
e são os seus representantes modernos, entre tantos, Jorge<br />
Luís Borges, com seu Pierre Menard autor do Quixote, Tlon<br />
Uqbar Orbius Tertius, Franz Kafka, com a sua Metamoifose, James<br />
Joyce, com o Ulisses. O virtual irrompe na cena literária por conta<br />
do não-lugar <strong>da</strong> literatura, do nomadismo que ela incorpora ao<br />
migrar de um leitor para outro, de uma época para outra, de um<br />
significado para outro. Por mais que pareça estranho fazermos tal<br />
afirmativa a literatura, a nosso ver, não tem a existência física que<br />
o objeto livro tenta lhe conferir. Enquanto livro, a literatura não<br />
tem existência, pois o livro não passa de um objeto, "um amontoado<br />
mudo de palavras estéreis, o que há de mais insignificante no<br />
mundo", conforme avalia Maurice Blanchot57 ,jazendo, às vezes,<br />
empoeirado em alguma prateleira de alguma biblioteca.<br />
A realização <strong>da</strong> literatura só é concretiza<strong>da</strong> por intermédio<br />
<strong>da</strong> leitura, que, por sua vez, se processa num não-lugar - lugar<br />
virtual, problematizador. Referimo-nos aqui não a um espaço físico<br />
e material determinado onde é possível localizar o ato <strong>da</strong> leitu-<br />
57 B lancho!, Maurice. O espaço<br />
literário. Tradução de Álvaro<br />
Cabral. Rio de Janeiro: Rocco,<br />
1987, p. 13.
A literatura e a virtualização do texto literário 211<br />
58 Banhes, Roland. "Escrever a<br />
leitura" in O Rumor <strong>da</strong> língua.<br />
Tradução Mario Laranjeira. São<br />
Paulo: Brasiliense, 1988, p. 42.<br />
'9 Mcluhan, Marshall. A<br />
galáxia de Gutenberg: a<br />
formação do homem tipográfico.<br />
Tradução de Leôni<strong>da</strong>s<br />
Gontijo e Anísio Teixeira. São<br />
Paulo: Cia. Editora Nacional,<br />
Editora <strong>da</strong> USP, 1972.<br />
00 Barthes, Roland. "Escrever a<br />
leitura" in O Rumor <strong>da</strong> língua.<br />
Tradução Mario Laranjeira. São<br />
Paulo: Brasiliense, 1988, p. 42.<br />
61 Wachowski,Andye WacIDwski,<br />
Larry . Matrix. Cor. EUA.<br />
Elenco: Keanu Reeves, Laurence<br />
Fishbume, Carrie-Anne Moss,<br />
Hugo Weaving, Joe Pantoliano,<br />
1999. 136 minutos.<br />
ra. Esse espaço pode conter o corpo do leitor, mas não garante<br />
que o leitor, propriamente dito, esteja contido nele. Pois, de modo<br />
algum, é possível afirmar que esse espaço contenha o leitor, a<br />
literatura e sua virtuali<strong>da</strong>de (a leitura enquanto ato<br />
problematizador). A questão é: em que ponto <strong>da</strong> conexão leitorobra<br />
ocorre a realização <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> literatura Barthes - questionando<br />
a localização <strong>da</strong> letra - afirma que a leitura resulta de<br />
formas transindividuais: as combinações produzi<strong>da</strong>s pela letra do<br />
texto nunca são - não importando a atitude que seja toma<strong>da</strong>anárquicas;<br />
"elas são sempre toma<strong>da</strong>s (extraí<strong>da</strong>s e inseri<strong>da</strong>s) dentro<br />
de certos códigos, certas línguas, certas listas de estereótipOS".58<br />
É possível afirmar que a realização de um autor se dá em<br />
sua obra, mas permanece a questão onde se <strong>da</strong>rá a realização <strong>da</strong><br />
obra Na sua virtuali<strong>da</strong>de e na virtuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua leitura.<br />
A reprodução técnica do livro proporciona<strong>da</strong> pela Galáxia<br />
de Gutemberg 59 permitiu a disseminação <strong>da</strong> obra de arte literária<br />
e do objeto livro mundo a fora, mas não garantiu a realização <strong>da</strong><br />
leitura e, conseqüentemente, <strong>da</strong> literatura. Pois, como vimos anteriormente,<br />
a literatura só se realiza no ato <strong>da</strong> leitura, o que exige<br />
contato físico com o objeto livro. Não ocorrendo esse contato<br />
não há literatura, somente a persistência do objeto.<br />
Barthes escreve:<br />
Abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, não é apenas<br />
pedir e mostrar que podemos interpretá-lo livremente; é principalmente,<br />
e muito mais radicalmente, levar a conhecer que não<br />
há ver<strong>da</strong>de objetiva ou subjetiva <strong>da</strong> leitura, mas apenas ver<strong>da</strong>de<br />
lúdica; e ain<strong>da</strong> mais, o jogo não deve ser entendido como<br />
uma distração, mas como um trabalho - do qual, entretanto,<br />
se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler é trabalhar o<br />
nosso corpo (sabe-se desde a psicanálise que o corpo excede<br />
em muito nossa memória e nossa consciência) para o apelo dos<br />
signos do texto, de to<strong>da</strong>s as linguagens que o atravessam e que<br />
formam como que a profundeza achamalóta<strong>da</strong> <strong>da</strong>s frases. 60<br />
o livro é somente o meio, a porta de entra<strong>da</strong> para a<br />
virtuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> literatura. Funciona como as pílulas vermelha e<br />
azul oferta<strong>da</strong> por Morpheus ao personagem Neo no filme MatriX'1 ,<br />
que colocam para o personagem o problema <strong>da</strong> escolha. Uma vez<br />
aberto o livro é possível ter acesso a uma "ver<strong>da</strong>de ficcional" que,
212 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
no retorno <strong>da</strong> leitura, faz com que lidemos com a reali<strong>da</strong>de de<br />
maneira altera<strong>da</strong>, assim como a personagem Clair Torneur, em<br />
Até o fim do mundo 62 , após ser cura<strong>da</strong> do vício <strong>da</strong>s imagens. Aqui<br />
introduzimos a seguinte questão: existe a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção<br />
de uma pertinência <strong>da</strong> leitura Qual a função do desejo no<br />
estabelecimento dos protocolos de leitura É possível uma relação<br />
recalca<strong>da</strong> entre o leitor e o livro Qual é o lugar do sujeito na<br />
cena <strong>da</strong> leitura na era do virtual O seu lugar são todos os lugares<br />
escrevíveis: a deriva, as multiplici<strong>da</strong>des rizomáticas 63 , o virtual.<br />
62 Wenders, Wim. Até o fim do<br />
mundo. Majestic Films.<br />
Produção: Jonathan Taplin e<br />
Anatole Dauman. Distribuidor:<br />
Top Tap Horne Vídeo. Willian<br />
Hurt - Solveig Dommartin -<br />
Sam Neill - Max Von Sydow -<br />
Rüdiger Vogler - Emie Dingo -<br />
Jean Moreau - Fotografia:<br />
Robby Müller. Música: Graerne<br />
Revell. Edição: Peter Przygod<strong>da</strong>.<br />
1990.<br />
6' Deleuze, Gilles e Guattari.<br />
Mil platôs: capitalismo e<br />
esquizofrenia. Vol. I. Tradução<br />
Aurélio Guerra Neto e Célia<br />
Pinto Costa. São Paulo: Editora<br />
34, la Reimpressão, 1996, p.<br />
16.
213<br />
A ficção brasileira contemporânea e as redes<br />
hipertextuais<br />
Ana Cláudia Viegas<br />
(UERJ / PU C-Rio)<br />
As intersecções entre literatura e informática suscitam diversas<br />
questões teóricas, não necessariamente inéditas, mas<br />
redimensiona<strong>da</strong>s pela reconfiguração do circuito de produção,<br />
circulação e consumo <strong>da</strong> escrita pela internet: intercruzamento<br />
<strong>da</strong>s figuras do leitor e do autor, através do modo de leitura<br />
hipertextual e <strong>da</strong>s práticas de criação coletiva de textos; discussão<br />
<strong>da</strong>s noções de autor e obra, a partir <strong>da</strong> disseminação <strong>da</strong> colagem,<br />
montagem, apropriação e recriação como processos de criação<br />
artística, <strong>da</strong>ndo-se mais um passo no deslocamento <strong>da</strong> aura <strong>da</strong><br />
obra de arte; delica<strong>da</strong>s questões sobre a autoria e seus direitos<br />
jurídicos de proprie<strong>da</strong>de sobre o texto, cuja legislação necessita<br />
revisões e atualizações, de acordo com esse novo modo de circulação<br />
do texto literário; redefinição dos critérios de atribuição de<br />
valor ao texto literário, <strong>da</strong><strong>da</strong> a sua circulação em meio a uma<br />
multiplici<strong>da</strong>de de tipos de textos, imagens e sons.<br />
Pensar as mu<strong>da</strong>nças sociais trazi<strong>da</strong>s pelos novos meios implica<br />
não pensá-los como fontes de inovações em si, mas, sim, a<br />
interação entre essas novas práticas de comunicação e as transformações<br />
sociais. Ou seja: deslocar a análise dos meios até as mediações<br />
sociais (Martín-Barbero 2001). Walter Benjamin (s/d). em<br />
seu clássico texto sobre a "reprodutibili<strong>da</strong>de técnica", aponta para<br />
a historici<strong>da</strong>de tanto dos valores estéticos como <strong>da</strong> percepção<br />
humana, indicando que novos meios significam transformações<br />
nos corpos, consciência e ações humanas, e não somente novas<br />
formas de expressão.<br />
Na vira<strong>da</strong> do século XX para o XXI, a articulação dos cir-
214 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
cuitos de produção, transmissão e recepção <strong>da</strong> literatura com outras<br />
esferas <strong>da</strong> mídia e a apropriação de recursos expressivos destas<br />
pelos textos literários lançam novos desafios para essa prática<br />
tradicionalmente fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> na cultura do livro, mas hoje<br />
hibridiza<strong>da</strong> com gêneros não-literários e meios de comunicação<br />
audiovisuais. Afinal, a difusão desses meios, sobretudo a televisão<br />
a partir dos anos 1950, e, já no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970, os computadores,<br />
marcaria um novo limite nas transformações <strong>da</strong>s representações<br />
e dos saberes. Para autores como Pierre Lévy, viveríamos<br />
um destes raros momentos em que, a partir de uma nova<br />
configuração técnica, "um novo estilo de humani<strong>da</strong>de é inventado"<br />
(Lévy 1993: 17).<br />
Uma concepção dinâmica de leitura embaralha as funções<br />
de leitor e autor, na medi<strong>da</strong> em que aquele, na posição de navegador,<br />
edita o texto que lê, participando <strong>da</strong> estruturação do hipertexto,<br />
criando novas ligações. O questionamento <strong>da</strong> noção de identi<strong>da</strong>de<br />
autoral vista como uma subjetivi<strong>da</strong>de integra<strong>da</strong>, responsável<br />
pela doação de sentido ao texto, também encontra eco na leituraescrita<br />
hipertextual, na qual a condição do texto singular, proprie<strong>da</strong>de<br />
de um autor único, cede lugar ao texto em constante transformação<br />
pela participação <strong>da</strong>s múltiplas vozes autorais.<br />
A conexão em rede permite ao internauta navegar através<br />
de sites e links diversos, fazendo <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong> tela um deslizamento<br />
entre superfícies, acompanhado <strong>da</strong> montagem fragmentária de<br />
novos textos, num processo semelhante ao ato de "zapear" entre<br />
imagens de diferentes canais de tevê. Trata-se de duas experiências<br />
cognitivas e comunicativas a que se pode atribuir a dimensão<br />
corpórea, sensorial identifica<strong>da</strong> como típica <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de por<br />
autores como Georg Simmel e Walter Benjamin, ao tratarem, respectivamente,<br />
<strong>da</strong> caracterização do homem <strong>da</strong> metrópole e <strong>da</strong><br />
"experiência do choque".<br />
A base psicológica do tipo metropolitano de individuali<strong>da</strong>de<br />
consiste, segundo Simmel, na intensificação dos estímulos nervosos,<br />
resultante <strong>da</strong> alteração brusca e ininterrupta entre estímulos<br />
exteriores e interiores. Esses estímulos contrastantes, rápidos,<br />
concentrados e em constante mu<strong>da</strong>nça levam à atitude blasé, cuja<br />
essência consiste no embotamento do poder de discriminar. "O<br />
significado e valores diferenciais <strong>da</strong>s coisas, e <strong>da</strong>í as próprias coisas,<br />
são experimentados como destituídos de substância. Elas apa-
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais<br />
215<br />
recem à pessoa blasé num tom uniformemente plano e fosco; objeto<br />
algum merece preferência sobre outro." (Simmel 1979: 16).<br />
As diferenças qualitativas se traduzem pela quanti<strong>da</strong>de, dentro <strong>da</strong><br />
"filosofia do dinheiro" (Simmel 1978), o maior dos niveladores,<br />
pois expressa to<strong>da</strong>s as diferenças qualitativas <strong>da</strong>s coisas em termos<br />
de "quanto".<br />
Ao analisar o tema <strong>da</strong> multidão em Baudelaire, Benjamin<br />
define como "se conquista a sensação <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de: a dissolução<br />
<strong>da</strong> aura através <strong>da</strong> 'experiência' do choque" (Benjamin 1975:<br />
70). A morte <strong>da</strong> aura na obra de arte nos fala, mais do que <strong>da</strong> arte,<br />
dessa nova percepção, dessa nova sensibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s massas, a <strong>da</strong><br />
aproximação, mesmo <strong>da</strong>s coisas mais longínquas e sagra<strong>da</strong>s, com<br />
a aju<strong>da</strong> <strong>da</strong>s técnicas. Quando Benjamin elege o cinema como o<br />
cenário privilegiado <strong>da</strong> atenção distraí<strong>da</strong> e fragmenta<strong>da</strong>, sintoma<br />
de transformações profun<strong>da</strong>s nas estruturas perceptivas, não se<br />
trata de um otimismo tecnológico ou <strong>da</strong> crença no progresso, mas<br />
de um modo de pensar as transformações <strong>da</strong> experiência que o<br />
tornam um pioneiro, ao "vislumbrar a mediação fun<strong>da</strong>mental que<br />
permite pensar historicamente a relação <strong>da</strong> transformação nas<br />
condições de produção com as mu<strong>da</strong>nças no espaço <strong>da</strong> cultura,<br />
isto é, as transformações do sensorium dos modos de percepção,<br />
<strong>da</strong> experiência social" (Martín-Barbero 2001: 84).<br />
A indiferenciação e a mu<strong>da</strong>nça na percepção, caracteriza<strong>da</strong><br />
pela "atenção distraí<strong>da</strong>" solicita<strong>da</strong> por meios de massa como o<br />
cinema e a televisão, nos parecem ferramentas úteis para se pensar<br />
o modo de leitura hipertextual. A leitura em computador pode<br />
ser defini<strong>da</strong> como uma edição, uma montagem singular, através<br />
<strong>da</strong> qual uma reserva de informação possível se realiza para um<br />
leitor particular. Pierre Lévy distingue os pares real/possível e atual!<br />
virtual, de modo que o virtual não se opõe ao real, mas ao atual. O<br />
possível se define por ser como o real, apenas sem existência,<br />
latente. Estando já todo constituído, ao se realizar, não implica<br />
criação. A atualização do virtual, ao contrário, constitui a invenção<br />
de uma solução exigi<strong>da</strong> por um complexo problemático. Não<br />
se trata de ocorrência de um estado predefinido ou escolha entre<br />
um conjunto predeterminado, mas de produção de quali<strong>da</strong>des<br />
novas, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica<br />
de forças e finali<strong>da</strong>des. Seguindo estas concepções filosóficas,<br />
as imagens digitais não são virtuais, mas imagens possíveis
216 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
sendo exibi<strong>da</strong>s. A dialética virtual/atual só se dá com a interação<br />
entre os sistemas informáticos e as subjetivi<strong>da</strong>des humanas, "quando<br />
num mesmo movimento surgem a indeterminação do sentido e<br />
a propensão do texto a significar, tensão que uma atualização, ou<br />
seja, uma interpretação, resolverá na leitura" (Lévy 1996: 40).<br />
O ato de leitura se define, assim, como uma atualização <strong>da</strong>s<br />
significações de um texto, sendo o hipertexto uma virtualização<br />
dos processos de leitura. A organização do texto escrito em parágrafos,<br />
capítulos, sumários, índices, notas, remissões contribui para<br />
sua articulação além <strong>da</strong> leitura linear, fazendo do ato de ler um<br />
processo de seleção, esquematização, construção de uma rede<br />
intertextual. A estruturação do hipertexto em uma rede forma<strong>da</strong><br />
por nós e pelas ligações entre esses nós não o restringe ao suporte<br />
digital. Conceitos como os de intertextuali<strong>da</strong>de e dialogismo já<br />
pressupõem o texto como tecido de múltiplas textuali<strong>da</strong>des, assim<br />
como a leitura de uma enciclopédia já é do tipo hipertextual.<br />
O que se apresentaria como novo na digitalização seria a rapidez<br />
<strong>da</strong> passagem de um nó a outro e a associação, no mesmo media,<br />
de textos, sons e imagens em movimento.<br />
Pierre Lévy, em suas reflexões sobre o que é o virtual, afirma<br />
que "o texto continua subsistindo, mas a página furtou-se"<br />
(Lévy 1996: 48), apagando-se esta sob a inun<strong>da</strong>ção informacional,<br />
indo seus signos, não mais cercados pelas margens, juntar-se à<br />
torrente digital. O texto, desterritorializado, em fluxo e metamorfose<br />
constantes, apresenta-se nas telas como a atualização de um<br />
hipertexto de suporte informático.<br />
Os textos literários brasileiros produzidos nos anos 90 do<br />
século XIX e nas primeiras déca<strong>da</strong>s do século XXjá foram estu<strong>da</strong>dos<br />
a partir de sua interação com as invenções modernas: o<br />
bonde elétrico, o aeroplano, o automóvel, a fotografia, o telefone,<br />
o fonógrafo, o gramofone, o cinema e, em especial, a máquina de<br />
escrever. Escapando <strong>da</strong>s frágeis e oscilantes classificações em pré,<br />
pós ou neo alguma coisa, Flora Süssekind abor<strong>da</strong>, na ficção brasileira<br />
desse período, "um traço que lhe será bastante característico:<br />
o diálogo entre forma literária e imagens técnicas, registros<br />
sonoros, movimentos mecânicos, novos processos de impressão"<br />
(Süssekind 1987: 18). Partindo <strong>da</strong> representação desses artefatos<br />
industriais na literatura <strong>da</strong> época, a autora analisa como o contato<br />
com essas inovações deixa de ser apenas objeto de descrição ou
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais<br />
217<br />
discussão, para enformar a técnica de certos autores.<br />
Interessa-nos agora pensar como essa interação literaturatecnologia<br />
vem se <strong>da</strong>ndo nas últimas déca<strong>da</strong>s, na passagem do<br />
século XX para o XXI. Se a máquina de escrever foi a imagem<br />
privilegia<strong>da</strong> pela autora de Cinematógrafo de Letras para pensar<br />
esse diálogo na vira<strong>da</strong> do século XIX para o XX, quais as marcas<br />
deixa<strong>da</strong>s pelo computador na escrita <strong>da</strong>s últimas gerações As<br />
chama<strong>da</strong>s "novas tecnologias", digitais e virtuais, compõem o<br />
cenário contemporâneo, participando tanto do cotidiano quanto<br />
do imaginário atual. Se esses novos meios caracterizam novos<br />
modos de pensar, sentir e perceber, como sua presença se faria<br />
notar nos textos contemporâneos<br />
Esse diálogo, assim como no caso dos autores que antecederam<br />
a Semana de Arte Moderna em 1922, se dá de diversas<br />
formas, estando as tecnologias virtuais presentes tanto como objeto<br />
de representação quanto como influência sobre as estratégias<br />
retóricas utiliza<strong>da</strong>s na escrita atual. No primeiro caso, temos a<br />
paisagem urbana repleta de telas, imagens, celulares, computadores<br />
e to<strong>da</strong> uma parafernália tecnológica utiliza<strong>da</strong> por personagens<br />
e narradores <strong>da</strong>s ficções contemporâneas. Quanto a marcas deixa<strong>da</strong>s<br />
no fazer literário, podemos citar a fragmentação, a forte<br />
visuali<strong>da</strong>de, a utilização de múltiplos recursos gráfico-visuais, os<br />
microrrelatos. Sem falar, é claro, em to<strong>da</strong> a produção de textos<br />
não impressos, veiculados pela internet, que adquirem, pelo novo<br />
meio de circulação, características específicas, constituindo, talvez,<br />
uma retórica própria.<br />
Ao pensarmos a literatura brasileira contemporânea em diálogo<br />
com as novas tecnologias, queremos observar, de um lado,<br />
de que modo o uso destas se traduz em inovações estéticas nas<br />
narrativas atuais, ou seja, como se dá o trânsito entre página e<br />
tela, de que modo a primeira, tendo-se "furtado", se recompõe<br />
para expressar esse texto virtualizado; e, de outro, como o novo<br />
suporte enforma os textos produzidos para nele circularem.<br />
Ao longo <strong>da</strong> história <strong>da</strong> literatura, tem havido propostas<br />
inovadoras de narrativas não lineares, assim como a imprensa vem<br />
criando diversos mecanismos opostos ao poder <strong>da</strong> linha. Tais desafios,<br />
contudo, ganham nova dimensão ao disporem de uma nova<br />
tecnologia textual que não tem por base a lineari<strong>da</strong>de. Também<br />
nós, leitores, ao lermos um livro de forma não seqüencial, pulan-
218 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
do capítulos, buscando a informação deseja<strong>da</strong> através de índices<br />
remissivos, compondo novos volumes com textos fotocopiados<br />
de obras diversas, desafiamos a lineari<strong>da</strong>de do texto impresso,<br />
lendo-o como um hipertexto. Colocamos em prática, na produção<br />
ou recepção de textos, uma <strong>da</strong>s três linhas evolutivas<br />
identifica<strong>da</strong>s por Benjamin nas intersecções entre arte e técnica:<br />
"em certos estágios do seu desenvolvimento as formas artísticas<br />
tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tarde<br />
serão obtidos sem qualquer esforço pelas novas formas de arte"<br />
(Benjamin s/d: 185).<br />
Narrativas literárias contemporâneas fazem uso de procedimentos<br />
e técnicas que parecem provir de gêneros não-literários e<br />
meios de comunicação audiovisuais e digitais. São exemplo <strong>da</strong>s<br />
estratégias retóricas utiliza<strong>da</strong>s por essa geração de escritores que<br />
troca a máquina de escrever pelo computador as obras eles eram<br />
muitos cavalos (2001), Mamma, son tantofelice (2005) e O mundo<br />
inimigo (2005), de Luiz Ruffato. Como num zapping urbano,<br />
a narrativa de eles eram muitos cavalos descreve o cotidiano de<br />
São Paulo em setenta fragmentos, numerados e intitulados, sem<br />
nenhuma espécie de continui<strong>da</strong>de, nenhum enredo como fio condutor,<br />
apenas a "montagem efervescente"l de doses que se<br />
entrecortam e justapõem. Trata-se de um mosaico de diversos tipos<br />
de textos - um cabeçalho, previsões meteorológicas, anúncios<br />
classificados, orações, cartas, cardápios, conselhos astrológicos,<br />
simpatias, lista de livros, recados de secretária eletrônica, duas<br />
páginas com um retângulo preto - dispostos com diferentes<br />
diagramações, formatos de letras, sinais tipográficos. Traduz-se,<br />
de certa forma, na página impressa, a diversi<strong>da</strong>de textual <strong>da</strong>s páginas<br />
<strong>da</strong> web, por onde a literatura, mais um desses tipos de texto,<br />
também circula.<br />
A leitura pode começar em qualquer ponto e seguir qualquer<br />
direção, a multiplici<strong>da</strong>de desafiando a lineari<strong>da</strong>de, que tropeça<br />
e se desdobra indefini<strong>da</strong>mente. Assim como nos novos espaços<br />
virtuais, "em vez de seguirmos linhas de errância e de migração<br />
dentro de uma extensão <strong>da</strong><strong>da</strong>, saltamos de uma rede a outra,<br />
de um sistema de proximi<strong>da</strong>de ao seguinte" (Lévy 1996: 96). As<br />
várias pistas intertextuais também nos levam a uma leitura<br />
labiríntica, multilinear. Os textos de Oswald de Andrade, Memórias<br />
sentimentais de João Miramar, e Cecília Meireles, Romanceiro<br />
'Néstor García Canclini define<br />
a ci<strong>da</strong>de contemporânea "como<br />
um videoclipe: montagem<br />
efervescente de imagens<br />
descontínuas" (Canclini 1995).
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais 219<br />
'Sergei Eisenstein (1990) a<br />
define como o "fato de que dois<br />
pe<strong>da</strong>ços de filme de qualquer<br />
tipo, colocados juntos, inevitavelmente<br />
criam um novo<br />
conceito, uma nova quali<strong>da</strong>de,<br />
que surge <strong>da</strong> justaposiçâo". O<br />
cineasta russo reitera, ain<strong>da</strong>, a<br />
importância do "princípio<br />
unificador", isto é, do princípio<br />
que deve "determinar tanto o<br />
conteúdo do plano quanto o<br />
conteúdo revelado por uma<br />
determina<strong>da</strong> justaposição<br />
desses planos". Nos atos de<br />
"zapear" e navegar na internet,<br />
no entanto, a montagem ganha<br />
um novo perfil: revogando o<br />
princípio unificador, que<br />
predetermina a escolha e<br />
combinação <strong>da</strong>s cenas monta<strong>da</strong>s,<br />
e a hierarquia de planos<br />
(cf. Eisenstein 1990), justapõem-se,<br />
ao acaso, imagens<br />
de diferentes origens. O excesso<br />
de imagens de baixa densi<strong>da</strong>de<br />
semântica e sua repetição em<br />
série permitem cortes e colagens<br />
em qualquer ponto, pois todos<br />
se equivalem. Este novo tipo de<br />
montagem aproxima-se, portanto,<br />
<strong>da</strong> conceituação de<br />
Simmel para a atitude b!asé:<br />
dificul<strong>da</strong>de de discriminar<br />
devido ao excesso de informação.<br />
<strong>da</strong> Inconfidência, estão virtualmente presentes no hipertexto de<br />
Ruffato, podendo ser atualizados pelo leitor.<br />
O título, reiterado pela epígrafe ("Eles eram muitos cavalos,<br />
/ mas ninguém mais sabe os seus nomes, / sua pelagem, sua<br />
origem ... " - Cecília Meireles) e pela dedicatória ("Para Cecília"),<br />
nos remete à obra de Cecília Meireles, Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência,<br />
abrindo também um link no texto de Cecília, que pode<br />
nos levar a Ruffato. Assim como os personagens do caos urbano<br />
não têm nome, nem se sabe de onde vieram ou para onde vão - só<br />
captamos, no ritmo vertiginoso <strong>da</strong> narrativa, pe<strong>da</strong>ços de cenas -,<br />
também as palavras, "testemunhas sem depoimento, / diante de<br />
equívocos enormes" (Meireles 1983: 228), galopam em torvelinho,<br />
sem origem, reapropria<strong>da</strong>s, ressemantiza<strong>da</strong>s.<br />
Impossível não ver no texto de Ruffato ecos oswaldianos.<br />
Os fragmentos também numerados e intitulados de Memórias sentimentais<br />
de João Miramar, nos quais se misturam vários gêneros<br />
textuais e se ressalta a materiali<strong>da</strong>de gráfica, estão virtualmente<br />
presentes em seu hipertexto, podendo ser atualizados pelo leitor.<br />
Parece, no entanto, que os cortes cinematográficos e a escrita<br />
telegráfica de Oswald de Andrade se aceleraram ain<strong>da</strong> mais, desfazendo-se<br />
até mesmo a tênue trajetória <strong>da</strong> personagem que perpassa<br />
aquelas memórias descontínuas. O ritmo do texto de Ruffato<br />
acompanha a aceleração <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> urbana desde o início <strong>da</strong> industrialização<br />
de São Paulo, objeto <strong>da</strong> obra modernista de 1924. A<br />
montagem cinematográfica 2 cede lugar ao zapping, imagens que<br />
surgem e desaparecem como se pelo comando de um controle<br />
remoto. Neste caso, entretanto, diferentemente <strong>da</strong> linguagem<br />
televisiva, nem as imagens têm baixo teor semântico, nem os cortes<br />
são aleatórios. A página, ao assimilar um traço característico<br />
<strong>da</strong> estética televisiva, o suplementa: alternando o deboche, a ternura,<br />
a violência, a ingenui<strong>da</strong>de, a esperança, a decepção, expõe<br />
feri<strong>da</strong>s, tensões, causando impacto no leitor. Se o ritmo alucinante<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de contemporânea, expresso num texto em permanente<br />
movimento, leva a urna "atenção distraí<strong>da</strong>", esta, ao focalizar-se<br />
instantaneamente, o faz de maneira muito mais intensa.<br />
Pierre Lévy identifica, na passagem de técnicas anteriores<br />
de leitura em rede (índices, sumários, notas remissivas) à<br />
digitalização, urna "pequena revolução copernicana", na qual não<br />
é mais o leitor que se desloca, mas sim o texto. Embora, no caso
220 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
do livro de Ruffato, o leitor ain<strong>da</strong> se movimente fisicamente no<br />
hipertexto, virando páginas, buscando os livros de Cecília Meireles,<br />
Oswald de Andrade ou outros na estante, também o texto gira,<br />
dobra-se e desdobra-se, caleidoscópico, diante do leitor. Nele, a<br />
interpretação não remete mais exclusivamente a uma intenção<br />
autoral. "O sentido emerge de efeitos de pertinência locais, surge<br />
na intersecção de um plano semiótico desterritorializado e de uma<br />
trajetória de eficácia ou prazer." (Lévy 1996: 49).<br />
Os dois outros livros de Ruffato, Mamma, son tanto felice e<br />
O mundo inimigo, fazem parte do projeto de uma série de cinco<br />
volumes com o título de Inferno provisório. Através de textos<br />
fragmentados, passíveis de serem lidos separa<strong>da</strong>mente, mas, ao<br />
mesmo tempo, complementares, ambos narram a desestruturação<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> rural frente à modernização. Seus personagens, pequenos<br />
agricultores, imigrantes italianos pobres, sofrem as conseqüências<br />
sociais e emocionais do processo de industrialização ocorrido<br />
no Brasil a partir dos anos 1950. As histórias de um e de outro<br />
volume retomam e entrelaçam personagens e situações, fazendo<br />
<strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> construção de sentido um efeito <strong>da</strong> interseção de<br />
planos. Passado e presente se misturam em fragmentos de memória,<br />
encaixando peças de um "quase-romance desestruturado"<br />
(Nina 2005). Mu<strong>da</strong>nças tipográficas chamam a atenção do leitor<br />
para os diferentes tempos e vozes presentes nos textos.<br />
Nota-se no segundo volume, no qual alguns personagens<br />
começam a migrar para as ci<strong>da</strong>des grandes, uma aceleração do<br />
ritmo <strong>da</strong> linguagem, que, assim como em eles eram muitos cavalos,<br />
acompanha o aumento <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> intensi<strong>da</strong>de de estímulos,<br />
característico <strong>da</strong> formação <strong>da</strong>s metrópoles. Podemos imaginar<br />
nos próximos livros <strong>da</strong> série a continui<strong>da</strong>de desse processo,<br />
como se o cotidiano de São Paulo, descrito nos fragmentos do<br />
livro publicado em 2001, fosse o destino desses personagens.<br />
Uma nota ao fim de ca<strong>da</strong> volume adverte que alguma passagem<br />
pode ser reconheci<strong>da</strong>, já que aí se encontram histórias narra<strong>da</strong>s<br />
em outros livros do autor, "reembaralha<strong>da</strong>s". Assume-se a<br />
criação pela repetição, anuncia<strong>da</strong> pelo enfraquecimento <strong>da</strong>s noções<br />
de autêntico e original na era <strong>da</strong> reprodutibili<strong>da</strong>de técnica.<br />
Observamos, assim, nas obras de Luiz Ruffato, uma <strong>da</strong>s<br />
vertentes <strong>da</strong>s relações entre a cibercultura e a ficção brasileira<br />
publica<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1990. Utilizando-se de estratégias
A ficção brasileira contemporãnea e as redes hipertextuais 221<br />
retóricas dos meios digitais, sua página se faz tela. Discutiremos,<br />
a seguir, de que modo algumas tendências dessa ficção podem<br />
estar relaciona<strong>da</strong>s ao uso por escritores deste novíssimo século <strong>da</strong><br />
internet como importante estratégia de inserção no circuito artÍstico-literário.<br />
***<br />
Se, na vira<strong>da</strong> do século XIX para o XX, o jornal é reconhecido<br />
como o caminho mais curto para chegar-se ao editor, atualmente,<br />
a internet tem sido usa<strong>da</strong> como uma espécie de vitrine do<br />
texto para o público em geral e/ou os editores. Estes, quando desejam<br />
apostar em novos autores ou organizar antologias que buscam<br />
mapear um perfil <strong>da</strong> ficção contemporânea, têm essa ferramenta<br />
como fonte. É o caso de Paulo Roberto Pires, diretor <strong>da</strong><br />
Editora Planeta, e <strong>da</strong>s obras Paralelos: 17 contos <strong>da</strong> nova literatura<br />
brasileira, Prosas cariocas: uma nova cartografia do Rio de<br />
Janeiro e <strong>da</strong>s antologias de textos escritos por mulheres organiza<strong>da</strong>s<br />
por Luiz Ruffato. Di versos jovens autores também utilizam os<br />
blogs como oficina criativa para seus primeiros romances. Podemos<br />
citar, a título de exemplo, os livros de Clarah Averbuck<br />
«www.brazileirapreta.blogspot.cOITI» Máquina de pinball, Das coisas<br />
esqueci<strong>da</strong>s atrás <strong>da</strong> estante e Vi<strong>da</strong> de gato; e Corpo presente,de<br />
João Paulo Cuenca.«www.carmencarmen.blogger.com.br». Se os<br />
livros de Averbuck são montados a partir de fragmentos selecionados<br />
em seu site, Cuenca, no entanto, resolveu manter on line<br />
uma espécie de making of de seu livro, depois de receber a proposta<br />
<strong>da</strong> editora Planeta para publicá-lo, afirmando em seu blog<br />
que seu livro não é um exemplo de blog que vira livro, mas exatamente<br />
o inverso: seu blog é que é sobre o livro e seus processos.<br />
Em Das coisas esqueci<strong>da</strong>s atrás <strong>da</strong> estante, Clarah Averbuck<br />
discute o papel e o valor <strong>da</strong> literatura hoje e sua relação com os<br />
blogs. A autora, entretanto, discor<strong>da</strong> <strong>da</strong> idéia de que os blogs constituam<br />
um gênero específico:<br />
10/9/2003<br />
Coletânea de um bloooog Sim, amiguinhos, coletânea de um<br />
blog . Existem livros de contos. De poesia. De crônicas. Por<br />
que não uma coletânea de textos publicados em um blog Afinal,<br />
como eu estou cansa<strong>da</strong> de dizer mas continuo repetindo
222 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
porque nunca param de perguntar, blog é apenas um meio de<br />
publicação para o que quer que o autor, dono e soberano do<br />
blog, queira escrever. «www.brazileirapreta.blogspot.com»<br />
o uso desse novo meio, no entanto, deixa marcas no texto:<br />
Vocês notaram que eu desencanei <strong>completa</strong>mente de usar parágrafos<br />
neste post Parei. Parei de usar parágrafos na minha<br />
cabeça também. Notaram também que estou perdendo meu sotaque<br />
e falando coisas <strong>completa</strong>mente paulistas como<br />
desencanar Também tenho falado me amarro e demorô, por<br />
causa dos cariocash. Eu sou a primeira pessoa que pega sota<br />
Que pelo ICQ. (Averbuck 2003: 46)<br />
A interação com o público leitor e a influência deste sobre o<br />
texto escrito, características dos blogs, são tensiona<strong>da</strong>s pela autora,<br />
que afirma, em alguns momentos, sua voz como única e a posição<br />
do leitor como a de quem, ao escolher ler aquele texto, deve<br />
aceitar o pacto que lhe é proposto.<br />
2/9/2003<br />
A internet não é como uma televisão aberta, onde você zapeia e<br />
passa por canais indesejados e vê coisas que não queria. Para<br />
entrar aqui, no meu blog, é preciso digitar o endereço no<br />
browser, ou entrar em algum link, ou seguir seu próprio<br />
bookmark. Ou seja, tem que Querer entrar aqui. É uma escolha.<br />
E é por isso que eu não entendo esses leitores Mark Chapman<br />
que vêm aqui só pra torrar minha pequena e delica<strong>da</strong> paciência<br />
e encher minha caixa postal com suas opiniões não solicita<strong>da</strong>s.<br />
«www.brazileirapreta.blogspot.com> )<br />
No livro Das coisas esqueci<strong>da</strong>s atrás <strong>da</strong> estante, a primeira<br />
orientação ao leitor é a epígrafe de Charles Bukowski, uma <strong>da</strong>s<br />
referências constantes <strong>da</strong> escritora. "se você for tentar, vá até o 1<br />
fim. 1 senão, nem comece." Aceite o pacto, leitor. As citações (Paulo<br />
Leminski, Lou Reed, Vicente Celestino, Tangos & Tragédias etc.)<br />
compõem a rede hipertextual, afirmando, também no texto impresso,<br />
a multiplici<strong>da</strong>de do sujeito que escreve:<br />
"Eu estou de férias. Agora só vou falar pelas palavras dos<br />
outros até recuperar as minhas próprias, que aspirei nariz aden-
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais<br />
223<br />
tro em uma nota de um dólar. Vou me internar dentro de mim<br />
mesma até saber quem é quem. Esse negócio de ser duas ain<strong>da</strong><br />
vai me matar." (Averbuck 2003: 108).<br />
Se considerarmos, de acordo com McLuhan, que "o meio é a<br />
mensagem", podemos afirmar que esse novo modo de circulação<br />
do literário faz surgir um novo tipo de escrita A constituição do<br />
termo "blog" já traz em si idéias contraditórias: web (página na<br />
internet) + log (diário de bordo) = "diário íntimo na internet".<br />
Como um diário "íntimo" pode ser exposto na rede para quem quiser<br />
acessar e, além de ler, comentar, rasurar, participando do processo<br />
de criação Se os diários sempre trouxeram em si um<br />
interlocutor, ~á que to<strong>da</strong> escrita se dirige a alguém, agora esse outro,<br />
ain<strong>da</strong> que virtual e desconhecido, se explicita e atualiza o processo<br />
ativo de to<strong>da</strong> leitura. Os papéis do autor e do leitor são, assim,<br />
compartilhados, fragmentando a figura do sujeito que se escreve.<br />
O "pacto autobiográfico" realizado entre quem escreve e<br />
quem lê "escritas íntimas" se fun<strong>da</strong>menta, segundo o clássico estudo<br />
de Philippe Lejeune (1975), num contrato de identi<strong>da</strong>de selado<br />
pelo nome próprio, que resume a existência do autor, pois<br />
aquele seria a única marca no texto de um fora-do-texto, remetendo<br />
a uma pessoa real que assume a responsabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> enunciação<br />
do texto escrito. No caso dos blogs, essa identi<strong>da</strong>de se fraciona<br />
tanto pela parceria com os leitores como pela plurali<strong>da</strong>de de nomes<br />
assumidos pelo blogueiro. Embora fale de seu cotidiano, suas<br />
opiniões, não há no texto, necessariamente, essa marca que "remete<br />
à pessoa real", podendo, inclusive, uma mesma pessoa ter<br />
vários blogs, identificados por diferentes apelidos.<br />
Ao caracterizar o narrador pós-moderno, em contraponto<br />
aos narradores tradicional e moderno, tal como definidos por Walter<br />
Benjamin, Silviano Santiago questiona: "Só é autêntico o que eu<br />
narro a partir do que experimento, ou pode ser autêntico o que eu<br />
narro e conheço por ter observado" (2002: 44). Mais adiante,<br />
conclui: "O narrador pós-moderno sabe que o "real" e o "autêntico"<br />
são construções de linguagem." (idem: 46-7). Nesse contexto,<br />
a noção de um segredo pessoal a ser revelado no papel ou nas<br />
telas se relativiza: "a intimi<strong>da</strong>de era teatro", como disse a poeta<br />
dos anos 70, Ana Cristina Cesar (1987: 50).<br />
O segredo é uma <strong>da</strong>s questões fun<strong>da</strong>mentais para os diários
224 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
íntimos, redimensiona<strong>da</strong> quando esses diários se voltam para o<br />
público numa página <strong>da</strong> web. Ain<strong>da</strong> que expostos na internet, os<br />
blogs não excluem o segredo. Há diversos níveis de segredos:<br />
aqueles que se contam aos amigos mais próximos, à família, apenas<br />
a alguém muito íntimo ou que não se revelam a ninguém, nem<br />
a si mesmo. Essas diferenças se mantêm nos diários virtuais.<br />
Ao contrário do que se pensa, a exposição na internet não anula<br />
a possibili<strong>da</strong>de de se criar um segredo, mas estabelece novas<br />
formas de compartilhá-lo. ( ... ) O diarista virtual determina quem<br />
pode se aproximar de seus segredos mais íntimos e quem não<br />
deve suspeitar deles através de senhas, do texto cifrado e do<br />
acesso restrito ao blog. É ele que estabelece o c.uanto o leitor<br />
comum deve saber de sua vi<strong>da</strong> particular e o que deve ser mantido<br />
em sigilo. (Schittine 2004: 19-21).<br />
o "contrato de cumplici<strong>da</strong>de" com o leitor se modifica, podendo<br />
a confiança ser reforça<strong>da</strong> pela distância e o desconhecimento<br />
quanto aos leitores ou ser questiona<strong>da</strong>, já que essa mesma<br />
distância facilita o uso de máscaras, fantasias, mentiras. Formamse<br />
"redes de segredos": pequenos grupos que dividem segredos<br />
entre si, com alguns nós em comum.<br />
A sinceri<strong>da</strong>de <strong>da</strong> enunciação "torna-se um falso problema",<br />
como já anunciara Barthes em relação ao "autor de papel": "a sua<br />
vi<strong>da</strong> já não é a origem <strong>da</strong>s suas fábulas, mas uma fábula concorrente<br />
com a sua obra" (Barthes 1988: 76). Ou, como diz em sua<br />
autobiografia:<br />
Este livro não é um livro de "confissões"; não porque ele seja<br />
insincero, mas porque temos hoje um saber diferente do de ontem,<br />
esse saber pode ser assim resumido: o que escrevo de mim<br />
nunca é a última palavra: quanto mais sou "sincero", mais sou<br />
interpretável, sob o olhar de instâncias diferentes <strong>da</strong>s dos antigos<br />
autores, que acreditavam dever submeter-se a uma única<br />
lei: a autentici<strong>da</strong>de. (Barthes 1977: 130).<br />
Se o que escrevo sobre mim pode mu<strong>da</strong>r de um dia para o<br />
outro, os blogs podem registrar essas mu<strong>da</strong>nças a qualquer<br />
momento, sendo o intervalo de tempo <strong>da</strong> escrita menor que um<br />
dia. Os diários nas telas permitem que, a ca<strong>da</strong> releitura, o texto<br />
seja alterado ou as "falhas <strong>da</strong> memória" preenchi<strong>da</strong>s, sem dei-
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais<br />
225<br />
xar marcas dessas rasuras. Ao contrário dos diários de papel,<br />
que guar<strong>da</strong>m a caligrafia individual e diferentes materiali<strong>da</strong>des<br />
<strong>da</strong> memória - pétalas, papéis de bombom, recortes etc. -, a<br />
tipografia dos computadores uniformiza. Esses fatores, somados<br />
à possibili<strong>da</strong>de de falha dos dispositivos de memória <strong>da</strong>s<br />
novas tecnologias, levam a um registro imperfeito <strong>da</strong> memória<br />
pessoal, apesar <strong>da</strong> sua imensa capaci<strong>da</strong>de de armazenamento<br />
de uma memória artificial. (Schittine 2004: 117-8).<br />
Na "escrita de si" via internet, o trânsito entre documento e<br />
ficção, vi<strong>da</strong> real e virtual, constrói uma intimi<strong>da</strong>de meio encena<strong>da</strong>,<br />
meio realista. Parece-nos que, nessa vertente atual <strong>da</strong> literatura,<br />
vi<strong>da</strong> e obra tornam-se difíceis de distinguir. A figura do autor<br />
aparece dentro do texto ficcional, mas de maneira mentirosa, num<br />
confessional fingido.<br />
Tanto nos blogs como nos livros, podemos constatar uma<br />
tendência para o uso <strong>da</strong> primeira pessoa em textos que não são<br />
autobiográficos, mas que apresentam pistas <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de autoral.<br />
No último romance de Marcelo Mirisola, Joana a contragosto, o<br />
personagem-narrador, um escritor, conta seus encontros e<br />
desencontros com Joana, uma leitora com quem mantém inicialmente<br />
contato via internet até se conhecerem pessoalmente num<br />
hotel e manterem um breve relacionamento amoroso-sexual. V á<br />
rios traços biográficos de Mirisola presentes na narrativa - as iniciais<br />
M. M., a publicação de crônicas via internet, os livros Azul<br />
do filho morto e Herói devolvido, a transformação de escritores<br />
seus amigos em personagens e até o número <strong>da</strong> conta no Itaú -<br />
tornam indecidíveis as fronteiras entre autor e narrador, vi<strong>da</strong> e<br />
ficção. Ao mesmo tempo em que o texto sugere uma<br />
autoexposição, deixa o leitor sempre desconfiado se os fatos narrados<br />
têm uma referência real ou são <strong>completa</strong>mente ficcionais:<br />
"Não se tratava apenas de ficção" (Mirisola 2005: 10), "Fui eu<br />
quem a inventei" (idem: 14), "Ninguém vai saber que é você,<br />
Natércia." (idem: 48).<br />
A criação de diferentes identi<strong>da</strong>des, característica <strong>da</strong>s páginas<br />
virtuais, extrapola seu suporte técnico, apontando um traço<br />
<strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de contemporânea: plural, ambígua, ficcionaliza<strong>da</strong>.<br />
Sabemos que em qualquer relato autobiográfico o compromisso<br />
com a ver<strong>da</strong>de é sempre relativizado pelas falhas <strong>da</strong> memória e a
226 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
contaminação desta pela imaginação. Parece-nos, no entanto, que,<br />
num tempo em que a reali<strong>da</strong>de se define como um cruzamento de<br />
imagens e não como <strong>da</strong>dos objetivos representados por elas, esses<br />
textos contemporâneos investem na invenção biográfica, formulando<br />
"autoficções".<br />
Referências<br />
ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar. 14ed. São<br />
Paulo: Globo, 2001.<br />
AVERBUCK, Clarah. Das coisas esqueci<strong>da</strong>s atrás <strong>da</strong> estante. Rio de Janeiro:<br />
7Letras, 2003.<br />
AZEVEDO, Luciene. Blogs: a escrita de si na rede dos textos. In: Encontro<br />
Regional <strong>da</strong> <strong>Abralic</strong>, 10, 2005, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos ... Rio de<br />
Janeiro: Uerj, 2005.<br />
BARTHES, Roland. O rumor <strong>da</strong> língua. São Paulo/Campinas: Brasiliense/<br />
Ed. <strong>da</strong> Unicamp, 1988.<br />
---o Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Cultrix, 1977.<br />
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibili<strong>da</strong>de técnica.<br />
In: -. Obras escolhi<strong>da</strong>s. v. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre<br />
literatura e história <strong>da</strong> cultura. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, s/d, p. 165-196<br />
[1935-6].<br />
---o Sobre alguns temas de Baudelaire. In: -. A moderni<strong>da</strong>de e os<br />
modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 37-76.<br />
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e ci<strong>da</strong>dãos: conflitos multiculturais<br />
<strong>da</strong> globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995.
