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ISSN 0103-6963Celdon Fritzen, Eloá Heise, Joana Luíza M. de Araújo,Josalba Fabiana dos Santos, José Antonio Segatto,Katia Aily Franco de Camargo, Luciana Murari,Maria Célia Leonel, Paulo César Silva de Oliveira,Rita Terezinha Schmidt, Telma BorgesREVISTA BRASILEIRA DE Literatura Compara<strong>da</strong> 200711REVISTABRASILEIRADELiteraturaCompara<strong>da</strong>abralicassociação brasileirade literatura compara<strong>da</strong>11


REVISTABRASILEIRADELiteraturaCompara<strong>da</strong>São Paulo2007


Diretoria A B R A L I C 2007/08Presidente Sandra Margari<strong>da</strong> Nitrini (USP)Vice-presidente Helena Bonito Couto Pereira (Mackenzie)1º Secretária Maria Célia Leonel (Unesp)2º Secretária Andrea Saad Hossne (USP)1º Tesoureira Vera Bastazin (PUC-SP)2º Tesoureira Orna Levin (Unicamp)Conselho Eduardo Coutinho (UFRJ)Gil<strong>da</strong> Neves Bittencourt (UFGS)José Luís Jobim (UERJ/UFF)Lívia Reis (UFF)Ívia Iracema Duarte Alves (UFBA)Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto (USP)Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC)Rita Terezinha Schmidt (UFGS)REVISTABRASILEIRADELiteraturaCompara<strong>da</strong>SuplentesMárcia Abreu (UNICAMP)Zênia de Faria (UFG)Conselho editorialBenedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Enei<strong>da</strong> Maria de Souza,Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima,Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner,Yves Chevrel.A B R A L I CCNPJ 04.901.271/0001-79Universi<strong>da</strong>de de São Paulo (USP)Facul<strong>da</strong>de de Filosofia, Letras e Ciências HumanasAveni<strong>da</strong> Prof. Luciano Gualberto, 403Butantã – São Paulo – SPTel./Fax: (11) 3091-4312E-mail: mschmidt@usp.brISSN 0103-6963Rev. Bras. Liter. Comp. São Paulo n.11 p.1-277 2007


5Editoras2007 Associação Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>A Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong> (ISSN- 0103-6963)é uma publicação semestral <strong>da</strong> Associação Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>(<strong>Abralic</strong>), enti<strong>da</strong>de civil de caráter cultural que congrega professoresuniversitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Compara<strong>da</strong>,fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em Porto Alegre, em 1986.Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta <strong>revista</strong> poderá serreproduzi<strong>da</strong> ou transmiti<strong>da</strong>, sejam quais forem os meios empregados,sem permissão por escrito.Maria Célia LeonelÍvia AlvesSumárioApresentaçãoMaria Célia LeonelÍvia Alves 7Comissão editorialPreparação/RevisãoRevisão do inglêsDiagramaçãoSandra Margari<strong>da</strong> NitriniHelena Bonito Couto PereiraAndrea Saad HossneVera BastazinOrna LevinNelson Luís BarbosaLilia LomanEstela MleetcholRevista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong> / AssociaçãoBrasileira de Literatura Compara<strong>da</strong> – v.1, n.1 (1991) –Rio de Janeiro: <strong>Abralic</strong>, 1991-v.2, n.11, 2007ISSN 0103-69631. Literatura compara<strong>da</strong> – Periódicos. I. AssociaçãoBrasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>.CDD 809.005CDU 82.091 (05)ArtigosA literatura compara<strong>da</strong> nesse admirável mundo novoRita Terezinha Schmidt 11Weltliteratur, um conceito transculturalEloá Heise 35Literatura, crítica e saber na esfera multiculturalistaPaulo César Silva de Oliveira 59Nação: civilização e barbárieJosalba Fabiana dos Santos 77Ficção e ensaioMaria Célia LeonelJosé Antonio Segatto 105O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalistaJoana Luíza Muylaert de Araújo 131“A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”:<strong>da</strong>rwinismo social e imaginação literária no BrasilLuciana Murari 155A ilustração viajante e as suas sombrasCeldon Fritzen 191As representações de Adolphe D’Assier <strong>da</strong> gentee <strong>da</strong> terra brasileiras publica<strong>da</strong>s na Revue des Deux MondesKatia Aily Franco de Camargo 227


6 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 7Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de emO último suspiro do Mouro, de Salman RushdieTelma Borges 245ApresentaçãoPareceristas 271Normas <strong>da</strong> <strong>revista</strong> 273Este número <strong>da</strong> Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>tem como tema “Literatura e Saberes”. Além, naturalmente,de pautar-se pela temática proposta, a aceitaçãodos artigos dependeu <strong>da</strong> existência de estudo comparativo,de modo que essa foi a primeira questão apresenta<strong>da</strong>aos pareceristas (relacionados neste número) que colaboraramna seleção dos artigos, aos quais as editoras agradecema contribuição generosa.Selecionados os artigos, foi realiza<strong>da</strong> a sua ordenaçãoque teve como critério amplo a apresentação inicial detextos de caráter mais genérico. Os títulos dos artigos – “Aliteratura compara<strong>da</strong> nesse admirável mundo novo”;“Weltliteratur, um conceito transcultural”; “Literatura, críticae saber na esfera multiculturalista”; “Nação: civilizaçãoe barbárie”; “Ficção e ensaio”; “O não-lugar de Machado,mestiço, na crítica naturalista”; “‘A vi<strong>da</strong> e os prêmiosque ela comporta’: <strong>da</strong>rwinismo social e imaginação literáriano Brasil”; “A ilustração viajante e as suas sombras”;“As representações de Adolphe D’Assier <strong>da</strong> gente e <strong>da</strong> terrabrasileiras publica<strong>da</strong>s na Revue de Deux Mondes”; “Jogosde memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro, deSalman Rushdie” – já apontam tal direção.Em “A literatura compara<strong>da</strong> nesse admirável mundonovo”, dedicado à memória de Tania Franco Carvalhal,Rita Terezinha Schmidt reflete sobre os vínculos “entreglobalização, violência, miséria humana e degra<strong>da</strong>çãoambiental”, tendo como ponto de parti<strong>da</strong> a barbárie comque convivemos, para debater o papel dos estudos literáriosnesse universo. Desse modo, retomando a discussão sobrea ambivalência <strong>da</strong>s novas tecnologias de informação, pro-


8 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Apresentação 9põe a intervenção <strong>da</strong> literatura compara<strong>da</strong> na rede virtual,trazendo o diálogo, o respeito à alteri<strong>da</strong>de e à diversi<strong>da</strong>dede línguas e culturas.O segundo artigo aqui publicado, de Eloá Heise,rastreia o percurso de formação do conceito de Weltliteraturem Goethe, para quem havia um denominador comum ouuma dimensão comunicativa (um conceito transcultural,portanto) entre as literaturas nacionais a ser levado emconsideração. Levantando as diferentes acepções do termoem Goethe, aponta aquelas que se relacionam comconceitos contemporâneos ao mundo globalizado.Paulo César Silva de Oliveira, por sua vez, examina,nas manifestações multiculturalistas do comparatismo contemporâneo,a visão <strong>da</strong> literatura como um “campo de saberprivilegiado acerca do mundo e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de”. Investigapontos de diálogo “entre texto literário e socie<strong>da</strong>de, textocrítico e criação artística” na atual produção comparatista.Em “Nação: civilização e barbárie”, Josalba Fabianados Santos reflete sobre as relações entre a civilização e abarbárie nas obras de Cornélio Penna – em especial em Amenina morta – e Sarmiento em Facundo. Os vínculos entrea civilização e a barbárie manifestam-se nesses doisescritores, de países e tempos diversos, de modo diferente:Cornélio Penna, afastando-se do processo desenvolvimentista<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950, procura investigar a violência nasocie<strong>da</strong>de brasileira escravocrata <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade doséculo XIX. Sarmiento, escrevendo no século XIX, idealizaseu país como nação civiliza<strong>da</strong> de acordo com os preceitos<strong>da</strong> Europa.Os autores de “Ficção e ensaio” – Maria Célia Leonele José Antonio Segatto – discutem a recepção, pela crítica,de Os sertões como obra literária e a incorporação deGrande sertão: vere<strong>da</strong>s como ensaio. O exame de váriosestudos sobre os dois livros permite acompanhar como otexto de Euclides <strong>da</strong> Cunha, por mais de um século, é vistocomo obra compósita, fazendo parte, simultaneamente,<strong>da</strong> literatura, <strong>da</strong> história e <strong>da</strong> ciência, entendimentolançado pela crítica logo após a primeira edição. Do mesmomodo, observa-se como o romance de Guimarães Rosacomeça a ser considerado como ensaio ou investigaçãosobre as relações de poder no país. Essas considerações <strong>da</strong>crítica levam à reflexão sobre a indistinção entre históriae literatura, ciência e ficção.Joana Luíza Muylaert de Araújo, em sua investigaçãosobre a crítica machadiana, verifica que os desacordos acercade sua obra, iniciados com os estudiosos contemporâneosdo escritor (especialmente Silvio Romero) ain<strong>da</strong>merece atenção. Para a articulista, a base <strong>da</strong> polêmica é omodo peculiar de Machado manifestar o nacionalismo epropõe que os assim considerados desacertos <strong>da</strong> críticanaturalista sejam examinados “como paradoxos constitutivosde todo trabalho rigoroso de interpretação” dentrode um determinado contexto histórico. Além do nacionalismo,outros temas são examinados como a mestiçagem ea representação literária.Em “‘A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta’: <strong>da</strong>rwinismosocial e imaginação literária no Brasil”, Luciana Murariexamina a maneira como o <strong>da</strong>rwinismo social foi diversamenteincorpora<strong>da</strong> por escritores brasileiros na passagemdo século XIX para o século XX. Se Machado de Assis eLima Barreto manifestaram uma posição crítica perantetal conceito, outros autores, como é o caso de Euclides <strong>da</strong>Cunha, tomaram o <strong>da</strong>rwinismo como princípio que permitiriao entendimento dos “conflitos sociais e <strong>da</strong> relaçãodo homem brasileiro com a natureza do país”. Desse modo,tem-se uma reflexão sobre a comunicação entre literaturae ciência, seus significados e implicações ideológicasna época.O artigo de Celdon Fritzen versa sobre as contradiçõesencontra<strong>da</strong>s no modo de representação <strong>da</strong> Amazôniaem relatos de viagem de estrangeiros. Os relatos examinadosatêm-se, especialmente, à cultura dos povos <strong>da</strong> mata,a seus mitos, revelando a maneira como o pensamentoiluminista evidencia a superiori<strong>da</strong>de do conhecimento científicoe a subalterni<strong>da</strong>de dos habitantes <strong>da</strong> Amazônia comoos indígenas. Ressaltam, dessa forma, procedimentos de


10 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 11reconstrução <strong>da</strong> tradição de relatos anteriores, pela críticaao que era considerado como fantasia.Outro trabalho sobre relato de viagem é o de KatiaAily Franco de Camargo que, em seu estudo sobre as representaçõesdo Brasil feitas pelo francês Adolphe d’Assierna Revue des Deux Mondes no século XIX, mostra uma visãoampla <strong>da</strong> perspectiva do publicista.A memória e a identi<strong>da</strong>de, no romance O último suspirodo Mouro em Salman Rushdie, são os temas analisadospor Telma Borges. Na obra, a identi<strong>da</strong>de é construí<strong>da</strong>por meio <strong>da</strong> memória, apresenta<strong>da</strong> como uma rede em queo esquecimento forma os espaços vazios.Com os artigos publicados, as editoras e a comissãoeditorial do décimo primeiro número <strong>da</strong> Revista Brasileirade Literatura Compara<strong>da</strong> esperam fornecer aos leitores aoportuni<strong>da</strong>de de acompanhar algumas pesquisas realiza<strong>da</strong>sno âmbito do comparatismo no que se refere à literaturae saberes.Maria Célia LeonelÍvia Alves* Universi<strong>da</strong>de Federal do RioGrande do Sul (UFRGS).A literatura compara<strong>da</strong> nesseadmirável mundo novoRita Terezinha Schmidt*RESUMO: No quadro <strong>da</strong> barbárie entranha<strong>da</strong> na história do presente,apresento reflexões em torno de relações entre globalização,violência, miséria humana e degra<strong>da</strong>ção ambiental, fazendoum contraponto dessa reali<strong>da</strong>de com os avanços do conhecimentona área dos estudos literários para in<strong>da</strong>gar sobre a sua(in)eficácia em termos de intervenção na prospecção de ummundo distópico. Nessa linha de argumentação, retomo o debateem torno <strong>da</strong>s novas tecnologias de informação e do impactode suas redes de poder na relação ambivalente com a democratizaçãodo conhecimento. Argumento que a inserção <strong>da</strong>literatura compara<strong>da</strong> na rede virtual deve contemplar os princípios<strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> razão imaginativa e dialógica inerentesà prática comparatista e que conferem aos seus saberes singulari<strong>da</strong>dee importância ímpar na luta pela sobrevivência e respeitoà diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s línguas e <strong>da</strong>s culturas humanas, o que, porsuas implicações, constitui uma ação de preservação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.PALAVRAS-CHAVE: Globalização, conhecimento, comparatismo,diversi<strong>da</strong>de, resistência.ABSTRACT: Before the picture of barbarism entrenched in contemporaryhistory, I here present a reflection upon the relationsbetween globalization, violence, human destitution and environmentaldisasters, making a counterpoint between such a realityand the advances in the field of literary studies so as toraise the question of its (in)efficacy regarding an interventionin the prospect of a dystopian world. Following this line of argument,I draw attention to the debate about the new informationtechnologies and the impact of their webs of power on theambivalent relation with the democratization of knowledge. Iargue that the inclusion of comparative literature in the worldwide web must follow the principles of alterity and of imaginativeand dialogic reason inherent to the comparatist practices,


16 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A literatura compara<strong>da</strong> nesse admirável mundo novo 175É preciso lembrar que aRevolução Industrial naEuropa foi alimenta<strong>da</strong> como óleo de focas e baleias,em caça<strong>da</strong>s pre<strong>da</strong>tórias noÁrtico Sul.Em parte poder-se-ia responder afirmativamente, porqueos processos de universalização do capitalismo ocidental,particularmente em sua conjugação do pensamentoliberal com uma economia política que se alimenta <strong>da</strong>sdesigual<strong>da</strong>des para colonizar nações e povos num processobrutal de dominação e subordinação à lógica do capital,têm contribuído e determinado certas condições políticas,sociais, ambientais e existenciais que geram, fomentame aceleram a barbárie sistêmica do nosso tempo. Muito <strong>da</strong>atual configuração geopolítica do mundo é resultado <strong>da</strong>son<strong>da</strong>s revolucionárias nacionalistas contra o colonialismoocidental que sacudiram o planeta após a Segun<strong>da</strong> GuerraMundial. Mas, se por um lado, os projetos revolucionárioscoletivos tiveram êxito com o desmembramento dos velhosimpérios europeus, por outro lado, a era pós-colonialnão significou a descolonização do Terceiro Mundo, nosentido pleno do termo, nem assegurou a soberania e autonomia<strong>da</strong>s nações periféricas que acabam sucumbindo àcentrali<strong>da</strong>de do Ocidente, o que se traduz como hegemoniado capital high-tech provindo de nações corporativas, emtorno do qual toma forma um novo poder imperial. Essepoder, em sua forma totalizadora e que simplesmente sedeslocou do mundo europeu para a potência norte-americana,não deixa de nutrir-se de formas de pensar, de ser ede agir norteados pela subjetivi<strong>da</strong>de racional que caracterizouo projeto <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de, contraditório quanto aseus ideais e sua prática na medi<strong>da</strong> em que impôs o império<strong>da</strong> razão como vontade-poder, no rastro do qual se forjaramos totalitarismos, reducionismos, racismos, sexismose outras violências <strong>da</strong> história moderna. 5A diferença é que, agora, o novo imperialismo do eucomo vontade-poder unifica o mundo pelo capital pósindustrialna forma de ideologias políticas de informação,circulação e consumo, um mundo unitário – nossa casa éo mundo – que a reali<strong>da</strong>de não confirma, pois essas ideologiasinvasivas operam sob a determinação de estruturaseconômicas de dominação, base dos jogos de poder, conflitosde interesses, hierarquias, violências, misérias e exclusõesque definem o nosso tempo. Nesse contexto, ressurgemcom vigor os vários fun<strong>da</strong>mentalismos, de caráternacionalista, religioso e étnico e suas tecnologias de morte.Ninguém poderia prever que a que<strong>da</strong> do muro de Berlimem 1989 significaria a proliferação de outros tantos muros,reais e imaginários, em vários continentes, o que parececonfirmar a tese do fim de to<strong>da</strong> e qualquer utopia.No deslocamento do campo dos acontecimentos parao campo acadêmico <strong>da</strong> produção de conhecimento, vivemosuma reali<strong>da</strong>de diversa. Uma série de transformaçõesprofun<strong>da</strong>s do conhecimento nas últimas déca<strong>da</strong>s faz dotempo presente, particularmente na área <strong>da</strong>s Humani<strong>da</strong>des,um momento extraordinariamente rico para elaborarnovos modos de compreender os nossos objetos de estudo,de interpretá-los como produtos capazes de suscitarquestões de absoluta relevância – teórica, histórica, estéticae ética – e de, assim, problematizar a ordem <strong>da</strong> culturacomo lugar de dissenso, de construção de identi<strong>da</strong>des esociabili<strong>da</strong>des nem sempre afiliativas, portanto como modode produção e efeito de relações sociais no contexto dereali<strong>da</strong>des vivi<strong>da</strong>s e imagina<strong>da</strong>s, permea<strong>da</strong>s pela multiplici<strong>da</strong>dede vontades e poderes. A partir do estruturalismo,houve uma explosão de correntes teóricas que, a parde suas coordena<strong>da</strong>s materiais diferencia<strong>da</strong>s de produção,desestabilizaram modos tradicionais de investigação científicae contribuíram decidi<strong>da</strong>mente na abertura epistemológicados campos disciplinares.Nas últimas déca<strong>da</strong>s, o trânsito interdisciplinar permitiuconjugar saberes antes isolados por critérios normativose molduras inflexíveis, fomentando um intenso debateintelectual sobre territórios constituídos e espaçosinstitucionais tendo em vista o arquivo dos conhecimentosocidentais e metropolitanos e as questões de poderimplica<strong>da</strong>s em constelações conceituais, particularmentea partir de inserções políticas e geográficas específicas comoa constituição <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s minorias e <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>desperiféricas do assim chamado Terceiro Mundo. A expansãodo marxismo na articulação dos novos estudos


18 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A literatura compara<strong>da</strong> nesse admirável mundo novo 196No Colóquio Internacional<strong>da</strong> Associação Senegalesa deLiteratura Compara<strong>da</strong>,realiza<strong>da</strong> em Dakar, naUniversi<strong>da</strong>de de Cheikh AntaDiop, o professor Gorgui Dieng,<strong>da</strong> referi<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de,levantou uma série dequestionamentos a respeito doconceito do universal e suaapropriação pelos centrosmetropolitanos em discursoscríticos que tendem asubestimar a literaturaproduzi<strong>da</strong> na África. Em seutrabalho “Universality andtopicality in the African novel”,Dieng (2003, p.52) afirma:“many western literary critics andpublishers give credit to only thebreed of conformist novelists, whoabide by the set of stan<strong>da</strong>rs ofwhat they call universal novelwriting; such stan<strong>da</strong>rds beingthematic, stylistic andnarratological ones. But whatdoes universality, consciously orunconsciously, mean in the mindsof its advocates and users? Andwhy do such people give to the7Jonathan Culler (1997, p.15)denomina “teoria” um gêneroheterogêneo composto por umavarie<strong>da</strong>de de textos atrelados adiscursos e ativi<strong>da</strong>des distintasque, em suas palavras,“extrapolam a molduradisciplinar dentro <strong>da</strong> qualseriam normalmente avaliadose que aju<strong>da</strong>ria a identificar suassóli<strong>da</strong>s contribuições aoconhecimento”. Assim, essestextos não dizem respeito a umdomínio específico, são nareali<strong>da</strong>de uma intrica<strong>da</strong>mistura. Por exemplo, a teoria<strong>da</strong> literatura hoje já não trataespecificamente <strong>da</strong> avaliação demérito de textos literários ou doaperfeiçoamento do poderinterpretativo, pois inclui textosde Saussure, Ga<strong>da</strong>mmer, Freud,Marx, Nietzsche, Lacan,Derri<strong>da</strong>, Lyotard, entre outros.culturais, os desdobramentos do feminismo nos estudosde gênero que, por sua vez, abrem as comportas para osestudos queer e estudos <strong>da</strong> masculini<strong>da</strong>de, o desenvolvimento<strong>da</strong>s teorias pós-coloniais em contraponto crítico àmoderni<strong>da</strong>de e seus discursos, a emergência <strong>da</strong> categoriade raça e etnia como categorias analíticas a partir <strong>da</strong>s quaisse constitui um outro objeto de estudo definido como“branquitude”, as revelações <strong>da</strong> desconstrução de que obinarismo é como algo colado à nossa pele, mas que devemosprocurar escapar a todo custo, são alguns dos elementos<strong>da</strong> voltagem crítica que hoje permeia as Humani<strong>da</strong>des.Mesmo que o quadro <strong>da</strong> teoria contemporânea não seesgote nos desdobramentos apontados aqui e que se reconheçanos seus discursos críticos a conjugação, não rarocontraditória, de elementos conservadores e progressistas,até porque a teoria é o ancoradouro de interesses muitasvezes conflitantes, o cenário permite constatar que a teoriaestá, mais do que nunca, direciona<strong>da</strong> para o que foi excluídopela “alta teoria” como processos de subjetivação, constituiçãode identi<strong>da</strong>des e a natureza do político. Esse fatonos leva a pensar que a área <strong>da</strong>s Humani<strong>da</strong>des está se redimensionandoe se revitalizando, na medi<strong>da</strong> em que seusdiscursos começam a se afastar de certo diletantismo beletrista,fato que coloca em relevo o seu potencial como locusde produção vital de significados com os quais podemos fazersentido e gerar conhecimentos sobre as contingências dohumano, suas heterogenei<strong>da</strong>des e produtivi<strong>da</strong>des no contexto<strong>da</strong>s materiali<strong>da</strong>des históricas que determinam as formasde vi<strong>da</strong> social, nas quais ocorrem os embates pelo direito àvoz, à liber<strong>da</strong>de, à justiça, bem como ao desejo de identi<strong>da</strong>de.Ao se politizar, poder-se-ia dizer que a teoria tem caminhadoem direção à descolonização de seu território,colocando em pauta lições definitivas sobre as relaçõessaber/poder e poder/saber inscritas não somente noetnocentrismo e seus valores universalistas presumi<strong>da</strong>menteneutros, mas também nas práticas dos sujeitos e <strong>da</strong>sinstituições. E, nesse sentido, pode-se dizer que a teoriadeixa de ser um corpo de abstrações dissocia<strong>da</strong>s <strong>da</strong> consciênciade reali<strong>da</strong>des vivi<strong>da</strong>s para abrir um espaço para areflexão sobre as determinações que constituem seus discursose suas formações ideológicas, particularmente aspolêmicas entre universali<strong>da</strong>de e particulari<strong>da</strong>de, 6 conceitosem torno dos quais convergem as grandes discussõessobre valores e sobre a democratização <strong>da</strong> cultura.Na teoria <strong>da</strong> literatura repercutem, de forma visceral,os deslocamentos conceituais do campo multidisciplinardefinido simplesmente como “teoria”, 7 com a crítica aosparâmetros do próprio pensamento crítico que respaldou aconstrução <strong>da</strong> tradição literária, do conceito de literatura,<strong>da</strong> representativi<strong>da</strong>de de cânones literários e de critériosde julgamento sobre valor estético. Como conseqüênciadireta desse questionamento que, em última análise, traduzum ceticismo epistemológico acerca de ver<strong>da</strong>des instituí<strong>da</strong>sde forma inquestionável porque referencia<strong>da</strong>s emmodelos universais – por exemplo, paradigmas de tradição,de texto, de leitura, de gosto, de moral, de identi<strong>da</strong>de e devalor –, podemos apontar dois desdobramentos fun<strong>da</strong>mentais,repetindo o que já é consenso na área: 1) a literaturadeixa de ser uma categoria autônoma, de caráter ontológico,para ser vista como fenômeno histórico, contextualizado,portanto inserido nos modos de produção materiais e processossociais reais; 2) as fronteiras hierárquicas que originalmentedefiniram o campo <strong>da</strong>s Humani<strong>da</strong>des modernascomo a alta cultura e a cultura menor, popular ou de massa,a escrita erudita de elite e as formas orais no vernáculotendem a se diluir, o que significa dizer que o conceito deliteratura se descola do pensamento binário e se expandepara incluir novos objetos e suscitar novas questões teóricase de pesquisa sobre história literária e história <strong>da</strong> cultura,sobre mecanismos de constituição e institucionalizaçãode cânones, incluindo-se aqui a problematização <strong>da</strong> função<strong>da</strong> textuali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> função poética, comunicativa esocial <strong>da</strong> linguagem, em contextos históricos específicos.Os acirrados debates sobre literatura, cultura e identi<strong>da</strong>de,particularmente no Brasil e em países periféricos, deixamà mostra os diversos alinhamentos que emanam de


20 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A literatura compara<strong>da</strong> nesse admirável mundo novo 21posições de sujeitos situados no espectro <strong>da</strong> teoria, do queresulta um confronto saudável de valores que aguça a sensibili<strong>da</strong>dee o senso de responsabili<strong>da</strong>de com relação às deman<strong>da</strong>sdo conhecimento e às reali<strong>da</strong>des prementes do corposocial. Pode-se dizer que a doxa do pensamento críticoconservador voltado à “alta” textuali<strong>da</strong>de, que lamenta oestado atual <strong>da</strong> arte como o resultado tanto de um descontrolede paradigmas de referência sob o efeito <strong>da</strong> vira<strong>da</strong>interdisciplinar quanto de uma ideologização de práticasque coloca em risco a sobrevivência <strong>da</strong> literatura, cede terrenodiante dos questionamentos teóricos contemporâneos,em que a emergência do marginal pressiona os limites detradições culturais – a nacional e a ocidental – forçando,nesse processo, o reconhecimento <strong>da</strong> localização geográficacomo fator preponderante nos processos de produção deconhecimento. Assim, se multiplicam as vozes de dissensoem discursos teórico-críticos produzidos no âmbito dos estudossubalternos, estudos de minorias e estudos pós-coloniaisos quais, sob o imperativo de rechaçar o binarismohistórico que norteou os estudos literários tradicionais, introduzemnovos paradigmas de análise por meio de categoriascomo gênero, raça, classe, etnia, nacionali<strong>da</strong>de, orientaçãosexual, entre outros. Sob a influência do gesto desconstrutor,tais discursos reivindicam seu protagonismo teórico-culturalna medi<strong>da</strong> em que se querem estrategicamente compromissadoscom a noção de que a literatura, em sua heterogenei<strong>da</strong>dede formas e realizações, tem uma função críticaimportante na produção de saberes, nos processos de emancipaçãoe na formação de competências de viver. Assim, ogrande desafio <strong>da</strong> teoria literária, no contexto <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>dede identi<strong>da</strong>des multiculturais, reside no resgate do potenciallibertário do conhecimento e de uma reflexão críticapara muito além do projeto moderno de bem-estar socialque operou a redução do outro pela instrumentalização <strong>da</strong>razão e domesticação <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des.Considerando o conjunto de questionamentos, os deslocamentosepistemológicos e o foco que definem hoje astendências do conhecimento na área <strong>da</strong>s Humani<strong>da</strong>des emPensar as relações entre um campo de produção desaber que é a literatura compara<strong>da</strong> e os recursos do munparadigmso much importance?When using the word universal,do they include all the differentsections, poor and rich,developed and underdeveloped,of humankind, or do they inactual fact have in mind only onepriviledged section? In otherwords, whose preoccupations,themes and stylistic stan<strong>da</strong>rds areviewed as universal ones andsubsequently ascribed the right toprop up universality?” [“muitoseditores e críticos literáriosocidentais valorizam apenas osromancistas conformistas, quese atêm a um conjunto demodelos <strong>da</strong>quilo que chamamescrita universal do romance;mesmo que estes modelossejam temáticos, estilísticose narratológicos. Mas o queuniversali<strong>da</strong>de, consciente ouinconscientemente, significana cabeça de seus defensorese usuários? E por que taispessoas dão tamanhaimportância para esseparadigma? Ao usar a palavrauniversal, incluem todos osdiferentes grupos, pobres ericos, desenvolvidos enão-desenvolvidos, <strong>da</strong>humani<strong>da</strong>de, ou consideram,na ver<strong>da</strong>de, apenas um grupoprivilegiado? Em outraspalavras, de quem são aspreocupações, os temas epadrões estilísticosconsiderados como universaise legitimado com o direito desustentar a universali<strong>da</strong>de?”].relação ao cenário apocalíptico do presente, o que se constataé um enorme descompasso, até mesmo um abismo, entreo campo intelectual e os rumos atuais <strong>da</strong> história humananum mundo que pode ser definido, segundo Shakespeare,em seu Hamlet, como a world out of joint. A questão que secoloca é: por que o conhecimento é tão ineficaz para intervire alterar a configuração dessa história? Por que o radicalismo<strong>da</strong> inteligência crítica não permeia a educação responsávelpela capacitação <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des a reconheceremos seus processos históricos e a efetivarem ações que favoreçama soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de entre elas de forma a construir ummundo melhor? Devemos acreditar de vez que o conhecimentoe a reali<strong>da</strong>de dos fatos constituem dois mundos àparte? Ou estaríamos diante de um admirável mundo novo?A minha evocação ao romance de Aldous Huxley, Admirávelmundo novo, não é gratuita. Na visão perspicaz <strong>da</strong> tiraniasinistra e calculista que domina a socie<strong>da</strong>de do futuro,representa<strong>da</strong> no romance de 1932, os ci<strong>da</strong>dãos-vítimas sãoreceptivos à sua própria servidão, revelando mais do quesimplesmente passivi<strong>da</strong>de, mas cumplici<strong>da</strong>de involuntáriaa um sistema que os destitui de autodeterminação, incluindoa própria vontade de desejar algo além do que a reali<strong>da</strong>delhes oferece: é o regime <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de universal em queaté os intelectuais perderam <strong>completa</strong>mente a sua capaci<strong>da</strong>dede resistência ou intervenção. A visão profética deHuxley infelizmente se atualiza na história contemporânea,pois o seu anunciado mundo novo já está aí à nossa volta,como a nos dizer, de forma irônica, que os avanços do conhecimentonão vem, necessariamente, atrelados e tampoucosignificam avanços <strong>da</strong> civilização. De que maneira a literaturacompara<strong>da</strong> pode intervir na configuração dessa distopiaé o que pretendo desenvolver a seguir.Do comparatismo como missão no mundo<strong>da</strong> informação


24 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A literatura compara<strong>da</strong> nesse admirável mundo novo 25hierarquizado e repressivo em razão do diálogo e de trocasigualitárias entre os sujeitos, mas sublinha, to<strong>da</strong>via, quehá razões para se questionar tanta celebração oriun<strong>da</strong> <strong>da</strong>premissa de que as novas tecnologias favoreceriam o progressodemocrático aproximando as socie<strong>da</strong>des periféricas<strong>da</strong>s metropolitanas, na medi<strong>da</strong> em que fomentariam o desenvolvimento<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, do ensino e <strong>da</strong> pesquisa peloacesso à informação que, de outra maneira, estaria restritaao círculo privilegiado dos países do Primeiro Mundo. Asrazões, segundo Bellei, residem no fato de que to<strong>da</strong> tecnologianasce num contexto de produção geri<strong>da</strong> pelo capital,ou seja, a rede não está aí apenas para fazer o que euchamaria de filantropia, mas para gerar capital, econômicoe simbólico, e é, portanto, um mercado em que a informaçãoestá atrela<strong>da</strong> à movimentação e concentração decapital, o que “acaba por gerar ou prolongar hierarquiasde produção, seleção e distribuição de conhecimento ou,mais precisamente, de capital simbólico” (ibidem, p.277). 10Como exemplo nessa direção, Bellei cita o acúmuloquantitativo e qualitativo <strong>da</strong> língua inglesa na rede, ouseja, sua hegemonia como código mestre. E Heloísa Buarquede Hollan<strong>da</strong> (2001, p.43) nos lembra também que osEstados Unidos é o único país que não precisa ser especificadono sufixo <strong>da</strong>s URL ou dos endereços eletrônicos quecirculam no ambiente <strong>da</strong> rede. A relação entre processosde homogeneização e dominação, tendo a língua comoelemento-chave, não é novi<strong>da</strong>de, particularmente no contexto<strong>da</strong> experiência histórica <strong>da</strong> América Latina. Nessesentido, é particularmente contundente o Relatório Mundial<strong>da</strong> Unesco, lançado em novembro de 2005, cujo temaé “Rumo às socie<strong>da</strong>des do conhecimento”. 11 Trata-se deum alerta sobre a situação <strong>da</strong>s línguas no planeta, especificamenteo risco de extinção, ao longo do século XXI, demetade dos seis mil idiomas falados hoje. Essa situaçãoremete a uma questão que se apresenta como uma faca dedois gumes: de um lado, pela hegemonia do inglês, as vantagens<strong>da</strong> expansão <strong>da</strong>s novas tecnologias informacionaisagravam e até aceleram a “morte” de muitos idiomas; de10É importante acrescentaraqui os <strong>da</strong>dos apresentadospor Bellei sobre os usos <strong>da</strong>snovas tecnologias eletrônicasna automatização emercantilização do ensino nosEstados Unidos. Bellei (2001)refere-se, entre outras, à obrade David F. Noble (2001), naqual o autor argumenta quesob a justificativa de melhoraro ensino e garantir acessouniversal à informação, há umadeterminação econômica nouso <strong>da</strong> tecnologia de parte deadministradores universitáriose grandes corporações comoIMB, Apple, Bell, Microsoft,os quais unem esforços paratransformar a universi<strong>da</strong>de emmercado de produtoseducacionais, como programase cursos a distância. SegundoBellei (2001), Noble denunciatambém o empacotamento,]em material eletrônico, decursos, sem direitos autoraisdos professores que osprogramaram, os quais sãooferecidos com o mínimo demão-de-obra competente, oque torna a Universi<strong>da</strong>de maisbarata. Cabe lembrar que oprocesso de liberalização deserviços que abriu o caminhopara a transformação <strong>da</strong>educação em comércio foidefinido pela OMC em 2000/2001. Segundo Marco AntonioRodrigues Dias, assistenteespecial do Reitor <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s NaçõesUni<strong>da</strong>s (Unu), no caso <strong>da</strong>educação no Brasil, há umaprivatização muito grande e asuniversi<strong>da</strong>des públicas acabamse submetendo às leis domercado quando são obriga<strong>da</strong>sa irem a luta para obter fundos.11A íntegra do relatório podeser obti<strong>da</strong> no endereço:.12Dado obtido no site .outro, as dificul<strong>da</strong>des de acesso a essas tecnologias, a faltade inclusão digital em zonas periféricas constitui, segundoo referido Relatório, um dos maiores obstáculos para odesenvolvimento humano. Alguns <strong>da</strong>dos apresentados sãosurpreendentes, como o de que apenas 11% <strong>da</strong> populaçãomundial têm acesso à internet, e que desses, 90% são depaíses industrializados. Já no Brasil, conforme <strong>da</strong>dos <strong>da</strong>Associação Nacional de Dirigentes <strong>da</strong>s Instituições Federaisde Ensino, apenas 17% <strong>da</strong>s residências tem conexãopela internet. 12A questão que se impõe é como equacionar o acesso àinformação e ao conhecimento, isto é, explorar o potencialdemocratizante <strong>da</strong> tecnologia como instrumento semperder a visão crítica dos interesses na base de suas condiçõesde produção e de distribuição, pois nas palavras deBellei (2001, p. 277), “A rede não dissolve processoshegemônicos. Ao acumular capital, prolonga, modifica ouintensifica os já existentes, ao mesmo tempo em que instauranovas formas de hegemonia”. Nesse sentido, destacodois exemplos que ilustram paradoxalmente o campode poder econômico e de poder simbólico acumulado pelarede, fazendo dela um ambiente ambivalente em que ojogo de poder privilegia os interesses do mais forte.O primeiro exemplo refere-se à decisão do Google, omaior serviço do mundo de busca na internet. Para mantersuas infovias abertas na China, um mercado de 111milhões de internautas e consumidores em potencial dosprodutos oferecidos em suas páginas, o Google admitiu aautocensura, retirando do ar, no território chinês, a possibili<strong>da</strong>dede acesso a qualquer informações sobre o Tibet eas ativi<strong>da</strong>des do Dalai Lama. O segundo refere-se à recenteproibição e retira<strong>da</strong> do ciberespaço, de parte do governoiraniano, do site Iranian Feminist Tribune, como formade neutralizar as ativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s pelas feministasiranianas. De um lado, é sintomático que ambos oscasos têm a ver com o cerceamento, por parte de patrulhasideológicas de estados autoritários, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de deexpressão, o que evidencia o potencial <strong>da</strong> rede como veí-


26 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A literatura compara<strong>da</strong> nesse admirável mundo novo 27culo de articulação de forças políticas emancipatórias. Deoutro, não se pode manter a ilusão <strong>da</strong> isenção <strong>da</strong> rede quandose trata de interesses políticos aliados aos mercados decapital, os quais operam e se materializam em e por meiode territórios nacionais e instituições como o Estado-nação.Essa relação perigosa coloca em xeque o princípio deque o acesso à informação pelas pessoas pode ser uma viapoderosa de melhoria de vi<strong>da</strong>.As circunstâncias e relações aponta<strong>da</strong>s antes podemlevar à conclusão de que a vigência de uma retóricaglobalizante sobre fluxos de capital em tempos definidoscomo pós-nacionais precisa ser <strong>revista</strong> e adequa<strong>da</strong> comfatos tais como os referidos por Homi Bhabha (2004,p.345): quase 90% de todos os tratados comerciais e tarifasem todo o mundo são ain<strong>da</strong> controlados por Estadosnações,e que, portanto, hegemonias nacionais ain<strong>da</strong> predominamnos acordos transnacionais. Para Bhabha, osistema “nacional” está sendo reinventado e hibridizadopara li<strong>da</strong>r com os determinantes <strong>da</strong> globalização, mas aeconomia mundial ain<strong>da</strong> é, substancialmente, “nacional”. 13Ao fazer a analogia entre processos econômicos e aglobalização culturalista identifica<strong>da</strong> com uma retórica hojevigente em discursos nas Humani<strong>da</strong>des – migrância, trânsito,fluxo, circulação, transferência –, Bhabha argumentaque esse discurso não pode <strong>da</strong>r sustentação a uma éticaglobal, pois somente 3% <strong>da</strong> população mundial participamdos fluxos globais migratórios e que o desafio maisfun<strong>da</strong>mental é repensar a questão <strong>da</strong> “indigência” ou “nacionali<strong>da</strong>de”nas condições de um contexto global incipientee parcialmente desnacionalizado, o que significadiscutir o acesso de todos a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia aos direitos civis eaos bens públicos, o que somente pode ser feito no âmbitodo nacional.Dessa forma, segundo Bhabha (2004, p.347) o autor:“migrants, refugees and nomads don’t merely circulate. Theyneed to settle, claim asylum or nationality, demand housingand education, assert their economic and cultural rights, andcome to be legally represented within legal jurisdiction”. Para13Essa também é a posição deStuart Hall (2003, p.60).ele, relações globais positivas dependem <strong>da</strong> proteção dedireitos e de recursos que têm por base a nação, por maisque ela tenha sido enfraqueci<strong>da</strong> pelos efeitos de processostransnacionais de produção e consumo.Como pensar o papel <strong>da</strong> literatura compara<strong>da</strong> nessecontexto e o que significa argumentar que ela, como lugarde produção de conhecimento, pode se colocar na contracorrentedo mercado <strong>da</strong> informação técnica e <strong>da</strong> razãoinstrumentaliza<strong>da</strong> pelo capital e seus processos hegemônicose excludentes e se aliar aos esforços na busca de conhecimentosque venham concretamente ao encontro <strong>da</strong>saspirações de uma socie<strong>da</strong>de mais justa e solidária, naperspectiva de melhores condições de vi<strong>da</strong> no planeta? Nãoé uma pergunta simples para se fazer, mas é com ela quequero encaminhar as reflexões finais deste texto.A educação começa pela pergunta do que significaser humano, e a resposta passa necessariamente pelo desenvolvimento<strong>da</strong> consciência sobre as duas dimensões quefun<strong>da</strong>mentam e integram a competência de viver comohumano: a primeira é a dimensão política pela qual se organizamas condições de convívio coletivo para possibilitara justiça, a felici<strong>da</strong>de e a liber<strong>da</strong>de de modo que o bemcomum possa se materializar; a segun<strong>da</strong> é a ética, princípioque destaca o respeito à liber<strong>da</strong>de pela qual a autonomiaindividual é corrigi<strong>da</strong> como virtude pessoal de modoa garantir o direito de um como limite em relação ao direitode um outro. A literatura compara<strong>da</strong>, como um campodo saber humanístico, pode desenvolver um papel fun<strong>da</strong>mentalno processo cognitivo dos sujeitos ante as deman<strong>da</strong>se urgências educacionais do nosso tempo, no sentidode que ela mobiliza conhecimentos capazes de desenvolverhabili<strong>da</strong>des que resgatam a perspectiva do humano,concebido dentro <strong>da</strong>s coordena<strong>da</strong>s política e ética anteriormentereferi<strong>da</strong>s e depurado, tanto de equivoca<strong>da</strong>s noçõesde universalismo ou <strong>da</strong> retórica desenraiza<strong>da</strong> (e desencanta<strong>da</strong>)do globalismo cultural que desloca o locus de determinaçãodo econômico para a cultura, toma<strong>da</strong> como esferaautônoma, dissocia<strong>da</strong> do social.