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais<br />
227<br />
CESAR, Ana Cristina. a teus pés. 4ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.<br />
EISENSTEIN, Sergei. Palavra e imagem. In: -. O sentido do filme. Rio de<br />
Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 3-47.<br />
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975.<br />
LÉVY, Pierre. As tecnologias <strong>da</strong> inteligência: o futuro do pensamento na era<br />
<strong>da</strong> informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.<br />
--o O que é o virtual São Paulo: Ed. 34, 1996.<br />
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura<br />
e hegemonia. 2ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2001.<br />
MEl RELES , Cecília. Romanceiro <strong>da</strong> Inconfidência; Crônica trova<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />
ci<strong>da</strong>de de Sam Sebastiam. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.<br />
MIRISOLA, Marcelo. Joana a contragosto. Rio de Janeiro: Record, 2005.<br />
NINA, Cláudia. As fronteiras existenciais de Ruffato. Jornal do Brasil, Rio<br />
de Janeiro, 9 abro 2005.<br />
RUFFATO, Luiz. eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo, 2001.<br />
--o Mamma, SOll tanto felice. Rio de Janeiro: Record, 2005.<br />
--.0 mundo inimigo. Rio de Janeiro: Record, 2005.<br />
SANTIAGO, Silviano. ° narrador pós-moderno. In: -. Nas malhas <strong>da</strong> letra.<br />
Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 44-60.<br />
SCHITIINE, Denise. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de<br />
Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.<br />
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vi<strong>da</strong> mental. In: VELHO, Otávio (org.). O<br />
fenômeno urbano. 4ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 11-25.<br />
--o The philosophy ofmoney. London: Routledge and Kegan Paul, 1978.<br />
SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e<br />
modernização no Brasil. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1987.
229<br />
o hipotexto de NolI<br />
Luiz Gonzaga Marchezan<br />
(UNESP-Araraquara)<br />
Uma reflexão no âmbito <strong>da</strong>s práticas que vivenciamos desde<br />
o final do século passado leva-nos a pensar em novas configurações<br />
literárias do século XXI, uma vez que, de maneira ímpar<br />
no tempo, tais práticas apresentam-nos resoluções para o texto<br />
verbal que superam medi<strong>da</strong>s e limites lineares, possibilitando-nos,<br />
por isso, imaginar, até, outras concepções para o literário. Ricardo<br />
Piglia (1990, p.3), ain<strong>da</strong> no século XX e mais voltado para a função<br />
representativa do texto literário, a mimética, notou, de forma<br />
paradoxal:<br />
[ ... ] os espaços ficcionais invadem a vi<strong>da</strong> cotidiana e a socie<strong>da</strong>de<br />
moderna. Essa distinção muito definitiva <strong>da</strong> estética tradicional,<br />
"qual é o campo <strong>da</strong> ficção, qual é o campo do real", se<br />
dissolveu. Vai <strong>da</strong>í que, para mim, esse é o tema que está inscrito<br />
na relação entre a literatura e a reali<strong>da</strong>de.<br />
Observou ain<strong>da</strong>:<br />
Essa relação [literatura/reali<strong>da</strong>de/ver<strong>da</strong>de] seria para mim o<br />
ponto a partir do qual surgem as histórias, as tramas, as questões<br />
que devem ser narra<strong>da</strong>s.<br />
As considerações de Piglia são instigantes e recuperam também<br />
para a deman<strong>da</strong> <strong>da</strong> narrativa a idéia de destino: fatos sucessivos<br />
ocorrem na vi<strong>da</strong> dos homens e constituem a sua vi<strong>da</strong>, independentemente<br />
<strong>da</strong> sua vontade. Dessa maneira, observaremos,<br />
em tais narrativas, modos de vi<strong>da</strong> em formas literárias que nos<br />
apontarão uma cifra a desdobrar-se tanto na direção dos enigmas
230 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
do comportamento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> contemporânea representa<strong>da</strong>, como<br />
em desafios de leitura dessa literatura contemporânea.<br />
Percebemos, no momento, pela mídia ou internet, uma oferta<br />
diversifica<strong>da</strong> de textos, que notamos, divisamos e pouco sabemos<br />
diante do tanto que vemos. Vivemos num mundo no qual nosso<br />
olhar encontra-se refém do espetáculo midiático. A leitura é uma<br />
ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> civiliza<strong>da</strong>, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social, coletiva, processa<strong>da</strong><br />
diariamente no âmbito dos conhecimentos individuais e coletivamente<br />
preparados. Diante disso, e <strong>da</strong> pletora de textos que nos<br />
envolve no dia-a-dia, a pergunta que nos fazemos é pela situação,<br />
condição, categoria ou natureza do texto literário, aquele que, de<br />
forma linear, reúne uma situação discursiva, no caso, opera<strong>da</strong> pela<br />
obra literária, para o leitor de uma reali<strong>da</strong>de textual, que, para<br />
nós, constitui-se naquele que lê o verbal de maneira singular, na e<br />
com a singulari<strong>da</strong>de do texto literário. Trata-se do leitor de um<br />
gesto rapi<strong>da</strong>mente esgotado, sem reiterações, sem os múltiplos<br />
suportes: visuais, eletrônicos; sem vínculos, links, portanto, com<br />
um hipertexto; trata-se de um leitor voltado para o texto literário,<br />
que volta a sua intencionali<strong>da</strong>de para a realização <strong>da</strong> arte literária,<br />
prática contempla<strong>da</strong>, inclusive, dentro <strong>da</strong>s ousadias <strong>da</strong>s configurações<br />
do texto literário contemporâneo, pelo hipotexto. Ajustemos,<br />
assim, nossa discussão, a mais este contraste.<br />
Compreendemos que os tempos atuais, os que estão em atos,<br />
transfiguram-se, tanto em narrativas compostas em hipertextos<br />
sustentados pela intertextuali<strong>da</strong>de, por múltiplos textos, como em<br />
narrativas compostas por hipotextos, sedimentados pela<br />
interdiscursivi<strong>da</strong>de, que incorpora percursos temáticos e ou figurativos,<br />
valores, de um discurso em outro. Estas últimas, em especial,<br />
explicam-se nas observações novamente de Ricardo Piglia<br />
(2000, p.123), agora, de outra fonte: "La inspiración se construye<br />
a partir de lo que se há escrito antes, ca<strong>da</strong> vez se inscribe com<br />
to<strong>da</strong> la literatura".<br />
O leitor do hipotexto, do nosso ponto de vista, constitui-se<br />
no leitor que lê o literário, o singular, como salientamos acima;<br />
esse leitor consiste naquele que não sustenta a sua leitura no potencial,<br />
no virtual, no desmesurado, características do hipertexto.<br />
O hipotexto volta-se para o pontual, para o momentâneo, a medi<strong>da</strong><br />
de uma hesitação, momento em que "os espaços ficcionais invadem<br />
a vi<strong>da</strong> cotidiana e a socie<strong>da</strong>de moderna", conforme Piglia
o hipotexto de NoU<br />
231<br />
(1990, p.3), características, convenhamos, que sempre demarcaram<br />
a deman<strong>da</strong> <strong>da</strong>s narrativas literárias.<br />
O que lemos, então, em um hipotexto Observamos uma<br />
história por meio de um discurso, de um código, o literário, elaborado<br />
por uma organização e configuração particulares <strong>da</strong> linguagem.<br />
O nosso objetivo, agora, é o de explorar o literário num<br />
conto de João Gilberto NolI, Bispo <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>, um hipotexto,<br />
escrito, inicialmente, para um projeto editorial <strong>da</strong> Folha de S. Paulo,<br />
conforme as rápi<strong>da</strong>s intenções <strong>da</strong> reportagem <strong>da</strong> época: "A<br />
Ilustra<strong>da</strong> passa a publicar, a partir de hoje, uma coluna literária<br />
diária, na página 2, ao lado de Horóscopo". (ILUSTRADA, 1997,<br />
p.l) Nesta reportagem, a F olha anunciou também os titulares <strong>da</strong><br />
coluna: Heloisa Seixas, Voltaire de Souza e Fernando Bonassi.<br />
João Gilberto NolI substituiu Heloisa Seixas, em agosto de 1998.<br />
Patrícia Decia (1998, p.l), repórter <strong>da</strong> Folha, noticiou o ingresso<br />
do ficcionista na coluna literária do jornal, ocasião em que comentou<br />
com mais ênfase o projeto <strong>da</strong> Ilustra<strong>da</strong>, referen<strong>da</strong>ndo-o com<br />
Walt Whitman: "quanto mais leitores tocando no tecido do texto,<br />
mais prazeroso e completo é o ato literário". A repórter também<br />
entrevistou NolI (1998, p.l), que expôs, literariamente, suas intenções:<br />
I Analisaremos, <strong>da</strong> coletânea,<br />
o conto Bispo <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>,<br />
que, ao lado dos outros,<br />
constitui-se no que o seu autor<br />
nomeou como instantes<br />
ficcionais: uma série de contos<br />
ultracurtos publicados na<br />
Folha de S. Paulo, numa<br />
pequena coluna, Relâmpagos,<br />
manti<strong>da</strong> pelo autor de agosto de<br />
1998 a dezembro de 2001.<br />
Analisaremos aqui o conto<br />
Bispo <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>,<br />
publicado em 20/12198, que,<br />
depois, ao lado de todos os<br />
outros, foi reunido pela Editora<br />
Francis, em 2003, em livro<br />
intitulado Mínimos, múltiplos,<br />
comuns, numa edição que<br />
recebeu o Prêmio Jabuti de<br />
melhor capa e o segundo lugar<br />
para livro de contos, além do<br />
Prêmio ABL de Ficção 2004.<br />
Eu quero ter o direito também de fazer pequenas liturgias, pequenos<br />
momentos de. elevação a partir do barro <strong>da</strong> história.<br />
Não acho que ° homem seja anjo, mas é bom a gente exercitar<br />
esse desejo de superação, de transcendência.<br />
A palavra liturgia, no grego, significa função pública. E é isso<br />
mesmo. Noll (1998, p.l) acredita na função pública <strong>da</strong> sua ficção,<br />
textos com "coisas que dizem respeito à vi<strong>da</strong> cotidiana <strong>da</strong> grande<br />
maioria <strong>da</strong>s pessoas". Essa função pública na ficção de João Gilberto<br />
Noll está nos valores que o escritor reitera, presentes, visíveis,<br />
agora, no projeto gráfico de Mínimos, Múltiplos, Comuns l , na<br />
interdiscursivi<strong>da</strong>de, valores com a equivalência de denominadores<br />
comuns, que perpassam seus 338 hipotextos orientados por uma<br />
lógica editorial. Segundo o autor, poderemos ler narrativas que trilham<br />
valores bíblicos, "divididos em cinco grandes conjuntos que<br />
pressupõem uma cronologia <strong>da</strong> Criação: Gênese, Os Elementos, As<br />
Criaturas, O Mundo e O Retomo". (NOLL, 2003, p.23). Bispo <strong>da</strong>
232 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
madruga<strong>da</strong> compõe As Criaturas, que, segundo o contista, constitui,<br />
ao lado dos cento e setenta do mesmo segmento, o<br />
[ ... ] mais complexo entre os conjuntos. Parte <strong>da</strong> uma definição<br />
dos Corpos, que se mostram Despidos; depois unidos carnalmente<br />
como Amantes; unidos perante a lei e a socie<strong>da</strong>de em<br />
Casamento; constituídos em Famílias; gerando Crianças; repartindo<br />
espaço e destino com os Animais; vagando e povoando<br />
o mundo como An<strong>da</strong>rilhos; penando de escapar à fúria dos<br />
vencedores como Fugitivos. Os corpos são Feridos e cobremse<br />
de cicatrizes; recuperam-se ou não como Convalescentes; e<br />
colocam-se à parte do mundo e <strong>da</strong>s coisas, viventes do outro<br />
plano, como Artistas. (NOLL, 2003, p.23)<br />
Como se lê, o corpo mostra-se como o lugar de resistência<br />
do sujeito, que não cede e defende sua emoção. O corpo, na ficção<br />
de Noll, constitui-se numa macrofigura - a figura maior que<br />
se envolve com um conjunto de situações que motivam a narrativa.<br />
Ele constitui-se num motivo que se combina com outros e que<br />
dão apoio temático ao conto, no caso: o corpo como o lugar de<br />
vigor físico, que se esvai; o corpo como o lugar <strong>da</strong> ira, que se<br />
anuncia; o corpo como o lugar que aproxima, de forma grotesca,<br />
o homem do comportamento animal. João Gilberto Nolljoga imagens<br />
contra imagens, numa situação em que elas substituem o<br />
contato do homem com o outro, Com uma narrativa ultracurta, o<br />
ficcionista quer um clímax e procura, para isso, movimentá-la com<br />
situações de vigor físico e emocional, o que reverbera na metáfora<br />
do corpo, o lugar, a figura dessas manifestações. Abaixo, o<br />
conto anunciado para análise:<br />
De madruga<strong>da</strong> me ajoelhei na beira do rio. Sentia-me sangrar.<br />
Procurei pelas pernas, peito, barriga, pescoço, cabeça: na<strong>da</strong>.<br />
Pensei: "É hoje ou nunca, vou sim, eu vou matar". Voltei para<br />
casa e a primeira coisa que fiz foi não acender a luz. Peguei as<br />
cobertas, de pé me enrolei nelas. Eu era um bispo, um rei, um<br />
indigente em trapos. Havia outra alma ali, meu filho pequeno.<br />
Ele ressonava. Em minutos amanheceria e eu faria café. Passei<br />
as unhas pela parede fria, como se querendo me testar. Ao acor<strong>da</strong>r,<br />
a criança me contava sempre o mesmo sonho: cobria com<br />
uma toalha de mesa o amigo albino sob o sol do meio dia.<br />
(NOLL, 2003, p.216).
:' hipotexto de Noll<br />
233<br />
A palavra configuração, que desde o início nos orienta nos<br />
fun<strong>da</strong>mentos desse artigo, chama-nos atenção para dois aspectos:<br />
o primeiro, atinente ao aspecto visual do texto, sua mancha; o<br />
segundo, o propósito do texto, sua forma, que ele sustenta, preponderantemente,<br />
com figuras. A configuração, quer de um hiper<br />
ou de um hipotexto, está, de maneira nodular, na idéia de texto:<br />
uma seqüência de enunciados encadea<strong>da</strong> e trama<strong>da</strong>. Texto é trama,<br />
como nos lembrou Ricardo Piglia. A partir dessa condição fun<strong>da</strong>nte<br />
do texto, poderemos divisar, então, suas diferenças nos registros <strong>da</strong><br />
sua comunicação, no seu suporte, na configuração do suporte.<br />
Um hipotexto é um texto muito curto. A brevi<strong>da</strong>de, quer<br />
para a prosa ou para a poesia, provoca numa narrativa uma forte<br />
tensão interna. A brevi<strong>da</strong>de intensifica, no caso de uma narrativa<br />
em prosa, uma coerção interna para o estabelecimento <strong>da</strong> sua trama.<br />
Bispo <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong> tem, como vimos, 112 palavras, que nos<br />
envolvem numa circunstância emblemática que invade o destino<br />
de uma personagem frenética, sem identi<strong>da</strong>de, perdi<strong>da</strong> na sua individuali<strong>da</strong>de,<br />
sem que o seu pensamento delirante esteja voltado<br />
para um acontecimento. Não houve, para a narrativa, um acontecimento;<br />
não há sequer a pressuposição de um acontecimento. O<br />
conto narra uma situação, algo localizado.<br />
Bispo <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong> é um conto de situação; elíptico,<br />
multiforme, polissêmico. A elipse, que omite as seqüências do<br />
acontecimento, instala o enigma, sua atmosfera. Exige a participação<br />
do leitor, que, em rápi<strong>da</strong>s cenas, lê o enfraquecimento de<br />
um sujeito: de um pai, esgotado, exausto. O filho, a segun<strong>da</strong> personagem,<br />
encontra-se em situação oposta: tranqüilo, desperto de<br />
um sono. O pai é um errante, irado; o filho, fixo num único sonho,<br />
um solidário. Deparamo-nos com uma tensão que condensa, <strong>da</strong><br />
parte do pai, vazio, fracasso e, <strong>da</strong> do filho, redenção, salvação,<br />
plenitude. Defrontamo-nos, sempre, com condensações e elipses;<br />
indefinições, como a figura do tempo: madruga<strong>da</strong>, momento entre<br />
a meia noite e as seis horas <strong>da</strong> manhã; tempo fluido: corrente,<br />
espontâneo. Ou como na figura espacial do rio que flui e de forma<br />
semelhante como o sangue que a personagem sente correr em<br />
profusão, pelas pernas, peito, barriga, pescoço, cabeça. As figuras<br />
espaciais mostram-se externas e internas. Externas quando à beira<br />
do rio e internas, quando focam o interior <strong>da</strong> casa. A casa encontra-se<br />
fecha<strong>da</strong>. Pai e filho encontram-se com a proteção <strong>da</strong>s co-
23-f Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, 0.9, 2006<br />
bertas e <strong>da</strong> casa. O pai, de esgotado, irado, à beira do rio, agora,<br />
no interior <strong>da</strong> casa, dividido - um bispo, um rei, um indigente. O<br />
filho, enquanto dorme e sonha no seu quarto, uno - um princípio<br />
de vi<strong>da</strong> unificado, de individuali<strong>da</strong>de, de personali<strong>da</strong>de, de consciência,<br />
de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de. O filho encontra-se tranqüilo e ressona<br />
numa cama. Inspira no pai, que fará café ao amanhecer, um alento.<br />
O pai crava as unhas na parede: certifica-se. O sonho do filho<br />
será sua certeza sob a luz do sol do meio-dia; num gesto de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de<br />
para o desamparo de seu pai. Nesse sonho, o filho cobre<br />
um albino com uma toalha, como o pai, dentro <strong>da</strong> casa, cobrese<br />
com uma coberta. Na elipse, na condensação, uma oposição<br />
possível - o desamparo de um diante do amparo do outro. O pai<br />
encontra-se em desamparo, na beira do rio ou em casa; o filho, em<br />
casa, enquanto dorme e sonha, ampara, aju<strong>da</strong>, auxilia, socorre.<br />
A leitura de um hipotexto é intrinca<strong>da</strong> e intensa. Ler (do<br />
latim legere ou do grego analegein) significa escolher. Ler, nesses<br />
sentidos, é interpretar, atribuir sentido, sentir alguma coisa que é<br />
reconheci<strong>da</strong> pela leitura: algo singular e que exige, do leitor, uma<br />
descrição <strong>da</strong> ação lingüística que produz o texto, numa determina<strong>da</strong><br />
situação que pressupõe um gênero, um tipo de discurso mediador<br />
<strong>da</strong> construção de um tipo de conhecimento. O leitor precisa<br />
entender o texto, saber o que está lendo e compreender algo<br />
importante e atinente à deman<strong>da</strong> de uma narrativa: ela não tem<br />
tamanho, constitui-se de um enunciado total.<br />
Do enunciado total que é uma narrativa, o conto, do latim<br />
computu, é uma conta, um cômputo, um número (uma representação<br />
de ca<strong>da</strong> um dos quadros ou cenas de uma narrativa, de um<br />
espetáculo; representação de uma grandeza mensurável; representação<br />
de um conjunto <strong>da</strong>do), preciso, harmônico, regular na<br />
cadência e disposição de suas palavras. Nesse sentido, conto tem<br />
o significado semelhante a canto. Há, em ambas as composições,<br />
a modulação de uma voz que, no caso do conto, narra, mas também,<br />
como no canto, entoa, dentro de um tom (contínuo ou<br />
descontínuo), com escalas (consonantes ou dissonantes).<br />
A comparação que fazemos entre as manifestações do canto<br />
e do conto tem uma sintonia com a poética de João Gilberto<br />
Noll. A natureza <strong>da</strong> forma <strong>da</strong> sua narrativa em prosa, conforme<br />
ent<strong>revista</strong> que concedeu a Miguel do Rosário, passa pela<br />
musicali<strong>da</strong>de, apreendi<strong>da</strong>, desde a sua infância, tanto na audição
o hipotexto de NolJ 235<br />
<strong>da</strong> composição musical, como na leitura <strong>da</strong> poesia. NoU, nessa<br />
ent<strong>revista</strong>, revela-nos que é mais leitor <strong>da</strong> poesia do que <strong>da</strong> prosa<br />
e que, ao. escrever, vê-se "arrastado por ritmos, realmente por<br />
ritmos, por voltagens musicais ... ". (NOLL, 2004, pA) Dessa<br />
maneira, Gilberto Noll (2004, p.5) definirá, nessa mesma ent<strong>revista</strong>,<br />
a sua prosa como "uma prosa poética" e que está<br />
"radicalizando ca<strong>da</strong> vez mais isso". Acreditamos que a edição de<br />
Mínimos, múltiplos, comuns, de 2003, contempla aquela<br />
radicalização referen<strong>da</strong><strong>da</strong> na ent<strong>revista</strong> concedi<strong>da</strong> para Miguel do<br />
Rosário em 2004 e sinaliza para os anos em que o autor exercitou-a<br />
na Folha de S. Paulo.<br />
Desse modo, uma prosa com o ritmo <strong>da</strong> poesia, em primeira<br />
pessoa, diante de um temário que celebra situações convulsivas<br />
vivi<strong>da</strong>s pelas suas personagens, possibilita a João Gilberto NoU<br />
construir uma atmosfera em que o,poético aproxima-se do mítico<br />
e permite que a narrativa represente, conforme o autor, "uma<br />
certa pulsão por um ethos". (2004, p.8)<br />
Juntamos às considerações uma reflexão sobre o conceito<br />
de conto, o de enredo também nos será interessante. Pode-se<br />
ressaltar do conceÍto de enredo uma diferença entre uma situação<br />
inicial e uma final <strong>da</strong> narrativa. O conto de enredo é modulado<br />
numa escala dissonante, a fim de que seu enunciador construa<br />
um tom descontínuo entre começo, meio e fim, uma relação<br />
de causa e efeito, um princípio de causali<strong>da</strong>de. Já o conto de<br />
atmosfera é modulado dentro de uma escala consoante, num tom<br />
contínuo, a fim de que sua enunciação elabore uma consonância<br />
entre o seu início e o seu final. Um enredo mostra-nos<br />
descontinui<strong>da</strong>de; uma atmosfera, continui<strong>da</strong>de, circulari<strong>da</strong>de. No<br />
enredo a ênfase transita entre seqüências (e entre elas um episódio<br />
será fun<strong>da</strong>mental, terá seu desenlace). O conto de atmosfera<br />
fixa-se num estado, numa situação em que temos a atmosfera, o<br />
ambiente, a situação de uma ação.<br />
O conto que lemos configura-se como um conto de atmosfera,<br />
distante <strong>da</strong> estrutura do conto de desenlace; trabalha a narrativa<br />
de forma vaga, diluí<strong>da</strong>, indefini<strong>da</strong>; as seqüências <strong>da</strong> sua narrativa<br />
não se opõem, elas se neutralizam. O procedimento de<br />
neutralização sustenta o conto de atmosfera, numa relação de agregação<br />
entre seqüências; a proximi<strong>da</strong>de entre seqüências é imediata,<br />
sem mediação. Essa é a relação única de aproximação entre
236 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
suas situações; o seu objetivo é diluir contrastes e evitar um desenlace.<br />
O conto de atmosfera tende a narrar, mais e precisamente, um<br />
estado mental, um estado de espírito, do que uma ação genérica.<br />
Esse conto, como um enunciado total e no modo de tensionar essa<br />
totali<strong>da</strong>de, qualifica sua narrativa de maneira caótica, heteróc1ita;<br />
faz paralelos, coordenações; intercalações, transições, regressões,<br />
seguindo o fio <strong>da</strong> narrativa e os perfis <strong>da</strong>s personagens.<br />
Voltemos agora a nossa atenção à função do narrador de<br />
Bispo <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>. O narrador é o organizador <strong>da</strong> ação narrativa;<br />
é a voz que narra. Nesse conto, temos um narrador e personagem<br />
que organizam, com palavras e imagens, a ver<strong>da</strong>de textual;<br />
é como se sua presença afastasse a do sujeito <strong>da</strong> enunciação, sempre<br />
implícita, mas, muitas vezes, forte, mais organizadora, mais<br />
racional. O narrador do conto é semi-onisciente: não invade a mente<br />
<strong>da</strong> personagem, com quem contracena, na busca de explicações<br />
para os acontecimentos. Não temos, como vimos, um acontecimento.<br />
O que é que aconteceu Esse narrador capta emoções,<br />
sensações simultâneas.<br />
Bispo <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>, como lemos, constitui-se num conto<br />
estranho. Trata-se de uma narrativa sem herói e sem adjuvante,<br />
em torno de algo que ocorre, de maneira única e persiste. O<br />
continuum do mundo, do ponto de vista do protagonista, não se<br />
deixa recortar. A percepção <strong>da</strong>s coisas do mundo, pelo sujeito, no<br />
conto de atmosfera, é contínua. O sujeito, assim, não chega, com<br />
o que percebe, a uma concepção do mundo. Como exprimir as<br />
áreas do inconsciente num conto ultracurto A construção de uma<br />
inconsciência não admite uma expressão verbal direta e, assim, de<br />
maneira indireta, dedutiva, leremos, em Bispo <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>,<br />
como que <strong>da</strong>dos do inconsciente expressos, com elipses,<br />
condensações, como índices de uma sintaxe do inconsciente, por<br />
meio do solilóquio.<br />
O solilóquio procura exprimir emoções, sensações - a vi<strong>da</strong><br />
interior <strong>da</strong> personagem fundi<strong>da</strong> à exterior. Ele conforma interpelações<br />
deliberativas (um jogo, não necessariamente explícito, entre<br />
perguntas e respostas). A palavra base que nomeia solilóquio é<br />
colóquio. Colóquio define-se como a fala entre dois. Solilóquio é<br />
uma palavra deriva<strong>da</strong> de colóquio; significa fala de um só, fala de<br />
alguém consigo mesmo, monólogo. Na ver<strong>da</strong>de, no monólogo,<br />
alguém é interlocutor <strong>da</strong> própria fala - um arranjo literário, uma
o hipotexto de Noll<br />
237<br />
figura, algo sem lógica - traduz, representa, uma condição do<br />
homem, de solidão. Situa-se num nível menos profundo <strong>da</strong> consciência.<br />
Pode aparecer combinado com o monólogo interior. O<br />
solilóquio, por sua vez, procura exprimir emoções, sensações - a<br />
vi<strong>da</strong> interior relacionando-se com a exterior. Bispo <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong><br />
configura-se com o veio do solipsismo, na movimentação de<br />
um eu em única reali<strong>da</strong>de do mundo; de um eu que tem nas suas<br />
condições subjetivas a única forma <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de; de um narrador<br />
sem interlocutor. As ações estranhas não se justificam do ponto<br />
de vista do reconhecimento; não as reconhecemos pela nossa<br />
memória de leitura, nem as reconhecemos pelos antecedentes <strong>da</strong><br />
narrativa, derivados <strong>da</strong> própria intriga. Nos acontecimentos verossímeis<br />
e necessários, o contexto exerce um controle na coerência<br />
do texto. Pode ser uma coerência de temas e figuras, em<br />
que o tema suporta a rede de figuras; o que é próprio de um texto<br />
que trama, tece relações. Em um texto tramado por meio de ações<br />
estranhas, a continui<strong>da</strong>de fica à mercê de si mesma e formula a<br />
sua própria condição paradoxal. Em uma narrativa estranha, a<br />
personagem não sabe compreender o que ocorre e nem alterar tal<br />
situação. O seu adversário não é conhecido e, portanto, não pode<br />
ser reconhecido. O estranho é algo que ocorre "fora <strong>da</strong> ação", <strong>da</strong><br />
ação verossímil, sem necessi<strong>da</strong>de. O necessário consiste no que é<br />
inevitável, requerido, forçoso; o que não pode deixar de ser; uma<br />
condição imposta, normativa, que impede escolhas; a necessi<strong>da</strong>de<br />
é fun<strong>da</strong>mental. O necessário é o oposto do voluntário, <strong>da</strong>quilo<br />
que procede livremente.<br />
O jornalista José Castello (2003a, p.74), em dois momentos,<br />
observa a chama<strong>da</strong> nova geração de escritores brasileiros,<br />
que João Gilberto NoU integra. No primeiro momento, nas páginas<br />
<strong>da</strong> <strong>revista</strong> Bravo, e no início de suas observações, enfatiza:<br />
As melhores ficções são aquelas que parecem desprovi<strong>da</strong>s de<br />
laços com o seu tempo e com o seu meio, provocando o desconforto<br />
de destoarem tanto dos hábitos dos intelectuais ilustrados<br />
como <strong>da</strong>s expectativas amestra<strong>da</strong>s do leitor comum.<br />
José Castello, nesse artigo, comenta a maneira como, entre<br />
os novos ficcionistas, há aqueles que não se reconhecem como<br />
parte de uma "nova geração" que não fazem manifestos ou<br />
experimentalismos. Apresentam-se, antes, como uma geração sem
238 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
tendência e que, simplesmente, elaboram uma narrativa tensa e<br />
tendente para o inesperado, o novo, uma nova reali<strong>da</strong>de, uma supra-reali<strong>da</strong>de.<br />
O segundo momento <strong>da</strong>s observações de José<br />
Castello (2003b, p.l0-13) ocorreu onze meses depois, no jornal<br />
Valor, em que ele retoma o mesmo viés <strong>da</strong> questão acerca <strong>da</strong> literatura<br />
contemporânea. Notamos que essa última discussão é mais<br />
densa, e alinha-se às ponderações já destaca<strong>da</strong>s de Ricardo Piglia.<br />
Para o jornalista, o "novo realismo" domina a produção <strong>da</strong> prosa<br />
brasileira atual, e, sobre ele, observa:<br />
Li<strong>da</strong>r com a reali<strong>da</strong>de não é tarefa fácil para ninguém, não<br />
só para os escritores. Até porque a reali<strong>da</strong>de é muito mais complexa<br />
e enigmática do que supõem essas paisagens simplifica<strong>da</strong>s e<br />
superficiais mostra<strong>da</strong>s pelo "novo realismo".<br />
Nas circunstâncias dessa afirmação, Castello considera João<br />
Gilberto Noll um escritor:<br />
[ ... ] interessado nesse abismo que separa o sujeito <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de,<br />
[e que] prefere, ao contrário [<strong>da</strong>queles "de paisagens<br />
simplifica<strong>da</strong>s"], agarrar-se à potência dos sentimentos e à energia<br />
dos estados primitivos. (Castello, 2003b, p.l 0-13)<br />
Com José Castello depreendemos que João Gilberto Noll<br />
produz uma ficção a partir <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, delimitando suas personagens<br />
no campo do imaginário humano, ocasião em que as encena<br />
em situações de crua reali<strong>da</strong>de.<br />
Divisamos, assim, nesses dois artigos de José Castello, com<br />
base em seu ponto de vista sobre o literário e em sua impressão<br />
sobre o texto de João Gilberto Noll, que a nova narrativa não copia<br />
objetos, mas substitui a referenciali<strong>da</strong>de ordinária por outra, extraordinária,<br />
por um novo conjunto de significantes. Ou, conforme o<br />
ficcionista, João Gilberto N 011 (1999, p.l 00) j á observara:<br />
Eu gosto de ver a matéria objetiva, de um corpo determinado.<br />
Eu preciso ver um personagem, um corpo com ânimo. Esses<br />
personagens estão um pouco desvinculados de uma instituição<br />
que possa centrá-los. São muito perdidos. Por isso, eles precisam<br />
an<strong>da</strong>r à cata dessa coisa que não os faça pura evasão ( ... )<br />
O que me encanta na existência é a forma. Isso não deságua no
o hipotexto de Noll<br />
239<br />
formalismo, na palavra como artefato. O que gera a palavra,<br />
poética ou não, é o drama, a incapaci<strong>da</strong>de do homem de <strong>da</strong>r um<br />
sentido mais vertical à existência.<br />
o próprio autor, posteriormente, manifestou-se contrário à<br />
tendência realista: "Eu não sou um escritor realista. Eu sou um<br />
escritor de linguagem, é a linguagem que move os conteúdos, que<br />
estrutura os conteúdos". (NOLL, 2004, p.6) O realismo de João<br />
Gilberto NoU está na modulação <strong>da</strong> sua narrativa, no seu tom que<br />
sustenta uma situação em movimento. A narrativa de NoU tende,<br />
assim, a partir do papel do indivíduo na ficção, a redirecionar o<br />
quadro <strong>da</strong> referenciali<strong>da</strong>de, alterando a maneira usual <strong>da</strong> representação,<br />
mu<strong>da</strong>ndo o caráter <strong>da</strong> composição <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de, à<br />
maneira de abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de. O imaginado ajusta-se à<br />
forma em que é imaginado, na disposição em que é imaginado,<br />
para ficarmos com Gianotti (2005, p.3):<br />
o referente, o imageado, nasce, pois, desse jogo que, às vezes,<br />
trabalha com semelhanças, mas cujo valor estético não<br />
depende delas.<br />
Segundo Gianotti (2005, p.3), desde a Antigüi<strong>da</strong>de, "a imagem<br />
tem sido posta como aquela facul<strong>da</strong>de de ter presente uma<br />
coisa ausente", uma figura à procura <strong>da</strong> referência. Algo que temos<br />
bem distante <strong>da</strong> estratégia ficcional de Noll (1999, p.lOl):<br />
Não tenho pendor para as grandes narrativas. Gosto do mistério.<br />
O mistério humaniza. Não é uma perdição para as forças<br />
sociais, as forças <strong>da</strong> luz. Eu quero luz, também, como todo<br />
indivíduo. O meu movimento não é antiiluminista.<br />
NoU, entre os novos ficcionistas, não se afasta <strong>da</strong> compreensão<br />
<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> tentativa de apreendê-la; busca, porém.<br />
visualizá-Ia, incorporá-la à reali<strong>da</strong>de humana, labiríntica, visceral<br />
e tal estratégia passa pelo perfil do intelecto <strong>da</strong> personagem. pelo<br />
seu nível de percepção <strong>da</strong> existência e pela representação <strong>da</strong> sua<br />
consciência, <strong>da</strong> sua subjetivi<strong>da</strong>de. A diegésis, assim, mais que a<br />
mimese, dá a direção <strong>da</strong> trama.<br />
No conto de Noll em questão, mostram-se os<br />
assombramentos de uma personagem diante <strong>da</strong> sereni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ou-
240 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
tra. Sombra e luz - figuras alegóricas <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de; nelas, o mundo<br />
sensível aparece como alegoria de um conteúdo espiritual "imperceptível".<br />
Conforme afiançou José CastelIo, nessa alegoria, João<br />
Gilberto NoU mostra o "abismo que separa o sujeito <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de",<br />
próxima <strong>da</strong> "potência dos sentimentos e à energia dos estados<br />
primitivos" e distante de "paisagens simplifica<strong>da</strong>s e superficiais".<br />
(2003, p.lO-13)<br />
Percebemos, dessa maneira, pela ficção de NoU, que quadros<br />
novos do mundo são pensados e nos ampliam as imagens que<br />
temos do mundo. A mímesis, como vemos, não mais se realiza<br />
como a expressão que presentifica, representa, algo que está ausente,<br />
reconhecido pelo processo <strong>da</strong> leitura. Essa ficção de João<br />
Gilberto NoU elimina a revelação e afirma a percepção. Na narrativa,<br />
parece-nos, a memória na<strong>da</strong> revela. É o casual que desencadeia<br />
os processos de consciência e constitui-se na forma de aproximação<br />
do texto com a reali<strong>da</strong>de imediata, a maneira como o<br />
mundo interior <strong>da</strong> personagem transparece no mundo exterior.<br />
Há um veio, um caminho, mostrado no engendramento do<br />
conto que, ao nosso ver, passa sim por um novo realismo, ao lado<br />
de um novo naturalismo. O naturalismo está na transcrição de<br />
uma reali<strong>da</strong>de imediata, no imediatismo, no instintivo, na determinação<br />
do imediatismo, que propicia, no texto em análise, o aparecimento,<br />
por exemplo, <strong>da</strong> ira, dos estados primitivos. A reali<strong>da</strong>de,<br />
assim, é sonho, esquizofrenia, visões, o objeto misterioso<br />
<strong>da</strong> ficção. O realismo de João Gilberto NolI realiza-se com o objetivo<br />
de vasculhar o obscuro. E, assim, o tempo faz-se perpétuo,<br />
contínuo, tenso, como na lírica.<br />
O conto analisado e os demais de Mínimos, múltiplos, comuns,<br />
mostram construções, configurações que buscam novas<br />
referências, novas figuras, um novo "imageado", como quer<br />
Gianotti. Os hipotextos de NoU expressam situações múltiplas,<br />
dispostas em uni<strong>da</strong>des temáticas, por meio de uma ação intensa<br />
<strong>da</strong> interdiscursivi<strong>da</strong>de e num estilo vigoroso, excessivo, elaborado.<br />
Dessa maneira, com imagens tensas, ambíguas, narram-se situações<br />
transcendentes que aproximam os momentos <strong>da</strong> história<br />
aos momentos do discurso. A própria obra como medi<strong>da</strong> e à procura<br />
de um leitor Borges, Cortazar, Bioy Casares fizeram contos<br />
curtos com esses parâmetros. João Gilberto NoU não é o primeiro<br />
na ousadia. Aqui também, conforme observa João Alexandre Bar-
o hipotexto de NoU<br />
241<br />
bosa (2003, p.17): "a experiência que se representa é também, ou<br />
sobretudo, uma experiência de leitura". Essa referência, dedica<strong>da</strong><br />
à crítica <strong>da</strong> literatura atual, aju<strong>da</strong>-nos a explicar a narrativa de<br />
Noll- a teatralização de gestos, o momento do impulso biológico<br />
do corpo, os movimentos entre o homem e o mundo - como a<br />
representação dos:<br />
[ ... ] os movimentos de inadequação através dos quais o poético<br />
se expande na criação de um espaço e de um tempo capazes de<br />
romper com os estreitos limites de uma diacronia evolutiva de<br />
causa e efeito. (2003, p.15)<br />
A originali<strong>da</strong>de na construção dos textos de João Gilberto<br />
N 011 está na busca de um efeito casual, com intensi<strong>da</strong>de e brevi<strong>da</strong>de;<br />
sua originali<strong>da</strong>de está, enfim, em tensionar a narrativa para o<br />
imprevisto. Vêm-nos à lembrança, como numa situação<br />
diametralmente oposta às de No11, as intenções literárias de Edgar<br />
A11an Poe. O tom poético procurado por NoU não é o <strong>da</strong> melancolia,<br />
preferido por Poe. Além disso, o estranho, nas narrativas de<br />
NoU, habita o sujeito e permanece fora do seu alcance. Poe, que<br />
tudo prevê, constrói a estranheza de uma <strong>da</strong><strong>da</strong> situação dentro de<br />
uma combina<strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de de efeito, para a impressão do seu leitor.<br />
O estranho, nas narrativas de No11, habita o sujeito e permanece<br />
fora do seu alcance. A originali<strong>da</strong>de de João Gilberto No11 está em<br />
elaborar o imprevisto, com imagens diluí<strong>da</strong>s que traz do mundo,<br />
apaga<strong>da</strong>s <strong>da</strong> sua referenciali<strong>da</strong>de. Desse modo, NoU afasta-se do<br />
mimético. A representação do mundo no seu texto faz-se pela<br />
sobreposição de observações sobre o observado, porém, por meio<br />
de imagens imprevisíveis, constituí<strong>da</strong>s por metáforas sem<br />
previsibili<strong>da</strong>de, que elidem a cadeia do sentido para o seu reconhecimento,<br />
distanciando-se <strong>da</strong> retórica de "atualização de uma<br />
diferença" (COSTA LIMA, 2000, p.303), a que reconhece, para o<br />
leitor, aquela diferença.<br />
As imagens que João Gilberto NoU traz do mundo para a<br />
literatura são ver<strong>da</strong>deiramente singulares e não procuram "a equivalência<br />
subjetiva de uma cena externa e objetiva" (COSTA LIMA,<br />
2000, p.24), ou conforme as intenções do autor: "O que me interessa<br />
é o gesto, é a projeção de coisas sobre as quais não tenho<br />
tanto controle assim" (NOLL, 1998, p.102).
242 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Referências<br />
BARBOSA, João Alexandre. Literatura e socie<strong>da</strong>de do fim do século. In:<br />
Alguma crítica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.<br />
CASTELLO, José. Dissonância e atrito. Bravo, São Paulo, v.6, n.64, p. 74-<br />
79, jan. 2003a.<br />
CASTELLO, José. Inventado a reali<strong>da</strong>de. Valor, São Paulo, p. 10-13, 12 dez.<br />
2003b.<br />
COSTA LIMA, Luiz. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira, 2000.<br />
DECIA, Patrícia. João Gilberto Noll estréia hoje coluna "Relâmpagos". Folha<br />
de S. Paulo, São Paulo, 24 ag. 1998. Ilustra<strong>da</strong>, Coluna Literatura, p.l.<br />
ILUSTRADA passa a publicar coluna literária todos os dias: reportagem local.<br />
Folha de S. Paulo. Ilustra<strong>da</strong>, São Paulo, 26 set. 1997, p.l.<br />
GIANNOTII, José Arthur. O construtor de inversões. Folha de S. Paulo, São<br />
Paulo, 22 maio 2005. Caderno Mais, p.3.<br />
NOLL, Gilberto. Bispo <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>. Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 dez.<br />
1998. Ilustra<strong>da</strong>, Coluna Relâmpagos, p.8.<br />
NOLL, Gilberto. Bispo <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>. In: -. Mínimos, múltiplos, comuns.<br />
São Paulo: Francis, 2003.<br />
NOLL, Gilberto. O boxeador <strong>da</strong> ficção [setembro 1999]. Ent<strong>revista</strong>dor: Michel<br />
Laub e Pedro Maciel. Bravo, São Paulo, v.2, n.24, p.98-113, set.1999.<br />
NOLL, João Gilberto. A literatura é muito perigosa. Ent<strong>revista</strong>dor: Miguel<br />
do Rosário. Arte e política, Rio de Janeiro, ano 7, n.20, p.4-8, 2004. Disponível<br />
em: . Acesso em: 15 maio 2006.<br />
PIGLIA, Ricardo. Piglia discute relação entre literatura e ver<strong>da</strong>de [agosto<br />
1990]. Ent<strong>revista</strong>dor: Marco Chiaretti. Folha de S. Paulo, São Paulo, 11 ago.<br />
1990. Letras, F 3.<br />
PIGLIA, Ricardo. Crítica Y jicción. Buenos Aires: Editorial Planeta Argentina,<br />
2000.
243<br />
Outras Palavras:o Catatau de Paulo<br />
Leminski em três tempos<br />
Marília Librandi Rocha<br />
(UESB)<br />
Este texto versa sobre o romance Catatau (1975), de Paulo<br />
Leminski (1944-1989), tendo em vista discorrer sobre o modo<br />
como o experimentalismo de vanguar<strong>da</strong> insere-se e, simultaneamente,<br />
desloca a tradição do narrador de prosa de ficção no Brasil<br />
desde sua constituição no século XIX. Busca-se saber de que modo<br />
um romance como Catatau liga-se à tradição do narrador<br />
oitocentista corrompendo-a por dentro, minando seus pressupostos,<br />
ao mesmo tempo em que os re-atualiza. Um desses pressupostos,<br />
talvez o principal, respondia pela adequação de uma ficção<br />
atrela<strong>da</strong> à documentação e que se legitimava por sua mestra,<br />
a História, pelo desejo de fun<strong>da</strong>r um país, a busca <strong>da</strong> cor local e a<br />
descrição <strong>da</strong> paisagem basea<strong>da</strong> nos relatos dos viajantes estrangeiros<br />
(cf. SUSSEKIND, 1990). O mesmo viajante, que constitui<br />
a imagem do narrador de romance no Brasil oitocentista como<br />
paradigma do conhecimento e descrição do país, também se encontra<br />
aqui só que posto do avesso. "No Catatau", diz Leminski,<br />
"quase na<strong>da</strong> acontece. No sentido <strong>da</strong> narrativa do século XIX,<br />
claro. No plano <strong>da</strong> linguagem e do pensamento, acontece quase<br />
tudo" (Leminski, 1975, p.11). No livro, Leminski ficcionaliza Renê<br />
Descartes, que foi oficial <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong> de Maurício de Nassau e<br />
poderia ter integrado, juntamente com naturalistas como Marcgravf<br />
e pintores como Franz Post e Albert Eckhout, a comitiva que acompanhou<br />
o Príncipe em sua vin<strong>da</strong> ao país na época do domínio<br />
holandês no Nordeste (1630-1654).<br />
Como uma floresta tropical de palavras que não compõe<br />
proposição váli<strong>da</strong> segundo o critério de Ver<strong>da</strong>deiro ou Falsa, mas<br />
uma simultanei<strong>da</strong>de de frases que se autodesfazem, uni<strong>da</strong>s emjus
244 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
taposição mais do que na subordinação de sintagmas como "Penso,<br />
logo existo", não há, em Catatau, o "logo", pois nele o lagos<br />
cartesiano delira e ensandece: "muito baralhado esse negócio<br />
brasílico!" (LEMINSKI, 1975, p.63), o que, de outro modo, mantém<br />
a figuração de um Novo Mundo em oposição ao Velho. Assim,<br />
o livro abre com o famoso ergo sum, imediatamente corrigido<br />
para "aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aqui presente,<br />
neste labirinto de enganos deleitáveis" (LEMINSKI, 1975, p.13).<br />
Em um livro que se quer todo espacial, este estudo, como<br />
abor<strong>da</strong>gem inicial de pesquisa, tem o intuito de mostrar que em<br />
Catatau se cruzam três temporali<strong>da</strong>des distintas: 1) a do século<br />
XX, em um livro escrito entre 1966 e 1975, no Brasil, segundo<br />
os parâmetros <strong>da</strong> vanguar<strong>da</strong> do Concretismo, filiado às experimentações<br />
de James Joyce, Guimarães Rosa, Haroldo de Campos,<br />
e retomando a linha do projeto modernistaJantropofágico<br />
de Oswald de Andrade; 2) a do século XVII, com o tema <strong>da</strong><br />
presença fictícia de Descartes em Pernambuco, o texto parodia<br />
o pensamento clássico, sua ordem geral dos signos, sua mathesis<br />
e taxinomia, para defender a idéia de sua impossibili<strong>da</strong>de em<br />
terras locais; 3) entre esses dois tempos - os séculos XX e o<br />
XVII - queremos mostrar que o livro de Leminski desfaz em<br />
negativa as bases que constituíram o narrador de ficção no Brasil<br />
no século XIX, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente,<br />
mantém, com outra palavras, os mesmos pressupostos românticos<br />
de um país edênico, lugar incomum, terra "em branco"; questões<br />
essas que discutiremos a partir dos estudos de Flora<br />
Sussekind, O Brasil não é longe <strong>da</strong>qui (1990), e de Roberto<br />
Ventura, Estilo Tropical (1991). De modo que, no livro, as diversas<br />
temporali<strong>da</strong>des não apenas se cruzam, mas coincidem:<br />
"Se nossas épocas coincidirem, nossas conversas serão contínuas"<br />
(LEMINSKI, 1975, p.l11), o que conduz à in<strong>da</strong>gação: "A<br />
que época atribuir nossos tempos" (LEMINSKI, 1975, p.38).<br />
Podemos também dizer que em Catatau ocorre o confronto<br />
de duas epistemes que o romance encenaria: a episteme do<br />
século XVII europeu, que tem Descartes como pilar e que se<br />
caracteriza pela confiança na representação e no cogito, e a<br />
episteme que na passagem do XVIII para o XIX inaugura a "crise<br />
<strong>da</strong> representação", segundo M.Foucault (1966), e que se estenderia<br />
até uma obra de vanguar<strong>da</strong> e experimentalismo dos anos
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos<br />
245<br />
de 1970 no Brasil, a qual acentua ou desloca a crise <strong>da</strong> representação<br />
numa incursão pela linguaviagem.<br />
o viajante em trânsito, ° pensamento em transe<br />
Renatus Cartesius, personagem, encontra-se sentado à sombra<br />
de uma árvore do horto de Maurício de N assau no palácio de<br />
Vrijburg (1642): "a ci<strong>da</strong>de livre, a Olin<strong>da</strong> batava, onde em<br />
Pernambuco (paranimabuca, em tupi), Nassau organizou o primeiro<br />
zôo e horto botânico só com plantas e animais tropicais"<br />
(Leminski, 1975, p.13). Fumando uma "erva de negros" e com<br />
uma luneta a seu lado, o pensamento claro e distinto do filósofo<br />
perturba-se, dissolve-se e aquece-se sob o sol dos trópicos. A razão<br />
dorme ou sonha e o que ele vê são monstros, como diz parodiandoPascal,<br />
"O silêncioetemo desses seres tortoseloucos me<br />
apavora" (LEMINSKI, 1975, p. 15).<br />
Comer esses animais há de perturbar singularmente as coisas<br />
do pensar. Palmilho os dias entre essas bestas estranhas, meus<br />
sonhos se populam <strong>da</strong> estranha fauna e fIora: o estalo de coisas,<br />
o estalido dos bichos, o estar interessante (LEMINSKI,<br />
1975, p. 15)<br />
Descartes aguar<strong>da</strong> Artyczewski (1592-1656), general <strong>da</strong><br />
Companhia <strong>da</strong>s Índias Ocidentais, que só aparece ao final do livro,<br />
embriagado.<br />
o ilusionismo solipsista (ego-trip) do personagem-Cartésio é o<br />
fiel retrato, em termos de realismo, do estado de espírito do<br />
colonizado, um homem fragmentado, desconexo, perplexo, atônito:<br />
alienado (Leminski, 1989b, p.212)<br />
Descartes perde a razão e se metamorfoseia nos animais<br />
que observa. Assim, se "A bichara<strong>da</strong>, com que começa o Catatau,<br />
emblematiza o pasmo do Europeu (esse desbestializado)"<br />
(LEMINSKI, 1989b, p.212) , no livro o personagem se toma<br />
literalmente besta:<br />
Sinto em mim as forças e formas deste mundo, crescem-me<br />
hastes sobre os olhos, o pêlo se multiplica, garras ganham a
246 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
ponta dos dedos, dentes enchem-me a boca, tenho assomos de<br />
fera, renato fui. Se papai me visse agora, se mamãe olhar para<br />
cá!" (LEMINSKI, 1975, p.36)<br />
Assim, se para o Descartes real o que diferencia os homens<br />
dos animais é serem aqueles "capazes de arranjar em conjunto<br />
diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam<br />
entender seus pensamentos; e que, ao contrário, não existe outro<br />
animal, por mais perfeito e felizmente engendrado que possa ser,<br />
que faça o mesmo" (DESCARTES, 1637, Livro 5, p.61), Leminski<br />
faz entrar em curto-circuito essa capaci<strong>da</strong>de: vingança contra o<br />
cartesianismo, sua lógica e a <strong>da</strong> colonização. Assim também, se<br />
para Descartes "a razão é um instrumento universal, que pode servir<br />
em to<strong>da</strong>s as espécies de circunstâncias" (DESCARTES, 1637,<br />
Livro 5, p.60), para Leminski trata-se de defender a tese contrária.<br />
Uma frase de Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago:<br />
" ... nunca admitimos o nascimento <strong>da</strong> lógica entre nós", parece<br />
estar na base de Catatau. A intenção do livro, nas palavras do<br />
autor, é : "mostrar como, no interior <strong>da</strong> lógica todo poderosa,<br />
esconde-se uma inautentici<strong>da</strong>de: a lógica não é limpa, como pretende<br />
a Europa, desde Aristóteles. A lógica deles, aqui, é uma<br />
farsa, uma impostura. O Catatau quer lançar bases de lógica nova".<br />
(LEMINSKI, 1989b, p.211).<br />
Segundo a Grammaire génerale et raisonnée (1660) e La<br />
logique ou l'art de penser de Port-Royal (1662), como aplicações<br />
do pensamento cartesiano, to<strong>da</strong> proposição representa o pensamento<br />
que já é representação <strong>da</strong> apreensão do mundo, portanto, representação<br />
<strong>da</strong> representação, que caracteriza a i<strong>da</strong>de clássica e sua confiança<br />
no cogito. Em oposição a essa concepção de transparência<br />
<strong>da</strong> linguagem em relação a um pensamento que a língua deve apenas<br />
traduzir sem interferir nem perturbar, Leminski compõe um livro<br />
no qual a proposição, ao invés de representar o pensamento, o<br />
dilui, o desfaz, o liquefaz. Ca<strong>da</strong> frase é um desmentido <strong>da</strong> anterior.<br />
Não há o desenvolvimento de uma idéia em uma cadeia de proposições<br />
compondo parágrafos, mas uma sucessão de provérbios, frases-feitas<br />
desfeitas, citações, paródias, idiotismos, estrangeirismos.<br />
::\ão há sequer uma língua única no livro, mas uma mescla:<br />
Seu polilingüismo é o reflexo do polilingüismo do Brasil de<br />
então onde se praticavam as línguas mais desencontra<strong>da</strong>s: o
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos<br />
247<br />
tupinambá <strong>da</strong> Costa e centenas de idiomas gês/tapuias, dialetos<br />
afros, português, espanhol e, em Vrijburg, cosmopolita,<br />
holandês, alemão, flamengo, francês, iídisch e até hebraico<br />
(LEMINSKI, 1989, p. 212)<br />
Tudo no livro colabora para a confusão babélica em oposição<br />
à clareza. Nesse sentido, Leminski compõe um não-livro, como<br />
uma coleção de frases que pode ser li<strong>da</strong> em qualquer seqüência,<br />
texto cibernético ou hipertexto.<br />
o não-livro para não leitores<br />
o livro se abre com uma inversão: ao invés <strong>da</strong> tradicional<br />
"Captatio Benevolentiae", o autor repele os leitores com uma<br />
"Repugnatio Benevolentiae": "Me nego a ministrar clareiras para a<br />
inteligência deste catatau que, por oito anos agora, passou muito<br />
bem sem mapas. Virem-se". Propõe-se, assim, como o oposto <strong>da</strong><br />
clareza e do bom senso, recusando o leitor comum visado por Descartes<br />
em seu Discours de la méthode pour bien conduire sa raison,<br />
et chercher la verité <strong>da</strong>ns les sciences, escrito em francês para popularizar<br />
o método em 1637. Esse propósito manifesto de repelir os<br />
leitores insere-se n.o projeto do livro escrito para poucos, no dilema<br />
de leitores recusados-e-buscados, "ego-trip" como é qualificado,<br />
no qual a comunicação com o outro (quer este outro seja o estrangeiro,<br />
o nativo, o "civilizado", o "bárbaro" ou o próprio leitor) atinge<br />
um estado de entropia: "Mensagem afeta<strong>da</strong> de elevado coeficiente<br />
de ininteligibili<strong>da</strong>de, a legibili<strong>da</strong>de no Catatau está distribuÍ<strong>da</strong><br />
de maneira irregular" (LEMINSKI, 1989b, p.213). Como diz<br />
ain<strong>da</strong> o próprio autor, a informação absoluta, sempre nova, acaba<br />
por produzir redundância, logo, informação nula, <strong>da</strong>í "que a expectativa<br />
permanente no Catatau acaba por se tornar um estado 'monótono'<br />
(caógeno)" (LEMINSKI, 1989b, p.210).<br />
No Catatau, a expectativa é sempre frustra<strong>da</strong>. O leitor jamais<br />
sabe o que deve esperar: rompe-se a lógica e as passagens de frase<br />
para frase são regi<strong>da</strong>s por leis outras que não as normas <strong>da</strong> sintaxe<br />
discursiva 'normal' . Existe literalmente um abismo de frase para<br />
frase, abismo esse que o leitor deve transpor como puder (como<br />
na TV, entre ponto e ponto) (LEMINSKI, 1989b, p.21O).
248 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Na segun<strong>da</strong> edição de Catatau, em 1989, Leminski classifica<br />
seu livro como um "romance-idéia" aproximando-o, assim podemos<br />
entender, de um tratado filosófico. Como efeito de leitura,<br />
diria que o livro parece ser mais interessante para estu<strong>da</strong>r como<br />
"idéia" do que para ler como "romance". Mesmo assim, está mais<br />
próximo de um "projeto de prosa" do que <strong>da</strong> forma de um "poema<br />
em prosa", como define Haroldo de Campos: "Uma prosa que<br />
pende mais para o significante do que para o significado, mas que<br />
regurgita de vontade fabuladora, de apetência épica, de estratagemas<br />
retóricos de dilação narrativa" (CAMPOS, 1989, p.217,18),<br />
e <strong>completa</strong>: "de um comedimento neobarroco, de um ensaio de<br />
liquefação do método e de proliferação <strong>da</strong>s formas em enormi<strong>da</strong>des<br />
de palavra, é que se trata" (CAMPOS, 1989, p.214).<br />
Trata-se, diz Leminski, "de um caso textual de 'possessão<br />
diabólica': um texto 'clássico' é possuído por um monstro 'de<br />
vanguar<strong>da</strong>'" (LEMINSKI, 1975, p.211), chamado Occam (Ogum,<br />
Oxum, Egum, Ogam). Quando ele aparece no texto, as letras <strong>da</strong>s<br />
palavras se alteram, mu<strong>da</strong>m de lugar, "aconstrece": "Occam, acaba<br />
lá com isso, não consigo entender o que digo, por mais que<br />
persigo". (LEMINSKI, 1975, p. 18)<br />
Ficção/história<br />
Foi como professor de História do Brasil, durante uma de<br />
suas aulas, que Leminski teve a idéia que orienta o livro.<br />
Referi que, na Europa, o Príncipe Maurício cercava-se de um<br />
séqüito de ilustres. O filósofo francês René Descartes (que, à<br />
mo<strong>da</strong> do tempo, latinizava o nome para Renatus Cartesius) era<br />
fi<strong>da</strong>lgo <strong>da</strong> guar<strong>da</strong> pessoal de Maurício. De repente, o estalo: E<br />
SE DESCARTES TIVESSE VINDO PARA O BRASIL COM<br />
NASSAU, para a Recife/Olin<strong>da</strong>/Vrijburg/Freiburg/<br />
Mauritzstadt, ele, Descartes, fun<strong>da</strong>dor e patrono do pensamento<br />
analítico, apoplético nas entrópicas exuberâncias cipoais do<br />
trópico (LEMINSKI, 1975, p. 207)<br />
Catatau compõe-se assim como uma ficção que refaz a história<br />
dos holandeses no Brasil e sua interpretação incorpora na<br />
materiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> escrita o fracasso desse empreendimento, pois é<br />
a fala dissonante do personagem que faz desabar a razão cartesiana,
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos<br />
249<br />
assim como desabou o projeto batavo nos trópicos.<br />
Deste modo, os Estados Gerais tinham planejado fazer do Brasil<br />
uma república muito rica, bela e poderosa, sem as lutas que<br />
ali se verificam presentemente. Pretendiam tomar-se o povo<br />
mais florescente e estimável do mundo (...)". "(...) por fim,<br />
pensando ter tudo ganho, tinham perdido tudo. (MOREAU,<br />
1651, p.88).<br />
° governo de Maurício de Nassau no Recife (1637-1644) é<br />
tido como a I<strong>da</strong>de de Ouro do domínio holandês, correspondendo<br />
aos seis anos de paz relativa (1641-1645) dentre os vinte e quatro<br />
anos <strong>da</strong> guerra do açúcar (cf. MELLO, 1975, p.13). Por quê esse<br />
episódio histórico, o poder holandês que se estende do Ceará ao<br />
São Francisco durante vinte e quatro anos se reveste de importância<br />
e interesse para o caso que aqui nos interessa, o de sua incorporação<br />
pela ficção Destacamos dois aspectos. Primeiro, a questão<br />
do "nativismo". Segundo a historiografia, o domínio holandês e os<br />
problemas envolvidos na guerra do açúcar favorecem uma primeira<br />
organização especificamente brasileira, manifesta numa guerra de<br />
guerrilha que termina por expulsar os recentes invasores. O episódio<br />
estaria assim na origem de um sentimento nativista posterior,<br />
pois que só tomará corpo a partir de 1710 com a guerra dos mascates,<br />
como analisa estudo de Evaldo Cabral de Mello (1975). Assim,<br />
se a resistência inicial aos holandeses é marca<strong>da</strong>mente européia,<br />
com tropas portuguesas, castelhanas e italianas, a guerra de restauração<br />
assumirá características brasileiras, com 2/3 de índios e negros<br />
como parte do efetivo luso-brasileiro, sendo financia<strong>da</strong> pela<br />
socie<strong>da</strong>de colonial do Nordeste. Como diz José Guilherme Merquior<br />
comentando o estudo de Evaldo Cabral de Mello:<br />
tanto o custeio <strong>da</strong> guerra quanto o recrutamento e abastecer<br />
<strong>da</strong>s tropas, o seu comando e a sua estratégia se tomarão<br />
crescentemente locais e nativos. Exibindo com plena minúcia<br />
fun<strong>da</strong>mentos materiais, econômicos, logísticos e tecnológicos,<br />
desse abrasileiramento <strong>da</strong> campanha contra o invasor, EeM<br />
realiza uma autêntica sociologização do nexo, que a<br />
historiografia precedente apontara sem demonstrar, entre o<br />
domínio holandês e o sentimento nativista. (MERQUIOR apud<br />
MELLO, 1975).
250 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Podemos dizer que ao ficcionalizar Descartes nos trópicos<br />
como emblema <strong>da</strong> colonização batava, Leminski opera, no texto,<br />
uma "guerra de guerrilha" contra o pensamento cartesiano,<br />
minando-o na estrutura de sua fala ininterrupta, e a questão do<br />
nativismo, importante para a prosa de ficção que se fixa no século<br />
XIX, acaba por ser incorpora<strong>da</strong>, pelo avesso, com outras<br />
palavras, no Catatau, como discutiremos adiante.<br />
De outro lado, trata-se de um episódio histórico que se<br />
caracteriza como uma possibili<strong>da</strong>de não realiza<strong>da</strong>: e se os holandeses<br />
tivessem sido vitoriosos e permanecido no Brasil Nesse<br />
sentido, arriscamos dizer que o romance de Leminski dá corpo<br />
ficcional à análise de Sérgio Buarque de Holan<strong>da</strong>, em Raízes do<br />
Brasil (1936), em relação ao fracasso do projeto <strong>da</strong> Nova<br />
Holan<strong>da</strong>, ("Seu empenho em fazer do Brasil uma extensão tropical<br />
<strong>da</strong> pátria européia sucumbiu desastrosamente ( ... )",<br />
HOLANDA, 1936,p.34). Dentre os motivos elencados por Sérgio<br />
Buarque para esse fracasso estariam o pouco "contato íntimo<br />
e freqüente com a população de cor" (HOLANDA, 1936,<br />
p.34), as dificul<strong>da</strong>des fonéticas dos idiomas nórdicos para os<br />
índios e negros e a pouca aceitação do protestantismo:<br />
o insucesso <strong>da</strong> experiência holandesa no Brasil é, em ver<strong>da</strong>de,<br />
mais uma justificativa para a opinião, hoje corrente entre alguns<br />
antropologistas, de que os europeus do Norte são incompatíveis<br />
com as regiões tropicais (HOLANDA, 1936, p.34).<br />
Assim também se manifesta Leminski em relação ao projeto<br />
de seu livro: "O Catatau é o fracasso <strong>da</strong> lógica cartesiana<br />
branca no calor, o fracasso do leitor em entendê-lo, emblema do<br />
fracasso do projeto batavo, branco, no trópico". (LEMINSKI,<br />
1989b, p.216). Como disse Antonio Risério: "Fracassou, por<br />
motivos vários, a colonização holandesa, o projeto-Nassau.<br />
Leminski dá conta de um outro fracasso: pensar o Brasil em<br />
pensamento europeu" (RISÉRIO, p.220, 1976).
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos<br />
251<br />
A "Sensação de não estar de todo" e o "Estilo tropical"<br />
A partir dos estudos de Flora Sussekind e de Roberto Ventura<br />
desenvolveremos algumas hipóteses na leitura de Catatau.<br />
Em seu estudo O Brasil não é longe <strong>da</strong>qui (1990), Flora Sussekind<br />
assinala os "retornos em diferença <strong>da</strong> imagem do viajante na prosa<br />
brasileira" (SUSSEKIND, 1990, p. 155). Seu estudo parte dos<br />
anos de 1830 e 1840, mostrando como o narrador de ficção no<br />
Brasil se institui como um narrador-viajante, um narradorcartógrafo,<br />
baseado em dois gêneros não ficcionais: o relato de<br />
viagens e o paisagismo ("sobretudo o que tematiza vistas e exuberâncias<br />
tropicais", SUSSEKIND, 1990, p.20). Esse narrador, ligado<br />
ao anseio de fun<strong>da</strong>r uma literatura nacional diversa <strong>da</strong> européia,<br />
tem como modelo e "certidão de ver<strong>da</strong>de" o olhar do viajante<br />
estrangeiro, o do naturalista que classifica o que vê e o do<br />
paisagista que desenha e mapeia. Como ela demonstra, esses narradores-cartógrafos<br />
sofrem uma primeira transformação entre 1869<br />
e 1880, "em direção às máscaras do historiador e do cronista de<br />
costumes" (SUSSEKIND, 1990, p. 155), e seu estudo conclui-se<br />
com a análise <strong>da</strong> viagem auto-reflexiva dos narradores de Machado<br />
de Assis, que desarmam as idéias fixas de natureza e cor local.<br />
Encerrando-se aqui, não deixa, contudo, de apontar para outras<br />
transformações históricas desse narrador ligado à viagem:<br />
E, na prosa modernista dos anos 20 deste século - vide<br />
Macunaíma, Memórias sentimentais de João Miramar, Serafim<br />
Ponte Grande, Pathé Baby - se reinterpretariam viagens e narradores-em-trânsito.<br />
Assim como fariam em fins dos anos 60<br />
textos tão diversos como Quarup, de Antônio Callado, e<br />
Panamérica, de José Agrippino de Paulo; na déca<strong>da</strong> de 70, o<br />
"Descartes com lentes" perdido no Brasil holandês do Catatau,<br />
de Paulo Leminski, ( ... ) e um livro que se autodefine como<br />
uma "ao léu viagem" como Galáxias, de Haroldo de Campos<br />
( ... ) (SUSSEKIND, 1990, p. 154,155).<br />
o livro de Leminski apresenta uma ego-trip, o pensamentofala<br />
de Descartes ininterrupto; um viajante estrangeiro em terra<br />
recém-conquista<strong>da</strong> e que tenta descrevê-lo e compreendê-lo; a<br />
descrição <strong>da</strong> fauna local compondo um bestiário. No entanto, o<br />
que ocorre é uma inversão: o novo mundo impede as construções
252 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
do velho mundo, sendo necessário um outro pensar-dizer, de modo<br />
que o autor desconstrói os pressupostos que orientaram a constituição<br />
do narrador de ficção no Brasil oitocentista a partir mesmo<br />
de suas bases.<br />
Ao chegar ao Novo mundo cabe ao sujeito nomeá-lo,<br />
descrevê-lo mapeá-Io, transformar a natureza em "civilização",<br />
desenhar, pintar, escrever sobre essa terra em branco (cf.<br />
SUSSEKIND, 1990, p. 13). Trata-se do papel do conquistador<br />
nos livros de viagem, modelos <strong>da</strong> prosa de ficção que "passa a se<br />
oferecer não propriamente como literatura, mas como mapa<br />
unificador, tratado descritivo, paisagem útil" (SUSSEKIND, 1990,<br />
p.22). Nessa prosa de ficção estará sempre presente, a partir do<br />
pensamento de Ferdinand Denis, "a crença na força selvagem <strong>da</strong><br />
natureza nos trópicos" (SUSSEKIND, 1990, p.27). Assim, mais<br />
do que relato, tem-se o inventário, a classificação naturalista, a<br />
expedição científica, a paisagem pitoresca a ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong>: "Se ao<br />
viajante cabe narrar, fixar tipos e quadros locais, ao naturalista<br />
caberia classificar, ordenar, organizar em mapas e coleções o que<br />
se encontra pelo caminho" (SUSSEKIND, 1990, p.45).<br />
Como vimos, Leminski define seu livro como "sem mapas",<br />
opondo-se, portanto, à imagem do narrador-cartógrafo-e-paisagista,<br />
assim como ridiculariza o "desejo de ao mesmo tempo representar<br />
e colecionar a paisagem" (SUSSEKIND, 1990, p. 119), quando,<br />
por exemplo, citando Marcgravf e Spix, faz Descartes dizer:<br />
Por eles, as árvores já nasciam com o nome em latim na casca,<br />
os animais com o nome na testa ( ... ), ca<strong>da</strong> homem já nascia<br />
escrito em peito o epitáfio, os frutos brotariam com o receituário<br />
de suas proprie<strong>da</strong>des, virtudes e contraindicações.<br />
(LEMINSKI, 1975, p. 34)<br />
o instrumento óptico, a luneta, que acompanha o personagem<br />
Cartésio em Catatau, também figura nos relatos analisados<br />
por Flora: "essa ver<strong>da</strong>deira representação hiperbólica do olhar<br />
armado do viajante naturalista que é o telescópio. Como se vê em<br />
Spix e Martius. Ou à luneta, como se vê na tela O morro de Santo<br />
Antônio no Rio de Janeiro (1816), de Nicolau Antônio Taunay"<br />
(SUSSEKIND, 1990, p. 126). No caso de Catatau, a luneta está<br />
presente quando faz aumentar as próprias letras do texto em maiúsculas,<br />
no entanto, mais cega o personagem do que o esclarece:
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos 253<br />
"E os aparelhos óticos, aparatos para meus disparates"; "Esta<br />
lente me ve<strong>da</strong> vendo, me vela, me desven<strong>da</strong>, me ven<strong>da</strong>, me revela.<br />
Ver é uma fábula - é para não ver que estou vendo"; "A figura é<br />
figura<strong>da</strong>. Desvidro-me. Não representa o que apresenta. Em outras<br />
palavras, são outra coisa." (LEMINSKI, 1975, p. 16, 17,19).<br />
Para opor-se à racionali<strong>da</strong>de matemático-cartesiana,<br />
Leminski cria, assim, um personagem que é como um viajante que<br />
perde totalmente os parâmetros de sua cultura de origem, sofrendo<br />
uma espécie de "bloqueio" e "trauma". Ao identificar o que ela<br />
chama de a "sensação de não estar de todo", Flora cita dois exemplos<br />
que encontram paralelo no livro de Leminski: o livro de Júlio<br />
Veme, O eterno Adão, no qual os náufragos sobreviventes chegam<br />
em um continente desconhecido, mas, ao invés de civilizá-lo,<br />
"não são os 'náufragos' que conquistam o continente descoberto;<br />
é este que parece lentamente devorá-los" (SUSSEKIND, 1990, p.<br />
14). Assim também em Quarup, de Antonio Callado, o personagem<br />
que finca a bandeira nacional no centro do país é coberto por<br />
milhões de saúvas, imagem esta retoma<strong>da</strong> ao final de Catatau: "e<br />
as formigas me comendo e me levando em partículas para suas<br />
monarquias soterra<strong>da</strong>s" (LEMINSKI, 1975, p.205).<br />
"Livro-limite", na expressão de Haroldo de Campos, a hipótese<br />
que lançamos é a de que Catatau seria o ponto extremo<br />
desse modelo analisado por Flora, seguindo uma linha que se inicia<br />
nos decênios de 1830 e 1840. Transgressão máxima desse<br />
modelo, o livro ain<strong>da</strong> se encontra dentro do mesmo paradigma,<br />
como se o rompimento total não deixasse de ser também o ponto<br />
de chega<strong>da</strong> dessa tradição. Dubie<strong>da</strong>de que faz o sucesso/fracasso<br />
do livro. Nesse sentido, o fracasso programático é coerente, pois<br />
trata de desfazer pelo avesso os postulados que orientaram a ficção<br />
no Brasil. Dúbio, porque, ao negar com tanta radical i<strong>da</strong>de<br />
essa tradição, acaba, de outro modo, por afirmar o que nega, ou<br />
seja, apesar de sua força contestadora, o livro mantém em outras<br />
bases noções como a de "natureza exuberante", território à parte<br />
não domesticável, e, inclusive, a idéia de um "estilo tropical".<br />
Como mostra o estudo de Roberto Ventura (1991), aliás contemporâneo<br />
do de Flora, "A crítica e a história literárias brasileiras<br />
foram marca<strong>da</strong>s, até 1910, pelas noções de raça e natureza. As<br />
origens do 'estilo' literário eram atribuí<strong>da</strong>s à ação diferenciadora<br />
do meio ambiente ou <strong>da</strong> mistura étnica" (VENTURA, 1991, p.18).
254 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Assim Araripe Júnior, em 1888, escreve sobre o estilo tropical, a<br />
partir <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação do naturalismo no Brasil, dizendo:<br />
Emigrando para o Brasil, o naturalismo não podia deixar de<br />
passar por uma migração profun<strong>da</strong>. Zola, neste clima, diante<br />
desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos para<br />
a<strong>da</strong>ptar-se ao sentimento do real aqui. (JÚNIOR, 1888, apud<br />
VENTURA, 1991, p. 17, 18)<br />
Não poderíamos traduzir essa mesma frase para o caso de<br />
Catatau, alterando apenas os nomes<br />
Emigrando para o Brasil, o cartesianismo não podia deixar<br />
de passar por uma migração profun<strong>da</strong>. Descartes, neste clima,<br />
diante desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos<br />
para a<strong>da</strong>ptar-se ao sentimento do real aqui.<br />
Ou seja, não se trata <strong>da</strong> mesma idéia com outra roupagem<br />
E ain<strong>da</strong> diz Araripe: "A nova escola, portanto, tem de entrar pelo<br />
Trópico de Capricórnio, participando de to<strong>da</strong>s as alucinações que<br />
existem no fermento do sangue doméstico, de todo o sensualismo<br />
que queima os nervos do crioulo" (JÚNIOR, 1888, apud VEN<br />
TURA, 1991 ,p.I8). Também não é de alucinação e delírio que se<br />
trata no caso <strong>da</strong> ficcionalização de Descartes, sofrendo a influência<br />
do meio no corpo de seu pensar, como revelam as poucas<br />
frases pinça<strong>da</strong>s a seguir "Este mundo é o lugar do desvario, a<br />
justa razão aqui delira"; "Este calor acalma o silêncio onde o<br />
pensamento não entra, ingressa e integra-se na massa" ; "Nestes<br />
climas onde o bicho come os livros e o ar de mamão caruncha os<br />
pensamentos" (LEMINSKI, 1975, p.17, 28), dentre muitas outras<br />
que poderiam ser cita<strong>da</strong>s.<br />
Ain<strong>da</strong> seguindo o pensamento de Araripe Júnior, ele assim<br />
define a tropicali<strong>da</strong>de do estilo: "há estilo que resista, há correção<br />
que se mantenha O [estilo] tropical não pode ser correto. A correção<br />
é o fruto <strong>da</strong> paciência e dos países frios; nos países quentes,<br />
a atenção é intermitente" (JÚNIOR, 1888, apudVENTURA, 1991,<br />
p. 18). Assim também é intermitente a fala de Descartes em<br />
Catatau: "Pensamento, aqui, é susto";"Tudo o mais que sei não<br />
cabe no que digo, já não há mais o que eu havia dito, já há só o
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos<br />
255<br />
que nunca se soube. Os sintomas. Os sintomas de tudo, os sistemas<br />
totais." (LEMINSKI, 1975, p.19).<br />
Retomando a hipótese levanta<strong>da</strong>: com to<strong>da</strong> a inversão<br />
demolidora que faz Leminski, não se trata, mesmo que do avesso,<br />
de propor a mesma coisa A idéia de uma radical diferença dos<br />
trópicos em relação à Europa O verso e reverso de uma mesma<br />
moe<strong>da</strong>-idéia Não se trata ain<strong>da</strong> de uma obsessão pela natureza<br />
exuberante A mesma que está na "constituição do narrador de<br />
ficção na prosa romântica brasileira e de algumas de suas transformações<br />
históricas" (SUSSEKIND, 1990, p.19) Portanto, o livro<br />
de Leminski insere-se como transformação histórica desse<br />
mesmo modelo inicial, só que problematizando-o em negativa.<br />
Se à prosa de ficção romântica cabia o desejo de mapear o Brasil,<br />
o que faz Leminski é apagar as linhas do mapa, buscando não um<br />
começo histórico, mas a origem entendi<strong>da</strong> como originali<strong>da</strong>de<br />
absoluta, apagando to<strong>da</strong>s as escritas calca<strong>da</strong>s na lógica e no modo<br />
europeu de apreensão do Novo Mundo. Espécie também ele de<br />
Marco Zero.<br />
Assim, não haveria também em Catatau a afirmação de uma<br />
"essência original", não <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de, mas de uma noção de<br />
território à parte, trópicos indomáveis, não domesticáveis, região<br />
inconsciente na qual consciência alguma pode <strong>da</strong>r conta, como<br />
um resto, um resquício a perturbar a razão Espécie de pensamento<br />
selvagem versus o cogito cartesiano, ou o cogito cartesiano<br />
confrontado com o pensamento selvagem, bricoleur, a destruir a<br />
lógica dos viajantes invasores. Ao mesmo tempo, o livro foi escrito<br />
entre 1966 e 1975, em pleno período de ditadura, nesse caso,<br />
seu desejo de falência manifesta, seu afastamento voluntário dos<br />
leitores, sua ilegibili<strong>da</strong>de programa<strong>da</strong>, não se ligariam também a<br />
um projeto de contestação política Espécie <strong>da</strong> autofagia <strong>da</strong> literatura<br />
que se devora a si mesma até desaparecer do mapa ou fazer<br />
desaparecer qualquer mapa. Se, antes, busca-se a nacionali<strong>da</strong>de,<br />
aqui parece haver o desejo voluntário de perder-se, sumir do mapa,<br />
tornar-se inencontrável.<br />
Busca-se apagar os rastros do já dito, re-fun<strong>da</strong>r uma terra<br />
em branco, justamente o inverso do desejo que movimentava os<br />
narradores de ficção nos decênio de 30 e 40 do século XIX, como<br />
a imagem em negativa desse anseio fun<strong>da</strong>dor, cartográfico, descritivo,<br />
de expedição científica. Tudo vai abaixo em Catatau
256 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9. 2006<br />
(onomatopéia também para que<strong>da</strong>). Mesmo assim, com todo<br />
esse grau de negativas, ain<strong>da</strong> se trata de uma transformação<br />
desse mesmo narrador-viajante, situando-se nesse paradigma,<br />
apesar de apontar pra um ponto de não-retomo: o que escrever<br />
depois disso<br />
A falência programática do livro, a nosso ver, viria de um<br />
dilema não resolvido em uma tensão que permanece: a de um<br />
livro de vanguar<strong>da</strong> que repete com diferença as bases <strong>da</strong> prosa de<br />
ficção no Brasil e que propõe um rompimento radical com a representação<br />
de moldes românticos, realistas, naturalistas, mas que,<br />
paradoxalmente, mantém seus pressupostos, tais como a natureza<br />
exuberante ou a influência do clima. O dilema não resolvido viria<br />
<strong>da</strong> junção ou justaposição de desconstrução formal uni<strong>da</strong> a uma<br />
ideologia conservadora de um mesmo ideal romântico. Por não<br />
poder mantê-las juntas - a rebeldia, a paródia, a descontrução e a<br />
manutenção de um mesmo ideal do avesso - sem gerar um choque<br />
auto-contraditório, coerente também ele com a proposta do livro,<br />
o fracasso faz-se inevitável, podendo então ser lido como um casolimite,<br />
de fato, <strong>da</strong> ficção do estilo tropical chega<strong>da</strong> a um ponto de<br />
não-retomo.<br />
A par do atrativo pela idéia-mor do livro: a dissolução do<br />
pensar cartesiano em solo e selva tropical e do cômico <strong>da</strong> situação<br />
em que coloca Descartes, a par desse interesse e amor que o livro<br />
desperta em nós, leitores, digamos assim, nativos, como uma vingança<br />
tropical-concretista-antropofágica, ele se manteria ain<strong>da</strong> nas<br />
categorias do pensamento romântico. Quer dizer, há um efeito<br />
misto na leitura de Catatau, ou naquilo que no livro podemos<br />
tentar ler já que ele mesmo se apresenta sem mapas nem coordena<strong>da</strong>s,<br />
de atração e recusa. Aqui também "a sensação de não estar<br />
de todo" atinge a leitura e este texto.
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos<br />
257<br />
Referências<br />
BONVICINO, Régis. Com quantos paus se faz um Catatau (1979). In<br />
LEMINSKI, P. Catatau. Um romance-idéia. 2a ed. Porto Alegre: Sulina, 1989,<br />
p.224-226.<br />
CAMPOS, Haroldo de. Uma Leminskía<strong>da</strong> Barrocodélica (1989). In __ _<br />
Metalinguagem & outras metas. 4a ed. <strong>revista</strong> e amplia<strong>da</strong>. São Paulo:<br />
Perspectiva, 1992. pp.213-220.<br />
CAPISTRANO, Paulo. Descoordena<strong>da</strong>s Cartesianas em três ensaios de quase<br />
filosofia. Natal: Ed. Sebo Vermelho, 200l.<br />
CARVALHO, Ti<strong>da</strong>. O Catatau de Paulo Leminski, (dês) coordena<strong>da</strong>s<br />
cartesianas. São Paulo: Grupo Editorial Cone Sul, 2000.<br />
DESCARTES, René. Discurso do Método. (1637). Introd. Gilles-Gaston<br />
Granger; prefácio e notas Gerard Lebrun; tradução de 1. Guinsburg e Bento<br />
Prado Jr. 3" ed., São Paulo:Abril Cultural, 1983, pp. 25-7l.<br />
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Uma arqueologia <strong>da</strong>s Ciências<br />
Humanas (1966) Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins<br />
Fontes, 2000.<br />
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil (1936). lIa edição. Rio de<br />
Janeiro: José Olympio, 1977.<br />
LEMINSKl, P. Catatau. Um romance-idéia. (1975). 2a ed. Porto Alegre: Sulina.<br />
1989.<br />
---o Descordena<strong>da</strong>s artesianas.ln -. Catatau. Um romance-idéia .. 2a ed.<br />
Porto Alegre:Sulina, 1989. p. 207-209.<br />
--o Quinze pontos nos iis. In -. Catatau. Edição cita<strong>da</strong>, 1989b.p. 210-213.<br />
MELLO, Evaldo Cabral de. Olin<strong>da</strong> Restaura<strong>da</strong>. Guerra e açúcar no Nordeste.<br />
1630/1654. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense Universitária, Edusp, 1975.<br />
MOREAU, P. e BARO, R. História <strong>da</strong>s últimas lutas no Brasil entre<br />
holandeses e portugueses e Relação <strong>da</strong> viagem ao país dos tapuias (1651).<br />
Trad. Le<strong>da</strong> Boechat Rodrigues. Belo Horizonte/São Paulo: Ed.ltatiaia/Edusp.<br />
1979.<br />
RIBEIRO, Leo Gilson. Um Catatau. Felizmente (1976). In LEMINSKI, P.<br />
Catatau. Um romance-idéia. 2a ed. Porto Alegrc:Sulina, 1989, p.215-217.
258 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
RISÉRIO, José Antonio. Catatau:Cartesanato (1976). In LEMINSKI, P.<br />
Catatau. Um romance-idéia. (1975) 2 a ed. Porto Alegre:Sulina, 1989, p.217-<br />
224.<br />
SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe <strong>da</strong>qui. ° narrador, a viagem. São<br />
Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1990.<br />
VENTURA, Roberto. Estilo tropical. História cultural e polêmicas literárias<br />
no Brasil. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1991.
259<br />
Narrar ou perecer: Sérgio Sanfanna e<br />
Ricardo Piglia, sobreviventes<br />
Ângela Maria Dias<br />
(UFF)<br />
I FUENTES, 2000, p.7<br />
A tradição inaugura<strong>da</strong> na literatura brasileira por Machado<br />
de Assis, nas memórias de Brás Cubas, o seu "defunto autor",<br />
dramatiza a escrita como leitura mescla<strong>da</strong> e desrespeitosa de variado<br />
repertório, bem distante falacioso horizonte de objetivi<strong>da</strong>de<br />
do preceituário realista. Desde o Pentateuco, passando por Xavier<br />
de Maistre até, muito particularmente, "a forma livre de um Sterne",<br />
este primeiro romance moderno <strong>da</strong> literatura brasileira, como<br />
divisor de águas entre o romance oitocentista anterior e a descendência<br />
que, então, fun<strong>da</strong>, proclama a "loucura <strong>da</strong> leitura" como a<br />
maior evidência de nossa radical impossibili<strong>da</strong>de de ser realistas e ou<br />
professar a crença num mundo objetivo acima de qualquer suspeita ..<br />
"Autor incerto de incerto romance"! ,Brás Cubas fun<strong>da</strong> uma<br />
reali<strong>da</strong>de trôpega e deslizante, na qual a "louca leitura" <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
pelo privilégio <strong>da</strong> morte, como ponto de vista, transforma-a num<br />
espetáculo desmesurado, arbitrário e absurdo. Tal "ambivalência<br />
na relação entre a ver<strong>da</strong>de e a ficção", radicaliza<strong>da</strong> pela síndrome<br />
<strong>da</strong> condição coloniza<strong>da</strong> de nossa cultura, permanece, desde então,<br />
no horizonte do romance hispano-americano, como a mais<br />
radical estratégia de moderni<strong>da</strong>de: o exercício autoconsciente <strong>da</strong><br />
forma como invenção técnica capaz de problematizar a reali<strong>da</strong>de<br />
e desestabilizar o dogmatismo do que é.<br />
Hoje, no início do século XXI, a invasão do real pelas imagens<br />
<strong>da</strong> última revolução tecnocientífica renova e aprofun<strong>da</strong> a<br />
persistente pergunta ibero-americana sobre quem somos nós. É<br />
que ao bovarismo estrutural gravado em nosso inconsciente coletivo<br />
pela História, como bem o reconhece Ricardo Piglia, se soma<br />
um outro:
260 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
••• O bovarismo é uma chave do mundo moderno: a fonna em<br />
que a cultura de massas educa os sentimentos. Existe uma memória<br />
impessoal que define o sentido dos atos e a cultura de<br />
massas é uma máquina de produzir lembranças e experiências 2 • 2 PIGLIA, 1980, p.48<br />
Partindo <strong>da</strong> borgiana concepção <strong>da</strong> memória como citação<br />
múltipla e renovável, numa infinita espiral de traduções, Piglia<br />
concebe sua literatura também na contracena entre a<br />
heterogenei<strong>da</strong>de de uma herança híbri<strong>da</strong> e o vazio de uma tradição<br />
amnésica e falha<strong>da</strong>. A ci<strong>da</strong>de ausente3 , a este respeito, é ab- 3 Idem, 1997<br />
solutamente modelar. Na contraparti<strong>da</strong> à máquina <strong>da</strong> cultura de<br />
massas em sua aliança às ficções do imaginário do Estado, o escritor<br />
concebe uma espécie de poderosa alegoria <strong>da</strong> narrativa como<br />
espaço de resistência e de desrealização <strong>da</strong>s trampas do poder.<br />
Numa homenagem à Macedonio Fernández - "el escritor<br />
de la na<strong>da</strong>" - precursor de Borges, Piglia fabula o universo de<br />
uma estranha Buenos Aires conflagra<strong>da</strong> pelos "efeitos ilusórios"4 4 Ibidem, p.80.<br />
de uma máquina replicante, capaz de "tornar viva a memória" e a<br />
lembrança <strong>da</strong> mulher ama<strong>da</strong>, através <strong>da</strong> produção de um relato<br />
desdobrável e infindo, "que retoma eterno como o ri0 5 ". A at- 'Ibidem,p.126.<br />
mosfera onírica e fantasmagórica do implausível confronto entre<br />
a máquina de Macedonio e as "ficções eletrônicas 6 " do Estado fi Ibidem, p.117.<br />
dissemina um clima irrespirável, numa ci<strong>da</strong>de em que "os controles<br />
(são) contínuos", "a última palavra (é) sempre <strong>da</strong> polícia" e,<br />
estranhamente, "todo mundo concor<strong>da</strong> em sonhar o mesmo sonho",<br />
vivendo "confinado numa reali<strong>da</strong>de diferente"7 .<br />
7 Ibidem, p.73.<br />
Assim, a narração em 3 a pessoa do périplo de Júnior oferece<br />
uma estranha sucessão de enredos nos quais o jornalista itinerante,<br />
obse<strong>da</strong>do por enfrentar-se com o passado, entra e sai dos relatos<br />
e em que também o leitor submerge, em meio à inconsistência<br />
geral dos enredos e dos personagens. A incerteza <strong>da</strong> seqüência<br />
narrativa, plena de interseções e recorrências, reitera-se pela própria<br />
incerteza do narrador impessoal que, provavelmente, será a<br />
própria máquina desarranja<strong>da</strong>, com a palavra na última etapa do<br />
relato: "Eu sei que me abandonaram aqui, sur<strong>da</strong> e cega e meio<br />
imortal, se pudesse apenas morrer (...) deixar de ser esta memória<br />
alheia, interminável, construo a lembrança e é SÓS".<br />
8Ibidem,p.137.<br />
Enquanto resposta à política e à televisão, espelhos em que
Narrar ou perecer: Sérgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobrevi ventes<br />
261<br />
caras e mais caras aparecem e se olham e se perdem, a máquina é<br />
concebi<strong>da</strong> pelo seu criador, segundo o "princípio construtivo" me-<br />
9 Ibidem,p.116. diante o qual, "tudo é possível, basta encontrar as palavras"9 .<br />
A busca do passado para preencher o vazio do próprio nome,<br />
faz de Júnior uma espécie de detetive, tão perdido e atônito quanto<br />
o leitor, e transforma a narrativa numa investigação, já que<br />
10 Ibidem,p.129. "todo relato é policiapo" e tudo aquilo que escapa à "tendência<br />
II Idem, 1980,p.54. generaliza<strong>da</strong> de uniformizar a experiência 11" merece ser<br />
criminalizado. Justamente esta íntima conexão entre narrativa e<br />
poder se explicita na última parte do romance, quando a máquina<br />
interdita<strong>da</strong> reconhece:<br />
A narração ( ... ) é uma arte de vigias, sempre estão querendo<br />
que as pessoas contem seus segredos, dedurem os suspeitos,<br />
falem dos seus amigos, dos seus irmãos. Então, ( ... ) a polícia e<br />
a assim chama<strong>da</strong> justiça fizeram mais pelo avanço <strong>da</strong> arte do<br />
12 Ibidem,p.129. relato que todos os escritores ao longo <strong>da</strong> história 12 •<br />
A despossessão pela linguagem ou a linguagem como máquina<br />
de despossessão, além de atualizar nossa história autoritária,<br />
enseja a reflexão sobre a porosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s mentes e corações às<br />
máquinas, na medi<strong>da</strong> em que o espelho midiático invade e formata<br />
to<strong>da</strong>s as cenas. Entretanto, se "a árvore do bem e do mal é a árvore<br />
<strong>da</strong> linguagem", tal ambigui<strong>da</strong>de fun<strong>da</strong>mental, ao manifestar "a<br />
13 Ibidem,p.l04. forma incerta <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de"13 ,pode confundir ficção e confissão<br />
ou ain<strong>da</strong> embaralhar os limites entre narrar e ser narrado.<br />
Não é outro o motivo do peculiaríssimo romance de Sérgio<br />
14SANT'ANNA, 1997. Sant' Anna, Um crime delicado 14 .. Sua trama de "escorpião<br />
encalacrado", fazendo deslizar as fronteiras entre arte e vi<strong>da</strong>, representação<br />
e experiência, crítica, criação ou mistificação, bem poderia<br />
merecer como epígrafe mais uma <strong>da</strong>s falas <strong>da</strong> Máquina de<br />
Macedonio sobre o vínculo entre narrativa, identi<strong>da</strong>de, e investigação:<br />
"Todo relato é policial (...) Só os assassinos têm alguma coisa<br />
15 PIGLlA, 1997, p.130. para contar, a história pessoal é sempre a história de um crime"15 .<br />
A intrigante história do crítico de teatro Antonio Martins<br />
16SANT'ANNA,1997,p.22. escrita por ele como "peça de natureza quase processuaJl6" para<br />
defender-se <strong>da</strong> acusação de estupro, e entender-se "intelectual,<br />
afetiva e criticamente" constitui, sem dúvi<strong>da</strong>, um eloqüente testemunho<br />
<strong>da</strong> ambigüi<strong>da</strong>de entre confissão, culpa e encenação.