28 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A literatura compara<strong>da</strong> nesse admirável mundo novo 29A partir de seu foco nas relações que as literaturasnacionais estabelecem entre si, o comparatismo coloca emrelevo o seu impulso primeiro, a sua razão de ser e a suametodologia, que é o seu comprometimento em direçãoao outro 14 – a outro texto, a outra literatura, a outra história,a outra cultura. Isso significa dizer que a diferença,como categoria analítica, constitui o traço mais significativodo fazer comparatista, no melhor de sua tradição depesquisa, pois fun<strong>da</strong>menta o conhecimento interpretativo<strong>da</strong>s (inter)relações entre o próprio e o alheio. 15 Manter oprincípio <strong>da</strong> diferença como norte de to<strong>da</strong> prática é deslocare romper com relações hierárquicas de dominação esubordinação, tanto no nível de textos (modelo/cópia)quanto no nível de culturas e de povos (centro/periferia).É nesse sentido que os estudos comparados <strong>da</strong>s tensões eembates <strong>da</strong> representação de alteri<strong>da</strong>des e seus respectivosimaginários, <strong>da</strong>s implicações desses na expressão deidenti<strong>da</strong>des político-culturais e de como essas expressõesinscrevem múltiplas histórias no contexto <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>dede processos textuais e históricos que constituem as literaturasnacionais perfazem um amplo leque de questõesque definem a literatura compara<strong>da</strong> como uma área singulare privilegia<strong>da</strong> de observação e análise <strong>da</strong> rede deinterações entre coletivi<strong>da</strong>des e suas literaturas.Longe de isolar ou ignorar a tradição literária e a culturanacional, a literatura compara<strong>da</strong> articula uma compreensãodiferencial do local/nacional, considerado nãosimplesmente em relação a sedimentação de processos históricosdentro de fronteiras estáveis, fixas ou trans-históricas,mas a partir <strong>da</strong> premissa de que as identi<strong>da</strong>des nacionais/textuaissão forja<strong>da</strong>s em espaços caracterizados porapropriações, sobreposições, transformações e transculturações,o que faz <strong>da</strong>s fronteiras uma linha móvel e permeávelaos influxos que procedem de outros lugares, deoutras tradições. Nesses termos, poderia se dizer que o reconhecimento<strong>da</strong>quilo que nos é alheio permite identificaraquilo que nos é próprio, ou seja, no processo <strong>da</strong> diferenciaçãocultural, as diferenças se entrelaçam, gerando14Dois grandes comparatistas,Brunel & Chevrel (1989), emseu Littérature compareé,definiram esse impulso como“a abertura ao outro”.15Aproprio-me aqui do títulodo livro de Tania FrancoCarvalhal (2003), O próprioe o alheio: ensaios de literaturacompara<strong>da</strong>.16A Revista Time, em suaedição de 28 de fevereiro de2005 apresenta um relatórioespecial sobre a crise, trazendona capa a figura de Monalisa,ícone <strong>da</strong> europeici<strong>da</strong>de,representa<strong>da</strong> com o veúislâmico.17Muitos dos gruposminoritários foram absorvidospelas culturas dominantes edesapareceram, outros foramforçados à assimilação etiveram suas identi<strong>da</strong>desapaga<strong>da</strong>s pela repressãopolítica. Outros grupossobreviveram e hoje ensaiamo renascimento de suascartografias culturais. NaEuropa Ocidental há osbascos, os bretões, os córsegos,os sorbos e os walsers. NaEuropa Central e Oriental, osromas, rusynos, kashubianos egagauzes. Na Rússia, os veps,selkups e nenets. E, na regiãobáltica, os sami e livonios.formas cruza<strong>da</strong>s ou superpostas de pertencimento que nãose estruturam e nem se reduzem a oposições binárias: centro/margem,interior/exterior. Por essa via, a literatura compara<strong>da</strong>se apresenta como um campo fértil de in<strong>da</strong>gaçõessobre as próprias representações <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de e teriamuito a contribuir, do ponto de vista teórico-crítico, sobrea geopolítica <strong>da</strong> literatura diante <strong>da</strong> crise <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des,por exemplo, <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de européia deflagra<strong>da</strong> pelomulticulturalismo e veicula<strong>da</strong> em vários meios de comunicação16 ao longo do ano de 2005.As relações culturais e textuais do mundo europeu,com suas margens ou fronteiras não-européias, relaçõesque certamente incorporam o problema de como oscânones literários europeus desterritorializaram ou suprimiram,em razão <strong>da</strong> deman<strong>da</strong> por uni<strong>da</strong>de dos Estadosnacionais e <strong>da</strong> construção do centralismo ocidental e suashierarquias, a expressão de outras identi<strong>da</strong>des textuais/culturais que proliferaram como “minorias” no interiordessas socie<strong>da</strong>des, faz dessa crise de identi<strong>da</strong>des um objeto,por excelência, de investigação comparatista. 17 TaniaCarvalhal (2003, p.31-2) acrescenta pontualmente sobrea questão:Se o mapa <strong>da</strong> Europa tem, hoje, uma nova configuração,diferentes questões se propõem, obrigando à retoma<strong>da</strong> deproblemas como o dos nacionalismos, dos regionalismos esuas relações com o universal. Do mesmo modo, as conformaçõespolítico-econômicas que se constroem na Américado Sul e do Norte estão a instigar questões de inter-relaçõesculturais e literárias, <strong>da</strong> constituição de cânones literários,de análises de diferenças, problemas de representação<strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de, de expressão de identi<strong>da</strong>de, do estudo econfronto de imaginários culturais e <strong>da</strong>s implicações políticas<strong>da</strong> influência cultural [...]A emergência de novas cartografias culturais ou“localismos” na conjuntura <strong>da</strong> globalização e sua universalizaçãocapitalista traz à pauta um outro fenômeno queé o <strong>da</strong> desocidentalização, cuja semântica não se confun-


30 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A literatura compara<strong>da</strong> nesse admirável mundo novo 31de com a do termo descolonização, definido por MaryLouise Pratt como um duplo processo: primeiro, a entra<strong>da</strong>do Terceiro Mundo em diálogo com o Primeiro e o reconhecimentodeste último como constituído por relaçõesde contato para além de suas fronteiras; segundo, a descolonização<strong>da</strong> relação dos Estados Unidos com a Europa nocampo <strong>da</strong> cultura e sua concomitante auto-redefinição.No meu entendimento, a desocidentalização destitui aEuropa como centro primordial do contexto histórico dereferência, um mito de origens, por assim dizer, nos estudos<strong>da</strong>s heranças culturais orais e tradições literárias latino-americanas,orientais e africanas. 18 No caso <strong>da</strong> Índia,por exemplo, há várias tradições literárias autóctones, taiscomo as dos bengali, hindi, tamil, telegu, entre outras, cujosestudos são de extrema importância para o entendimento<strong>da</strong> constituição dos nacionalismos, mas que permanecemabsolutamente desconheci<strong>da</strong>s 19 dos comparatistas ocidentais.Na América Latina há um processo contínuo e consistentede resgate <strong>da</strong> heterogenei<strong>da</strong>de do continente apartir do estudo de heranças culturais locais e suas tradiçõesorais (cf. Coutinho, 2004; Palermo, 2005).Se a singulari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> educação literária reside no desenvolvimento<strong>da</strong> consciência <strong>da</strong> linguagem para além doconsumo fácil associado à função comunicativa na medi<strong>da</strong>em que aquela aciona nossa disposição intelectual eafetiva para discernir e desfrutar de seu poder ético e estético,a literatura compara<strong>da</strong> acrescenta a essa consciênciaa noção de que a diversi<strong>da</strong>de lingüística é a condição sinequa non para o acesso à imensa heterogenei<strong>da</strong>de de culturassubalternas existentes no mundo. O acesso ao outro,irredutível em sua diferença, é uma função <strong>da</strong> linguagem,mas o outro, como nos ensina Emmanuel Lévinas, nuncaé, inicialmente, o objeto de compreensão para depois, setornar interlocutor, pois as duas relações se confundem.Diz Lévinas (2005, p.27):[...] compreender uma pessoa é já falar-lhe. Pôr a existênciade outrem, deixando-a ser, é já ter aceito essa existência,tê-la tomado em consideração. [...] Trata-se de perceber a18Essa posição ficou clara notrabalho de Didier Coste,intitulado “Othering the west,or why comparative literatureshould abandon identity”,apresentado no Congresso dos50 anos <strong>da</strong> ICLA, realizado emVeneza, Itália, de 25 a 30 desetembro de 2005.19O tema é discutido porAijaz Ahmad (2002, p.85),no contexto <strong>da</strong> polêmicaem torno <strong>da</strong> tese de FredricJameson sobre o romancealegórico do Terceiro Mundo.Ahmad também discute oempacotamento <strong>da</strong> literaturado Terceiro Mundo ao serdisponibiliza<strong>da</strong> em tradução –língua inglesa – para os leitoresdo centros metropolitanos doPrimeiro Mundo.20O trabalho se intitula“The proliferation of theoriesin literary scholarship: causesand effects (a systemicinterpretation)”, cujo resumofoi publicado no livro deresumos do referido evento(Veneza: UniversitàCa´Foscari, Centro PoduzioneMultimediale, setembre 2005).função <strong>da</strong> linguagem não como subordina<strong>da</strong> à consciênciaque se toma <strong>da</strong> presença de outrem ou de sua vizinhançaou <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de em que esse outro está inserido, mascomo condição mesma desta “toma<strong>da</strong> de consciência”.O comprometimento com a necessi<strong>da</strong>de de preservaro ensino <strong>da</strong>s línguas estrangeiras ratifica a impulso <strong>da</strong> literaturacompara<strong>da</strong> em direção ao outro, aqui entendido naconcepção filosófica de Lévinas e transformado em princípioético <strong>da</strong> pesquisa comparatista. As línguas, além deconstituírem um patrimônio cultural <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, sãoelas mesmas a condição <strong>da</strong> nossa “toma<strong>da</strong> de consciência”do outro, pois acumulam as singulari<strong>da</strong>des históricas desuas origens, a densi<strong>da</strong>de semântica, o privilégio produtivoe a força imaginativa de suas culturas. Nesses termos,entende-se o apelo enfático do crítico Milan V. Dimic,quando <strong>da</strong> apresentação de seu trabalho no CongressoComemorativo ao Jubileu dos 50 Anos <strong>da</strong> Associação Internacionalde Literatura Compara<strong>da</strong>, realizado em Venezaem setembro de 2005: “we need to do justice to the diversityof languages”. 20Entendo que a resposta intelectual estratégica do comparatismoàs questões do presente, particularmente quantoa saberes que possam agregar à construção de um mundomais justo e solidário e, assim, interromper a distopiaem curso, parte do princípio <strong>da</strong> razão imaginativa e dialógicaem contraponto à hegemonia, à homogeneização eao monolingüismo. Desse princípio decorre uma série dedirecionamentos que pode levar o comparatismo, de umaforma construtiva, a repensar hoje os limites de muito desuas práticas no passado para expandir sua atuação e divisarnovas fronteiras de impacto em termos de geração deuma cultura crítica atenta às complexi<strong>da</strong>des enraiza<strong>da</strong>sdo cultural em sua imbricação com o social, na esteira docomparatismo preconizado por René Etiemble (1988) emseu Overture(s) ou le comparatisme militant. Integrar os desenvolvimentos<strong>da</strong> teoria contemporânea aos estudos comparadosde literatura em suas relações com outros discursostendo em vista a constituição de diálogos interliterários


32 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A literatura compara<strong>da</strong> nesse admirável mundo novo 33e interculturais, apreender suas relações de força no contextomaterial <strong>da</strong>s histórias <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de inter-humana a partir<strong>da</strong> consciência do outro, <strong>da</strong> defesa <strong>da</strong> inviolabili<strong>da</strong>de deseus direitos humanos e do comprometimento com a diversi<strong>da</strong>delingüística é uma contribuição ímpar para a produçãode subjetivi<strong>da</strong>des na rede de uma coletivi<strong>da</strong>de planetáriasolidária. A virtualização dos saberes comparatistassó pode ser aceitável nas condições de sua integralizaçãocomo um projeto ético-político-pe<strong>da</strong>gógico capaz de interferirna barbárie que cresce e se adere à corrente globalizante.A potenciali<strong>da</strong>de de tal projeto faz <strong>da</strong> área uma <strong>da</strong>sreservas de esperança, a atitude mais responsável e lúci<strong>da</strong>diante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> porque resistente aos tempos sombrios.ReferênciasAHMAD, Aijaz. Linhagens do presente. São Paulo: Boitempo, 2002.BELLEI, Sérgio. Os estudos literários nas malhas <strong>da</strong>s redes. In:TORRES, Sonia. (Org.) Raízes e rumos: perspectivas interdisciplinaresem estudos americanos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.BERNHEIMER, Charles. (ed.) Comparative Literature in the age ofmulticulturalism. Baltimore: Johns Hophins University Press, 1995.BHABHA, Homi K. Statement for the Critical Inquiry BoardSymposium. Critical Inquiry, v.30, n.2, p.345, Winter 2004.BITTENCOURT, Gil<strong>da</strong> Neves et al. (Org.) Geografias literárias e culturais:espaços/ temporali<strong>da</strong>des. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2004.BRUNEL, Pierre; CHEVREL, Yves. Littérature compareé. Paris: PUF,1989.CARVALHAL, Tânia Franco. O próprio e o alheio: ensaios de literaturacompara<strong>da</strong>. São Leopoldo: Editora <strong>da</strong> Unisinos, 2003.COUTINHO, Eduardo. Remapeando a América Latina: para umanova cartografia literária no continente. In: BITTENCOURT, Gil<strong>da</strong>Neves et al. (Org.) Geografias literárias e culturais: espaços/temporali<strong>da</strong>des. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2004.CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução. Rio de Janeiro: Record;Rosa dos Tempos, 1997.DIENG, Gorgi. Universality and topicality in the African novel.In: DIENA, Ibra (Org.) Littérature et culture partagée. Dakar: PressesUniversitaires de Dakar, 2003. p.51-66.DIMIC, Milan V. The proliferation of theories in literaryscholarship:causes and effects (a systemic interpretation). Veneza: UniversitàCá Foscari, Centro produzione multimediale, setembro de 2005.ETIEMBLE, René. Overture(s) ou le comparatisme militant. Paris:Borgeois, 1988.FRANIERE, Sharon La. Another School Barrier for African Girls:No Toilet. New York Times, New York, 23.12.2005.HALL, Stuart. Da diáspora: identi<strong>da</strong>des e mediações culturais. BeloHorizonte: Editora <strong>da</strong> UFMG, 2003.HOLLANDA, Heloísa Buarque. Políticas <strong>da</strong> teoria. In: TORRES,Sonia. (Org.) Raízes e rumos: perspectivas interdisciplinares em estudosamericanos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.KING, Anthony. Urbanism, Colonialism and the World Economy:Cultural and Spatial Foun<strong>da</strong>tions of the World Urban System. NewYork: Routledge, 1990.LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteri<strong>da</strong>de. Trad.Pergentino Pivatto, Evaldo Kuiava, José Nedel, Luiz Pedro Wagnere Marcelo Pelizolli. Petrópolis: Vozes, 2005.NOBLE, David F. Digital Diploma Mills: The Automation of HigherEducation. New York: Monthly Review Press, 2001.PALERMO, Zulma. Desde la otra orilla: pensamento crítico y politicasculturales na América Latina. Córdoba: Alción Editora, 2005.PRATT, Mary Louise. Comparative Literature in the age ofmulticulturalism. In: SACHS, Jeffrey D. The end of poverty: economicpossibilities for our time. New York: Barnes & Noble, 2005.


35Weltliteratur, um conceito transculturalEloá Heise** Universi<strong>da</strong>de de São Paulo(USP).RESUMO: A presente discussão sobre Weltliteratur não se limitaao campo <strong>da</strong> literatura. Esse conceito, que aparece de formarecorrente em conversas, cartas, resenhas e ensaios <strong>da</strong> últimafase de Goethe, adquire relevância no pensamento do grandeclássico alemão ao articular-se como uma idéia que se aproximado conceito de universali<strong>da</strong>de, uma manifestação literária que,em uma acepção utópica, deveria preconizar o advento de umanova etapa <strong>da</strong> literatura. Weltliteratur deveria assumir a tarefade conduzir a um novo ethos universal, algo que se aproximassede uma totali<strong>da</strong>de de caráter moral. Para que se possa rastrear osurgimento dessa idéia no processo conceitual de Goethe, cabe,aqui, não só fazer um levantamento <strong>da</strong> gênese e <strong>da</strong> ocorrência<strong>da</strong> palavra, como também perscrutar as diversas conotações queo termo abrange, bem como relacioná-la a conceitos que nossão contemporâneos.PALAVRAS-CHAVE: Goethe, Weltliteratur, classicismo alemão.ABSTRACT: The present discussion about Weltliteratur is not restrictedto the subject “literature”. This concept, which appearsrecurrently in conversations, letters, reports and essays fromGoethe’s last phase, obtains relevance in the thoughts of thegreat German classic as an idea that comes close to the conceptionof universality, a literary manifestation that should ideallyindicate the upcoming of a new stage of literature. Weltliteraturshould assume the task of leading towards a new universal ethos,something approximating to a morally defined totality. In orderto follow the development of this idea in Goethe’s conception,not only the beginning and the occurrences of this word needsto be analyzed, but also, its various connotations as well as itsrelations to the concepts that are contemporary to us.KEYWORDS: Goethe, Weltliteratur, German classicism.


36 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Weltliteratur, um conceito transcultural 37O conceito de Weltliteratur, cristalizado pelo velhoGoethe, não se limita, como o termo faz supor pela desarticulação<strong>da</strong> palavra – literatura do mundo –, em proporum tema que se restringe ao campo <strong>da</strong> literatura. A discussãodesse conceito por Goethe, na última etapa de suavi<strong>da</strong>, pressupõe, isso sim, uma idéia que se aproxima doconceito de universali<strong>da</strong>de: o advento de uma literaturaque deveria conduzir a um novo ethos universal, algo quese aproximaria de uma totali<strong>da</strong>de de caráter moral.Para que se possa rastrear o surgimento dessa idéia noprocesso conceitual do velho Goethe, cabe, aqui, não sófazer um levantamento <strong>da</strong> gênese e <strong>da</strong> ocorrência <strong>da</strong> palavra,como também perscrutar as diversas conotações queo termo abrange, bem como relacioná-lo a conceitos quenos são contemporâneos.A primeira manifestação de Goethe, na qual é mencionadoo termo Weltliteratur, é de 1827, <strong>da</strong>ta em que Goetheproclama, em uma conversa com Eckermann, ter chegadoa época de uma literatura universal. A partir de então, oconceito aparece, de forma recorrente, em conversas, cartas,resenhas e ensaios <strong>da</strong> última fase do grande clássicoalemão, apontando para a relevância que tal idéia adquireno pensamento do velho Goethe.Gênese <strong>da</strong> palavraDurante muito tempo, Goethe constou como o criadordo termo. Como informa Birus (2004) ao citar Hans-J. Weitz em um ensaio publicado na <strong>revista</strong> Arcádia de 1987,sob o título de “Weltliteratur zuerst bei Wieland” [“Literaturauniversal primeiro em Wieland”], a palavra apareceprimeiro em Wieland, como bem indica o próprio títulodo estudo. O termo teria sido utilizado por Wieland emsua nova versão <strong>da</strong> tradução <strong>da</strong>s cartas de Horácio.Wieland, nesse caso, emprega o termo para referir-se àformação cultural ao tempo de Horácio, um requinte própriodo gosto <strong>da</strong> capital, algo característico <strong>da</strong> urbani<strong>da</strong>de,prenhe de conhecimento do mundo e refletido na literaturaque lhe é equivalente: uma literatura desse grand monde.Portanto, em Wieland, entende-se por mundo – Welt – asmarcas culturais <strong>da</strong> grande polis, e, dentro desse contexto,manifesta-se a literatura do homme du monde do Weltmann.Em contraposição a esse conceito em Wieland, espacialmentedeterminado, Weltliteratur, em Goethe, é um conceitoque abrange to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong>de, algo que vai além<strong>da</strong>s fronteiras nacionais. Não há nenhuma bibliografia subsidiáriaque aponte o conhecimento, por parte de Goethe,do termo empregado por Wieland. Em todo caso, por causado cunho próprio <strong>da</strong>do por Goethe à acepção <strong>da</strong> palavra,pode-se afirmar que Goethe é o criador do conceito.De acordo com o senso comumA primeira tendência que se tem ao empregar o conceitoé no sentido extensivo, na acepção de “literaturageral”. Sob esse aspecto, o termo é empregado indistintamenteem todo o mundo. Esse seria o caso de qualquerpublicação no gênero dos dicionários sobre a literatura domundo. Essas publicações, de abrangência genérica, procuramnomear e caracterizar as várias literaturas do mundoem uma enumeração quantitativa. Nesse mesmo sentido,por exemplo, temos, em bibliografia de língua portuguesa,os vários livros escritos por Otto Maria Carpeaux sobre ahistória <strong>da</strong> literatura universal.A essa expansão quantitativa do termo, pode-se contraporuma acepção qualitativa, na esteira <strong>da</strong>s idéias própriasdo Iluminismo. Numa época em que se preconiza arazão como o bem supremo do indivíduo, a poesia, no sentidode literatura, deve colaborar para enriquecer o conhecimento.Assim, a literatura deveria ser, antes de tudo,Bildungspoesie, uma poesia de formação. Sob essa acepçãoa Weltliteratur adquire o predicado de obra clássica, obrade valor universal que deve transmitir valores universaiscomo o bom, o belo e o ver<strong>da</strong>deiro.Um livro como o de Harold Bloom (1995), O cânoneocidental, pressupõe o conceito Weltliteratur – mesmo não


38 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Weltliteratur, um conceito transcultural 39diretamente mencionado pelo autor – nos dois sentidos:quantitativo, pois enumera 26 escritores, representantesde diversas literaturas do Ocidente, ao mesmo tempo queos aponta como canônicos; em outras palavras, os qualificacomo obrigatórios para a nossa cultura, instituindo-oscomo clássicos.Uma outra acepção do termo, bastante divulga<strong>da</strong>,aparece emprega<strong>da</strong> no âmbito <strong>da</strong> literatura compara<strong>da</strong>.Um exemplo do uso <strong>da</strong> palavra nesse sentido pode ser encontradona nota explicativa inseri<strong>da</strong> por Luiza Lobo(1987, p.32), em Teorias poéticas do romantismo: “Literaturamundial, Weltliteratur, World Literature é o termo propostopor Goethe para o campo do saber que hoje constituia Literatura Compara<strong>da</strong>”. A autora entende, nesse caso,Weltliteratur como sinônimo de literatura compara<strong>da</strong>. Podesedepreender que Lobo não se refere, aqui, ao método decomparar literaturas, um exercício analítico e interpretativo,um ato lógico formal, empregado no confronto deobras que apresentam algum tipo de relação entre si. Antesde tudo, a aproximação dos dois conceitos parece apontarpara o resultado que se obtém a partir <strong>da</strong> análise compara<strong>da</strong>e que faz que as obras se insiram no campo <strong>da</strong> literaturauniversal, ou seja, deixam transparecer o processo dinâmicode trocas interculturais entre as literaturas. Essa idéiade trocas interculturais é a que mais se aproxima do conceitode Weltliteratur, tal como idealizado por Goethe.A mundiali<strong>da</strong>de de Goethe1Título de duas obras <strong>da</strong>literatura <strong>da</strong> Islândia: Cançõesde Ed<strong>da</strong> e a Antiga Ed<strong>da</strong>, umacoleção de canções sobredeuses e heróis dos séculos IXa XIII. Tais obras são fontesimportantes para acompreensão <strong>da</strong> poesia e<strong>da</strong> mitologia germânicas.Goethe, como personali<strong>da</strong>de marcante de sua época,é um exemplo típico do autor aberto para a literatura mundial.A vastidão de seu horizonte literário, fora dos moldestradicionais, abrangia (Birus, 2004) de forma enciclopédica,desde literaturas orientais, passando pela Antigüi<strong>da</strong>declássica, I<strong>da</strong>de Média, as literaturas européias contemporâneas,alcançando até o grego moderno, o sérvio, o lituano,e outras literaturas populares.Em meio a esse largo escopo de interesses, não se podedeixar de mencionar uma de suas ativi<strong>da</strong>des complementares,a de tradutor, que lhe permitia acesso não só às literaturascorrentes <strong>da</strong> Europa: grega, latina, italiana, francesa,espanhola e inglesa, mas também, por um via media<strong>da</strong>,aos textos do Velho Testamento, do Alcorão, passandopela poesia árabe clássica e pela Ed<strong>da</strong>. 1Se, desde jovem, o autor se propunha a estender seusconhecimentos para além <strong>da</strong> literatura alemã, a partir de1820, empenha-se em abrir seu mundo rumo ao Oriente ea conhecer obras importantes <strong>da</strong> literatura chinesa e hindu.A sua produção lírica <strong>da</strong> maturi<strong>da</strong>de (Boerner, 1964), Divãoriental-ocidental (West-östlicher Divan -1819), por exemplo,é uma recepção produtiva de poesia lírica persa e chinesa.Já como autor consagrado, Goethe lia e interessavasepelos jovens talentos de sua época em outros países,como Byron, Walter Scott, Mérimée, Victor Hugo, Manzoni,só para citar alguns dos nomes que aparecem em suasConversações com Eckermann.Fontes inspiradoras do conceitoO famoso encontro com Herder em Estrasburgo, em1770 (Rosenfeld, 1992), que dá ensejo a uma reviravoltana concepção artística de Goethe, abre-lhe um novo horizonteque pode ser resumido em dois conceitos: o de gêniooriginal e o de poesia popular, Volkspoesie. Em sua obraautobiográfica Poesia e ver<strong>da</strong>de (Dichtung und Wahrheit –1811), ao relatar sua experiência com as idéias e tutoriade Herder, Goethe afirma, em relação à poesia popular,que os documentos mais velhos, sob forma de poesia, ofereciamo testemunho de que a criação poética é um domuniversal e de todos os povos e não uma herança privativade alguns poucos homens cultos e refinados. Nessa manifestação,muito anterior à famosa conversa com Eckermannde 1827, o autor já expressa em relação à sua concepçãode poesia popular o pressuposto de universali<strong>da</strong>de que iráservir de base para a idéia de Weltliteratur e, de algumamaneira, ecoa a glorificação feita por Herder <strong>da</strong> poesiapopular e natural na Correspondência sobre Ossian e can-


40 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Weltliteratur, um conceito transcultural 41ções dos povos antigos (Briefwechsel über Ossian und die Liederder alter Völker):O senhor ri do meu entusiasmo pelos selvagens, quase tantoquanto Voltaire de Rousseau, a quem tanto teria agra<strong>da</strong>doo an<strong>da</strong>r de quatro: não pense que por isso eu despreze nossasvantagens morais e de decoro. A espécie humana estádestina<strong>da</strong> a um progresso de cenas, de cultura de costumes:ai do homem a quem desagra<strong>da</strong> a cena em que deverá aparecer,atuar e viver! Mas ai também do filósofo <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>dee dos costumes para quem a sua cena é a única e quedespreza a mais primitiva por considerá-la pior! Uma vezque to<strong>da</strong>s as cenas fazem parte do espetáculo progressivo,em ca<strong>da</strong> uma é demonstrado um lado novo e muito curioso<strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. (Herder in Rosenfeld, 1992, p.34-5)A partir dos conceitos de poesia popular e poesia nacional(Volks– und Nationalpoesie), her<strong>da</strong>dos de Herder e dosromânticos, Goethe abre-se para um conceito mais abrangentee universal de Weltpoesie. Na <strong>revista</strong> Sobre Arte eAntigüi<strong>da</strong>de (Über Kunst und Altertum) (Goethe, 1977),publica<strong>da</strong> desde 1816 a 1832, o autor discute dois temascentrais, que partem <strong>da</strong> mesma base generalizante, mas quenão devem ser entendidos como sinônimos: Weltpoesie eWeltliteratur. A preocupação central é distinguir os dois conceitos,para que não sejam confundidos. Assim, Weltpoesiedeve ser entendi<strong>da</strong>, na esteira <strong>da</strong>s concepções de Herder,como a expressão <strong>da</strong> poesia de todo ser humano, em todosos tempos, de todos os povos; dons oferecidos pela natureza;essa Weltpoesie, por sua vez, manifesta-se, de formamais pura, na poesia popular (Volksdichtung); floresce semque o homem culto faça algo por ela ou em nome dela. Elaexiste simplesmente sem que o povo, por meio de traduçõesou menções de obras de outros povos, a conheça. Já aWeltliteratur, no sentido de Goethe, só vem à vi<strong>da</strong> se engendra<strong>da</strong>pelo homem culto. É uma tarefa que precisa sercumpri<strong>da</strong>, executa<strong>da</strong>. Weltliteratur seria o espaço espiritualno qual os povos, por meio <strong>da</strong> voz de seus poetas, não sevêem apenas a si mesmos, mas falam uns com os outros.Mesmo que a poesia e a literatura universais – Weltpoesiee Weltliteratur – não possam ser confundi<strong>da</strong>s umacom a outra, a Weltpoesie assumiria um papel importantena capaci<strong>da</strong>de comunicativa <strong>da</strong> literatura universal. É exatamentepor meio <strong>da</strong> poesia popular, a expressão <strong>da</strong> peculiari<strong>da</strong>denacional de um povo, que os povos se conhecemuns aos outros e aprendem a se entender mutuamente. AWeltposie é, pois, o objeto mais importante para a transmissão<strong>da</strong> literatura universal, quando não um de seuscomponentes essenciais.Weltliteratur nas Conversações com EckermannO conceito de Weltpoesie é o primeiro passo para afamosa conversa com Eckermann, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 31 de janeirode 1827, uma <strong>da</strong>s primeiras manifestações claras em que oconceito de Weltliteratur é apresentado.Essa conversa insere-se na obra publica<strong>da</strong> em 1848,em três volumes, pelo então secretário de Goethe, JohannPeter Eckermann (1791-1854), que integra, com Riemere Muller, uma equipe de assistentes que irá auxiliá-lo até ofinal de sua vi<strong>da</strong>. Eckermann publica as conversas, em princípiosob o título de Conversações com Goethe nos últimosanos de sua vi<strong>da</strong> (Gespräche mit Goethe in den letzten Jahrenseines Lebens), obra que depois passou a ser conheci<strong>da</strong> econsagra<strong>da</strong> pelo título <strong>da</strong>do pelo editor Brockhaus, e quena recente edição brasileira foi traduzido como Conversaçõesde Goethe com Eckermann (Eckermann, 2004), avalia<strong>da</strong>por um leitor do calibre de Nietzsche como um dosmais significativos textos em prosa de língua alemã.O ensejo que vai despertar em Goethe a manifestaçãoem favor <strong>da</strong> Weltliteratur foi <strong>da</strong>do pelo próprio Eckermannque, ao perceber a dedicação de Goethe à leitura deum romance chinês, faz um comentário ingênuo: “Um romancechinês deve ser uma coisa muito estranha”. A respostado mestre faz que se perceba, na pergunta deEckermann, a característica que Goethe, em sua fala, vaichamar de “ignorância pe<strong>da</strong>nte”, ou seja, a tendência de


42 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Weltliteratur, um conceito transcultural 43certos homens de limitarem seus valores a bens culturaisdo mundo que os cerca, sem levar em conta o “que sepassa em outros países”. Para que sejam levantados os pontosprincipais que caracterizam a Weltliteratur, cabe, aqui,a citação <strong>da</strong> passagemQuarta feira, 31 de janeiro de 1827.[...] Ca<strong>da</strong> vez me parece mais, Goethe continuou, que apoesia é patrimônio comum <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de e que todos oslugares e em todos os tempos se manifesta em centenas depessoas [...] o dom poético não é assim tão raro e não hárazão para nos orgulharmos quando compusermos uma poesiaboa. Nós, os alemães, se não olharmos para fora do nossoapertado ambiente, caímos facilmente nesta ignorância pe<strong>da</strong>nte.É por isso que gosto de me informar do que se passanos outros países e aconselho a todos a que proce<strong>da</strong>m assim.Literatura nacional não quer hoje dizer coisa muitoimportante: chegamos ao momento <strong>da</strong> literatura mundial etodos devemos contribuir para apressar o advento de talépoca. Nesta apreciação <strong>da</strong>s coisas estrangeiras não devemoscair na limitação a uma só coisa e considerá-la como modelodepois. Não devemos circunscrever-nos ao chinês ou aosérvio, a Calderon ou aos Nibelungos: antes, para satisfazermosa nossa necessi<strong>da</strong>de de ter por perto um modelo,recuemos antes até os gregos em cujas obras a beleza humanaestá bem expressa. Todo o restante deve ser consideradosó sob o aspecto histórico e dele tirar-se– somente o quetiver de bom, quando for possível. (Eckermann, 1947, p.161)Nessa contraposição entre literatura nacional e literaturamundial, é importante que se acentue o caráterutópico que adquire a idéia de Weltliteratur, expressa naafirmação de que “chegamos ao momento <strong>da</strong> literaturamundial e todos devemos apressar o advento de tal época”.Para Goethe, literatura mundial é algo que ain<strong>da</strong> não foiconcretizado, um estágio <strong>da</strong> produção literária <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>deque ain<strong>da</strong> estaria por vir. Portanto, essa idéia antecipatóriade alternativa para o futuro mostra a visão desua mente privilegia<strong>da</strong> que, em oposição ao mundo queé, prenuncia um mundo como ele poderia ser.Ao definir claramente Weltliteratur como “patrimôniocomum <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de”, Goethe também oferece pistaspara que esse ideal se torne real: “é preciso informar-se doque acontece em outros países”, sem limitar nosso gostoao “apertado ambiente”, voltando sempre a “olhar parafora”. Em outras palavras, é preciso estabelecer um diálogocom o outro. A idéia de uma literatura mundial surge<strong>da</strong> crença na existência de um constante processo de efeitosrecíprocos entre as literaturas nacionais.Baseado nessa percepção de trocas entre as literaturasé que Todorov (1991) classifica Goethe com o primeiroteórico <strong>da</strong> interação cultural. Portanto, já no início doséculo XIX, Goethe oferece material que pode servir debase e de apoio para os recentes debates sobre estudosculturais, além de, com sua idéia de literatura universal,introduzir um conceito que se a<strong>da</strong>pta à discussão <strong>da</strong> teoria<strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de.To<strong>da</strong> essa percepção de Goethe ao conclamar para anecessi<strong>da</strong>de de abertura rumo a uma Weltliteratur não deixa,contudo, de ter seu lado contraditório. Ao mesmo tempoque valoriza o dom poético como algo que se manifestaem todos os tempos e em todos os povos (Volkspoesie), abrindouma perspectiva de valoração <strong>da</strong> cultura popular, tambémacentua a importância dos clássicos como modelos paraexpressar to<strong>da</strong> a beleza humana. A percepção vanguardistade Goethe coexiste com a de juízo de valor típico <strong>da</strong>queleque procura pela classici<strong>da</strong>de. Aqui se percebe uma <strong>da</strong>sconstantes do pensamento de Goethe: como dois grandesfun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> literatura européia, o autor sugere a Antigüi<strong>da</strong>dee o Oriente, fontes mais puras <strong>da</strong> formação humana.Goethe, na sua percepção <strong>da</strong> literatura universal, abertoa to<strong>da</strong>s as manifestações que ocorrem em outros países eem outros tempos, dá expressão a um dos princípios queregem a humani<strong>da</strong>de, a idéia de modificação. Paralelamente,em seu conselho de que se recorra à Antigüi<strong>da</strong>de comomodelo, busca a uni<strong>da</strong>de, a essência. Assim, essas duas idéias,em princípio opostas, resumem aquilo que agrega a pessoahumana: o perdurável na modificação.


44 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Weltliteratur, um conceito transcultural 45Esse matiz essencial para a conceituação de Weltliteratur,o perdurável na modificação, mostra equivalênciascom o conceito de moderno, discutido por Baudelaire(1988, p.162) no ensaio “O pintor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna”, noqual afirma: “O belo é constituído por um elemento eterno,invariável, cuja quanti<strong>da</strong>de é excessivamente difícilde determinar, e de um elemento relativo, circunstancial,que será, se quisermos, sucessiva e combina<strong>da</strong>mente, aépoca, a mo<strong>da</strong>, a moral, a paixão”. Assim, Baudelaire, emsua concepção dual do belo, ao ver o poeta como “pintordo circunstancial e de tudo o que este sugere de eterno”(ibidem, p.64), ecoa os preceitos de Goethe ao aconselharque “não devemos cair na limitação a uma só coisa” e “parasatisfazermos a nossa necessi<strong>da</strong>de de ter por perto ummodelo, recuemos antes até os gregos em cujas obras abeleza humana está bem expressa”.Discussões do conceitoA busca de Goethe por padrões clássicos e seu interessepor manifestações literárias que lhe eram contemporâneascoexistem no trabalho analítico e especulativoempreendido pelo autor nos vários cadernos de sua <strong>revista</strong>Sobre Arte e Antigüi<strong>da</strong>de (Goethe, 1977). Com ensaiossobre Homero, Eurípides, Shakespeare, Byron, Manzoni,lírica chinesa e poesia popular, Goethe oferece a base aocontexto argumentativo aqui exposto, no sentido de compreenderWeltliteratur não apenas na acepção quantitativa(abrangendo ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s diversas literaturas) ou qualitativa(só as melhores obras), mas também ao enfatizar osefeitos recíprocos entre as literaturas, em outras palavras,um conceito de Weltliteratur que se caracteriza por sua dimensãocomunicativa entre as literaturas do mundo.Sua definição de Weltliteratur será, mais uma vez, claramenteexpressa no discurso proferido por ocasião do“Encontro dos Pesquisadores <strong>da</strong> Natureza em Berlim –1828” (Die Zusammenkunft der Naturforscher in Berlin), noqual se enfatiza a função de intermediação <strong>da</strong> literaturauniversal rumo à compreensão entre os povos:Quando ousamos proclamar uma literatura européia, umaliteratura geral universal, isso não quer dizer que as diferentesnações tomem conhecimento uma <strong>da</strong>s outras e desuas produções, pois neste sentido ela já existe há muitotempo, continua e renova-se mais ou menos. Não, abor<strong>da</strong>se,aqui, o fato de que as literaturas vivas e ambiciosas conheçamumas as outras e, através de tendências e sentidocomum, sintam-se instiga<strong>da</strong>s a repercutir socialmente. Issoé conseguido mais através dos viajantes do que através decorrespondência, pois a presença mais pessoal, por si só,tem êxito em determinar e consoli<strong>da</strong>r a ver<strong>da</strong>deira relaçãoentre os homens. (Goethe, 1977, p.909)A grande ambição a ser alcança<strong>da</strong> pelas literaturasque devem constituir a literatura universal é alcançar repercussãosocial e, pela percepção de tendências e sentidoscomuns, agir como fonte de tolerância e entendimento.Constelação históricaEm uma introdução à tradução alemã feita por ThomasCarlyle sobre a vi<strong>da</strong> de Schiller (1830), Goethe aponta,de forma mais precisa, para a constelação histórica em quese processa a oportuni<strong>da</strong>de de trocas profícuas entre ospovos:Já há algum tempo fala-se de uma literatura geral universal,e não sem razão: to<strong>da</strong>s as nações sacudi<strong>da</strong>s pelas mais terríveisguerras entre si, e depois de ca<strong>da</strong> uma, reconduzi<strong>da</strong>spara si mesma, precisam perceber que conservaram e assumirampara si alguma coisa estrangeira, até agora necessi<strong>da</strong>desespirituais desconheci<strong>da</strong>s, senti<strong>da</strong>s aqui e ali. Disso surgeo sentimento de relações vizinhas e, em vez de se fechar,o espírito chega aos poucos à exigência de ser incluído nomais ou menos livre trânsito espiritual do comércio. É bemver<strong>da</strong>de que esse movimento só dura um curto período, mas,é suficientemente longo, para que já se façam algumas consideraçõesa respeito e que dele, o mais breve possível, comotambém é preciso fazer no comércio de mercadorias, ganhesevantagem e prazer. (Goethe, 1977, p.934-5)


46 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Weltliteratur, um conceito transcultural 47O uso, aqui, de um jargão próprio do âmbito do comércioe de trocas de mercadorias não é mera força de expressão.O caminho que conduz ao conceito de Weltliteraturparte do contexto do comércio mundial (Welthandel). Conformeexplica Hauser (1998), não se pode esquecer de queestamos em uma época em que as ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong> AlemanhaSetentrional perdem sua posição de importância para oscentros comerciais ingleses e holandeses, e o comércio internacional,em rota de abertura, transfere-se do Mediterrâneopara o oceano Atlântico. Goethe mesmo afirma emuma carta para Carlyle, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 8.8.1828, que nessaépoca, marca<strong>da</strong> pela facili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s comunicações, é deesperar que surja uma Weltliteratur. O contato e as trocasentre as culturas tornam-se inevitáveis, uma vez que asnações se aproximam por meio de viagens de navios e asidéias se divulgam por meio de publicações <strong>da</strong>s mais diversas<strong>revista</strong>s.Goethe, nos últimos anos de sua vi<strong>da</strong>, seguiu, comespecial atenção, o surgimento de <strong>revista</strong>s européias e, especialmente,de jornais literários franceses. Para ele, essas<strong>revista</strong>s, à medi<strong>da</strong> que atingem um público ca<strong>da</strong> vez maior,contribuem para o estabelecimento de uma literaturamundial. Portanto, o surgimento de uma Weltliteratur épreconizado como conseqüência do internacionalismo docomércio, <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de do trânsito, <strong>da</strong> técnica, dos meiosde publicação e, especialmente, pelo advento de <strong>revista</strong>s.Prenúncio <strong>da</strong> cultura de massasPensando contemporaneamente, essa concepção deWeltliteratur, vista por uma via eminentemente prática decomunicação com o grande público e <strong>da</strong> qual se deveriaextrair “vantagem e prazer”, pareceria, num primeiro instante,aproximar-se do conceito hodierno de globalização.O próprio Goethe, ciente <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de o conceitode ser percebido como a padronização <strong>da</strong>s diferenças culturaise, como no caso <strong>da</strong> globalização, a partir <strong>da</strong> hegemonia<strong>da</strong> cultura mais rica, menciona em um artigo sobrea Edinburgh Reviews, publica<strong>da</strong> no VI tomo, segundo caderno<strong>da</strong> <strong>revista</strong> Sobre Arte e Antigüi<strong>da</strong>de, 1828:Estas <strong>revista</strong>s, como alcançam aos poucos um público maior,vão contribuir de maneira efetiva para uma espera<strong>da</strong> literaturamundial geral; só que nós repetimos: não se trata dofato de que to<strong>da</strong>s as nações devam pensar de forma coincidente,mas elas devem descobrir uma a outra, compreenderem-se,e caso não se apreciem mutuamente, pelo menosapren<strong>da</strong>m a se tolerar uma a outra. (Goethe, 1977, p.956)Eis aqui a pregação pelo respeito à diferença, a propostade tolerância mútua, típica de um Goethe, representantedo Iluminismo. O que se propõe é, pois, uma conversaentre nações, a participação espiritual de uns comos outros, uma doação recíproca, um receber, um fomentoe uma complementação de ambos os lados.Essa clara visão pragmática <strong>da</strong>s condições históricaspara o advento do conceito de Weltliteratur também é expressano texto do Manifesto do Partido Comunista de Marxe Engels, um exemplo irrefutável de que a discussão engendra<strong>da</strong>por Goethe não perdeu em atuali<strong>da</strong>de:A burguesia moldou de forma cosmopolita a produção e oconsumo através <strong>da</strong> exploração do mercado mundial [...]E, como no material, assim também no espiritual. Os produtosespirituais de ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s nações se transformamem patrimônio comum. As parciali<strong>da</strong>des e restrições nacionaisvão se tornar mais e mais impossíveis e <strong>da</strong>s muitasliteraturas nacionais e locais irá se formar uma literaturauniversal. (apud Birus, 2004, p.13)Mas a crença e a fascinação pela nova era que facilitariaa comunicação e, por isso, induziria à formação deuma literatura universal não é apenas vista por esse prismapositivo, apesar de Goethe não deixar de crer em seusbenefícios. Ciente de que essa generalização poderia conduzira uma cultura média, Goethe atribui aos mais capazesa tarefa de impedir que a Weltliteratur perca a sua funçãode ponte de compreensão entre os povos. Em manifestação<strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 30 de março de 1830, Goethe afirma:


48 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Weltliteratur, um conceito transcultural 49Se uma tal literatura mundial, que se torna inevitável pelasempre crescente veloci<strong>da</strong>de do comércio, se formar brevemente,não devemos esperar mais e na<strong>da</strong> além dela doque aquilo que pode realizar e realiza. O vasto mundo, pormais expandido que ele possa ser, será apenas uma pátriaamplia<strong>da</strong> e não nos <strong>da</strong>rá, posto claramente, mais do que osolo pátrio proporciona; o que diz alguma coisa à multidãovai se espalhar sem fronteiras, com já vemos agora, e serrecomen<strong>da</strong>do em to<strong>da</strong>s as zonas e regiões; [...] aqueles,porém, que se dedicaram ao mais elevado e aquilo que émais frutífero vão se conhecer mais depressa e de maneiramais próxima. Há, em todo lugar do mundo, tais homensque tem relação com a fun<strong>da</strong>ção e, a partir <strong>da</strong>í, com o ver<strong>da</strong>deiroprogresso <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. [...] Os mais sérios precisam,por isso, construir uma igreja silente, quase abafa<strong>da</strong>,uma vez que seria inútil contrapor-se à ampla maré do dia;firmemente, deve-se tentar afirmar sua posição, até que aon<strong>da</strong> tenha passado. (Goethe, 1977, p.914-15)Proclama-se, pois, a importância dos poetas fun<strong>da</strong>dores,os representantes qualitativos <strong>da</strong> Weltliteratur, que sededicam ao mais elevado e ao mais frutífero e que devemtomar posição para propiciar o advento <strong>da</strong> literatura universal.Goethe acaba, paralelamente, enfatizando as tendênciasuniversalizantes que deveriam nortear suas configuraçãodo mundo.Em suas conversas com Eckermann, em princípio demarço de 1832, portanto poucos dias antes de sua morte,o mestre deixa uma espécie de testamento político-poético,onde reafirma a sua crença no bom, no belo e no ver<strong>da</strong>deirocomo única pátria <strong>da</strong> poesia: uma poesia livre,atemporal e espacialmente indetermina<strong>da</strong>:Quando um poeta quer exercer ação política, tem de sefiliar num partido, e logo que o faz, está perdido como poeta.Tem de dizer adeus à liber<strong>da</strong>de do espírito, à imparciali<strong>da</strong>dede visão e, em vez delas enterrará na cabeça até asorelhas o capuz <strong>da</strong> intolerância e do ódio cego. O poetaamará como homem e ci<strong>da</strong>dão a pátria, mas a pátria <strong>da</strong> suavirili<strong>da</strong>de poética e <strong>da</strong> sua ação poética é o Bom, o Nobre eo Belo, coisas que não estão limita<strong>da</strong>s a uma certa naçãoou uma certa província, mas que ele colhe e forma ondequer que as encontre. (Eckermann, 1947, p.318-19)O jogo dialético entre o nacional e o universalEssa ênfase naquilo que é eternamente válido e extemporâneonão significa, porém, um abandono do local pelouniversal, do individual pelo geral; ao contrário, em umarelação dialética, é a partir do local que se chega ao universal;resgatando o peculiar é que se alcança o geral. Adiscussão goethiana de uni<strong>da</strong>de na plurali<strong>da</strong>de, de totali<strong>da</strong>dena fragmentação (Rosenfeld, 1993) também está nabase de sua idéia de literatura universal. Nos comentáriossobre o German Romance, publicados na <strong>revista</strong> Sobre Artee Atingüi<strong>da</strong>de, volume VI, segundo caderno, 1828, Goetheafirma:É preciso conhecer as peculiari<strong>da</strong>des de ca<strong>da</strong> uma (dessasnações), para que elas as guardem para si, e, exatamenteatravés disso, ter a possibili<strong>da</strong>de de trânsito entre elas: poisas particulari<strong>da</strong>des de uma nação são como sua língua e assuas moe<strong>da</strong>s, elas facilitam o trânsito, sim, elas é que o tornamtotalmente possível. Uma total e ver<strong>da</strong>deira tolerânciaé alcança<strong>da</strong> de forma mais segura quando se deixa opeculiar de ca<strong>da</strong> um dos homens e dos povos e, com essapercepção, conclui-se, entretanto, que, com isso, o maisver<strong>da</strong>deiramente meritório se torna notável e este pertencea to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong>de. (Goethe, 1977, p.932)Ao contrário do que possa parecer a uma primeira vista,entender uma manifestação literária como Weltliteraturnão significa abrir mão de sua especifici<strong>da</strong>de como literaturanacional; significa, antes de tudo, um mergulho nonacional até que se encontre o que há nele de universal.Uma obra <strong>da</strong> literatura universal precisaria, portanto, teruma peculiari<strong>da</strong>de própria. Só assim <strong>da</strong>ria expressão, deforma representativa, ao caráter desse povo. Esse caráterpróprio, por sua vez, apresenta-se como uma manifestaçãoespecial <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de como um todo.