262 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Seu envolvimento com Inês, mulher estranha e manca, modelo<br />
de um artista plástico de meia i<strong>da</strong>de, desencadeia uma "narrativa<br />
autobiográfica 17" que, apesar de invocar para si "a meticu- l7lbidem, p.85.<br />
losi<strong>da</strong>de e os rigores <strong>da</strong> escritaI8 ", termina por reconhecer a ver- 1" Ibidem, p.l04.<br />
<strong>da</strong>de como "ideal fugitivo e inalcançável"19 .<br />
19 Ibidem, p.l26.<br />
Qual um detetive, o narrador dispõe-se ao relato, na "busca<br />
apaixona<strong>da</strong> .(...) <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de20 ", através de uma auto-investigação 20 Ibidem, p.30.<br />
flui<strong>da</strong> e escorregadia, vaza<strong>da</strong> numa espécie de estilística <strong>da</strong> indecisão.<br />
Primeiro porque sua própria experiência com Inês começa<br />
sob a aura do esquecimento e <strong>da</strong> privação de sentidos: "Sofro de<br />
amnésia parcial, às vezes quase total, depois que bebo em excesso,<br />
e era preciso rastrear o final <strong>da</strong> noite para verificar se meus<br />
temores eram mais justificados do que a euforia21 ". Depois pela 21 Ibidem, p.22.<br />
relação indefini<strong>da</strong> e ambivalente entre Vitório Brancatti e sua<br />
modelo, projeta<strong>da</strong> numa obra, espécie de instalação performática,<br />
que constitui um absorvente work in progress, capaz de engolfar<br />
Inês, e o próprio narrador-crítico com ela envolvido.<br />
Apaixonado pela "modelo e personagem <strong>da</strong> pintura22 ", An- 22 Ibidem, p.103<br />
tonio Martins, após envolver-se em nebulosos eventos que terminam<br />
por levá-lo a julgamento pela acusação de estupro, resolve<br />
dedicar-se à "narrativa autobiográfica", conduzi<strong>da</strong> como "uma<br />
investigação interrra23 ", em que, segundo ele, "mais do que 23 Ibidem, p.27.<br />
(se)defender de acusações controverti<strong>da</strong>s e tortuosas, tent(a) explicar-(se)<br />
e entender-(se), intelectual, afetiva e criticamente24 ". 24 Ibidem, p.102.<br />
Acontece que, conforme a todo o momento o reconhece o crítico,<br />
sua "escrita minuciosa25 "jamais consegue matizar sentimentos 15 Ibidem, p.97.<br />
contraditórios , ou o íntimo "caos de emoções 26 ". O poço sem 26 Ibidem, p.95.<br />
fundo <strong>da</strong> própria subjetivi<strong>da</strong>de é segundo ele, "uma caixa ilimita<strong>da</strong>27<br />
" ou ain<strong>da</strong> o "palco interior", de um teatro onde culpas reais "Ibidem, p.20.<br />
OU imaginárias e afetos díspares podem duelar sem trégua, numa<br />
proliferação incessante de hipóteses e possibili<strong>da</strong>des.<br />
Nesta intrinca<strong>da</strong> correlação, um "texto cheio de curvas",<br />
"pleno de interrogações28 " encena a mística <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de como 28 Ibidem, p.50.<br />
fingimento, na própria medi<strong>da</strong> em que, a ca<strong>da</strong> passo, se debruça<br />
sobre a reversibili<strong>da</strong>de entre experiência e representação, ou ain<strong>da</strong><br />
entre memória e imaginação. Assim o biombo <strong>da</strong> tela-instalação<br />
de Vitório Brancatti é, de certa forma, a metáfora deste relato<br />
que, como ele, constitui um anteparo, mais capaz de velar do que<br />
esclarecer a experiência através <strong>da</strong> escrita. Como bem o reconhe-
Narrar ou perecer: Sérgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes<br />
263<br />
ce O crítico-narrador, no seu infindável "mise en abime":<br />
29 Idem.<br />
Percebo como a escrita nos distancia, quase sempre, <strong>da</strong>s coisas<br />
reais, se é que existe uma reali<strong>da</strong>de humana que não seja a sua<br />
representação, ain<strong>da</strong> quando apenas pelo pensamento, como<br />
numa peça teatral a que não se deu a devi<strong>da</strong> ordem, aliás<br />
inexistente na reali<strong>da</strong>de 29 •<br />
I A leitura que aqui desenvolvo<br />
baseia-se livremente nas<br />
interpretações de Antonio<br />
Quinet, em seu livro citado na<br />
bibliografia, e no célebre<br />
Foucault de As palavras e as<br />
coisas.<br />
o caráter ambíguo e construído <strong>da</strong> confissão como ficção<br />
começa sugerido desde as composições <strong>da</strong>s capas, concebi<strong>da</strong>s por<br />
João Baptista <strong>da</strong> Costa Aguiar, como uma montagem de dois quadros.<br />
Na primeira capa, o "Pigmaleão e Galatéia" de Jean-Léon<br />
Gérôme, contornado por grossa moldura de um dourado<br />
acobreado, contém, substituindo o adorno cênico do fundo, o<br />
emblemático "As Meninas" de Velásquez. A quarta capa reproduz<br />
este último quadro, também contornado por moldura idêntica à<br />
<strong>da</strong> primeira capa, e contendo ao fundo, no lugar <strong>da</strong> imagem refleti<strong>da</strong><br />
do casal real espanhol, o quadro de Gérôme.<br />
A mútua implicação entre essas duas célebres pinturas constitui<br />
o cerne do universo ficcional desta novela, habilmente<br />
conduzi<strong>da</strong> para diluir fronteiras e desterritorializar premissas sobre<br />
a suposta distância entre arte como invenção e vi<strong>da</strong> como<br />
experiência concreta. A obra de Gérôme trata do mito sobre a<br />
paixão do criador por sua criatura, a estátua <strong>da</strong> bela mulher, então<br />
animiza<strong>da</strong> por artes <strong>da</strong> deusa Afrodite. Por sua vez, o quadro de<br />
Velásquez constitui um clássico metacrítico l , espécie de "tuming<br />
paint" em que o barroco pensa a perspectiva clássica e representa<br />
a representação, na medi<strong>da</strong> em que encena a divisão do sujeito e a<br />
dispersão <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de através <strong>da</strong> duplicação do pintor. Assim,<br />
o pintor-sujeito, em seu auto-retrato, no nível do quadro desdobra-se<br />
explicitamente como um duplo: o pintor diante de sua tela,<br />
olhando em frente, a observar seus modelos, o casal real do lado<br />
de fora <strong>da</strong> tela; e no ponto de fuga, ao fundo do quadro, seu primo,<br />
Don José Nieto Velásquez,. Mas, além disso, o pintor também<br />
se projeta para fora do quadro, situando-se no ponto infinito,<br />
à direita do espectador, numa diagonal com o pintor que é visto<br />
na tela, como o pintor-sujeito que a olha. A dramatização é abissal,<br />
já que o sujeito dividido comparece vendo o quadro, sendo visto<br />
vendo o quadro ou ain<strong>da</strong>, numa infinita seqüência, vendo-se ser<br />
visto vendo o quadro e por aí sucessivamente.
264 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Por outro lado, a cena pictórica desbor<strong>da</strong>-se num outro que<br />
é simultaneamente modelo e espectador imaginário. Trata-se do<br />
casal real, incluído no quadro como imagem difusa, refleti<strong>da</strong> no<br />
espelho ao fundo, para quem, supõe-se, to<strong>da</strong> a cena está monta<strong>da</strong>.<br />
O entrecruzamento de olhares e pontos de vista - do pintor que<br />
olha de fora a própria tela, dos reis, ao mesmo tempo modelos e<br />
espectadores e, portanto, lugar-tenente de quem contempla a obra<br />
- figura, numa leitura psicanalítica, o inapreensível do sujeito no<br />
campo escópico, dividido entre o ver e o olhar, o pensar e o ser,<br />
como significante sempre elidido e continuamente diferido.<br />
A importância <strong>da</strong> montagem dessas telas, nas duas capas do<br />
livro reside na figuração que oferecem do jogo impalpável operado<br />
pela narração entre ver<strong>da</strong>de biográfica, memória e ficção, num<br />
constante deslizamento indecidível entre arte e vi<strong>da</strong>. Da mesma<br />
forma que as telas deslizam de seu suporte, invadindo o mundo do<br />
espectador, e transtornando os limites entre construção pictórica<br />
e existência, no enredo do romance, a obra de Brancatti confunde-se<br />
com a vi<strong>da</strong> do pintor e sua figurante, absorvendo o crítico,<br />
com ela envolvido e por fim incluído na obra.<br />
Nesse sentido, o momento em que Antonio Martins, o crítico-narrador,<br />
se depara, pela primeira vez, com o quadro de<br />
Brancatti é emblemático .<br />
... mostrava Inês, senta<strong>da</strong> num tamborete, atrás do biombo negro,<br />
captura<strong>da</strong> no ato de vestir ou despir um penhoar ou<br />
quimono, de modo que se via um de seus seios - um belo, firme<br />
e pequeno seio - enquanto sua perna rija se descobria inteiramente,<br />
por estar naturalmente estica<strong>da</strong>, deixando que se entrevisse,<br />
mais acima, a penugem de seu sexo. Sobre a bor<strong>da</strong> do<br />
biombo, num naturalismo ostensivo, estavam joga<strong>da</strong>s uma<br />
calcinha e um sutiã. Tive um choque, porque era exatamente a<br />
materialização <strong>da</strong> minha fantasia na manhã posterior à bebedeira,<br />
e que, portanto, deixava o terreno <strong>da</strong> fantasia para entrar<br />
no <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de 30 •<br />
A visão <strong>da</strong> tela pelo narrador-personagem, não só relativiza<br />
as fronteiras entre o impreciso <strong>da</strong> recor<strong>da</strong>ção e a suposta nitidez<br />
<strong>da</strong> vivência, mas, sobretudo, concretiza a idéia <strong>da</strong> fantasia como<br />
um quadro que o sujeito pinta para responder ao enigma do desejo<br />
do Outro 2 • No momento em questão, o quadro pintado de<br />
30 Ibidem, p.55.<br />
2 Leia-se a respeito do valor cênico<br />
<strong>da</strong> fantasia o capítulo "Quadro <strong>da</strong><br />
fantasia" de Um olhar a mais ver<br />
e ser visto na psicanálise de<br />
Antonio Quinet
Narrar ou perecer: Sérgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes 265<br />
Brancatti revela-se inteiramente confundido ao quadro mental<br />
composto pelo crítico, na névoa <strong>da</strong> noite anterior, em profundo<br />
êxtase desejante por Inês.<br />
Nesse sentido, o caráter cênico <strong>da</strong> fantasia, tomado como<br />
endereçamento ao Outro, fun<strong>da</strong>menta a narração do crítico tanto<br />
em sua constante fática de apelo ao leitor, quanto na própria concepção<br />
do narrador sobre o caráter teatral <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de como<br />
"palco interior", ou ain<strong>da</strong> na inter-relação estreita através <strong>da</strong> qual<br />
conjuga e compreende as linguagens artísticas, como a literatura<br />
que produz, o teatro e a pintura.<br />
Assim a natureza híbri<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra de Brancatti, entre a pintura,<br />
a representação teatral ou perforrnática, bem como a ambigüi<strong>da</strong>de<br />
de que se reveste como produto <strong>da</strong>s relações particulares<br />
vivi<strong>da</strong>s entre a modelo e o artista, amplia-se pela inclusão, em seu<br />
âmbito, do próprio relato de Antonio Martins, conforme ele mesmo<br />
o reconhece:<br />
31 Ibidem, p.119.<br />
E se eu pretendia - embora meus atos e atitudes perante a justiça<br />
não pudessem assegurar-me disso - ser absolvido, era em<br />
meus termos, que incluíam essa posse conquista<strong>da</strong> de Inês, elevando-me<br />
<strong>da</strong> mera condição de fantoche manipulado pelo pintor<br />
e sua modelo à de ator consciente dentro <strong>da</strong> obra, apesar de<br />
eu não ter uma certeza cabal disso, procurando iluminá-lo um<br />
pouco melhor em minha própria obra: este relato3l •<br />
Por sua vez, o próprio relato, no espelhamento que promove<br />
entre suas múltiplas dimensões - a crítica, autobiográfica e a<br />
ficcional - pode tornar-se, <strong>da</strong> mesma forma que a obra do pintor<br />
que o inspirou, passível de desconfiança, como uma espécie de<br />
engenhosa mistificação. É ain<strong>da</strong> a loquaci<strong>da</strong>de do próprio narrador<br />
que o reconhece:<br />
... não poderá uma obra ser ao mesmo tempo péssima e<br />
provocativa, vulgar e estimulante, tomando relativo, para não<br />
dizer inútil, todo juízo de valor O que, por sua vez, remetia e<br />
remete a uma outra pergunta: não poderá uma peça crítica tornar-se<br />
uma obra de criação tão suspeita e arbitrária quanto A<br />
modelo de Vitório Brancatti<br />
O paradoxo <strong>da</strong> arte diante do ecletismo pós-moderno, em
266 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
sua fome de celebri<strong>da</strong>des instantâneas e descartáveis em que lixo<br />
e purpurina se misturam, aqui vem sintetizado pelo histrionismo<br />
do crítico-narrador, hábil em efeitos especiais e labirintos retóricos.<br />
A má-consciência dos torneios e o brilho <strong>da</strong> argumentação, afia<strong>da</strong><br />
em jogos antitéticos e afeita ao absurdo, na cooptação do leitor,<br />
escora-se no reconhecimento de que, neste final de século, "as<br />
fronteiras dos valores acabaram por se diluir32 ", e os parâmetros<br />
escasseiam.<br />
Daí, a radical estetização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana e a escorregadia<br />
confusão entre as construções artísticas ou midiáticas e o efeito<br />
de reali<strong>da</strong>de que produzem. Quando a vi<strong>da</strong> é invadi<strong>da</strong> pelo simulacro,<br />
o chão <strong>da</strong> experiência falseia e o desejo passa a ser siderado<br />
pela imagem, desrealizando o mundo à sua volta .. Como na inusita<strong>da</strong><br />
des-experiência de Antonio Martins:<br />
... eu verificava magnetizado, que, com o deslocamento <strong>da</strong> luz,<br />
a tela, o estudo, a instalação, a peça, enfim, de Brancatti, com<br />
a muleta, ia adquirindo, independentemente do valor que se lhe<br />
pudesse atribuir, cor, vi<strong>da</strong>, movimento, sob a luminosi<strong>da</strong>de do<br />
dia agonizante ( ... ) que, aos poucos, em seus estertores, acabou<br />
por incidir também em nós, em Inês, como se a modelo e<br />
personagem <strong>da</strong> pintura que eu vira na exposição houvesse saltado<br />
<strong>da</strong> obra para estar em meus braços, naquele cenário com seus<br />
móveis e adereços, fazendo de nós imagens de um quadro em<br />
movimento, uma cena para dentro <strong>da</strong> qual eu fora tragado ... 33<br />
32 Ibidem, p.90.<br />
33 Ibidem, p.103.<br />
Aqui, ao invés do nascimento de Galatéia <strong>da</strong> tela para a<br />
vi<strong>da</strong>, tem-se, ao contrário, a absorção de seu amante, um Pigmaleão<br />
rebaixado, ao quadro <strong>da</strong> fantasia que os engolfa e desmaterializa.<br />
O narrador, feito imagem de si mesmo, acolhe nos braços a Galatéia<br />
que não criou e, por isso mesmo - "tanto autor quanto mero<br />
ator"34 - passa a considerar o processo criminal a que é subme- 34 Ibidem, p.106.<br />
tido como "um processo estético, um jogo de xadrez35 ", entre ele 35 Ibidem, p.121.<br />
e o pintor. Por sua vez, Brancatti, porque "dera à luz um enigma<br />
plástico e pictórico, ao colocar o real sob suspeita num tipo de<br />
obra total", termina por desrealizar a vi<strong>da</strong> como "teatro", afinal,<br />
tão bem consumado com a interlocução do narrador-rival.<br />
Piglia, ao palmilhar teoricamente o caminho ficcionalizado<br />
por Sant' Anna, reconhece que "em mais de um sentido o crítico é
Narrar ou perecer: Sérgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobrevi ventes<br />
267<br />
o investigador e o escritor é o criminoso", o que o leva a pensar o<br />
romance policial como "a grande forma ficcional <strong>da</strong> crítica literá-<br />
36 PIGLIA, 1994, p.72. ria"36 Neste "crime delicado", a própria identi<strong>da</strong>de indecisa do<br />
narrador-crítico, manifesta<strong>da</strong> em sua escrita confessional e sinuosa,<br />
coleciona os atributos. Ele será tanto o detetive que investiga,<br />
quanto o criminoso que escreve.<br />
Não é por outro motivo que, apesar <strong>da</strong> absolvição judicial,<br />
37SANT'ANNA,1997,p.27. na "investigação interna"3 que se auto-impõe, Antonio Martins<br />
conclui pela própria culpa, "uma culpa visceral e atávica, um ver-<br />
]R Ibidem, p.118. <strong>da</strong>deiro pecado originaPS ". Com mal disfarçado prazer, o narrador<br />
assume, não só a imputação de "estuprador <strong>da</strong> arte", como tam-<br />
39Ibidem,p.l31. bém ajornalística caricatura de "vampiro" que lhe fazem39 .<br />
E mais, como bom personagem de romance noir, ain<strong>da</strong> se-<br />
4°PIGLIA, 1994, p 78. gundo a lógica aponta<strong>da</strong> por Piglia 40 , o narrador-detetive, quanto<br />
mais investiga, mais crimes produz. É assim que, despedindo-se<br />
dos leitores, não se peja em confessar a ativa participação que<br />
passa a ter na instalação itinerante e então, internacionalmente<br />
famosa de Brancatti, considera<strong>da</strong> pelo próprio crítico como "vul-<br />
41 SANT'ANNA,1997,p.1l8 gari<strong>da</strong>de \'oyeurística"41 .<br />
Aos desavisados informo que à entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> instalação itinerante<br />
de Vitório nunca se deixa <strong>da</strong> afixar cópias do material de imprensa<br />
sobre o caso Inês, com traduções para o alemão, o inglês<br />
e o francês. Desses recortes, naturalmente, além dos retratos<br />
do artista e sua modelo, constam alguns deste crítico, inclusive<br />
a foto que o capturou no instante em que contemplava a<br />
pintura de Brancatti em Os Divergentes. E também a caricatu-<br />
42 Ibidem. ra do crítico enquanto vampiro 42 •<br />
De um lado, ambivalente e sinuosa, a máquina de Antonio<br />
Martins, ao contrário <strong>da</strong> de Macedônio, no romance de Piglia,<br />
procura esquecer o desalento diante <strong>da</strong> constatação de que:<br />
43 PIGLIA, 1997, p.l14.<br />
Um relato não é outra coisa senão a reprodução <strong>da</strong> ordem do<br />
mundo numa escala puramente verbal. Uma réplica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />
caso a vi<strong>da</strong> fosse só feita de palavras. Mas a vi<strong>da</strong> não é feita só<br />
de palavras, infelizmente também é feita de corpos, ou seja,<br />
dizia, Macedonio, de doença, de dor e de morte 43 .<br />
De outro, pelo brilho retórico, ou ain<strong>da</strong> pelo verniz de cinis-
268 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
mo que a envolve, a máquina crítica de Antonio Martins mobiliza<br />
o arsenal <strong>da</strong> mistificação pós-moderna, e em sua fútil tagarelice,<br />
termina por mimetizar o bovarismo <strong>da</strong>s ficções eletrônicas, infenso<br />
ao penoso reconhecimento <strong>da</strong> finitude que, certamente <strong>da</strong>ria às<br />
palavras um outro peso, bem diferente do que hoje têm.<br />
Referências<br />
FUENTES, Carlos. "O milagre de Machado de Assis". Folha de São Paulo,<br />
São Paulo, 01 out 2, p78.000. Mais, p.4-11.<br />
PIGLIA, Ricardo. (1980) "Ficção e Teoria: O escritor enquanto crítico". In:<br />
Travessia 33 Revista de Literatura A estética do fragmento. Curso de Pós<br />
Graduação em Literatura, Ed. <strong>da</strong> UFSC, nOI, pp.47-59.<br />
--o A Leitura <strong>da</strong> Ficção. In: -. O laboratório do escritor. Trad. Josely<br />
Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994. p.67-76.<br />
--o Sobre o Gênero Policial. In: -. O laboratório do escritor. Trad. Josely<br />
Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994. p.77-80.<br />
--o A ci<strong>da</strong>de ausente. Trad. Sérgio Molina. 2 a edição. São Paulo: Iluminuras,<br />
1997.<br />
QUINET, Antonio. Um olhar a mais ver e ser visto na psicanálise. Rio de<br />
Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.<br />
SANT' ANNA, Sérgio. Um crime delicado. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />
1997.
269<br />
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos<br />
"cinco sentidos" de Haroldo de Campos a<br />
Giuseppe Ungaretti<br />
Maria Luiza Berwanger <strong>da</strong> Silva<br />
(UFRGS)<br />
Ilumina<strong>da</strong>s iluminuras ungarettianas (CAMPOS, 1977, p.81).<br />
Esta a imagem lapi<strong>da</strong>r com que Haroldo de Campos, poeta,<br />
crítico, tradutor e teórico <strong>da</strong> tradução configura a poética de<br />
Giuseppe Ungaretti, poeta italiano cuja permanência no Brasil, de<br />
1936-1942, revitalizou o imaginário nacional.<br />
Sob esta síntese lúci<strong>da</strong> de Haroldo, dois caminhos cruzam-se<br />
que encontram na tradução o lugar <strong>da</strong> memória residual de duas línguas,<br />
duas estéticas, duas culturas. Desdobrá-las, distendendo-Ihes as<br />
fronteiras geográficas, textuais e simbólicas, em gesto que, ao traduzir,<br />
reinventa e transcria, eis o que guar<strong>da</strong> intacto o fundo do olhar do<br />
tradutor brasileiro Haroldo de Campos e de que a recente publicação:<br />
Ungaretti - Daquela Estrela à Outra faz-se amostragem exemplar.<br />
"Si l' amitié projette son espoir au-delà de la vie, un espoir<br />
absolu, un espoir incommensurable, c'est par ce que l'ami est [ ... ]<br />
son double idéal, son autre soi-même, le même que soi en mieux",<br />
diz Jacques Derri<strong>da</strong> em Politiques de ['Amitié (1999, p.20), fixando<br />
na amizade literária o arquivo inapagável dos fios e <strong>da</strong>s<br />
imagens a retecer, <strong>da</strong>s afini<strong>da</strong>des desenha<strong>da</strong>s entre os dois<br />
poetas-tradutores. Aproxima-os a visuali<strong>da</strong>de, o efeito <strong>da</strong> luz<br />
como "paisagem primordial" do mundo a ser decifrado; como se<br />
a produtivi<strong>da</strong>de do ato tradutório restituísse à poetici<strong>da</strong>de do ver<br />
a emergência <strong>da</strong> palavra poética, amplia<strong>da</strong> e ressimboliza<strong>da</strong>. Assim,<br />
"Ilumina<strong>da</strong>s iluminuras ungarettianas" tanto remetem ao registro<br />
de uma amizade memorável, quanto traçam o caminho a
270 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n. 9, 2006<br />
ser percorrido por Haroldo de Campos na retradução de Ungaretti<br />
para o contexto brasileiro. Percebe-se, neste sentido, que a própria<br />
dedicatória em italiano a Haroldo como epígrafe à Daquela<br />
Estrela à Outra: "AI caro Haroldo de Campos / per ricordo di /<br />
qualche momento / passato insieme / ad amare la / poesia sempre<br />
/ nuova e sempre / poesia" (Giuseppe Ungaretti, San Paolo, 12/5/<br />
1967), já demarca para Haroldo o conceito <strong>da</strong> poesia<br />
auto-referencial que tenta nomear o indizível, pela luminosi<strong>da</strong>de<br />
do olhar que atravessa, redescobre e relocaliza o corpo <strong>da</strong> letra<br />
sobre o branco <strong>da</strong> página, <strong>da</strong> poesia, em uma palavra, que imprime<br />
no ato de transla<strong>da</strong>r o de transcriar. "Faz, na aérea paisagem<br />
com que eu possa / Ressilabar as ingênuas palavras" (WATAGHIN,<br />
2003, p.l59), confessa um poema de Ungaretti para demarcar a<br />
força poética <strong>da</strong> reconfiguração.<br />
Em espaços rompidos, em distâncias redimensiona<strong>da</strong>s, em<br />
novas cartografias redesenha<strong>da</strong>s pelo brilho <strong>da</strong>s estrelas, dispersas<br />
em novas constelações, nesta difração luminosa capta<strong>da</strong> do<br />
poeta italiano, o tradutor brasileiro percebe a imagem do "Odi<br />
Melisso" de G. Leopardi, fundo textual em que Ungaretti mescla à<br />
poetici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> luz a do escutar, mesclas e ressonâncias de som e<br />
de cor que evidenciam para o tradutor a musicali<strong>da</strong>de do exercício<br />
de "ressilabar", na base do projeto poético nomeado de<br />
Ungaretti: marcas aproximam-se mas não se diluem no trânsito de<br />
alteri<strong>da</strong>des revisita<strong>da</strong>s. "A alteri<strong>da</strong>de é, antes de mais na<strong>da</strong>, um<br />
necessário exercício de autocrítica" (CAMPOS, 1983, p.125),<br />
afirma, de forma contundente, Haroldo, sublinhando a produtivi<strong>da</strong>de<br />
do Outro para o Mesmo como decifrador de línguas, linguagens<br />
e imaginários vislumbrados pelo olhar que se volta sobre a<br />
própria intimi<strong>da</strong>de. Singular este retorno do sujeito sobre si mesmo<br />
do qual Haroldo recolhe do texto estrangeiro os grãos seminais<br />
com que reescreverá e ampliará o significado original.<br />
Leitor-crítico maior dos poetas modernistas representativos<br />
do Movimento Antropofágico, compreendera o tradutor brasileiro<br />
que a travessia <strong>da</strong> leitura articula<strong>da</strong> pela devoração do Outro<br />
mostra ao Mesmo, (ao tradutor visto como Mesmo), o ajuste e a<br />
aclimatação de imaginários como marca primeira <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de<br />
que vê e que se vê concentrando na paisagem uma <strong>da</strong>s figurações<br />
exemplares <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de lírica. (Exemplar, na medi<strong>da</strong> em que a<br />
paisagem se faz solo comum, território sensível onde o texto tra-
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti<br />
271<br />
I Refiro-me, especialmente, ao<br />
legado do pensamento francês<br />
sobre o ato tradutório<br />
sintetizado pelo desejo de<br />
distanciamento e pela recusa <strong>da</strong><br />
"fideli<strong>da</strong>de" em tradução.<br />
Poetas-tradutores e tradutores<br />
franceses, como Paul Valéry no<br />
ensaio Traduction en vers des<br />
Bucoliques de Virgile (1944),<br />
a própria obra Sous<br />
l'invocation de Saint Jérôme<br />
de Valéry Larboud (1946), a<br />
reflexão luminosa de Maurice<br />
Blanchot em L'amitié (1971),<br />
Henri Meschonnic com a<br />
Poétique du tradu ire (1999),<br />
síntese dos demais percursos<br />
tradutórios deste autor, do<br />
mesmo modo La Communauté<br />
des traducteurs de Yves<br />
Bonnefoy (2000), paralelas à<br />
contribuição definitiva de<br />
lacques Derri<strong>da</strong> para a<br />
tradução de textos e de imagens<br />
nas Tours de Babel celebra<strong>da</strong><br />
em "Ni passeurs ... ni passants",<br />
esta amostragem exemplar<br />
constitui marcas evidentes do<br />
núcleo duro <strong>da</strong> reflexão<br />
haroldiana sobre o exercício<br />
tradutório como transcriação.<br />
2 "Teremos [ ... ] em outra língua,<br />
uma outra informação estética,<br />
autônoma, mas ambas estarão<br />
liga<strong>da</strong>s entre si por uma relação<br />
de isomorfia: serão idênticas<br />
enquanto linguagem, mas,<br />
como os corpos isomorfos,<br />
cristalizar-se-ão dentro de um<br />
mesmo sistema" (Apud<br />
CAMPOS, Haroldo de (1992).<br />
Da tradução como criação e<br />
como crítica. In:<br />
Metalinguagem e Outras<br />
Metas. São Paulo: Perspectiva.<br />
p.31-32).<br />
duzido, tradutor e discurso tradu tório harmonizam-se em vozes<br />
que se consoli<strong>da</strong>m na recepção crítica <strong>da</strong> tradução, hoje ).1<br />
Em Haroldo, a busca obstina<strong>da</strong> do visual, manifestando-se<br />
no desejo de "ir más allá", incide na própria necessi<strong>da</strong>de de<br />
dessimbolizar ou desconstruir para ressimbolizar ou reconstruir o<br />
novo, o diverso, o múltiplo captados do movimento <strong>da</strong> travessia,<br />
no caso em questão, <strong>da</strong> Itália-brasileira de Ungaretti. Se o atravessar<br />
recompensa a prática do olhar com o desenho de "paragens"<br />
(DERRIDA, 1999), estes espaços sulcados não só<br />
rememoram a territoriali<strong>da</strong>de do Mesmo (do texto na língua materna<br />
do tradutor), mas também relocalizam e o fazem gravitar em<br />
configurações, línguas e imaginários outros.<br />
Transblanco intitula-se o poema de homenagem de Haroldo<br />
de Campos a Octavio Paz, em jogo intertextual que estabelece<br />
com o poema Blanco do poeta mexicano, mediante este fio do<br />
atravessar, "transluminação", denomina Haroldo a esta operação<br />
que prolonga e difrata o poema Blanco:<br />
Numa tradução como esta, que se passa entre línguas tão próximas<br />
e aparentemente solidárias como o espanhol e o português<br />
os avatares obsessivos do mesmo se deixam, não obstante,<br />
assaltar pelos azares pervasivos <strong>da</strong> diferença [ ... ] é que pulsa,<br />
passional, para além <strong>da</strong> resigna<strong>da</strong> tradução servil [ ... ], a vocação<br />
dialógico-transgressora de to<strong>da</strong> tradução que se proponha<br />
responder a um texto radical entrando no seu jogo também pela<br />
raiz: arraigando-se nele e desarraigando-se num mesmo movimento<br />
de amorosa duplici<strong>da</strong>de (PAZ; CAMPOS, 1994,<br />
p.185-186).<br />
Assim, Transblanco legitima o conceito <strong>da</strong> tradução<br />
transcriadora como ato crítico (ou transcrítico), posição que reitera<br />
ao longo de sua produção, entretanto já presente na reflexão<br />
inaugural de Metalinguagem e Outras Metas (de 1967), mas que<br />
reescreverá ao longo de sua produção teórico-crítica. 2 Dito de<br />
outro modo: tradução e transcriação constituem duas ativi<strong>da</strong>des<br />
convergentes na produção haroldiana, "[nela] a intertextuali<strong>da</strong>de<br />
se converte em intervivenciali<strong>da</strong>de", diz Emir Rodríguez ~lonegal<br />
(1986), para assinalar em Haroldo a produtivi<strong>da</strong>de do eixo tradução<br />
/ intertextuali<strong>da</strong>de / crítica para o transcriar. Mas é na tradução<br />
dos versos A Alegria (1914-1919) de Giuseppe Ungaretti,
272 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
único conjunto, dentre os demais apresentados, que se faz acompanhar<br />
de notas críticas, nas quais Haroldo sistematiza as<br />
reconfigurações transcriativas por ele efetiva<strong>da</strong>s. Substituições<br />
lexicais, de rimas e ampliações do significado constituem a base<br />
<strong>da</strong>s operações assinala<strong>da</strong>s para acentuar o efeito musical; como se<br />
a musicali<strong>da</strong>de modulasse, retraduzindo, o visual insuperável. Neste<br />
sentido, uma figura desta prática tradutória se desenha em A Alegria,<br />
a qual, tomando como ponto de parti<strong>da</strong> a brevi<strong>da</strong>de e o<br />
despojamento dos versos de Mattina, "M'illumino d'immenso",<br />
figuram a inun<strong>da</strong>ção do sujeito lírico pela luz que o difrata sob<br />
forma de movimentos intermitentes.<br />
Luz volta<strong>da</strong> sobre si mesmo e, ao mesmo tempo, luz de<br />
forte irradiação, Haroldo percebeu com uma clareza surpreendente<br />
esta dupla figuração do visual em Ungaretti, expressando a<br />
busca do sentimento de fraterni<strong>da</strong>de: "De que regimento / irmãos<br />
/ Palavra que treme / na noite / Folha neonata / No ar de espasmo<br />
/ involuntária revolta / do homem presente à sua / fragili<strong>da</strong>de /<br />
Fraterni<strong>da</strong>de" (WATAGHIN, 2003, p.47). É justamente esta percepção<br />
dilata<strong>da</strong> do luminoso que evidencia para Haroldo a substituição<br />
de "m'illumino" no poema Mattina, "m'illumino d'immenso"<br />
por "Deslumbro-me de imenso" (WATAGHIN, 2003, p.57),<br />
deslumbrar-se como condensação e expansão ilimita<strong>da</strong>s <strong>da</strong> luz e<br />
<strong>da</strong> clarividência no espaço <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de.<br />
Com igual lucidez o tradutor-brasileiro também percebeu<br />
que a celebração do fraterno, no poeta italiano, deixa-se articular<br />
pelo desejo de compor uma comuni<strong>da</strong>de simbólica de forte resistência<br />
poética à melancolia existencial. "Balaustra<strong>da</strong> de brisa / para<br />
apoiar noite adentro / a minha melancolia" (WATAGHIN, 2003,<br />
p.4I). Concebido por esta poetici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> luz prismática, o "recueil"<br />
intitulado A Alegria representa o arquivo do lirismo ungarettiano,<br />
tal como uma voz seminal soprando ao tradutor Haroldo o poder<br />
de escuta do Outro, filtrando-lhe ressonâncias e ecos do imaginário<br />
estrangeiro. Assim, os demais livros de Ungaretti, traduzidos e<br />
apresentados nesta última publicação de Haroldo de Campos, tais<br />
como Sentimento do Tempo, O Caderno do Velho e Últimos Dias,<br />
configuram-se à propagação luminosa que encontra, em A Alegria,<br />
a matriz poética do ato tradutório. Nela, a angústia de exprimir<br />
o inexprimível, atenua<strong>da</strong> pela própria nomeação deste conflito<br />
do dizer pelo recurso à transcriação, garante a retração do
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti<br />
273<br />
3 CAMPOS, Haroldo de;<br />
CAMPOS, Augusto de;<br />
PIGNATARI, Décio (1987).<br />
Teoria <strong>da</strong> Poesia Concreta:<br />
Textos Críticos e Manifestos<br />
1950-1960. São Paulo: Brasiliense.<br />
intraduzÍvel do texto original. Agregar, substituir e deslocar sintetizam<br />
o esforço <strong>da</strong> voz tradutora do Mesmo para diminuir o efeito<br />
de estranhamento provocado pelo imaginário do Outro; como se<br />
a ilusão de decifrar uma língua distante devolvesse ao tradutor o<br />
prazer do eterno retorno ao texto primeiro, mas retorno<br />
revitalizado. Restituir ao Mesmo a certeza crescente e ininterrupta<br />
de avançar e de penetrar na paisagem cifra<strong>da</strong> de Ungaretti através<br />
do efeito do visual, eis, em uma palavra, a própria "alegria" <strong>da</strong><br />
operação tradutória como transcriação experimenta<strong>da</strong> por Haroldo<br />
de Campos. Vista deste ângulo, a tradução do poema Perfections<br />
du Nair, escrito em francês por Ungaretti, permite ao leitor evidenciar<br />
uma reconfiguração singular <strong>da</strong> transcriação.<br />
Se imagem desdobra<strong>da</strong> <strong>da</strong> Alteri<strong>da</strong>de a reinventar, Perfeições<br />
do Negro aproxima-se do projeto visual <strong>da</strong> poesia concreta<br />
brasileira 3 por marcas tipográficas múltiplas, se rumor ou<br />
musicali<strong>da</strong>de quase inaudível propõe ao leitor-tradutor o desafio<br />
de tornar convergente a dispersão gráfica sobre a página, mediante<br />
a escuta de uma paisagem matricial articuladora do diálogo<br />
tecido e retecido com A Alegria, então este poema sinaliza para a<br />
transcriação o itinerário de uma sublimação capta<strong>da</strong> <strong>da</strong> poetici<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> ausência: certas representações visuais permitirão ao tradutor<br />
brasileiro a retradução dos bastidores desta visuali<strong>da</strong>de. Conhecidos<br />
e desconstruídos os mecanismos de fabricação <strong>da</strong>s imagens<br />
deste poema como lugar disseminador do nascimento do poético<br />
em Ungaretti, Peifections duNoirentrecruza o traço <strong>da</strong> visuali<strong>da</strong>de<br />
ao <strong>da</strong> negativi<strong>da</strong>de:<br />
ecos<br />
ruídos<br />
nos chegam<br />
às vezes<br />
estamos tão longe<br />
de tudo<br />
(WATAGHIN, 2003, p.IOS)
274 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
sem mora<strong>da</strong><br />
sem família<br />
sem família<br />
sem amores<br />
sem amigos<br />
sem lembranças<br />
sem esperança<br />
o que vem fazer aqui<br />
(WATAGHIN, 2003, p.113)<br />
Reduz o espaço a uma pedra, a apenas uma pedra <strong>da</strong> qual o<br />
impacto sobre o sujeito, gerado pelo ato de ser lança<strong>da</strong> no rio,<br />
provoca o movimento de mergulho na interiori<strong>da</strong>de. Mas é nos<br />
versos de conclusão, na identificação do sujeito a pedra deixa<strong>da</strong> à<br />
margem do rio e recupera<strong>da</strong> por alguém, que a transpoetização<br />
efetua<strong>da</strong> por Haroldo de Campos, manifesta-se:<br />
il est nu<br />
comme la nuit<br />
comme une plerre<br />
au/it d'unfleuve<br />
polie<br />
comme une pierre<br />
de volcan<br />
rongée<br />
quelqu'un l'a cuellie<br />
<strong>da</strong>ns sa fronde<br />
ou suis-je tombé<br />
mettez I doncl de côté<br />
cet objet<br />
perdu<br />
(WATAGHIN, 2003, p.114)
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti<br />
275<br />
nu<br />
como a noite<br />
como uma pedra<br />
no leito de um rio<br />
poli<strong>da</strong><br />
como uma pedra onde fui eu tombar<br />
de vulcão<br />
roí<strong>da</strong><br />
alguém a colheu<br />
em suafun<strong>da</strong><br />
põe de lado<br />
este objeto<br />
perdido<br />
(WATAGHIN, 2003, p.115)<br />
Nestes versos, a supressão do articulador "donc", na passagem<br />
do francês para o português, reconfigura o texto de Ungaretti:<br />
a presença do "donc" no texto original, significando a toma<strong>da</strong> de<br />
decisão de não mais recuperar o objeto perdido, uma vez o sujeito<br />
transmutado em pedra e jogado ao rio, esta decisão é subverti<strong>da</strong><br />
pela ausência do "donc" no texto traduzido, imprimindo no simbolismo<br />
<strong>da</strong> pedra o traço de objeto de memória que remete ao<br />
lugar de nascimento do poema. Peifeiçães do Negro, deste modo,<br />
concede ao leitor um certo efeito de continui<strong>da</strong>de do momento<br />
liberado <strong>da</strong> ordem do tempo e do espaço: redesenha a fisionomia<br />
do sujeito-pedra, transformando-o em grão textual e forma <strong>da</strong>nçante<br />
captados <strong>da</strong> visuali<strong>da</strong>de. Decifra, de certo modo, o enigma<br />
<strong>da</strong> paisagem lírica ao mostrar o dentro à exteriori<strong>da</strong>de, respondendo<br />
ao conflito <strong>da</strong> expressão poética figura<strong>da</strong> por Eterno, primeiro<br />
poema de A Alegria: "Entre uma flor colhi<strong>da</strong> e o dom de<br />
outra o na<strong>da</strong> inexprimível" (WATAGHIN, 2003, p.23). Embora<br />
breves, estes versos permitem vislumbrar o grau zero do dizer o<br />
indizível, cifrando-se no prazer de resgatar, pela tradução, a<br />
potenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> palavra poética de ressignificação inesgotável.<br />
A suavi<strong>da</strong>de, contudo, modula o processo tradu tório <strong>da</strong> poesia<br />
ungarettiana por Haroldo: compreende o tradutor, que to<strong>da</strong> prática<br />
do transcriar inicia pela percepção e pelo exame dos eixos arti-
276 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
culares do texto a traduzir. Deste modo, princípios como o <strong>da</strong><br />
indeterminação como traço do inexprimível, o do "efeito de fratura<br />
abissal", assim denominado pelo próprio Ungaretti, para marcar<br />
tonali<strong>da</strong>de ou mu<strong>da</strong>nça de intensi<strong>da</strong>de agrega<strong>da</strong> a uma palavra<br />
em determina<strong>da</strong> linguagem e, sobretudo, a configuração do fragmento<br />
como gênero e como imagem <strong>da</strong> significação poética múltipla,<br />
estes traços <strong>da</strong> poetici<strong>da</strong>de ungarettiana encontram a ressonância<br />
perfeita na página retraduzi<strong>da</strong> por Haroldo, traços que dão<br />
a ver, na prática, a composição de "formas significantes em um<br />
horizonte móvel, num virtual ponto de fuga" no rastro <strong>da</strong><br />
"dispersion volatile de Mallarmé" (CAMPOS, 1987, p.60); como<br />
se a leitura simbólica do fazer poético demarcasse para Haroldo o<br />
caminho do transimaginar, ou, como o dirá em uma nota<br />
introdutória a uma obra compartilha<strong>da</strong> com seu irmão Augusto de<br />
Campos: "Traduzir e trovar são dois aspectos <strong>da</strong> mesma reali<strong>da</strong>de.<br />
Trovar quer dizer achar, quer dizer inventar. Traduzir é<br />
reinventar [ ... ] O caráter concluso <strong>da</strong> obra feita fica provisoriamente<br />
suspenso e o fazer reabre o seu processo, refaz-se na dimensão<br />
nova <strong>da</strong> língua do tradutor" (CAMPOS, 1987, p.56).<br />
Trata-se de visualizar a operação transcriativa como uma<br />
<strong>da</strong>s formas de retrair, relativizando, o efeito de estranhamento<br />
experimentado pelo tradutor. Assim, resistir ao impacto <strong>da</strong> distância<br />
a ser atravessa<strong>da</strong> entre duas línguas, dois imaginários e duas<br />
subjetivi<strong>da</strong>des de sentidos apenas insinuados no texto a ser traduzido,<br />
eis o primeiro gesto que o ato de transcriar concede ao Mesmo<br />
e ao Outro. Se desbabelizado e transgredido, todo texto estrangeiro<br />
provoca a ilusão <strong>da</strong> completude, difratado e ampliado restitui ao<br />
texto original aquele efeito de sublimação de que se reveste to<strong>da</strong><br />
cumplici<strong>da</strong>de, no fundo inapagável de duas memórias aproxima<strong>da</strong>s.<br />
Mais ain<strong>da</strong>, entrelaçá-las, tomando-as "metáfora viva" <strong>da</strong> poética<br />
do dom e <strong>da</strong> doação mútua, eis o segundo gesto a que remete o<br />
exercício <strong>da</strong> transcriação de Ungaretti por Haroldo de Campos.<br />
Plenitude tradutória ou novos itinerários que o prazer do<br />
texto ressimbolizado vislumbra para o leitor-tradutor Amostragem<br />
exemplar de uma paisagem transcria<strong>da</strong>, Daquela Estrela à Outra,<br />
como última publicação de Haroldo de Campos, não só transparece<br />
este "bonheur du traducteur", mas também tece, a seu modo, um<br />
diálogo singular com a produção poética e crítica haroldiana. Vista<br />
deste ângulo, a intersecção de La Educación de los Cinco Sen-
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti<br />
277<br />
4 Ver referência e citações em<br />
SANTAELLA, Lúcia. Transcriar,<br />
Transluzir, Transluciferar:<br />
a teoria <strong>da</strong> tradução em<br />
Haroldo de Campos. In:<br />
MOTTA, Le<strong>da</strong> Tenório <strong>da</strong><br />
(Org.) (2005). Céu acima: para<br />
um "tombeau" de Haroldo de<br />
Campos. São Paulo: Perspectiva<br />
I FAPESP. (Coleção<br />
Signos, 45). p.221-232.<br />
tidos (tradução, 1990), imagem-síntese <strong>da</strong> poética de Haroldo com<br />
artigos periodísticos (Para além do princípio <strong>da</strong> sau<strong>da</strong>de, Folha<br />
de São Paulo, 1984, e A transcriação do Fausto, Folha de São<br />
Paulo, 1981, entre outroS)4 já traz em gérmen o projeto <strong>da</strong> profun<strong>da</strong><br />
ressonância onde partes e fragmentos reflexivos<br />
harmonizam-se transiluminando-se reciprocamente_ E, em voz que<br />
nomeia, mostrando, os lugares teóricos, críticos e poéticos por<br />
que faz transitar seu processo de transimaginação, a matriz<br />
haroldiana rememora a presença francesa, por vezes inconfessa;<br />
convoca-a por constituir a constelação de marcas, traços e sinais<br />
colhidos <strong>da</strong> tradução/retradução do Coup de dés de Mallarmé, ver<strong>da</strong>deira<br />
arte tradutória com que Haroldo brin<strong>da</strong> a poesia brasileira:<br />
recorta <strong>da</strong> lembrança francesa o próprio dom <strong>da</strong> visuali<strong>da</strong>de<br />
transgredi<strong>da</strong> pela poética <strong>da</strong> escuta, dos modos de escuta a que a<br />
escritura <strong>da</strong> Educación de los Cinco Sentidos lhe permitiu ascender.<br />
Visto sob a transparência francesa, se a recente publicação<br />
de Paul Ricoeur, intitula<strong>da</strong> Sur la traduction (2004), sublinha a<br />
superação do sentimento do "deuil" pelo tradutor, inserindo-se,<br />
pois, este intelectual na comuni<strong>da</strong>de de pensadores-transcriadores<br />
franceses, considerados como "réelles présences" <strong>da</strong> reflexão de<br />
Haroldo de Campos já evoca<strong>da</strong>s, é, contudo, na leitura simbólica<br />
e cristalina de Paul Ricoeur pela crítica uruguaia Lisa Block de<br />
Behar (2005) que a operação tradutória de Ungaretti por Haroldo<br />
encontra a luz e a legitimação definitivas:<br />
Si uma obra puede cambiar el curso deI mundo, tal vez no seria<br />
demasiado exagerado afirmar que también una palabra puede<br />
cambiar el discurso deI mundo o el discurso, tout court. Y, en<br />
esta situación de hoy, esa palabra sería travesía o los<br />
movimientos que su acción implica. Ambivalente o<br />
contradictorio, el término no puede sustraerse a ciertas<br />
duplici<strong>da</strong>des lexicológicas que no eluden los pliegues, que no<br />
ocultan una significación excéntrica - o varias - que se presta<br />
a la preferencia de un estatuto literario privilegiado y que la<br />
plurali<strong>da</strong>d deI diccionario avaIa (BEHAR, 2005, p.99-1 00).<br />
Por sua vez, esta imagem do "atravessar" como figura do<br />
transcriar guar<strong>da</strong>, reti<strong>da</strong>, em seu núcleo, um outro grão do pensamento<br />
(sempre iluminado e iluminador) de Lisa Block de Behar,<br />
expresso ao longo de sua produção teórico-crítica e sintetizado
278 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
na obra sobre Haroldo de Campos, Don de poesía (2004), sob sua<br />
organização, quando diz na Introdução:<br />
Sus escritos teóricos afines a su obra poética, las convergencias<br />
de sus transcreaciones, la caligrafía ideogramatical que configura<br />
la visuali<strong>da</strong>d y verbali<strong>da</strong>d en una misma emergencia relevan<br />
la previsión profética que Haroldo, el poeta que sabe,<br />
emblematiza en escritura en un verso que se ve: "escrever é<br />
uma forma de 'ver'" (BEHAR, 2004, p.20).<br />
Dom do visual, pois, como dom <strong>da</strong> tradução poética, em<br />
Mestre Haroldo, o incessante desejo de legar ao nacional e ao<br />
transnacional este "don du poeme" faz retornar a La Educación<br />
de los cinco sentidos, onde Le don du poeme, ao evocar um poema<br />
de Mallarmé, configura a sedução de abrir o próprio ouvido<br />
deixando-se invadir pelo ouvido do Outro:<br />
un poema comienza<br />
allí donde termina:<br />
el margen de la du<strong>da</strong><br />
súbito inciso de geranios<br />
ordena su destino<br />
[ ... ]<br />
domo de signos: y el poema comienza<br />
mansa locura cancerígena<br />
que exige estas Iíneas aI blanco<br />
(allí donde termina)<br />
(CAMPOS, 1990, p.73)<br />
Se o diálogo estabelecido com Mallarmé constitui o solo<br />
comum <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de tradutória tanto de Giuseppe UngarettP quanto<br />
de Haroldo de Campos, a travessia do texto ungarettiano pelo<br />
poeta-tradutor brasileiro e a conseqüente confluência na página<br />
mallarmaica desenham um espaço outro, além dos laços de amizade,<br />
um território do imaginário em que duas poéticas<br />
revitalizam-se pela certeza do texto do Outro transcriado. No fundo<br />
<strong>da</strong>s "Ilumina<strong>da</strong>s iluminuras ungarettianas", a luz concentra<strong>da</strong> como<br />
5 Ver: Conferências e ensaios<br />
críticos de Giuseppe Ungaremi,<br />
compilados por: WATAGHIN,<br />
Lucia. Raz[jes de uma poesia.<br />
São Paulo: EDUSP, [s.d.].
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti<br />
279<br />
medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> distância entre estrelas, expressa a singulari<strong>da</strong>de do<br />
gesto de transubstanciar como homenagem maior que Haroldo de<br />
Campos doa ao poeta italiano, a quem dedica o poema<br />
Transideração:<br />
Transideracão<br />
Ungaretti conversa com Leopardi<br />
1984<br />
Um leão: ruivando arde -<br />
na voz do leão - Leopardi<br />
(céu noturno em Recanati)<br />
virando constelação:<br />
Odi, Melisso ... E o leão<br />
resgata a um fausto de estrelas<br />
caí<strong>da</strong>s, a lua jamais cadente<br />
e a Ursa, magas centelhas.<br />
Depois, o leão (a Leopardi<br />
tendo <strong>da</strong>do o que lhe cabe)<br />
passa a medir o infinito<br />
ou desmedi-Io: do longe<br />
<strong>da</strong>quela estrela (tão longe)<br />
ao longe <strong>da</strong>quela estrela.<br />
(CAMPOS, 2003, p.194).<br />
Neste poema, a evocação de Leopardi tanto celebra o fio<br />
memorial <strong>da</strong> paisagem ungarettiana, quanto a transgride. No verso<br />
final, o gesto de "medir o infinito" significando a passagem de<br />
constelações nomea<strong>da</strong>s e conheci<strong>da</strong>s (asa, Ursa Maior) a desconheci<strong>da</strong>s<br />
retoma ao Don du Poeme <strong>da</strong> Educación de los Cinco<br />
Sentidos. Em Transideración, Haroldo investe no gesto de "atravessar"<br />
o ato de transcriar para "medir el infinito", representando,<br />
através deste ato, não só a figura do tradutor-ressimbolizador ou<br />
"le maitre secret de la différence des langues" como o vira Maurice<br />
Blanchot (1971), mas, sobretudo, como aquele que, ao emprestar<br />
seus "cinco sentidos" à visuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> paisagem transidera<strong>da</strong> pela<br />
<strong>da</strong>nça de estrelas como <strong>da</strong>nça de palavras: "O tradutor de poesia<br />
é um coreógrafo <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça interna <strong>da</strong>s línguas tendo o sentido [ ... ]<br />
não como meta linear de uma corri<strong>da</strong> termo-a-termo, [ ... ], mas
280 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
como um bastidor semântico ou cenário pluridesdobrável dessa<br />
coreografia móvel" (p.230), dá a ver, além <strong>da</strong> homenagem, no<br />
texto transcriado ou transubstanciado, o lugar de transferências<br />
estéticas e culturais.<br />
Céu acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos<br />
(2005) como a mais recente publicação no Brasil, composta por<br />
uma constelação de vozes nacionais e transnacionais, restitui ao<br />
transcriador Haroldo a própria homenagem que este tradutor brasileiro<br />
prestara a Ungaretti. O prefixo "trans" de "transcriação",<br />
simbolizado pelo título "Céu acima", recolhe o poema que lhe<br />
dedica o poeta paulista Horácio Costa, discípulo dileto de Haroldo<br />
de Campos, a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> "transideración" inapagável:<br />
- Conecta com isso.<br />
E é uma pedra.<br />
- Conecta com isso.<br />
É terra.<br />
- Conecta com isso.<br />
É nuvem. Tem a forma do dragão.<br />
- Conecta com isso.<br />
É on<strong>da</strong>. Tem a forma <strong>da</strong> on<strong>da</strong>.<br />
- Conecta com isso.<br />
É chip. Parece Shangri-Iah.<br />
Não é sílica. Nem silêncio. Nem palavra.<br />
Conecta com isso"<br />
(COSTA, 2005: 307).<br />
Ilumina<strong>da</strong>s iluminuras horacianas.
Transcriar. transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti<br />
281<br />
Referências<br />
BEHAR, Lisa Block de. Contradictorias aventuras y desventuras de la travesía.<br />
Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, Porto Alegre: <strong>Abralic</strong>, n.7, 2005,<br />
p.91-101.<br />
CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo:<br />
Perspectiva, 1977.<br />
--o Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. Boletim<br />
Bibliográfico, v.44, n.14, 1983, p.107-125, jan.-fev.<br />
--o Da tradução como criação e como crítica. In: --o Metalinguagem' e<br />
Outras Metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.<br />
--o Da transcriação: poética e semiótica <strong>da</strong> operação tradutora. In:<br />
SANTAELLA, Lúcia; OLIVEIRA, Ana Cláudia. Semiótica <strong>da</strong> Literatura.<br />
São Paulo: EDUC, 1987. (Série Cadernos PUC, 28). p.53-74.<br />
--o La educación de los cinco sentidos. Trad. de Andrés Sánchez Robayna.<br />
Barcelona: Ambit Serveis Editorial, 1990.<br />
--o Ungaretti: O Efeito de Fratura Abissal. In: WATAGHIN, Lucia (Org.)<br />
Ungaretti - Daquela estrela à outra. Trad. de Haroldo de Campos e Aurora F.<br />
Bernardini. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. p.187-195.<br />
CAMPOS, Haroldo de; CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio. Teoria<br />
<strong>da</strong> Poesia Concreta: Textos Críticos e Manifestos 1950-1960. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1987.<br />
COSTA, Horácio. A fronteira do dizer. In: MOTTA, Le<strong>da</strong> Tenório <strong>da</strong> (Org.).<br />
Céu acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva<br />
/ FAPESP, 2005. (Coleção Signos, 45) p.306-307.<br />
DERRIDA, Jacques. Politiques de l'Amitié. Paris: Seuil, 1999.<br />
MOTTA, Le<strong>da</strong> Tenório <strong>da</strong> (Org.). Céu acima: para um "tombeau" de Haroldo<br />
de Campos. São Paulo: Perspectiva / FAPESP, 2005. (Coleção Signos, 45).<br />
PAZ, Octavio; CAMPOS, Haroldo. Transblanco. São Paulo: Siciliano, 1994.<br />
SANTAELLA, Lúcia. Transcriar, Transluzir, Transluciferar: a teoria <strong>da</strong><br />
tradução em Haroldo de Campos. In: MOTTA, Le<strong>da</strong> Tenório <strong>da</strong> (Org.) Céu<br />
acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva /<br />
FAPESP, 2005. (Coleção Signos, 45) p.221-232.
282 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
WATAGHIN, Lucia COrg.). Ungaretti - Daquela estrela à outra. Trad. de<br />
Haroldo de Campos e Aurora F. Bernardini. Cotia: Ateliê Editorial, 2003.<br />
--o Razões de uma poesia. São Paulo: EDUSp, [s.d.].
283<br />
As ironias <strong>da</strong> ordem em Carlos Drummond<br />
de Andrade e Fernando Pessoa<br />
Maria Esther Maciel<br />
(UFMG)<br />
o que não está ordenado de um modo definitivamente<br />
provisório o está de modo provisoriamente definitivo.<br />
(Georges Perec)<br />
A palavra inventário designa, como se sabe, a "relação<br />
dos bens deixados por alguém que morreu", "o documento<br />
ou papel em que se acham relacionados tais bens", "lista discrimina<strong>da</strong>,<br />
registro, relação, rol de mercadorias, bens, etc.", e, em sentido<br />
lato, "descrição ou enumeração minuciosa de coisas". Para<br />
além <strong>da</strong>s demarcações do dicionário, é possível ain<strong>da</strong> identificar<br />
uma afini<strong>da</strong>de explícita do termo com as palavras "inventolinvenção"<br />
(coisa imagina<strong>da</strong>, cria<strong>da</strong>, feita, engendra<strong>da</strong>), o que o levaria<br />
a se aproximar - por vias oblíquas - também dos campos do fazer<br />
poético e ficcional.<br />
É precisamente enquanto combinatória desses sentidos<br />
possíveis <strong>da</strong> palavra que se pode falar de uma "poética do<br />
inventário" na poesia de Carlos Drummond de Andrade, visto que<br />
esta se presta tanto ao gesto taxonômico de inventariar coisas<br />
quanto o de inventar formas poéticas alternativas, híbri<strong>da</strong>s, a partir<br />
de suas inúmeras listas, catálogos, recenseamentos e enumerações.<br />
E mais: de reinventar ironicamente os dispositivos<br />
institucionalizados de classificação, evidenciando que os sistemas<br />
de organização <strong>da</strong>s coisas e do conhecimento - não obstante aten<strong>da</strong>m<br />
à necessi<strong>da</strong>de humana de <strong>da</strong>r sentido à multiplici<strong>da</strong>de e ao<br />
caos do mundo - são também mecanismos legitimados pela lógica<br />
burocrática do mundo moderno e contemporâneo, com a função<br />
de ordenar, controlar, hierarquizar e rotular nossa vi<strong>da</strong> cotidiana.<br />
Sob esse prisma, são exemplares os poemas drummondianos que<br />
recriam - por vias muitas vezes insólitas - inventários jurídicos,<br />
receitas e bulas de remédio, instruções para uso de produtos, ca<strong>da</strong>stros<br />
e listas administrativas, apólices, classificados <strong>da</strong>s páginas
284 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
amarelas, levantamentos estatísticos e descrições imobiliárias, com<br />
o propósito de criticar tais formas de controle e, ao mesmo tempo,<br />
desestabilizá-Ias pela força <strong>da</strong> poesia.<br />
Soma-se ain<strong>da</strong> a esse exercício irônico que Drummond<br />
faz <strong>da</strong>s classificações um outro gesto taxonômico, de ordem um<br />
tanto distinta: o de registrar/catalogar as coisas e lembranças do<br />
passado, conferindo-lhes o papel de "testemunhos" (aqui, no sentido<br />
arqueológico do termo) de um tempo irrecuperável, de modo<br />
a fazê-las durar, como diria Jorge Luis Borges, "para além do<br />
nosso esquecimento". Isso confere a muitos dos inventários e catálogos<br />
drummondianos também um traço afetivo, <strong>da</strong>do que eles<br />
acabam por compor uma espécie de narrativa íntima <strong>da</strong> história<br />
do próprio poeta e de seus diversos "eus" ou personagens poéticos.<br />
Nesse sentido, pode-se dizer que tais inventários configurariam<br />
o que Philip Blom, no livro Ter e manter- uma história íntima<br />
de colecionadores e coleções, chamou de "teatro <strong>da</strong> memória,<br />
uma dramatização e uma mise-en-scene de passados pessoais e<br />
coletivos, de uma infância relembra<strong>da</strong> e <strong>da</strong> lembrança após a morte".<br />
1 Isso porque eles garantem a permanência dessas lembranças<br />
ao fixarem em um espaço comum os objetos que as evocam.<br />
Um olhar diacrônico pela vasta produção poética de<br />
Drummond permite-nos identificar esses procedimentos em várias<br />
fases de sua poesia, o que atesta o impulso catalogador<br />
drummondiano como uma <strong>da</strong>s linhas de força de sua obra. Já em<br />
Alguma poesia, de 1930, o levantamento de objetos que circun<strong>da</strong>m<br />
existências ou definem paisagens íntimas de pessoas se faz<br />
ver, como no poema "Família", no qual a listagem de todos os<br />
elementos que fazem parte do universo prosaico de uma famíl ia é<br />
o que justifica a existência <strong>da</strong>s próprias pessoas <strong>da</strong> casa. Papagaio,<br />
gato, cachorros, galinhas, móveis, aparelhos, cigarros, bilhetes<br />
integram o espaço <strong>da</strong> casa, convertidos em referências vitais<br />
de um pequeno grupo composto de três meninos, duas meninas,<br />
uma cozinheira, uma copeira e "uma mulher que trata de<br />
tudo". Procedimento esse que, em A rosa do povo (1945), se mostra<br />
de maneira mais clara, haja vista a enumeração caótica de tudo o<br />
que, segundo o poeta, define o presente do mundo de "homens<br />
partidos", no poema "Nosso tempo"; a bela seqüência dos traços<br />
que restam do medo, do asco, dos gritos gagos e <strong>da</strong> rosa, em<br />
"Resíduo"; os registros administrativos <strong>da</strong> "Noite <strong>da</strong> repartição",<br />
lBLOM, Philipp. Ter e manter<br />
- uma história íntima de<br />
colecionadores e coleções.<br />
Trad. Berilo Vargas. Rio de<br />
Janeiro: Record, 2003, p. 219.
As ironias <strong>da</strong> ordem: Carlos Drummond de Andrade e Pemando Pessoa<br />
285<br />
2GOODY.Jack.The<br />
domestication of the savage<br />
mind. Cambridge: Cambridge<br />
University Press. 1995. p.74-111.<br />
dentre outras enumerações de coisas e palavras varia<strong>da</strong>s. Isso,<br />
para não mencionar o rol de palavras do poema "Isso é aquilo",<br />
de Lição de coisas (1962), que coloca em evidência a lista como<br />
um dispositivo taxonômico importante, capaz de reforçar o caráter<br />
paratático <strong>da</strong> linguagem poética.<br />
Vale lembrar que o ato de inserir palavras, objetos, animais,<br />
eventos e nomes de pessoas em listas foi uma <strong>da</strong>s primeiras práticas<br />
taxonômicas de que se tem notícia nas civilizações alfabetiza<strong>da</strong>s,<br />
figurando como o procedimento arquivista mais elementar<br />
advindo <strong>da</strong> influência <strong>da</strong> escrita nas operações cognitivas. Como<br />
explica Jack Goody2 , a história documenta<strong>da</strong> dos primeiros séculos<br />
<strong>da</strong>s culturas escritas mostra que as listas floresceram exatamente<br />
nesse período, tomando a forma de longas tiras feitas de<br />
madeira, pedra, argila, pe<strong>da</strong>ços de pano ou qualquer outro material<br />
sólido, nas quais eram grava<strong>da</strong>s as palavras em série, com<br />
diferentes propósitos: desde a simples nomeação <strong>da</strong>s coisas até<br />
um levantamento mais exaustivo destas. Listas administrativas,<br />
funerárias, literárias, religicsas e lexicais são encontra<strong>da</strong>s em várias<br />
culturas antigas, sendo que algumas já funcionam como uma<br />
espécie de protodicionários ou enciclopédias embrionárias. Muitas<br />
cobriam um vasto campo de observações astronômicas, climáticas,<br />
medicinais. Outras, de caráter lúdico ou didático, já consistiam<br />
no levantamento de nomes de pessoas ou coisas começados<br />
com uma determina<strong>da</strong> letra do alfabeto.<br />
Ao adotar a estrutura de lista/catálogo em alguns de seus<br />
poemas, como o "Isso é aquilo", Drummond confere um sentido<br />
lúdico ao ato de listar, ao mesmo tempo em que deste subtrai a<br />
dimensão meramente pragmática, de ordenação, inserindo-o no<br />
espaço móvel e cambiante <strong>da</strong> poesia. Além disso, cria uma configuração<br />
alternativa para o poema, assenta<strong>da</strong> em princípios<br />
paratáticos e que tem no jogo continui<strong>da</strong>de/descontinui<strong>da</strong>de a sua<br />
base. Se to<strong>da</strong> lista é contínua, isso acontece porque enumera, apresenta<br />
as palavras em seqüência. Mas por não oferecer nexos sintáticos<br />
entre as palavras lista<strong>da</strong>s, caracteriza-se também pela<br />
descontinui<strong>da</strong>de. Seus traços constitutivos são, portanto, paradoxais,<br />
como aponta ain<strong>da</strong> Goody, ao arrolar em um parágrafo as<br />
principais características de uma lista:<br />
A lista aposta mais na descontinui<strong>da</strong>de do que na continui<strong>da</strong>de;
286 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
ela depende de um lugar físico, de uma local; ela pode ser li<strong>da</strong><br />
em diferentes direções, de cima para baixo, de baixo para cima,<br />
<strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> para a direita e vice-versa; ela possui um começo<br />
bem marcado e um fim preciso, ou seja, uma margem, uma<br />
bor<strong>da</strong>, como uma tira de pano. E o que é mais importante, ela<br />
estimula a ordenação dos itens de que se compõe, através de<br />
números, pelo som inicial, por categoria, etc. Além disso, a<br />
existência de margens, externas e internas, traz grande visibili<strong>da</strong>de<br />
para as categorias, ao mesmo tempo em que as toma mais<br />
abstratas 3 •<br />
Pode-se dizer que a lista, como dispositivo paradoxal, foi<br />
usa<strong>da</strong> de diferentes formas por Drummond em A falta que ama<br />
(1968) -livro em que a poética do inventário (em todos os sentidos<br />
apontados no início deste texto) se dá a ver de forma mais explícita.<br />
Basta citarmos o poema "Bens e vária fortuna do padre Manuel<br />
Rodrigues, inconfidente'''' ,que apresenta uma espécie de assemblage<br />
de objetos, ou como disse José Guilherme Merquior, "um readymade<br />
lírico tipicamente surreal-modernista", em que a listagem dos<br />
bens materiais de um clérigo ("inimigo <strong>da</strong> Rainha / a perpétuo degredo<br />
condenado") mantém as coisas em um estado de concretude irônica,<br />
para não dizer inusita<strong>da</strong>, como se pode ver no fragmento de um<br />
dos dois inventários dos bens do padre inconfidente:<br />
'Idem,p .. 81.<br />
"To<strong>da</strong>s as citações de poemas de<br />
Drununond foram extraí<strong>da</strong>s de:<br />
ANDRADE, Carlos Drununond<br />
de. Poesia eprosa. Rio de Janeiro:<br />
Nova Aguilar, 1988.<br />
3 manustérgios<br />
1 corporal<br />
1 brinco com olhinhos de mosquito<br />
2 sanguinhos 3 amitos<br />
1 casaca de lemiste forra<strong>da</strong> de tafetá roxo<br />
1 ângulo<br />
3 tomos de Cartas de Ganganelli<br />
2 chapinhas de ouro de pescocinho<br />
4 manípulos<br />
2 casulas<br />
1 lacinho de prata com pedras amarelas<br />
1 leito grande de pau preto torneado<br />
1 mantelete<br />
1 bacia grande que terá de peso meia arroba<br />
1 dita pequena de urinar<br />
1 tomo de Obras Poéticas de Garção<br />
( ... )<br />
(p.357)
As ironias <strong>da</strong> ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa<br />
287<br />
'ARTIERES, Philippe.<br />
Arquivar a própria vi<strong>da</strong> In:<br />
Arquivos pessoais. Revista<br />
Estudos Históricos. Rio de<br />
Janeiro: Ed. FGV, vol. 11, n°.<br />
21,1998, p.3. Disponível em:<br />
http://www.cpdoc.fgv.br/<br />
<strong>revista</strong>JarQ/234.<strong>pdf</strong> (última<br />
consulta: 30/03n006).<br />
Sem dúvi<strong>da</strong>, se o conjunto dos bens do padre diz algo de<br />
quem os possui, <strong>da</strong>do o sabido poder que as coisas têm de evocar<br />
nossas referências e gostos particulares, a seleção e a ordenação<br />
dos objetos na lista funcionam como formas de arquivamento <strong>da</strong><br />
própria existência do "personagem", j á que, como apontou Philippe<br />
Artieres em suas reflexões sobre a constituição de arquivos particulares,<br />
"a escolha e a classificação dos acontecimentos determinam<br />
o sentido" que se deseja <strong>da</strong>r a uma vi<strong>da</strong>.5 Por outro lado. a<br />
estranheza <strong>da</strong>s palavras que nomeiam muitos dos objetos <strong>da</strong> lista<br />
acaba por funcionar como elemento de humor, capaz de abalar a<br />
função pragmática (ou burocrática) do inventário, inserindo-o na<br />
esfera <strong>da</strong> invenção.<br />
Em muitos outros poemas de livros subseqüentes ao AJalta<br />
de ama, há inumeráveis listas de objetos, como a dos trastes "para<br />
não serem consertados" (tamborete, marquesa, catre, selins, caçambas,<br />
embornais, cangalhas, etc.) em um compartimento de uma<br />
loja fecha<strong>da</strong>, no poema "Depósito"; o extenso rol de coisas (que<br />
vão de se<strong>da</strong>s ajornais e rondós parnasianos) que constitui o que o<br />
poeta chama, não sem certa ironia, de "Império Mineiro"; os artefatos<br />
que circun<strong>da</strong>m e definem a "vi<strong>da</strong>lvidinha" de uma solteirona;<br />
a lista <strong>da</strong>s mais de cem namora<strong>da</strong>s mortas no poema<br />
"Retrolâmpago de amor visual"; além <strong>da</strong> série de selos de uma<br />
coleção (no poema "O prazer filatélico"), a qual é capaz de permanecer<br />
apenas até que chegue ao colecionador "o tédio de possuir".<br />
Registre-se ain<strong>da</strong> o poema "Escaparate", de Boitempo (1968)<br />
no qual a relação de objetos dispostos sobre um armário sugere<br />
to<strong>da</strong> a atmosfera de doença que predomina no quarto antigo de<br />
alguém na iminência <strong>da</strong> morte:<br />
Sobre o escaparate<br />
preto<br />
o vidro de óleo de rícino<br />
a caixinha de cápsulas<br />
o copo facetado e<br />
a colher inclina<strong>da</strong>.<br />
Sobre o escapara te<br />
o relógio de algibeira<br />
o bentinho vermelho<br />
e o terço <strong>da</strong> aflição<br />
a chama
288 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
<strong>da</strong> vela de espermacete vigiando<br />
no castiçal de prata.<br />
Dentro do escaparate<br />
o ágate expectante do penico.<br />
Em volta do escaparate<br />
a negra cólica <strong>da</strong> noite - Estou morrendo.<br />
(p.490-491)<br />
No caso específico desse poema, o inventário de coisas atesta<br />
a vi<strong>da</strong> (e também a morte) do sujeito que as possui ou a que elas<br />
se subordina, reiterando, por vias poéticas, aquilo que Jean<br />
Baudrillard afirmou a propósito dos objetos de uma coleção, ou<br />
seja, que os "distintos do modo como deles fazemos uso em um<br />
<strong>da</strong>do momento, representam algo muito mais profun<strong>da</strong>mente relacionado<br />
à subjetivi<strong>da</strong>de 6. O que, inclusive, já havia sido, muito<br />
antes, atestado por Walter Benjamin em seu famoso ensaio sobre<br />
a arte de colecionar, ao mostrar que o colecionador é aquele que<br />
instaura "uma relação com as coisas que não põe em destaque o<br />
seu valor funcional ou utilitário, a sua serventia, mas as estu<strong>da</strong> e<br />
as ama como o palco, como o cenário de seu destino" 7. Creio ser<br />
esta a relação de Drummond com muitos dos objetos que ele arrola<br />
em sua poesia, como se estes tivessem a potenciali<strong>da</strong>de de<br />
narrar uma vi<strong>da</strong>, a qual também pode ser compreendi<strong>da</strong> pelo uso<br />
ou desuso que se faz dela. E é nesse sentido que caberia aqui uma<br />
breve referência ao escritor francês Georges Perec, exímio "colecionador",<br />
para quem os objetos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana narram a história<br />
<strong>da</strong>s pessoas e lhes servem de memória.<br />
Afeito a verbetes de enciclopédia, levantamentos estatísticos,<br />
glossários, dentre outras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des c1assificatórias, Perec<br />
- que foi um dos mais ativos integrantes do grupo francês OULIPO<br />
(Ouvroir de Littérature Potentielle), surgido nos anos 60 -<br />
reinventou esses procedimentos em seus romances, a partir de<br />
critérios incomuns de ordenação. Além disso, desenvolveu uma<br />
instigante teorização não-convencional dos sistemas de classificação<br />
no livro Penser/Classer, evidenciando "o quão tentador é o<br />
afã de distribuir o mundo inteiro segundo determinados códigos<br />
capazes de reger o conjunto dos fenômenos" 8, embora saibamos<br />
que "lamentavelmente não funciona, nunca funcionou, nunca funcionará".<br />
Ou seja, ele reconhece o fascínio do ato de classificar ao<br />
6BAUDRILLARD, Jean. O<br />
sistema dos objetos. Trad.<br />
Zulmira Ribeiro Tavares. São<br />
Paulo: Perspectiva, 2000, p. 94.<br />
'BENJAMIN, Walter. Desempacotando<br />
minha biblioteca.<br />
Obras escolhi<strong>da</strong>s 11 - Rua de<br />
mão única. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1987, p. 28.<br />
• PEREC, Georges. Penser/<br />
classer. Paris: Éditions du<br />
Seuil, 2003, p. 153.
As ironias <strong>da</strong> ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa 289<br />
9 Idem, p. 190.<br />
IOPEREC, Georges. A vi<strong>da</strong> -<br />
modo de usar. Trad. Ivo<br />
Barroso. São Paulo: Companhia<br />
<strong>da</strong>s Letras, 1991.<br />
IICf. MACIEL, Maria Esther. A<br />
memória <strong>da</strong>s coisas: ensaios<br />
de literatura, cinema e artes<br />
plásticas. Rio de Janeiro:<br />
Lamparina, 2004, p. 97-\09.<br />
mesmo tempo em que proclama a instabili<strong>da</strong>de dos critérios<br />
classificatórios. Mas admitir tal instabili<strong>da</strong>de, segundo ele, "não<br />
impedirá que sigamos durante muito tempo classificando os animais<br />
pelo seu número ímpar de dedos ou por seus chifres ocos" 9 .<br />
E é a consciência desse paradoxo que o leva a adotar o humor e a<br />
ironia para subtrair <strong>da</strong> classificação suas funções utilitárias, libertando-a<br />
para usos imaginativos.<br />
No romance Vi<strong>da</strong> modo de usa rIo ,o escritor conta a vi<strong>da</strong> de<br />
seus personagens a partir <strong>da</strong>s coisas que os rodeiam, detalhando<br />
tudo o que define e compõe o prédio que habitam, além de se<br />
valer de vários recursos taxonômicos como base <strong>da</strong> narrativa.<br />
Cadeiras, armários, cabides, estantes, livros, cômo<strong>da</strong>s, objetos de<br />
arte, relíquias, malas, latas, utensílios domésticos, produtos de limpeza,<br />
dentre inúmeros outros artefatos que confirmam o triunfo<br />
<strong>da</strong> civilização <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de e do consumo, são exaustivamente<br />
listados e descritos por ele, compondo um inventário que - pelo<br />
excesso de ordem - acaba também por perder sua própria eficácia<br />
ordenadora diante <strong>da</strong> proliferação excessiva dos objetos e detalhes.<br />
Para o escritor, se, por um lado, a vi<strong>da</strong> foi reduzi<strong>da</strong> a manuais<br />
de instrução, as coisas, por outro, em seu poder de se integrar<br />
ao mundo humano, são capazes também de funcionar como registro<br />
sólido e incontestável de nossa presença na terra. O que, como<br />
já foi dito, também se confirma na poesia de Drummond.<br />
Aliás, a descrição de objetos cotidianos que constituem o<br />
espaço de uma casa ou de um edifício também se faz presente em<br />
vários poemas drummondianos, como já tive a oportuni<strong>da</strong>de de<br />
mostrar em um ensaio de 2004"\1 . Sob esse prisma, vale a pena<br />
citar aqui o poema "Torre sem degraus", um poema em prosa que<br />
encerra o A falta que ama, totalmente estruturado enquanto uma<br />
sucessão de fragmentos enumerados, ca<strong>da</strong> um correspondendo<br />
ao an<strong>da</strong>r do prédio que nos é apresentado. Lembrando, ain<strong>da</strong> que<br />
obliquamente, o edifício de Perec, a torre infinita de Drummond<br />
funciona como um catálogo de objetos, pessoas, animais, acontecimentos,<br />
textos, documentos, dentre outras coisas, aparentemente<br />
organizado pelos caracteres numéricos. Entretanto, o absurdo que<br />
dele emerge acaba por arruinar' a ordem <strong>da</strong> enumeração, convertendo-a<br />
em uma espécie de "deri va aleatória", para usar aqui uma<br />
expressão de Flora Sussekind.<br />
Classificar converte-se, assim, em uma forma paradoxal de
290 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, 0.9, 2006<br />
o poeta burlar os próprios procedimentos legitimados de classificação,<br />
já que para ele, se as coisas podem ser postas em ordem<br />
segundo certos princípios reconhecidos cientificamente, elas podem<br />
também deixar-se reger internamente por uma "ordem mu<strong>da</strong>",<br />
movi<strong>da</strong> por regras estranhas ou regra nenhuma.<br />
É preciso desconfiar <strong>da</strong>s classificações, ele parece...,-os dizer.<br />
Sobretudo quando elas são coloca<strong>da</strong>s a serviço do poder econômico<br />
e político, como os classificados de jornais e pág:nas amarelas,<br />
os recenseamentos, os anuários estatísticos e as fichas<br />
ca<strong>da</strong>strais. Isso se explicita em poemas como "Jornal de serviçoleitura<br />
em diagonal nas 'páginas amarelas' , composto de nove listas<br />
de produtos à ven<strong>da</strong>, sejam eles pessoas (a exemplo dos "peritos<br />
em exames de documentos ou em imposto de ren<strong>da</strong>"), sejam<br />
doenças, condimentos, máquinas e fogos de artifício. Em "Receituário<br />
sortido", é a vez <strong>da</strong>s receitas médicas, com listas lúdicas e<br />
irônicas de remédios para os tensos, insones, píssicos e ansiosos<br />
do Brasil moderno. O tom pragmático, próprio dos boletins<br />
metereológicos e estatísticos, é o que predomina também em<br />
"Diamundo - 24h de informação na vi<strong>da</strong> do jornaledor", em que<br />
são arrolados nomes e temperaturas de várias ci<strong>da</strong>des do mundo,<br />
índices de poluição, anúncios imobiliários, indicadores econômicos,<br />
censos de casos de afogamento, previsões astrológicas, numa<br />
níti<strong>da</strong> alusão paródica aos clichês taxonômicos dos diários, boletins<br />
e informativos institucionais do mundo contemporâneo.<br />
Inventariar aqui todos os poemas em que Drummond burla,<br />
com suas classificações paradoxalmente antitaxonômicas, os discursos<br />
oficiais e os clichês do discurso burocrático-institucional<br />
seria um trabalho exaustivo. O fato é que ele, ao construir sua<br />
poética do inventário, não deixa de se inserir em uma instigante<br />
linhagem de escritores modernos/contemporâneos, como Borges,<br />
Calvino e Perec, que se valem dos sistemas de classificaçã%rdenação<br />
para criarem seus próprios anti-sistemas, os quais<br />
desestabilizam a própria lógica ordenadora que os define. Uma<br />
linhagem na qual poderia se inserir também, em certa medi<strong>da</strong>, o<br />
português Fernando Pessoa que, ao adotar ostensivamente em seus<br />
ensaios e contos esquemas de c,.tegorização científica, converte o<br />
excesso de ordenação no que Philip Blom chamaria de "caóticas<br />
conflagrações de curiosi<strong>da</strong>des". 12 Para não falar nas listas<br />
heteróclitas que compõem os longos poemas de Álvaro de Cam-
As ironias <strong>da</strong> ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa<br />
291<br />
l' BLOM, Philipp. Ter e<br />
manter - urna história íntima<br />
de colecionadores e coleções.<br />
Trad. Berilo Vargas. Rio de<br />
Janeiro: Record, 2003, p.1 07.<br />
13 PESSOA, Fernando. Obra<br />
poética. Rio de Janeiro: Nova<br />
Aguilar, 1982, pp. 706-708.<br />
pOS, que à feição <strong>da</strong> poesia de Walt Whitman, estariam naquela<br />
categoria defini<strong>da</strong> por Leo Spitzer como enumeração caótica. Aliás,<br />
ao criar to<strong>da</strong> a sua constelação heteronímica, com descrições, demarcações,<br />
mapas e classificações, não estaria Pessoa também<br />
criando um inventário dos outros de si mesmo<br />
No que se refere especificamente à sua prosa, é impressionante<br />
a proliferação de dispositivos classificatórios metodicamente<br />
ordenados em caracteres alfanuméricos e com divisões/subdivisões<br />
em várias categorias. Em praticamente to<strong>da</strong> a sua teorização<br />
do Sensacionismo, esse aparente rigor na formulação dos pressupostos<br />
estéticos do movimento se impõe, como que <strong>da</strong>ndo um<br />
revestimento científico, racional, a idéias e dizeres muitas vezes<br />
insólitos e paradoxais. O que se repete de forma mais explícita no<br />
Heróstrato, um ver<strong>da</strong>deiro tratado sobre a celebri<strong>da</strong>de, o talento<br />
e o gênio, cheio de tipologias, divisões e tripartições que, pelo<br />
acúmulo, acabam por beirar a desordem, como, por exemplo, a<br />
classificação que ele faz dos homens célebres, considerando os<br />
tipos frustrados e os tipos imperfeitos. Mas é no interessantíssimo<br />
fragmento "Um paranóico com juízo" 13, tido como um texto preparatório<br />
<strong>da</strong> "novela policiária" O caso Vargas, que o rigor excessivo<br />
<strong>da</strong>s categorizações é levado aos limites (ou deslimites) do<br />
llOllsense. Com o propósito de descrever e analisar a patologia de<br />
um criminoso, Pessoa constrói o retrato de um assassino, com<br />
base em uma detalha<strong>da</strong> pesquisa taxonômica do comportamento<br />
humano, que inclui:<br />
"(1) Tipo de inibição: a) receio (não), b) moral (não), (c) fraqueza<br />
de vontade (sim). (2) Fraqueza de vontade: (a) <strong>da</strong> vontade<br />
impulso (sim), (b) <strong>da</strong> vontade de inibição (não), (c) <strong>da</strong> vontade<br />
de coordenação (não) - disposição às avessas destas (isto<br />
é, b, c, a). (3) Fraqueza <strong>da</strong> vontade do impulso de fraqueza: (a)<br />
por debili<strong>da</strong>de mórbi<strong>da</strong>, como no idiota ( ... ) (b) por debili<strong>da</strong>de<br />
constitucional, como no vadio ... (c) por excesso de ativi<strong>da</strong>de<br />
mental. ( ... )" (p. 706-707)<br />
As subdivisões se seguem vertiginosamente, apresentando<br />
modelos de "ativi<strong>da</strong>de mental que produz a falta de vontade de<br />
impulso", tipos gerais de concentração, tipos de concentração<br />
emotiva, de emoção repulsiva, de emoção defensiva, etc., até chegar<br />
a uma espécie de emoção que "tem o temperamento paranói-
292 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
co no fundo com o ocasional na superfície". 14 E o narrador explica<br />
esta última categoria como "um paranóico inteiramente lúcido,<br />
isto é, tem todos os característicos <strong>da</strong> paranóia, menos o delírio<br />
central, que de fato constitui a paranóia." E, entre parênteses, acrescenta:<br />
"(Se me é permitido usar de um paradoxo, direi, em conclusão<br />
desta série de raciocínios, que o autor deste crime é um<br />
paranóico com juízo)" .15 Os limites desse texto inclassificável -<br />
que aparece como um "conto de raciocínio", mas prescinde de um<br />
enredo e se furta às demarcações do gênero narrativo - se circunscrevem<br />
unicamente a essa classificação inusita<strong>da</strong>, a qual acaba<br />
por instaurar o caos dentro <strong>da</strong> própria ordenação que a define.<br />
Em decorrência <strong>da</strong> proliferação dos detalhes e subdivisões, as próprias<br />
categorias científicas (ou falsamente científicas) perdem a<br />
eficácia enquanto procedimento taxonômico e revelam sua inevitável<br />
arbitrarie<strong>da</strong>de. Assim, movido pelo "demônio <strong>da</strong> classificação",<br />
Pessoa opta por categorias que se sucedem, mas sem que<br />
delas o leitor deduza com clari<strong>da</strong>de nenhuma idéia de sistema. É<br />
nesse sentido que, em oblíqua convergência com a poética<br />
drummondiana do inventário, Pessoa atesta ironicamente o dizer<br />
de Walter Benjamin, segundo o qual "to<strong>da</strong> ordem é uma situação<br />
oscilante à beira do precipício" 16. Ou - poderíamos acrescentar,<br />
parafraseando Perec - que a ordem e a desordem, em seus limites,<br />
não deixam de ser duas palavras que designam por igualo acaso.<br />
14 Idem, p. 708.<br />
!5 Idem, p. 708.<br />
16 BENJAMIN, Walter. Desempacotando<br />
minha biblioteca.<br />
Obras escolhi<strong>da</strong>s II - Rua de<br />
mão única. São Paulo:<br />
Brasiliense, 1987, p. 28.
293<br />
• Esse artigo faz parte <strong>da</strong><br />
pesquisa de pós-doutorado<br />
financia<strong>da</strong> pela Capes em 2003/<br />
2004.<br />
Lendo e re-escrevendo o passado:<br />
Shakespeare apaixonado*<br />
Tha"IS Flores Nogueira Diniz<br />
(UFMG)<br />
I Como não há, em Português,<br />
um correspondente para<br />
"heritage film", o termo será<br />
conservado no original inglês.<br />
A palavra "heritage", entretanto,<br />
está sendo traduzi<strong>da</strong>, no<br />
texto, por "patrimônio".<br />
2 Um objeto, costume ou quali<strong>da</strong>de<br />
que perdura por muitos<br />
anos dentro de uma nação,<br />
grupo social, ou família,<br />
considerado importante e de<br />
valor, e pertencente a todos os<br />
membros.<br />
3Existe uma organização<br />
britânica, a "National Heritage",<br />
cuja responsa-bili<strong>da</strong>de é destinar<br />
recursos <strong>da</strong> National Heritage<br />
Memorial Fund aos museus e<br />
outras instituições, com o fim de<br />
ajudá-los a adquirir obras de<br />
arte e edificações de interesse<br />
histórico, ou conservá-los em<br />
boas condições. O dinheiro<br />
usado vem <strong>da</strong> Loteria Nacional<br />
do Reino Unido.<br />
Esse trabalho visa estu<strong>da</strong>r as relações entre o filme de John<br />
Madden, Shakespeare in Love - traduzido no Brasil por<br />
Shakespeare Apaixonado - e o passado histórico <strong>da</strong> Inglaterra, o<br />
que o caracteriza como um "heritage film"l ,<br />
Segundo o Longman Dictionary of English Language and<br />
Culfure, o termo" heritage" significa "an object, cus tom or quality<br />
which is passed down over many years within a nation, social group,<br />
or family, and is thought of as something valuable and important<br />
which belongs to all its members"2, De acordo com essa definição,<br />
qualquer coisa estaria situa<strong>da</strong> dentro do conceito de "heritage",<br />
Em 1983, quando o contexto deixava implícito que o que se queria<br />
preservar eram monumentos, grupos de construções e locais<br />
de valor universal, importantes do ponto de vista <strong>da</strong> História, <strong>da</strong><br />
Arte ou <strong>da</strong> Ciência, uma outra conceituação, proposta pela First<br />
National Heritage Conference, estabeleceu que o termo deveria<br />
referir-se ao que a geração passa<strong>da</strong> preservou e transferiu para a<br />
nossa geração do presente, e que um grupo significativo <strong>da</strong> população<br />
deseja transmitir para a do futuro. A partir de então, o termo<br />
ganhou reconhecimento oficial, sendo a criação de duas enti<strong>da</strong>des<br />
- a Historic Buildings and Monuments Commissionfor England<br />
ou "English Heritage" e a National Heritage Memorial Fund -<br />
exemplo concreto desse reconheciment0 3 •<br />
O que se vem preservando para as gerações posteriores tornou-se<br />
um dos objetos de interesse <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de moderna. Gastase<br />
muito tempo hoje olhando para trás, na tentativa de recapturar<br />
o passado, muitas vezes considerado superior ao caótico mundo<br />
atual. Esse interesse, uma espécie de nostalgia, deu origem ao
294 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
desenvolvimento <strong>da</strong> "heritage industry", ou "indústria do<br />
patrimônio histórico", cuja ativi<strong>da</strong>de, que vem se tornando lucrativa<br />
desde os anos 70, propiciou a multiplicação dos museus, a<br />
popularização dos "Centros de Tradição" em locais históricos, o<br />
entusiasmo crescente pela recuperação de velhas máquinas, e um<br />
aumento visível <strong>da</strong>s visitas anualmente realiza<strong>da</strong>s a abadias, mansões<br />
e re-construções do passado. Sua posterior adoção pelo turismo<br />
e lazer serviu como um meio de renovação e valorização<br />
<strong>da</strong>s atrações turísticas.<br />
O objetivo do estudo <strong>da</strong> "heritage" é investigar a maneira<br />
pela qual o passado está sendo usado, apropriado e consumido na<br />
cultura contemporânea. Sua abrangência vai desde os desenhos<br />
animados do Pato Donald, as expectativas dos visitantes de museus,<br />
a representação <strong>da</strong> "Englishness" nas eleições de 1996, até a<br />
formação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de nacional e a preocupação com o currículo<br />
<strong>da</strong>s escolas. Entre as inúmeras iniciativas toma<strong>da</strong>s na Inglaterra<br />
para esse fim, estão a reconstrução do teatro The Globe, em local<br />
próximo ao seu lugar de origem, e o projeto de reconstrução do<br />
The Rose. Algumas outras, menos visíveis, se resumem na mu<strong>da</strong>nça<br />
de enfoque <strong>da</strong>s obras de arte, entre elas, os filmes.<br />
O cinema inglês nas duas últimas déca<strong>da</strong>s se concentrou<br />
numa espécie de cinema baseado no filme de costumes, comprometido<br />
com a maneira como a herança e a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Inglaterra,<br />
ou a chama<strong>da</strong> "Englishness", deve ser compreendi<strong>da</strong>. Esses<br />
filmes, encenados no passado, em reconstruções de período detalha<strong>da</strong>s<br />
e visualmente espetaculares, contam a história <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e do<br />
passado <strong>da</strong> Inglaterra (HIGSON, 2003, p. 1). Nos anos 80 e 90,<br />
diferenciados pelo assunto, fonte, pessoal de produção e elenco, e<br />
com ênfase na identi<strong>da</strong>de cultural nacional, foram rotulados de<br />
"heritage films". O termo emergiu, pois, num contexto cultural<br />
particular recente para servir a um propósito especial: a<br />
mercantilização do passado, produto de uma economia que veio a<br />
se denominar "indústria do patrimônio histórico".<br />
Segundo estudiosos, o termo "heritage film" refere-se ao<br />
cinema de costumes, produzido nos últimos 20 anos, baseado em<br />
clássicos populares, inclusive Shakespeare. Mesmo não sendo<br />
originários de obras literárias, os filmes assim denominados recorrem<br />
a uma herança cultural popular que inclui figuras e momentos<br />
históricos, e também música e pintura. Normalmente pro-
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado 295<br />
4Veraesserespeito:<br />
HIGSON, 2003; MONK, 2002.<br />
'Ver bibliografia adequa<strong>da</strong>:<br />
HIGSON, 2003; MONK, 1995;<br />
MONK, 2002; VINCENDEAU,<br />
200 1; MURPHY, 2000.<br />
duzidos com orçamento elevado, por diretores famosos que usam<br />
no elenco astros também famosos, apresentam trabalho elaborado<br />
de câmara e iluminação e recorrem a muitas mu<strong>da</strong>nças de cenário,<br />
a design de interior bem pesquisado, e à música clássica ou<br />
nela inspira<strong>da</strong>. A mise-en-scene abun<strong>da</strong>nte expõe a burguesia ou<br />
aristocracia. Para Vincendeau (2001), esse tipo de filme não constitui<br />
propriamente um gênero. Exceto pela presença de vestuário<br />
<strong>da</strong> época, não se define por uma iconografia unifica<strong>da</strong>, nem por<br />
um tipo definido de narrativa ou de efeito, podendo incluir elementos<br />
de outros gêneros como comédias, números musicais e<br />
características góticas ou de romance. Apesar dessa varie<strong>da</strong>de,<br />
"heritage film" se transformou em um termo crítico que tem despertado<br />
debates importantes 4 •<br />
Com base na definição provisória acima, compila<strong>da</strong> a partir<br />
de trabalhos de alguns estudiosos5 , pode-se classificar o filme de<br />
John Madden como um "heritage film" por várias razões. Primeiro,<br />
porque retoma, em versão mais moderna, o estilo dos filmes<br />
de época, revigorando-o e procurando atrair novas audiências.<br />
Segundo, porque, em vez de simplesmente investigar o passado,<br />
tem como objetivo principal celebrá-lo. Finalmente, porque o filme<br />
está recheado de alusões visuais e textuais, ao descrever aspectos<br />
<strong>da</strong> era elizabetana, particularmente o teatro, com seu personagem<br />
principal, Will/William Shakespeare.<br />
No filme, são usa<strong>da</strong>s várias estratégias para retomar o passado,<br />
entre elas, a reconstrução do cenário, as citações a obras<br />
anteriores, a atualização de figuras históricas e, principalmente, a<br />
referência aos mitos em tomo <strong>da</strong> figura do dramaturgo.<br />
O cenário do filme permite aos espectadores uma<br />
reconstituição impressionante <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de no século XVII, especificamente<br />
<strong>da</strong> margem do Tâmisa, com seus teatros e habitantes. Os<br />
produtores descartaram a filmagem em Stratford-upon-Avon e<br />
construíram sua versão <strong>da</strong> Londres de 1593, num jardim ao fundo<br />
dos estúdios. Os cento e quinze homens que trabalharam na construção<br />
do cenário levaram oito semanas para edificar os dezessete<br />
prédios, incluindo dois teatros, um bordel, uma taverna, uma praça<br />
e o sótão onde vivia Shakespeare. São realmente esplêndi<strong>da</strong>s<br />
essas réplicas de ruas, estalagens e teatros que recapturam, de<br />
maneira bastante viva, o alvoroço <strong>da</strong> Londres de Shakespeare.<br />
Outros locais onde as filmagens aconteceram foram o Broughton
296 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Castle em Oxford, para a mansão de Viola, o Hatfield House,<br />
para o Palácio de Greenwich e o Great Hall, em Middle Temple,<br />
para o Banqueting Hall, em Whitehall. Por outro lado, as cenas<br />
no Tâmisa foram to<strong>da</strong>s filma<strong>da</strong>s no próprio rio, e a praia, onde<br />
Viola consegue chegar sobrevivendo ao naufrágio, ao fim do filme,<br />
é a de Holkham, em Norfolk 6 • Assim, construções e locais de<br />
valor universal importante do ponto de vista <strong>da</strong> História foram<br />
convincentemente usados na modernização dos fatos.<br />
A segun<strong>da</strong> estratégia para a retoma<strong>da</strong> do passado é a alusão<br />
a obras anteriores. Para realizá-la, Madden estiliza várias cenas,<br />
apropriando-se de aspectos de coreografia, cenário e interpretações<br />
de filmes anteriores. A citação do filme de Laurence Olivier,<br />
Henry V (1944), se dá quando uma toma<strong>da</strong> panorâmica nos leva<br />
até os detalhes do teatro, que vão surgindo gradualmente, fazendo-nos<br />
reconhecer o The Rose, teatro irmão do The Globe. Entre<br />
as cenas do filme de Franco Zeffirelli, Romeu e Julieta, (1968), a<br />
escolhi<strong>da</strong> foi a do memorável salão de baile, onde os jovens se<br />
encontram pela primeira vez. Porém a mais efetiva é a que dá<br />
início ao filme de Trevor Nunn, Twelfth Night, (1996), que retrata<br />
o naufrágio do navio a caminho do Novo Mundo, cena inseri<strong>da</strong> ao<br />
final de Shakespeare Apaixonado. Ela sugere que a continui<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira história do casal de amantes se encontra na comédia<br />
Twelfth Night, que Will, a mando <strong>da</strong> Rainha e na tentativa de tornar<br />
Viola imortal, se propõe a escrever. "Você jamais envelhecerá<br />
para mim, nem murchará, nem morrerá (Norman 150)" diz Will 'a<br />
ama<strong>da</strong>, antes de se despedirem. "Escreva-me bem", (NORMAN,<br />
1999, p. 151) responde Viola, chorosa. Nesses exemplos, o ato de<br />
metanarração lembra ao espectador o lugar que a obra de Madden<br />
ocupa na tradição fílmica, "criando nele um senso de prazer irônico,<br />
pela redução <strong>da</strong> distância entre a audiência e o texto". (DA VIS ,<br />
2004, p. 156) O mesmo prazer é causado por outras imagens,<br />
alusões textuais de natureza visual. A audiência não pode deixar<br />
de pensar, por exemplo, nos fantasmas de Macbeth e Hamlet,<br />
quando Lord Wessex, na catedral, vê o que ele pensa ser o espectro<br />
de Christopher Marlowe. Do mesmo modo, o episódio em<br />
que Richard Burbage é atingido por uma caveira, durante a briga<br />
no teatro, leva o espectador a recor<strong>da</strong>r-se do monólogo "Alas,<br />
Poor Yorick", de Hamlet7 .<br />
Além dessas imagens, linhas de diversas peças - Hamlet,<br />
6ANONYMOUS. In: Heat,<br />
1999, p. 10-11.<br />
7Yer a esse respeito: GRAHAM,<br />
1999.