50 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Weltliteratur, um conceito transcultural 51Por meio desse enfoque, percebe-se, de maneira maisclara, a relação que se estabelece entre Weltpoesie e Weltliteratur.É exatamente o elemento peculiar de ca<strong>da</strong> uma<strong>da</strong>s literaturas que colabora para que ela integre o âmbito<strong>da</strong> Weltpoesie e assuma um papel importante na capaci<strong>da</strong>decomunicativa <strong>da</strong> literatura universal.De acordo com esse conceito de Goethe, pode-se entendercomo Grande sertão: vere<strong>da</strong>s, de Guimarães Rosa,alcançou repercussão internacional (Heise, 2000). Esseromance que, durante muito tempo, foi analisado apenascomo um nítido representante <strong>da</strong> literatura regionalistabrasileira, é hoje, reconheci<strong>da</strong>mente, considerado umamanifestação do modernismo mundial. Essa é, por exemplo,a opinião de David Jackson (1996, p.6), <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>dede Yale, em uma ent<strong>revista</strong> sobre a recepção de Rosanos Estados Unidos:A impressão que tenho é que ele junta várias <strong>da</strong>s principaise melhores tendências do modernismo em geral. Eletem todo um lado de experimentação lingüística que nósobservamos em Joyce e Pound – aquele gosto não só pelapalavra, pela etimologia, pela complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> própria formaverbal [...] Ele junta a isso, porém algo que em Joycenão encontramos, que é o lado folclórico, primitivista <strong>da</strong>svanguar<strong>da</strong>s [...] E isso entra realmente por meio do elementotelúrico, <strong>da</strong> terra, <strong>da</strong> região dele, <strong>da</strong>s práticas lingüísticasregionais. Guimarães une estas duas grandes tendênciasmodernistas de uma maneira genial e pessoal.Esse romance de Rosa faz do autor um mestre <strong>da</strong>moderni<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> classici<strong>da</strong>de, pela abor<strong>da</strong>gem de umavisão global <strong>da</strong> existência, na qual se fundem a natureza, obem e o mal, o divino e o demoníaco, o uno e o múltiplo.Refletindo no sentido inverso e convergente no quetange ao conceito de Weltliteratur, Rosa, em um extensodepoimento sobre literatura, concedido a Günter Lorenz,aponta o espelhamento do universal no nacional ao afirmarque existe entre si e Goethe uma interlocução humanística,pois, segundo Rosa, Goethe “era um sertanejo” quenão escrevia para o dia, mas para o infinito.O conceito Weltliteratur não se concretiza, pois, apenasna direção de buscar no nacional o que há de universal,mas também no sentido inverso: em meio ao universal,resgatar o que existe de nacional. Identificar-se com umacultura estrangeira é reconhecer nela o que há de universalmentehumano, como reflexo de algo peculiar a sua própriasua cultura.Só ao se articular nesse espaço de mão dupla é que aliteratura universal poderia preencher sua determinação:fazer que os povos se conheçam uns aos outros em suas peculiari<strong>da</strong>des,sem que sejam apaga<strong>da</strong>s ou descaracteriza<strong>da</strong>sas diferenças. Assim irão exercer uma complementaçãomútua e contribuir para a formação geral uns dos outros,por meio de uma doação recíproca. O elemento vital <strong>da</strong>Weltliteratur encontra-se nas transformações pelas quais ca<strong>da</strong>literatura nacional passa em tempos de trocas universais.Conversa entre as naçõesEstabelecer contato com outras nações por meio <strong>da</strong>presença, de viagens, como Goethe mencionara em seudiscurso por ocasião do “Encontro dos Pesquisadores <strong>da</strong>Natureza”, não seria, porém, a única possibili<strong>da</strong>de de engendraruma conversa entre as culturas. A mediação entreculturas e o reconhecimento mútuo também podem serrealizado por meio de traduções:Os alemães já contribuem há muito tempo para uma talmediação e reconhecimento recíproco. Quem compreendee estu<strong>da</strong> a língua alemã encontra-se no mercado, ondeto<strong>da</strong>s as nações oferecem suas mercadorias e ele atua comointérprete, na medi<strong>da</strong> em que se enriquece. Assim é quedeve ser visto todo tradutor, aquele que se esforça comomediador desse comércio geral e espiritual e que faz negócioao fomentar a troca mútua. Apesar de tudo aquilo quese possa dizer <strong>da</strong> insuficiência <strong>da</strong> tradução, ela é e permanece,sim, um dos mais importantes e dignos negócios notrânsito geral do mundo (Weltverkehr). O alcorão diz: “Deusdeu a ca<strong>da</strong> povo um profeta em sua própria língua”. Assim


52 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Weltliteratur, um conceito transcultural 53todo tradutor é um profeta ao seu povo. (Goethe, 1977,p.932-3)A tradução, apresenta<strong>da</strong> como uma forma prática deestabelecer o trânsito de idéias numa época profícua nocampo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de tradutória, é um sinal manifesto de umperíodo de tendências cosmopolitas. Mas o papel <strong>da</strong> traduçãonão se resume apenas a divulgar, por meio <strong>da</strong> transcriçãopara a cultura de chega<strong>da</strong>, uma obra significativa <strong>da</strong>cultura de saí<strong>da</strong>. Nesse diálogo que se estabelece entre osdois mundos, assume importância vital o mecanismo <strong>da</strong>recepção Em sua introdução para A vi<strong>da</strong> de Schiller (LebenSchillers) de Thomas Carlyle, 1830, Goethe afirma:A obra escrita em memória de Schiller pode, traduzi<strong>da</strong>, trazerpouca coisa nova para nós: o autor tirou seus conhecimentosde escritos que já são há muito conhecidos por nós[...]. Mas o que deve ser altamente satisfatório para reverenciarSchiller e ca<strong>da</strong> um dos alemães, como se pode dizerousa<strong>da</strong>mente, é compreender de forma imediata como umhomem sensível, aplicado e sagaz pode, em seus melhoresanos, do outro lado do mar, ser tocado, comovido e provocadopelas produções de Schiller e assim ser estimulado aoutros estudos <strong>da</strong> literatura alemã. (Goethe, 1977, p.935)O efeito principal do estudo de uma cultura estrangeirareside, portanto, no fato de se descobrir nela algumacoisa que nos diz respeito e está relaciona<strong>da</strong> conosco: “compreendercomo um homem sensível pode [...] ser tocado,comovido e provocado pelas produções de Schiller”. Abrirsepara uma outra cultura estrangeira, é, nesse nexo, nãose entregar, mas, em última instância, receber. Falando emoutros termos: a vivência e a convivência com uma culturaestrangeira tornam-me mais cônscio de minha própriaidenti<strong>da</strong>de ao mesmo tempo que serve de força motriz paraessa minha identi<strong>da</strong>de, colocando-a em movimento. Citandoa conclusão de Todorov (1991, p.16): “As coisas nãosão universais, mas os conceitos podem ser; a gente nãodeve simplesmente confundir os dois, assim o caminho <strong>da</strong>significação compartilha<strong>da</strong> pode permanecer aberto”. Emoutras palavras, o universal interage com o nacional, tornao nacional mais atuante, fazendo, por sua vez, que onacional se abra rumo ao universal.Socie<strong>da</strong>de como um todoEm oposição ao ódio nacional e ao nacionalismo exacerbadoque passou a vigorar em sua época por causa <strong>da</strong>ocupação napoleônica, Goethe sonhava com o ideal de umacultura cosmopolita, basea<strong>da</strong> em uma nova ética, que sóencontra sentido na cultura <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de como um todo.Em consonância com essa visão cosmopolita e de compreensãomútua é quase lógico que se desenvolva uma idéiasupranacional e social de arte: a Weltliteratur. Note-se, contudo,que esse conceito de Goethe não surge desvinculadode seu tempo e do espírito de sua época, de seu Zeitgeist.Como afirma o próprio autor em conversa com Eckermann(1947, p.306-7) <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 1º de abril de 1831:[...] ninguém em arte, se faz por si próprio. Como se o homemdevesse a si próprio outra coisa que não fosse a estupidez!Mesmo se o artista não teve mestre célebre, pelomenos se beneficiou do contato com mestres excelentes decujos ensinamentos [...] formou sua personali<strong>da</strong>de artística.A idéia de uma literatura universal está subjacente nacosmovisão, na Weltanschauung, do Iluminismo. Conformeexplica Rosenfeld (1992), o individualismo que se manifestana Ilustração baseia-se na primazia <strong>da</strong> razão, substratocomum a todos os homens. Por mais que os indivíduos sejamdiferentes entre si por causa de suas culturas, de seuslugares de origem, eles permanecem essencialmente iguaispor serem todos dotados de razão, o fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> digni<strong>da</strong>dehumana. A partir desses pressupostos é fácil entendero diálogo europeu que se estabelece entre as naçõesciviliza<strong>da</strong>s do continente a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade doséculo XVIII (Hauser, 1998). A literatura de expoentes doIluminismo como Voltaire, Diderot, Locke, Rousseau ouLessing é a expressão de uma comuni<strong>da</strong>de européia, a con-


54 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Weltliteratur, um conceito transcultural 55sonância dialógica de várias vozes, portanto, Weltliteraturno sentido mais estrito <strong>da</strong> palavra.Goethe, na busca por uma troca espiritual, quase queprevê o espaço intercultural que poderia se constituir naEuropa. Hoje, dentro do conceito de Mercado ComumEuropeu (Borchmeyer, 2004) já temos, no âmbito econômico,praticamente a abolição <strong>da</strong>s fronteiras e dos limitesentre as nações. A moe<strong>da</strong> comum, o euro, poderia ser encara<strong>da</strong>como um primeiro passo para uma uni<strong>da</strong>de políticae espiritual nessa procura utópica pela soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>deuniversal.Em sua conversa com Eckermann de 14 de março de1830, Goethe faz menção de um estado ideal <strong>da</strong> cultura,sem ódios, em que os homens estivessem além <strong>da</strong>s fronteirase sentissem as dores e as desgraças <strong>da</strong>s nações vizinhas,como se fossem a suas próprias.Um exemplo palpável dessa comuni<strong>da</strong>de basea<strong>da</strong> nasoli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de universal é delineado pelo autor no últimomonólogo do Fausto, no Faust II (Su<strong>da</strong>u, 1993), quandotodos os homens reunidos pretendem construir um dique.Este é o último recado que Goethe deixa ao mundo poucotempo antes de sua morte:Do pé <strong>da</strong> serra forma um brejo o marco,To<strong>da</strong> a área conquista<strong>da</strong> infecta;Drenar o apodrecido charco,Seria isso a obra máxima, <strong>completa</strong>.Espaço abro a milhões – lá a massa humana viva,Se não segura, ao menos livre e ativa.Fértil o campo verde; homens rebanhos,Povoando, prósperos, os sítios ganhos,Sob a colina que os sombreia e ampara,Que a multidão ativa-intrépi<strong>da</strong> amontoara.Paradisíaco agro, ao centro e ao pé:Lá fora brame, então, até à beira a maré.E, se para invadi-la à força, lambe a terra,Comum esforço acode e a brecha aberta cerra.Sim! <strong>da</strong> razão isto é a suprema luz,A esse sentido, enfim me entrego, ardente:À liber<strong>da</strong>de e à vi<strong>da</strong> só faz jus,Quem tem que conquistá-las diariamente.E assim, passam em luta e em destemor,Criança, adulto e ancião seus anos de labor.Quisera eu ver tal povoamento novo,Em solo livre ver-me em meio a um livre povo.Sim, ao Momento então diria:Oh! Pára enfim – és tão formoso! (Goethe, 1991, p.435-6)A idéia utópica e quase paradisíaca de que os homensjuntos, em um “esforço comum”, poderiam conquistar um“solo livre” para se tornarem “um livre povo”, quase merecede Fausto, no fim de sua vi<strong>da</strong>, a manifestação de plenitude,ao pedir que o tempo pare (“Oh! Pára enfim – éstão formoso!”). Com isso ele teria pronunciado as palavrascentrais <strong>da</strong> aposta com Mefisto e, assim, entregue suaalma ao diabo. Mas a idéia de satisfação plena ain<strong>da</strong> éexpressa sob forma de desejo: “Quisera eu ver tal povoamentonovo, / Em solo livre ver-me em meio a um livrepovo. / Sim, ao Momento então diria”. A formulação <strong>da</strong>utopia é, porém, expressa de maneira hipotética (que seatente para as formas verbais quisera e diria). No fim doFausto, apesar de to<strong>da</strong> a procura, as condições que poderiamdesven<strong>da</strong>r a essência e <strong>da</strong>r sentido à vi<strong>da</strong>, precisam ser“conquista<strong>da</strong>s diariamente”. Reafirma-se, aqui, a supremasabedoria reserva<strong>da</strong> ao âmbito terrestre: criação é açãoe a vi<strong>da</strong> é uma ação contínua.A soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de universal, que se busca, expressa sobforma de utopia, poderia ser resumi<strong>da</strong> na carta XXIV de Aeducação estética do homem, de Schiller (1990). Segundoesse outro representante do classicismo alemão, o homemsó se torna humano, no sentido de representar a espécie,quando, indo além do estado estético, alcança o estadomoral. É com essa etapa do estado evolutivo do homemque Goethe sonha ao preconizar uma Weltliteratur.Weltliteratur não equivaleria, portanto, ao que se percebehoje como globalização, quando estamos sujeitos àsregras do mercado; nossas especifici<strong>da</strong>des são nivela<strong>da</strong>spara se pautarem pela força motriz do desempenho e do


56 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Weltliteratur, um conceito transcultural 57ganho. O novo ethos universal, pressuposto no conceitode Goethe, corresponderia, antes, a uma idéia de universalização,o reconhecimento de uma cultura plural que preconizaa união e o contato entre povos no sentido de trocarecíproca de bens culturais que, em última instância, levariama um melhor conhecimento de ca<strong>da</strong> um desses povos.Um novo conhecimento do outro leva a um novoconhecimento de mim mesmo, potenciando esse movimentorumo ao infinito. Nesse sentido, a universali<strong>da</strong>de, a utopia,esboça-se não como fato consumado, mas sob formade projeto. Weltliteratur articula-se, pois, como um projetoem eterno devir. Volta-se à concepção emblemática expressano Fausto que resume a única ver<strong>da</strong>de destina<strong>da</strong> aohomem em seu mundo <strong>da</strong> imanência: a criação é ação e avi<strong>da</strong> é uma ação contínua.ReferênciasBAUDELAIRE, Charles. O pintor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moderna. In: BAUDE-LAIRE, Charles; TEIXEIRA, Coelho. A moderni<strong>da</strong>de de Baudelaire.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.BIRUS, Hendrik. Goethes Idee der Weltliteratur. Eine historischeVergegenwärtigung (19.1.2004). In: Goethezeitportal. URL. (Disponívelem: . Acesso em 4.10.2004).BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Trad. Marcos Santarrita. Riode Janeiro: Objetiva, 1995.BOERNER, Peter. Johann Wolfgang von Goethe in Selbstzeugnissenund Bilddokumenten. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1964.BORCHMEYER, Dieter. Welthandel – Weltfrömmigkeit – Weltliteratur.Goethes Alters Futurismus (24.4.2004). In: Goethezeitportal.URL. (Disponível em: . Acesso em 4.10.2004).ECKERMANN, Johann Peter. Conversações de Goethe comEckermann. Trad. Luís Silveira. Porto: Livraria Tavares Miran<strong>da</strong>, 1947.. Conversações com Goethe. Belo Horizonte: Itatiaia, 2004.(Grande Obras <strong>da</strong> Cultura Universal, v.25)GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Trad. Jenny Klabin Segall.Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Villa Rica Editoras, 1991.GOETHE, Johann Wolfgang von. Sämtliche Werke. Band 14.Schriften zur Literatur. München: Artemis; Verlags-AG, 1977.HAUSER, Arnold. História social <strong>da</strong> arte e <strong>da</strong> literatura. Trad. ÁlvaroCabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998.HEISE, Eloá. Goethe, um teórico <strong>da</strong> transnacionali<strong>da</strong>de. RevistaBrasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, Rio de Janeiro, n.2, p.77-84,2000.JACKSON, David. Ent<strong>revista</strong>. Folha de S.Paulo, São Paulo, 30 dejunho de 1996, Jornal de Resenhas, p.6.LOBO, Luíza. Teorias poéticas do romantismo. Rio de Janeiro: Editora<strong>da</strong> UFRJ, 1987. (Série Novas perspectivas, 20)ROSENFELD, Anatol. Autores pré-românticos alemães. São Paulo:EPU, 1992.. Uni<strong>da</strong>de e mutiplici<strong>da</strong>de. In: . Texto e contexto II. SãoPaulo: Edusp, 1993. p.259-66.SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. Trad. RobertoSchwarz e Marcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1990.SUDAU, Ralf. Johann W. Goethe. Faust I und Faust II. München:Oldenbourg Verlag, 1993.TODOROV, Tzvetan. The Morals of History. Minneapolis: Universityof Minnesota Press, 1991.


59Literatura, crítica e saber na esferamulticulturalistaPaulo César Silva de Oliveira*RESUMO: Este trabalho investiga as questões críticas contemporâneasque procuram compreender a literatura como um campode saber privilegiado acerca do mundo e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Paratanto, estu<strong>da</strong>, no percurso crítico do comparatismo contemporâneo,em seu diálogo com a esfera multiculturalista, alguns elementosde interlocução entre texto literário e socie<strong>da</strong>de, textocrítico e criação artística, em uma relação que chamamos de“texto crítico do mundo”, quando confronta<strong>da</strong> a uma outra relação,denomina<strong>da</strong> por nós “mundo crítico do texto”.PALAVRAS-CHAVE: Crítica. literatura. saberes, multiculturalismo.ABSTRACT: This article aims at investigating contemporary criticalissues concerning the understanding of literature as a privilegedsource of knowledge in the world and society. Therefore,following the critical paths of contemporary comparatism in itsmulticultural sphere, it addresses some conversational elementsbetween literary text and society, criticism and artistic creation,in a relationship here named the “critical text of the world” asopposed to another hence called the “critical world of the text”.KEYWORDS: Criticism, literature, knowledge, multiculturalism.Introdução* Universi<strong>da</strong>de Iguaçu(UNIG).Se um dia a invasão multiculturalista batesse em retira<strong>da</strong>,tornar-se-ia um problema para os historiadores desuas idéias. Essa apropriação de Derri<strong>da</strong> nos parece bastanteapropria<strong>da</strong> para começo de discussão. Se o crescenterelevo <strong>da</strong>do ao assunto nos impele à reflexão de seusmecanismos e conseqüências, o fato de estarmos, ao mesmotempo, vivenciando o fenômeno ao criticá-lo, nos colocadiante de certos impasses. O primeiro deles diz respeito


60 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Literatura, crítica e saber na esfera multiculturalista 61à transitorie<strong>da</strong>de dos argumentos, já que não temos poucodistanciamento histórico para vali<strong>da</strong>r certas posições. Osegundo, a afluência ininterrupta de novas vozes e controvérsiasestimula a diversi<strong>da</strong>de de orientações teóricas,o que estabelece no debate crítico, muitas vezes, certa instabili<strong>da</strong>de,a qual nos remete quase sempre ao caráter provisóriodos postulados multiculturais.Assim sendo, queremos, por meio desta investigação,reavaliar algumas questões centrais <strong>da</strong> literatura compara<strong>da</strong>contemporânea por intermédio de um certo númerode textos críticos, e com eles pensar a atual situação <strong>da</strong>literatura, <strong>da</strong> crítica e teoria literária em geral, e as relaçõesentre leitura, cânone literário, cultura, escrita e história.A idéia central a nos guiar articula-se na produçãorecente dos teóricos multiculturalistas e visa compreendercomo conceitos de nação, narração, história, literatura,crítica, dentre outros, requerem uma nova concepçãode cultura, cujos objetivos, ao final, são: avaliar novosparâmetros do pensamento literário contemporâneo pormeio, especialmente, <strong>da</strong> crítica aos cânones estabelecidos,e estu<strong>da</strong>r os efeitos do pensamento hegemônico no debatecrítico e sua contraparti<strong>da</strong>.Uma aproximação ao temaSe pudéssemos eleger um texto-chave, catalisador dodebate que hoje se trava entre multiculturalistas e cultores<strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de do literário, esse seria O cânone ocidental,de Harold Bloom (1995). Esse livro sacudiu o meioacadêmico no momento em que os chamados estudos culturaisse encontravam no auge de suas formulações. Curiosamente,a reação de Bloom sucede exatamente ao pronunciamentode Charles Bernheimer (em 1995), submetido àAssociação Americana de Literatura Compara<strong>da</strong>, no qualo autor vai mostrar como o impacto <strong>da</strong>s novas idéias acerca<strong>da</strong> noção de literatura e cânone deman<strong>da</strong> um novoquestionamento sobre o papel do intelectual e do lugar <strong>da</strong>Academia na contemporanei<strong>da</strong>de.1“Alunos de literaturacompara<strong>da</strong>, com seuconhecimento de línguasestrangeiras, treinamentoem traduções culturais,excelência no diálogo entredisciplinas e com sofisticaçãoteórica estão em posiçãoprivilegia<strong>da</strong> no que diz respeitoao largo alcance dos estudosliterários contemporâneos.Nosso relatório encaminhaalgumas diretrizes sobre omodo como os currículospodem ser estruturados a fimde expandir as perspectivasdos alunos e estimulá-losa pensar em termosculturalmente pluralistas.”Bernheimer, em texto extremamente equilibrado (1995),mas sem demitir a polêmica, acabou por provocar uma sériede “respostas” (prós e contra) que viriam a formar umvolume dedicado à questão <strong>da</strong> literatura e do comparatismo.Seu relatório, porém, apenas diagnosticava as preocupaçõesque ron<strong>da</strong>vam os estudos acadêmicos – identi<strong>da</strong>delingüística e identi<strong>da</strong>de nacional; o problema <strong>da</strong> tradução;o crescimento dos programas interdisciplinares; a oposiçãoestudo diacrônico versus estudo sincrônico etc. –, propondouma renovação dos estudos literários, especialmente paraa pós-graduação. Nessa “recontextualização” de perspectivas,Bernheimer é incisivo quanto ao alargamento do campodo comparatismo. Especialmente, concor<strong>da</strong> com a idéiade que o fenômeno literário não é mais foco exclusivo <strong>da</strong>literatura compara<strong>da</strong>. A literatura pode e deve ser li<strong>da</strong> juntoa outras manifestações artísticas e teóricas – música, teatro,cinema, artes plásticas, filosofia, história etc. – já quese trata, em todos os casos, de fenômenos discursivos.Bernheimer destaca a importância do conhecimentode línguas estrangeiras, mas questiona o eurocentrismo queconcentra os objetos de estudo em três ou quatro línguaseuropéias. Por esse motivo, procura minimizar antigas hostili<strong>da</strong>desquanto à tradução, propondo, finalmente, umareavaliação crítica do comparatismo, a qual deverá, necessariamente,passar pela leitura não-canônica de textoscanônicos.Concluiremos esse pequeno sumário <strong>da</strong>s idéias conti<strong>da</strong>sno “Bernheimer Report” com as palavras do autor, afim de que possamos seguir adiante com nosso excursocrítico:Students of comparative literature, with their knowledge of foreignlanguages, training in cultural translations, expertise in dialogueacross disciplines, and theoretical sophistication, are wellpositioned to take advantage of the broadened scope of contemporaryliterary studies. Our report puts forward some guidingideas about the way curricula can be structured in order toexpand students perspectives and stimulate them to think inculturally pluralistic terms. 1 (Bernheimer, 1995, p.47)


62 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Literatura, crítica e saber na esfera multiculturalista 63Cânones e anticânonesAo contrário <strong>da</strong>s análises de Bernheimer, o texto deBloom está menos comprometido com as questões especificamenteacadêmicas e mais preocupado com o avanço einfluência de certas “forças progressistas” que, segundo ele,confundem a grande literatura com programas de salvaçãoe justiça social. Bloom (1995) propõe uma cruza<strong>da</strong> emfavor do estético, mas esquece que a Estética como disciplinaé filosofia <strong>da</strong> arte em forma enrijeci<strong>da</strong>, na qual as potenciali<strong>da</strong>desdo pensamento são reduzi<strong>da</strong>s a pré-conceitos.Derri<strong>da</strong> (1995) já advertira para o perigo que acaboupor dominar a crítica literária, o de vê-la transforma<strong>da</strong> emfilosofia <strong>da</strong> literatura, cujo efeito imediato foi a criação deum império conceitual que emperrou, mais do que auxiliou,a compreensão do fenômeno literário. Quanto a isso,Derri<strong>da</strong> (1995, p.14) dirá: “Para apreender mais de perto aoperação <strong>da</strong> imaginação criadora, é preciso, portanto,virarmo-nos para o invisível interior <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de poética”.Os críticos, tal como os filósofos, aproximam-se <strong>da</strong> obra “armadosde um par de conceitos e de uma grade especulativa”(ibidem, p.83), introduzindo um corpo estranho em um campoque necessita “desarmar-se” <strong>da</strong> linguagem metafísica. Aresistência a esse modo de pensar o literário é o próprio ato<strong>da</strong> desconstrução, diz Derri<strong>da</strong> (1995, p.49).O texto de Bloom demonstra, em parte e em consonânciacom o que Derri<strong>da</strong> apontou, essa vontade de compreensãodo texto literário – os capítulos intermediáriosem que analisa a grande literatura canônica nos dão provadisso – mas, em contraparti<strong>da</strong>, cede em demasia à tentaçãodo debate sensacionalista, o qual ameaça reduzir seuspressupostos a uma mera volta aos conceitos de centro ehegemonia. Nesse caminho, o primeiro passo de Bloom(1995, p.31) é defender o pressuposto de que “o que sechama de valor estético emana <strong>da</strong> luta de classes” preconiza<strong>da</strong>pelos teóricos multiculturalistas. Dessa forma, vaiconcluir que “ler a serviço de qualquer ideologia é [...]não ler de modo algum” (ibidem, p.36).2Ver, especialmente, aprimeira seção.Bloom acredita escapar <strong>da</strong> ideologia pela via do estético,como se ca<strong>da</strong> categoria que representa a crítica estéticanão estivesse, de algum modo ou de outro, comprometi<strong>da</strong>com um vocabulário metafísico-ideológico impregnado devalores. Ao crer que sua crítica “estética” escapa ao ideológico,incorre nas próprias limitações que combate: é umideólogo, mais comprometido com a reação aos novos postuladoscríticos do que com a reflexão sobre a primazia estéticado literário, o que põe em xeque o caráter históricodo próprio texto.Sob outros aspectos, é preciso reconhecer que Ocânone ocidental tem o mérito de denunciar o crescentedesprestígio <strong>da</strong> leitura atenta e dos valores estéticos constitutivos<strong>da</strong>s obras literárias em favor de “bons ideais” –os quais, convenhamos, não enriquecem (realmente) aboa literatura e a oportuna crítica literária. O problema éBloom conceber a diferença somente atrela<strong>da</strong> a um centro,o que é uma noção em tudo oposta à lógica <strong>da</strong> diferença– teoria de fun<strong>da</strong>mental importância para osmulticulturalistas – compreendi<strong>da</strong> por Derri<strong>da</strong> (apud Santiago,1975, p.81) por meio do conceito de suplementari<strong>da</strong>de:“abertura interpretativa, colocando-se comoprimordial importância [...] o jogo relacional dos elementos”que podem suprir o centro. É o que Gianni Vattimo(1988), no excepcional As aventuras <strong>da</strong> diferença, 2 vai chamarde jogo: o elemento que caracteriza a vi<strong>da</strong> autônoma,ao mesmo tempo conjuntural e exposto ao acaso.Como se vê, o debate proposto por Bloom, longe de esgotaro assunto, muitas vezes o reduz, simplifica e apaga comofenômeno.Enquanto as preocupações de Bernheimer traduzema perplexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Academia ante os novos reclames, acrítica prescritiva de Bloom rejeita o que chama de “marxismo”disfarçado em teoria literária para colocar-se dolado <strong>da</strong> “ver<strong>da</strong>de” do literário – que é correlata, segundoele, à face estética de todo texto artístico. Sem perder devista essas duas visões, tracemos um breve panorama dealguns dos principais textos e teóricos multiculturalistas.


64 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Literatura, crítica e saber na esfera multiculturalista 65É certo que um dos marcos <strong>da</strong> nova crítica multiculturalistaé o livro de Edward Said (1995), Orientalism, de1978. Já um clássico contemporâneo, o texto propõe investigarde que modo o que hoje se pensa e escreve acercado Oriente é, em ver<strong>da</strong>de, fruto de uma representaçãoeuropéia dessas culturas, muito mais impulsiona<strong>da</strong> pormotivos políticos e socioeconômicos do que por um esforçode compreensão <strong>da</strong> natureza e cultura desses povos. OOriente, diz Said (1995, p.1), não é apenas adjacente àEuropa; é, também, a própria imagem que o ocidental temdo “outro”. Por extensão, o Oriente ajudou a própriaEuropa a definir-se (assim como ao próprio Ocidente) pormeio <strong>da</strong>s imagens, idéias, personali<strong>da</strong>de e experiênciacontrastantes:Yet none of this is merely imaginative. The Orient is an integralpart of the European material civilization and culture.Orientalism expresses and represents that part culturally andeven ideologically as a mode of discourse with supporting institutions,vocabulary, scholarship, imagery, doctrines, even colonialbureaucracies and colonial styles. 3 (ibidem, p.2)O livro de Said nos apresenta uma mescla bastanteequilibra<strong>da</strong> de rigor do pensamento e atuação política, semesquecer o texto literário, fonte primária de sua reflexão.Por isso, pode-se, sem dúvi<strong>da</strong>, considerar as seguintes palavrasdo autor como um ponto marcante dos atuais debatescríticos:And indeed, one of the most interesting developments in postcolonialstudies was a re-reading of the canonical cultural works,not to demote or somehow dish dirt on them, but to re-investigatesome of their assumptions, going beyond the stiffling holdon them of some version of the master-slave binary dialect. 4(ibidem, p.350-1)3“Na<strong>da</strong> disso, no entanto,é meramente imaginativo.O Oriente é uma parteintegral <strong>da</strong> civilizaçãomaterial e cultural européia.O orientalismo expressa erepresenta aquela regiãoculturalmente, e mesmoideologicamente, como ummodo do discurso, cominstituições de apoio,vocabulário, bolsas de estudo,criação de imaginário,doutrinas e mesmo burocraciascoloniais, estilos coloniais.”4“E, de fato, um dosmais interessantesdesenvolvimentos nosestudos pós-coloniais foi areleitura dos trabalhosculturais canônicos, não parademover ou mesmo atirá-losna lama, mas para reinvestigaralguns de seus pressupostos,indo além <strong>da</strong> merasubordinação a eles, quaseuma versão <strong>da</strong> dialéticasenhor-escravo.”5“enre<strong>da</strong>do pela raça, pelahistória e pela ciência era livree moral.”Se percebermos os ecos <strong>da</strong>s palavras de Said no própriotexto de Bernheimer, com o qual abrimos nosso debate(Bernheimer defende uma exaustiva releitura <strong>da</strong>s obrascanônicas), saberemos que os efeitos do fragmento supracitadoain<strong>da</strong> se fazem sentir. Além disso, o impulso <strong>da</strong>dopelo Orientalism aos chamados Post-Colonial Studies é inegável.Said elege o século XVIII como o ponto de parti<strong>da</strong>para o terceiro significado que confere ao tema do orientalismo:uma instituição corporativa visando tratar doOriente. O clássico texto de Renan (1996), também analisadopor Said, mostra de forma admirável o concerto <strong>da</strong>sidéias que, a partir do crescimento do interesse sobre aproblemática <strong>da</strong> nação, ajudou a construir o olhar ocidentalsobre a diferença. Nesse documento, entre outras teses,Renan defende o conceito de nação fun<strong>da</strong><strong>da</strong> pela vontadepolítica. O fun<strong>da</strong>mento dessa vontade é retirado dopassado. As nações são, portanto, uma invenção, e, comotal, não são eternas, diz Renan. Nesse começo sem finsprevisíveis, só as vicissitudes históricas poderão, no futuro,confirmar o destino <strong>da</strong> noção de nação.Said vê as teses de Renan como condições impostaspelo intelectual sobre o homem. Renan, intelectual europeu,partilha, obviamente, de determina<strong>da</strong> visão de mundona qual o homem “enchained by race, history, and sciencewas free and moral” 5 (Said, 1995, p.147). O próprio Renan,diz Said, sabia-se criatura de seu tempo, atravessado pelacultura etnocêntrica de sua época.O estudo do trabalho de Renan, What is a Nation?,indica que a problemática <strong>da</strong> nação é uma noção complexa,o que explica o atual interesse pelo tema, exatamenteno momento em que se discutem as fronteiras do conceitona nova geografia mundial. Em um excelente momento, otexto de Ed Ahearn e Arnold Weinstein resume bem aatual posição dos estudos comparativos e/ou culturais:[...] we are saying that the geopolitical activities, conflicts anddilemmas of our time require a citizenry that has learned somethingabout the history, aspirations, and complex reality of otherpeoples, and that the study of literature and other arts is a privilegedentry into these matters. However, unlike English or thenational language departments or even cultural studies programs,comparative literature is inherently pluralist, aware of but not


66 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Literatura, crítica e saber na esfera multiculturalista 67defined by Difference in all its powerful forms: language, religion,race, class, and gender. 6 (apud Bernheimer, 1995, p.147)Nesse pequeno exemplo estão contidos os principaistemas dos estudos culturais. Dentre eles, gostaríamos deabor<strong>da</strong>r, no momento, os estudos de Homi Bhabha, já clássicosnos meios acadêmicos. Sob vários aspectos, o trabalhode Bhabha pontua algumas preocupações de Said,embora divi<strong>da</strong> a atenção aos fatos históricos com um conjuntode conceitos filosóficos inspirados fortemente porMartin Heidegger e Jacques Derri<strong>da</strong>. Para entendermosalgumas <strong>da</strong>s posições de Bhabha (1993a, p.4-5), comentemosesta pequena passagem em The Location of Culture:The wider significance of the postmodern condition lies in theawareness that the epistemological “limits” of those ethnocentricideas are also the enunciative boun<strong>da</strong>ries of a range of otherdissonant, even dissident histories and voices – women, the colonized,minority groups, the bearer of policied sexualities. 7Por isso, a questão <strong>da</strong>s fronteiras tem que ser discuti<strong>da</strong>,primeiramente, em bases filosóficas; não é um novo horizontenem esquecimento do passado, já que começo e fimfazem parte de uma sistematização metafísica tradutorados binarismos que colocaram de lado o papel <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de,do “eu-com-o-outro”, relegando as diferenças a mero papelcoadjuvante. O mundo moderno, acentua Bhabha, vaise definir em termos de raça, gênero, locações institucionaise orientação sexual, tudo isso conjugado à nova posiçãodo sujeito no mundo, ou, melhor dizendo, a uma novareorientação <strong>da</strong> noção de sujeito e suas posições dentro deuma cultura híbri<strong>da</strong> que caracteriza nossa época. São essesos novos “signos <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de”, espaços <strong>da</strong> inovação econtestação cujos fragmentos definem uma concepção desocie<strong>da</strong>de.A idéia de fragmento pontua o texto de vários teóricos,como Partha Chatterjee (1994), para quem pensar anação significa percorrer o sistema discursivo tradicional,criticar suas bases e redefinir os novos questionamentos.6“[...] estamos dizendo que asativi<strong>da</strong>des geopolíticas, osconflitos e os dilemas de nossaépoca requerem uma ação deci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia que tenha aprendidoalgo sobre a história, aspiraçõese as complexas reali<strong>da</strong>des deoutros povos, e que o estudo <strong>da</strong>literatura e de outras artes éuma chave privilegia<strong>da</strong> para seabor<strong>da</strong>r esses assunto.Entretanto, ao contrário dosdepartamentos de inglês ou delínguas nacionais, ou mesmodos programas de estudosculturais, a literaturacompara<strong>da</strong> é inerentementepluralista, ciente, porém nãodefini<strong>da</strong> pela Diferença em suasformas mais poderosas: língua,religião, raça, classe e gênero.”7“A mais ampla significação<strong>da</strong> condição pós-modernareside na consciência de queos ‘limites’ epistemológicos<strong>da</strong>quelas idéias etnocêntricassão também os limitesenunciativos de uma gamade outras histórias e vozesdissonantes ou até mesmodissidentes – mulheres, oscolonizados, as minorias,os que sofrem com opoliciamento de suasexuali<strong>da</strong>de.”8“negociarmos os poderes<strong>da</strong> diferença cultural emuma gama de lugarestrans-históricos.”9“de alguma forma, fora decontrole.”10“transformar nossapercepção do que significaviver, para nos colocarmosem outras épocas e diferentesespaços, ambos humanose históricos.”Tomando a Índia como exemplo, Chatterjee analisará aemergência do estado colonial ligado a um regime depoder moderno. Mas pensar o estado colonial tambémsignifica interrogar a diferença colonial em termos de discursodominante. A legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> dominação britânicaergueu-se na criação <strong>da</strong> figura do “governo pessoal”,ou seja, na criação de um governo onipresente, ligado aum chefe ou líder, já que os indianos não compreenderiam,supostamente, um “governo impessoal” (Chaterjee,1994, p.16).Chatterjee, como Bhabha, centraliza suas in<strong>da</strong>gaçõesna análise do discurso. O discurso filtrado pelo colonizadorfaz parte de duas estratégias, já aponta<strong>da</strong>s por Foucault:olhar e narrar. Esse duplo movimento, para Bhabha, é opróprio cerne <strong>da</strong> condição pós-colonial. Assim, negociaçãoé a palavra-chave, para Bhabha (1993a, p.9), pela qualdeveremos “negociate the powers of cultural difference in arange of transhistorical sites”. 8 A categoria unhomely aparececomo definidora <strong>da</strong>s condições de questionamento dohomem pós-colonial. Articulado a esse conceito está omovimento do dentro-fora, que a escola <strong>da</strong> desconstruçãocunhou como possibili<strong>da</strong>de de se interrogar a diferença aomesmo tempo dentro e fora do sistema que se pretendedesconstruir. Essa posição marca uma atitude de guerrilhafilosófica que visa desconstruir de forma sistêmica o conjuntode valores metafísicos. Uma vez cientes <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong>dede se destruir a linguagem metafísica, precisamosencontrar os pontos de não-conformi<strong>da</strong>de que mostremos limites e as margens deste pensamento para expô-los àcontradição. Essa “responsabili<strong>da</strong>de” do crítico consisteem revelar como a ação histórica se transforma no processode significação, representado no discurso, que é“somehow beyond control” 9 (Bhabha, 1993a, p.12). Nãobasta criticar as narrativas correntes, mas sim “transformour sense of what it means to live, to be in other times anddifferent spaces, both human and historical” 10 (ibidem, p.256).Em outro trabalho, Bhabha (1993b, p.305) reafirma seuprojeto de releitura crítica:


68 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Literatura, crítica e saber na esfera multiculturalista 69This supplementary space of cultural signification that opensup – and holds together – the performative and the pe<strong>da</strong>gogicalprovides structural characteristics of modern political rationality:the marginal integration of individuals in a repetitious movementbetween the antinomies of law and order. 11A diferença cultural será reconheci<strong>da</strong>, desse modo,quando forem anulados os efeitos de um discurso culturaltotalizante. É na morte do grand récit que se ergue o projeto<strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de, conforme Bhabha (1993b, p.312): “Culturaldifference must not be understood as the free play ofpolarities and pluralities in the homogeneous empty time of thecommunity”; 12 ao contrário, a diferença cultural é “a formof juxtaposition or contradiction that resists the teleology ofdialectical sublation”. 13 Como vimos, na análise <strong>da</strong> obra deSaid, não se pode perder de vista que a arquitetura dodiscurso colonial e do olhar sobre o Oriente são construçõescujo caráter ideológico e político forma o conceito <strong>da</strong>diferença sob o ponto de vista do europeu. Quando expomoso conjunto de contradições no qual o discurso dominante<strong>da</strong> diferença cultural se sustentou, aportamos nasfronteiras desses próprios discursos, explicitamos suas limitaçõese, na relativização de suas margens, esboçamosuma outra reflexão, que inclui a alteri<strong>da</strong>de, a diferença jádespi<strong>da</strong> <strong>da</strong> lógica binária metafísica.Se, porém, por um lado, essas teorias pretendem falarsobre o outro <strong>da</strong> história, o esquecido que deve sertrazido ao presente como forma de resgate de um passadoadormecido, por outro, teremos que interrogar, necessariamente,o papel do intelectual nesse projeto. Se sua funçãoé buscar o inaudito, o ain<strong>da</strong> não-colocado como questão,é preciso, em primeiro lugar, discutir a autori<strong>da</strong>dedesse mesmo intelectual; perguntar acerca desse pretensoman<strong>da</strong>to do qual ele se vale para falar pelo outro. E o quedizer do intelectual que fala como o outro? Tal gesto envolveriadistanciamento e neutrali<strong>da</strong>de? Ou, dito de outraforma: será possível esse distanciamento e será essedistanciamento a marca de autentici<strong>da</strong>de do falar pelo/como o outro?11“Este espaço suplementar <strong>da</strong>significação cultural que abre– e atrela – o performativoe o pe<strong>da</strong>gógico nos forneceas estruturas características<strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de políticamoderna: a integraçãomarginal de indivíduos em ummovimento repetitivo entre asantinomias <strong>da</strong> lei e <strong>da</strong> ordem.”12“A diferença cultural nãodeve ser entendi<strong>da</strong> como ojogo livre <strong>da</strong>s polari<strong>da</strong>des eplurali<strong>da</strong>des no homogêneotempo vazio <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de.”13“uma forma de justaposiçãoou contradição que resiste àteologia <strong>da</strong> dedução dialética.”14As principais idéias deSpivak em relação ao problema<strong>da</strong> auto-representação cultural,do multiculturalismo e sobre opapel do crítico pós-colonialencontram-se em ent<strong>revista</strong>sedita<strong>da</strong>s por Sarah Harasym(1990), de onde retiramos amaior parte de nossasconsiderações. Um dos pontosque gostaríamos de abor<strong>da</strong>rnesta nota, mas que não estádiretamente ligado a nossosinteresses diretos nestetrabalho, é a crítica de Spivaka Foucault. Spivak diz que –sem desmerecer a importânciade Foucault, a quem admira –há um impulso de se falar pelasmassas, descrevê-las, salvá-las,e é contra essa tentação queSpivak quer lutar. É preciso,diz, representar e analisar ooprimido, sem, contudo,mistificar o fato de que é ointelectual e não o oprimidoquem está falando e que estafala, embora comprometi<strong>da</strong>com as marcas, os rastrosdo outro, é simplesmenteo resíduo do outro que ficano discurso <strong>da</strong>quele queo enuncia. Para maioresinformações, ver Harasym(1990).15“O outro nunca está foraou além de nós; ele emergeforçosamente, dentro dodiscurso cultural, quandopensamos mais intimamentee originariamente ‘entrenós mesmos’.”Gayatri Spivak defende alguns pontos de vista em tornodessa questão. Em primeiro lugar, dirá, o crítico precisatornar-se representativo e isso requer uma autocrítica constantede seu papel como porta-voz de um certo discursoalheio. Em segundo lugar, o intelectual deve evitar a tendênciade falar tal como aquele que julga representar. Umterceiro ponto seria o de que o crítico pós-colonial devecompreender seu papel na socie<strong>da</strong>de (no caso de Spivak,intelectual, mulher, feminista, marxista) e isso requer mobili<strong>da</strong>de,e sua atuação será sempre politicamente contamina<strong>da</strong>e diaspórica. O terceiro ponto é crucial, pois propõea figura <strong>da</strong> negociação em espaços não-consensuaisou semiconsensuais como saí<strong>da</strong> para a ação crítica. Finalmente,Spivak critica o cromatismo, isto é, a teoria de quesó se pode falar pelo negro sendo negro, pela mulher sendomulher etc. A fala do critico diaspórico é, por definição,desloca<strong>da</strong>, homóloga à própria definição <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de. 14Para melhor ilustrar esse ponto, recorramos outra vez aBhabha (1993b, p.4): “The other is never outside or beyondus; it emerges forcefully, within cultural discourse, when wethink we speak most intimately and indigenously ‘betweenourselves”. 15Antes de passarmos a questões mais específicas dotexto literário, gostaríamos de comentar um conceito presentenas discussões de Said, Bhabha e Spivak, e que dizrespeito ao hibridismo cultural. As interrogações dessesautores, embora estejam na pauta do dia, não são novas.Em uma socie<strong>da</strong>de ca<strong>da</strong> vez mais mediatiza<strong>da</strong> pelos aparelhosde comunicação, pela invasão diária <strong>da</strong> indústriado espetáculo, qual seria o papel do crítico, do escritor esua escrita ficcional? Como estão sendo refletidos pela ficçãoa problemática <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de e o conceito de sujeito,a problemática <strong>da</strong> violência, do espetáculo, <strong>da</strong> hibridizaçãocultural nesse espaço multifacetado em que forçasantagônicas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de contemporânea interagem?Estendendo a discussão ao campo <strong>da</strong> literatura, perguntamos:de que forma se pode compreender a questãodos cânones literários em um mundo ca<strong>da</strong> vez mais ávido


70 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Literatura, crítica e saber na esfera multiculturalista 71por espetáculos, menos letra<strong>da</strong>, mais cosmopolita e híbri<strong>da</strong>?Segundo Canclini (1995a, p.204), o multiculturalismosurgiu “<strong>da</strong>s formas modernas de segmentação e organização<strong>da</strong> cultura em socie<strong>da</strong>des industrializa<strong>da</strong>s”. Paralela aessa questão, diz Canclini, a noção de modernização tambémteve que incorporar segmentos que não coadunamcom a lógica <strong>da</strong> homogeneização, posto que a diferençasurge como marca dos países periféricos, tais como os <strong>da</strong>América Latina. Nessa categoria, diz, estariam os trintamilhões de indígenas espalhados pelo continente latinoamericano.Se a questão <strong>da</strong> diferença se torna, assim, fun<strong>da</strong>mental,a não menos importante questão do hibridismocultural se faz, mais que presente, fun<strong>da</strong>mental. Pois mesmohoje não carrega a América Latina, como marca, ascontradições de uma moderni<strong>da</strong>de que não atingiu igualitariamenteo conjunto dos povos que abriga? Não se mostrasua organização social de forma ca<strong>da</strong> vez mais segmenta<strong>da</strong>?Transportando a interrogação para o domínio <strong>da</strong> arte,a questão deve migrar do âmbito estético para um locusmais abrangente, como explica Canclini (1995b, p.6):What is art is not only an aesthetic question: we have to takeinto account how it responds at the intersection of what is doneby journalism and critics, historians and museum writers, artdealers, collectors and speculators. In similar fashion, the popularis not defined by an a priori essence but by stable, diversestrategies with which the subaltern sectors themselves constructtheir positions and also by the way the folklorist and the anthropologiststage popular culture for the museum or the academy,the sociologists and the politicians for the political parties, thecommunication specialists for the media. 16Pensar a arte é, portanto, o mesmo que questionarum conjunto de pressupostos que mol<strong>da</strong>ram o gosto, emitiramcritérios de valor e ain<strong>da</strong> hoje subordinam o objetoartístico a conteúdos estéticos representativos de uma elitecultural hegemônica. As teorias que interrogam a diferença,os conceitos de hegemonia, valor, classe, grupo, etnici<strong>da</strong>de,dentre outros, privilegiam não mais o grand récit,16“O que é a arte não émeramente uma questãoestética: temos que levar emconsideração como a arteresponde na interseção doque é feito pelo jornalismo epela crítica, por historiadorese museólogos, negociadoresde arte, colecionadores eespeculadores. Da mesmaforma, o popular não édefinido por uma essênciaa priori mas por estratégiasduradouras, diversas, com asquais os setores subalternosconstroem para siposicionamentos e tambémpelo modo como o folcloristae o antropólogo organizam acultura para o museu ou paraa academia; os sociólogose os políticos a encenam paraos partidos; e os especialistas<strong>da</strong> comunicação o fazem paraa mídia.”mas os discursos de grupos ca<strong>da</strong> vez mais segmentados. Ese os mass media são a expressão dominante desses grupos,a teoria deve compreender o fenômeno, analisá-lo e criticálo.Nesse sentido, o pioneiro Mitologias, de Roland Barthes,é uma referência essencial.Por meio desse pequeno livro, escrito entre 1954 e1956, Barthes pretende analisar alguns mitos presentes navi<strong>da</strong> e cultura francesas. Do catch ao bife com batatas,passando pela fotografia, pelo teatro, pelo cinema dentrevários outros tópicos, na<strong>da</strong> escapa à percepção do crítico,que conclui seu ensaio com uma dura constatação: “Pareceque estamos condenados, durante certo tempo, a falarexcessivamente do real”, mas propõe que haja “uma reconciliaçãoentre o real e os homens, a descrição e a explicação,o objeto e o saber” (Barthes, 1993, p.178). A dificul<strong>da</strong>de<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de dita de massas estaria, segundoBarthes, oscilando entre dois métodos que consistiram emideologizar ou poetizar o real. Na perspectiva mais contemporâneade Canclini, devemos, na ver<strong>da</strong>de, negociarcom as instâncias ideológicas e desconstruir seus mecanismosa fim de que possamos criar estratégias de entra<strong>da</strong> esaí<strong>da</strong> para que os impasses e contradições <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>desejam postos em prática, discutidos, reavaliados e recolocadossob a forma de novas interrogações.Barthes fala de um tempo em que se começa a desconstruirde forma contundente a História maiúscula e seusconceitos de ver<strong>da</strong>de. A Nova História, a História <strong>da</strong>sMentali<strong>da</strong>des, bem como outras correntes, mostraram queo real é um constructo no qual certos discursos dominamem detrimento de outros. A inclusão de novos discursospermitiu que se problematizasse, entre outras coisas, a autori<strong>da</strong>dedo historiador, bem como o conceito de autoria.Em What is an author? Foucault (1984) vai dizer que nãomais ouviremos perguntas acerca de quem fala na obra,sua autentici<strong>da</strong>de, identi<strong>da</strong>de ou originali<strong>da</strong>de. A famosaquestão <strong>da</strong> morte do autor ganhará, com o pensador francês,novas abor<strong>da</strong>gens: “What are the modes of existence ofthis discourse? Where has it been used, how can it circulate,


72 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Literatura, crítica e saber na esfera multiculturalista 7317“Quais são os modos deexistência desse discurso?Onde ele é usado, como podecircular, e quem dele seapropria em benefício próprio?Quais são os lugares nodiscurso em que há espaçopara sujeitos possíveis? Quempode assumir essas váriasfunções de sujeito?”18“O ‘além’ não é, nemum novo horizonte, nemo abandono do passado.”19“velar sobre uma coisa,compreendê-la.”and who can appropriate it for himself? What are the places init where there is room for possible subjects? Who can assumethese various subject functions?” 17 (ibidem, p.120).A autori<strong>da</strong>de sobre o discurso se desloca de um centroirradiador para os possíveis e vários sujeitos proferidospelo próprio discurso. Assim, que diferença faz quem é oautor? A interrogação de Foucault sublinha a crise de umaidéia de autentici<strong>da</strong>de conferi<strong>da</strong> ao sujeito, antes vistocomo eixo centralizador <strong>da</strong>s especulações e produçõesdiscursivas.Homi Bhabha defende a idéia de que só se compreendeo papel do sujeito e sua fala pelo lugar que esse ocupa,e não o oposto. Inspirado claramente pela Escola <strong>da</strong>Desconstrução, Bhabha (1993a, p.1) vê o conceito de fronteira(border) como característica do presente, já que éentrecruzamento, horizonte, além, presença: “The ‘beyond’is neither a new horizon, nor a leaving behind of the past”. 18Bhabha fala ain<strong>da</strong> do presente como um tempo sem começosou fins visíveis, como um “momento de trânsito”,em que espaço e tempo se cruzam e produzem figuras complexasde diferença e identi<strong>da</strong>de. Bhabha (1993a, p.240-1) propõe ain<strong>da</strong> estabelecer um “signo do presente”, noqual a moderni<strong>da</strong>de se caracterizaria pela “ética <strong>da</strong>autoconstrução” em nome <strong>da</strong> autonomia cívica e do remodelamentodos conceitos.Neste momento, gostaríamos de lembrar MartinHeidegger (1990, p.22) que, em 1962, com um textointitulado Langue de tradition et langue technique, procuraresgatar o sentido originário <strong>da</strong> palavra technique, que derivado grego technikon e significa “veiller sur une chose, lacomprendre”. 19 Acreditamos que é justamente quando nosvoltamos a uma reflexão sobre a hegemonia do presente e<strong>da</strong> técnica que percebemos o algo que se perde, não somenteno sentido do tempo que se perde, mas <strong>da</strong>quilo quese fechou como manifestação, como fenômeno. Talvez oolhar insistente, ostensivo e excessivo para o presente estejasufocando a reflexão sobre o originário, ou mesmopassando por sobre as marcas deixa<strong>da</strong>s como rastro no tempo.Essa parece ser a natureza <strong>da</strong> reflexão heideggerianaao retomar o sentido primeiro <strong>da</strong> palavra techné.Faz-se urgente a negociação entre instâncias do presentee do passado, e é certo que teremos ain<strong>da</strong> que aprendercomo funcionam os mecanismos de entra<strong>da</strong> e saí<strong>da</strong><strong>da</strong>s questões trazi<strong>da</strong>s ao presente pela moderni<strong>da</strong>de, comopropõe Canclini, já que a ambivalência moderna pressupõemaleabili<strong>da</strong>de e diferenças.Pensar como a escrita ficcional se comporta em relaçãoa essa problemática – na perspectiva levanta<strong>da</strong> porBernheimer –, a de se efetuar leituras não-canônicas detextos canônicos – é o mesmo que reaproximar o texto dosentido primeiro do technikon. Entre outros aspectos, devemoscompreender como a quebra <strong>da</strong> confiança em uma subjetivi<strong>da</strong>decentralizadora e onipotente moldou novas relações,atitudes e encaminhamentos, tornando a reflexãoficcional em um mundo cultural ca<strong>da</strong> vez mais híbrido olugar essencial <strong>da</strong> desconstrução dos grand récits dominantes.Os estudos contemporâneos, nos mostra claramenteLin<strong>da</strong> Hutcheon (1991), não podem viver mais de totalizações,mas sim do questionamento dos limites, alcancese poderes dos discursos hegemônicos. Hutcheon entendeque definir nossa época com base na análise crítica do textoliterário requer de nós uma perspectiva pluralista, quese estabelece como visão poética no momento em que compreendemosos principais dilemas a nós colocados pelacontemporanei<strong>da</strong>de, dilemas esses inter-relacionados aosdesafios oriundos de políticas globaliza<strong>da</strong>s e hegemônicas.Para tanto, Hutcheon (1991, p.289) conclui pela reflexãoem torno de algumas questões fun<strong>da</strong>mentais para se reconduziro debate em torno <strong>da</strong> literatura, especialmente naficção contemporânea: “o conhecimento histórico, a subjetivi<strong>da</strong>de,a narrativi<strong>da</strong>de, a referência, a textuali<strong>da</strong>de eo contexto discursivo”.ConclusãoVivemos em uma época de revisões: revisão <strong>da</strong> história,<strong>da</strong> crítica literária; dos cânones que formataram a cul-


74 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Literatura, crítica e saber na esfera multiculturalista 75tura ocidental hegemônica, ou dita oficial; do papel <strong>da</strong>sminorias; dos conceitos de sexo, raça, gênero etc. Movimentosca<strong>da</strong> vez mais representativos como o feminismo,o movimento homossexual, dos negros, <strong>da</strong>s minorias políticas,dentre tantos outros que, dia-a-dia, pululam em nossasocie<strong>da</strong>de, forçaram a inclusão de novas vozes e discursosna historiografia oficial, em constante distensão <strong>da</strong>s margensde questionamento e <strong>da</strong>s construções de mundo. Vivemosem um tempo de perplexi<strong>da</strong>des, em que procuramosain<strong>da</strong> redefinir nosso papel ante os novos mecanismosde saber. É tempo de se repensar a literatura e a crítica, dese questionar a vali<strong>da</strong>de e/ou pertinência <strong>da</strong>quilo que chamamos,oficialmente, o cânone. Nossa preocupação, nesteensaio, foi a de pensar a literatura, a teoria literária contemporâneae a literatura compara<strong>da</strong> investigando de quevaria<strong>da</strong>s maneiras formou-se uma idéia hegemônica debelo, de ver<strong>da</strong>de e supremacia de certos escritos ditos elevadosem detrimento de outros.Questionar o lugar de onde se fala, o lugar <strong>da</strong> fala,significa, portanto, compreender, em primeiro lugar, quemé esse sujeito que fala, e, mais adiante: que construções demundo o atravessam; quais conceitos formam sua idéia decultura; como sua visão do mundo e <strong>da</strong> cultura refletemum pensamento político, de classe, de gênero etc.; e, enfim,quais estratégias devem ser traça<strong>da</strong>s para que possamospromover a discussão crítica desses postulados, osquais, expostos à radicalização <strong>da</strong> diferença, possam apontarpara a possibili<strong>da</strong>de de um texto crítico do mundo,opositivo, contundente e reconstrutor.Em um mundo ca<strong>da</strong> vez mais híbrido, há urgência emse negociar com as várias instâncias estéticas, políticas eideológicas, a fim de que repensemos fronteiras, redefinindo,dessa forma, o papel do saber, do conhecimentoem um novo récit, não mais marcado e definido por totalizaçõese processos hegemônicos.ReferênciasBARTHES, Roland. Mitologias. 9.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1993.BERNHEIMER, Charles. (Ed.) Comparative Literature in the Age ofMulticulturalism. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1995.BHABHA, Homi. The Location of Culture. London: Routledge,1993a.. Nation and Narration. London: Routledge, 1993b.BLOOM, Harold. O cânone ocidental. 2.ed. Rio de Janeiro: Objetiva,1995.CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e ci<strong>da</strong>dãos: conflitos culturais<strong>da</strong> globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995a.. Hybrid Cultures: Strategies for Entering and Leaving Modernity.Minneapolis: University of Minnesota, 1995b.CHATTERJEE, Partha. The Nation and its Fragments: Colonial andPostcolonial Histories. Princeton: Princeton University Press, 1994.DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 2.ed. São Paulo: Perspectiva,1995.FOUCAULT, Michel. What is an author? In: RABINOW, Paul.(Ed.) Foucault. Reader. New York: Pantheon Books, 1984.HARASYM, Sarah. (Ed.) The Post-Colonial Critic: Interviews, Strategies,Dialogue. New York: Routledge, 1990.HEIDEGGER, Martin. Langue de tradition et langue technique. Paris:Lebeer-Hossmann, 1990.HUTCHEON, Lin<strong>da</strong>. Poética do pós-modernismo: história, teoria,ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.RENAN, Ernest. What is a nation? Toronto: Tapir Press, 1996.SAID, Edward. Orientalism. New York: Vintage Books, 1995.SANTIAGO, Silviano. Desconstrução e descentramento. TempoBrasileiro, Rio de Janeiro, n.41, 1975.VATTIMO, Gianni. As aventuras <strong>da</strong> diferença. Lisboa: Edições 70,1988.


77Nação: civilização e barbárieJosalba Fabiana dos Santos** Universi<strong>da</strong>de Federal deSergipe (UFS).RESUMO: Há uma relação intrínseca na moderna história européiaentre nação e civilização. São palavras intercambiáveis: umasó existiria com a outra. O Brasil, cunhado como Estado independentea partir de 1822, passa a viver o conflito <strong>da</strong> exuberâncianatural, por um lado, e a necessi<strong>da</strong>de ou desejo de se civilizar,por outro. Este trabalho pretende discutir a duali<strong>da</strong>de entrecivilização e barbárie em Cornélio Penna, sobretudo no seu últimoromance, A menina morta (1954), ambientado no séculoXIX. Essa oposição também é vivi<strong>da</strong> por Sarmiento, escritorargentino que publicou Facundo (1845), um misto de autobiografia,estudo sociológico e ficção, mas de forma muito diversa.Enquanto este tem como ideal ver a Argentina alça<strong>da</strong> à categoriade nação civiliza<strong>da</strong> dentro de conceitos europeus, CornélioPenna, vivendo outro momento histórico, desconfia do desenvolvimentismodos anos 1950 e se volta para a segun<strong>da</strong> metadedo século XIX numa tentativa de desnu<strong>da</strong>r a violência arraiga<strong>da</strong>no patriarcalismo-escravocrata.PALAVRAS-CHAVE: Cornélio Penna, A menina morta, civilização,barbárie, nação.ABSTRACT: There is an intrinsic relationship between nationand civilisation in modern European history. They are interchangeablewords: one could not exist without the other. Brazil,coined as an independent State since 1822, then began tolive a conflict between natural exuberance and the need or desireto become civilised. This paper seeks to discuss the dualitybetween civilisation and barbarism in Cornélio Penna, especiallyin his last novel, A menina morta (1954), set in the 19 th century.Such an opposition is also lived by the Argentinean writerSarmiento, yet in a profoundly different way. Sarmiento, whopublished Facundo (1845), a mixture of autobiography, sociologicalstudy and fiction, has an ideal of seeing Argentina raised


78 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 79to the category of a civilised nation according to European concepts.Living a different historical moment, Cornélio Penna, onthe contrary, is suspicious of the development of the 1950’s andfocuses on the second half of the 19 th century, in an attempt touncover the violence rooted in the patriarchal slave system.KEYWORDS: Cornélio Penna, A menina morta, civilisation, barbarism,nation.IntroduçãoO continente americano em geral e o Brasil em particulartêm vivido a duali<strong>da</strong>de de um certo discurso europeu<strong>da</strong> civilização como ideal a ser alcançado, e <strong>da</strong> barbárie,como condição passa<strong>da</strong> e presente. Esse discurso, segundoRoberto Ventura (1991, p.24), desdobra-se em outros: umque afirma a alegria <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> junto à natureza – o indivíduoafastado <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de corruptora, o bom selvagem rousseauniano– e outro que exalta as vantagens <strong>da</strong> civilização.A nação deveria se constituir na ambigüi<strong>da</strong>de entre aidenti<strong>da</strong>de com a Europa e a diferença <strong>da</strong>s particulari<strong>da</strong>deslocais (ibidem, p.43), na fronteira de concepções muitodiferencia<strong>da</strong>s.A civilização “inventa” a barbárie como paixão exacerba<strong>da</strong>,violência, rustici<strong>da</strong>de, ausência de recursos científicose tecnológicos, religião ou seitas primitivas, falta deprincípios morais e de organização de qualquer espécie. Obárbaro é o outro. O suposto civilizado não admite que abarbárie esteja no olhar distorcido que ele lança sobre aquiloque desconhece.Há um relacionamento intrínseco entre nação e civilização.Não se concebe uma sem a outra desde o iluminismofrancês (Abreu, 1998, p.27). Para Norbert Elias (1994,p.24), civilização implica um certo nível tecnológico e científico,a maneira como funciona o sistema judiciário, oscostumes e o controle <strong>da</strong>s paixões (Elias, 1993, p.54). Tantono que diz respeito a costumes, segundo o mesmo autor,quanto a controle <strong>da</strong>s paixões, a corte francesa se colocoue foi coloca<strong>da</strong> como modelo de refinamento. Quando oAncien Régime foi derrubado pela burguesia, ocorreu umaamplificação dos hábitos cortesãos. Aquilo que era restritoa uma determina<strong>da</strong> classe social foi incorporado comonacional (Elias, 1994, p.64). A França e outras nações européiaspassaram a se sentir no direito de impor seus ideaisde civilização.Na batalha pelos espaços vazios <strong>da</strong> África – o continentenegro –, a França e a Grã-Bretanha, assim como a Alemanhae a Bélgica, recorrem não apenas à força, como tambéma uma porção de teorias e retóricas para justificar apilhagem. O mais famoso desses artifícios talvez seja o conceitofrancês de mission civilisatrice, a missão civilizadoraque tem por pressuposto a idéia de que algumas raças eculturas têm um objetivo mais elevado na vi<strong>da</strong> do que outras;isso dá ao mais poderoso, mais desenvolvido, mais civilizadoo direito de colonizar os outros, não em nome <strong>da</strong>força bruta ou <strong>da</strong> pura pilhagem – ambas componentesusuais do exercício –, mas em nome de um ideal nobre.(Said, 2003, p.321)Como nem sempre esse ideal expansionista se realizou<strong>da</strong> forma pretendi<strong>da</strong>, o planeta foi dividido em primeiroe terceiro mundos, ricos e pobres, avançados e atrasados,desenvolvidos e subdesenvolvidos, Hemisfério Nortee Hemisfério Sul, centro e periferia, civilizados e bárbaros.São to<strong>da</strong>s visões dualistas que só tendem a desagra<strong>da</strong>r especialmenteàqueles que propõem um pensamento queultrapasse uma percepção linear <strong>da</strong> história – caso deWalter Benjamin em “Sobre o conceito <strong>da</strong> história”, escritoem 1940. No entanto, deixar de discutir esses dualismosnão os eliminará; cunhados ao longo <strong>da</strong> história, foram seespraiando e alterando seus contornos.Aqueles que se identificam como os mesmos, e quetêm muito a ver com o processo de construção de umanação nos moldes tradicionais, partem <strong>da</strong> idéia do diferente.De maneira simplista equivale a afirmar que só sediz que A1 é semelhante a A2 porque ambos se antagonizama B, não reconhecem B como um mesmo. Note-se


80 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 81que na pequena lista de dualismos exposta antes, o primeirotermo é sempre o valorizado: primeiro mundo, ricos,avançados, desenvolvidos, Hemisfério Norte, centro e civilizados.Todos os povos que se agrupam sob essas expressõesassim se colocam em relação a outros que estariamno terceiro mundo, que seriam pobres, atrasados e subdesenvolvidos,localizados no Hemisfério Sul, na periferia.Obviamente esses termos não vêm postos assim emlista. Foram elaborados ao longo do tempo para atender adeterminados momentos histórico-políticos. No caso brasileiro,passou-se de uma situação de país do futuro parauma consciência radical do atraso ou subdesenvolvimento(cf. Candido, 1989), que mais tarde foi atenua<strong>da</strong> pelapalavra emergente. Emergente é o que veio de baixo <strong>da</strong>ságuas, o que estava encoberto, oprimido, o que não eraconhecido. O bárbaro, desde as grandes invasões que assolarama Europa, sempre foi o desconhecido, aquele quenão era possível de ser apreendido; o bárbaro era aqueleque se expressava numa língua estranha, semelhante aobalbucio infantil, incapaz de conhecer línguas supostamentecomplexas. Emergente, de fato, não é atenuante. Semuito, poderia ser considerado um eufemismo que disfarçaum sentido bastante negativo. Se a condição é a dodesconhecido, também é a do movimento de ascensão, decrescimento, de busca incessante de progresso, e é nesseponto que o eufemismo cumpre seu papel para aquelesque têm essa concepção de nação como norte.É assim que o Brasil não tem sido poupado de anseiosdesenvolvimentistas. Isso se torna sintomático a partir <strong>da</strong>déca<strong>da</strong> de 1950, quando a política interna coincide comuma maior aproximação dos Estados Unidos. O país passaa precisar crescer, o que significa ter mais indústrias, queproduzam um maior volume de bens de consumo.Não se discute sobre em que mãos fica o domíniotecnológico e científico, por exemplo; tampouco sobre oesvaziamento de reservas naturais, questão pouco relevantenum momento em que a ecologia de um modo geral tambémo é. Os resultados dessa política nos padrões sociaissão dissimulados por um alargamento <strong>da</strong> classe média, grandeconsumidora dos novos produtos e serviços (cf. Mota,1990). Para acompanhar essa linha de progresso, faz-senecessário erigir um monumento, mas não um que fale dopassado. É preciso um monumento que narre o futuro: <strong>da</strong>ía concepção de Brasília, projeta<strong>da</strong> dentro de paradigmasmodernos. O novo é valorizado na arquitetura arroja<strong>da</strong>que trabalha o concreto com a mesma habili<strong>da</strong>de que destacao espaço vazio. A ci<strong>da</strong>de causa o embaraço <strong>da</strong> amplidão,do vasto. Miniaturiza o ser humano para estabeleceruma analogia com as dimensões do país. Tudo é monumentalna nova capital como o é no Brasil. Porém, o mesmohomem que é miniaturizado diante <strong>da</strong> grandeza arquitetônicaé o responsável por sua elaboração.Aparente paradoxo que reflete a socie<strong>da</strong>de: muitostrabalhando e poucos desfrutando. É assim que a ci<strong>da</strong>defala <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de intervenção do humano sobre a naturezae <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de domínio de todos os espaços.Brasília é uma metáfora <strong>da</strong> posse do território. A novacapital federal não será só um marco do progresso nacionalcomo um “museu” que diz do que virá. Ela deverá cumpriro papel de iniciar a grande marcha para o Oeste. É precisocessar de arranhar o litoral como caranguejos e “descobrir”o Brasil – o ver<strong>da</strong>deiro, na opinião de muitos. Tratasede uma espécie de bandeira ou cruza<strong>da</strong> moderna quedeve avançar para o interior a fim de revelá-lo, conhecêloe ocupá-lo. Tudo isso tendo como objetivo principal oato civilizador, a integração e a unificação nacionais.É justamente na déca<strong>da</strong> de 1950, em meio a um climade entusiasmo desenvolvimentista sedutor de muitos intelectuais,que surge uma obra que se voltará ela tambémpara o interior, porém com objetivo bastante diferenciado<strong>da</strong>quele que ergueu Brasília no Planalto Central: A meninamorta (1954), de Cornélio Penna. O romance pode serposto como representação <strong>da</strong> nação por meio do seu passadoe de uma discussão do papel <strong>da</strong> civilização e <strong>da</strong>barbárie na sua constituição. Nega o moderno pelo moderno,o novo pelo novo; vasculha os escombros <strong>da</strong> história.


82 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 83A narrativa transcorre na segun<strong>da</strong> metade do séculoXIX, na fazen<strong>da</strong> cafeicultora do Grotão, localiza<strong>da</strong> no Valedo Rio Paraíba, na divisa entre a província de Minas Geraise a do Rio de Janeiro. A região é fronteiriça e isso valepor uma metáfora, pois ao longo do romance pode-se perceberque há uma concomitância entre aspectos civilizadose bárbaros. De um lado, o Rio de Janeiro, a Corte, epor extensão a Europa; do outro, o sertão, o mistério <strong>da</strong>smontanhas sem fim, as ci<strong>da</strong>des arruina<strong>da</strong>s, torna<strong>da</strong>s incultaspela exploração indiscrimina<strong>da</strong>, a própria dialética<strong>da</strong> civilização. Dialética em constante movimento: aomesmo tempo que opõe a barbárie à civilização, explicitaaquela como composto desta. No interior <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>, deum lado, os diversos produtos industrializados europeus,as <strong>revista</strong>s francesas de mo<strong>da</strong>, os tecidos delicados, osmanjares finos; do outro, a cozinha escrava, elabora<strong>da</strong> ecomplica<strong>da</strong> demais para mãos brancas. Negros e proprietáriosbrancos convivendo na linha tênue entre o afeto e adesconfiança mútua: a escravidão como dialética e ironia<strong>da</strong> civilização. O Grotão todo como processo dialético dessacivilização que não se faz sem barbárie, que se faz a partir<strong>da</strong> própria barbárie, necessitando esquecê-la e não sendopossível sem ela. A civilização não é nem pode ser o contrário<strong>da</strong> barbárie porque advém dela mesma. Benjamin(1993, p.225) atesta isso quando afirma nunca ter havido“um monumento <strong>da</strong> cultura que não fosse também ummonumento <strong>da</strong> barbárie”.Barbárie e civilizaçãoHá um Grotão que se volta para o citadino, para ometropolitano e que se configura de diversas maneiras.Ele é expresso pela linguagem culta dos personagens brancos,pelas suas roupas copia<strong>da</strong>s ou inspira<strong>da</strong>s nas <strong>revista</strong>sestrangeiras de mo<strong>da</strong>, pela mobília <strong>da</strong> casa grande compara<strong>da</strong>a um palácio, pelos jogos de salão nas horas de lazer,pelo plantio do café feito para ser exportado. A fazen<strong>da</strong> seassemelha a uma ilha que não se comunica – ou pouco secomunica – com aquilo e aqueles que lhe são e estão maispróximos. Porto Novo, a vila que fica do outro lado do rio,é local de trânsito, passagem para a Corte. Sua importânciase reduz às visitas feitas ao carneiro <strong>da</strong> menina, a filhamais nova recém-faleci<strong>da</strong>. A vila é muito pequena, de escassosmoradores e de aspecto arruinado, símbolo dos antagonismosna formação nacional: o novo decaído.Quanto à Corte, é um fim em si, ain<strong>da</strong> que seja portode passagem para o mundo, para a Europa. Para lá foramCarlota e os dois irmãos mais velhos para estu<strong>da</strong>r e lá permaneceramdurante muitos anos <strong>da</strong> infância e <strong>da</strong> adolescência.A fazen<strong>da</strong> e Porto Novo não são lugares onde alguémdo trato <strong>da</strong> família Albernaz pudesse crescer intelectualmente.O próprio comen<strong>da</strong>dor, o patriarca, estudou na Europae cogita que seus filhos homens também o façam. Parao aprendizado inicial dos meninos e para tudo o que Carlotacomo mulher precisa, o Rio de Janeiro basta. A Corte seapresenta como o espaço dos grandes e nobres encontros.Quando Dona Virgínia, parenta agrega<strong>da</strong> ao Grotão, viajapara buscar Carlota, tem a expectativa de uma ent<strong>revista</strong>com o imperador. A velha senhora já havia circulado nopaço imperial, sua família possuía esse trânsito no centropolítico do país. No entanto, ir ao Rio de Janeiro não podiaser tomado como tarefa fácil. Significava dias e dias de umaexaustiva viagem por serras e estra<strong>da</strong>s de ferro inacaba<strong>da</strong>s.Mesmo assim, para Dona Virgínia, a tortura valia a compensaçãodo ver<strong>da</strong>deiro evento social que se configurava oestar no centro irradiador de poder e cultura urbana. Parao comen<strong>da</strong>dor, por sua vez, a ci<strong>da</strong>de se monumentalizacomo lugar de per<strong>da</strong> e de morte para ele próprio e para seufilho mais novo, tomados ambos pela febre amarela. A Corteciviliza<strong>da</strong>, cosmopolita, é o lugar <strong>da</strong> doença tropicalincontrolável e onde o epidêmico se alastra com maior facili<strong>da</strong>de,pois há mais pessoas e elas estão próximas umas<strong>da</strong>s outras. A ci<strong>da</strong>de, espaço do artificial, é invadi<strong>da</strong> pelonatural, que, nesse caso, é força destrutiva.Na fazen<strong>da</strong>, o civilizado se pauta pelo cultivo dos campos.Não se está diante de uma natureza em forma bruta;


84 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 85ao contrário, ela foi domestica<strong>da</strong>. O café é plantado retilineamentee o espaço vazio entre uma linha e outra é limpocomo uma rua – a ci<strong>da</strong>de se presentifica no rural. Derua se chama o corredor que leva à cozinha dentro <strong>da</strong> casagrande, pelas suas dimensões e pelo seu movimento:O corredor largo e escuro que conduzia à cozinha era comouma rua dentro <strong>da</strong> grande fazen<strong>da</strong>. Tudo passava por ali e aqualquer hora do dia podiam ser nele encontrados os habitantesdo Grotão. Nos armários que ocupavam as paredes,nos lanços entre as poucas janelas gradea<strong>da</strong>s e abertas parao pátio interno eram guar<strong>da</strong>dos os artigos finos vindos doRio de Janeiro e vindos de países exóticos e longínquos.Suas prateleiras conservavam por todo o ano o perfumeforte e apimentado <strong>da</strong>s gulodices, man<strong>da</strong><strong>da</strong>s vir para as festasde Natal e de fim de ano, e muitas vezes ali permaneciamdurante meses, servi<strong>da</strong>s em sobremesa para as visitas.(Penna, 1997, p.75)As prateleiras <strong>da</strong> casa estão repletas de produtos estrangeiros,o que faz pensar numa espécie de grande lojaonde tudo é armazenado para as vistas e compras dos consumidores(<strong>da</strong>queles que passam na “rua”). Há uma taldiversi<strong>da</strong>de que as mulheres, ao confeccionarem vestidos,escolhem entre vários tecidos, várias cores e diferentesadornos. É como se estivessem numa loja <strong>da</strong> Rua do Ouvidor;é como se estivessem, mas não estão: seu universonão ultrapassa a soleira <strong>da</strong> porta principal <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> reclusaque levam.Os espaços externos à casa não são acessíveis ao feminino,o trânsito é controlado pelo comen<strong>da</strong>dor e seusacólitos. Somente os homens gozam do direito de ir e vir,ain<strong>da</strong> que com alguma discrição. Os espaços externosfuncionam como que alheios à casa-ci<strong>da</strong>de, funcionamcomo locais de perigo, ain<strong>da</strong> que não se saiba ao certo aqual perigo as mulheres poderiam se expor. Há um certocircular pelo terreiro e pela senzala (espaço <strong>da</strong> barbárieconfina<strong>da</strong>), visitas feitas à escrava Da<strong>da</strong>de, antiga ama dosenhor; um “passeio” à enfermaria dos escravos. O que estáalém do Grotão é ain<strong>da</strong> mais restrito, não só pelas proibições,mas pelas dimensões monumentais <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> e aaproximação <strong>da</strong> natureza no seu estado mais bruto e hostil.O bárbaro não está além do espaço ocupado pela famíliae seus agregados. No mesmo lugar onde se encontramtodos os elementos civilizados também estão os díspares.A senzala e a sala dos castigos estão no interior <strong>da</strong>fazen<strong>da</strong>, convivendo lado a lado com a casa grande.Estamos diante <strong>da</strong> nação dividi<strong>da</strong> no interior dela própria,articulando a heterogenei<strong>da</strong>de de sua população. A naçãobarra<strong>da</strong> Ela/Própria [It/Self], aliena<strong>da</strong> de sua eterna autogeração,torna-se um espaço liminar de significação, que émarcado internamente pelos discursos de minorias, pelashistórias heterogêneas de povos em disputa, por autori<strong>da</strong>desantagônicas e por locais tensos de diferença cultural.(Bhabha, 1998, p.209-10 – grifo do autor)Os campos cultivados de café são obra de mãos negrase não brancas. A proprie<strong>da</strong>de dos senhores é alimenta<strong>da</strong>metafórica e literalmente pelos escravos. O motor <strong>da</strong>civilização é a barbárie controla<strong>da</strong>, mas temi<strong>da</strong>. A fazen<strong>da</strong>está separa<strong>da</strong> <strong>da</strong> vila pelo Rio Paraíba, fronteira entre asprovíncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. De umlado, a Corte e to<strong>da</strong> a possibili<strong>da</strong>de civilizatória que elarepresenta como local de trânsito do e para o estrangeiro,o frenesi do progresso; de outro, Minas Gerais, já decaí<strong>da</strong>na segun<strong>da</strong> metade do século XIX, arruina<strong>da</strong> pela ganância<strong>da</strong> busca frenética do ouro e de outros minerais, torna<strong>da</strong>meio bárbara.Muitas vezes, ao longo de sua obra, Cornélio Pennase referirá à província mineira como sertão. Obviamenteo sentido aqui não é o atual: de árido, desértico e situadoentre o norte de Minas, o oeste de Goiás e o interior <strong>da</strong>região Nordeste. O sertão corneliano caracteriza as terrasque se opõem ao litoral, que se distanciam dos grandescentros cultos; é o interior marcado pela presença recentedo indígena por meio de seus vestígios; são as ci<strong>da</strong>des esvazia<strong>da</strong>s<strong>da</strong>s riquezas <strong>da</strong> mineração. O sertão corneliano