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado<br />
297<br />
'Para um estudo sobre to<strong>da</strong>s as<br />
citações a obras de Shakespeare<br />
no filme, ver: ALBERGE, 1999<br />
e também KLETI, 200 I<br />
9 Para um estudo dessa<br />
passagem no filme, ver:<br />
ROTHWELL,1999.<br />
Antônio e Cleópatra, Romeu e Julieta - e alusões a seus personagens<br />
são incorpora<strong>da</strong>s, em contexto bem diverso ao de origem,<br />
como convém a uma obra pós-modernista que abdica <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de<br />
tradicional de diferenciar os níveis de culturas e textos.<br />
Temos "a plague of both your houses", palavras de Mercutio, na<br />
boca do pregador, referindo-se, não às casas Montechio e<br />
Capuletto, como em Romeu e Julieta, mas aos dois teatros, Rose<br />
e Curta in. Outras, ain<strong>da</strong> fora de contexto, merecem ser menciona<strong>da</strong>s:<br />
"To be in love, where scorn .... nights (L i)" e "What light is<br />
light... ofperfection (IH, i)", ambos de Two Gentlemen ofVerona;<br />
"Doubt the stars are fire, doubt that the sun move" e "Words,<br />
words, words", ambos de Hamlet (H, ii), e "Give me to drink<br />
mandrágora", de Anthony and Cleopatra 8 •<br />
Entretanto, sobressaem e assumem papel crucial no filme o<br />
"Soneto 18" e alguns trechos inteiros de Romeu e Julieta. Embora<br />
Shakespeare tenha dedicado o referido soneto ao seu patrono,<br />
no filme, Will o dedica a Viola. Sua inclusão determina o tema do<br />
filme: os amantes, mesmo obrigados a se separar pelo casamento<br />
de conveniência, permanecerão inseparáveis para sempre, misteriosamente<br />
unidos, através do milagre <strong>da</strong> arte 9 •<br />
So long as men can breathe, or eyes can see,<br />
So long lives this, and this gives life to thee. ("Sonnet 18", 13-<br />
14)<br />
Os trechos de Romeu e Julieta, incorporados às falas dos<br />
personagens do filme/atores <strong>da</strong> peça, fluem em dois níveis diferentes,<br />
o real (diegético) do filme, e o literário, <strong>da</strong> peça que está<br />
sendo ensaia<strong>da</strong>/encena<strong>da</strong>. De acordo com o filme, a peça Romeu<br />
e Julieta tomou sua forma final graças à Musa de Will, a jovem e<br />
nobre Viola, amante devota<strong>da</strong> do teatro, que trabalha em cena e<br />
atrás dela, <strong>da</strong>ndo origem a uma ver<strong>da</strong>deira comédia existencial<br />
surgi<strong>da</strong> dessa interação entre a "vi<strong>da</strong> real" - dos personagens do<br />
filme - e a emocional- dos personagens <strong>da</strong> peça que Shakespeare<br />
vai criando. Quando Will e Viola encenam Romeu e Julieta no<br />
palco, estão apenas consumando, em termos estéticos, o que vêm<br />
fazendo já há algum tempo no quarto. É como se Will traduzisse<br />
para o palco do The Rose o love affair que acontece na vi<strong>da</strong> real,<br />
e alimentasse, no palco, o amor que ele sabe impossível. O roteiro
298 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
se vale <strong>da</strong> montagem, ao intercalar, durante as falas, cenas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
e do ensaio, sugerindo a relação entre o amor arrebatador e a<br />
criação artística. Assim composto, o script se beneficia <strong>da</strong> estratégia<br />
pós-moderna de citação e pastiche em alusões textuais e visuais<br />
que emprestam ao filme uma sensação de déjà-vu, que apela<br />
para o desejo <strong>da</strong> audiência pelo reconhecimento cultural.<br />
Trazer para o presente fatos e figuras históricas, a terceira<br />
forma pela qual o filme tenta recapturar o passado, pode ser observa<strong>da</strong><br />
logo na seqüência inicial, quando uma toma<strong>da</strong> panorâmica<br />
vai até o interior do teatro. Após exibir os detalhes <strong>da</strong> réplicao<br />
telhado de palha, as galerias com os assentos para os espectadores<br />
abastados, o palco com suas portas para os bastidores, os alçapões,<br />
os dois pilares de suporte do telhado do palco, e o chão<br />
empoeirado <strong>da</strong> arena - a câmara focaliza finalmente um cartaz<br />
impresso, já rasgado e manchado, onde se lê:<br />
7 &8 de setembro ao meio dia<br />
O sr. Edward Alleyn e o grupo Admiral's Men<br />
No Teatro The Rose, Bankside<br />
A Lamentável Tragédia do Agiota Vingado (NORMAN, 1999,<br />
p.7)<br />
IOA idéia de "workshop" apa<br />
Essa introdução funciona quase como parte de um<br />
workshoplO sobre o teatro elizabetano, referindo-se ao horário dos<br />
espetáculos, à localização dos teatros e a um deles especificamente,<br />
a um grupo de teatro e a um de seus atores mais famosos. A<br />
essa toma<strong>da</strong> se segue uma outra, onde a câmara, em movimento<br />
rápido através do palco, chega aos bastidores, onde o dono do<br />
teatro, Henslowe, está sendo torturado, É como se fosse uma continuação<br />
<strong>da</strong> "oficina" de teatro, quando os espectadores são informados<br />
sobre os preços cobrados. No desenrolar do filme, outras<br />
figuras e fatos <strong>da</strong> época elizabetana ain<strong>da</strong> são indiretamente apresentados:<br />
Burbage, o ator famoso, Chamberlain, o outro grupo<br />
de teatro, o modo de composição em equipe, sugerido pelo papel<br />
de Christopher Marlowe e <strong>da</strong> própria Viola, a proibição para mulheres<br />
se apresentarem no palco, origem de muito do humor no<br />
filme, o fechamento dos teatros por causa <strong>da</strong> peste e outros. Esses<br />
sugerem, a princípio, que o filme seja realmente baseado em fatos<br />
históricos. Entretanto, quando o personagem Will que encarna<br />
William Shakespeare é apresentado, vestindo umajaqueta de couro,<br />
rece no artigo de Mary Murphy.
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado<br />
299<br />
"Segundo <strong>da</strong>dos históricos, a<br />
colônia <strong>da</strong> Virgínia, assim<br />
nomea<strong>da</strong> em alusão à rainha<br />
Elizabeth, foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em<br />
1607, por John Smith.<br />
11 Para uma atualização sobre<br />
o estado <strong>da</strong>s pesquisas sobre<br />
Shakespeare, consulte MC<br />
DONALD,2001.<br />
13 Em um de seus artigos,<br />
Groatsworth of Wit,Greene<br />
exortava seus contemporâneos,<br />
Marlowe, Lodge e Peele a<br />
parar de escrever para os<br />
atores, e estendia sua crítica a<br />
Shakespeare, acusando-o de<br />
pavão vaidoso e plagiador.<br />
l4Em seu livro, Pierre Pelllliless,<br />
his supplicatioll to the Devil,<br />
Nash faz referência a Talhot, o<br />
heróideHenryVJ.<br />
tentando soletrar seu nome, jogando papéis amassados na cesta<br />
de lixo e desenhando o título do filme, percebemos algo ahistórico,<br />
o que é confirmado pelo close-up numa caneca com a inscrição:<br />
"Lembrança de Stratford-upon-Avon". Assim, apesar de tratar de<br />
fatos históricos, o filme também apresenta incorreções e incongruências,<br />
numa mistura de fato e ficção, como convém a uma<br />
obra pós-moderna. Como exemplos de incorreções e anacronismos,<br />
citamos o "psicanalista" estilizado, Dr. Moth, "consultando"<br />
Will; o barqueiro que se diz escritor; o garçon do bar, anunciando<br />
o prato do dia, totalmente contemporâneo, "pé de porco temperado<br />
com vinagre de zimbro, servido com uma panqueca de trigo<br />
sarraceno" e o fato de o pretendente à mão de Viola ter plantações<br />
de fumo na Virgínia, antes mesmo que a colônia na América<br />
tenha sido fun<strong>da</strong><strong>da</strong> 11 •<br />
Quando consideramos a simultanei<strong>da</strong>de desses dois aspectos-minúcia<br />
no tratamento dos fatos históricos e anacronismosfica<br />
claro que o filme estabelece uma relação dialética original<br />
entre passado e presente, relação recorrente ao longo do filme,<br />
mas principalmente na referência que faz à biografia de William<br />
Shakespeare e aos mitos que circun<strong>da</strong>m sua existência.<br />
O dramaturgo nasceu em Stratford em 1564. A construção,<br />
em estilo Tudor, aponta<strong>da</strong> como o lugar de seu nascimento, foi<br />
compra<strong>da</strong> pelo pai e lega<strong>da</strong> ao filho. Hoje, recupera<strong>da</strong> para servir<br />
à "indústria do patrimônio histórico" e constituindo um emblema<br />
para os problemas <strong>da</strong> biografia de Shakespeare, ain<strong>da</strong> permanece<br />
em Halley Street aberta à visitação. A maioria <strong>da</strong>s pesquisas aponta<br />
que Shakespeare viveu em Stratford até 1585. Não existem<br />
relatos sobre os sete anos que se seguiram, até sua chega<strong>da</strong> a<br />
Londres por volta de 1592, quando os teatros públicos estavam<br />
começando a florescer. É possível que, nesse intervalo, ele se tenha<br />
juntado a um grupo de atores que percorria as províncias e<br />
assim tenha aberto seu caminho para o mundo do teatro centrado<br />
em Londres l2 • A partir de 1592, sua presença é registra<strong>da</strong> numa<br />
cena de teatro em Londres, o que indica ter ele estado ativo por<br />
algum tempo. Além disso, algumas poucas provas de sua atuação<br />
estão conti<strong>da</strong>s no ataque a Shakespeare em um folhetim dessa<br />
<strong>da</strong>ta, pelo famoso escritor Robert Greene l3 , e também na referência<br />
ao herói <strong>da</strong> peça Henrique VI, feita pelo dramaturgo e<br />
panfletário Thomas Nashe l4 • Essa escassez de registros, por sua
300 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
vez, incentivou a criação de mitos em torno <strong>da</strong> figura de William<br />
Shakespeare como escritor e como homem. Estimulado pela quase<br />
total ausência de <strong>da</strong>dos biográficos relacionados a esse período<br />
denominado "the lost years", o cineasta/roteirista ficou seduzido<br />
pela esfera <strong>da</strong> invenção e deu asas à imaginação, permitindo um<br />
tratamento livre aos mitos, sem ferir a autentici<strong>da</strong>de histórica. Entre<br />
os mitos a que alude o filme, destacam-se o mistério de sua sexuali<strong>da</strong>de<br />
e a controvérsia sobre a autoria <strong>da</strong>s obras 15.<br />
O mistério sobre a sexuali<strong>da</strong>de de Shakespeare é um dos<br />
principais mitos que ron<strong>da</strong>m a figura do dramaturgo. Entre suas<br />
obras, apenas os sonetos sugerem detalhes amorosos e sexuais,<br />
que podem ser interpretados como referências a sua vi<strong>da</strong> pessoa1<br />
16 • Logo aços o fechamento dos teatros devido à peste, os poemas<br />
Venus and Adonis e The Rape oi Lucrece, dedicados ao conde<br />
de Southampton, patrono de Shakespeare, foram publicados.<br />
A len<strong>da</strong> diz que o conde recompensou-o com 1.000 libras. A natureza<br />
do relacionamento entre o poeta e o patrono não é muito<br />
clara. Porém, qualquer que sejam os termos <strong>da</strong> ligação, esse fato<br />
dá um colorido aos mitos sobre a sexuali<strong>da</strong>de de Shakespeare. A<br />
seqüência dos 154 sonetos, segundo historiadores, se divide em<br />
dois grupos, de 1 a 126 e de 127 em diante. Nos últimos sonetos,<br />
a voz poética confessa sua paixão por uma jovem infiel, a Dark<br />
Lady, cuja identi<strong>da</strong>de permanece envolta em mistério. A primeira<br />
série, porém, é dedica<strong>da</strong> a um jovem, que alguns estudiosos identificam<br />
com o Conde de Southampton. Se ele não for o jovem<br />
desses sonetos, quem seria Existem controvérsias acerca desse<br />
assunto e questões relaciona<strong>da</strong>s são acompanha<strong>da</strong>s por outras,<br />
sobre a ordem dos poemas, as circunstâncias <strong>da</strong> publicação, as<br />
tendências sexuais do poeta e, sobretudo, a especulação a respeito<br />
<strong>da</strong> narrativa: a seqüência representaria poeticamente as experiências<br />
vivi<strong>da</strong>s por pessoas reais<br />
O tema <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de de Shakespeare tornou-se tabu a<br />
ponto de estudiosos tentarem escondê-lo. Em seu artigo, Margreta<br />
De Grazia explora esse tema mostrando as adulterações feitas nos<br />
sonetos para "por um fim a esse segredo, alterando o sexo <strong>da</strong><br />
pessoa ama<strong>da</strong> e assim convertendo uma paixão homossexual ignominiosa<br />
em uma paixão respeitável heterossexual, mesmo que<br />
adúltera (36)".<br />
O filme também participa <strong>da</strong> tradição de enterrar o "segre-<br />
" Para uma referência aos<br />
outros mitos que ron<strong>da</strong>m a<br />
figura do dramaturgo, ver:<br />
ROSENTHAL,1999.<br />
16 Algumas peças contêm<br />
detalhes amorosos que, entretanto,<br />
não podem ser tomados<br />
como referências à vi<strong>da</strong> pessoal do<br />
escritor.
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado<br />
301<br />
do de Shakespeare", mu<strong>da</strong>ndo o destinatário do Soneto 18. No<br />
filme, esse destinatário é Viola e não o jovem a quem, na ver<strong>da</strong>de,<br />
ele foi dedicado. Embora Viola esteja vesti<strong>da</strong> de homem no momento<br />
em que lê o poema, o filme deixa ambígüa a possibili<strong>da</strong>de<br />
de homossexuali<strong>da</strong>de do poeta, ao retratá-lo como umjovem comum,<br />
perdi<strong>da</strong>mente apaixonado pela lin<strong>da</strong> e rica Viola De Lesseps.<br />
Assim, apesar de algumas alusões a esse mistério, como a atração<br />
de Will por Thomas Kent - Viola disfarça<strong>da</strong> - que culmina com<br />
um beijo no barco, o amor retratado no filme se assemelha ao<br />
manifestado nos últimos sonetos, permitindo assim que a ambigüi<strong>da</strong>de,<br />
parte do charme do filme, persista.<br />
As narrativas míticas que se acumularam através dos séculos<br />
levaram muitos a descartar os fatos que os pesquisadores estabeleceram<br />
sobre a vi<strong>da</strong> de Shakespeare em Londres e Stratford.<br />
Embora não se saiba muito sobre o homem, o que se conhece<br />
sobre a obra torna convincente a história do filho de Warwick que<br />
vai para Londres quando jovem e encontra seu caminho no mundo<br />
teatral, encenando, escrevendo e produzindo peças e poemas<br />
que capturaram a imaginação do mundo. Assim, ao acreditar nas<br />
narrativas colori<strong>da</strong>s e sentimentais que se referem aos anos que se<br />
seguiram à sua morte- que ele fazia discursos inflamados, que<br />
deixou Stratford fugido, que começou a trabalhar em Londres<br />
cui<strong>da</strong>ndo de cavalos e só mais tarde se juntou à companhia de<br />
teatro e se tornou seu principal dramaturgo-é possível <strong>da</strong>r uma<br />
face humana e celebrar a figura desse autor oriundo de uma cultura<br />
e um passado distantes. Porém dois fatos recentes entram em<br />
consideração quando discutimos a questão <strong>da</strong> autoria. Primeiro,<br />
um volume, que merece ser examinado quanto à legitimi<strong>da</strong>de,<br />
publicado pelos que propõem que o Conde of Oxford seja o autor<br />
<strong>da</strong> obra de Shakespeare. Segundo, a reformulação recente do conceito<br />
de autoria, que nos lembra, a todo momento, que as obras<br />
de arte são produtos não do gênio de escritores individuais mas<br />
<strong>da</strong> cultura que produziu esse escritor.<br />
Embora não se negue a existência de Shakespeare em seu<br />
papel como ator, questiona-se seu papel como escritor. Será que<br />
aquele homem do povo, com pouca instrução, seria capaz de produzir<br />
os textos que ele produziu O argumento usado é que seria<br />
necessário alguém com cultura universitária para escrever as obras<br />
que tratavam do abuso do poder real, <strong>da</strong> hipocrisia política, <strong>da</strong>
302 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
vai<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Corte, <strong>da</strong> loucura dos monarcas e até de regicídio.<br />
Esse questionamento preconceituoso resultou na proposição de<br />
candi<strong>da</strong>tos mais adequados para figurar como autores <strong>da</strong>s obras<br />
que lhe são tradicionalmente atribuí<strong>da</strong>s. Muitos nomes foram cogitados,<br />
desde Christopher Marlowe até a própria Rainha Elizabeth,<br />
porém Francis Bacon e Edward de Vere, o conde de Oxford, são<br />
os favoritos. O que eles têm em comum é serem ambos aristocratas<br />
e, conseqüentemente, mais cultos. O mito diz que o Conde<br />
Oxford, por ser um aristocrata, não permitia que seu nome aparecesse<br />
à frente do teatro popular e que Shakespeare teria sido seu<br />
"testa de ferro". Porém, assim como há argumentos em favor de<br />
Oxford como autor, outros negam essa autoria. O principal deles é<br />
sua morte ocorri<strong>da</strong> em 1604, anterior à produção de Macbeth e de<br />
The Tempest, escritas respectivamente em 1606 e 1611 e cujos enredos<br />
dependem de eventos ocorridos também depois <strong>da</strong> sua morte:<br />
a invenção <strong>da</strong> pólvora (1605) e a circulação de panfletos sobre o<br />
Novo Mundo (1610). Quanto a Francis Bacon, escolhido no século<br />
XIX como o "ver<strong>da</strong>deiro" autor <strong>da</strong>s obras, apesar <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção de<br />
um jornal onde as obras eram meticulosamente estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s com o<br />
fim de se encontrar pistas secretas que levariam a origem <strong>da</strong>s peças<br />
a Bacon, não se chegou a uma conclusão convincente. Essa discussão<br />
ain<strong>da</strong> se encontra inconclusa nos meios acadêmicos.<br />
O acontecimento que alimentou ain<strong>da</strong> mais essa questão foi<br />
a reviravolta sobre o conceito de autoria, ocorri<strong>da</strong> nas últimas<br />
três déca<strong>da</strong>s, que trouxe mu<strong>da</strong>nças na teoria e na crítica, afetando<br />
o estudo <strong>da</strong> literatura. A imagem romântica do artista como um<br />
gênio individual e transcendente foi substituí<strong>da</strong> por um modelo de<br />
autoria mais amplo, baseado na cultura. Tem-se <strong>da</strong>do muita atenção<br />
às filiações institucionais e sociais do escritor, com o objetivo<br />
de identificar as condições e detalhes de sua participação numa<br />
comuni<strong>da</strong>de discursiva. Sob essa nova luz, produções literárias de<br />
um autor como Shakespeare, por exemplo, são vistas como condiciona<strong>da</strong>s<br />
e determina<strong>da</strong>s pelas ações <strong>da</strong>s forças históricas e sociais,<br />
o que descarta as noções simplistas de autoria e de responsabili<strong>da</strong>de<br />
artística. No passado, os estudiosos tentavam identificar<br />
os livros que o escritor teria lido ou os debates de que teria<br />
participado. Hoje descarta-se a noção de influência artística e considera-se,<br />
juntamente com as teorias relativas à re-escrita embuti<strong>da</strong><br />
em todos os textos, que são as figuras políticas e as práticas
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado 303<br />
sociais específicas que contribuem para a criação do texto literário,<br />
mesmo quando essa relação não seja evidente. Essa é a análise<br />
que faz o "New Historicism". Essa corrente crítica procura encontrar<br />
a reciproci<strong>da</strong>de entre o campo cultural e o artefato literário.<br />
Nesse sentido, tenta investigar como o texto dramático trabalha<br />
para transformar a cultura que o produz, insistindo na dispersão <strong>da</strong><br />
responsabili<strong>da</strong>de pela criação <strong>da</strong> obra de arte. O autor toma-se um<br />
canal para o fluxo <strong>da</strong>s forças culturais. Essa evanescência <strong>da</strong> agência<br />
individual coincide com uma ver<strong>da</strong>de sobre o teatro: a sua natureza<br />
colaborativa, princípio pertinente a muitas áreas artísticas, cujo<br />
produto final resulta de um processo que envolve escritores, copistas,<br />
atores, censores, audiência e até a imprensa.<br />
O filme participa também desse debate na medi<strong>da</strong> em que<br />
apresenta a peça que está sendo escrita como um trabalho<br />
colaborativo. É Christopher Marlowe que, numa conversa de bar,<br />
dá suporte ao argumento de que foi ele o autor <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong>s<br />
peças, sugerindo o tema: "Romeu é ... italiano. Sempre se apaixonando<br />
( ... ) Até que ele conhece a filha do seu inimigo. Seu melhor<br />
amigo morre em duelo com um irmão ou parente de Ethel"<br />
(NORMAN, 1999, p. 36). A cena sugere ain<strong>da</strong> que os dramaturgos<br />
auxiliavam e criticavam as obras uns dos outros, num ver<strong>da</strong>deiro<br />
trabalho de equipe. Ned Alleyn, o ator, propõe a inserção de<br />
uma nova cena, entre o casamento e a morte de Julieta. Nesses e<br />
em vários outros momentos do filme, o processo colaborativo de<br />
criação é ilustrado e implicitamente defendido. Mas o filme participa<br />
ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> idéia de um autor evanescente. Quando Will começa a<br />
escrever a cena <strong>da</strong> saca<strong>da</strong>, suas linhas são declama<strong>da</strong>s em voiceover<br />
enquanto somos transportados alterna<strong>da</strong>mente para o quarto<br />
de Viola e para o palco, durante o ensaio.O modo como essas cenas<br />
se fundem sugere a indefinição dos limites entre a arte e a vi<strong>da</strong>. Para<br />
o casal, as linhas vão adquirindo um sentido duplo, à medi<strong>da</strong> que o<br />
poeta escreve a história de ambos. Assim como Romeu e Julieta,<br />
Will e Viola estão condenados a se separar tragicamente, o que é<br />
pré-figurado quando Viola, ao ler as linhas de Romeu, ao fim <strong>da</strong><br />
seqüência <strong>da</strong> montagem, reconhece tristemente:<br />
Receio que ...<br />
Por ser noite, tudo isso não passe de um sonho.<br />
É bom demais para ser ver<strong>da</strong>de. (NORMAN, 1999, p. 87)
304 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Diferentemente <strong>da</strong> maioria dos filmes denominados filmes<br />
de Shakespeare, que prioritariamente traduzem para o meio cinematográfico<br />
o texto <strong>da</strong>s peças, o filme de John Madden tenta ser<br />
uma biografia dos "anos perdidos" <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do dramaturgo, à qual<br />
são acrescentados elementos de imaginação e invenção para a forma<br />
em que se dá o processo de criação artística durante esses<br />
anos. Mas, a despeito de contemplar essa visão romântica, o filme<br />
sutilmente volta-se para a questão contemporânea de que todo<br />
texto é produto de um processo complexo de criação, realização<br />
e transmissão, mesmo que exista um autor solitário escrevendo.<br />
Na reali<strong>da</strong>de hoje conta menos quem escreveu as peças do que o<br />
fato de que essas foram escritas e são admira<strong>da</strong>s.<br />
Seguindo a tendência que imprimiu uma mu<strong>da</strong>nça nos filmes<br />
históricos, tornando-os parte <strong>da</strong> "indústria do patrimônio histórico",<br />
Shakespeare Apaixonado também tentou criativamente<br />
re-escrever o passado, usando, nessa escrita, os artifícios de<br />
intertextuali<strong>da</strong>de e de pastiche, com o objetivo de criar novas formas<br />
de história para contar a história não conheci<strong>da</strong> do "homem<br />
do milênio".
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado<br />
305<br />
Referências<br />
ALBERGE, Dalya. A beginner's Guide to Bard Spotting. The Times, New<br />
York, p. 21, 23 jan. 1999.<br />
ANONYMOUS. Shakespeare: always knew he'dmake it. Heat, v. 13-19, p.<br />
10-11, fev. 1999.<br />
DAVIS, Todd E, WOMACK, Kenneth. Reading (and Writing) the Ethics of<br />
Authorship: Shakespeare in Love as Postmodern Metanarrative. Literature/<br />
Film Quarterly, Salisbury, v. 32, n. 2, p. 153-162,2004.<br />
DE GRAZIA, Magreta. The Scan<strong>da</strong>l of Shakespeare's Sonnets. Shakespeare<br />
Survey, Cambridge, v. 46, p. 35-49, 1994.<br />
GRAHAM, Trey. Finding Laughs Between the Lines. USA To<strong>da</strong>y, New York,<br />
10 jan. 1999. p. 5D.<br />
HIGSON, Andrew. English Heritage, English Cinema: costume drama since<br />
1980. Oxford: Oxford University Press, 2003. 282 p.<br />
KLETT, Elizabeth. Shakespeare in Love and the end(s) of History. In:<br />
CARTMELL, Debora H. et aI. Retrovisions: Reinventing the Past in Film<br />
and Fiction. London: Pluto Press, 2001. p. 25-40.<br />
McDONALD, Russ. The Bedford Companion to Shakespeare: An introduction<br />
with documents. Boston: Bedford/St. Martin's, 2001. 451 p.<br />
MONK, Claire, SARGEANT, Amy (Ed.). British Historical Cinema: the<br />
history, heritage and costume filmo London and New York: Routledge, 2002.<br />
269 p.<br />
MONK, Claire. The British 'heritage film' and its critics. Criticai Survey,<br />
LondonINew York, n. 7, p. 116-124, 1995.<br />
MURPHY, Mary. Limited Lives: The Problem ofthe Literary BioPic. Kinema,<br />
Ontario, n. 17, p. 67-74, Spring 2002.<br />
MURPHY, Robert. (Ed.) British Cinema of the 90s. London: British Film<br />
Institute, 2000. 196p.<br />
NORMAN, Marc, STOPPARD, Tom. Shakespeare Apaixonado: um roteiro.<br />
Tradução de Jussara Simões. Rio de Janeiro: Rocco. 1999. 153 p.<br />
ROSENTHAL, Daniel. Twelve Great Shakespeare Myths. LOlldoll Times,<br />
London. p. 34, jan. 1999.
306 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
ROTHWELL, Kenneth. Film Review. Cineaste, v. 24, n. 2/3, p. 78-80, mar<br />
1999.<br />
VINCENDEAU, Ginette. (Ed.) FilmlLiterature/Heritage: a Sight and Sound<br />
Reader. London: British Film Institute Publishing, 2001.
307<br />
Luuondo, 40 anos: a força ds<br />
palavras mais velhas<br />
Laura Cavalcante Padilha<br />
(UFF)<br />
Ler Luuan<strong>da</strong>, para mim, significa realizar um exercício<br />
de prazer e gozo. Sempre que retomo esta obra de José<br />
Luandino Vieira, não posso conter uma espécie de assalto interior<br />
pleno de emoção e arrebatamento. Por outro lado, meu<br />
imaginário leitor acaba, também sempre, por entrecruzar<br />
Luandino e Barthes, dois autores que, a meu ver, sabem, como<br />
poucos, organizar linguajeiramente a festa de prazer do texto.<br />
Em tal festa, no caso específico do ficcionista angolano, as<br />
palavras, as frases, o trabalho discursivo, para além do relato,<br />
são os principais convi<strong>da</strong>dos. Vale a pena citar textualmente, já<br />
agora, o misto de poeta e ensaísta francês, que é Barthes, para<br />
dizer que, com Luuan<strong>da</strong>, "corro, salto, ergo a cabeça, torno a<br />
mergulhar" (1977, p. 19). Nasce <strong>da</strong>íum impasse fun<strong>da</strong>nte: o que<br />
escrever, se tudo se faz, nessa minha leitura tão "cola<strong>da</strong>", um<br />
ato de puro gozo e prazer estético Na<strong>da</strong> que penso ou digo<br />
parece servir. O texto não se deixa prender; escapa como serpente<br />
esperta que resiste a qualquer investi<strong>da</strong> de captura. Assim,<br />
vou tentar sair do impasse, correndo atrás <strong>da</strong> cobra, sempre<br />
mais rápi<strong>da</strong> do que eu, procurando, nessa quase caça<strong>da</strong>,<br />
depreender um pouco <strong>da</strong>s cores de Luuan<strong>da</strong>, seus sinais, sua<br />
"significância", enfim (BARTHES, idem).<br />
Em princípio, para comemorar os quarenta anos <strong>da</strong> publicação<br />
<strong>da</strong> obra, embora com certo atraso, creio ser pertinente<br />
lembrar ter sido LUllan<strong>da</strong> publica<strong>da</strong> em 1964 em Angola, recebendo,<br />
então, o Prêmio Mota Veiga na então colônia. Também<br />
em Portugal, em 15 de maio de 1965, é atribuído à obra o Grande<br />
Prêmio de Novelística pela Socie<strong>da</strong>de Portuguesa de Escri-
308 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
tores, prêmio este retirado quando se conhece a identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele<br />
que se assinava Luandino Vieira. No dizer de Manuel<br />
Ferreira, então "se inicia a montagem <strong>da</strong> gigantesca encenação<br />
político-repressiva que vai desenvolver-se, em to<strong>da</strong>s as frentes,<br />
contra a atribuição do Prêmio e a Socie<strong>da</strong>de Portuguesa de Escritores."<br />
(1980, p. 112). Como sabemos, a Socie<strong>da</strong>de é dissolvi<strong>da</strong><br />
em 21 de maio do mesmo ano, por ato do Ministro <strong>da</strong> Educação<br />
do governo fascista português.<br />
Luuan<strong>da</strong>, desde sua aparição, em 1964, representa uma ruptura<br />
na série literária angolana, primeiramente, no que concerne à<br />
espaciali<strong>da</strong>de física e simbólica nela figura<strong>da</strong>, ou seja, a <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />
de Luan<strong>da</strong>. Tal ci<strong>da</strong>de deixa de ser um espaço colonial branco,<br />
para transformar-se em um lugar angolano por excelência, como<br />
tão bem analisa Tania Macêdo. Sua areia vermelha se faz metonímia<br />
explícita do sangue <strong>da</strong> própria terra que em suas veias geográficas<br />
corre, de modo mais rápido e tenso, nesse momento político em<br />
que, citando Macêdo, "a colônia começa a tornar-se sujeito de<br />
sua história" (2002, 70).<br />
De outra parte, a ruptura também - ou sobretudo - se dá no<br />
universo discursivo, quando, com grande senso de seu ofício artístico,<br />
Luandino cria um texto que - se se faz uma abor<strong>da</strong>gem de<br />
leitura mais ligeira - parece muito simples, em termos de expressão<br />
lingüística, mas, na ver<strong>da</strong>de, representa um produto literário<br />
altamente sofisticado, em termos de elaboração estética. Por tal<br />
exercício discursivo, a territoriali<strong>da</strong>de física <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de ama<strong>da</strong> se<br />
transmuta em uma territoriali<strong>da</strong>de humana por excelência. De novo,<br />
recorro a Barthes para melhor explicitar que os três contos <strong>da</strong><br />
obra criam, no leitor, um efeito de fruição estética que "faz vacilar<br />
[suas] bases históricas, culturais, psicológicas [ ... ], a consistência<br />
de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar<br />
em crise sua relação com a linguagem." (1977, p. 22)<br />
O presente gesto de leitura, partindo desses pressupostos,<br />
se debruçará sobre os caminhos imagísticos e discursivos de<br />
Luuan<strong>da</strong> tentando pensar, de um lado, a questão espacial e, de<br />
outro, a estética.
Luuan<strong>da</strong> 40 anos: a força <strong>da</strong>s palavras mais velhas<br />
309<br />
1. Uma ci<strong>da</strong>de e a resistência do fio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
Desde o século dezenove, o imaginário de alguns autores<br />
buscou os locais não urbanos como uma forma de reforço<br />
identitário. Pela projeção ficcional desses locais, os produtores<br />
artísticos procuraram resgatar a força simbólica dos modos de<br />
vi<strong>da</strong> autojustificativos do sujeito etno-cultural e sócio-histórico<br />
angolano, contrapondo-os aos do sujeito metropolitano, tanto étnica,<br />
quanto sócio-culturalmente.<br />
Há um missosso recuperado por Óscar Ribas, "Quimalauezo"<br />
(1961, v.1, p. 41-64), bastante revelador do sentido desse jogo<br />
espacial. Nele, Lau, o protagonista, filho de um soba, é obrigado<br />
a ir para Luan<strong>da</strong> por determinação do governador europeu, encantado<br />
com sua beleza. To<strong>da</strong>s as ações subseqüentes se originam<br />
nessa mu<strong>da</strong>nça força<strong>da</strong> <strong>da</strong> personagem para o espaço do outro no<br />
qual recebe novo tipo de educação, sem jamais, contudo, esquecer<br />
suas ancestrais tradições, como revela sua volta ao "Sobado<br />
dos Estéreis". Esse conhecimento e a força <strong>da</strong> ficção oral, a que<br />
Lau sempre recorre, se tornam os elementos responsáveis por sua<br />
vitória contra a pérfi<strong>da</strong> madrasta. Misogenias à parte, o missosso<br />
significa um modo de resgate <strong>da</strong> importância do saber ancestral<br />
nas comuni<strong>da</strong>des de origem.<br />
Podemos levantar, ain<strong>da</strong>, vários outros exemplos desse reforço<br />
identitário. Lembro, a propósito, a negra quissama canta<strong>da</strong><br />
por Cordeiro <strong>da</strong> Matta (1889), cuja sedução é totalmente distinta<br />
<strong>da</strong>quela <strong>da</strong>s "européias <strong>da</strong>mas". Também Ndreza, depois transforma<strong>da</strong><br />
em Nga Mutúri, na narrativa de Alfredo Troni (1882),<br />
vem do interior, sendo obriga<strong>da</strong> a desfazer-se de seu "lindo penteado<br />
seguro pelo ngunde e tacula [ ... ] tirando-lhe as missangas e<br />
os búzios e todos os enfeites" (1973, p. 34). Assis Júnior centraliza<br />
as ações de O segredo <strong>da</strong> morta (1935) no Dondo, enquanto<br />
Castro Soromenho escolherá a Lun<strong>da</strong> para palco de contos e romances<br />
por ele escritos, às vezes até em forma de reescrita de<br />
len<strong>da</strong>s ou narrativas tradicionais.<br />
António Jacinto, por sua vez, estabelece, com Vôvô<br />
Bartolomeu (1952), um corte entre sua criação estética e o modo<br />
de representação colonial, seja pela estória conta<strong>da</strong>, seja pela linguagem<br />
nova que a sustenta. No entanto, ele permanece ain<strong>da</strong><br />
"apostando" na força espácio-simbólica do mundo rural, em oposi-
310 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
ção ao que se dá nas ci<strong>da</strong>des litorâneas, cobertas pelas marcas<br />
<strong>da</strong> cultura do colonizador. Por isso mesmo, as ações se passam<br />
em uma senzala e Luan<strong>da</strong> é mostra<strong>da</strong> como um espaço branco<br />
e em branco na narrativa. Por sua vivência em tal espaço, não<br />
resgata<strong>da</strong> diretamente, tia Mariquinhas, a lavadeira, se transforma<br />
em uma assimila<strong>da</strong> "com a mania de pessoa fina e a dizer<br />
que já não sabia kimbundo". E continua o texto, afiando a lâmina<br />
de sua faca:<br />
Uma vez começou de chover e a tia Anica disse:<br />
- Eué! Nvula uiza!<br />
e a tia Mariquinhas repreendeu:<br />
- Ai dona! Não fala assim, na língua de pessoa se diz: está<br />
chovar! (1979, p. 25)<br />
o trabalho de recomposição imagística de Luandino Vieira<br />
em Luuan<strong>da</strong>, de certo modo na esteira do conto de Jacinto, consiste,<br />
justamente, em recobrir o corpo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de-sede <strong>da</strong> então<br />
colônia, com outros sinais, sempre postos de lado pelos modelos<br />
estéticos hegemônicos <strong>da</strong> coloniali<strong>da</strong>de política e literária.<br />
Transforma a ci<strong>da</strong>de num espaço coberto pelos "máximos sinais"<br />
<strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de, aqui usando uma expressão de Lourentinho,<br />
sua personagem em outra obra (1981, p. 23). Também João<br />
Vêncio, dirá, sem rodeios, a seu mudo interlocutor, na prisão<br />
onde se dá a longa conversa, base do projeto discursivo<br />
articulador <strong>da</strong> própria ficcionali<strong>da</strong>de:<br />
Muadié: eu gramo de Luan<strong>da</strong> - casas, ruas, paus, mar, céu e<br />
nuvias, ilhinha pescadórica. Beleza to<strong>da</strong> eu não escoiço. Eu<br />
digo: Luan<strong>da</strong> - e meu coração ri, meus olhos fecham, sô<strong>da</strong>de.<br />
(1987, p. 81).<br />
Nasce, nessa geografia imaginária feita de "casas, ruas, paus,<br />
mar, céu e núvias, ilhinha pescadórica", desde Luuan<strong>da</strong>, uma espécie<br />
de nova ancoragem simbólico-cultural cujo motor é um gesto,<br />
mais que tudo, amoroso. Por ele, no caso <strong>da</strong> coletânea, a própria<br />
palavra nomeadora do lugar de pertença do sujeito ganha uma<br />
espécie de prolongamento gozoso, com a letra dobra<strong>da</strong> pela qual<br />
se suplementa. Não é apenas Luan<strong>da</strong>, mas Luuan<strong>da</strong>. Aninha-se,<br />
nessa repetição <strong>da</strong> letra, as marcas do amor por tudo que na ci<strong>da</strong>-
Luuan<strong>da</strong> 40 anos: a força <strong>da</strong>s palavras mais velhas<br />
311<br />
I To<strong>da</strong>s as citações de Luuan<strong>da</strong><br />
são <strong>da</strong> edição brasileira de 1982<br />
e, a partir de agora, só serão<br />
marca<strong>da</strong>s as páginas <strong>da</strong> obra.<br />
de descalça se institui e a constitui, a começar pelos elementos de<br />
uma natureza animiza<strong>da</strong> cujas ações, sentimentos, formas de ser,<br />
enfim, duplicam os traços característicos dos seres humanos que,<br />
na comuni<strong>da</strong>de forma<strong>da</strong> na obra, ela ampara e sustenta.<br />
A nuvem, por exemplo, é mostra<strong>da</strong>, na abertura de "Estória<br />
<strong>da</strong> galinha e do ovo", como tendo "braços" e com "malucas filhas";<br />
a "mulemba velha" possui até "barbas compri<strong>da</strong>s"; os relâmpagos<br />
"riem" igualmente "compridos e tortos [ ... ] falando a voz<br />
grossa de seus trovões" (1982, p. 99)1 . A natureza ganha vi<strong>da</strong> humana,<br />
pelas palavras mais velhas que lhe descobrem os segredos,<br />
assim como Beto e Xico, no mesmo conto, o fazem com relação à<br />
fala dos animais, seguindo o que lhes ensinara o velho Petelu. É o<br />
que nos mostra seu entendimento do código não-verbal <strong>da</strong> galinha<br />
Cabíri, recupera<strong>da</strong> nesta cena de tradução que resgato:<br />
E então Xico, voz dele parecia era caniço, juntou no amigo e os<br />
dois começaram cantar imitando mesmo a Cabíri, a galinha<br />
estava burra, mexendo a cabeça, ouvindo assim a sua igual a<br />
falar mas na<strong>da</strong> que via .<br />
... ngêjile kua ngana Bina<br />
Ala kiá ku kuata<br />
kua ... kua ... kua ... kuata, kuata! (p. 108)<br />
A vi<strong>da</strong> humana em expansão transforma a paisagem <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />
dela fazendo um espaço quase sacralizado, <strong>da</strong>í a ligação<br />
fun<strong>da</strong>nte entre os tempos, erigi<strong>da</strong> pelos contos. O "antigamente",<br />
em todos os sentidos, é percebido como o útero onde o presente<br />
se gera e, para além disso, a gênese de qualquer promessa de futuro.<br />
Vale citar o geógrafo e humanista brasileiro Milton Santos,<br />
quando enfatiza a vi<strong>da</strong> e seu poder de transformação infinito:<br />
É a socie<strong>da</strong>de, isto é, o homem, que anima as formas espaciais,<br />
atribuindo-lhes um conteúdo, uma vi<strong>da</strong>. Só a vi<strong>da</strong> é passível<br />
desse processo infinito que vai do passado ao futuro, só ela tem<br />
o poder de tudo transformar amplamente. (2004, p. 109)<br />
Essa cadeia temporal <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, assim posta por Santos, se<br />
metaforiza e ganha especial relevo imagístico em Lllllan<strong>da</strong>, mais<br />
exatamente no conto intitulado "Estória do ladrão e do papagaio".<br />
Tal estória, por sua dimensão discursiva e por seu arcabouço
312 Revista 8rasiieira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
temático - ao deixar apenas a representação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em direto<br />
do musseque e escolher o espaço <strong>da</strong> prisão como principal cenário<br />
~ confere ao texto um dos seus simbólicos e ideológicos alicerces.<br />
No conto, tal alicerce se projeta na imagem do "cajueiro",<br />
metáfora do fio jamais partido <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Por isso mesmo, ou<br />
seja, por sua resistência e teimosia em renascer sempre, apesar<br />
de to<strong>da</strong>s as violências e tentativas de destruição por que passa,<br />
"o pau de caju" se faz o<br />
"fio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que [ ... ] mesmo que está podre não parte. Puxando-lhe,<br />
emen<strong>da</strong>ndo-lhe, sempre a gente encontra um princípio<br />
num sítio qualquer, mesmo que esse princípio é o fim doutro<br />
princípio." (p. 52)<br />
A crença na possibili<strong>da</strong>de de transformação e na força <strong>da</strong><br />
indestrutibili<strong>da</strong>de do "fio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>" enlaça a obra, dela própria fazendo,<br />
no todo, uma palavra mais velha. Tal palavra indica a necessi<strong>da</strong>de<br />
de movimento <strong>da</strong> parte do leitor, convocado a buscar,<br />
ele também, a raiz dos casos contados sob os quais se esconde a<br />
violência <strong>da</strong> agressão do dominador europeu, empenhado, desde<br />
sempre, em cercear Angola, não a deixando viver a aurora de sua<br />
própria liber<strong>da</strong>de. A resistência do "pau de caju" e <strong>da</strong>s outras árvores<br />
espalha<strong>da</strong>s nas terras <strong>da</strong> própria textuali<strong>da</strong>de de modo quase<br />
obsessivo - mulembas, sape-sape, acácias, mandioqueiras, paus<br />
de fruta, etc. - se fazem a marca por excelência <strong>da</strong> territoriali<strong>da</strong>de<br />
cartograficamente expressa em letra e papel e, também, uma forma<br />
de resistência do próprio imaginário recuperado pela ficção.<br />
Os contos, de maneira recorrente e quase física, nos fazem<br />
ver essas velhas árvores, obrigando-nos a pensar no que se esconde<br />
sob a terra, sempre mãe, na cosmogonia banta. Por isso, somos<br />
convi<strong>da</strong>dos por Luandino, pela voz do narrador dos seus casos, a<br />
pensar no e com o cajueiro, a fim de entender que ninguém mata o<br />
fio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Para tanto, temos de deixar<br />
o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio e<br />
[ir] de encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e<br />
escura e as metades verdes abrem como um feijão e um pequeno<br />
pau está nascer debaixo <strong>da</strong> terra com beijos de chuva. O fio<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> não foi partido.
Luuan<strong>da</strong> 40 anos: a força <strong>da</strong>s palavras mais velhas<br />
313<br />
E O texto continua, com empenho, a exercitar a ancestral<br />
sabedoria, marca <strong>da</strong> cultura de Angola:<br />
se querem outra vez voltar no fundo <strong>da</strong> terra pelo caminho <strong>da</strong><br />
raiz, na vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondi<strong>da</strong><br />
desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterra<strong>da</strong><br />
doutro pau. (p. 52)<br />
Eis aí uma possível epígrafe ou mote para Luuan<strong>da</strong>, por sua<br />
vez também uma espécie de longa epígrafe <strong>da</strong>s obras de Luandino<br />
que lhe sucederão. O corpo ideológico dos textos se sustenta na<br />
metáfora <strong>da</strong> castanha, projeta<strong>da</strong> também para Angola nesse momento<br />
histórico em que, na luta por sua libertação, ela pode ser<br />
li<strong>da</strong> como uma "castanha antiga, mãe escondi<strong>da</strong>" <strong>da</strong> "árvore", só<br />
na aparência corta<strong>da</strong>, mas igualmente "filha enterra<strong>da</strong> doutro pau".<br />
É isto que Luuan<strong>da</strong> encena: a certeza <strong>da</strong> renovação <strong>da</strong> força<br />
incontrolável <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana e política de uma nação por vir.<br />
Vejamos um pouco como e/ou por quê.<br />
Comecemos pelo rosto marcado de duas velhas: Xíxi e<br />
Bebeca, cuja pele - principalmente a do rosto - é pinta<strong>da</strong> como<br />
"seca e escura", como a <strong>da</strong> castanha de caju. Por essas duas mulheres-castanha,<br />
tanto em "Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos", quanto<br />
em "Estória <strong>da</strong> galinha e do ovo", mostra-se a energia e a inteireza<br />
do fio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Não por acaso ambas as velhas são plasma<strong>da</strong>s artisticamente<br />
de uma mesma forma, ou seja, como uma espécie de<br />
guardiãs comunitárias, cuja magreza do corpo esconde a corpulência<br />
<strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de; <strong>da</strong> fé no futuro; <strong>da</strong> confiança na amizade; do<br />
sentido coletivo e do empenho na afirmação do amor pela terra,<br />
pela sua terra angolana. Elas são, respectivamente, para além de<br />
castanha, o sape-sape e o ovo, este, no caso, primeira fonte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
O sape-sape é descrito assim: "sem mais água, só mesmo<br />
com a chuva é que vivia e sempre atacado no fumo preto <strong>da</strong>s camionetas"<br />
(p. 25). Elas, como ele, enfrentam a privação e o ataque de<br />
uma ordem social injusta, demonstrando, a exemplo <strong>da</strong> árvore,<br />
coragem e força para pôr uma sombra boa, crescer suas folhas<br />
verdes sujas, amadurecer os sape-sapes que falavam sempre a<br />
frescura <strong>da</strong> sua carne de algodão [ ... ] guar<strong>da</strong>ndo na sua sombra<br />
massuícas pretas de fazer comi<strong>da</strong> de monangambas (idem)
314 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
A sombra por Xíxi e Bebeca projeta<strong>da</strong>, como a do sapesape,<br />
era "boa, fresca, parecia era água de muringue" (idem). Por<br />
isso mesmo, as duas vavós são peças importantes na organização<br />
dos seus espaços do viver nos quais representam e defendem as<br />
leis <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des locais, em detrimento <strong>da</strong>s estabeleci<strong>da</strong>s pelo<br />
poder branco vigente. De outra parte, são os cimentos <strong>da</strong> argamassa<br />
discursiva formadora do edifício <strong>da</strong> própria textuali<strong>da</strong>de,<br />
organiza<strong>da</strong>, ela também, como um exercício <strong>da</strong> sabedoria mais<br />
velha de Luandino Vieira, seu criador.<br />
Por outro lado, Vavó Xíxi e Dona Bebeca são a possibili<strong>da</strong>de<br />
de instauração de um futuro, cuja marca pode ser encontra<strong>da</strong><br />
em seus risonhos e gozonos rostos. Elas são o ovo onde a vi<strong>da</strong><br />
igualmente se guar<strong>da</strong>, como na castanha de caju. Enquanto esta<br />
se gera, rebenta e reproduz dentro do ventre <strong>da</strong> terra, o ovo o faz,<br />
ora dentro de Cabíri, a "humana" galinha também protagonista<br />
dos casos, amiga dos miúdos Beto e Xico, ora dentro do útero de<br />
Bina, cujo corpo de mulher é o duplo explícito <strong>da</strong>quela mesma<br />
terra. Xíxi e Bebeca, empenha<strong>da</strong>s na manutenção do fio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />
nunca partido, carregam dentro de si a teimosia <strong>da</strong> castanha, a<br />
coragem do sape-sape e a força simbólica do ovo.<br />
Não por acaso, a descoberta do grande ovo carregado por<br />
Bina é feita por Xico, uma <strong>da</strong>quelas crianças a quem caberá buscar,<br />
africanamente, o futuro, como ensina o missosso antigo e<br />
reensina Dario de Melo na moderni<strong>da</strong>de de seu conto renovador<br />
do texto dos antigamentes - Quem vai buscar o futuro (1986).<br />
Vavó Bebeca, por sua vez, como alguém que traz em si o<br />
"ovo" <strong>da</strong> esperança e fé na vi<strong>da</strong>, sorrindo, no quase fechar-se <strong>da</strong><br />
narrativa e "segurando o ovo na mão dela, seca e cheia de riscos<br />
dos anos, o entregou para Bina", respeitosamente perguntando à<br />
dona <strong>da</strong> galinha "- Posso, Zefa ... ". Nesse momento, o leitor vê<br />
os "olhos admirados e monandengues de miúdo Xico" fazerem a<br />
grande descoberta, ou seja, que "a barriga redon<strong>da</strong> e rija de nga<br />
Bina, debaixo do vestido, parecia era um ovo grande, grande ... "<br />
Cp. 123). Eis o ovo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, pois, a mostrar-se como outro fio<br />
jamais partido.<br />
Os três contos de Luuan<strong>da</strong> funcionam metaforicamente<br />
como uma espécie de rito de iniciação pelo qual os neófitos leitores,<br />
sobretudo se não angolanos, como no presente caso, ingressam<br />
nos segredos e mistérios comunitários. Tais segredos e misté-
Luuan<strong>da</strong> 40 anos: a força <strong>da</strong>s palavras mais velhas<br />
315<br />
rios foram sempre elididos na visão dos antigos senhores <strong>da</strong> letra,<br />
com seu saber redutor. Como ensina Camões, tais senhores mostraram-se<br />
sempre perplexos diante <strong>da</strong> estranha gente cujos costumes,<br />
leis e reis se fizeram absolutamente enigmáticos, desde o<br />
tempo dos navegantes por ele cantados. Não por acaso tais<br />
navegantes se perguntam sobre tal gente, em um dos primeiros<br />
encontros dos dois grupos étnicos, nas costas de Moçambique,<br />
encontro assim sintetizado pelo poeta:<br />
- Que gente será esta (em si diziam)<br />
Que costumes, que lei, que rei teriam (1972, I, 45. p. 71)<br />
É nesses costumes, nessas leis e, não em reis, mas na força<br />
dessas rainhas mais velhas, que Luandino, como um mestre <strong>da</strong><br />
cerimônia de iniciação dos seus textos, faz seu leitor imergir. Por<br />
isso mesmo, a relação entre mais velhos e mais novos é um dos<br />
traços mais expressivos nos três contos, como se sabe: Vavó Xíxi<br />
e o seu neto Zeca Santos; Dosreis e Garrido e mesmo, na inversão<br />
dos papéis, Xico Futa e Dosreis ou Garrido e João Miguel, inversão<br />
surgi<strong>da</strong> sempre que um mais novo demonstra sabedoria maior<br />
que um mais velho. Também o traço ressurge na interação de Vavó<br />
Bebeca com as mulheres do musseque, principalmente Zefa e Bina,<br />
e, mais que tudo, em sua relação e na de Vavô Petelu, no conto<br />
apenas referenciado, com a semente do futuro representa<strong>da</strong> pelos<br />
miúdos Beto e Xico.<br />
Evidencia-se, na estética <strong>da</strong> privação, base imagística dos<br />
três contos, a presença utópica <strong>da</strong> esperança tão bem metaforiza<strong>da</strong><br />
por tais mais novos e pelo sol que sempre atravessa os espaços<br />
textuais e copula, às vezes, com o vento, às vezes com o mar. Os<br />
mais novos são duplos desse sol e devem ser iniciados para fazer<br />
frente aos tempos marcados pelas chuvas, ventanias e ribombar<br />
dos trovões, como se dá na abertura <strong>da</strong> obra com o primeiro conto<br />
em que "sai", metonírnica e metaforicamente, não apenas a chuva<br />
avassaladora, mas "o grande trovão" a fazer tremer "as fracas<br />
paredes de pau-a-pique e despregando madeiras, papelões,<br />
luandos". Depois dele, chega "o brilho azul do raio que nasce no<br />
céu, grande teia d' aranha de fogo" Cp. 6). Tal raio nos faz lembrar<br />
aquele que, caindo na cubata onde se guar<strong>da</strong>ra o milho, para livrálo<br />
<strong>da</strong> chuva, destrói, em Vôvô Bartolomeu, o sonho do narrador,
316 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
mostrado como um mais novo no corpo <strong>da</strong> estória. O importante,<br />
e Jacinto reforça isso, é não se dobrar frente aos obstáculos interpostos<br />
entre o sujeito e seus sonhos, <strong>da</strong>í a necessi<strong>da</strong>de de se manter<br />
acesa a chama <strong>da</strong> esperança.<br />
Também a chuva devastadora, nos passos <strong>da</strong> trajetória<br />
iniciática dos três contos de Luuan<strong>da</strong>, a exemplo do que ocorre<br />
no de Jacinto, cessa. No segundo deles, tal chuva se transforma<br />
em "chuva de cacimbo" (p. 82), a entrar pelas janelas <strong>da</strong> prisão de<br />
modo suave e fresco. Por sua vez, o vento deixa de ser uma ameaça,<br />
para transformar-se em "vento frio do cacimbo [que] corria<br />
às gargalha<strong>da</strong>s, com os papéis pelo musseque fora" (p. 76). No<br />
último conto, de modo amigo e apaziguado, esse mesmo vento<br />
ressurge "a soprar devagar as folhas <strong>da</strong>s mandioqueiras" e igualmente<br />
"devagar e cheio de cui<strong>da</strong>dos e amizade, [ ... ] o vestido<br />
gasto [de Bina] contra o corpo novo" (pp. 123 - 124).<br />
Enfim, a hora é de paz, pois o leitor já compreendeu. De<br />
certo modo iniciado, ele não teme mais a violência do primeiro<br />
vento. Acredita que a esperança, angolanamente, não se deixa<br />
morrer e a fome, a miséria, a privação perderão a força no momento<br />
<strong>da</strong> chega<strong>da</strong> do sol <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de. O espaço espremido e torto<br />
<strong>da</strong>s ruas e cubatas dos musseques, na geografia instigante do<br />
texto - Rangel, Sambizanga, Lixeira, Braga, São Paulo, Marçal,<br />
etc. -, a exemplo do cajueiro, não será destruído pela ordem erigi<strong>da</strong><br />
na Baixa, espaço somente referido no texto e entremostrado como<br />
despido <strong>da</strong>s cores <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong> com alegria, não obstante to<strong>da</strong> a<br />
falta e privação.<br />
Os meninos, por sua vez, já sem suas fogueiras, ain<strong>da</strong> dispõem<br />
<strong>da</strong> sombra amiga <strong>da</strong>s velhas árvores e aprendem a linguagem<br />
<strong>da</strong>s gentes e dos bichos de sua terra. De nossa parte, nós,<br />
leitores, como eles, pelo menos no tempo histórico <strong>da</strong> enunciação<br />
do texto, entendemos ser possível sonhar, acreditando na veraci<strong>da</strong>de<br />
do vôo de uma galinha, cuja gordura não a impede de ir em<br />
busca do canto amigo de um companheiro a chamá-la. Picando e<br />
arranhando fundo os braços-grade <strong>da</strong> ordem outra, repressora por<br />
excelência, do venal sargento, Cabíri nos ensina que, pela resistência<br />
ao dominador, se pode voar "na direção do sol" Cp. 122).<br />
Hoje, quase cinqüenta anos depois do momento de escrita<br />
do texto (segundo conversa com Luandino), aprisionados nos braços-grade<br />
<strong>da</strong> globalização neoliberal, não podemos deixar de lem-
Luuan<strong>da</strong> 40 anos: a força <strong>da</strong>s palavras mais velhas<br />
317<br />
brar O verso de Drummond - "E agora, José" (1955, p. 196).<br />
Perguntamos, então, ao outro José, angolano: Cabíri continua a<br />
voar Xíxi e Zeca Santos podem pescar o peixe hoje para comê-lo<br />
amanhã Beto e Xico construíram o futuro E Garrido, Dosreis e<br />
Xi co Futa Por onde an<strong>da</strong>rão Teimosamente, só a esperança escondi<strong>da</strong><br />
na castanha, no sape-sape e no ovo será capaz de, revi vi<strong>da</strong>,<br />
poder responder.<br />
2. Uma festa linguajeira e sua beleza fàrra<br />
Não é preciso explicar onde busquei a expressão "beleza<br />
forra". João Vêncio é o seu "dono", doando-a, a nós, leitores, na<br />
frase pela qual expressa seu medo de rebentar o fio, não mais <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>, mas <strong>da</strong> construção <strong>da</strong> estória, pensa<strong>da</strong> como a resultante de<br />
uma parceria autoral entre ele e seu letrado companheiro de prisão:<br />
Ia rebentando o fio - a missanga espalhava, prejuizão. Que eu<br />
não dou mais encontro com um muadié como o senhoro para<br />
orquestrar as cores. Comigo era mistura escrava; no senhoro é<br />
a beleza forra (1987, p. 81)<br />
Desse segundo fio que, como o <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, não se pode deixar<br />
partir, gostaria de falar brevemente e de modo bastante<br />
esquemático. Trata-se do fio <strong>da</strong> escrita artística ou <strong>da</strong> elaboração<br />
estética <strong>da</strong> obra, pensa<strong>da</strong>, também ela, na esteira <strong>da</strong>s imagens recorrentes<br />
<strong>da</strong> castanha, do sape-sape e do ovo, como uma possibili<strong>da</strong>de<br />
de interligação de ca<strong>da</strong> princípio com seu fim e vice-versa.<br />
Essa interligação se dá quando o artista inventa ca<strong>da</strong> nova frase,<br />
palavra, imagem, sonori<strong>da</strong>de, ou mesmo busca o exato movimento<br />
dos sentidos expressos na e pela obra artística. A escrita assim<br />
concebi<strong>da</strong> transforma-se também em árvore, fazendo-se forma de<br />
resistência frente à fala impositiva do outro, muitas vezes empenhado<br />
em "derrubá-la" por total desconhecimento <strong>da</strong> eficácia estética<br />
de sua força ancestral. Ela é, sobretudo, a responsável pelo<br />
nascimento de outra forma de vi<strong>da</strong>, a ficcional.<br />
O discurso literário de Luandino, por ser árvore, oferece a<br />
sombra sob a qual nos assentamos nós, seus leitores. Como artista,<br />
voltando a Barthes, já agora em seus Fragmentos de um discurso<br />
amoroso, ele faz "<strong>da</strong> forma um conteúdo" (1981, p. 132).
318 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Nasce, por esse seu gesto, a "beleza forra", tal como pensa<strong>da</strong> por<br />
Vêncio, superando-se, assim, qualquer possibili<strong>da</strong>de de escravidão<br />
ou aprisionamento. Volto a lembrar o cajueiro, já agora projetando,<br />
para o fio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> narrativa, o que se dá com o outro fio, o<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana. Para se construir tal fio, já sabemos - "É preciso<br />
dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser<br />
mais fácil, na raiz dos paus, na raiz <strong>da</strong>s coisas, na raiz dos casos, <strong>da</strong>s<br />
conversas" (p. 54). Tanto na vi<strong>da</strong>, como na ficção. No caso desta<br />
última, tal como a concebe VênciolLuandino, ela se esconde no<br />
mágico encontro do "fio" e <strong>da</strong>s "missangas" e na possibili<strong>da</strong>de de<br />
ambos se acamara<strong>da</strong>rem, <strong>da</strong>ndo origem àquele "colar de cores<br />
amiga<strong>da</strong>s" que é a obra, tal como nos chega às mãos e aos olhos.<br />
A meu ver, para conseguir seu "arco-íris" de palavras,<br />
Luandino aciona dois movimentos que passam, respectivamente<br />
por dois procedimentos discursivos distintos, assim como por dois<br />
- às vezes até mais - códigos lingüísticos. Tais procedimentos e<br />
códigos se atravessam e se suplementam, combinando, de um lado,<br />
no plano discursivo, as cores <strong>da</strong>s missangas, que só o literário<br />
conhece e sabe orquestrar, com o fio <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de no qual tais<br />
missangas se sustentam. De outra parte, o atravessamento encontra<br />
sua raiz no manejo <strong>da</strong> língua portuguesajá acamara<strong>da</strong><strong>da</strong> com<br />
as línguas nacionais, em uma clara e nova demarcação do limite<br />
<strong>da</strong>s fronteiras entre dois códigos que, durante muito tempo, se<br />
fizeram astros excludentes e em franca rota de colisão.<br />
Pelo encontro quase genesíaco <strong>da</strong> ancestrali<strong>da</strong>de angolana<br />
<strong>da</strong> voz com a moderni<strong>da</strong>de européia <strong>da</strong> letra, também o passado<br />
se convoca em Luuan<strong>da</strong> para alimentar o presente e assegurar o<br />
futuro. O texto, como um todo, se faz uma maka, seguindo a<br />
classificação de Chatelain (1964). Nela se encadeiam casos e casos<br />
e mais casos. Forma-se, desse modo, um elo instigante de<br />
contos contados ou de textos "falados ouvidos vistos", para usar<br />
uma expressão de Manuel Rui (1985). Tais estórias se aninham no<br />
colo <strong>da</strong> letra literária, criando um texto suplementado por diversos<br />
tempos, matrizes, memórias, saberes. O narrador <strong>da</strong> escrita<br />
como que veste a pele dos contadores de sua terra, ritualizando<br />
seu dito artístico pelas palavras mais velhas que sua própria sabedoria<br />
põe em circulação. A raiz dos casos, <strong>da</strong>s conversas, enfim, o<br />
fio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> narrativa lá estão, intratáveis, sustentados pela voz que<br />
tudo semeia e sedimenta, como castanha parti<strong>da</strong> de cuja casca
Luuan<strong>da</strong> 40 anos: a força <strong>da</strong>s palavras mais velhas<br />
319<br />
seca e escura nasce o pau de caju do texto literário,<br />
arquiteturalmente tão bem edificado pela letra em festa:<br />
Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que<br />
dizem. Mas juro me contaram assim e não admito que ninguém<br />
que duvi<strong>da</strong> de Dosreis, que tem mulher e dois filhos e rouba<br />
patos [ ... ]<br />
E isto é a ver<strong>da</strong>de, mesmo que os casos nunca tenham passado.<br />
(p. 96-97)<br />
A "ver<strong>da</strong>de" assegura o caráter de maka do contado, na<br />
melhor tradição <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de. Por sua vez, o fato de os acontecimentos<br />
nunca se terem passado garante a eficácia <strong>da</strong> ficção, cumprindo-se<br />
a tradição literária do ocidente. Entre esses dois<br />
parâmetros discursivos, Luuan<strong>da</strong> com seus contos se equilibra,<br />
ela mesma um "papagaio" sem poleiro fixo ou a sombra amiga de<br />
um sape-sape sob o qual nos abrigamos, nós, seus leitores, para<br />
ouvir as estórias de um "mais velho" contador que sabe como<br />
poucos inventar estórias sobre estórias.<br />
Quanto à questão <strong>da</strong> língua, penso que Luandino, como<br />
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Vere<strong>da</strong>s (1968), por exemplo,<br />
dobra a língua em que o texto se escreve, o português, fazendo-a<br />
aceitar o uso <strong>da</strong> terra, única forma possível para que esta<br />
terra ela própria possa falar nos textos. Dá-se, em todos os sentidos,<br />
uma forma de tradução, como fazem Beto e Xico com a<br />
língua de Cabíri. Conforme eu mesma afirmei, em ensaio de 1988,<br />
mas só publicado em 1995, Luandino tenta recuperar o fio partido<br />
<strong>da</strong> imposição <strong>da</strong> fala alheia, a fim de também torná-la sua. Nesse<br />
afã, desimobiliza sua fala artística, fazendo com que nós, seus leitores,<br />
vejamos, ouçamos, sintamos os cheiros e os tatos dessas palavras<br />
engravi<strong>da</strong><strong>da</strong>s fono-morfo-sintática e semanticamente no corpo<br />
de sua textuali<strong>da</strong>de. O quimbundo se faz o sêmen que possibilita a<br />
criação nova, genesiacamente concebi<strong>da</strong> como diferença.<br />
Como sua personagem João Vêncio ensina, surge, então,<br />
de acordo com o já afirmado, uma "beleza forra", construí<strong>da</strong> por<br />
esse atravessamento linguajeiro no qual tudo serve para extrair a<br />
macia sumaúma <strong>da</strong>s palavras próprias e alheias. Há uma cena narrativa,<br />
no segundo conto, recupera<strong>da</strong> pela memória de Xi co Futa,<br />
que dá bem a dimensão desse atravessamento de línguas e <strong>da</strong> criação<br />
literária luandina, pelo que o autor se faz, novamente, uma
320 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
espécie de experiente mestre de cerimônias do rito iniciático que<br />
só o bom texto literário é capaz de poder assegurar.<br />
Eis a cena: quando o auxiliar <strong>da</strong> cadeia de Luan<strong>da</strong>, Zuzé,<br />
segundo o relato de Xi co Futa, chegava às celas pela manhã, cumprimentava<br />
os presos, dizendo, dentro <strong>da</strong> melhor norma <strong>da</strong> língua<br />
portuguesa: "-Bom-dia, meus senhores!" E <strong>completa</strong> o amigo de<br />
Dosreis:<br />
Nem nazekele kié-nazeka kiambote, nem na<strong>da</strong>, era só assim a<br />
outra maneira civiliza<strong>da</strong> como ele dizia, mas também depois<br />
ficava na boa conversa de patrícios e, então, aí o quimbundo já<br />
podia assentar no meio de to<strong>da</strong>s as palavras, ele até queria,<br />
porque falar bem-bem português não podia (p. 44)<br />
A citação recupera de forma explícita, não, como querem<br />
tantos, o "drama" lingüístico do colonizado, mas a natureza de sua<br />
fala própria, construí<strong>da</strong> pelo atravessamento de seu legado lingüístico<br />
ancestral e a língua trazi<strong>da</strong> pelo outro, quando viu concretizado seu<br />
afã de singrar os mares nunca <strong>da</strong>ntes navegados, chegando à África<br />
e à América, dentre outros lugares. As línguas européias viajantes<br />
se encontraram com o quimbundo, o umbundo, o ronga, o macua e<br />
também com o tupi, o quéchua, o guarani e tantas outras guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />
no cofre <strong>da</strong>s memórias culturais dos povos de origem.<br />
O trabalho estético de Luandino - na esteira de outros que<br />
o precederam em Angola, desde Cordeiro <strong>da</strong> Matta em "Kicôla!";<br />
passando por Viriato <strong>da</strong> Cruz com "Makezú" ou mesmo José<br />
Craveirinha, em Moçambique, com o seu "Hino a minha terra" -<br />
consiste em revolver, na quin<strong>da</strong> simbólica, as missangas, j á agora<br />
lingüísticas, mistura<strong>da</strong>s em denso e festivo colorido. Com elas,<br />
entrecruza<strong>da</strong>s, em alegres jogos linguajeiros, o já senhor <strong>da</strong> letra<br />
encontra os elementos de que necessita para criar os colares <strong>da</strong>s<br />
estórias produzi<strong>da</strong>s por esses mesmos prazeirosos jogos.<br />
Acamara<strong>da</strong>m-se as línguas, como se dera com a voz e a letra e<br />
tudo se harmoniza, apontando o caminho <strong>da</strong> esperança.<br />
Para concluir essa minha corri<strong>da</strong> atrás de uma tão ágil serpente<br />
colori<strong>da</strong> e esperta, chama<strong>da</strong> Luuan<strong>da</strong>, só me resta dizer que<br />
José Luandino Vieira consegue, nesta e em outras obras por ele<br />
assina<strong>da</strong>s, desenhar, com palavras, um belo e surpreendente arcoíris,<br />
imagem que parece encantá-lo de modo especial. Esse arcoíris<br />
se inventa com os seguintes elementos: a maestria do artista
Luuan<strong>da</strong> 40 anos: a força <strong>da</strong>s palavras mais velhas<br />
321<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> real; a sabedoria dos narradores criados por ele; a força, a<br />
coragem e a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de dos seus seres de papel chamados personagens<br />
e, sol<strong>da</strong>ndo tudo, o amor por sua terra, Angola,<br />
metonimiza<strong>da</strong> por Luan<strong>da</strong>, talvez, pura e simplesmente, o amor<br />
do amor. Terminamos, por isso, com Vêncio, dizendo de Luuan<strong>da</strong>,<br />
de Luandino Vieira: esta obra é "beleza forra"! E ponto final.<br />
Referências<br />
ANDRADE, Carlos Drummond. Fazendeiro do ar e Poesia até agora. 2 ed.<br />
Rio de Janeiro: José Olympio, 1955.<br />
ASSIS JÚNIOR, António de. O segredo <strong>da</strong> morta: Romance de costumes<br />
angolenses. 2 ed. Lisboa: Edições 70, 1979.<br />
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo:<br />
Perspecti va, 1977.<br />
--o Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortência dos Santos. Rio<br />
de Janeiro: Francisco Alves, 1981.<br />
CHATELAIN, Héli. COrg.). Contos populares de Angola. Ed. Portuguesa<br />
dirigi<strong>da</strong> e orienta<strong>da</strong> pelo Dr. Fernando C. P. de Lima. Lisboa: Agência - geral<br />
do Ultramar, 1964.<br />
CRAVEIRINHA, José. Xigubo. 2 ed. Lisboa: Edições 70, 1980.<br />
CRUZ, Viriato <strong>da</strong>. Poemas. Lisboa: Minerva, 1961.<br />
FERREIRA, Manuel. "Luuan<strong>da</strong>" / Socie<strong>da</strong>de Portuguesa de Escritores - um<br />
caso de agressão ideológica. In Luandino: José Luandino Vieira e sua obra.<br />
Lisboa: Edições 70, 1980, p. 105-116.<br />
JACINTO, António. Vôvô Banolomeu. Lisboa: Edições 70, 1979.<br />
MACÊDO, Tania. Angola e Brasil- estudos comparados. São Paulo: Arte &<br />
(';~ncia, 2002.<br />
MATTA, J. D. Cordeiro <strong>da</strong>. Delírios. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa <strong>da</strong><br />
Moe<strong>da</strong>, 2001.
322 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
MELO, Dario de. Quem vai buscar o futuro [Cuba]: José Martí, 1986.<br />
PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: O lugar <strong>da</strong> ancestrali<strong>da</strong>de<br />
na ficção angolana do século xx. Niterói: Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal<br />
Fluminense, 1995.<br />
RIBAS, Óscar. Missosso: Literatura tradicional angolana. Luan<strong>da</strong>: Tipografia<br />
Angolana, 1961, v. 1.<br />
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Vere<strong>da</strong>s. Rio de Janeiro: José<br />
Olympio, 1968.<br />
RUI, Manuel. Fragmento de ensaio: Eu e o outro - o Invasor ou em poucas<br />
três linhas uma maneira de pensar o texto. In MEDINA, Cremil<strong>da</strong>. Sonha<br />
Mamana África. São Paulo: Epopéia / Secretaria de Estado de Cultura, 1987,<br />
p. 308-310.<br />
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção.<br />
4 ed. São Paulo: Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, 2004.<br />
TRONI, Alfredo. Nga Mutúri: Cenas de Luan<strong>da</strong>. Prefácio de M. António.<br />
Lisboa: Edições 70, 1973.<br />
VIEIRA, José Luandino. Luuan<strong>da</strong>: Contos. São Paulo: Ática, 1982.<br />
--o Lourentino, dona Antónia de Sousa Neto & eu. Lisboa: Edições 70,<br />
1981,<br />
--o João Vêncio: Os seus amores. 2 ed. Lisboa: Edições 70,1987.
323<br />
Dom Quixote: Utopias<br />
André Trouche e Lívia Reis, (orgs.)<br />
Niterói: EdUFF, 2005.<br />
Rodrigo F. Labriola<br />
(UERJ)<br />
Poucas palavras estão hoje tão deprecia<strong>da</strong>s de sentido como<br />
"Quixote" ou "Utopia": ao que parece, durante as Celebrações<br />
Centenárias o mercado simbólico sofre um surto inflacionário que<br />
atinge com singular virulência a cultura li vresca. Depois dessa emissão<br />
incontrola<strong>da</strong> de significantes, geralmente certas obras literárias<br />
remanescem ain<strong>da</strong> mais longínquas do que já eram para os leitores<br />
não especializados. Tudo isso, caso fosse admissível uma teoria <strong>da</strong><br />
economia política dos signos ... Mas talvez seja tempo de nos afastar<br />
dos modelos econômicos sobre-impressos à literatura em direção<br />
de outras configurações capazes de agir melhor sobre esse fenômeno<br />
de esvaziamento nos discursos do cotidiano. Daí o desafio<br />
implícito no título <strong>da</strong> compilação Dom Quixote: Utopias, organiza<strong>da</strong><br />
por André Trouche (UFF) e Lívia Reis (UFF). Sem aditamentos<br />
nem prevenções, essas poucas palavras previsíveis ganham uma nova<br />
complexi<strong>da</strong>de quando considerarmos a forma e o conteúdo do livro,<br />
neste caso feliz e inextricavelmente relacionados.<br />
Com o apoio <strong>da</strong> Prefeitura de Niterói, a edição se apresenta<br />
cui<strong>da</strong><strong>da</strong> tanto nos textos como na reprodução <strong>da</strong>s imagens que<br />
complementam alguns dos capítulos. Não se trata, porém, de uma<br />
obscena edição de luxo para glorificar costumeiros atos de governo<br />
ou de verbas universitárias. A tentativa é refletir sobre a obra<br />
de Cervantes sem apagar nem sua escrita nem seus possíveis leitores<br />
contemporâneos. Nesse sentido, um acerto indiscutível é a<br />
inclusão, no mesmo nível dos trabalhos críticos, de quatro fragmentos<br />
chaves do Dom Quixote em espanhol, e também <strong>da</strong>s suas<br />
respectivas traduções livres para o português, a cargo de Magnólia<br />
Brasil Barbosa do Nascimento (UFF), Antonio Esteves (UNESP-
324 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Assis), Susana Planas (UFF) e Heloisa Costa Milton (UNESP<br />
Assis). A presença <strong>da</strong>s duas línguas deve ser destaca<strong>da</strong> se levarmos<br />
em conta o apoio governamental à edição e a sua esperável<br />
distribuição nas bibliotecas escolares, pois indica uma vontade não<br />
de uma mera difusão mas <strong>da</strong> procura do ensino efetivo do espanhol<br />
no Brasil. Os claros comentários dos tradutores que seguem<br />
aos fragmentos de Cervantes reforçam este objetivo, porque se é<br />
ver<strong>da</strong>de que a boa literaturajá não é de ninguém mas <strong>da</strong> memória<br />
ou <strong>da</strong> tradição, então to<strong>da</strong> língua pode também ser uma forma<br />
extrema<strong>da</strong> <strong>da</strong>s literaturas. Certamente, recuperar o Dom Quixote<br />
é uma ilustre compensação <strong>da</strong> banali<strong>da</strong>de de certos materiais didáticos;<br />
mas, por outro lado, as traduções junto ao original propõem<br />
uma hipótese problemática para a tecnocracia lingüística:<br />
que a vitali<strong>da</strong>de de uma língua depende em grande medi<strong>da</strong> do<br />
contato com as outras e, sobretudo, <strong>da</strong> sua apropriação literária.<br />
A liber<strong>da</strong>de para traduzir, e o conseqüente sinal aberto para que<br />
muitos leitores amadores se atrevam a realizar suas traduções,<br />
constituem de fato uma prazerosa indústria para produzir ou reencontrar<br />
sentidos na própria língua, abalando o vazio dos lugares-comuns.<br />
Ler não é outra coisa senão isso; nesse ponto, a cultura<br />
audiovisual ain<strong>da</strong> leva fral<strong>da</strong>s, ou pior.<br />
De maneira complementar, outro mérito <strong>da</strong> compilação é<br />
não ocultar as tensões decorrentes do caótico estado <strong>da</strong> questão<br />
em torno <strong>da</strong> significação atual do Dom Quixote e <strong>da</strong>s utopias.<br />
Percebe-se em todos os autores a preocupação por esse assunto<br />
para além <strong>da</strong>s homenagens oportunistas. Por isso, os textos críticos<br />
trabalham por vezes enfoques teóricos que resultam contraditórios<br />
entre si, mas a vantagem do livro reside precisamente nessa<br />
plurali<strong>da</strong>de, que libera o leitor e o autoriza a escolher alguns deles,<br />
ou quiçá nenhum. Entre (s temas mais relevantes para a literatura<br />
compara<strong>da</strong> se encontram as múltiplas relações do Quixote<br />
com a obra de Machado de Assis, grande leitor de Cervantes. Maria<br />
Augusta <strong>da</strong> Costa Vieira (USP) mapeia com rigorosi<strong>da</strong>de a recepção<br />
do.Quixote no Brasil, e sua síntese evidencia a necessi<strong>da</strong>de de<br />
aprofun<strong>da</strong>r os estudos <strong>da</strong>s conexões entre o manco de Lepanto e<br />
o bruxo do Cosme Velho, ain<strong>da</strong> pouco explora<strong>da</strong>s pela crítica.<br />
Embora limitado aos problemas de gênero, o trabalho de Eurídice<br />
Figueiredo (UFF) serve a tal propósito e adiciona ao quadro a<br />
perspectiva de Flaubert. A mexicana María Stoopen Galán (UAM)
325<br />
analisa a ficção e a língua no Quixote a partir dos discursos sobre<br />
o corpo e a subjetivi<strong>da</strong>de, não sem estimulantes surpresas: consegue<br />
driblar as fartamente repeti<strong>da</strong>s (e maiormente mal li<strong>da</strong>s) citações<br />
de Michel Foucault e Norbert Elias. Por sua vez, a atuali<strong>da</strong>de<br />
irrompe por duas vias diferencia<strong>da</strong>s nos textos de Gustavo Bernardo<br />
Krause (UERJ) e Márcia Paraquett (UFF). No primeiro, o ceticismo<br />
se alia à ironia em defesa <strong>da</strong> ficção: é possível que ca<strong>da</strong> metáfora<br />
quixotesca carregue a semente estéril de sua própria destruição<br />
(como nas Vanguar<strong>da</strong>s), mas o âmago <strong>da</strong> literatura goza e faz gozar<br />
disso, entanto o discurso <strong>da</strong> política a aproveita para fins medíocres:<br />
o presidente venezuelano Chaves, e também outros políticos,<br />
são prova disso segundo o autor. Por sua vez, o texto de Márcia<br />
Paraquett estu<strong>da</strong> com singular ênfase o paradigma de recepção contemporâneo<br />
fora <strong>da</strong> literatura, seguindo o modelo <strong>da</strong> análise do<br />
discurso. As suas observações sobre uma charge do desenhista N ani<br />
arriscam uma leitura política do (último) escân<strong>da</strong>lo no governo do<br />
presidente Lula em tomo do ex ministro Palocci.<br />
Menção aparte exigem os artigos de Lygia Rodrigues Vianna<br />
Peres e de Paulo Bezerra, ambos professores <strong>da</strong> UFF, devido a<br />
sua originali<strong>da</strong>de. A primeira descreve a "memória literária" do<br />
personagem de Dom Quixote, que dependendo <strong>da</strong>s circunstâncias<br />
e <strong>da</strong>s impressões visuais ao longo <strong>da</strong> história vai lembrando frases<br />
que poderia ter lido na sua biblioteca ou ouvido dos romances<br />
populares; assim, Alonso Quijano (em tanto leitor fanático) compartilha<br />
com Cervantes "a memória como registro específico <strong>da</strong><br />
expressão literária". A conclusão é instigante: o Quixote é um delírio<br />
motivado pelo temporal e simultâneo esquecimento do autor<br />
e dos seus personagens. Quanto ao trabalho de Paulo Bezerra, a<br />
figura de Sancho Pança é focaliza<strong>da</strong> à luz <strong>da</strong> carnavalização de<br />
Bakhtin. O deslocamento <strong>da</strong> leitura para o parceiro lhe permite<br />
estabelecer os diferentes tipos de diálogo do fi<strong>da</strong>lgo com os outros,<br />
inclusive com o apócrifo de Avellane<strong>da</strong>. O jogo de duplicações<br />
reconstrói com sucesso a figura do Quixote como um personagem<br />
artificial, plural e polifônico, afastado dos estereótipos tanto<br />
<strong>da</strong> loucura como do heroísmo.<br />
Ca<strong>da</strong> um dos textos do livro, por vias diferencia<strong>da</strong>s, tenta<br />
trazer para terra o problema <strong>da</strong>s utopias. Isto é: procura que Dom<br />
Quixote seja um livro destinado à ativi<strong>da</strong>de civil <strong>da</strong> leitura, e que<br />
os leitores pensem sobre o mundo que os rodeia e nas suas possi-
326 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
bili<strong>da</strong>des. Esse seria um bom exercício para fazer também em outros<br />
casos, como o <strong>da</strong>quele homem que em 1965 escreveu "otra<br />
vez siento bajo mis talones el costillar de Rocinante" no início de<br />
uma carta dirigi<strong>da</strong> a seus pais, antes de ir rumo à Bolívia. A ele<br />
devemos, também, adjudicar uma leitura <strong>da</strong> obra de Cervantes<br />
talvez bem mais sutil do que cremos.
327<br />
Conceitos de literatura e cultura<br />
Eurídice Figueiredo (org.)<br />
Juiz de Fora: Editora UFJF, Niterói:EdUFF, 2005.<br />
Maisa Navarro<br />
(Universi<strong>da</strong>de Federal do Pará)<br />
o propósito deste livro é o mapeamento de conceitos<br />
identitários e literários que surgiram desde as vanguar<strong>da</strong>s e transitaram<br />
pelas Américas até o final do século XX a fim de lhes rastrear<br />
o sentido, a origem e, sobretudo, o entrecruzamento e a<br />
superposição de noções. Esses conceitos atentam para reali<strong>da</strong>des<br />
culturais às vezes semelhantes, às vezes diferentes, e foram criados<br />
e utilizados por teóricos e críticos em várias partes do continente<br />
americano e no Caribe.<br />
Resultado de um amplo trabalho de pesquisa desenvolvi<strong>da</strong><br />
pelo Grupo de Trabalho (GT) <strong>da</strong> ANPOLL, o livro "Relações literárias<br />
interamericanas", organiza-se em forma de um glossário em<br />
que constam 20 ensaios, referentes a 20 conceitos fun<strong>da</strong>mentais<br />
do comparativismo interamericano. Os conceitos e os respectivos<br />
autores são os seguintes:<br />
Americani<strong>da</strong>de e Americanização - Zilá Bernd<br />
Antropofagia - Heloísa Toller Gomes<br />
Barroco e neo-barroco - Heloísa Costa Milton<br />
Boom e pós-boom - André Trouche<br />
Criouli<strong>da</strong>de e crioulização - Mag<strong>da</strong>la França Vianna<br />
Entre-lugar - Nubia Hanciau<br />
Heterogenei<strong>da</strong>de - Graciela Ortiz<br />
Híbrido, hibridismo e hibridização - Stelamaris Coser<br />
Identi<strong>da</strong>de cultural e identi<strong>da</strong>de nacional- Eurídice<br />
Figueiredo e Jovita Maria Gerheim Noronha<br />
Indigenismo - Silvina Carrizo<br />
Literaturas migrantes - Maria Bernadette Porto e Sonia Torres
328 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Mestiçagem - Silvina Carrizo<br />
Negritude, negrismo e literaturas de afro-descendentes -<br />
Eurídice Figueiredo, Maria Consuelo Cunha Campos, Ana<br />
Beatriz Gonçalves e Márcia Pessanha<br />
Multiculturalismo e pluriculturalismo - Arnaldo Rosa Vianna<br />
Pós-colonial - Eloína Prati dos Santos<br />
Pós-moderno - Giséle Manganelli Fernandes<br />
Realismo mágico e realismo maravilhoso - Antonio Roberto<br />
Esteves e Eurídice Figueiredo<br />
Regionalismo - Dilma Castelo Branco Diniz e Haydée Ri<br />
beiro Coelho<br />
Textuali<strong>da</strong>des indígenas - Cláudia Neiva de Matos<br />
Transculturação e transculturação narrativa - Lívia de Freitas Reis<br />
Trata-se, portanto, de uma obra de referência, que conta<br />
com a participação de especialistas <strong>da</strong>s várias literaturas nas quatro<br />
principais línguas <strong>da</strong>s Américas (inglês, espanhol, francês e<br />
português), que podem <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> circulação destes conceitos,<br />
com as referências bibliográficas <strong>da</strong>s fontes, as diversas significações<br />
que eles foram assumindo ao longo do tempo e do espaço<br />
percorridos. Muitas destas noções tentam definir o estatuto <strong>da</strong><br />
cultura americana e, sobretudo, latino-americana, às vezes mais<br />
particularmente a literatura dos países <strong>da</strong>s Américas em oposição<br />
à literatura européia. Os termos têm origens diversas, ora antropológicas,<br />
ora literárias, ora midiáticas.<br />
O estudo <strong>da</strong>s literaturas nacionais, de maneira estanque, às<br />
vezes impede a compreensão de que tendências surgi<strong>da</strong>s em um<br />
país ou área lingüística têm correlação com outras muito mais<br />
amplas que atingem outras regiões <strong>da</strong> América e especialmente <strong>da</strong><br />
América Latina. Assim, as interrelações que os autores dos diferentes<br />
ensaios revelam na presente obra devem suscitar outros<br />
desdobramentos a fim de se possam detectar os movimentos por<br />
que passam as literaturas do continente. Os autores ressaltam que,<br />
como um pensamento se inscreve na história de ca<strong>da</strong> país, é preciso<br />
ter o cui<strong>da</strong>do de, ao usar um conceito surgido em outro espaço<br />
de enunciação, refazer todo o seu percurso a fim de não<br />
homogeneizá-Io, eliminando as nuances que constituem a riqueza<br />
e a produtivi<strong>da</strong>de que ele tinha em seu surgimento.
A literatura compara<strong>da</strong> no Brasil pode tirar partido <strong>da</strong>s contribuições<br />
que os estudos culturais e pós-coloniais proporcionaram,<br />
sobretudo nas pesquisas sobre as questões identitárias, nacionais<br />
e transnacionais.<br />
329
330 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Jacques Derri<strong>da</strong>: pensar a<br />
desconstrução<br />
Evando Nascimento (Org.)<br />
S. Paulo: Estação Liber<strong>da</strong>de, 2005.<br />
Carla Rodrigues<br />
(PUC-RJ)<br />
Numa ent<strong>revista</strong> que se manteve inédita até a sua morte,<br />
realiza<strong>da</strong> pelo jornal francês Le Monde} e publica<strong>da</strong> em caderno<br />
especial póstumo, o filósofo Jacques Derri<strong>da</strong> responde à questão<br />
que atravessou todo seu pensamento: o que é a desconstrução<br />
Ele diz: "Se eu quisesse <strong>da</strong>r uma descrição econômica, elíptica <strong>da</strong><br />
desconstrução, eu diria que é um pensamento <strong>da</strong> origem e dos<br />
limites <strong>da</strong> questão 'o que é', a questão que domina to<strong>da</strong> a história<br />
<strong>da</strong> filosofia. Ca<strong>da</strong> vez que se tenta pensar a possibili<strong>da</strong>de de 'o<br />
que é', de colocar uma pergunta sobre essa forma de questão, ou<br />
de se interrogar sobre a necessi<strong>da</strong>de dessa linguagem dentro de<br />
uma certa língua, uma certa tradição, isso que se faz nesse momento<br />
não se presta senão a um certo ponto <strong>da</strong> questão 'o que<br />
é"'2. Em outra ent<strong>revista</strong>, é a psicanalista Elisabeth Roudinesco<br />
quem afirma: "Às vezes tenho a impressão de que o mundo atual<br />
se parece um pouco com o senhor e seus conceitos, que nosso<br />
mundo está desconstruído e que se tomou derridiano a ponto de<br />
refletir, como uma imagem num espelho, o processo de<br />
descentramento do pensamento, do psiquismo e <strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de<br />
que o senhor contribuiu para pôr em prática"3 O raciocínio de<br />
Roudinesco indicaria que a desconstrução não seria obra de<br />
Derri<strong>da</strong>, mas algo que, como o próprio filósofo afirma, acontece.<br />
Esse acontecimento, no entanto, não se <strong>da</strong>ria sem traumas.<br />
É em tomo do acontecimento <strong>da</strong> desconstrução que gira a<br />
coletânea Jacques Derri<strong>da</strong>: Pensar a desconstrução, organiza<strong>da</strong><br />
por Evando Nascimento e edita<strong>da</strong> em 2005 pela Estação Liber<strong>da</strong>de.<br />
O principal texto do livro é o inédito "O perdão, a ver<strong>da</strong>de, a<br />
reconciliação: qual gênero", íntegra <strong>da</strong> conferência 4 do filósofo<br />
I A ent<strong>revista</strong> foi realiza<strong>da</strong> em<br />
30 de j unho de 1992. Em<br />
edição especial póstuma, o<br />
jornal publicou apenas a<br />
resposta para a pergunta: "o que<br />
é a desconstrução". Le Monde,<br />
12 de outubro de 2004, p. 3.<br />
2 "Si je voulais donner une<br />
description économique,<br />
elliptique de la déconstruction,<br />
je dirais que c' est une pensée de<br />
I' origine et des limites de la<br />
question 'qu'est-ce que .. .',Ia<br />
question qui domine toute<br />
I'histoire de la philosophie.<br />
Chaque fois que I' on essaie de<br />
penserla possibilité du 'qu'estce<br />
que .. .', de poser une<br />
question sur cette forme de<br />
question, ou de s'interroger sur<br />
la nécessité de ce langage <strong>da</strong>ns<br />
une certaine langue, une<br />
certaine tradition, etc., ce qu' on<br />
fait à ce moment-Ià ne se prête<br />
que jusqu' à un certain point à<br />
laquestion 'qu'est-ceque..."'.<br />
Tradução minha.<br />
J DERRIDA, Jacques e<br />
ROUDINESCO, Elisabeth. De<br />
que amanhã ... Rio de Janeiro:<br />
Jorge Zahar, 2004, p. 11.<br />
4 Conferência proferi<strong>da</strong> durante<br />
o Colóquio Internacional<br />
"Jacques Derri<strong>da</strong> 2004: pensar<br />
a desconstrução - questões de<br />
política, ética e estética",<br />
realizado na Maison de France,<br />
no Rio de Janeiro, em agosto de<br />
2004, e promovido pela UFJF<br />
em parceria com o Consulado<br />
Geral <strong>da</strong> França.
331<br />
5 DERRIDA, Jacques. Papelmáquina.<br />
São Paulo: Estação<br />
Liber<strong>da</strong>de, 2004, p. 348.<br />
no colóquio internacional realizado no Rio de Janeiro em agosto<br />
de 2004, dois meses antes de sua morte. Derri<strong>da</strong> foi um pensador<br />
engajado. Sobretudo, um filósofo interessado nas questões contemporâneas.<br />
Foi esse interesse que o levou, ain<strong>da</strong> em meados <strong>da</strong><br />
déca<strong>da</strong> de 1980, a acompanhar o processo de fim do apartheid na<br />
África do Sul e suas conseqüências. A partir de 1994, ano em que<br />
Nelson Mandela instituiu a Comissão de Ver<strong>da</strong>de e Reconciliação,<br />
que pretendia alcançar a "ver<strong>da</strong>de" como condição para o<br />
perdão, Derri<strong>da</strong> acompanhou de perto o funcionamento <strong>da</strong> comissão<br />
sul-africana, parecendo particularmente interessado no<br />
mecanismo de vir à tona, identificando aí um movimento oposto<br />
ao do recalque que tudo esconde e oprime.<br />
Ain<strong>da</strong> que em contextos diferentes, as reflexões de Derri<strong>da</strong><br />
remetem o leitor brasileiro para a inegável pertinência do seu pensamento<br />
sobre o perdão num país como o Brasil, que escondeu a<br />
escravidão e o racismo de tal forma que é imensa a quanti<strong>da</strong>de de<br />
pessoas que crê firmemente viver num país sem discriminação racial.<br />
Derri<strong>da</strong> interroga os objetivos <strong>da</strong> comissão sul-africana: trazer<br />
à tona o trauma e promover a reconciliação, ideal no qual ele<br />
localiza uma expectativa de transcendência (p. 61).<br />
Numa discussão sobre as condições de possibili<strong>da</strong>de do perdão,<br />
Derri<strong>da</strong> mais uma vez desloca o foco. Ao invés de perder-se<br />
no debate sobre o mérito do perdão, afirma que só se pode perdoar<br />
o imperdoável. É desse paradoxo que surge a possibili<strong>da</strong>de de<br />
responsabili<strong>da</strong>de em relação ao perdão. Num diálogo. filosófico<br />
amplo, que vai de Kant a Hegel, Derri<strong>da</strong> guia o leitor pelos caminhos<br />
<strong>da</strong> desconstrução também na política, o que remete à questão<br />
sobre o tipo de contribuição que o pensamento <strong>da</strong><br />
desconstrução tem a <strong>da</strong>r no questionamento sobre os impasses <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> contemporânea.<br />
Conciliar o pensamento dessa desconstrução que acontece<br />
e que aponta os limites <strong>da</strong> questão "o que é" com prática política<br />
era um desafio para o filósofo, como ele mesmo explicou: "Obtendo<br />
êxito de maneira irregular, mas nunca o bastante, tentei,<br />
portanto, ajustar um discurso ou uma prática política às exigências<br />
<strong>da</strong> desconstrução. Não sinto um divórcio entre os meus escritos<br />
e os meus engajamentos, apenas diferenças de ritmos, de modo<br />
de discurso, de contexto, etc." S Os engajamentos a que ele se<br />
refere são sua militância contra a pena de morte, sua defesa dos
332 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
sem-documento, sua adesão à causa <strong>da</strong>s minorias como mulheres,<br />
homossexuais, e sua luta contra o apartheid, essa que o levou a escrever<br />
sobre a experiência dos tribunais de perdão <strong>da</strong> África do Sul.<br />
Na exploração <strong>da</strong> desconstrução a que o livro se propõe<br />
desde seu título, o texto de abertura, "O perdão, o adeus e a herança<br />
em Derri<strong>da</strong>: atos de memória", assinado pelo organizador<br />
Evando Nascimento, serve de ótimo fio condutor para quem deseja<br />
caminhar pelo pensamento de Derri<strong>da</strong>. Uma forma de <strong>da</strong>r as<br />
boas-vin<strong>da</strong>s aos que estão chegando agora, mas também um<br />
desbravamento pelo trabalho do filósofo em relação a questões<br />
contemporâneas. Evando nos guia pelas trilhas, pelos rastros que<br />
nos levam ao último Derri<strong>da</strong>, aquele que esticou até o limite sua<br />
definição para filosofia: "Pensar em ação, fazendo algo". 6<br />
Hospitali<strong>da</strong>de e acolhimento<br />
Jacques Derri<strong>da</strong>: Pensar a desconstrução também é uma<br />
demonstração do acolhimento que o pensamento de Derri<strong>da</strong> teve<br />
no campo <strong>da</strong> Literatura. São dezenove artigos que, de alguma<br />
forma, estão relacionados ao tema. O livro agrupa textos por afini<strong>da</strong>de<br />
temática: "Políticas <strong>da</strong> desconstrução", "Desconstrução,<br />
hospitali<strong>da</strong>de e tradição de pensamento", "Derri<strong>da</strong> e a tradução"<br />
e "Querer acreditar. Nas mãos do intelecto". É do pioneiro Silviano<br />
Santiago, a quem cabe o mérito de ter sido um dos primeiros a<br />
trazer a leitura de Derri<strong>da</strong> para os departamentos de Letras no<br />
Brasil, nos idos <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970, um texto que explora a<br />
différance derridiana como a subversão de uma letra. O incômodo<br />
a que, acrescentado à palavra francesa différence, impede a<br />
diferenciação entre o vocábulo escrito e falado, confundindo as<br />
regras que deveriam separar claramente phoné e escrita. Esse incômodo<br />
Santiago identifica também na proposta de responsabili<strong>da</strong>de,<br />
trabalha<strong>da</strong> por Derri<strong>da</strong> sobretudo em Donner la mort, e<br />
discuti<strong>da</strong> por Santiago em "O silêncio, o segredo, lacques Derri<strong>da</strong>".<br />
Também no campo <strong>da</strong>s Letras estão artigos como "Aquele que<br />
desprendeu a ponta <strong>da</strong> cadeia", de Leyla Perrone-Moisés, que<br />
aproxima Derri<strong>da</strong> do pensador francês Roland Barthes, e o belo<br />
trabalho de Kathrin Holzermayr Rosenfield sobre Machado, Rosa,<br />
Musil e Clarice Lispector.<br />
'Ent<strong>revista</strong> publica<strong>da</strong> em httpJ<br />
/indymedia.aI12all.org/<br />
mail.phpid=83l23. Endereço<br />
consultado em 20 de maio de<br />
2005.<br />
'DERRIDA, Jacques. Donner<br />
la morl. Paris: Galilée, 1999.