86 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 87não é o bárbaro aparentado com a natureza virgem, o nãocivilizadoain<strong>da</strong>, seu sertão é o produto de um processocivilizatório desmedido e pre<strong>da</strong>dor. É nesse contexto queo visconde, irmão do comen<strong>da</strong>dor, classifica a casa doGrotão de “tapera” e menciona seus “horrores matutos”(Penna, 1997, p.84).Há uma rivali<strong>da</strong>de explícita entre os dois e marcas derequinte e conforto funcionam como elementos mais oumenos valorativos. Nessa disputa vaza<strong>da</strong> em intrigas feitaspor Dona Virgínia sobressai a pomposi<strong>da</strong>de do viscondeem detrimento de uma relativa simplici<strong>da</strong>de na fazen<strong>da</strong>do comen<strong>da</strong>dor. O Grotão isolado parece um lugarbastante luxuoso, mas ao ser comparado com a proprie<strong>da</strong>dedo visconde, bem mais próxima do Rio de Janeiro, éridicularizado. Não são os dois irmãos que se opõem, é olitoral oposto ao sertão. À distância física entre o Grotão ea Corte corresponderá uma distância <strong>da</strong> civilização queimplicará a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> exportação de bensmanufaturados e ideológicos. Não é possível que numafazen<strong>da</strong> no Vale do Paraíba haja a mesma quanti<strong>da</strong>de desímbolos de refinamento que numa outra próxima ao centroirradiador. O comen<strong>da</strong>dor tenta vencer essa distância,mas o seu irmão estará sempre à frente.Elogio e crítica à civilizaçãoA visão de uma Europa dita civiliza<strong>da</strong>, por um lado, ede uma América “bárbara”, por outro, foi sedimenta<strong>da</strong>neste continente pelo clássico de Domingo Faustino Sarmiento– Facundo, publicado pela primeira vez em 1845 –,cujo subtítulo é, não por acaso, “Civilização e barbárie”.A Argentina do século XIX teria uma única ilha culta,Buenos Aires. Considera<strong>da</strong> assim porque provi<strong>da</strong> de bens(não só materiais, mas intelectuais) advindos do continenteeuropeu. Quanto ao restante do seu país, Sarmiento(1997, p.68) o vê como afun<strong>da</strong>do na selvageria:Buenos Aires está destina<strong>da</strong> a ser um dia a ci<strong>da</strong>de mais gigantescade ambas as Américas. Sob um clima benigno, senhora<strong>da</strong> navegação de cem rios que correm a seus pés, reclina<strong>da</strong>molemente sobre um imenso território e com treze provínciasinteriores que não conhecem outra saí<strong>da</strong> para seus produtos,seria já a Babilônia americana se o espírito do pampanão tivesse soprado sobre ela e se não afogasse em suas fonteso tributo de riqueza que os rios e as províncias têm delevar-lhe sempre. Só ela, na vasta extensão argentina, estáem contato com as nações européias; só ela explora as vantagensdo comércio externo; só ela tem o poder e as ren<strong>da</strong>s.A capital argentina é enalteci<strong>da</strong> por reproduzir oparadigma europeu de civilização, mas seu crescimento éembotado pela barbárie advin<strong>da</strong> dos pampas. FacundoQuiroga, protagonista do livro, com seus olhos de tigre,seria o representante máximo do interior atrasado, incapazde alcançar as propostas <strong>da</strong> urbe platina, incapaz sequerde as compreender. Ao contrário, Sarmiento se colocacomo um ser citadino, alguém que trafega pela altacultura, que para ele só pode ser a européia. É assim quesurgem sobrescritas a ca<strong>da</strong> título de capítulo epígrafes depensadores alemães, ingleses e, sobretudo, franceses. Oautor argentino não percebe que se vale de uma série dedepoimentos orais para reconstruir o seu Facundo, nãopercebe que é o povo “bárbaro” que <strong>da</strong>rá legitimi<strong>da</strong>de aseu texto. Sarmiento se compraz em enumerar os fatoresque emperram o interior do seu país: a natureza nãodomesticável,os índios, o isolamento, a mentali<strong>da</strong>decanhestra, a ausência do Estado. O motor de Facundo nasconquistas seria o seu ódio incontido pela civilização,[...] tudo o que não pode adquirir: boas maneiras, instrução,respeitabili<strong>da</strong>de, isso ele persegue, destrói nas pessoasque o possuem. Seu ódio contra gente decente, contra a ci<strong>da</strong>de,é ca<strong>da</strong> dia mais visível; o governador de La Rioja postopor ele acaba renunciando por se ver humilhado diariamente.Um dia Quiroga está de bom humor e brinca comum jovem como um gato brinca com um tímido rato: o jogoé matar ou não matar; o terror <strong>da</strong> vítima foi tão ridículo queo verdugo ficou de bom humor, riu às gargalha<strong>da</strong>s, contraseu costume. (Sarmiento, 1997, p.154 – grifos do autor)


88 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 89Um dos argumentos que provariam a barbárie de Facundoseria a sua incapaci<strong>da</strong>de em governar os lugaresque toma para si, pequenos aglomerados humanos acéfalos.Aparentemente seu interesse limitava-se à posse, à conquista.Guerrear, ponto máximo <strong>da</strong> selvageria, era o seuúnico estímulo.Sarmiento se revolta contra a incapaci<strong>da</strong>de americanaem explorar suas próprias riquezas e constituir-se porintermédio de nações. Só a Europa, especialmente os ingleses,estaria apta a essa exploração. O autor justifica assimtodo e qualquer ato imperialista como óbvio diante <strong>da</strong>incompetência americana para se governar.Ain<strong>da</strong> que haja semelhanças entre a concepção <strong>da</strong>quiloque seja civilizado e <strong>da</strong>quilo que seja bárbaro emSarmiento e Cornélio Penna, há diferenças fun<strong>da</strong>mentais.No romancista brasileiro, não se trata de aceitar essedualismo que associa a civilização à Europa culta e a barbárieà América selvagem. Mesmo porque o que falta emCornélio e sobra em Sarmiento é essa admiração sem ressalvase sem pudores pelos projetos imperialistas. O autorde A menina morta relativiza os encantos <strong>da</strong> civilizaçãoeuropéia quando põe a nu a engrenagem que move a escravidão.Tudo que representa cultura, luxo e conforto noGrotão é resultado do trabalho desumano usurpado dosnegros. É o trabalho – uma <strong>da</strong>s grandes glórias <strong>da</strong> civilizaçãoburguesa, oposto ao ócio estereotipado dos povos africanose indígenas americanos – que será realizado pelosescravos e não pelos brancos. O que constrói a possibili<strong>da</strong>de<strong>da</strong> Europa como continente civilizado, como império,é a mesma barbárie que se repudia no outro, no nãobranco.Especialmente quando se considera a habili<strong>da</strong>deinglesa em “captar” as riquezas brasileiras.Em Fronteira (1935), primeiro romance de CornélioPenna (1958, p.67), Maria Santa, a protagonista, que vivena Itabira de fins do século XIX, afirma que irá aprenderinglês com Miss Ann, <strong>da</strong> Golden Mining, para poder ler ospoetas <strong>da</strong>quela língua. A cena traz em seu bojo to<strong>da</strong> acontradição <strong>da</strong> relação civilização-barbárie. Maria acreditaque dominando a língua inglesa dominaria todo um universocultural. A língua lhe proporcionaria não só ler os escritores<strong>da</strong> literatura inglesa, mas ter uma vi<strong>da</strong> social tãointeressante quanto acreditava que alguém pudesse ter noRio de Janeiro, por exemplo. É impossível para ela perceberque foram justamente empresas como a Golden Mining– detentoras de um discurso civilizatório – que arrasaramItabira, que deixaram a ci<strong>da</strong>de com ar de abandono.O Juiz, outro personagem de Fronteira, é singular parailustrar como a civilização se apresenta problematiza<strong>da</strong>.Não tem nome, apenas é designado pela função. Sua presençaé a manifestação de um ato civilizatório por excelência:o estabelecimento <strong>da</strong> justiça, <strong>da</strong> lei que nivela oshomens. Ele representaria em última instância a própriaordem – na<strong>da</strong> mais próximo <strong>da</strong> idéia de civilização e denação. No entanto, no romance, ele não chega a se configurarcomo um representante do Estado, distante e imparcial;suas aparições se restringem ao espaço doméstico, privado.Mesmo assim, seus julgamentos são temidos por MariaSanta e pelo narrador. Mas esses temidos julgamentos nãosão expressos e tampouco parecem se referir à sua função.Além disso, são questionados por tia Emiliana, quenão lhes <strong>da</strong>va crédito em vista <strong>da</strong> falta de religião de seuelaborador. A visita ao sobrado é observa<strong>da</strong> com apreensão,ao mesmo tempo que o próprio juiz parece ter medode Maria, de modo que os temores são embaralhados. Umpossível retorno, com o aceno de esclarecimentos, é ain<strong>da</strong>mais amedrontador. No entanto, o juiz nunca volta, poismorre antes, não se sabe em quais condições. O narrador,de posse de papéis que havia recebido do morto, silencia.E todo o ato ordenador <strong>da</strong> própria narrativa que o magistradopoderia representar cessa. Esvaziados de sentido, osexpedientes civilizadores – que seriam a solução dos problemasargentinos em Sarmiento – são em Cornélio apresentadoscomo frouxos e inúteis.Mesmo quando se admite um elemento <strong>da</strong> culturaeuropéia, ele será agregado aos conhecimentos brasileiros.Em Repouso (1948), outro romance de Cornélio Penna


90 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 91(1998), Urbano, um farmacêutico, mescla o uso do Chernoviz,manual médico muito utilizado no século XIX, coma memória coletiva que o circula. O Chernoviz faz a pontecom o civilizado, é a cultura européia pesando sobre oboticário interiorano, mas suas interpretações podem serinfinitas e a medicina sertaneja sempre pode deixar suasindeléveis marcas acrescentando novos ingredientes. ComoUrbano é temido pela população local, suas receitas ganhamum caráter meio mágico, a ponto de o movimentode distanciamento não se <strong>da</strong>r somente por iniciativa dele,mas de seus pacientes. Dodôte, esposa de Urbano, temdele uma imagem bastante confusa. Diante de uma prateleirarepleta de frascos com nomes estranhos, lê: Uabaio,um veneno.Essas sílabas estranhas, que lembravam terras distantes <strong>da</strong>África, tinham-lhe parecido de sinistra magia, quando lerapela primeira vez. Tirara o recipiente do armário carunchadoe poeirento onde o escondera o velho boticário [avô deUrbano], com o intuito, decerto, de defendê-lo assim doscuriosos, e de também não deixar transparecer muito claramentea sua mania de busca de remédios extraordinários,maravilhosos, que exigiam quase sempre grandes sacrifíciospara a sua modesta bolsa, ao encomendá-los a correspondentesem países africanos e asiáticos. (Penna, 1998, p.248)Os produtos advindos <strong>da</strong> África ou <strong>da</strong> Ásia estão carregadosde exotismo. Esses continentes são postos comopólos <strong>da</strong> barbárie. A carga científica é alivia<strong>da</strong> em nomede adjetivos como “extraordinários, maravilhosos”. Nãose está mais no âmbito do civilizado – o Chernoviz estavaà mão de Urbano e parecia indicar soluções seguras. OUabaio possui nome estranho, trata-se de um veneno eisso por si só é assustador, seus poderes são maléficos.Uabaio não cura, Uabaio mata. Como logo a seguir Urbanofalece, fica uma relação implícita entre o frasco queteria vindo <strong>da</strong> África ou <strong>da</strong> Ásia – e a imprecisão só aumentao mistério e por extensão o exotismo – e o seu fimdiante de uma doença desconheci<strong>da</strong>, que o corrói lentamente,como um veneno. Há uma semelhança evidenteentre os nomes, um se sobrepõe ao outro. A mera transposição<strong>da</strong> segun<strong>da</strong> e <strong>da</strong> penúltima letras faz que Urbanovire Uabaio e Uabaio vire Urbano. Essa troca remete aoimbricamento entre o boticário e um de seus produtos.Teria sido ele envenenado? Teria ele se envenenado? Seriaele o próprio Uabaio? A África e a Ásia bárbaras estariamno interior de Urbano, formariam-no, não estariamfora, no outro.A revolta latentePor um lado, Sarmiento acredita que o despeito e ainveja de um mundo civilizado e inacessível justificariamas atitudes violentas de Facundo. Por outro, mesmo minuciosamentecontrolados, os escravos, em A menina morta,encontram fissuras no sistema no qual vivem para pequenasvinganças que demonstram resistência.O trintanário ergueu o rosto, e parecia que sobre ele tinhadescido súbita cortina de cor indefini<strong>da</strong>. Seus lábios se entreabriramem expressão de infinita inocência, em quaseimperceptível sorriso alvar, e as pálpebras esbranquiça<strong>da</strong>scaíram-lhe pesa<strong>da</strong>mente sobre os olhos. Mas o olhar quepassava pela fresta deixa<strong>da</strong> entre elas era vivíssimo e lia-senele a expressão <strong>da</strong> mor<strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de ferina dos humilhados,quando sabem que por sua vez humilham alguém. (Penna,1997, p.50)Essa cena ocorre logo depois que o escravo dá um recadoque desagra<strong>da</strong> muito a Dona Virgínia. Ciente do efeitocausado por suas palavras – palavras que não poderiamser reprimi<strong>da</strong>s por se tratar de uma comunicação <strong>da</strong> condessa,alguém hierarquicamente superior à prima docomen<strong>da</strong>dor –, o escravo exulta, saboreia como pode oembaraço <strong>da</strong> senhora. Após a transmissão do recado, silencia,mas seu olhar, minuciosamente acompanhado,transbor<strong>da</strong> ressentimento e vingança. Os cativos aproveitamna íntegra as poucas oportuni<strong>da</strong>des que possuem para


92 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 93devolver a humilhação a que são expostos. Mas não sãoapenas os cativos próximos <strong>da</strong> convivência <strong>da</strong> família quese manifestam:Muito de longe, vindo <strong>da</strong> mata próxima, a subir o espigãoperdido <strong>da</strong> Serra do Mar, que formava o fundo do altiplanoonde estava a fazen<strong>da</strong>, veio então, trazido pelas lufa<strong>da</strong>s devento morno do início <strong>da</strong> noite, o bater surdo de tambores,talvez de algum quilombo, onde os negros sentissem necessi<strong>da</strong>dede desafiar os capitães-do-mato, indicando assimsua presença nos longínquos grotões. Imediatamente todomovimento cessou e o negrume <strong>da</strong>s trevas fez-se unido,imóvel, como se tudo estivesse à escuta de algum sinalindecifrável para os brancos, transmitido assim por aquelasbati<strong>da</strong>s abafa<strong>da</strong>s. (Penna, 1997, p.61)O ruído que os cativos do Grotão não podem fazer,outros o fazem por eles. A provocação não se limita aoscapitães-do-mato; todos os proprietários <strong>da</strong> região devemse sentir intimi<strong>da</strong>dos pelos tambores. Mesmo que não setenha certeza <strong>da</strong> existência desse agrupamento de negros– “talvez de algum quilombo”, supõe o narrador –, é claroo receio constante em que vivem os fazendeiros. Tantopoderiam ser atacados como ver seu contingente de escravosatraído para revoltas. Seus direitos de proprietárioseram salvaguar<strong>da</strong>dos pelas leis, mas não pelas condiçõessociais. Os negros poderiam se evadir repentinamente ecapturá-los seria bastante oneroso e até inócuo. Agrupados,sem um domínio branco, inflados de ódio, eram perigosíssimos.A dimensão desse ódio escapa aos senhores,que não conseguem decifrar os possíveis sinais trocadosno silêncio <strong>da</strong> noite. Há uma linguagem entre os escravosque é incompreensível para os brancos. Isso dá a essa comunicaçãouma aura mística, quase sagra<strong>da</strong>, e aumenta oseu aspecto “bárbaro” – são seres falando uma línguainintelegível, que não se constitui como um código lingüísticopropriamente dito, que é apenas ruído. É ver<strong>da</strong>de queentre os próprios cativos o entendimento pode ser impossível,mas por motivos diversos.Mulheres de chimangos quase brancos, os braços muito pretosde fora, falavam em voz baixa e gesticulavam nervosamente.Algumas delas mais velhas diziam palavras africanasna excitação em que estavam e não se compreendiamporque eram de diversas nações e haviam sido escolhi<strong>da</strong>sjá de propósito assim para que não formassem grupos àparte, com a linguagem secreta de uma só algaravia. (Penna,1997, p.71 – grifo meu)Na tentativa de controlar o que se passa na senzala,os senhores misturam negras solteiras de diversas nações.Com línguas diferentes, o diálogo é inviabilizado e o distanciamento,mantido. Isso não impede que num momentode euforia – as escravas acreditam que poderão acompanharo cortejo fúnebre <strong>da</strong> menina morta – elas esqueçamas procedências umas <strong>da</strong>s outras e busquem o estabelecimentode uma comunicação. De fato, os senhores estavamcertos: elas não conseguem conversar, porém o desejode acompanhar o féretro <strong>da</strong> sinhazinha as anima numúnico conjunto, numa única força, ain<strong>da</strong> que logo maisto<strong>da</strong> essa on<strong>da</strong> humana seja desfeita pela violência do chicote.As negras são castiga<strong>da</strong>s e seus gritos são abafadospelas ameaças dos feitores e pela distância que as separa<strong>da</strong> casa grande. O comen<strong>da</strong>dor ordena os açoites mas nãodeseja ouvir os lamentos. Mantendo os feitores na posiçãode carrascos, ele não macula diretamente sua imagem deprotetor. Não que alguém não saiba que é do senhor queemanam as ordens para a violência. Mas há grande diferençaentre exercer o poder sobre a escravaria e castigá-la.O receio que os cativos causam nos senhores é materializadopela tentativa de assassinato do comen<strong>da</strong>dor.Todos os temores, que até então são apresentados como sefossem assombrações, são instituídos a partir desse fato.Não é mais um temor vago de algo limitado a espíritosmaus e olhares atravessados. Quando Florêncio atira nodono do Grotão, todo o poder dos brancos fica abalado.Após o fato, a caça<strong>da</strong> ao fugitivo é deflagra<strong>da</strong>. Feitores eescravos são unidos para a captura, para a reorganizaçãodo poder. Florêncio não voltará vivo. Seu corpo inerte fi-


94 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 95cará como símbolo do silenciamento e <strong>da</strong> opressão. O crimefora julgado e condenado no meio do mato, sem testemunhas.Um suposto suicídio dissimulará a sentença. Afazen<strong>da</strong> é aparentemente reordena<strong>da</strong>, mas não é mais possívelesquecer o quanto tudo é frágil.O ato de Florêncio não é, porém, acompanhado denenhuma revolta dos escravos. Nenhum deles se aproveita<strong>da</strong> situação. O rapaz não era estimado por seus pares,não era um líder, e inconscientemente ou não esses alimentamo patriarcalismo quando aju<strong>da</strong>m a caçá-lo. Emvez de qualquer manifestação de simpatia ou pesar de seuscompanheiros, o “criminoso” obtém algum gesto de consideraçãode quem aparentemente deveria ficar contra ele:Dona Mariana, esposa <strong>da</strong> vítima, pede a um padre queencomende o corpo. O gesto <strong>da</strong> Senhora soa como níti<strong>da</strong>provocação e na mesma noite ela deixa a fazen<strong>da</strong> para sóretornar depois que o comen<strong>da</strong>dor sucumbe diante <strong>da</strong> febreamarela.Até mesmo em manifestações de alegria, como a festarealiza<strong>da</strong> pelo retorno de Carlota e seu futuro casamento,pode-se verificar o medo que os escravos causamnos brancos:Os senhores ficaram alguns momentos ain<strong>da</strong> no alpendree procuravam distinguir na luz difusa dos candeeiros osvultos agitados e gesticulantes. De quando em vez deixavamentrever muito rápido caras onde o ricto era de volúpiae de dor, e nelas até o riso se tornava sinistro. A músicasempre igual, martelante, sem cessar, sobre-humana,alucinava gra<strong>da</strong>tivamente os <strong>da</strong>nçadores, e eles começavamjá a uivar em vez de cantar, a ter convulsões em vezdos passos primitivos do batuque, e os senhores sentiramser já tempo de se retirarem, porque a loucura viera tomarparte no baile. (Penna, 1997, p.280)Trata-se de uma <strong>da</strong>nça acompanha<strong>da</strong> de música, deum momento em que os escravos celebram a sua sinhazinhacom rituais festivos. Os gestos são estranhos aos moradores<strong>da</strong> casa grande. O movimento dos corpos é descritocomo algo adjacente ao prazer sexual e à magia. Não é àtoa que todos se sentem tão incomo<strong>da</strong>dos na esfera dedomínio patriarcal: os prazeres do corpo são restritos aoshomens e não são propagados publicamente. A única coisaque as mulheres podem expressar fisicamente é a materni<strong>da</strong>depor meio do casamento. No entanto, a maioria estáenvelheci<strong>da</strong> demais para procriar, ao passo que as jovens –Carlota e Celestina – ain<strong>da</strong> não são casa<strong>da</strong>s. Cantar e <strong>da</strong>nçarcomo fazem os negros é coisa fora de cogitação, ve<strong>da</strong><strong>da</strong>a senhoras “civiliza<strong>da</strong>s”. De repente os escravos abandonama cantilena que vinham entoando por uma nova:“Moço rico/ pra casa/ c’Arbernazi” (Penna, 1997, p.281).Na pequena corruptela do nome <strong>da</strong> família, transforma<strong>da</strong>de Albernaz em Arbernazi, há uma renomeação euma demonstração de domínio; a família é recria<strong>da</strong> pormeio desse novo nome. Em meio àquela incompreensãorecíproca, os negros são capazes de perceber que o casamentode Carlota é um negócio. Não compreendem que éa família do noivo que busca o dinheiro, mas alcançamnão haver ali nenhuma relação de afeto a unir dois jovense na sua ingenui<strong>da</strong>de cantam e se divertem com o quepara Carlota e para eles próprios significaria a continui<strong>da</strong>dedo patriarcalismo e, por extensão, <strong>da</strong> escravidão. Aoentrar em casa, a moça, inspira<strong>da</strong> pela <strong>da</strong>nça dos escravos,rodopia no meio <strong>da</strong> sala. Seu arremedo termina diantede uma parede nua: o retrato <strong>da</strong> irmã morta havia sidoretirado. Esse é um sinal do comen<strong>da</strong>dor para que o passadorecente <strong>da</strong> família seja esquecido, é um sinal para queCarlota incorpore a menina e a substitua como ponteharmonizadora entre a casa grande e a senzala – torne-seo & do título do livro de Gilberto Freyre. Tarefa difícil eque tem como propósito básico silenciar possíveis manifestaçõesindeseja<strong>da</strong>s. Quando seu pai viaja, a jovem percebecertos cui<strong>da</strong>dos tomados:De quando em quando chegavam até ela em on<strong>da</strong>s os sonsquebrados de gargalha<strong>da</strong>s, mas tinha ouvido as ordens deixa<strong>da</strong>spor seu pai antes de partir e sabia terem sido as armasembala<strong>da</strong>s distribuí<strong>da</strong>s aos feitores e aos guar<strong>da</strong>s, com


96 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 97a recomen<strong>da</strong>ção de atirar ao primeiro sinal de revolta. Assimestava informa<strong>da</strong> de que to<strong>da</strong> aquela paz, na aparêncianasci<strong>da</strong> <strong>da</strong> ordem e <strong>da</strong> abundância, todo aquele burburinhofecundo de trabalho, guar<strong>da</strong>vam no fundo a angústia domal, <strong>da</strong> incompreensão dos homens, a ameaça sempre presentede sangue derramado. (Penna, 1997, p.312)Carlota, nesse momento <strong>da</strong> narrativa, ain<strong>da</strong> está bastantepróxima de seu pai. Não entende por que DonaMariana deixou o Grotão, nem conhece as circunstâncias:as precauções toma<strong>da</strong>s soam como naturais. A ausênciado comen<strong>da</strong>dor é uma ameaça. Como bom patriarca, eledistribuía castigos na mesma medi<strong>da</strong> em que concedia proteção.Por isso, mesmo alforriados, os negros não abandonama fazen<strong>da</strong>. Sua presença impunha mais ordem do quesuas palavras, que eram poucas. Carlota vê a relação entrebrancos e negros comprometi<strong>da</strong> pelo mal. Que mal é esse?O dos brancos que escravizam os negros ou o dos negrosque não são gratos por terem o privilégio de conviver coma “civilização”? Não se pode esquecer de que uma <strong>da</strong>s justificativaspara a escravidão moderna consistia na oportuni<strong>da</strong>deque proporcionaria aos negros para se civilizarem.Sem a escravidão, se perderiam na barbárie total. Carlotaain<strong>da</strong> não é capaz de perceber que subterfúgios podem sercriados para justificar a violência. Só mais tarde ela desmascarao sistema opressor que mantém o silêncio dos cativospor meio de pequenas barganhas afetivas, nas quaisa menina morta e ela própria foram tão bem utiliza<strong>da</strong>s.Nesse momento a jovem só pode pensar a senzala como“pronta para o salto de onça” (Penna, 1997, p. 313). Adianteserá ela quem se tornará essa onça, primeiramente comocaça<strong>da</strong> por João Batista, seu noivo, e em segui<strong>da</strong> comocaçadora, como uma força destruidora, do patriarcalismoescravocrata.Dona Virgínia, a grande representante feminina dosistema patriarcal, é a favor <strong>da</strong> escravidão como soluçãopara todos os males econômicos. Tecendo comentáriossobre pessoas que não são denomina<strong>da</strong>s, afirma:A pessoa de quem lhe falava está em vésperas <strong>da</strong> ruína. Eusei que compraram grande número de ações <strong>da</strong> Estra<strong>da</strong> deFerro de D. Pedro II, agora arrasa<strong>da</strong>s na Bolsa, e não valemtuta-e-meia. Depois a fazen<strong>da</strong> entregue à velha louca e aomoço a<strong>da</strong>mado, sem saber onde tem o nariz, só vai paratrás, ain<strong>da</strong> mais depois <strong>da</strong>s tentativas de colonização estrangeira!Veja a enorme tolice, quando temos os negros aíà mão para trabalharem para os brancos! E muito bem pagos,pois têm comi<strong>da</strong>, roupa e casa! (Penna, 1997, p.339)Outra agrega<strong>da</strong> acrescenta: “E muito chicote também...”(ibidem, p.339). O protesto não é ouvido ou não éconsiderado. As palavras de Dona Virgínia ecoam maisfortes: sua adesão ao projeto patriarcal-escravocrata éinconteste. Os negros são pintados como meros utensíliosfeitos pelos brancos e para os servirem. A visão <strong>da</strong> velhasenhora é tão distorci<strong>da</strong> que ela chega a ver como pagamento(comi<strong>da</strong>, roupa e casa) o que não passava de manutençãodo bom estado <strong>da</strong>s “ferramentas”. Adiante, numacesso de irritação, admitirá que os negros talvez não estivessemassim tão disponíveis:Estamos todos aqui sem nos entendermos e parece vivermosem hotel sem gerência! Ninguém nos diz na<strong>da</strong>, e, aliás,não vejo quem nos possa dizer alguma coisa autoriza<strong>da</strong>!Até os escravos já sentem isso, e tenho mesmo medo de seaproveitarem <strong>da</strong> oportuni<strong>da</strong>de para uma revolta. (Penna,1997, p.355)Nessa passagem os cativos ganham novos contornospara Dona Virgínia. Já não são seres passivos aguar<strong>da</strong>ndopara servirem não importa em quais condições. Eles estãoà espreita, atentos ao menor espaço para expressarem todoo ódio acumulado. A tão temi<strong>da</strong> e espera<strong>da</strong> revolta nuncase realiza, a não ser na projeção dos senhores, o que justificaa constante violência: ser cruel com o outro e mantêloaterrorizado para se tornar incapaz de reagir. A fronteiraque os separa é mais porosa do que o desejável – existemfrestas que indicam o esfacelamento <strong>da</strong> administração.Além disso, comparar o Grotão a um hotel o torna transi-


98 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 99tório, vulnerável, destrutível. Não se mora em um hotel,apenas se passa por ele. Mas os negros estão inertes demaispara conseguir aproveitar qualquer situação em seupróprio favor. O sistema que os abafa cumpriu seu papel:não há disposição em se colocarem contrários aos proprietáriosdo Grotão. Não são unidos, só eventualmente seagrupam. Estão apartados por uma hierarquia interna: osque labutam na casa e os do eito, os que são forros e os quenão são, os que atendem diretamente aos senhores e osque atendem aos outros escravos. A fazen<strong>da</strong> é o lugar doressentimento, mas é um lar. Os escravos se posicionamentre a servidão e o afeto, não vêem com clareza a frágilfronteira na qual vivem. O episódio do espancamento dotrintanário por João Batista, o noivo de Carlota, é exemplardisso:[João Batista] não pressentira estar sendo visto pela noiva,pois achava-se de costas, e Carlota pode ver bem a dificul<strong>da</strong>decom a qual o negro retirava a bagagem, e só compreendeuo acontecido quando viu o escravo receber em cheioo caixote sobre um dos pés, pois não o conseguira reter nasua que<strong>da</strong> brusca, ao se romperem as correias que o prendiamàs grades do assento. Mais rápido ain<strong>da</strong>, o moço agarrouo preto pelo peito <strong>da</strong> japona por ele vesti<strong>da</strong> e fustigou-oàs cegas em furiosos golpes com o chicote que traziana mão direita. O trintanário recebeu as chicota<strong>da</strong>s quedeviam marcar profun<strong>da</strong>mente a sua carne, mal protegi<strong>da</strong>pela pobre libré por ele enverga<strong>da</strong>, sem qualquer gesto dedefesa, sem experimentar fugir ou se proteger, nem mesmotirar o pé debaixo do engra<strong>da</strong>do, a esmagá-lo. Mantinhaos olhos muito abertos sem expressão, e era semelhante aoanimal resignado à dor por ele sabi<strong>da</strong> inevitável, e entregava-seà vontade do dono sem restrições, esquecido atédos primeiros instintos <strong>da</strong>s criaturas. (Penna, 1997, p.367)O escravo é comparado a um animal, está impotentediante <strong>da</strong> atitude de seu proprietário. A banali<strong>da</strong>de do“motivo” <strong>da</strong>s panca<strong>da</strong>s revela a cruel<strong>da</strong>de como algo corriqueiro.O noivo não percebe estar sendo observado, mas,se fosse o caso, o constrangimento adviria apenas <strong>da</strong> faltade elegância <strong>da</strong> situação e não <strong>da</strong> violência propriamentedita. Carlota conseguiu alcançar o ver<strong>da</strong>deiro sentido doepisódio, poisteve vontade de correr, de gritar, de rasgar o seu vestido,mas apenas pôde manter-se imóvel agarra<strong>da</strong> ao balaústredo alpendre e tinha certeza de que se dele desprendesse osdedos cairia no chão sem amparo. Nunca pôde saber quantotempo ali estivera, nem de que maneira conseguira manter-se,mas viu João Batista, o noivo, enxugar o rosto cobertode suor pela violência de seus movimentos, reajustara gravata, cujas dobras se tinham desfeito, alisar a calça efazer correr as mãos pelas pernas e só então deu pela suapresença e veio ao seu encontro iluminado pela alegria ecom a naturali<strong>da</strong>de dos noivos. (Penna, 1997, p.367)Rapi<strong>da</strong>mente João Batista passa de carrasco a noivogalante, mas assim como as carnes do escravo ficarão grava<strong>da</strong>spelas chicota<strong>da</strong>s recebi<strong>da</strong>s, também a memória deCarlota será marca<strong>da</strong> pelo episódio aviltante. A meninamorta é um romance que se faz dos vestígios que já foramou vão sendo espalhados ao longo <strong>da</strong> narrativa, que aju<strong>da</strong>ma romper o “continuum <strong>da</strong> história” (Benjamin, 1993).E esses vestígios vão assinalando a memória dos personagenscomo uma grota, como um grotão. Ao presenciar oespancamento do humilde trintanário, Carlota fica impotentepara ousar qualquer coisa. Tudo o que ela deseja fazeré expressado não pelo que é feito, mas pelo seu silêncio,pelo seu pasmo. A cena desencadeará uma série derelações com o passado e com situações futuras que servirãopara que a jovem seja capaz de entender o que vai portrás <strong>da</strong>quele universo criado pelos seus antepassados. Elacompreenderá o quanto custa esse universo.Cinco capítulos depois desse episódio, a jovem ouvesua mucama falar <strong>da</strong> atenção que sua irmã sempre tiverapara com os negros:A Sinhazinha sentia seu coração diminuir, pois passara suainfância longe <strong>da</strong>queles pequenos dramas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> escrava,e nunca tinham chegado até ela os ecos dos lamentos e <strong>da</strong>s


100 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 101queixas dos pretos. De repente o choque de alguma coisa adespertou e fê-la vir até a reali<strong>da</strong>de, com o estremecimentoque lhe causou a recor<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> cena por ela presencia<strong>da</strong>no quadrado, quando João Batista espancara o trintanário...Todo o sangue lhe correu pelas veias, em fulguranteon<strong>da</strong> de gelo, e agarrou-se à poltrona onde estava no receiode cair, arrasta<strong>da</strong> pela vertigem. Quis erguer-se e man<strong>da</strong>rLibânia embora, pois de na<strong>da</strong> lhe valera chamar amucama e fazê-la falar, e sentia certa náusea apertar-lhe opeito, ao lembrar-se <strong>da</strong>s palavras duras ditas por seu paireferindo-se a alguém que ouvia “mexericos de negras”.(Penna, 1997, p.383)Carlota pensa que os “ecos dos lamentos” não chegarama ela quando estavam precisamente se tornando audíveis.Da criança buliçosa que fora sua irmã, a jovem saltapara o espancamento do trintanário e desse para asadvertências enérgicas do comen<strong>da</strong>dor quanto às “fofocas”dos escravos. Tudo é muito rápido. Carlota faz explodiro “continuum <strong>da</strong> história” quando relaciona a vi<strong>da</strong> difícil<strong>da</strong> senzala do Grotão à atitude de João Batista, e emsegui<strong>da</strong> à onipresença e onisciência de seu pai. É a partir<strong>da</strong>s pequenas lacunas que a memória preenche que lhe épermitido compreender o que se passa na fazen<strong>da</strong>, de quematéria são feitas a atenção e a leal<strong>da</strong>de dos negros. Ocomen<strong>da</strong>dor e João Batista têm muitas semelhanças queaté então não haviam sido percebi<strong>da</strong>s, mas que a partirdesse momento não serão mais esqueci<strong>da</strong>s.ConclusãoO movimento que Cornélio Penna dá à sua obra é nosentido de recuperar a memória para atos pouco honrosos.É assim que uma concepção de nacionali<strong>da</strong>de – nosmoldes freyrianos – coesa e harmônica falha. O cativo éposto como bárbaro, porém os desmandos praticados contraele são mais bárbaros. A escravidão surge como subprodutodireto <strong>da</strong> civilização e não como seu oposto. Seos negros estão à margem é porque são colocados à margem.Negros e mulatos não estão fora, não estão do ladode lá <strong>da</strong> fronteira que protege a cultura de um universonatural. Eles escrevem sua própria narrativa do nacional,que não coincide com a narrativa oficial e muitas vezes seopõe a ela.Desde o “descobrimento”, curiosi<strong>da</strong>de e receio se confundemem solo americano. A ignorância cria personagense enredos fantásticos. A monumentalização em Amenina morta se refere tanto à fazen<strong>da</strong> quanto à casa, econtribui para referen<strong>da</strong>r o mistério. O gigantismo dos espaçoshiperboliza os mistérios, aumenta o que é desconhecido,dá-lhe proporções monstruosas. O Grotão passaassim a poder ser comparado com o território nacional. Ovasto império, pleno de riquezas, também é pleno de espaçosdesconhecidos, dos quais não se tem ciência, dos quaisnão se conhece bem os limites e nos quais as fronteiras setornam móveis pela sua distante imobili<strong>da</strong>de.A resposta de Euclides <strong>da</strong> Cunha (1997, p.84) paraesse mundo antitético, que o confronto com Canudos apresenta,é a condenação nacional à civilização: “Ou progredimos,ou desaparecemos”. É a partir <strong>da</strong> ideologia doprogresso que o Brasil se inicia no século XX. O desenvolvimentismoeconômico <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950 deixa “para tráso país como dádiva de Deus e <strong>da</strong> Natureza” (Chaui, 2001,p.39) para torná-lo obra humana. Para Eduardo Subirats(2001, p.11-12), ocorre uma gradual substituição do mitodo paraíso pela ideologia do progresso, segui<strong>da</strong> de umadesagregação tal que se passa a pensar o futuro como catástrofeinevitável.Como já se afirmou, <strong>da</strong>ta de 1954 a publicação de Amenina morta, principal romance de Cornélio Penna. Emanos de desenvolvimentismo, Penna (1997, p.116) contaa história de uma família abasta<strong>da</strong> do Vale do Rio Paraíbaque vive os últimos gemidos <strong>da</strong> escravidão sob a divisaSpes et labor. As palavras latinas anunciam um paraíso parao futuro feito de trabalho. Mas o progresso não é obra divina,o que incomo<strong>da</strong> um romancista católico e conservador.É sabido que Cornélio Penna (1958, p.xl) pretendia


102 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 103narrar o “ver<strong>da</strong>deiro Brasil”, localizado no locus amoenusuniversal: o interior. De repente tornou-se impossível conciliaro mito do interior idílico – congelado numa imagemdo passado – com o anseio pelo progresso que os novostempos clamavam. Mas não é só a escravidão que está forade lugar. O preço pago pelo enriquecimento fácil do Valedo Paraíba, pelo ciclo de exploração do ouro em MinasGerais ou pelo <strong>da</strong> cana-de-açúcar no Nordeste é o mesmoque será pago pelo afã desenvolvimentista instaurado a partir<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950: “O mundo apodreceu, envenenou-sede civilização”, declara Cornélio Penna (1958, p.xlvi).PENNA, Cornélio. A menina morta. Rio de Janeiro: Artium, 1997.. Repouso. Rio de Janeiro: Artium, 1998.SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. PedroMaia Soares. São Paulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 2003.SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo: civilização e barbárie.Petrópolis: Vozes, 1997.SUBIRATS, Eduardo. A penúltima visão do paraíso: ensaios sobrememória e globalização. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: StudioNobel, 2001.VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicasliterárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 1991.ReferênciasABREU, Regina. O enigma de Os sertões. Rio de Janeiro: Funarte;Rocco, 1998.BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito <strong>da</strong> história. In: . Magiae técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história <strong>da</strong> cultura.Trad. Sergio Paulo Rouanet. 6.ed. São Paulo: Brasiliense, 1993,v 1, p.222-32.BHABHA, Homi K. O local <strong>da</strong> cultura. Trad. Myriam Ávila, ElianaLourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte:Editora UFMG, 1998.CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: .A educação pela noite e outros ensaios. 2.ed. São Paulo: Ática, 1989.p.140-62.CHAUI, Marilena de Souza. Brasil: mito fun<strong>da</strong>dor e socie<strong>da</strong>de autoritária.São Paulo: Fun<strong>da</strong>ção Perseu Abramo, 2001.CUNHA, Euclides <strong>da</strong>. Os sertões. 38.ed. Rio de Janeiro: FranciscoAlves, 1997.ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização.Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. v.2.. O processo civilizador: uma história dos costumes. Trad. RuyJungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v.1.MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia <strong>da</strong> cultura brasileira (1933-1974). 6.ed. São Paulo: Ática, 1990.PENNA, Cornélio. Fronteira. In:de Janeiro: Aguilar, 1958. p.1-167.. Romances completos. Rio


105Ficção e ensaioMaria Célia Leonel*José Antonio Segatto** Universi<strong>da</strong>de EstadualPaulista (Unesp).RESUMO: Propomos discutir como Os sertões foi incorporado, pelacrítica, como obra de literatura, e como, posteriormente, o romanceGrande sertão: vere<strong>da</strong>s passou a ser lido como ensaio. Paratanto, examina-se, de um lado, em vários estudos, como o primeirofoi consagrado como obra compósita, pertencendo, ao mesmotempo, ao campo <strong>da</strong> literatura, <strong>da</strong> história e <strong>da</strong> ciência, o que setornou moe<strong>da</strong> corrente e cânone quase inquestionável, sobrevivendopor mais de um século. De outro lado, investiga-se comoa narrativa rosiana passou a ser vista, por uma determina<strong>da</strong> vertente<strong>da</strong> crítica, como ensaio ou estudo <strong>da</strong>s relações de poder noBrasil. É essa indistinção, paradoxal, entre história e literatura,ciência e ficção, que nos propomos investigar e problematizar,buscando compreender tal embaralhamento de gêneros.PALAVRAS-CHAVE: Grande sertão: vere<strong>da</strong>s, Os sertões, ficção, ensaio,crítica.ABSTRACT: Our purpose is to discuss the way Os sertões wasincorporated by criticism as a work of literature and how, subsequently,the novel Grande sertão: vere<strong>da</strong>s began to be read asan essay. We intend to examine the way in which the formerwas rendered as a composite work, belonging at the same timeto the fields of literature, history and science; a fact that becamecommonplace and an almost unquestionable canon, whichsurvived for over a century. We also intend to investigate howGuimarães Rosa’s narrative started to be seen by certain sectorsof criticism as a novel-essay, that is a study of the power relationsin Brazil. It is this paradoxical indistinctiveness betweenhistory and literature, science and fiction that we aim to investigateand to problematize, seeking to understand such a mixtureof genres.KEYWORDS: Grande sertão: vere<strong>da</strong>s, Os sertões, fiction, essay,criticism.