333<br />
8 DERRIDA, Jacques. This<br />
strange institution called<br />
Iiterature: interview. In:<br />
ATTRIDGE, Derek (Ed.)<br />
Jacques Derri<strong>da</strong>: acts of<br />
literature. Nova YorkJLondres:<br />
Routledge, 1992.<br />
9 NASCIMENTO, Evando.<br />
Derri<strong>da</strong> e a literatura. Niterói:<br />
EdUFF, 1999, p. 274.<br />
10 DERR1DA, Jacques. A<br />
escritura e a diferença. São<br />
Paulo: Editora Perspectiva,<br />
2002.<br />
11 DUQUE-ESTRADA, Paulo<br />
Cesar. Derri<strong>da</strong> e a escritura. In:<br />
DUQUE-ESTRADA, Paulo<br />
Cesar (Org.). Às margens <strong>da</strong><br />
filosofia. Rio de Janeiro: Editora<br />
PUC-RJlEdições Loyola, 2002.<br />
É ver<strong>da</strong>de que Derri<strong>da</strong> soube retribuir a atenção mereci<strong>da</strong><br />
nos departamentos de Letras. Detri<strong>da</strong> definiu a literatura como o<br />
lugar onde se pode dizer tud0 8 , o lugar mais interessante do mundo,<br />
talvez mais interessante do que o mundo. Menos por pretender<br />
criar algum fetiche em torno <strong>da</strong> literatura9 e mais para salvaguar<strong>da</strong>r<br />
o espaço literário como esse lugar de abertura. Quando<br />
diz que "o sujeito <strong>da</strong> escrita é um sistema de relações em cama<strong>da</strong>s:<br />
<strong>da</strong> lousa mágica, <strong>da</strong> psique, <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, do mundo" e que,<br />
"no interior dessa cena, a simplici<strong>da</strong>de pontual do sujeito clássica<br />
é impossível de ser encontra<strong>da</strong> lO ", Derri<strong>da</strong> está mais uma vez tirando<br />
o fun<strong>da</strong>mento do solo no qual deveriam florescer conceitos<br />
sólidos para a compreensão do mundo. No entanto, na Literatura,<br />
pode-se afirmar que esse abalo é parte constituinte, o que seria<br />
uma <strong>da</strong>s razões para a valorização que Derri<strong>da</strong> faz <strong>da</strong> Literatura<br />
como lugar de abertura.<br />
Esse descentramento que destacou na escrita ou na psicanálise,<br />
o filósofo tentou espalhar para o campo do político até o limite<br />
máximo, sempre propondo deslocamentos. Seria seguro afirmar que<br />
são justamente esses deslocamentos, esses reenvios de sentido que<br />
fazem com que Derri<strong>da</strong> seja mais lido nos departamentos de Letras<br />
ou entre os teóricos <strong>da</strong> Psicanálise do que na Filosofia O livro é<br />
uma demonstração de como esse processo também se deu no Brasil<br />
- e é importante ressaltar que o fenômeno se reproduz em todos os<br />
países do Ocidente que se puseram a ler Derri<strong>da</strong>.<br />
Entre os vinte e um artigos publicados, há apenas um filósofo<br />
brasileiro, o professor <strong>da</strong> PUC-RJ Paulo Cesar Duque-Estra<strong>da</strong>.<br />
A solidão filosófica poderia indicar um certo apego <strong>da</strong> Filosofia<br />
ao pensamento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de como fun<strong>da</strong>mento, numa perspectiva<br />
que Derri<strong>da</strong> trabalhou para desconstruir. É em "Derri<strong>da</strong> e a crítica<br />
heideggeriana do humanismo" que Duque-Estra<strong>da</strong> explora o postulado<br />
humanista de volta ao sujeito. O autor lembra que Derri<strong>da</strong><br />
desconstrói a noção de identi<strong>da</strong>de para substituí-la por identificação,<br />
esta mais próxima de um processo, de um movimento, de um<br />
devir permanente que nunca se dá <strong>completa</strong>mente, do que a rigidez<br />
<strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de fixa, própria e apropria<strong>da</strong>. Para Derri<strong>da</strong>, o que forma<br />
uma identi<strong>da</strong>de é aquilo que já a desloca, num processo que se repete<br />
indefini<strong>da</strong>mente ll . Já naqueles que reivindicam a volta ao sujeito<br />
<strong>da</strong> tradição haveria o desejo de ancorar a questão do ser em<br />
portos supostamente mais sólidos do que os indecidíveis derrianos.
334 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Duque-Estra<strong>da</strong> demonstra que a desconstrução está sendo<br />
posta sob suspeita Cp. 247) porque, no seu descentramento do<br />
sujeito, é acusa<strong>da</strong> de não ter na<strong>da</strong> de substancial a oferecer diante<br />
de um quadro político marcado pelo recrudescimento do<br />
fun<strong>da</strong>mentalismo religioso, pela violência urbana crescente, pela<br />
globalização que tudo entrega às mãos invisíveis do mercado. A<br />
crítica <strong>da</strong> insistência no humanismo, que Derri<strong>da</strong>'2 identifica inclusive<br />
no pensamento de Heidegger, poderia ser o ponto fraco no<br />
qual os postuladores <strong>da</strong> volta ao sujeito percebem a desconstrução<br />
como o pensamento que "não tem na<strong>da</strong> a dizer." No entanto, Duque-Estra<strong>da</strong><br />
lembra que a clausura pode estar no pensamento que<br />
insiste no homem Cp. 254).<br />
Ain<strong>da</strong> no âmbito <strong>da</strong> filosofia, é no artigo "Mal de hospitali<strong>da</strong>de",<br />
<strong>da</strong> filósofa portuguesa Fernan<strong>da</strong> Bernardo, que o leitor<br />
encontrará de maneira precisa a ligação entre desconstrução e<br />
hospitali<strong>da</strong>de, para demonstrar como o acolhimento ao estrangeiro,<br />
ao outro que se apresenta a partir <strong>da</strong> desconstrução, a esse<br />
outro que emerge quando a desconstrução acontece, como esse<br />
incondicional sim ao estrangeiro, essa hospitali<strong>da</strong>de a todo e qualquer<br />
outro que "define a desconstrução como movimento de pensamento"<br />
(p. 193).<br />
12 DERRIDA, lacques. os fins<br />
do homem. In: DERRIDA.<br />
largues. Margens <strong>da</strong>filosofia<br />
Campinas: Papirus, 1991, p<br />
161.<br />
Etapas e deslocamentos<br />
Há quem preten<strong>da</strong> dividir o pensamento de Derri<strong>da</strong> em duas<br />
etapas - a primeira, a <strong>da</strong> descontrução do signo, presente em textos<br />
do final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1960, dos quais Gramatologia (1967) é<br />
o mais exuberante. A categoria compreenderia também A différance<br />
(1968), Afarmácia de Platão e A Disseminação, ambos de 1972.<br />
Já o último Derri<strong>da</strong> seria aquele filósofo que ousou abarcar na sua<br />
obra questões políticas contemporâneas e, por isso, teria vindo ao<br />
Brasil, meses antes de morrer, falar sobre pena de morte e perdão. A<br />
divisão, creia-se nela ou não, serve os críticos tanto do primeiro quanto<br />
do último Derri<strong>da</strong>. De uma proposta de desconstrução que estaria<br />
apenas "lendo textos de outro modo", ele teria passado a discutir<br />
temas supostamente alheios à filosofia. Por isso, perguntam os filósofos<br />
dogmáticos, para usar uma expressão derridiana, o que perdão<br />
tem a ver com a filosofia e com a questão primeira - "o que é"<br />
Quando, em Gramatologia, Derri<strong>da</strong> começa a questionar o
signo como portador de uma uni<strong>da</strong>de natural entre significante<br />
(palavra) e significado (sentido), põe também em questão a tradição<br />
metafísica que estaria implica<strong>da</strong> na idéia de que a linguagem<br />
carrega a possibili<strong>da</strong>de de expressão de uma ver<strong>da</strong>de<br />
transcendental. Ao desfazer a estrutura binária significante/significado,<br />
ele aponta para o "caráter arbitrário do signo" e questiona<br />
a existência <strong>da</strong> ligação natural entre significante e significado, o<br />
que equivale a suspender esse conjunto de supostas oposições<br />
entre sensível/inteligível, dentro/fora, presença/ausência. Daí em<br />
diante, há um longo caminho a percorrer até chegar à abor<strong>da</strong>gem<br />
política do "último Derri<strong>da</strong>", que parte <strong>da</strong> ausência de fun<strong>da</strong>mentos<br />
para identificar violências, que joga com os indecidíveis para<br />
questionar ver<strong>da</strong>des, mesmo - ou principalmente - aquelas ditas<br />
em nome do Bem.<br />
Pode-se reconhecer que Derri<strong>da</strong> foi um pensador em ação,<br />
que trilhou o tênue fio entre desconstrução e prática política. Com<br />
isso, teria ele contaminado o pensamento filosófico, desviando-o<br />
<strong>da</strong> questão "o que é" Ao questionar os limites dessa pergunta tão<br />
cara à filosofia, Derri<strong>da</strong> abriu-se à perspectiva de não apenas não<br />
ter as respostas prontas, mas ousar dizê-lo. Pensar a desconstrução<br />
é um livro que, no seu espectro amplo de abertura a diferentes<br />
leitores de Derri<strong>da</strong> no Brasil e no exterior, monta um mosaico de<br />
como o pensamento <strong>da</strong> desconstrução acontece, para além do jogo<br />
de ausência/presença do último Derri<strong>da</strong> entre nós.<br />
335
336 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
História. Ficção. Literatura.<br />
Luiz Costa Lima<br />
São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2006.<br />
Sérgio Alcides<br />
(UFOP)<br />
História. Ficção. Literatura, como outros livros de Luiz<br />
Costa Lima, parte de uma questão aparentemente simples, por<br />
trás <strong>da</strong> qual o teórico surpreende todo um labirinto de conexões e<br />
impasses <strong>da</strong> maior relevância para diferentes setores <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s<br />
"humani<strong>da</strong>des". Foi assim com seus primeiros estudos sobre a<br />
mímesis dos gregos: seria ela o mesmo que a sua contraparti<strong>da</strong> no<br />
mundo romano, a im ita tio , subordina<strong>da</strong> ao primado do real E<br />
assim foi com a trilogia do Controle do imaginário: que estatuto<br />
é reservado ao ficcional na moderni<strong>da</strong>de, em face do tipo de razão<br />
triunfante no Ocidente<br />
Desta vez a questão de parti<strong>da</strong> está liga<strong>da</strong> a uma constatação:<br />
tem sido superficial demais, desde a Antigüi<strong>da</strong>de, a reflexão comparativo-contrastiva<br />
entre a história e a poesia. A carência de um<br />
aporte teórico mais conseqüente a esse respeito adquiriu aspectos<br />
de emergência desde os anos 1970, quando veio à tona com to<strong>da</strong><br />
a força a polêmica sobre a dependência <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> história frente<br />
a procedimentos e recursos ficcionais (tais como a narrativa e<br />
as figuras de linguagem). Costa Lima tem participado do debate<br />
há mais de uma déca<strong>da</strong> - mas só agora apresenta uma versão<br />
cabal e mais desenvolvi<strong>da</strong> de seus argumentos.<br />
O título do livro já dá boas indicações do posicionamento<br />
do autor: como termos separados por pontos, história, ficção e<br />
literatura não se confundem, nem são intercambiáveis. As três<br />
partes <strong>da</strong> obra teorizam sobre os termos separa<strong>da</strong>mente, tratando<br />
<strong>da</strong>s especifici<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> um, mas sem deixar de investigar suas<br />
relações com os outros dois.<br />
O longo prefácio procura expor a questão e apresentar uma
espécie de roteiro seguido pelo teórico na sua abor<strong>da</strong>gem. É provável<br />
que esta venha a ser a parte do livro mais consulta<strong>da</strong> nos<br />
cursos universitários, sobretudo na área de história (pelo menos<br />
num prognóstico talvez otimista demais). No contexto de um debate<br />
que já dura mais de trinta anos, escassamente conhecido no<br />
Brasil, esse texto apresenta uma <strong>da</strong>s críticas mais conseqüentes e<br />
originais já feitas à obra de Hayden White, o autor de Metahistory<br />
(1973). Por meio <strong>da</strong> análise literária de textos historiográficos clássicos,<br />
o teórico americano procurou demonstrar que a escrita <strong>da</strong><br />
história se constitui mais propriamente numa série de ficções verbais,<br />
cujo conteúdo é tão inventado quanto achado, e que têm<br />
mais em comum com a literatura do que com as ciências.<br />
É importante frisar que a crítica de Costa Lima na<strong>da</strong> tem de<br />
reacionária - como tem sido, em geral, a pequena recepção <strong>da</strong><br />
obra de White no Brasil. Longe de fazer tabula rasa do chamado<br />
linguistic tum que inspirou o trabalho de White nos anos 1970,<br />
Costa Lima ressalta vários aspectos favoráveis trazidos por essa<br />
vira<strong>da</strong> de perspectiva epistemológica. Ao invés de negar in limine<br />
to<strong>da</strong> e qualquer contribuição que venha dessa corrente, como tem<br />
feito, por exemplo, Carlo Ginzburg, Costa Lima dialoga com ela e<br />
assim encontra seus reais limites. Para além destes se encontra o<br />
campo teórico novo, no qual ele procura fun<strong>da</strong>r sua reflexão.<br />
Para retomar a distinção entre história e ficção, o autor chama<br />
a atenção para as "metas discursivas" de ca<strong>da</strong> gênero, e ain<strong>da</strong><br />
acompanha a concepção de Reinhart Koselleck de uma cama<strong>da</strong><br />
pré-verbal a ser considera<strong>da</strong> na escrita <strong>da</strong> história. Em outros<br />
momentos deste livro, ficará clara a maior proximi<strong>da</strong>de de Costa<br />
Lima com autores alemães do que com os americanos também na<br />
área <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> história - assim como, na teoria literária, ele<br />
niti<strong>da</strong>mente se identifica, desde finais dos anos 1970, com a constelação<br />
de autores formados sob o impacto <strong>da</strong> "estética <strong>da</strong> recepção",<br />
de Hans Robert Jauss - sobretudo Karlheinz Stierle e<br />
Wolfgang Iser; a este último, presta um importante tributo na segun<strong>da</strong><br />
parte do livro.<br />
É também marcante nesse prefácio o trio de apoio teórico<br />
que Costa Lima montou - totalmente inesperado e original- para<br />
enfocar to<strong>da</strong> obra: um artigo esquecido de William J ames ("The<br />
Perception of Reality", de 1889), outro de Alfred Schütz ("On<br />
Multiple Realities", de 1954) e a obra capital de Erving Goffman<br />
337
338 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
sobre a "análise por molduras" (de 1974). Partindo de três autores<br />
"fora de mo<strong>da</strong>", ele traça uma maneira própria de considerar a<br />
"construção social <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de" (livrando-nos <strong>da</strong> rotina de Berger<br />
e Luckmann a esse respeito). O leitor que conhecer bem a obra de<br />
KoseIleck (ou a de Jauss, neste caso), não terá dificul<strong>da</strong>des em<br />
notar como Costa Lima lê aqueles três autores de um ângulo "alemão",<br />
fortemente marcado pela nova hermenêutica - sendo o<br />
melhor sinal disso o uso recorrente <strong>da</strong> dupla de categorias experiência/expectativa,<br />
à qual se recorre para explicar, por exemplo, o<br />
conceito de frame ("moldura") do canadense Goffman.<br />
Em J ames, Costa Lima busca uma interessante definição de<br />
"crença" como estado emocional de conhecimento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />
que estabelece as condições para o consentimento e assim provoca<br />
a "cessação <strong>da</strong> agitação teórica". Para se acrescentar aos muitos<br />
sinais de ceticismo espalhados pela obra de Costa Lima, ele<br />
conclui: "o oposto <strong>da</strong> crença não é a descrença, mas sim a dúvi<strong>da</strong>".<br />
Esse indício, aparentemente banal, ganhará maior importância<br />
à medi<strong>da</strong> que o leitor vai se <strong>da</strong>ndo conta do cerne do livro, que<br />
diz respeito ao contraste entre o ficcional e o historiográfico. Seja<br />
como for, o artigo de J ames afasta desde o princípio a reflexão do<br />
teórico brasileiro de qualquer ranço positivista: "a fons et origo<br />
de to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong>de", afirma o americano, "é subjetiva, somos nós<br />
mesmos". Para quem ain<strong>da</strong> supõe ser possível trabalhar em ciências<br />
sociais dentro de parâmetros teóricos mais simplórios, será<br />
inquietante acompanhar a conclusão desse pensamento, segundo<br />
a qual "a própria palavra 'real' é, em suma, uma fímbria". Ao que<br />
Costa Lima acrescenta: "Ser, do ponto de vista humano, a reali<strong>da</strong>de<br />
uma fímbria significa que não a vivenciamos como um território<br />
contínuo, apenas reconhecido a partir de seu registro pelos<br />
órgãos dos sentidos". E continua: "Quando, portanto, nos dizemos<br />
que reali<strong>da</strong>de é o que se põe diante de nós e provoca reações,<br />
empregamos uma tosca lógica a posteriori, pois convertemos em<br />
experiência passiva o que, na ver<strong>da</strong>de, depende <strong>da</strong> participação<br />
ativa <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de".<br />
A contribuição encontra<strong>da</strong> em Schütz serviu para <strong>da</strong>r mais<br />
consistência, como objeto teórico, a essa fímbria heterogênea subjetivamente<br />
construí<strong>da</strong>. Para tanto, recorreu-se à concepção desse<br />
sociólogo acerca <strong>da</strong>s "províncias finitas de significação" que<br />
ca<strong>da</strong> um estabelece, na vi<strong>da</strong> prática, diante <strong>da</strong>s próprias experiên-
339<br />
cias, gerando um "estilo cognitivo" específico. A reali<strong>da</strong>de, assim,<br />
torna-se ain<strong>da</strong> mais fragmentária- desde a "fímbria" subjetiva até<br />
as "províncias" intersubjetivas. Goffman aju<strong>da</strong> Costa Lima a<br />
aprofun<strong>da</strong>r ain<strong>da</strong> mais o problema, através <strong>da</strong>s "molduras"<br />
delinea<strong>da</strong>s por ca<strong>da</strong> interação discursiva na vi<strong>da</strong> cotidiana, que<br />
trazem implícitos um conjunto de expectativas e um padrão seletivo<br />
de percepção do mundo e dos outros. Isso desvia Costa Lima<br />
<strong>da</strong> hipervalorização <strong>da</strong> retórica que vem ganhando espaço em diferentes<br />
domínios, como a economia, a história e os estudos literários.<br />
"Indiretamente", argumenta ele, "Goffman nos ensina que<br />
a retórica nos acompanha em ca<strong>da</strong> situação do cotidiano. Portanto,<br />
que não será por ela que poderemos definir uma situação<br />
discursiva".<br />
To<strong>da</strong> essa problemática percorrerá o restante do livro subterraneamente;<br />
o autor não precisa mencioná-la para nos relembrar<br />
de que as três partes de História. Ficção. Literatura nela se enraízam.<br />
A primeira destas é a que traz mais novi<strong>da</strong>des para o conjunto<br />
<strong>da</strong> obra de Costa Lima, que aqui se consoli<strong>da</strong> também como<br />
um teórico <strong>da</strong> história. O objetivo, em linhas gerais, é fixar as<br />
especifici<strong>da</strong>des <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> história, sem deixar de insistir sobre<br />
os seus débitos literários. "Preocupar-se com a construção do texto<br />
não supõe considerar-se a ver<strong>da</strong>de (alétheia) uma falácia convencional;<br />
a procura de <strong>da</strong>r conta do que houve e por que assim foi é<br />
o princípio diferenciador d". escrita <strong>da</strong> história. Ela é a sua aporia".<br />
Esse trecho introduz o conceito mais surpreendente de todo o<br />
livro: aporia, como concepção de ver<strong>da</strong>de uniforme e sem fissuras,<br />
ti<strong>da</strong> por auto-evidente e sempre idêntica a si própria, puro objeto<br />
do reino dos fatos, independente de observação ou participação<br />
subjetiva. Superado o primado positivista do real, a linha de distinção<br />
entre a história e a ficção não passa mais pela distinção<br />
entre o documental e o imaginado, o factual e o fingido, mas sim<br />
pela reivindicação de ver<strong>da</strong>de que sustenta uma, aporética, ao passo<br />
que a outra se isenta desse padrão pré-lingüístico e é, por isso,<br />
mais porosa.<br />
A surpresa aqui está tanto na formulação, por sua originali<strong>da</strong>de,<br />
quanto na terminologia adota<strong>da</strong>. Estudioso de filosofia (que,<br />
aliás, tende ao trabalho do filósofo ca<strong>da</strong> vez mais, pelo menos<br />
desde Mímesis: desafio ao pensamento, do ano 2000), Costa Lima<br />
certamente conhece a fortuna do termo aporia. Entre os diálogos
340 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
socráticos de Platão, são chamados de aporéticos justamente os<br />
inconclusos, nos quais a discussão se encerra sem que os<br />
interlocutores cheguem a uma conclusão firme sobre o tema em<br />
pauta. Sem falar no famoso poema de Carlos Drummond de<br />
Andrade, "Áporo", em que um inseto cava a terra em busca de<br />
uma improvável saí<strong>da</strong>. Maior defensor do ficcional entre os teóricos<br />
<strong>da</strong> literatura pós-estruturalistas, Costa Lima parece mais uma<br />
vez alinhar-se aos céticos ao escolher esse vocábulo para modelar<br />
um conceito: ele, por si só, põe em questão os privilégios <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />
Essa impressão é reforça<strong>da</strong> pela circunstância de a aporia,<br />
conforme a argumentação do autor, ser mais rígi<strong>da</strong> sobretudo na<br />
crença (sendo o contrário desta, como vimos com a aju<strong>da</strong> de<br />
William James, a dúvi<strong>da</strong>).<br />
Dentro desses referenciais, a primeira parte se inicia com<br />
uma cerra<strong>da</strong> revisão do debate acerca de autores que, na Grécia<br />
Antigüi<strong>da</strong>de, foram chamados de "historiadores": Heródoto e<br />
Tucídides. Estrangeiro em campo minado, Costa Lima não esconde<br />
suas preferências por M.1. Finley e F. Hartog,justamente aqueles<br />
que, entre os especialistas em história antiga, têm sido os mais<br />
polêmicos. Desde o início vem à tona uma preocupação que atravessará<br />
o livro inteiro, mesmo as duas partes seguintes, com o<br />
temperamento refratário dos historiadores, em geral, frente a quaisquer<br />
discussões teóricas, resultando numa espécie de positivismo<br />
naif que é freqüentemente "alfinetado" pelo autor: seus maiores<br />
inimigos são "o arraigado positivismo dos historiadores, que não<br />
aceitam sequer discutir a aporia <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de", "a marca objetivista<br />
do padrão positivista", "o infantilismo positivista dos historiadores",<br />
"a dificul<strong>da</strong>de dos historiadores de se libertarem <strong>da</strong> camisa<br />
de força que se tornou a objetivi<strong>da</strong>de". Se rejeita a redução <strong>da</strong><br />
história à ficção, devido ao apoio <strong>da</strong>quela na aporia veraz, o teórico<br />
não deixa de questionar a inscrição <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de no domínio do<br />
factual, pura e simplesmente. Com isso, ele retoma um dos temas<br />
recorrentes de sua obra desde pelo menos O controle do imaginário<br />
(de 1984), que é a crítica ao substancialismo inscrito na concepção<br />
de fato.<br />
Por outro lado, em contraste com os pressupostos do<br />
linguistic turn, Costa Lima postula a existência de um nível préverbal<br />
de experiência onde possa radicar a premissa de ver<strong>da</strong>de<br />
dos historiadores. É o que o autor chama de "história crua", aque-
la onde está imersa a vi<strong>da</strong>. Ela é assim designa<strong>da</strong> - quem sabe<br />
talvez por não ter ain<strong>da</strong> sofrido a cocção discursiva. Ou, por outro<br />
lado, pela crueza dos afetos humanos, sobre os quais ela avança;<br />
num livro que se inicia com as interrogações e as perplexi<strong>da</strong>des<br />
de Heródoto e Tucídides sobre as guerras <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong>de, e<br />
escrito num tempo em que as paixões bélicas reaparecem em primeiro<br />
plano, é compreensível que Costa Lima reconheça uma<br />
"marca amarga": "a história crua caminha sobre a violência". Deve<br />
estar liga<strong>da</strong> ao mesmo amargor a hipótese de a ojeriza<br />
historiográfica relacionar-se com os seus compromissos frente ao<br />
Estado-nação. E a conseqüência prática - ou ética - <strong>da</strong> teoria de<br />
Luiz Costa Lima se resume num trecho de síntese sobre to<strong>da</strong> a<br />
primeira parte do livro: "O que esta seção tem afirmado, portanto,<br />
é a necessi<strong>da</strong>de de, reconhecendo-se a aporia específica <strong>da</strong><br />
história, <strong>da</strong>r-lhe um tratamento flexível, submetê-la a um uso poroso".<br />
Antes, o autor já tinha observado que é próprio <strong>da</strong> aporia o<br />
risco de se enrijecer contra o autoquestionamento, com a tendência<br />
ao dogma. A tarefa por excelência do historiador, portanto,<br />
não será a montagem dessa superfície sem poros e veraz, mas, ao<br />
contrário, a "abertura de horizontes". O que faz lembrar o conhecido<br />
ditado segundo o qual "o passado é um país estrangeiro".<br />
Mas, como nos ensina este Costa Lima teórico <strong>da</strong> história, para<br />
viajar nele é necessário bem mais do que um passaporte ou um<br />
diploma de bacharel.<br />
A segun<strong>da</strong> parte trata <strong>da</strong> ficção. Novamente, o autor começa<br />
pelo começo: na Grécia, primeiro com Homero, depois com a<br />
'tragédia. Um destaque do primeiro capítulo é o tratamento <strong>da</strong>do a<br />
Aristóteles (aliás já discutido em menor profundi<strong>da</strong>de na seção<br />
anterior), como um pensador tão seminal no campo <strong>da</strong>s idéias<br />
estéticas quanto falhado, por ter sido, na visão de Costa Lima,<br />
mal compreendido e banalizado por seus continuadores: sua fortuna,<br />
afinal, terá s;do um infortúnio. A discussão também é originária<br />
do Controle do·imaginário, manancial de to<strong>da</strong> a obra madura<br />
do autor, que tem se revelado praticamente inesgotável e necessita<br />
de urgente reedição (o primeiro volume <strong>da</strong> trilogia teve<br />
uma reedição <strong>revista</strong>, mas os outros dois não). Se no livro anterior<br />
o tema aristotélico revisto foi o conceito de verossimilhança,<br />
além do de mímesis, agora o interesse maior recai sobre a tragédia<br />
e o conceito de catarse.<br />
341
342 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Nessa mesma parte o autor se aprofun<strong>da</strong> em distinções<br />
finas, por exemplo entre o real e a reali<strong>da</strong>de, a ficção e a<br />
mímesis, o fictício e o ficcional. Reaparece aqui o problema <strong>da</strong><br />
retórica; para Costa Lima, a redução <strong>da</strong>s teses aristotélicas a um<br />
conjunto de preceitos retóricos foi "um desastre" - e, pode-se<br />
concluir, a reificação desses preceitos pela crítica literária atual se<br />
arrisca a repetir os efeitos desse antigo mal-entendido. Buscando<br />
um roteiro próprio, Costa Lima prefere conduzir a discussão sobre<br />
obras marcantes <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong>de latina - tais como a Enei<strong>da</strong>,<br />
de Virgílio, e as Metamorfoses, de Ovídio - a partir <strong>da</strong> relação<br />
entre poesia, ver<strong>da</strong>de e imaginação. Os especialistas em literatura<br />
antiga talvez se sintam enciumados. Costa Lima verá em Virgílio a<br />
tentativa de denegar a ficção, marca<strong>da</strong> pelo vínculo do seu poema<br />
com a glorificação do império romano. Ao passo que as Metamorfoses<br />
tomam explicitamente o partido <strong>da</strong> imaginação: "O resultado<br />
é a retórica pôr-se a serviço do ficcional". E, assim como<br />
a mímesis tem a proprie<strong>da</strong>de de selecionar valores de uma determina<strong>da</strong><br />
socie<strong>da</strong>de, inscritos no tempo, destinando-os à outra<br />
temporali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> obra de arte, o ficcional "traz em si incrito o<br />
real": mais do que uma representação ou um reflexo dele, a ficção<br />
é aquilo que o captura sob a forma de discurso, podendo assim<br />
agir sobre ele. Fica evidente o caráter disruptivo e potencialmente<br />
subversivo do ficcional.<br />
A seção termina, depois de uma discussão sobre a obra de<br />
Wolfgang Iser, com um capítulo inteiramente dedicado à análise<br />
crítica - a partir dos pontos teóricos até aqui levantados - de um<br />
longo diálogo entre Otaviano Augusto e o personagem principal<br />
do romance A morte de Virgílio, de Hermann Broch. Está em causa<br />
precisamente o tema latente em todo o percurso de Costa Lima:<br />
a quem pertence a poesia ao poeta ao Estado No trecho analisado,<br />
o imperador procura evitar que o vate moribundo destrua o<br />
seu poema épico que glorificava o Império.<br />
A terceira parte é a menos ambiciosa do livro, mas é ela que<br />
"amarra" to<strong>da</strong>s as pontas deixa<strong>da</strong>s pelas anteriores - o que talvez<br />
já sinalize algo de relevante acerca <strong>da</strong> sua palavra-chave, "literatura".<br />
Esta, para Costa Lima, não se confunde com ficção. A própria<br />
dificul<strong>da</strong>de de definir o conceito, que o autor estu<strong>da</strong> na sua<br />
raiz, em F. Schlegel, Mme. de Stael e Chateaubriand, serve-lhe de<br />
apoio para investir teoricamente sobre esse próprio vazio. A lite-
343<br />
ratura passará a ser o discurso aberto, que comporta o heterogêneo,<br />
o híbrido e o ain<strong>da</strong> não formulado, e cuja característica sensível<br />
é o que o autor chama de "espessura <strong>da</strong> linguagem". Esse<br />
traço vago - mas por definição infenso ao tipo de enrijecimento<br />
que se cristaliza em aporia - justificaria que obras inscritas originalmente<br />
no campo <strong>da</strong>s ciências sociais, como Os sertões e Casa<br />
grande & Senzala, uma vez perdi<strong>da</strong> a sua vigência, sejam incorpora<strong>da</strong>s<br />
ao acervo <strong>da</strong> literatura. Assim como na seção anterior o<br />
teórico se faz de crítico e enfrenta A morte de Virgílio, aqui é a vez<br />
de o material teórico formulado encontrar uma atuação crítica acerca<br />
<strong>da</strong>s Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, obra na qual<br />
Costa Lima encontrará uma "abstinência de ficcionali<strong>da</strong>de" que, no<br />
entanto, revela uma concepção de literatura mais complexa do que<br />
mostra o mesmo escritor em sua obra de imaginação, limita<strong>da</strong>, segundo<br />
o crítico, pela subordinação <strong>da</strong> ficção à reali<strong>da</strong>de.<br />
O último capítulo, na ver<strong>da</strong>de um apêndice, consta de um<br />
ensaio de Costa Lima sobre Os sertões - tema de seu livro mais<br />
próximo deste, a meu ver, que é Terra ignota, sobre a obra de<br />
Euclides <strong>da</strong> Cunha. O autor adverte que, nesse ensaio, a meio<br />
caminho entre um livro e outro, as questões que gerariam História.<br />
Ficção. Literatura já estão em preparo, embora não inteiramente<br />
formula<strong>da</strong>s. Em Terra ignota (de 1997), as relações entre<br />
história e literatura são o tema de um dos dois apêndices (sendo o<br />
outro um dos textos mais importantes e menos comentados de<br />
Costa Lima, "O pai e o trickster", sobre o contraste <strong>da</strong>s condições<br />
sociais e intelectuais de produção do saber e <strong>da</strong> literatura em meios<br />
"metropolitanos" ou "marginais").<br />
História. Ficção. Literatura será visto como um marco importante<br />
de amadurecimento dentro <strong>da</strong> obra de Costa Lima. Tomara<br />
que o traduzam logo para alguma língua mais conheci<strong>da</strong> do<br />
que o português, para que as contribuições originais que ele contém<br />
possam fazer algum eco - inclusive no Brasil (pois faz parte<br />
<strong>da</strong>s nossas síndromes esse efeito "bumerangue" <strong>da</strong> projeção internacional).<br />
Entre nós, talvez desperte mais interesse nos departamentos<br />
de letras do que nos de história (sendo exceção entre estes<br />
o <strong>da</strong> PUC-RJ, onde o autor leciona). É pena, porque os maiores<br />
beneficiários deste livro serão os historiadores menos "engessados"<br />
nos preconceitos do seu métier.
345<br />
Apresentação dos autores<br />
Ana Cláudia Viegas é professora adjunta de Literatura<br />
Brasileira <strong>da</strong> UERJ e de Teoria <strong>da</strong> Comunicação e Teoria <strong>da</strong> Imagem<br />
<strong>da</strong> PUC-Rio. Publicou, além de artigos diversos, o livro Bliss<br />
& blue - segredos de Ana C. (São Paulo: Annablumme, 1998).<br />
Desenvolve, atualmente, pesquisa em torno <strong>da</strong>s relações entre a<br />
Literatura Brasileira contemporânea e os media eletrônicos e digitais.<br />
Andréa Borges Leão é doutora em Sociologia pela Universi<strong>da</strong>de<br />
de São Paulo e professora do Programa de Pós-graduação<br />
em Educação Brasileira <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Ceará.<br />
Em 2005, realizou estágio pós-doutoral na École des Hautes<br />
Études en Sciences Sociales, Paris, sobre a formação <strong>da</strong>s coleções<br />
literárias infantis <strong>da</strong> Livraria Garnier. Sua última publicação<br />
é : LEÃO, Andréa Borges. Universos <strong>da</strong> devoção, sabedoria e<br />
moral: as Bibliotecas Juvenis Garnier (1858 e 1920). In: Revista<br />
Educação em Revista N. 43. Belo Horizonte: Facul<strong>da</strong>de de Educação<br />
<strong>da</strong> UFMG, 2005.<br />
Ângela Maria Dias é professora de Literatura Brasileira,<br />
Teoria Literária e Literatura Compara<strong>da</strong> <strong>da</strong> UFF & Pesquisadora<br />
do CNPq. Ensaísta e crítica literária, desde os anos 80. Publicações<br />
recentes: Estéticas <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de (Coordenação e Organização<br />
com Paula Glenadel), Ed.Atlântica/2004; "Barthes e a fotografia:<br />
Por uma fenomenologia do afeto". In: GLENADEL, Paula<br />
& CASA NOVA, Vera. Viver com Barthes.Rio de Janeiro, 7Letras,<br />
2005.<br />
Délia Cambeiro é professora de língua e literatura italiana<br />
<strong>da</strong> UERJ.
346 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Edson Rosa <strong>da</strong> Silva é Professor Titular de Língua e Literatura<br />
Francesa <strong>da</strong> UFRJ, Pesquisador do CNPq, Membro do<br />
Comitê Assessor de Letras e Lingüísticajunto ao CNPq, e especialista<br />
<strong>da</strong> obra de André Malraux, sobre a qual defendeu tese de<br />
doutoramento na UFRJ (1984) e escreveu inúmeros artigos em<br />
<strong>revista</strong>s nacionais e estrangeiras.<br />
Joana LuÍza Muylaert de Araújo, professora de Teoria<br />
Literária e Literatura Brasileira do Instituto de Letras e Lingüística<br />
<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Uberlândia e do Mestrado em Teoria<br />
LiteráriaJUFU, é Coordenadora do Programa de Pós-graduação<br />
em Letras - Mestrado em Teoria Literária.<br />
Laura Padilha é professora <strong>da</strong> UFF, pesquisadora do Cnpq,<br />
ex- vice-presidente <strong>da</strong> ABRALIC e ex-presidente <strong>da</strong> ANPOLL.<br />
Autora, entre outras, <strong>da</strong>s obras: Entre voz e letra (Niterói/Lisboa:<br />
EDUFFlNovo Imbondeiro, 1995/2(05); Novos pactos, outras ficções.<br />
(Porto Alegre/Lisboa: Ed. PUC-RGS /Novo Imbondeiro, 2002.<br />
Luiz Gonzaga Marchezan é professor assistente-doutor<br />
de Teoria <strong>da</strong> Literatura do Departamento de Literatura <strong>da</strong> UNESP,<br />
na FCL do Campus de Araraquara. Organizou, com a Profa. Dra.<br />
Sylvia Telarolli, dois volumes: Ce1las literárias: a narrativa em<br />
foco e Faces do 1larrador, ambos editados pelo Laboratório Editorial<br />
<strong>da</strong> UNESP de Araraquara, em convênio com a Cultura Acadêmica,<br />
<strong>da</strong> Editora <strong>da</strong> UNESP, lançados, respectivamente, em<br />
2002 e 2003. Em 2005, apresentou a edição de Ermos e gerais,<br />
de Bernardo Elis, pela Editora Martins Fontes.<br />
Maria de Lourdes Patrini-Charlon é professora do Departamento<br />
de Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande do<br />
Norte. Suas publicações mais recentes inc1uemA renovação do conto<br />
- emergência de uma pratica oral. São Paulo: Cortez Editora, 2005.<br />
Maria Esther Maciel é professora de Teoria <strong>da</strong> Literatura<br />
<strong>da</strong> UFMG. Doutora em Literatura Compara<strong>da</strong>, com Pós-Doutorado<br />
pela Universi<strong>da</strong>de de Londres. Autora, entre outros, dos livros<br />
As vertigens <strong>da</strong> lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz<br />
(1995), Vôo Transverso: poesia, moderni<strong>da</strong>de e fim do século
347<br />
xx (1999), A memória <strong>da</strong>s coisas - ensaios de literatura, cinema<br />
e artes plásticas (2004) e O livro de Zenóbia (ficção, 2004). Tem<br />
vários trabalhos publicados em <strong>revista</strong>s brasileiras e estrangeiras<br />
Marília Librandi Rocha é Professora de Teoria <strong>da</strong> Literatura<br />
na Universi<strong>da</strong>de Estadual do Sudoeste <strong>da</strong> Bahia. Doutora em<br />
Teoria Literária e Literatura Compara<strong>da</strong>, USP.<br />
Maria Luiza Berwanger <strong>da</strong> Silva é professora do Programa<br />
de Pós-Graduação em Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio<br />
Grande do Sul. Além de artigos em periódicos, publicou Paisagens<br />
Reinventa<strong>da</strong>s (Traços Franceses no Simbolismo<br />
Sul-Rio-Grandense). Porto Alegre: UFRGS, 1999.<br />
Marisa Lajolo é atualmente professora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />
Presbiteriana Mackenzie e professora titular de Teoria Literária <strong>da</strong><br />
Unicamp. Coordena o projeto temático" Monteiro Lobato (1882-<br />
1948) e outros modernismos brasileiros" (http://www.unicamp.br/<br />
iel/monteirolobato) que tem apoio <strong>da</strong> Fapesp e do CNPq. Entre seus<br />
livros listam-se: Coma e porque ler o romance brasileiro e Monteiro<br />
Lobato - um brasileiro sob medi<strong>da</strong>. Mais recentemente, organizou a<br />
publicação dos postais que Monteiro Lobato enviou à noiva entre<br />
1906 e 1908 (Quando o carteiro chegou).<br />
Patrícia Kátia <strong>da</strong> Costa Pina é professora Adjunta de Literatura<br />
Brasileira <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual de Santa Cruz-UESC,<br />
em Ilhéus, na Bahia. Organizou o resgate e a publicação do livro<br />
Vindiciae, de Lafaiete Rodrigues, pela UERJ, em 1998, sob o título<br />
Vindiciae: em defesa de Machado de Assis; publicou o livro<br />
Literatura e jornalismo 110 oitocentos brasileiro, em 2002, pela<br />
EDITUS. Organizou, também pela EDITUS, a <strong>revista</strong> Literatta,<br />
em 2002.<br />
Pierre Rivas é professor de Literatura Compara<strong>da</strong> na Universi<strong>da</strong>de<br />
de Paris, e especialista nas relações literárias entre França,<br />
Portugal e Brasil. Suas publicações mais recentes incluem: Diálogos<br />
interculturais. São Paulo: HUCITEC, 2005.
348 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.9, 2006<br />
Regina Zilberman é Doutora em Romanística pela Universi<strong>da</strong>de<br />
de Heidelberg, Alemanha; Professora Titular na Facul<strong>da</strong>de de<br />
Letras, <strong>da</strong> PUCRS; Pesquisadora IA, CNPq. Publicações, entre outras:<br />
Estética <strong>da</strong> Recepção e História <strong>da</strong> Literatura (Ática); Fim<br />
do livro, fim dos leitores (Ed. Senac); A literatura infantil na<br />
escola (Global); Como e porque ler literatura infantil brasileira<br />
(Objetiva).<br />
Rogério Lima é Coordenador do Programa de Pós-Graduação<br />
em Literatura <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Brasília e autor de capítulos<br />
de livros e artigos publicados em periódicos, especialmente<br />
sobre o mundo digital e as relações entre literatura e informática.<br />
Sandra Guardini T. Vasconcelos é Doutora em Teoria Literária<br />
e Literatura Compara<strong>da</strong> pela Universi<strong>da</strong>de de São Paulo.<br />
Professora Associa<strong>da</strong> de Literaturas de Língua Inglesa na Universi<strong>da</strong>de<br />
de São Paulo, desenvolve nos últimos anos pesquisa sobre<br />
as relações entre os romance inglês dos séculos XVIII e XIX e o<br />
romance brasileiro do século XIX. Além de vários artigos e capítulos<br />
de livros publicados no Brasil e no exterior, é autora de Puras<br />
Misturas. Estórias em Guimarães Rosa (1997) e de Dez Lições<br />
sobre o Romance Inglês do Século XVIII (2002).<br />
Socorro de Fátima Pacífico Vilar é professora <strong>da</strong> UFPB<br />
desde 1987. Atualmente faz estágio de pós-doutorado na PUCRS,<br />
com projeto relacionado aos jornais paraibanos. Desenvolve pesquisas<br />
na área de História <strong>da</strong> Leitura e História <strong>da</strong> literatura. Publicou<br />
Primeiras leituras e outras histórias, pela EDUFPB e A invenção de<br />
uma escrita: Anchieta, osjesuítas e suas histórias, pelaEDPUCRS.<br />
Tha'is Flores Nogueira Diniz é professora adjunta de Literatura<br />
Compara<strong>da</strong> e Literaturas de Expressão Inglesa na Facul<strong>da</strong>de<br />
de Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais e especialista<br />
em tradução intersemiótica e teatro contemporâneo. Suas<br />
áreas de pesquisa incluem a relação entre a literatura e as outras<br />
artes, especialmente o cinema, estudo sobre mitos e sobre a<br />
intermidiali<strong>da</strong>de. Fez seu doutorado na UFMG e na Indiana<br />
University at Bloomington, nos Estados Unidos, obtendo o título<br />
em 1994. Fez seu pós-doutorado em Londres, no Queen Mary<br />
College, University ofLondon em 2004.
Aos colaboradores<br />
1. A Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong> aceita trabalhos<br />
inéditos sob a forma de artigos e comentários de livros, de interesse<br />
voltado para os estudos de literatura Compara<strong>da</strong>.<br />
2. Todos os trabalhos encaminhados para publicação serão submetidos<br />
à aprovação dos membros do Conselho Editorial. Eventuais<br />
sugestãoes de modificação de estrutura ou conteúdo, por parte do Conselho<br />
Editorial, serão comunica<strong>da</strong>s previamente aos autores.<br />
3. Os artigos devem ser apresentados em três vias, texto <strong>da</strong>tilografado<br />
em espaço duplo, com margem, além de <strong>da</strong>dos sobre o autor<br />
(cargo, áreas de pesquisa, últimas publicações, etc).<br />
4. O original não deve exceder 30 páginas <strong>da</strong>tilografa<strong>da</strong>s; os comentários<br />
de livros, em tomo de 8 páginas.<br />
5. As notas de pé de página devem ser apresenta<strong>da</strong>s observandose<br />
a seguinte norma:<br />
Para livros:<br />
a) autor; b) título <strong>da</strong> obra em itálico; c) número <strong>da</strong> edição, se não<br />
for a primeira; d) local <strong>da</strong> publicação; e) nome <strong>da</strong> editora; f) <strong>da</strong>ta de<br />
publicação; g) número <strong>da</strong> página.<br />
BOSI, Ecléa. Memória e socie<strong>da</strong>de: lembranças de velhos. São<br />
Paulo: T.A.Queiroz, 1979, p.31.<br />
Para artigos:<br />
a) autor; título do artigo; c) título do periódico (em itálico); d)<br />
local <strong>da</strong> publicação; e) número do volume; f) número do fascículo; g)<br />
página inicial e final; h) mês e ano.<br />
ROUANET, Sérgio Paulo. Do pós-moderno ao neo -moderno.<br />
Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.1, p. 86-97,jan./mar., 1986.<br />
7. As ilustrações (gráficos, gravuras, fotografias, esquemas) são<br />
designa<strong>da</strong>s como FIGURAS, numera<strong>da</strong>s no texto, de forma abrevia<strong>da</strong>,<br />
entre parênteses ou não, conforme a re<strong>da</strong>ção.<br />
Exemplo: FIG.1, (FIG.2)<br />
As ilustrações devem trazer um título ou legen<strong>da</strong>, abaixo <strong>da</strong> mesma,<br />
digitado na mesma largura desta.<br />
8. Os autores terão direito a 3 exemplares <strong>da</strong> <strong>revista</strong>. Os originais<br />
não aprovados não serão devolvidos.
Impressão e Acabamento GRÁFICA LIDADOR LTDA.<br />
Rua Hilário Ribeiro, 154 - Pça <strong>da</strong> Bandeira - RJ<br />
Te!.: (21) 2569-0594' Fax: (21) 2204-0684<br />
e-mai!: li<strong>da</strong>dor@terra.com.br