106 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Ficção e ensaio 107IntroduçãoQuestões deriva<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s peculiari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> literatura e<strong>da</strong> história ou <strong>da</strong> distinção entre ficção e ciência continuamnão só recorrentes, como muitas permanecem sem solução,levando a in<strong>da</strong>gações e gerando controvérsias teóricase analíticas. Exemplo disso é o fato de o livro-ensaiode Euclides <strong>da</strong> Cunha, Os sertões, ser considerado, ao longodo tempo, pela crítica, como obra de literatura, e de,posteriormente, o romance Grande sertão: vere<strong>da</strong>s de JoãoGuimarães Rosa ser lido como ensaio.Entendemos que o exame desse problema é não sórelevante, como oportuno. Nesse sentido, buscamos recontare/ou expor, na sua historici<strong>da</strong>de, como, de um lado,o primeiro foi consagrado com o status de obra compósita,pertencendo, ao mesmo tempo, ao campo <strong>da</strong> literatura,<strong>da</strong> história e <strong>da</strong> ciência – caracterização inaugura<strong>da</strong> porJosé Veríssimo, logo após seu lançamento em 1902, e quese tornou moe<strong>da</strong> corrente e cânone quase inquestionável,sobrevivendo por mais de um século. De outro lado, intenta-seinvestigar como a narrativa rosiana passou a servista e analisa<strong>da</strong>, por uma determina<strong>da</strong> vertente <strong>da</strong> crítica– sobretudo a mais recente –, como romance-ensaio, estudoou retrato dos sertanejos despossuídos e <strong>da</strong>s relaçõesde poder no Brasil. Essa indistinção, paradoxal, entre históriae literatura, ciência e ficção, requer análise e problematização,objetivando compreender tal embaralhamentode gêneros.Os sertões como obra literáriaRecentemente, em 2002, quando <strong>da</strong>s comemoraçõesdo centenário de Os sertões, publicado em 1902, a tônicageral <strong>da</strong>s análises <strong>da</strong> crítica foi a manutenção, praticamenteintacta, do cânone consagrado há muito que tem comochave <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong> obra de Euclides <strong>da</strong> Cunha a idéia deque se trata de um texto híbrido de literatura/ficção e ciência.Imbuído dessa concepção, Roberto Ventura (2002,p.24) considera queOs sertões é uma obra híbri<strong>da</strong> que transita entre a literatura,a história e a ciência, ao unir a perspectiva científica, debase naturalista e evolucionista, à construção literária,marca<strong>da</strong> pelo fatalismo trágico e por uma visão romântica<strong>da</strong> natureza.Com viés um pouco diverso, mas na mesma direção,Leopoldo M. Bernucci (2002, p.12 e 15), embora de modomenos categórico, afirma:[...] mesmo estando em terreno etnográfico em que predominamnormalmente as descrições e análises, Euclides usoumatrizes ficcionais que vieram muito a calhar [...]. A incorporaçãode materiais extraídos de fontes ficcionais combinadoscom os <strong>da</strong>s fontes históricas, científicas e jornalísticasfaz de Os sertões a primeira grande obra ver<strong>da</strong>deiramentecanibalesca de nossa literatura [...]. A exemplo de Tucídides,será o consórcio entre arte, exatidão e o tom sincero donarrador que modelará Os sertões como história ao gostodo Romantismo.Esse tipo de caracterização do livro de Euclides <strong>da</strong> Cunhaé bastante antigo e foi, como dito, proposto inicialmentepor José Veríssimo com a publicação de seu artigoresenha,no jornal Correio <strong>da</strong> Manhã, em 3 de dezembrode 1902. Nele, o crítico interpretou Os sertões como umaobra de ciência, história e literatura, asseverando que[...] é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência,um geógrafo, um etnógrafo; de um homem de pensamento,um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homemde sentimento, um poeta, um romancista, um artista[...] (Veríssimo, 1977, p.45)No mesmo dia, por carta, Euclides <strong>da</strong> Cunha (1966,p.620-1) – que trabalhava em Lorena no Estado de SãoPaulo – responde às observações de Veríssimo, conside-


108 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Ficção e ensaio 109rando que o “consórcio entre ciência e arte” era a “tendênciamais eleva<strong>da</strong> do pensamento” e que o trabalho literárioexigiria o registro científico; alega, ain<strong>da</strong>, que o“escritor do futuro” deveria ser um “polígrafo” e que serianecessária a criação de uma “tecnografia”, capaz de agregardiversos saberes.As posições de Veríssimo e também de Euclides seriamcorrobora<strong>da</strong>s, logo a seguir, por Araripe Júnior (1978, p.22)em dois artigos no Jornal do Comércio de 6 e 18 de marçode 1903. Esse estudioso constata que a fascinação que olivro exerce “resulta de um feliz conjunto de quali<strong>da</strong>desartísticas e de preparo científico [...]”. E mais: seria o “[...]único no gênero, se atender-se a que reúne a uma formaartística superior e original uma elevação histórico-filosóficaimpressionante [...]”.Tais exames avalizadores de Os sertões como obra deliteratura e história ou de ciência e ficção tornar-se-iam,ao longo do século XX, o paradigma manifesto <strong>da</strong>s análisesdo livro. Sem a pretensão de enumerar todos os estudossobre Os sertões, vale a pena citar alguns a título deexemplo. Gilberto Freyre (1944, p.32) diz que a paisagemque transbor<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra é a <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de angustia<strong>da</strong>do autor, que precisou “exagerar para <strong>completa</strong>r-se e seexprimir nela” – de forma que “é Euclides mais do que apaisagem, que transbor<strong>da</strong> dos limites do livro científico[...] tornando-o um livro também de poesia [...]”.Afrânio Coutinho (1980, p.82-6), no início dos anos1950, é mais peremptório, ao afirmar que, apesar de haverna obra uma mistura de elementos de diversos gêneros(ensaio, drama, ficção), não é uma obra de ciência – é“sobretudo uma obra de arte”, o que “sobreleva a tudo é asua parte artística”, “obra-prima <strong>da</strong> literatura”; enfim,“Euclides era um artista, um ficcionista, um criador de tipos,tal qual um romancista”.O amálgama de literatura e história, com predominância<strong>da</strong> primeira, está presente também em DanteMoreira Leite (1969), 1 em Nelson Werneck Sodré (1960), 2em Franklin de Oliveira (1959), 3 em Olímpio de Souza1“Euclides poderia ter escritoum livro científico, limitadopela perspectiva <strong>da</strong> época; secontinua e continuará a seruma obra-prima <strong>da</strong> literaturabrasileira, isso se deve às suasquali<strong>da</strong>des formais e à visãohumana que Euclidesconsegue transmitir”(Leite, 1969, p.204).2“a importância de Euclidesconsistiu em conferirgrandeza, em <strong>da</strong>r formaliterária, [...] como supremarealização artística, a umainterpretação nova do Brasil[...]” (Sodré, 1960, p.453).3“contra o que está, porém,superado ou obsoleto em suaanálise, reage Os sertões peloque há de permanente: seucaráter de obra literária [...].É talvez a mais altainterpretação social do Brasilfeita em termos de arte”(Oliveira, 1959, p.306-7).Em estudo posterior(Oliveira, 1983, p.22), o autorafirma que o livro de Euclidesnão pode ser consideradocomo ficção ou romance,embora saliente sua dimensãoartística (ibidem, p.29).4Euclides é “esse ficcionistaque se espraia assim, docomeço ao fim de Os sertões,sem deixar de ser o historiadorconsciencioso [...]” (Andrade,2002, p.449).5“Mais uma vez, em Euclides,o ficcionista ganha dohistoriador, na dramatizaçãodo episódio, nas sugestõesambientais, na descrição domovimento e do ruído, nasimagens violentas. E é possívelmesmo que ele tenha preferidoseguir a versão de Arinos,que lhe chegara às mãos járomanescamente elabora<strong>da</strong>;o que não impede dedesenvolvê-la ain<strong>da</strong> mais,no mesmo sentido” (Galvão,1976, p.83).6“A preocupação de realizaruma síntese entre linguagemliterária her<strong>da</strong><strong>da</strong> e a elocuçãocientífica do presente é poisconsciente e constitui umaver<strong>da</strong>deira obsessão paraEuclides [...] Síntese entreliteratura e ciência,combinação de estéticas,cruzamento de gêneros,oposições de estilos; suaobra parece ressu<strong>da</strong>r tensõespor inteiro” (Sevcenko,1983, p.135).Andrade (2002), 4 em Walnice Nogueira Galvão (1976), 5em Nicolau Sevcenko (1983). 6Valentim Facioli (1998, p.38) retoma a discussão, considerandoOs sertões um livro de “interpretação científicado processo histórico brasileiro”, segundo os parâmetrosdo “consórcio de ciência e arte”. Para esse crítico, Euclidesestava impregnado por concepções – do positivismo, dodeterminismo, do evolucionismo, do naturalismo – quevêem o conhecimento científico como auxiliar na descriçãoe na elaboração do retrato <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de na busca <strong>da</strong>ver<strong>da</strong>de, superando o subjetivismo; sendo assim, o literáriodeveria submeter-se às leis naturais. O inverso tambémseria válido.Talvez não seja exagerado verificar que as relações entre discursodescritivo <strong>da</strong> ciência e discurso metafórico <strong>da</strong> arte emOs sertões imbricam-se, tornando-se quase indistintos, resultandonum discurso outro que quer sintetizar os dois paraa produção de um gênero artístico híbrido e indefinido, queabarca dimensões inusita<strong>da</strong>s. Parece evidente que o textoeuclidiano permite um trânsito em duas mãos: tanto a ciênciaproduz a arte, quanto vice-versa. (Facioli, 1998, p.55)A tentativa de realizar o consórcio entre ciência e artepor parte de Euclides teria, porém, fracassado. Produto deseu tempo, a obra hoje estaria sendo recusa<strong>da</strong> tanto pelasciências sociais como pelas ciências naturais; só a “historiografialiterária”, apesar <strong>da</strong>s ressalvas, ain<strong>da</strong> a acolhe. Facioli(1998, p.57) acrescenta ain<strong>da</strong> que Euclides teria atingidoapenas a “virtuali<strong>da</strong>de” no que se refere ao projeto de consórciode ciência e arte. Teria havido confiança exagera<strong>da</strong>nas possibili<strong>da</strong>des de revelação do país, na linguagem <strong>da</strong>denúncia do crime que a República praticara em Canudos.Nesse “ensaio” euclidiano, “sem gênero definido”,reponta uma linguagem “monumental”, “oratória” com afinali<strong>da</strong>de de “comover e persuadir”.Otto Maria Carpeaux (1958, p.4), por seu turno, ecom visão um tanto diversa, afirma que o “valor e o prestígio<strong>da</strong> obra de Euclides criaram, de Canudos, uma ima-


110 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Ficção e ensaio 111gem que não pode ser desfeita”. Vai mais além, valendo apena citá-lo:Mais do que escrever história, Euclides fez história. Mas osexemplos de Tácito e Saint Simon bastam para demonstraraté que ponto a imaginação entra, como elemento criador,justamente nas maiores obras de historiografia. NoBrasil foi João Ribeiro, parece, o único que duvidou <strong>da</strong> exatidãocientífica de “Os Sertões”, falando em “ficção”; escrevendohoje, teria falado em “science fiction”. Com efeito,não se diminui o valor excepcional <strong>da</strong> obra, afirmando-seque os elementos científicos dela, as considerações geológicas,etnológicas, sociológicas e de psicologia social, sãohoje tão antiqua<strong>da</strong>s que dão a impressão de ciência fantástica.Contudo, não seria possível eliminá-los simplesmente[...] A ciência fantástica de Euclides faz parte integral desua obra.Pouco tempo antes, em 1956, escrevendo no SuplementoLiterário do jornal O Estado de S.Paulo – mesmo jornalem que Otto Maria Carpeaux publicou suas considerações–, Antonio Candido (2002, p.174) observava queEuclides <strong>da</strong> Cunha havia realizado uma análise históricosociológicasui generis. Nela pesquisou “a psicologia dos protagonistas”e, para “compreendê-la, vai até as influências<strong>da</strong> raça e do meio geográfico”; no entanto, Euclides estariaultrapassado na sociologia, porque o livro é “demasiadomecânico”, o que “a seu tempo era de preceito, para corresponderàs concepções dominantes então, do naturalismocientífico”. O crítico afirma ain<strong>da</strong> que o autor opera comconceitos, análises e critérios “especificamente sociológicosde interpretação” que “aparecem concretizados em algunsprincípios diretores” (ibidem, p.179). Além disso, “mais quesociólogo Euclides é quase um iluminado”, havendo “neleuma visão por assim dizer trágica dos movimentos sociais e<strong>da</strong> relação <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de com o meio físico e social”(ibidem, p.181). Assim, só pode ser compreendido[...] se o colocarmos além <strong>da</strong> sociologia – porque de algummodo subverte as relações sociais normalmente discrimina<strong>da</strong>spela ciência, <strong>da</strong>ndo-lhes um vulto e uma quali<strong>da</strong>deque, sem afogar o realismo <strong>da</strong> observação, pertencem antesà categoria <strong>da</strong> visão. (ibidem, p.182)Florestan Fernandes (1977, p.35), fazendo uma análisedo desenvolvimento histórico <strong>da</strong> sociologia no Brasil,constata que Os sertões é o primeiro ensaio a procurar fazeruma “descrição sociográfica” e uma interpretação histórico-geográficado meio físico, dos tipos humanos e <strong>da</strong>scondições de existência no país. Teria um valor de marcona constituição <strong>da</strong> sociologia brasileira e, a partir dessemomento, “o pensamento sociológico pode ser consideradocomo uma técnica de consciência e de explicação domundo inseri<strong>da</strong> no sistema sócio-cultural brasileiro”.Em “Canudos não se rendeu”, introdução feita a Ossertões em 1973, Alfredo Bosi (2002, p.212) afirma haver,na obra, dois grandes planos, um histórico e outro interpretativo.Ao histórico corresponderia a parte final e, aointerpretativo, as duas primeiras partes. Essa ordem relaciona-secom a cultura determinista do autor, tendo mediaçõesideológica e literária intrinsecamente liga<strong>da</strong>s.Euclides faz uso de processos retóricos que não são neutros;por meio de recursos com finali<strong>da</strong>de hiperbólica tencionatransmitir a noção de “grandeza”, de “terribili<strong>da</strong>de”“do inelutável” (ibidem, p. 216 – grifo do autor). A linguagemmanipula<strong>da</strong> por Euclides <strong>da</strong> Cunha, de denúncia e deprotesto, tem função de apelo (ibidem, p.218). No querefere à mediação literária, a obra de Euclides não se distanciade seus coetâneos como Afonso Arinos, CoelhoNeto, Rui Barbosa e Olavo Bilac. O nacionalismo ou sertanismodesses autores manifestavam-se por “uma dicçãopurista leva<strong>da</strong> ao extremo do arcaísmo e do preciosismo”(ibidem, p.219).Bosi (2002, p.220) adverte ain<strong>da</strong>, coerentemente, queuma leitura atual do livro não deve insistir naquilo que édocumento de seu tempo: “a linguagem rebarbativa, oângulo faccioso <strong>da</strong> visão”. Outros são os valores a que sedeve ater a leitura moderna de Os sertões: a potência <strong>da</strong>representação, o empenho em não separar o fato de seu


112 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Ficção e ensaio 113contexto, a busca de superar esquemas ideológicos e atingir“uma objetivi<strong>da</strong>de mais alta, realiza<strong>da</strong> na denúncia de umequívoco que, consumado, se fez crime” (ibidem, p.220).A par do acerto dessas considerações, devemos lembrarque, em nenhum momento, o ensaísta refere-se à composiçãode Euclides <strong>da</strong> Cunha como ficção ou literatura. Oestilo literário, evidente no livro, advém, como dito, <strong>da</strong>tradição do momento.Nessa linha de interpretação que se distancia <strong>da</strong> leituracanônica que se fez – ou ain<strong>da</strong> se faz – segundo a qualOs sertões é uma obra híbri<strong>da</strong> de história e literatura ou deciência e ficção, temos, mais recentemente, Luiz Costa Lima(2006). De forma mais enfática, tem chamado a atençãopara o fato de que os critérios utilizados por Veríssimo – eposteriormente incorporados acriticamente – remontam aconcepções do século XVIII, quando não se distinguiamde maneira clara as diferenças entre história e literatura enão eram reconheci<strong>da</strong>s a autonomia e a peculiari<strong>da</strong>de artística<strong>da</strong> última. O crítico repara que, no Brasil,[...] ain<strong>da</strong> no final do século XIX e durante grande partedo XX, não se havia assimilado muito bem por que históriae ficção pertenceriam a campos diversos. Ao contrário, tornandoliteratura e ficção equivalentes, era mais fácil mantera convergência entre história e literatura. Para tanto,era suficiente que o historiador fosse capaz de atualizar opotencial <strong>da</strong> língua em construções incomuns <strong>da</strong> linguagem.Esse potencial, na ver<strong>da</strong>de, já não era definido puramentepor um critério retórico – o uso rico <strong>da</strong> língua –,mas por sua combinação com a força emotiva. (Lima, 2006,p.381)Reconhecer que existem elementos ficcionais ou mesmoliterários em Os sertões não significa – para o crítico –aceitar a “interpretação homogênea” atribuí<strong>da</strong> ao livro. Oque há de literatura presente na obra é só “bor<strong>da</strong> que ornamentaum argumento científico” (ibidem, p.383). O quehá de arte nele – e esse teria sido o intento de Euclides <strong>da</strong>Cunha – é a apresentação de uma capa de verniz “que <strong>da</strong>riamaior visibili<strong>da</strong>de ou impacto ao exame científico docaso” (ibidem, p.383). Luiz Costa Lima defende ain<strong>da</strong> quea essência <strong>da</strong> obra é científica, porém, admite “um tratamentoliterário que aju<strong>da</strong>sse a empolgar o leitor, por forçade sua eloqüência” (ibidem, p.383). Sua conclusão é a deque seria inconcebível “ver em Os sertões uma obra simultaneamentede história e literária [...]” (ibidem, p.385).A partir <strong>da</strong>s visões aqui expostas, conclui-se que avisão homogeneizadora – que considera, como única possibili<strong>da</strong>dede caracterização de Os sertões, o cânone “consórcioentre ciência e arte” – há muito vem sendo rediscuti<strong>da</strong>e posta em dúvi<strong>da</strong>. Essa concepção é descarta<strong>da</strong>por Antonio Candido já nos anos 1950 e, de certa forma,também por Otto Maria Carpeaux. O mesmo posicionamentodo autor de Formação <strong>da</strong> literatura brasileira é encontradoem Alfredo Bosi e, com ênfase, em Luiz Costa Lima.Grande sertão: vere<strong>da</strong>s – um ensaio?Desde sua publicação em 1956, o romance Grandesertão: vere<strong>da</strong>s de João Guimarães Rosa despertou a atençãode inúmeros críticos, tendo acumulado uma bibliografiaextensa, <strong>da</strong>s mais diferentes vertentes analíticas:histórico-sociológicas, míticas, metafísicas, esotéricas, lingüísticas,estilísticas, culturais, folclorísticas, cartográficas.Podem-se destacar, entre esses estudos, duas análisespioneiras – as de Antonio Candido e de Manuel CavalcantiProença – elabora<strong>da</strong>s logo após a publicação do romance.O primeiro, numa resenha-ensaio publica<strong>da</strong> no ano dolançamento do livro, já assinalava: “este romance é uma<strong>da</strong>s obras mais importantes <strong>da</strong> literatura brasileira” e suacaracterística fun<strong>da</strong>mental é a de transcender o regional,“graças à incorporação em valores universais de humani<strong>da</strong>dede tensão crítica” (Candido, 2002, p.190). No anoseguinte (1957), o crítico edita, como é sabido, o ensaio“O sertão e o mundo” sobre a mesma narrativa, mais tarderepublicado sob o título “O homem dos avessos” (Candido,1978). Nele, afirma que, na composição rosiana,


114 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Ficção e ensaio 115misturam-se o “real e o fantástico”, e “combinam-se o mitoe o logos, o mundo <strong>da</strong> fabulação lendária e o <strong>da</strong> interpretaçãoracional”. Conclui que pode ser visto no livro,[...] um movimento que afinal reconduz do mito ao fato,faz <strong>da</strong> len<strong>da</strong> símbolo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e mostra que, na literatura, afantasia nos devolve sempre enriquecidos à reali<strong>da</strong>de docotidiano, onde se tecem os fios <strong>da</strong> nossa treva e <strong>da</strong> nossaluz, no destino que nos cabe. (Candido, 1978, p.139)Do mesmo modo que Antonio Candido abre caminhospara a leitura do romance rosiano, em especial nadireção dos estudos sócio-históricos e políticos, ManuelCavalcanti Proença também tem sua análise posteriormenteretoma<strong>da</strong> pela crítica. To<strong>da</strong>via, a via <strong>da</strong> leitura de Proençaé outra.Uma parte do texto desse crítico, “Trilhas no Grandesertão” (1959), já havia sido publica<strong>da</strong> em 1957. O estudiosodefende a idéia de que Grande sertão: vere<strong>da</strong>s temum plano objetivo e um subjetivo – as reflexões do protagonista–, além de um plano mítico. Proença também lançaa idéia de que os jagunços são símiles dos cavaleiros <strong>da</strong>I<strong>da</strong>de Média, o protagonista é um “cangaceiro cortês” e ojulgamento de Zé Bebelo relaciona-se com essa dimensãocavaleiresca <strong>da</strong> obra. Examina ain<strong>da</strong> os elementos míticosdo romance, além de analisar seus aspectos formais, comoos processos de formação de palavras. To<strong>da</strong>s essas propostasde Proença, como dito, foram apropria<strong>da</strong>s pela crítica,abrindo mais de uma linha de pesquisa. Como se podenotar, o crítico examina várias dimensões <strong>da</strong> obra rosiana,mas não a relaciona com a vi<strong>da</strong> sociopolítica do país.Entre os pioneiros, há um terceiro estudo sobre o romance,de menor repercussão, de Rui Facó (1958, p.185),no qual a narrativa de Guimarães Rosa é abor<strong>da</strong><strong>da</strong> comoobra “eminentemente popular”, “um retrato quase sociológicodo interior do Brasil”, destacando-se, ain<strong>da</strong>, “outraquali<strong>da</strong>de do romance: o lirismo vigoroso e belo de queestá impregnado”. To<strong>da</strong>via, a quali<strong>da</strong>de mais notável <strong>da</strong>composição é “o seu profundo realismo” que o coloca no“mais alto degrau” <strong>da</strong> literatura brasileira. Trata-se do“documentário de uma época”, de um “mundo gerado pelolatifúndio, pela grande proprie<strong>da</strong>de territorial, pelo monopólio<strong>da</strong> terra casado aos restos feu<strong>da</strong>is” (ibidem, p.186).Com isso, conclui queAí está o melhor retrato do latifúndio semifeu<strong>da</strong>l, com to<strong>da</strong>a sua brutali<strong>da</strong>de e selvageria, gerando o cangaceiro e osretirantes [...] Este o sertão visto pelo romancista GuimarãesRosa. O sertão heróico e trágico, valente e sofredor,povoado de seres profun<strong>da</strong>mente humanos, como Riobaldo,obrigados a viver uma vi<strong>da</strong> de tropelias, sem consciênciade sua situação de oprimidos, sem terem encontrado ain<strong>da</strong>o caminho certo para se libertarem <strong>da</strong> exploração do latifúndio(ibidem, p.187 e 189)A partir dos anos 1960, a fortuna crítica <strong>da</strong> obra rosianaem geral e do romance Grande sertão: vere<strong>da</strong>s em particularcresce em escala notável, multiplicando-se por meiode artigos, livros, teses, dissertações, estudos e pesquisasdos mais diversos níveis e gêneros, enfoques e métodos. Ocrescimento <strong>da</strong>s investigações foi quantitativo e heterogêneo.Uma boa amostra disso está na coletânea organiza<strong>da</strong>por Eduardo Coutinho de 1983.Das correntes analíticas <strong>da</strong> produção rosiana, quatroconcepções polarizam-se ao longo do tempo. Uma delasvaloriza os aspectos míticos, metafísicos, esotéricos; outraprende-se ao virtuosismo lingüístico e às perspectivasformalistas. A terceira vertente provém de certo marxismoreducionista e sectário que entende a obra como literaturaaliena<strong>da</strong> em relação à dimensão histórico-social dopaís e do ser social. Nela, “o homem se vê reduzido à merafiguração abstrata, campo para o debate entre meros <strong>da</strong>dosontológicos e metafísicos [...] Aceita-se como definitivaa fetichização, a alienação” (Ribeiro, 1974, p.104).A quarta corrente tem como referência críticos pioneiros,sobretudo Antonio Candido, acentuando e maximizandoalguns dos aspectos por ele ressaltados. O exemplomais consistente dessa vertente é o de Walnice Nogueira


116 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Ficção e ensaio 117Galvão (1972, p.74), que considera o romance Grande sertão:vere<strong>da</strong>s um “retrato do Brasil”, um “ensaio”, “o maiscompleto estudo até hoje feito sobre a plebe rural brasileira”,em que o escritor “dissimula a História para melhordesvendá-la” (ibidem, p.63).Nas déca<strong>da</strong>s de 1980 e 1990 houve um crescimentoacentuado <strong>da</strong>s duas primeiras vertentes. Nas análises <strong>da</strong>crítica, especialmente no meio acadêmico, mas não só, há avalorização de temas e questões metafísicas, míticas, psicanalíticas,folclóricas, lingüísticas. Como contraponto ao crescimentodesse tipo de enfoque – que se torna mesmo preponderante–, críticos que têm como referencial concepçõeshistórico-sociológicas reagem com análises que acentuame, de certo modo, radicalizam a dimensão sócio-históricado romance, procurando recuperar e destacar dimensõesobscureci<strong>da</strong>s ou relega<strong>da</strong>s a um segundo plano – como asrelações sociais e de poder – pelas análises prevalecentes.Retomando teses elabora<strong>da</strong>s por Walnice NogueiraGalvão, Sandra Guardini T. Vasconcelos (2002, p.324)discute a questão do coronelismo e <strong>da</strong> jagunçagem e examina,“a partir de uma perspectiva histórica, a inserção deGrande sertão: vere<strong>da</strong>s numa linhagem de estudos de interpretaçãodo Brasil que abor<strong>da</strong>ram esse traço <strong>da</strong>s relaçõessociais e de poder em nosso país”. Para essa estudiosa,o banditismo e a violência, que são inerentes ao romancee o atravessam do princípio ao fim, determinariam “emgrande parte seu movimento e desfecho”, permitindo“inscrevê-lo no cruzamento entre o literário e o histórico”(ibidem, p.324). É com esse “entrecruze” que o romance“pode contribuir para iluminar”, a partir do relato de umpartícipe do “mundo <strong>da</strong> jagunçagem, o modo como se estabeleceramas relações de poder vigentes no sertão brasileirodurante a República Velha, envolvendo fazendeiros,bandos de jagunços e milícias” (ibidem, p.324). Ao representaresse mundo, o romancista “deu voz às contradiçõese dilaceramentos do nosso país, cuja imagem como umespaço em que o processo de modernização nunca se deude maneira homogênea” (ibidem, p.324).Guimarães Rosa expõe, dessa forma, as contradiçõesnacionais e mostra que o arcaico não é sobra do passado,mas configura-se no presente como “corolário do projetode modernização do país”. Vasconcelos (2002, p.331) concluiafirmando o caráter e a natureza compósita de Grandesertão: vere<strong>da</strong>s:Na sua mescla de ficção e história, o romance de GuimarãesRosa é não apenas o ‘mais profundo e mais completoestudo até hoje feito sobre a plebe rural brasileira’, comoavalia Walnice Nogueira Galvão, mas é sobretudo um agudoensaio sobre a liqui<strong>da</strong>ção do coronelismo durante a PrimeiraRepública, narrado de dentro e debaixo, <strong>da</strong> perspectivade uma personagem que viveu todo o processo. Só porisso já mereceria figurar ao lado dos melhores ensaios deinterpretação de um dos períodos mais conturbados <strong>da</strong> históriado Brasil que nossa historiografia produziu.Na mesma direção, mas tendo como referencial concepçõese categorias de Walter Benjamin, Willi Bolle (2004,p.377) procura mostrar que o romance de Guimarães Rosa,além de ser uma história do indivíduo, contém ain<strong>da</strong> “umahistória social do Brasil”. O escritor encena essa históriado país por meio de fragmentos e de modo criptografadoque caberia ao leitor “decifrar”. Em outras palavras, Grandesertão: vere<strong>da</strong>s, por meio <strong>da</strong> história <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de Riobaldo,contaria a história social <strong>da</strong> nação: “ao narrar a sua vi<strong>da</strong>,ele convi<strong>da</strong> o leitor a organizar os fragmentos <strong>da</strong> históriadespe<strong>da</strong>ça<strong>da</strong> e criptografa<strong>da</strong> do Brasil” (ibidem, p.378). Ocrítico alega que, organizando os fragmentos “espalhadose ocultos ao longo de diversas passagens do labirinto <strong>da</strong>narração”, é possível decifrar a “identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nação e dopovo” (ibidem, p.336). Assim, para esse crítico,[...] o romance de Guimarães Rosa é o mais detalhado estudode um dos problemas cruciais do Brasil: a falta de entendimentoentre a classe dominante e as classes populares,o que constitui um sério obstáculo para a emancipaçãodo país [...] o mais preciso e mais complexo estudo dessaquestão [...] (ibidem, p. 9 e 17)


118 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Ficção e ensaio 119Bolle (2004, p.22-3) afirma ain<strong>da</strong> que o romance “seconfigura como uma forma de pesquisa”, o que permite lêlocomo “retrato do Brasil”. Ao compreender Grande sertão:vere<strong>da</strong>s como representação alegórica <strong>da</strong> história brasileira,o ensaísta em pauta considera, especialmente, quea narrativa rosiana seria uma “reescrita crítica” do “livroprecursor”, Os sertões de Euclides <strong>da</strong> Cunha. Como revisãocrítica <strong>da</strong>quele modelo historiográfico (determinismopositivista), “pode ser lido como um processo aberto contrao modo como o autor de Os sertões escreve a história”(ibidem, p.34-5).Para Willi Bolle, o romance Grande sertão: vere<strong>da</strong>s,“retrato do Brasil”, pode ser comparado com outros ensaiossobre a formação do país elaborados por, além de Euclides<strong>da</strong> Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holan<strong>da</strong>,Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro, Celso Furtado, DarcyRibeiro, Antonio Candido e Florestan Fernandes. E vaialém, ao dizer que, “com potencial sui generis, ele ocupaem relação àquelas obras canônicas uma posição complementare concorrente” (ibidem, p.24).Já Luiz Roncari (2004), em O Brasil de Rosa, relacionatrês dos livros de Guimarães Rosa – Sagarana, Corpo debaile e Grande sertão: vere<strong>da</strong>s – com o momento em queforam produzidos, discutindo as relações entre literatura ehistória e considerando, especialmente, o “fato de o autortratar nos três os mesmos tipos de problemas apresentadospela história”. Uma <strong>da</strong>s fontes do autor de Corpo de baileapóia-se “não só na nossa tradição literária, mas tambémnos velhos e novos estudos do Brasil, efervescentes emseu tempo” (Roncari, 2004, p.17). A seu ver, faltava, <strong>da</strong>parte <strong>da</strong> crítica, o exame de uma “cama<strong>da</strong>” <strong>da</strong> obra deGuimarães Rosa, que “alegorizava a história <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> político-institucionalde nossa primeira experiência republicanae numa perspectiva que poderíamos considerar conservadora”(ibidem, p.18-19). Conservadora no sentido decrítica à ordem estabeleci<strong>da</strong> que trouxesse de volta a autori<strong>da</strong>deque havia se perdido com a República.Guimarães Rosa teria, sem deixar de lado a vi<strong>da</strong> amorosae familiar, própria do romance de modo geral, a preocupaçãode integrar também os costumes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> pública,“o que deu a sua ficção também a dimensão de uma representaçãodo país, e muito mais realista do que se poderiasupor. Foi essa a razão que [...] levou [o crítico] a discutirparte de sua obra como sendo também a de um intérprete doBrasil, embora muito peculiar” (ibidem, p.20 – grifo nosso).Para o ensaísta, o escritor mineiro teria seguido “deperto os paradigmas de Oliveira Vianna, do livro O ocasodo Império [...]”, construindo, na ficção, personagens quecorresponderiam aos homens <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> pública brasileira deacordo com aquele estudioso (ibidem, p.20).Roncari relaciona o modo como os intérpretes do paísapreendem nossa vi<strong>da</strong> político-social com a maneira deGuimarães Rosa compor suas histórias. De acordo com oautor de O Brasil de Rosa, Guimarães Rosa teria proximi<strong>da</strong>decom as visões de Alberto Torres, Alceu Amoroso Limae Oliveira Vianna, mas também de Gilberto Freyre, SérgioBuarque de Holan<strong>da</strong>, Caio Prado Júnior, Paulo Prado eoutros mais. Os fatos políticos e sociais que se refletem naprodução rosiana teriam sido apresentados na “perspectivado conservadorismo crítico” por Alceu de AmorosoLima em Política e letras, ensaio de 1924 (Roncari, 2004,p.22). Esse texto de Alceu de Amoroso Lima propõe comosolução para os impasses <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> nacional a “harmonização<strong>da</strong>s forças contrárias”. Segundo Roncari, Guimarães Rosateria tomado essa visão de Alceu “como diagnóstico e aceitoa sua proposta de solução, quase como uma missão a sercumpri<strong>da</strong> pela sua obra” (ibidem, p.24).Como se pode observar, para Roncari, o romancerosiano não deixa de ser ficção, mas exerce o mesmo papelde historiadores e outros intérpretes que estu<strong>da</strong>m a vi<strong>da</strong>sociopolítica do país.Literatura e ensaioA discussão que a crítica sobre os dois autores – Euclides<strong>da</strong> Cunha e Guimarães Rosa – suscita tem a ver, espe-


120 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Ficção e ensaio 121cialmente, com a relação, aproximação ou separação, entreliteratura e história. Os estudiosos que retomaram aidéia de José Veríssimo de que Os sertões é uma obra híbri<strong>da</strong>são muitos e atravessaram o século XX de tal modo queessa matriz, corrobora<strong>da</strong> por Euclides, tornou-se modelode caracterização <strong>da</strong> obra. A avaliação do livro pode variar,no que diz respeito à proximi<strong>da</strong>de com a literatura, considerando-seo uso de “matrizes ficcionais”, como querBernucci; o fato de ser “obra-prima <strong>da</strong> literatura” e Euclides“ um criador de tipos tal qual um romancista”, como defendeAfrânio Coutinho, e mesmo um poeta como diz GilbertoFreyre. A classificação <strong>da</strong> obra como sendo deficcionista também se repete nos estudos de, por exemplo,Olímpio de S. Andrade (2002) e Walnice Nogueira Galvão(1976). Mas, como dito, desde a déca<strong>da</strong> de 1950, AntonioCandido caracteriza a obra como um ensaio de caráterhistórico-sociológico; Florestan Fernandes, por sua vez,caracteriza-a como marco inaugural <strong>da</strong> sociologia no Brasil.Mesmo com Alfredo Bosi e Luiz Costa Lima temos umainterpretação que apresenta aproximações <strong>da</strong>quela deAntonio Candido, mas que enfatiza o uso <strong>da</strong> retórica, aeloqüência <strong>da</strong> obra.O que, apesar do exposto, manteve a idéia do hibridismo,para Luiz Costa Lima, foi a manutenção, no país,<strong>da</strong> noção anacrônica de literatura. Ao discutir o uso dotermo literatura, o mesmo crítico o considera como heterogêneoe baseado no “conceito de mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des discursivas”(Lima, 2006, p.348). Desse modo, “Fora <strong>da</strong> ficcionali<strong>da</strong>de,a literatura abrange aquelas obras que, perdi<strong>da</strong> suadestinação original, recebem outro abrigo, i.e, mantêm seuinteresse, mu<strong>da</strong>ndo de função”. Entre os exemplos por elecitados está Os sertões juntamente com Casa grande e senzala.Os dois livros mu<strong>da</strong>riam de lugar, quando, extinto o“propósito de interpretação sócio-histórica do país, nelessobressair a espessura de sua linguagem [...]” (ibidem,p.349-50). A mu<strong>da</strong>nça só se dá porque a obra traz “umtraço de destaque” em sua linguagem, apresentando o“correlato sensível-codificado do mundo fenomênico” (ibidem,p.350 – grifo do autor). Isso quer dizer que essas obrasdevem ter não simplesmente uma linguagem diferencia<strong>da</strong>,mas uma linguagem que, por si, já veicule o mundodos fenômenos.Pelo mesmo caminho, poderíamos perguntar por queum romance como Grande sertão: vere<strong>da</strong>s, que tem nãoapenas uma linguagem claramente literária, mas estruturae fun<strong>da</strong>mentos também literários, passa a ser consideradocomo ensaio ou como estudo, ou “mescla de ficção e história”.Para entender-se a leitura de Os sertões como literaturae de Grande sertão: vere<strong>da</strong>s como estudo, talvez tenha-seque levar em conta que os leitores de Os sertões,que o caracterizam como obra literária, tomam como pontobásico de análise a elocução, a linguagem. Por sua vez, oscríticos, que consideram o romance de Guimarães Rosacomo ensaio, levam em conta, como critério de caracterização,a história conta<strong>da</strong>, os acontecimentos nela envolvidos.De um lado e de outro, está em discussão a compreensãodo que seja a obra de arte literária relativamente àssuas duas faces, a forma e o conteúdo. Da maior valorizaçãode uma ou de outra, chega-se a interpretações diferencia<strong>da</strong>se conflitantes. No entanto, cabe lembrar que essas facessão interliga<strong>da</strong>s e inseparáveis, o que já indica que aescolha apenas de uma ou de outra para análise é problemática,resultando em considerações questionáveis comovemos em alguns estudos aqui elencados.Com tudo isso, o exame de como Os sertões foi transformadoem obra literária e Grande sertão: vere<strong>da</strong>s passoua ser lido como ensaio suscita questões e dilemas importantes,postos e repostos ao longo do tempo e que têmrelações com as peculiari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> literatura e <strong>da</strong> história.Tais questões indicam, ain<strong>da</strong>, que problemas de identi<strong>da</strong>dee diferença epistemológicas e cognitivas – como representaçãoe compreensão, distinção entre linguagens e formas– continuam a ser recorrentes.Se entendermos que a literatura, como ativi<strong>da</strong>de artística,e a história, como mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de “científica”, têm modosespecíficos de reprodução do real, faz-se necessário


122 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Ficção e ensaio 123estabelecer as diferenças tanto nos discursos quanto nasdistintas formas de abor<strong>da</strong>gem e compreensão do ser sociale do processo histórico.Pode-se dizer que o historiador seleciona para análiseaquilo que supõe ter acontecido ou que acredita ser o verossímil,a reali<strong>da</strong>de objetiva, acessível e não simples construtoselaborados pela imaginação criativa (Hobsbawm, 1998,p.8). O historiador ocupa-se com o existente, com a reali<strong>da</strong>deem si, ou seja, com a reali<strong>da</strong>de histórica concretaque independe <strong>da</strong> consciência do sujeito. Nas análises elabora<strong>da</strong>spela historiografia, tenta-se reproduzir a reali<strong>da</strong>deabstratamente, no plano do pensamento – por meio deconceitos, categorias, alusões e comparações – tal como,de forma aproxima<strong>da</strong>, ela supostamente se deu.Na literatura, a reali<strong>da</strong>de é cria<strong>da</strong> ou recria<strong>da</strong>, inventa<strong>da</strong>ou reinventa<strong>da</strong> artisticamente por meio de figuras,metáforas, símbolos, alegorias. O escritor cria uma reali<strong>da</strong>denova a partir do mundo em que está inserido, utilizandoa imaginação e a invenção. Ele reinventa a reali<strong>da</strong>deou inventa aquilo que poderia ter acontecido, demaneira que ela é reproduzi<strong>da</strong> não como é ou foi, mascomo poderia ser, como Aristóteles escreveu. Dessa forma,a obra de arte é “algo criado pelo homem, que jamaispretende ser uma reali<strong>da</strong>de no mesmo sentido em que éreal a reali<strong>da</strong>de objetiva” (Lukács, 1970, p.163). Sua representaçãoé única e insuperável, feita por imagens sensíveis,por meio <strong>da</strong>s quais o sujeito (artista) cria o objeto erepresenta, geralmente, destinos humanos concretos emsituações particulares (Lukács, 1968, p.41ss.).Por meio <strong>da</strong> literatura, o homem relaciona-se imaginariamentecom a reali<strong>da</strong>de histórica. To<strong>da</strong>via, a literaturanão é antagônica do real; ao criar um real imaginário,ela não deixa de representar um real verídico, existente.Nesse sentido, Karel Kosik (1976, p.118) afirma que a obrade arte “exprime o mundo enquanto cria. Cria o mundoenquanto revela a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, enquanto a reali<strong>da</strong>dese exprime na obra de arte. Na obra de arte a reali<strong>da</strong>defala ao homem”. Habermas (1987, p.93), por sua vez,diz que a “ literatura faz proposições sobre as experiênciaspriva<strong>da</strong>s” e que sua linguagem “deve verbalizar o irrepetível”,além de restabelecer a “ intersubjetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> compreensão”.Desse modo, a literatura – como a história – conseguedesven<strong>da</strong>r e iluminar aspectos muitas vezes velados<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Isso quer dizer que, mesmo com linguagens eformas (artística e científica) distintas, ambas têm umafunção cognitiva fun<strong>da</strong>mental. Isso não significa que a representaçãoartística seja simples reprodução (ou reconfiguração)<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. Não se pode dizer que “o romancesimplesmente passa a refletir a reali<strong>da</strong>de tal qual ela seapresenta de imediato ou empiricamente” (Lukács, 1976,p.115), pois, como dito, enquanto a história ocupa-se doreal, a literatura liga-se ao possível.Guimarães Rosa (1969, p.3), atinando com a noção deque a literatura vai além <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de histórica concreta oua supera, podendo mesmo significar seu reverso, pontuouadequa<strong>da</strong>mente o assunto, asseverando: “a estória não querser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História.”Ademais, a ficção evidencia determina<strong>da</strong>s perspectivasparticulares, íntimas, imperceptíveis, que as ciênciassociais, buscando recriar a reali<strong>da</strong>de histórica ver<strong>da</strong>deira,não consegue nem pode captar.Há sutilezas e grandezas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social que aparecem naobra artística com uma vivaci<strong>da</strong>de que as ciências sociaisem geral apanham de fora ou não apanham [...] a literaturaabre o horizonte <strong>da</strong> cultura, <strong>da</strong> história, numa escalaque a ciência apenas esboça. Ocorre que a literatura li<strong>da</strong>principalmente com o singular, o privado, o subjetivado, osensível. Por isso torna vivi<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> que a ciência precisabuscar. Revela dimensões invisíveis, incógnitas, recônditas.Talvez a parte submersa do iceberg. (Ianni, 2006, p.52)Muitos estudiosos consideram válido observar que, setanto as análises históricas dos cientistas sociais quanto asnarrativas ficcionais dos artistas têm algo de ver<strong>da</strong>deiro ereal, têm também muito de imaginação e fabulação. Dessemodo,


124 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Ficção e ensaio 125[...] a obra de arte tem algum compromisso com a ver<strong>da</strong>de,na medi<strong>da</strong> em que ela inventa um mundo que possui algumaverossimilhança em si. O trabalho do cientista socialtem sempre um elemento de invenção, ficção, arte. Nelehá situações e climas, personagens e dilemas, trabalhos elutas, tensão e mistério. (ibidem, p.62)O fato de a obra de arte ter alguma relação com o reallevou Friedrich Engels (apud Lukács, 1968, p.42) a afirmarque aprendeu com a obra de Balzac muito mais sobre areali<strong>da</strong>de histórica <strong>da</strong> França na primeira metade do séculoXIX do que com os historiadores, economistas, estatísticosetc.Esta penetração do escritor nas profundi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> motivaçãosocial e humana, esta ruptura com a motivação superficiale aparente dos eventos (peculiar tanto aos ambientes“oficiais” como às impressões imediatas <strong>da</strong>s próprias massas),constituíam para Engels o necessário pressuposto deuma duradoura eficácia <strong>da</strong>s obras de arte. (ibidem, p.42)No sentido inverso, ou seja, quando a obra do cientistasocial contém elementos ficcionais e artísticos, AntonioGramsci (2000, p.13) chama a atenção para o fato deque a característica medular de O príncipe de Maquiavel éser “um livro ‘vivo’, no qual a ideologia e a política fundem-sena forma dramática do ‘mito’”, e não um “tratadosistemático”. Diferentemente <strong>da</strong>s formas como se “configuravaa ciência política” até aquela época (início do séculoXVI), Maquiavel[...] deu à sua concepção a forma <strong>da</strong> fantasia e <strong>da</strong> arte, pelaqual o elemento doutrinário e racional personifica-se emum condottiero, que representa plástica e “antropomorficamente”o símbolo <strong>da</strong> “vontade coletiva”. O processo deformação de uma determina<strong>da</strong> vontade coletiva, para umdeterminado fim político, é representado não através deinvestigações e classificações pe<strong>da</strong>ntes e princípios e critériosde um método de ação, mas como quali<strong>da</strong>des, traçoscaracterísticos, deveres, necessi<strong>da</strong>des de uma pessoa concreta,o que põe em movimento a fantasia artística de quemse quer convencer e dá uma forma mais concreta às paixõespolíticas [...] depois de ter representado o condottiero ideal,Maquiavel – num trecho de grande eficácia artística –invoca o condottiero real que o personifique historicamente:esta invocação apaixona<strong>da</strong> reflete-se em todo o livro,conferindo-lhe precisamente o caráter dramático.Para outros pensadores, como o historiador norte-americanoHayden White (1995, p.13), há um forte componentefictício e artístico evidenciando a relação promíscuaentre literatura e história nas reconstruções históricas.Para outros, como Habermas (1990, p.190), a literaturapertence a um domínio autônomo. Lukács, por sua vez,sempre alertou para as peculiari<strong>da</strong>des diferenciadoras <strong>da</strong>literatura e <strong>da</strong>s ciências sociais e para as relações íntimas einseparáveis <strong>da</strong> forma e do conteúdo – lembrou, inclusive,que, em arte, quando se tem “algo importante a dizer”, énecessário que se encontre a “ forma apropria<strong>da</strong>” para fazêlo(Lukács, 1969, p.181).No que se refere à relação entre literatura e ensaio,Adorno (2003, p.18) aponta a autonomia desses dois campos,na forma e no conteúdo; o ensaio diferencia-se <strong>da</strong>arte “tanto por seu meio específico, os conceitos, quantopor sua pretensão à ver<strong>da</strong>de desprovi<strong>da</strong> de aparência estética”.Leandro Konder (2005, p.44), na mesma direção,afirma que o terreno do ensaio não é “o <strong>da</strong> ficção nem odo primado <strong>da</strong> imaginação criadora”; embora assimile “algo<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de de expressão apreendi<strong>da</strong> na arte – seu programaé de natureza científica”.Alguns dos equívocos derivados do nivelamento entreo ensaio e o gênero artístico-literário acabam por reduzira literatura a uma repetição direta e mecânica domundo real, o que pode ocorrer, comumente, pela tentativaconsciente ou inconsciente de justificar uma tese, negligenciando-sea essência artística <strong>da</strong> obra.Partindo dessas distinções entre literatura e históriaou entre arte e ciência, entendemos ser problemática acaracterização de Os sertões como literatura e de Grande


126 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Ficção e ensaio 127sertão: vere<strong>da</strong>s como ensaio ou estudo histórico. A existênciade similitudes ou elementos comuns entre a ficçãoe a reali<strong>da</strong>de, entre a compreensão e a invenção não permitea inversão <strong>da</strong>s peculiari<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s duas obras. Naturalmente,isso não quer dizer que consideramos que as produçõesartísticas fixam-se ou fixavam-se em um únicogênero ou que haja gênero puro. Apenas quer-se entenderquais são as características preponderantes em ca<strong>da</strong> umdos livros em discussão que permitem associá-los, principalmente,a um ou outro campo.Antonio Candido (1978, p.123), há meio século, levantoue analisou de forma adequa<strong>da</strong> as diferenças fun<strong>da</strong>mentaisentre o livro de Euclides <strong>da</strong> Cunha e o de GuimarãesRosa:Há em Grande Sertão: Vere<strong>da</strong>s, como n‘Os Sertões, três elementosestruturais que apóiam a composição: a terra, ohomem, a luta. Uma obsessiva presença física do meio; umasocie<strong>da</strong>de cuja pauta e destino dependem dele; como resultadoo conflito entre os homens. Mas a analogia pára aí;não só porque a atitude euclidiana é constatar para explicar,e a de Guimarães Rosa inventar para sugerir, como porque a marcha de Euclides é lógica e sucessiva, enquanto adele é uma trança constante dos três elementos, refugindoa qualquer naturalismo e levando, não à solução, mas àsuspensão que marca a ver<strong>da</strong>deira obra de arte, e permite asua ressonância na imaginação e na sensibili<strong>da</strong>de.ReferênciasADORNO, Theodor. W. O ensaio como forma. In: . Notas deliteratura. Trad. Jorge de Almei<strong>da</strong>. São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong>des;Ed. 34, 2003. p.15-45.ANDRADE, Olímpio de Souza. História e interpretação de Os sertões.4.ed. rev. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002.ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar. Os sertões. In: . Teoria,crítica e história literária. Seleção e apresentação de Alfredo Bosi.São Paulo: Edusp, 1978. p.219-53.BERNUCCI, Leopoldo. Pressupostos historiográficos para a leiturade Os sertões. Revista USP, São Paulo, n.54, p.6-15, jul.-ago. 2002.BOLLE, Willi. grande sertão.br. São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong>des; Ed. 34,2004.BOSI, Alfredo. Canudos não se rendeu. In: . Literatura e resistência.São Paulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 2002. p.209-20.. Tese e an-CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos. In:títese. 3.ed. São Paulo: Nacional, 1978. p.119-39.. Euclides <strong>da</strong> Cunha, sociólogo. In: . Textos de intervenção.São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong>des. Ed. 34, 2002. p.174-82.CARPEAUX, Otto Maria. Canudos como romance histórico. OEstado de S.Paulo, São Paulo, 29.11.1958. Suplemento Literário, p.4.COUTINHO, Afrânio. Os sertões, obra de ficção. In: . Conceitode literatura brasileira. Petrópolis: Vozes, 1981. p.81-6.COUTINHO, Eduardo. (Org.) Guimarães Rosa. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1983. (Col. Fortuna crítica, 6)CUNHA, Euclides <strong>da</strong>. Carta a José Veríssimo. In: . Obra <strong>completa</strong>.Rio de Janeiro: José Aguilar, 1966. v.2, p.620-1.. Os sertões. Ed. crítica de W. N. Galvão. São Paulo: Brasiliense;Secretaria de Estado <strong>da</strong> Cultura, 1985.FACIOLI, Valentim. Euclides <strong>da</strong> Cunha: consórcio de ciência earte (Canudos: o sertão em delírio). In: BRAIT, Beth. (Org.) Osertão e os sertões. São Paulo: Arte e Ciências, 1998. p.35-59.FACÓ, Rui. O romance do Sr. Guimarães Rosa e o problema <strong>da</strong>terra no Brasil. Estudos Sociais, Rio de Janeiro, n.2, p.185-9, jul./ago. 1958.FERNANDES, Florestan. Desenvolvimento histórico-social <strong>da</strong>sociologia no Brasil. In: . A sociologia no Brasil. Petrópolis:Vozes, 1977. p.25-49.FREYRE, Gilberto. Perfil de Euclides e outros perfis. Rio de Janeiro:José Olympio, 1944.GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo: Perspectiva,1972.. De sertões e jagunços. In: . Saco de gatos: ensaios críticos.São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong>des, 1976. p.65-85.GRAMSCI, Antonio. Maquiavel: notas sobre o Estado e a política.Trad. Carlos Nelson Coutinho; Luiz Sérgio Henriques e Marco


128 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Ficção e ensaio 129Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. (Cadernosdo Cárcere, v.3)HABERMAS, Jürgen. Progresso técnico e mundo social <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.In: . Técnicas e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 1987.p.93-106.. Discurso filosófico <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. Lisboa: Dom Quixote,1990.HOBSBAWM, Eric. Sobre história. Trad. Cid Knipel Moreira. SãoPaulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 1998.IANNI, Octavio. Ent<strong>revista</strong>. In: BASTOS, Elide Rugai et al. (Org.)Conversas com sociólogos. São Paulo: Ed. 34, 2006. p.49-69.KONDER, Leandr. As artes <strong>da</strong> palavra. São Paulo: Boitempo, 2005.KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 2.ed. Trad. Célia Neves eAlderico Toríbio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. 2.ed. São Paulo:Pioneira, 1969.LIMA, Luiz Costa. Os sertões: história e romance. In: . História.Ficção. Literatura. São Paulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 2006. p.373-86.LUKÁCS, Georg. Marxismo e teoria <strong>da</strong> literatura. Trad. Carlos NelsonCoutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.. Ent<strong>revista</strong>. In: ABENDROTH, Wolfgang; HOLZ, HansHeinz; KOFLER, Leo. (Org.) Conversando com Lukács. Trad. deGiseh Vianna Konder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.. Introdução a uma estética marxista. 2.ed. Trad. Carlos NelsonCoutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1970.. La novela histórica. Trad. Manuel Sacristán. Barcelona:Grijalbo, 1976.OLIVEIRA, Franklin de. Euclides <strong>da</strong> Cunha. In: COUTINHO,Afrânio. (Org.) A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: São José, 1959.v.3, tomo 1, p.291-307.. Euclydes: a espa<strong>da</strong> e a letra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Trilhas no Grande sertão. In: .Augusto dos Anjos e outros ensaios. Rio de Janeiro: José Olympio,1959. p.153-241.RIBEIRO, Gilvan. O alegórico em Guimarães Rosa. In: COUTI-NHO, Carlos Nelson. (Org.) Realismo e anti-realismo na literaturabrasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. p.95-104.RONCARI, Luiz. O Brasil de Rosa. São Paulo: Editora Unesp/Fapesp, 2004.ROSA, João Guimarães. Grande sertão: vere<strong>da</strong>s. Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1956.. Aletria e hermenêutica. In: . Tutaméia: terceiras estórias.3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. p.3-12.SEVCENKO, Nicolau. Euclides <strong>da</strong> Cunha e o círculo dos sábios. In:. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural naPrimeira República. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.130-60.SODRÉ, Nelson Wernek. História <strong>da</strong> literatura brasileira: seus fun<strong>da</strong>mentoseconômicos. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.VASCONCELOS, Sandra Guardini T. Homens provisórios,coronelismo e jagunçagem em Grande sertão: vere<strong>da</strong>s. Scripta, Revistado Programa de Pós-graduação em Letras e do Centro de EstudosLuso-afro-brasileiros <strong>da</strong> PUC Minas. Ed. especial – 2. SeminárioInternacional Guimarães Rosa – Rotas e roteiros, Belo Horizonte,v.5, n.10, p.321-33, 2002.VENTURA, Roberto. Euclides <strong>da</strong> Cunha e Os sertões. D. O. Leitura.São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, ano 20, n.9, p.18-26,set. 2002.VERÍSSIMO, José. Campanha de Canudos. In: . Estudos deliteratura brasileira. São Paulo: Edusp; Itatiaia, 1977. p.45-53.WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do séculoXIX. Trad. José Laurêncio de Melo. São Paulo: Edusp, 1995.


131O não-lugar de Machado, mestiço,na crítica naturalista*Joana Luíza Muylaert de Araújo*** Este artigo é uma produçãoinicial <strong>da</strong> pesquisa sobre acrítica brasileira moderna econtemporânea, apoia<strong>da</strong> peloCNPq com uma bolsa deProdutivi<strong>da</strong>de em Pesquisa.** Universi<strong>da</strong>de Federal deUberlândia (UFU).RESUMO: A polêmica em torno <strong>da</strong> obra de Machado de Assis,envolvendo alguns entre os principais críticos contemporâneosdo escritor, permanece vigorosa, se reconsiderarmos o que é ain<strong>da</strong>hoje interpretado como desacertos <strong>da</strong> crítica naturalista. Referênciacentral para o exercício <strong>da</strong> crítica literária no final doséculo XIX, o nacionalismo, no caso <strong>da</strong> obra de Machado, cujasingulari<strong>da</strong>de intrigava tanto seus admiradores como seusdesafetos, produziu os mais diversos e antagônicos juízos de valor.Desses supostos desencontros críticos é que pretendo tratar,reabrindo o debate, a partir <strong>da</strong>s novas articulações teóricas nocampo <strong>da</strong> crítica literária. Em outras palavras, proponho que seleiam os chamados equívocos críticos como paradoxos constitutivosde todo trabalho rigoroso de interpretação.PALAVRAS-CHAVE: Literatura e crítica, crítica naturalista, Machadode Assis.ABSTRACT: The polemics that surrounds Machado de Assis’sworks, involving some of the most important writers who alsolived in the 19 th century, remains pertinent, if we reconsiderwhat is to<strong>da</strong>y still interpreted as “errors” of the positivist criticism.In a few words, this essay attempts to discuss, through theperspective of contemporary theories about reading and reception,the concept of literary identity as a discursive construction.In order to achieve this aim, we propose that these sucherrors or misunderstandings should be considered as paradoxesthat constitute paradoxes inherent to the actual process of interpretation..KEYWORDS: Literature and criticism, positivist criticism, Machadode Assis.


132 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista 133O nacional e o universal na literatura brasileira:entre a cópia e o modelo“Pode-se hoje pairar nos cimos conquistados para todos,sem ser imitador, mas apenas homem de cultura, mostrando,já se vê, ca<strong>da</strong> um inteligência suficiente e trabalho eficaz.”(Sílvio Romero)Em face do que julgavam problemas <strong>da</strong> raça e dos trópicos,críticos e historiadores literários brasileiros, no finaldo século XIX, construíram, sobre a literatura nacional,imagens imobilizadoras de ressentimento e falta incontornáveis.Com essa percepção de si mesmos, não poderiamdeixar de sentir tudo o que se referisse às questões identitáriascomo realizações extremamente precárias, comomáscaras descola<strong>da</strong>s de um presumido rosto ver<strong>da</strong>deiro.O impasse, um mal de origem, fez-se, assim, presença incômo<strong>da</strong>,continuamente lembra<strong>da</strong>, repisa<strong>da</strong>, numa espéciede círculo vicioso, do qual os mais ruidosos intelectuaisse tornaram reféns.Em busca do marco zero de uma identi<strong>da</strong>de por suposiçãoain<strong>da</strong> in<strong>completa</strong>, ain<strong>da</strong> em formação, esses melancólicosintérpretes do Brasil voltavam seu olhar para umpassado feito de ruínas e um futuro de incertezas, na melhor<strong>da</strong>s hipóteses, um futuro utópico, sempre adiado, sempreinalcançável.Como uma velha história que se repete, todo processode construção e afirmação de identi<strong>da</strong>des implica muitasdívi<strong>da</strong>s, políticas e culturais, dívi<strong>da</strong>s que se perpetuaminsanáveis, em razoável medi<strong>da</strong>, pelo assentimento magoadodos devedores. Dívi<strong>da</strong> sempre rememora<strong>da</strong> nos escritosdos nossos críticos que, inseguros <strong>da</strong>s imagens coagula<strong>da</strong>sque desenharam a respeito <strong>da</strong> própria cultura, nãose deram conta <strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de e, em conseqüência, <strong>da</strong>provisorie<strong>da</strong>de de suas representações.Na ver<strong>da</strong>de, como se sabe, a construção do ser brasileirovem sendo elabora<strong>da</strong> desde os tempos <strong>da</strong> ocupação econquista <strong>da</strong>quilo que veio a constituir o território nacional.Primeiro com o trabalho de catequese do indígenaque, convertido em cristão-católico pelos padres portugueses,sofre uma primeira desapropriação. Destituído desua cultura, perde as referências que o identificam à suacomuni<strong>da</strong>de e está pronto para participar como personagemsecundário de uma história que não foi por ele inventa<strong>da</strong>.Primeiro convertido, depois escravizado e, por fim,confinado em terras incertamente demarca<strong>da</strong>s, o indígenavem progressivamente desaparecendo; trágico desfecho,confirma<strong>da</strong> a impossibili<strong>da</strong>de de sua incorporaçãodefinitiva à cultura ocidental.Nesse sentido, acredito que podemos mesmo afirmarque, em essência, a percepção dos intelectuais <strong>da</strong>rwinistasnão era muito diferente do olhar dos primeiros colonizadores,ao se confrontarem com os estranhos, incompreensíveisindígenas.Sílvio Romero dizia, condenando os românticos nacionais,que o índio não é o brasileiro e que, como raça inferior,estava inexoravelmente condenado a se extinguir noconfronto com as raças fortes. A posição assumi<strong>da</strong> pelocrítico foi, nesse caso, ain<strong>da</strong> mais radical: para o indígenanão havia nem a alternativa <strong>da</strong> conversão, já que, situadonum estágio muito inferior <strong>da</strong> cultura, jamais conseguiriaacompanhar o ritmo ca<strong>da</strong> vez mais acelerado <strong>da</strong> civilização.Como se vê, a perspectiva etnocêntrica justificou tantoa prática pre<strong>da</strong>tória e violenta dos primeiros colonizadoreseuropeus quanto a prática e o pensamento teórico <strong>da</strong>selites intelectuais brasileiras do século XIX, novos colonizadoresque reproduziram no interior <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de a experiência<strong>da</strong> colonização européia.O projeto dos intelectuais nacionais do final do séculoXIX – inserir o Brasil na tradição européia <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de– implicava, do mesmo modo, um processo de uniformização<strong>da</strong>s diferentes culturas de origem negra,indígena e mestiça. De fato, não é outro o desígnio de SílvioRomero ao afirmar a necessi<strong>da</strong>de, a urgência de se branqueara cultura brasileira. Branquear, ocidentalizar, afirmara hegemonia <strong>da</strong> cultura européia, esse é o pressuposto


134 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista 135básico <strong>da</strong> teoria romeriana <strong>da</strong> mestiçagem e, simultaneamente,o alvo, a meta final na construção <strong>da</strong> brasili<strong>da</strong>de.Ser brasileiro é o resultado último de um lento processode amalgamento <strong>da</strong>s culturas e <strong>da</strong>s raças que nos constituem,amalgamento que pressupõe a denegação <strong>da</strong>s diferenças,brasili<strong>da</strong>de, portanto, condena<strong>da</strong> a simulacro, imagemdistorci<strong>da</strong>, caricatura do europeu que lhe serviu de modelo.Ser brasileiro é ser, mais uma vez, na melhor <strong>da</strong>s hipóteses,um duplo, semelhante precariamente ao colonizador,superior na raça, superior na cultura.A teoria <strong>da</strong> mestiçagem, proposta por Sílvio Romero,assimila as diferenças culturais do outro desde, é claro,que ele se submeta a ocupar o lugar devido na hierarquiadetermina<strong>da</strong> pelo discurso hegemônico <strong>da</strong>s elites letra<strong>da</strong>sbrasileiras, discurso que reflete, por seu turno, o discursoeuropeu dominante. Dentro do discurso histórico europeu,os povos não-europeus, não-ocidentalizados <strong>da</strong>s ban<strong>da</strong>sde cá, só cabiam como povos bárbaros, sem lei, semDeus, sem costumes, sem história, povos que simplesmentenão eram na<strong>da</strong>, que, destituídos de ser, são o não-ser. Aesse tempo, refiro-me ao século XIX, a antropologia e aetnologia já haviam surgido – a criação <strong>da</strong> “consciênciaferi<strong>da</strong> européia”, no dizer de Silviano Santiago (1982,p.17) – para contar a história dos povos sem história, oumelhor, para descrever as incômo<strong>da</strong>s diferenças, emborasem uma real aceitação e compreensão delas. Na ver<strong>da</strong>de,etnólogos e antropólogos não sabiam bem o que fazer comesses homens diferentes, onde colocá-los, uma vez que omundo tão pequeno, tão reduzido ao horizonte ocidentalnão os comportava.Oscilar entre o discurso histórico tradicional que forneceuma interpretação etnocêntrica <strong>da</strong> cultura que nosexclui dessa mesma cultura e o discurso antropológico –que nos aceita como excentrici<strong>da</strong>de e por essa mesma razãonos exclui como outro – constituiu, na ver<strong>da</strong>de, um falsoimpasse vivido pelo intelectual brasileiro desde o século XIX.Sílvio Romero expressa esse dilema quando afirma aexistência de uma literatura brasileira sem originali<strong>da</strong>de eao referir-se ao homem brasileiro como produto inacabadodo cruzamento ain<strong>da</strong> em curso <strong>da</strong>s três raças.Sabe-se que a constituição sóli<strong>da</strong> e original do povoe <strong>da</strong> cultura brasileira dependia, segundo o escritor, <strong>da</strong>capaci<strong>da</strong>de desse povo de se inserir na cultura ocidentaleuropéia.Não há dúvi<strong>da</strong> de que Sílvio Romero acreditavana possibili<strong>da</strong>de de uma ver<strong>da</strong>deira interação entre asnações que, integra<strong>da</strong>s numa civilização universalista,cosmopolítica, não perderiam suas características singulares,seus “impulsos originais” (Romero, 1880, p.167).Mas esse projeto mal esconde a tendência à homogeneização<strong>da</strong>s diferenças. Duas afirmações do autor podem nos<strong>da</strong>r a chave para a compreensão do impasse e para umatão deseja<strong>da</strong> quanto impossível alternativa, são elas: a literaturabrasileira não é original, o homem brasileiro é umser incompleto.O corpo teórico utilizado pelo escritor condenava desaí<strong>da</strong> qualquer proposta de definição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de nacionalbrasileira. O que se apresentava diante de seus olhosera uma reali<strong>da</strong>de indeseja<strong>da</strong>: um povo mestiço, ain<strong>da</strong> numestágio inferior de desenvolvimento; uma literatura imitativa,servil, cópia mal feita <strong>da</strong> grande literatura européia.Só lhe restava, então, projetar para o futuro incerto a saí<strong>da</strong>utópica: o branqueamento <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> raça brasileira,a ocidentalização, a cópia perfeita, no final <strong>da</strong>s contas,também cópia. Cópia imperfeita ou cópia perfeita, oimpasse permanece.Sílvio Romero propôs uma saí<strong>da</strong> que o levou ao pontode parti<strong>da</strong>. Foi um erro de perspectiva que o impediu deavaliar adequa<strong>da</strong>mente nossos melhores escritores, aquelesque com sua obra poderiam formar um conjunto representativo<strong>da</strong> literatura brasileira. Joaquim de SousaAndrade – o Sousândrade –, hoje já resgatado do esquecimentopelos irmãos Campos, é um exemplo de poeta importante,mencionado apenas de passagem na História <strong>da</strong>literatura brasileira, por Sílvio Romero. Especialmente naanálise que elaborou sobre a obra de Machado de Assis,fica muito evidente a sua intransigência em relação ao


136 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista 1371Para um estudo maisespecífico dessa questão,consultar João Adolfo Hansen(1989).método a priori proposto, e, no caso em questão, a arbitrarie<strong>da</strong>dede um juízo à mercê dos humores de circunstância.Embora interessante em muitos aspectos, o “critérioétnico-popular” (Romero, 1949, v.I, p.39), formulado pelocrítico, limitou, numa camisa-de-força pretensamentecientífica, sua amplitude de visão, comprometendo o melhorde seu exercício crítico. Sílvio Romero não soube, ounão pôde, relativizar as palavras, muitas vezes definitivase autoritárias, com que julgou autores, obras e períodosliterários, como foi o caso do romantismo no Brasil. Tornouabsoluto o método e perdeu de vista a singulari<strong>da</strong>dedo objeto – a obra literária. Mas ain<strong>da</strong> aqui é prudentesalientar que restrições são feitas ao crítico autoritário queele foi, não ao crítico juiz, porque todos sabemos que nenhumacrítica está isenta de juízos de valor.É certo que a perspectiva de hoje permite perceber oque, no seu tempo, Sílvio Romero não poderia perceber; écerto ain<strong>da</strong>, conforme adverte Antonio Candido (1978,p. XXII), na introdução a uma seleção de textos do escritor,que não devemos fazer “retroagir os nossos conceitosatuais” se pretendemos evitar juízos de valor absolutos.Afinal, em relação a seu tempo, Sílvio Romero foi um progressista,pois as idéias que abraçou e defendeu representavamum avanço considerável. A “ciência” era a últimapalavra. Só que essa ciência já nasceu comprometi<strong>da</strong> coma ideologia etnocêntrica européia. O etnocentrismo, comose sabe, estava na base <strong>da</strong>s teorias evolucionistas do finaldo século XIX, condenando, de antemão, todo estudo comparativo<strong>da</strong>s culturas, hierarquizando-as em mais ou menosevoluí<strong>da</strong>s, mais ou menos universais, e assim por diante.Comparando a literatura brasileira com a européia,segundo essa concepção, Sílvio Romero teve olhos apenaspara o que havia de simulacro nas nossas produções literárias.Imobilizado na armadilha dos critérios de atraso e originali<strong>da</strong>de,acabou cometendo o pecado que acusava namaioria dos escritores brasileiros. Diante <strong>da</strong>s questões –há uma literatura brasileira? É ela original? – as soluçõespropostas retomavam sempre a mesma toa<strong>da</strong>: nossos escritoresnão são originais, nossos escritores estão sempreatrasados em relação ao que se produz na metrópole. Aofinal <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong> História <strong>da</strong> literatura brasileira, fica parao leitor a impressão de que as obras nacionais constituemuma galeria infindável e monótona de cópias, mal realiza<strong>da</strong>s,<strong>da</strong>s obras européias.Teria sido necessário reverter a questão <strong>da</strong>s fontes einfluências para que o problema <strong>da</strong> originali<strong>da</strong>de, do atrasoe <strong>da</strong> dependência cultural manifestasse aspectos que ospreconceitos etnocêntricos não permitiam revelar (cf. Santiago,1978; 1982).Mas isso é coisa que, como se sabe, Sílvio Romeronão poderia realizar, comprometido que estava com as referênciasteóricas de um método que negava, por princípio,à nossa cultura e à nossa literatura o direito de ser elaprópria, de possuir uma identi<strong>da</strong>de, identi<strong>da</strong>de dinâmica,bem entendido, em constante interação com outras culturase, portanto, em processo contínuo de construção.Embora enre<strong>da</strong>do nas malhas <strong>da</strong> crítica por ele mesmopostula<strong>da</strong>, Sílvio Romero encontrou algumas brechaspelas quais, achava ele, poderia contornar o incômodoantagonismo entre nacionalismo e cosmopolitismo na culturae na literatura. A começar por Gregório de Mattos aquem, aliás, Sílvio Romero destaca como o genuíno iniciador<strong>da</strong> nossa poesia por ter sido o primeiro a expressar, nasua obra, o sentimento popular nacional. Mas não é emrazão dos aspectos exclusivamente nacionais que uma obrase legitima, menos ain<strong>da</strong> se pode falar de uma literaturanacional no tempo de Gregório de Matos (cf. Jobim,1992). 1 No entanto, para sermos justos com o escritor,digamos que mesmo o seu nacionalismo não era tão estreitoconforme pode parecer em algumas passagens <strong>da</strong>sua crítica, como no caso dos estudos sobre o folclore e asrelações com a cultura erudita. Ao contrário, insistia sempreno fato de que a integração de uma nação no processocivilizatório não implicava a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>soberania. Impedido, no entanto, de prosseguir nessa trilha,voltava atrás refugiando-se no seu critério étnico-po-


138 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista 139pular. A precária identi<strong>da</strong>de nacional, sob constante ameaçade desintegração, assim cristalizava-se num preconceitoredutor e excludente.Em síntese, seu pensamento oscilava, aprisionado,entre a defesa do nacional-popular e a defesa do cosmopolitismo.No primeiro caso, as produções anônimas do povoconstituiriam a marca distinta e original <strong>da</strong> nossa literaturae, <strong>da</strong>do o seu regionalismo, não poderiam atingir umuniverso mais amplo nem por ele ser atingi<strong>da</strong>s. Reproduzse,assim, no interior do sistema literário brasileiro, o mitodo modelo original: modelar é o folclore, sendo a literaturaerudita brasileira uma imitação, sempre em desacordo,sempre tardia, <strong>da</strong> literatura européia. No segundo caso,trata-se, na ver<strong>da</strong>de, embora Sílvio Romero pareça afirmaro contrário, de uma uniformização <strong>da</strong>s culturas segundoo padrão ocidental.O antagonismo entre cultura popular e erudita refletiaas desigual<strong>da</strong>des e a distância, praticamente incontornáveis,entre as classes populares iletra<strong>da</strong>s e as elites intelectuais.Do mesmo modo, cultura universal cosmopolita ecultura nacional se polarizavam, esta última na forma deuma produção folclórica, anônima e invisível aos olhos <strong>da</strong>literatura nacional consagra<strong>da</strong>. Embora genuína, autêntica,a cultura literária popular se achava à margem, esqueci<strong>da</strong>e condena<strong>da</strong> ao desaparecimento, o que Silvio lamentavamas para o que parecia não ver alternativa. Comorefazer o percurso <strong>da</strong>s grandes literaturas, com suas grandesépicas, nasci<strong>da</strong>s dos cantos dos rapsodos populares?Se nascemos em plena moderni<strong>da</strong>de, fim de uma tradiçãopoética e narrativa para sempre irrecuperável, eis umapergunta que talvez o crítico jamais devesse ter feito.Pensar formas de tentar diminuir a distância entre essespólos extremos foi, pode-se dizer, a razão de ser <strong>da</strong> críticade Sílvio Romero, só que as formas de pensar do escritorestavam muito mais afina<strong>da</strong>s com a cultura dominanteeuropéia do que com as culturas populares e regionais ondeele foi buscar as fontes do ser brasileiro. Resultado: ou nãoéramos na<strong>da</strong> senão simulacros, ou éramos populares e serpopular, no nosso caso, significava ser um outro tão diferentedo homem culto europeu que a ameaça de desaparecimentoprogressivo era um fato concreto iminente. Daía urgência de europeizar, ocidentalizar o povo brasileiro, oque não supunha, necessariamente, descaracterização,conforme pensava Sílvio Romero quando dizia que é possívelser homem de cultura sem ser imitador.O desejo de manter intacto o “espírito popular” e, simultaneamente,inseri-lo num conjunto universal não seriainviável desde que o povo evoluísse, segundo leis internas,bem entendido, sem a influência do estrangeiro que, porse encontrar no topo dessa evolução, seria, inevitavelmente,um fator de desagregação. Tudo se dá como se a históriade todos os povos estivesse destina<strong>da</strong> a realizar o mesmopercurso, a atingir o mesmo alvo. A ca<strong>da</strong> povo, porisso mesmo, o direito de evoluir de acordo com o seu própriotempo, seu próprio ritmo: essa era a reivindicação doescritor. Seria possível superar o falso dilema entre universali<strong>da</strong>dee identi<strong>da</strong>de nacional? Seria viável o diálogo <strong>da</strong>sdiferenças que superasse, ao mesmo tempo, o cosmopolitismohomogeneizador e os nacionalismos xenófobos que,em essência, expressam o mesmo desejo desmedido deidenti<strong>da</strong>de absoluta?O caso Machado de Assis:aporias <strong>da</strong> crítica de Sílvio Romero“O patriotismo é um sentimento anacrônico: o tempo éde um vasto desenvolvimento cosmopolítico.”(Silvio Romero)Era com afirmações incisivas como essa que SílvioRomero sustentava sua convicção de que a velha e pobretese romântica do nacionalismo já não fazia sentido diante<strong>da</strong> então ca<strong>da</strong> vez mais “viva consciência <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>deintelectual <strong>da</strong> civilização européia” (Romero, 1880, p.154).O grande fato contemporâneo era o sentimento cosmopolítico,disseminado em todos os povos europeus, rea-


140 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista 141firmava o escritor, em aberta atitude de quem reconhece elegitima esse sentimento como resultado inelutável dodesenvolvimento dos novos métodos histórico-comparativosaplicados nas ciências em geral e na filosofia; a partir,é claro, <strong>da</strong> perspectiva de um intelectual brasileiro <strong>da</strong>vira<strong>da</strong> do século, marcado pelas novas correntes evolucionistase cientificistas de pensamento.O que, porém, parece ruptura ou descontinui<strong>da</strong>de,em relação a um passado ain<strong>da</strong> tão próximo, pode, deoutro modo, revelar comprometimentos que, de tão enraizadosno mesmo romantismo, se apagam no calor <strong>da</strong>spolêmicas. Se o patriotismo romântico era um sentimentolimitado e excludente, o cosmopolitismo contemporâneodo século XIX, por sua vez, não passava de uma aspiraçãoà uniformização <strong>da</strong>s diferentes culturas. A universali<strong>da</strong>detão deseja<strong>da</strong> era, do mesmo modo, uma utopiaetnocêntrica. A descoberta de que havia no planeta outrospovos tão distintos dos europeus foi, como se sabe,um elemento a mais para se reafirmar a identi<strong>da</strong>de européia,modelo ideal no qual deveriam se espelhar as outras,diversas, estranhas culturas do lado de cá do oceano. E aciência do final do século XIX foi um forte instrumentopolítico e ideológico em defesa desta identi<strong>da</strong>de. Comparavam-seas línguas, comparavam-se as raças, comparavam-seas culturas para hierarquizar, classificar e centralizar.Ser cosmopolita significava ser europeu ou parecerum europeu.Os românticos trataram a questão do nacionalismocomo se fosse de natureza racial. Sílvio Romero abordou aquestão <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de nacional do mesmo modo, destacando,contudo, a importância do mestiço para a formaçãode uma cultura brasileira original e autônoma. Ajustadoaos parâmetros que sedimentam a idéia de formação,o autor buscava o “telos brasileiro”, o resultado final deuma cultura em gestação. E se dessa gestação resultasseum filho bastardo, imagem deforma<strong>da</strong> de seu modelo?Entre o passado indígena recusado e o futuro mestiço incerto,transitava o crítico, cético e melancólico, com rarosmomentos de euforia, como atestam seus escritos contraditórios,por ele mesmo assumidos (cf. Romero, 1914).Analisando, desse prisma, os problemas culturais, comoé que fica a questão do povo brasileiro, mistura recentíssimade raças diversas, sem uma existência nacional fortementedefini<strong>da</strong>, em relação ao conjunto de nações jáconsoli<strong>da</strong><strong>da</strong>s e inseri<strong>da</strong>s nesta uni<strong>da</strong>de maior <strong>da</strong> civilizaçãoeuropéia?Sílvio Romero (1880, p.155) respondeu a essa perguntadizendo que seremos tanto mais nacionalistas quanto menosprocurarmos sê-lo. Referindo-se mais uma vez ao estudo<strong>da</strong> literatura contemporânea, disse o autor que essa deveriater dupla tendência, duas direções fun<strong>da</strong>mentais: o criticismoe o americanismo. Como homem de seu tempo, o escritoramericano – e portanto o brasileiro – “deve atender ao quevai de profundo e vasto pelo Velho Mundo”; como homemde seu continente, deve incorporar nas suas produções literáriasos ideais democráticos americanos de humani<strong>da</strong>de,universali<strong>da</strong>de, civilização e liber<strong>da</strong>de (ibidem, p.159-60).Seguir essas duas direções básicas não excluiria, noentanto, a existência <strong>da</strong>s nações, ca<strong>da</strong> qual bem defini<strong>da</strong>e individualiza<strong>da</strong>. Ao contrário, o cosmopolitismo implicava,na visão de Sílvio Romero, a coexistência de povosdiferentes, habitando territórios diferentes, expressandoseem línguas diferentes. A civilização, diz o autor, emboraseja uma só e cosmopolítica, deve acolher os impulsos originaisdos povos independentes (ibidem, p.167).Como método para se pensar os passos em direção àsíntese deseja<strong>da</strong>, Sílvio Romero propõe o que denomina“critério étnico-popular”, cujo papel no processo de definição<strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de literária e cultural brasileira, segundoele, seria decisivo. Uma vez que a originali<strong>da</strong>de deto<strong>da</strong> nação moderna surgiria <strong>da</strong> mistura de elementos diversos,a nação brasileira só poderá representar um papelhistórico importante no momento em que, tendo se apropriadodos legados culturais <strong>da</strong>s nações que a constituíram,delas se afastar, formando “um tipo à parte, uma individuali<strong>da</strong>dedistinta” (ibidem, p.167).


142 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista 143O autor acreditava que o processo de diferenciaçãonacional no Brasil era ain<strong>da</strong> muito incipiente e debitavaesse atraso ao que considerava os dois maiores agentes detransformação: a natureza e a mistura de raças. Como ambosestavam ain<strong>da</strong> em processo, qualquer resultado finalseria mera projeção. De todo modo, a perspectiva deterministaprescrevia o olhar retrospectivo sobre o passadocultural, supondo-se possível, com esse gesto, determinaros primeiros passos <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong>de de uma nação. Sendoa literatura uma <strong>da</strong>s expressões fun<strong>da</strong>mentais de umpovo, um “sintoma de seu progresso ou decadência” (ibidem,p.168), é a ela que o autor direciona o olhar à procura– que insiste, que se renova a ca<strong>da</strong> texto – de um rostosingularmente brasileiro.Depois de criticar os trabalhos anteriores relativos ànossa literatura “pela ausência de um critério positivo”,pela falta “de uma idéia dirigente e sistemática” (ibidem,p.169), Sílvio Romero expõe, em breves linhas, a metodologianaturalista/evolucionista que ele próprio aplicariaem sua futura História <strong>da</strong> literatura brasileira.Com exceção, é claro, <strong>da</strong> poesia e dos contos populares,do folclore nacional, enfim, Sílvio Romero acusa, emquase todos os movimentos intelectuais, “o caráter de importação”(ibidem, p.173) marcante, de onde a necessi<strong>da</strong>dede estu<strong>da</strong>r a literatura brasileira privilegiando a relaçãocom as literaturas que a influenciaram até então. O críticonão vê, de fato, nenhum movimento autônomo, autenticamentenacional nas letras brasileiras, salvo uma ououtra exceção: Gregório de Mattos, Gonzaga, Santa RitaDurão, Martins Pena, Álvares de Azevedo e Tobias Barretosão escritores de valor, segundo ele, por representarem,em suas obras, “um princípio qualquer de diferenciaçãonacional e de incentivo de progresso” (ibidem, p.190).Com Gregório de Mattos “começa a consciência nacionala despontar”; Gonzaga “dá um cunho pessoal aovelho lirismo português”; Durão “nos faz aproximar <strong>da</strong>natureza, desprezando os moldes clássicos, e desperta aconsciência brasileira, lembrando-nos que nós não éramossó descendentes de portugueses, mas que outras raças,como a dos caboclos, nos tocavam de perto”; Martins Pena,com seu teatro, satiriza a burguesia de herança portuguesa,dos tempos <strong>da</strong> Regência e do segundo reinado; Álvaresde Azevedo, com sua poesia marca<strong>da</strong> sobretudo pelo romantismoinglês, insere a literatura brasileira nas tendênciascosmopolitas modernas; e, finalmente, Tobias Barreto,que Sílvio Romero elege como a síntese de todos os outros,grande como poeta e como crítico, contribuindo decisivamentepara colocar a nação brasileira em consonânciacom as correntes de pensamento mais avança<strong>da</strong>s <strong>da</strong>época, principalmente as de origem germânica (Romero,1880, p.190-1).A que lugar estaria destina<strong>da</strong> a obra de Machado deAssis na análise crítica realiza<strong>da</strong> por Sílvio Romero, segundoos novos métodos <strong>da</strong>s ciências naturais que, a<strong>da</strong>ptadosà literatura brasileira, resultaram no novo “critérioétnico-popular”? A aplicação desse conceito a uma obra,por um lado, vincula<strong>da</strong> à tradição literária européia e, poroutro, profun<strong>da</strong>mente enraiza<strong>da</strong> no contexto de seu paísresultou, conforme se sabe, num grande equívoco. O “critérionacional ou étnico-popular” empregado em obras quenão fizessem parte do folclore nacional, <strong>da</strong>s produçõesanônimas do povo, funcionou como uma ver<strong>da</strong>deira camisa-de-força.Respal<strong>da</strong>do nesse conceito, o crítico enquadrou,excluiu e incluiu, valorizou e desqualificou escritorese obras <strong>da</strong> literatura brasileira, exercendo umacrítica autoritária e impressionista, muito distante <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>deque supostamente lhe asseguraria a ciênciatão deseja<strong>da</strong> e enalteci<strong>da</strong> por ele em seus escritos.Passemos, então, ao estudo sobre Machado que, naépoca, tanta controvérsia gerou, embora, como se sabe,sem a participação do autor de Quincas Borba, que se manteveà distância <strong>da</strong>s discussões.A polêmica entre Machado de Assis e Sílvio Romeroteve início com um artigo do escritor fluminense, publicadona Revista Brasileira em 1879, onde este afirmara que ocrítico sergipano havia superestimado a importância do


144 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista 1452Como o leitor teráidentificado, aproprio-me,nessa passagem, do título doconhecido texto de RobertoSchwarz (1977).movimento literário do Recife, chefiado por Tobias Barretoe Castro Alves.No artigo intitulado “A nova geração”, o autor de DomCasmurro in<strong>da</strong>ga se haveria uma “poesia nova” e, em casoafirmativo, qual seria o seu fun<strong>da</strong>mento teórico. Depoisde analisar alguns poetas representantes mais significativos<strong>da</strong> “nova tendência”, concluiu Machado que esses nãoformavam um grupo compacto. Conjugação de ideal políticoe ideal poético, aspiração social ao reinado <strong>da</strong> justiçae <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, tendência acentua<strong>da</strong> ao realismo resultandonuma poesia de cunho cientificista e didático não constituíam,a seu ver, elementos suficientemente coerentes earticulados num corpo de doutrina literária. Faltava aonosso movimento poético uma definição estética, uma “feiçãoassaz característica e definitiva” (Assis, 1962a, p.813).Sendo a direção de qualquer movimento artístico determina<strong>da</strong>pelas condições do meio, pelo “influxo externo”,e não havendo “por ora no nosso ambiente a forçanecessária à invenção de doutrinas novas” (ibidem, p.813),na<strong>da</strong> mais compreensível que essa ausência de um conjuntoarticulado de escritores e obras partilhando idéias e procedimentoscomuns. Concluindo, “há uma tendência nova,oriun<strong>da</strong> do fastio deixado pelo abuso do subjetivismo e dodesenvolvimento <strong>da</strong>s modernas teorias científicas” (ibidem,p.815), mas ain<strong>da</strong> não perfeitamente caracteriza<strong>da</strong>. Tratava-seapenas de um movimento em vias de se afirmar.Porque pensava desse modo, Machado de Assis sópoderia mesmo discor<strong>da</strong>r de Sílvio Romero ao aquilatar ovalor <strong>da</strong> conheci<strong>da</strong> Escola de Recife, que não teria tido,segundo ele, a expressão e a importância atribuí<strong>da</strong> pelocrítico sergipano.Em outro conhecido artigo – “Instinto de nacionali<strong>da</strong>de”–, Machado já havia assinalado nos escritores brasileiros<strong>da</strong> época um esforço geral no sentido de construiruma autonomia literária e cultural, de determinar um caráterliterário genuinamente nacional.Com astúcia e modera<strong>da</strong> ironia, Machado de Assis(1962b, p.803) manifestou-se contrário à opinião correntede que o espírito nacional residiria nas obras que tratamde “assunto local”, doutrina, diz ele, que, “a ser exata, limitariamuito os cabe<strong>da</strong>is <strong>da</strong> nossa literatura”.Com isso não quis o autor dizer que a literatura nãodevesse se nutrir de assuntos regionais ou nacionais, mesmoporque não se trata no caso de uma escolha ou possibili<strong>da</strong>de:to<strong>da</strong> escrita parte de algum lugar, num tempo presentea se determinar. Além disso, é inevitável para qualquerescritor – à margem ou no centro <strong>da</strong>s instâncias delegitimação – a passagem pelo crivo <strong>da</strong>s referências universais.Evidenciando o problema ver<strong>da</strong>deiramente empauta – o do reconhecimento do escritor pelos seus pares,<strong>da</strong>qui e do outro lado do mundo, e não propriamente o <strong>da</strong>representativi<strong>da</strong>de nacional, Machado desloca o velhoimpasse romântico entre o local e o universal. Parece quea ele não interessava muito a questão que tanto afligiaseus contemporâneos. Como se situar no tempo e não noespaço? Como ser lido e aceito senão incorporando o que,segundo Romero e tantos outros, era impróprio, inadequado,imitação de idéias fora do lugar? 2 Essas, e não a <strong>da</strong>brasili<strong>da</strong>de literária, parecem ser as perguntas do escritor.Em outras palavras, não bastava restringir-se à pintura e àdescrição <strong>da</strong> “cor local” <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> brasileira em seus diferentesaspectos e situações, <strong>da</strong> natureza e dos costumes. Cumpriair mais além: “O que se deve exigir do escritor antesde tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homemdo seu tempo e do seu país, ain<strong>da</strong> quanto trate de assuntosremotos no tempo e no espaço” (ibidem, p.804).E é exatamente o contrário desse sentimento íntimo,um nacionalismo de facha<strong>da</strong>, que Machado aponta e criticano romance e na poesia de então: “Um poeta não énacional só porque insere nos seus versos muitos nomesde flores ou aves do país, o que pode <strong>da</strong>r uma nacionali<strong>da</strong>dede vocabulário e na<strong>da</strong> mais” (ibidem, p.807).Com uma visão perspicaz do problema, Machado acabouprovocando uma polêmica, mesmo sem a intenção depolemizar, porque tocou no cerne de uma questão sensívelaos críticos e escritores brasileiros, na maioria reféns do


146 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista 147velho dilema do atraso, do descompasso, diante do que iade mais avançado na literatura pelo mundo afora.Ao contrário do autor de “Instinto de nacionali<strong>da</strong>de”,Sílvio Romero, como se sabe, foi um polemista contumaz.Partiu então em defesa de suas idéias e escreveuum ensaio chamado “Machado de Assis: estudo comparativo<strong>da</strong> literatura brasileira”, lançando-se à análise <strong>da</strong> obramachadiana, conforme ele próprio afirma, “à luz de seumeio social, <strong>da</strong> influência de sua educação, de sua psicologia,de sua hereditarie<strong>da</strong>de não só física como étnica”(Romero, 1936, p.18).Começou esse estudo analisando as condições de vi<strong>da</strong>pessoal de Machado como um dos fatores determinantes<strong>da</strong> futura obra. Sobre esse critério fun<strong>da</strong>mentou a divisãoem <strong>da</strong>tas marcantes <strong>da</strong> trajetória do pensamento do escritor– 1859, 1869, 1879 –, apontando aí uma fase inicialtotalmente insignificante, uma fase de transição ain<strong>da</strong>pouco expressiva e, finalmente, a fase posterior a 1879, agrande fase <strong>da</strong> maturi<strong>da</strong>de.O julgamento do crítico acerca de Machado, na ver<strong>da</strong>de,não foi na<strong>da</strong> rigoroso ou científico, conforme elepretendia. Sílvio Romero fez afirmações genéricas e apressa<strong>da</strong>s,sem nenhum fun<strong>da</strong>mento, sem nenhum critério, oumelhor, aplica, é ver<strong>da</strong>de, o “critério nacionalista” por eleproposto como princípio metodológico de análise, mas ofaz de forma desastrosa. Percebe-se, em sua análise, o tomextremamente emotivo e exacerbado. O estudo em questãoé um estudo apaixonado e acentua<strong>da</strong>mente pessoal, ésobretudo uma reação subjetiva a uma apreciação de Machadosobre o Movimento Cultural de Recife – apreciaçãoessa, conforme foi demonstrado, não muito favorável.Por essa razão, talvez, Sílvio Romero não alcançou omínimo de isenção e parciali<strong>da</strong>de espera<strong>da</strong>s no exercício<strong>da</strong> crítica literária. Poderíamos argumentar a seu favoralegando a inadequação de seu instrumental teórico. Masesse não seria um argumento suficientemente forte, comopretendo mostrar mais adiante. Aos equívocos teóricosacrescenta-se o que já assinalamos – a ausência deobjetivi<strong>da</strong>de, de equilíbrio nas ponderações. Pesou, e bastante,o fator pessoal.Importa, contudo, apontar os pontos mais polêmicosrelativos à questão <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de literária para avaliaros possíveis avanços do crítico, apesar do seu fracasso aoabor<strong>da</strong>r a obra machadiana.O “senão” <strong>da</strong> obra crítica de Sílvio Romero não consistenas in<strong>da</strong>gações e talvez nem mesmo na proposta a respeitode um “critério nacionalista” a ser aplicado ao estudo<strong>da</strong> literatura brasileira. A falha acha-se mais exatamenteno que ele define como nacional – uma definição estreitaporque atrela<strong>da</strong> a uma concepção naturalista de raça.Lutando por provar a veraci<strong>da</strong>de de sua tese, SílvioRomero discute com outro importante crítico <strong>da</strong> época,José Veríssimo, segundo o qual o “critério nacionalístico”não se poderia adequar à obra de Machado de Assis, pois,dessa forma, “ela seria nula ou quase nula, o que basta,<strong>da</strong>do o seu valor incontestável, para mostrar quão injustopode ser às vezes o emprego sistemático de fórmulas críticas”(Veríssimo apud Romero, 1936, p.27).Contra-argumentando, escreve Sílvio Romero (1936,p.37-8 – grifos do autor):O espírito nacional não está estritamente na escolha dotema, na eleição do assunto como ao Sr. José Veríssimoquer parecer. Não é mais possível hoje laborar em tal malentendu. O caráter nacional, esse quid quase indefinível,acha-se, ao inverso, na índole, na intuição, na visuali<strong>da</strong>deinterna, na psicologia do escritor. Tome um escritor eslavo,um russo, como Tolstoi, por exemplo, um tema brasileiro,uma história qualquer <strong>da</strong>s nossas tradições e costumes, háde tratá-la sempre como russo, que é. Isto é fatal. TomeMachado de Assis um motivo, um assunto entre as len<strong>da</strong>seslavas, há de tratá-lo sempre como brasileiro, quero dizer,com aquela maneira de sentir e pensar, aquela visão interna<strong>da</strong>s coisas, aquele tic, aquele sestro especial, se assimdevo me expressar, que são o modo de representação espiritual<strong>da</strong> inteligência brasileira.


148 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista 149Sílvio Romero (1936, p.28-9) parecia ir muito bemnas argumentações, referen<strong>da</strong>ndo, certamente sem se <strong>da</strong>rconta, palavras do próprio Machado, mas eis que, de repente,ele torce o pensamento e o que parecia um aspectopositivo – afinal, não admite o crítico que, em seus romances,em seus contos, Machado “chegou até a criaçãode ver<strong>da</strong>deiros tipos sociais e psicológicos, que são nossosem carne e osso, e essas são as criações fun<strong>da</strong>mentais deuma literatura”? – aparece como um grave defeito. Machadoseria nacional na medi<strong>da</strong> mesma em que sua literaturarefletiria a “sub-raça brasileira cruza<strong>da</strong>”, é o que atestamabaixo as palavras do crítico:Machado de Assis não sai fora <strong>da</strong> lei comum, não podesair, e ai dele, se saísse. Não teria valor. Ele é um dos nossos,um genuíno representante <strong>da</strong> sub-raça brasileira cruza<strong>da</strong>,por mais que pareça estranho tocar neste ponto.(ibidem, p.28).A partir <strong>da</strong>í, o crítico passa a proferir uma série deinver<strong>da</strong>des a respeito <strong>da</strong> importância <strong>da</strong> obra machadiana,que se contradizem umas às outras, conforme pode serobservado em muitas passagens do “livro-tribunal”. 3Depois de ter afirmado a nacionali<strong>da</strong>de do escritor,vê-se o crítico na desconfortável circunstância de salvaruma nacionali<strong>da</strong>de não-machadiana, uma nacionali<strong>da</strong>deétnico-popular, conforme reivindica na exposição do jámencionado critério. Machado, escreve Romero (1936,p.52-3), “é o menos popular de nossos poetas, pelo fundo,pela forma, pelo ritmo, pela linguagem, por tudo”; alémdisso, “em quase to<strong>da</strong> a sua obra, em poesia, tem esquecidoo povo brasileiro”. Machado é censurado por não incorporaro modo romântico de escrever, por aquilo queseus escritos de crítica e de ficção não legitimaram:Em seus livros de prosa, como nos de versos, falta <strong>completa</strong>mentea paisagem, falham as descrições, as cenas <strong>da</strong> natureza,tão abun<strong>da</strong>ntes em Alencar, e as <strong>da</strong> história e <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> humana, tão notáveis em Herculano e no próprio Eçade Queiroz. (ibidem, p.55).3Expressão usa<strong>da</strong> por JoãoCezar de Castro Rocha (2004).Não sendo genuinamente brasileira, a obra de Machadonão passaria então, segundo o crítico, de uma imitaçãomal feita dos autores ingleses. E, no entanto, não haviaele antes afirmado que o espírito nacional residia numamaneira própria brasileira de sentir e pensar e não na meraescolha de temas locais?Ostensivamente hostil e deselegante, a crítica de SílvioRomero foi, no entanto – acredito que podemos assimdizer –, coerente no seu conjunto. Afinal, parece nos dizerele, o problema não residia exatamente na literatura deMachado, mas no Brasil, nela representado. O Brasil mestiçoe imitador. A tendência à imitação, entendi<strong>da</strong> pelocrítico como um problema de raça (o brasileiro seria imitadorporque mestiço), mostrava-se incontornável na escritade Machado, explicando-se no caso pela ascendênciamulata, pela formação congênita e in<strong>completa</strong> do escritor.Machado de Assis, desse ponto de vista, é um legítimorepresentante do “espírito brasileiro”, afirmação, noentanto, que colocava o escritor num desconfortável lugar,uma vez que esse “espírito” atravessava um “momentomórbido, indeciso, anuviado, e por modo incompleto,indireto, como que a medo”. Machado “é um produto normal,genuíno de seu tempo, de seu meio” (Romero, 1936,p.71, 154) – de um tempo e de um meio na<strong>da</strong> notáveis,segundo o crítico, que não via com bons olhos o país.E de fato, o diagnóstico de Sílvio Romero é devastador.Depois de afirmar que “a nação brasileira é um produtorecentíssimo <strong>da</strong> história”, com “pouco mais de setentaanos de vi<strong>da</strong> autônoma”, e que por isso mesmo não possui“um corpo de tradição e feitos históricos que constituamuma espécie de modelo, de paradigma para ações futuras”,nem muito menos “uma vasta cultura dissemina<strong>da</strong> pelasaltas classes sociais” (ibidem, p.71), Sílvio Romero escreveain<strong>da</strong> o seguinte:Deu-se, entretanto, uma espécie de disparate, de contradiçãointrínseca, que já tive ocasião de notar, nomea<strong>da</strong>mentena História <strong>da</strong> literatura brasileira: uma pequena elite in-


150 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista 151telectual separou-se notavelmente do grosso <strong>da</strong> população,e, ao passo que esta permanece quase inteiramente inculta,aquela, sendo em especial dota<strong>da</strong> <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de de aprendere imitar, atirou-se a copiar na política e nas letras quantacoisa foi encontrando no velho mundo e chegamos hoje aoponto de termos uma literatura e uma política exóticas,que vivem e procriam em uma estufa, sem relações com oambiente e a temperatura exterior. E este mal de nossa habili<strong>da</strong>deilusória e falha, de mestiços e meridionais, apaixonados,fantasistas, capazes de imitar, porém organicamenteimpróprios para criar, para inventar, para produzir coisanossa e que sai do fundo imediato ou longínquo de nossavi<strong>da</strong> e de nossa história. (ibidem, p.71-2)Como parte <strong>da</strong> “pequena elite intelectual brasileira”,estranha ao país, o autor de Quincas Borba “nunca fez escola;nunca foi popular, mesmo no bom sentido <strong>da</strong> palavrae do fato” (ibidem, p.153). Além disso, mau imitador,Machado era a expressão autêntica de uma cultura inautêntica,imitação imprópria de tudo que chegava de fora,do velho mundo, quase sempre antes ou depois, nunca notempo certo. Sua obra é mais e menos nacional do quedeveria, em incontornável desacerto com a hora e o lugarde onde supostamente deveria se configurar, em descompasso,portanto, com as tendências contemporâneas universaise com a tradição literária brasileira.Algumas ponderações finaisPor fim, tentando relativizar as palavras com as quaisjulguei, talvez nem sempre acerta<strong>da</strong>mente, 4 as avaliaçõesde Sílvio Romero, devo mencionar outros dois críticos representativos<strong>da</strong> hegemonia cientificista no país, José Veríssimoe Araripe Júnior.Aponta<strong>da</strong> por Sílvio Romero como um grave defeito,a ruptura do escritor com o meio e a raça brasileira foi, aocontrário, valoriza<strong>da</strong> por José Veríssimo (1977, p.104) comosinal de originali<strong>da</strong>de e superação <strong>da</strong>s limitações de umpovo “atrasado” como o nosso. Quanto menos nacional a4Para uma análise peculiarsobre o risco de anacronismonas críticas dirigi<strong>da</strong>s ao“livro-tribunal de SílvioRomero”, ler o ensaio deJoão Cezar de Castro Rocha(2004, p.271-3 – grifos doautor), cujo trecho destaco:“Ao reler Romero através dosseus equívocos, em lugar deinterromper a leitura nasimples identificação dostropeços críticos, descobrimosque ele foi o críticooitocentista que mais próximoesteve de compreender ostraços particulares <strong>da</strong> prosamachadiana: a fragmentaçãonarrativa; a desconstrução desistemas filosóficos; a irônicacompreensão <strong>da</strong> formaçãosocial brasileira; a tartamudez,ou seja, a escrita de umnarrador ébrio, que atravessao texto ziguezagueando,deixando os leitores do usualromance oitocentistaliteralmente tontos – nessetipo de ficção, erammarinheiros de primeiraviagem. [...] Na época, oradicalismo <strong>da</strong> ruptura não foipercebido, pois a canonizaçãode Machado, asssocia<strong>da</strong> àcelebração obrigatória porparte dos admiradores eamigos, tornou familiar oestranhamento que o novoromance deveria provocar.É como se paradoxalmenteRomero estivesse mais bemequipado para reconhecer aoriginali<strong>da</strong>de do texto, porlocalizar-se no extremo oposto<strong>da</strong>s opções estéticas e filosóficasmachadianas. Desse modo,embora sistematicamenteequivocado, et pour cause,Romero foi um dos maisagudos leitores do autor deDom Casmurro”.obra de Machado, tanto melhor, já que mais próxima dospadrões literários europeus.Segundo Veríssimo, Machado de Assis foi um grandeescritor porque estava acima, e portanto deslocado, domeio nacional, foi universal porque não foi nacional. Jápara Araripe, a obra de Machado foi significativa justamentepelo motivo oposto: porque – dentro de critériosnacionalísticos – nela a forma européia não foi meramenteimita<strong>da</strong>, mas “tropicaliza<strong>da</strong>”, “obnubila<strong>da</strong>” pelo meiotropical, ou seja, porque foi, na sua essência, nacional.Ser ou não ser nacional era uma referência, como sevê, para os diversos julgamentos, mas não constituía, defato, a questão, uma vez que poderia significar ora um defeitoora uma virtude, ora uma condição indispensável oraum obstáculo intransponível para atingir o universalismoem questões de literatura.O que gostaria de ressaltar, ao concluir, é o ponto comumentre todos esses escritores, que foi a utilização, emalguma medi<strong>da</strong>, de critérios naturalistas e evolucionistasnos estudos comparativos entre autores <strong>da</strong> mesma nacionali<strong>da</strong>deou de nacionali<strong>da</strong>des diferentes. Com o cientificismonaturalista, os críticos acreditavam ser possível obterrigor e imparciali<strong>da</strong>de nas suas análises e, ao mesmo tempo,superar os esquemas impressionistas <strong>da</strong> crítica literáriaromântica. Sabe-se, hoje, no entanto, que os métodos naturalistasadotados, comprometidos com uma ideologia quenos reservava um papel menor na cena mundial, impossibilitavamo rigor e a neutrali<strong>da</strong>de deseja<strong>da</strong>. A conseqüênciaimediata é que, longe de ser científica, a crítica cientificistafoi marca<strong>da</strong> em muitos momentos pelo aleatório, por umsubjetivismo às vezes autoritário, exerci<strong>da</strong> que foi ao sabor<strong>da</strong>s velei<strong>da</strong>des pessoais.Os fatores históricos, políticos e culturais que estãoem jogo na legitimação <strong>da</strong> crítica literária brasileira no finaldo século XIX já foram suficientemente analisados pormuitos escritores. Importante aqui é relembrar e reafirmaro fato de que o crítico brasileiro <strong>da</strong>quele período, para serrespeitado, devia adotar as teorias consagra<strong>da</strong>s produzi-


152 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 O não-lugar de Machado, mestiço, na crítica naturalista 153<strong>da</strong>s nos grandes centros culturais europeus, dominar seusconceitos e tentar a<strong>da</strong>ptá-los a uma reali<strong>da</strong>de distante,estranha a esses mesmos pressupostos teóricos. O que nãosignifica desqualificar o exercício crítico dos escritores aquireferidos, como inadequação, apropriação indevi<strong>da</strong> deidéias alheias porque importa<strong>da</strong>s. Afirmamos apenas, semoutros desdobramentos <strong>da</strong>dos os limites desse artigo, quea estranheza é constitutiva, inseparável do pensamentocrítico não só do período aqui estu<strong>da</strong>do. O fato é que nãocostumamos nos lembrar dos nossos erros de perspectiva,esquecidos que também nós, mergulhados na nossa nebulosacontemporanei<strong>da</strong>de, reinventamos nossas tradições,criamos hipóteses de futuro, como um dia fizeram aquelesque hoje julgamos.As teorias do final do século XIX, como se sabe, eramreconheci<strong>da</strong>s como ver<strong>da</strong>deiras e legítimas porque traziama marca do estrangeiro, superior a nós em todos os sentidos:na raça e na cultura. Daí porque o determinismo evolucionistaconduzia-nos, inevitavelmente, a um impasse.Como escapar dos defeitos <strong>da</strong> fatali<strong>da</strong>de de sermos umpovo mestiço, resultado de povos condenados pela próprianatureza a produzir uma cultura inferior, caricaturados povos mais adiantados, nossos modelos inimitáveis,inalcançáveis?Os que pensaram sobre a cultura brasileira com o auxíliodo instrumental cientificista esforçaram-se, é ver<strong>da</strong>de,para superar o impasse, para encontrar soluções para onosso atraso. Mas tropeçavam sempre nas armadilhas dopróprio corpo teórico utilizado. E o resultado de todos osesforços era inevitavelmente o mesmo impasse.Mas ao que tudo indica, a aquiescência de nossos intelectuaisem relação ao pensamento hegemônico europeunão significou aprovação passiva e acomo<strong>da</strong><strong>da</strong>, foi aocontrário, pode-se dizer, uma incorporação oportuna <strong>da</strong>sidéias alheias, estrangeiras, <strong>da</strong>s idéias de fora. Na ver<strong>da</strong>deaquele pensamento serviu como instrumento legítimo eadequado para expressar as aspirações de um conjunto decríticos e escritores comprometidos na construção de umprojeto político e cultural para o país. As idéias, portanto,não estavam fora de lugar, mas no seu devido lugar e exprimindolegitimamente os interesses de uma parcela que,apesar de muito pequena, era bastante significativa, poisrepresentava entre nós a vanguar<strong>da</strong> intelectual com poderde produzir e fazer reproduzir idéias, de forjar pensamentossobre o país e divulgá-los o mais amplamente possível,não sem o risco de transformá-los, muitas vezes, éver<strong>da</strong>de, em fórmulas cristaliza<strong>da</strong>s. As referências teóricascom as quais formularam sua crítica, com os inevitáveisacertos e desacertos de to<strong>da</strong> crítica, apresentavammuitas limitações, as limitações do tempo em que foramconstruí<strong>da</strong>s. Por isso mesmo, Sílvio Romero e seus contemporâneosnão poderiam, dentro dos paradigmas consoli<strong>da</strong>dosno tempo e lugar devidos, conceber a reali<strong>da</strong>demais apropria<strong>da</strong>mente do que o fizeram.ReferênciasARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Machado de Assis. In:. Obra crítica. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1958-1970. v.3.ASSIS, Machado de. A nova geração. In:Rio de Janeiro: Aguilar, 1962a. v.III.. Obras <strong>completa</strong>s.. Notícia <strong>da</strong> atual literatura brasileira – Instinto de nacionali<strong>da</strong>de.In: . Obras <strong>completa</strong>s. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962b.v.III.CANDIDO, Antonio. (Seleção e Apresentação). Introdução. In:. Sílvio Romero: teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro:Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Edusp, 1978. p.XXII.HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho. São Paulo: Cia. <strong>da</strong>sLetras, 1989.JOBIM, José Luis. História <strong>da</strong> literatura. In: JOBIM, José Luis. (Org.)Palavras <strong>da</strong> crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992.ROCHA, João Cezar de Castro. “O ruído <strong>da</strong>s festas” e a fecundi<strong>da</strong>dedos erros: como e por que reler Sílvio Romero. In: . O exíliodo homem cordial: ensaios e revisões. Rio de Janeiro: Museu <strong>da</strong> República,2004.


154 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 155ROMERO, Sílvio. A literatura brasileira e a crítica moderna. Rio deJaneiro: Imprensa Industrial, 1880.. Minhas contradições. Bahia: Livraria Catilina, 1914.. Machado de Assis: estudo comparativo <strong>da</strong> literatura brasileira.Rio de Janeiro: José Olympio: 1936.. História <strong>da</strong> literatura brasileira. 4.ed. Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1949. 5v.SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano.In: . Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.. Apesar de dependente, universal. In: . Vale quanto pesa.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.. Ao vence-SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In:dor as batatas. São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong>des, 1977.VERÍSSIMO, José. Machado de Assis. In: . Estudos de literaturabrasileira. 6ª série. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977.“A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”:<strong>da</strong>rwinismo social e imaginação literária no Brasil* Universi<strong>da</strong>de de Caxias doSul (UCS).Luciana Murari*RESUMO: No período entre as duas últimas déca<strong>da</strong>s do séculoXIX e as primeiras do século XX, o <strong>da</strong>rwinismo social foi uma<strong>da</strong>s doutrinas científicas mais difundi<strong>da</strong>s no Brasil. Mais do queum corpo articulado e coerente de idéias, constituiu-se sobretudoem uma visão de mundo, basea<strong>da</strong> em um conjunto deassertivas bastante amplas e imprecisas. Essas <strong>da</strong>vam margem aum uso generalista <strong>da</strong> teoria, capaz de ser aplica<strong>da</strong> às mais diferentessituações, e que implicava uma determina<strong>da</strong> concepçãodo sentido <strong>da</strong> história. A retórica <strong>da</strong>rwinista foi incorpora<strong>da</strong>por diversos escritores brasileiros. Alguns deles, como Euclides<strong>da</strong> Cunha, Affonso Arinos, Rodolpho Theophilo e Mário Guedes,aplicaram as idéias gerais <strong>da</strong> doutrina na interpretação dosconflitos sociais e <strong>da</strong> relação do homem brasileiro com a naturezado país. Outros, como Machado de Assis e Lima Barreto,viram o <strong>da</strong>rwinismo por um olhar crítico e satírico, apontandosua triviali<strong>da</strong>de e seu caráter egoísta, amoral e agressivo.PALAVRAS-CHAVE: Palavras-chave: Darwinismo social, literaturabrasileira, intelectuali<strong>da</strong>de, racismo científico.ABSTRACT: In the last decades of the 19 th century and in thefirst one of the 20th century, Social Darwinism was one of themost popular scientific theories in Brazil. It did not consist ofan integrated and coherent body of ideas, but it was best describe<strong>da</strong>s a commonplace view based on very broad and impreciseassertions. Its generic principles gave origin to a generaliseduse of the theory, being applied to the most diverse situations.The Darwinist rhetoric, which implied a conception of history,was adopted by many Brazilian writers. Some of them, such asEuclides <strong>da</strong> Cunha, Affonso Arinos and Rodolpho Theophilo,incorporated its most general ideas so as to explain social conflictsand the relationship between man and nature in Brazil.On the other hand, Machado de Assis and Lima Barreto saw


156 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 157Darwinism through critical and satirical lenses, making its trivialityclear as well as the egoistic, amoral and aggressive characterof its ideological meaning.KEYWORDS: Social Darwinism, Brazilian litterature, intellectuals,scientific racism.“Patos, gansos, galinhas, pequenos e grandes”A trajetória do personagem central do romance Tristefim de Policarpo Quaresma, publicado por Lima Barreto em1911, pode ser defini<strong>da</strong> como uma expressão do movimento<strong>da</strong> elite culta brasileira em sua veia nacionalista, a partirdo romantismo. De início, a exaltação patriótica de PolicarpoQuaresma parece anacrônica, basea<strong>da</strong> no elogio à naturezae ao indígena, que responde pelos aspectos maisdelirantes e obsoletos de seu entusiasmo nacionalista.Depois <strong>da</strong> recepção escarninha e humilhante de seu requerimentopela adoção do tupi como língua nacional, Quaresmaassume uma nova causa, doravante resolvido a demonstrara excepcional feraci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s terras brasileiras.Sua conversão em empreendedor rural o alinha com ostípicos intelectuais reformistas do início do século XX brasileiro,em seu entusiasmo pela tecnologia, em seu reformismovoltado para a superação do atraso social, em sua crençana modernização produtiva pela via científica 1 – desdeque, segundo Quaresma, as inovações não representassemnenhuma injúria à honra nacional, como seria o caso deusar adubos no “país mais fértil do mundo.” (Barreto, 1993,p.104) Em seu cotidiano de homem do campo, depois dopenoso trabalho de capina, Quaresma se comprazia emjogar migalhas de pão às aves pela janela que <strong>da</strong>va para ogalinheiro e observar o resultado:Acabado o jantar, Quaresma chegava à janela que <strong>da</strong>vapara o galinheiro e atirava migalhas de pão às aves. Elegostava desse espetáculo, <strong>da</strong>quela luta encarniça<strong>da</strong> entrepatos, gansos, galinhas, pequenos e grandes. Dava-lhe umaimagem reduzi<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e dos prêmios que ela comporta.(ibidem, p.79)1O movimento ruralista,com o qual o projeto deQuaresma parece afinado,desenvolveu-se nas primeirasdéca<strong>da</strong>s do século XX comouma ideologia políticadefendi<strong>da</strong> por agentes sociaisligados à agricultura, reunidosa partir <strong>da</strong> tese <strong>da</strong> “vocaçãoagrícola brasileira”. Apesar deabarcar grupos defensoresde interesses diversos, suaplataforma invariavelmentedefendia a diversificação <strong>da</strong>produção agrícola, a pesquisacientífica e a modernizaçãotecnológica (Mendonça,1997).A prosaica observação convertia-se em “espetáculo”,e assumia, aos olhos de um homem ilustrado como Quaresma,um significado subjacente, proporcionando a eleinferir um sentido para a vi<strong>da</strong>, a partir <strong>da</strong> lógica <strong>da</strong>rwinista<strong>da</strong> luta pela sobrevivência e <strong>da</strong> vitória do mais apto. Ocaráter corriqueiro <strong>da</strong> cena, que contrastado com as eleva<strong>da</strong>silações que ela suscitava revela a intenção parodísticado autor, diz muito sobre a generali<strong>da</strong>de e o amplo alcanceque o <strong>da</strong>rwinismo adquiriu entre a elite culta brasileira,nas últimas déca<strong>da</strong>s do século XIX e nas primeiras do séculoXX. Neste artigo, pretendemos identificar a presençado <strong>da</strong>rwinismo social, em algumas de suas principais derivações,na produção literária brasileira desse período, compreendendoa comunicação entre ciência e literatura, seussignificados peculiares no contexto brasileiro <strong>da</strong> época ealgumas de suas implicações ideológicas mais imediatas.Tomaremos como exemplos obras de escritores brasileirosde diferentes origens, inserções sociais e posições políticas,mas que igualmente encontraram na adoção <strong>da</strong> hermenêutica<strong>da</strong>rwinista uma forma de compreender a reali<strong>da</strong>de,interpretar os conflitos sociais e atribuir sentido àdinâmica histórica.Certamente, Lima Barreto é bastante arguto ao referir-seà doutrina como um olhar em direção ao mundo, umolhar distanciado, complacente e superior, orientado decima para baixo. A adoção de uma perspectiva científicacapaz de ressignificar o real, conceber uma idéia <strong>da</strong> dinâmicaentre os seres e <strong>da</strong>í depreender um <strong>da</strong>do sentido àhistória, é característica <strong>da</strong> formação intelectual generalizantee eclética <strong>da</strong> intelectuali<strong>da</strong>de brasileira no períodopós-1870, a partir do qual são introduzi<strong>da</strong>s no Brasil asmodernas doutrinas filosóficas <strong>da</strong> Europa novecentista.Essas teorias podem ser defini<strong>da</strong>s, genericamente, comonaturalistas, à medi<strong>da</strong> que se baseavam no princípio <strong>da</strong>unici<strong>da</strong>de dos fenômenos naturais e humanos. Os naturalismoseram instrumentos intelectuais excepcionalmentepoderosos e abrangentes, que permitiam depreender leisgenéricas capazes de abarcar a totali<strong>da</strong>de dos fenômenos,


158 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 1592Mesmo uma áreaaparentemente muitoespecífica como acriminologia, surpreendenteconsórcio entre o direito e apsiquiatria estabelecido nasúltimas déca<strong>da</strong>s do séculoXIX consagra-se ao interesse<strong>da</strong> opinião pública ao buscaras origens <strong>da</strong>s transgressões<strong>da</strong> ordem e doscomportamentos anti-sociais.É o que testemunham artigosinformativos sobre o tema,publicados na imprensa,como o de Orlando (1975).3Ain<strong>da</strong> em vi<strong>da</strong>, Spencer(1880) veio a público declarara dissociação de sua filosofiade qualquer doutrina quedefendesse a guerra entrepovos como motor doprogresso social. Segundo ele,embora a luta entre gruposselvagens tenha contribuídopara a eliminação de etniasinaptas em fases iniciais <strong>da</strong>evolução humana, a socie<strong>da</strong>deindustrial seria incompatívelcom o belicismo, quecaracterizaria o retorno àbarbárie e o início de um cicloinvolutivo. Isso conduzia oteórico a condenar, portanto,a militarização relaciona<strong>da</strong> àexpansão imperialista <strong>da</strong>Inglaterra, a mais evoluí<strong>da</strong>socie<strong>da</strong>de industrial <strong>da</strong> época(cf. Becquemont & Mucchieli,1998, c.VII e VIII, p.I).dispensando a tradição, a transcendência e as consideraçõesmorais.A natureza é toma<strong>da</strong> como o único princípio organizador<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, o que conduzia essas doutrinas a adotaruma ética relativista submeti<strong>da</strong> às leis científicas, e umaapreciação totalmente empirista do mundo fenomênico.Convertidos em visão de mundo, os preceitos científicosnaturalistas adquiriram notável generali<strong>da</strong>de e autori<strong>da</strong>desuficiente para abarcar todo o universo factual, doravantecompreendido segundo leis que configuravam uma dinâmicaauto-regula<strong>da</strong>, tendendo espontaneamente aoequilíbrio. Como os sistemas sociais comportavam-se segundoleis naturais, os principais agentes <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça eramas forças inconscientes e inelutáveis <strong>da</strong> natureza, sendonegado à individuali<strong>da</strong>de qualquer papel na história, emsua marcha em direção ao progresso. O mais notável aspecto<strong>da</strong>s doutrinas naturalistas era sua capaci<strong>da</strong>de de sintetizartodo o real, o que conduziu o cientificismo a criargrandes sistemas de síntese e exegese (Barros, 1986; Candido,1988b; Wehling, 1994).As teorias científicas tornaram-se, desde então, partedo senso comum entre as cama<strong>da</strong>s educa<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população,dota<strong>da</strong>s de acesso à imprensa e aos livros, que passavama dispor de um leque de informações diversas queenglobavam diferentes determinismos, relacionados sobretudoà dinâmica social, a variáveis étnicas e relativas aomeio físico-social. 2 De qualquer maneira, cientificismo,positivismo, <strong>da</strong>rwinismo, spencerismo, evolucionismo, monismo– o “cinematógrafo de ismos” a que se referia SílvioRomero – forneciam ao ci<strong>da</strong>dão medianamente culto umasérie de ferramentas discursivas aplicáveis às mais diversassituações, como exemplifica Lima Barreto a partir deum ato trivial que poderia parecer de todo carente de significado.Diferenças teóricas e político-ideológicas importantesforam muitas vezes obscureci<strong>da</strong>s pelo uso equívocoe genérico dos vários conceitos e doutrinas científicas emcirculação, o que torna temerosa qualquer tentativa debuscar filiações definitivas entre autores e escolas. O melhorexemplo disso é que o liberalismo, por natureza contraditóriocom alguns dos princípios fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong>scorrentes naturalistas, foi diversas vezes mesclado a elasna obra de alguns autores fun<strong>da</strong>mentais para a vi<strong>da</strong> intelectualbrasileira do período entre o final do século XIX eas primeiras déca<strong>da</strong>s do século XX (Barros, 1986).Dentre as tendências intelectuais mais influentes noBrasil, sobretudo a partir <strong>da</strong> última déca<strong>da</strong> do século XIX,está o <strong>da</strong>rwinismo social, amplo conjunto de doutrinascria<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> popularização <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> seleção natural,e sua extensão à interpretação <strong>da</strong>s culturas e socie<strong>da</strong>des,compreendi<strong>da</strong>s, a partir <strong>da</strong>í, por meio do exame desuas condições naturais. Antes mesmo de Darwin, HerbertSpencer havia já forjado um primeiro <strong>da</strong>rwinismo social queenvolvia a noção <strong>da</strong> sobrevivência do mais apto a partir<strong>da</strong> competição e <strong>da</strong> seleção, submetendo a hierarquia socialà ordem <strong>da</strong> natureza. A diferença é que a ênfase deSpencer estava na idéia <strong>da</strong> concorrência entre indivíduoscomo motor <strong>da</strong> civilização, e não entre grupos sociais, sobretudoentre raças, como o segundo <strong>da</strong>rwinismo social passoua defender (Becquemont, 1992). Mais comumente,em razão <strong>da</strong> assimilação <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> evolução natural deDarwin às teorias evolucionistas já em voga, as versõesspencerista e <strong>da</strong>rwinista do evolucionismo tenderam a seconfundir, e o primeiro a ser tomado pelo segundo, sobretudoa partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1880 – para desespero do estritamenteindividualista e antimilitarista Herbert Spencer.(Becquemont & Mucchielli, 1998). 3Utilizaremos aqui o termo “<strong>da</strong>rwinismo social” em seusentido amplo, compreendendo ambas as tendências, jáque esse procedimento é de uso mais corrente. A partir domomento em que a ênfase <strong>da</strong>s teorias evolucionistas desviou-se<strong>da</strong> luta entre indivíduos para a luta entre grupossociais, a ciência racial tomou forte impulso, já que a diversi<strong>da</strong>de<strong>da</strong>s espécies era traduzi<strong>da</strong> como a diversi<strong>da</strong>deentre etnias, grupos sociais definidos a partir de característicasorgânicas, culturais e sociais. Decerto, uma <strong>da</strong>s derivaçõesmais prolíficas do social-<strong>da</strong>rwinismo foi o racismo


160 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 161científico, caracterizado por idéias como: a desigual<strong>da</strong>deessencial entre as raças humanas; a supremacia <strong>da</strong> raçabranca, ti<strong>da</strong> como a única capaz de assimilar a modernacivilização, a ciência e a tecnologia; a condenação <strong>da</strong> mestiçagem,defini<strong>da</strong> como fator de degeneração; a hierarquização<strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des e dos estratos sociais de acordo comsua composição étnica; a negação do indivíduo como sujeito<strong>da</strong> história, <strong>da</strong><strong>da</strong> sua incapaci<strong>da</strong>de de superar as determinaçõeshereditárias impostas por sua formação racial; acentrali<strong>da</strong>de do fator étnico na condução <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social; aassimilação <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des nacionais européias a lentosprocessos históricos de formação de sub-etnias <strong>da</strong> raçabranca, que respondiam pelas peculiari<strong>da</strong>des físicas e culturais<strong>da</strong>s diferentes nações. As teorias raciais tinham umaclara implicação política, uma vez que assumiram um papelde legitimação do processo de expansão européia pelos territóriosafricanos e asiáticos, durante a era do imperialismo.De fato, no pensamento europeu do período entre asduas últimas déca<strong>da</strong>s do século XIX e as primeiras do séculoXX, as teorias raciais de extração social-<strong>da</strong>rwinista,basea<strong>da</strong>s na idéia <strong>da</strong> concorrência entre etnias como motor<strong>da</strong> evolução <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, adquiriram imensa difusãoe populari<strong>da</strong>de. “Peculiar amálgama de ciência, políticae cultura” como definiu Said (1996, p.239) as teoriasraciais devotaram-se de modo quase unânime a elevar ospaíses europeus, ou melhor, os “povos arianos”, à condiçãode conquista <strong>da</strong>s demais regiões do globo, por suapretensa superiori<strong>da</strong>de de fundo simultaneamente biológico,moral e cultural. A teoria racial tomava as diferençasentre os grupos humanos como <strong>da</strong>dos extremos e insuperáveis,à medi<strong>da</strong> que, deslocando a análise social paraas origens, definia o homem a partir de característicaspretensamente essenciais (ibidem, p.238)A teoria <strong>da</strong>s raças é tanto uma teoria <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de, àmedi<strong>da</strong> que constrói uma ideologia <strong>da</strong> inegável fragili<strong>da</strong>dedos povos submetidos ao poder europeu, virtualmenteincapazes de progredir por si sós, quanto uma teoria <strong>da</strong>identi<strong>da</strong>de, à medi<strong>da</strong> que participa também <strong>da</strong> criação do4Sobre cientistas, instituiçõese a recepção do <strong>da</strong>rwinismo noBrasil, ver Schwarcz (1993).5Definir o <strong>da</strong>rwinismo socialcomo uma interpretaçãodesautoriza<strong>da</strong>, errônea esimplista <strong>da</strong> teoria de Darwincompromete a percepção <strong>da</strong>continui<strong>da</strong>de entre a obrado cientista e sua versãosociológica. As atuaisinterpretações ressaltam,ao contrário, o papelfun<strong>da</strong>mental de Darwin nacriação e difusão <strong>da</strong> visãode mundo <strong>da</strong>rwinista social(Young, 1985a; Williams,1997).discurso nacionalista, atribuindo a ca<strong>da</strong> nação européiaum processo de formação histórica que, um tanto surpreendentemente,toma a existência de uma comuni<strong>da</strong>decultural e lingüística como pressuposto para a criação deuma homogenei<strong>da</strong>de biológica capaz de definir identi<strong>da</strong>desraciais complexas e estáveis. (Todorov, 1993).Quando Policarpo Quaresma faz referência à “odiosacatadura que Darwin achou nos mestiços”, e que ele nãoencontrou (Barreto, 1993, p.109), está de fato citando umver<strong>da</strong>deiro lugar-comum <strong>da</strong> época. O fenômeno do cientificismoe, dentro dele, do social-<strong>da</strong>rwinismo e do racismocientífico é particularmente curioso porque adquiriu a formade um discurso capaz de referenciar os fatos <strong>da</strong> naturezae <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de segundo determinados paradigmas e conceitosbastante amplos e mesmo genéricos, muitas vezestornados acessíveis a uma cama<strong>da</strong> social letra<strong>da</strong> por meiode obras de vulgarização que difundiam os preceitos <strong>da</strong>ciência a um público extenso. Analisando o pensamentoevolucionista, torna-se possível compreender como, a partir<strong>da</strong> observação de um fato único e aparentemente banal,foi possível a Policarpo Quaresma depreender o princípiogeral “<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e dos prêmios que ela comporta”. Esse conhecimentocientífico difundiu-se pelas instituições deensino e de pesquisa do país, 4 mas ao mesmo tempo tevesua repercussão imensamente favoreci<strong>da</strong> pela imprensa,que publicava resenhas de livros científicos, muitos delesnão lançados no Brasil, ou artigos de divulgação e sínteseescritos por intelectuais brasileiros entusiastas <strong>da</strong> revoluçãocientificista, além de tornar-se espaço para a polêmicateórica, doutrinária ou volta<strong>da</strong> para a aplicação dos princípioscientíficos à reali<strong>da</strong>de do país. A imprensa era tambémo espaço de combate dos “novos”, ou seja, os intelectuaiscientificistas, contra os defensores do pensamentotradicional, eclético e metafísico.Como ciência e ideologia, <strong>da</strong>rwinismo e <strong>da</strong>rwinismosocial são inseparáveis. 5 O <strong>da</strong>rwinismo social pode ser compreendidocomo um conjunto de idéias direciona<strong>da</strong>s à interpretação<strong>da</strong>s teorias evolucionistas no contexto social.


162 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 163Há diversas versões <strong>da</strong> doutrina, basea<strong>da</strong>s na idéia de quea natureza é regula<strong>da</strong> por leis biológicas, estando as socie<strong>da</strong>deshumanas inseri<strong>da</strong>s na dinâmica evolutiva observa<strong>da</strong>entre as espécies animais. O <strong>da</strong>rwinismo social toma comoponto de parti<strong>da</strong> a existência de um desequilíbrio entreas necessi<strong>da</strong>des do homem e sua capaci<strong>da</strong>de de atendê-lassegundo sua capaci<strong>da</strong>de produtiva e os recursos disponíveisno meio, o que denota a inegável influência do pensamentomalthusiano. Parte-se <strong>da</strong> idéia de que a espécie humanacomporta hierarquias naturais segundo distintas habili<strong>da</strong>desfísicas, psíquicas e comportamentais, que por sua vezdefinem diferentes capaci<strong>da</strong>des de aprimoramento, geralmenteassocia<strong>da</strong>s à variável étnica. Nesse contexto, as raçashumanas, equivalentes às espécies, são caracteriza<strong>da</strong>snão apenas a partir de seus traços físicos, mas também portraços psicológicos peculiares e diferentes formas de vi<strong>da</strong>em socie<strong>da</strong>de. Movidos pelo instinto que os reconduzia àsua condição natural, os homens apenas agiriam em conformi<strong>da</strong>decom as determinações de seu meio físico-sociale de sua constituição biológica (Becquemont, 1992).O que o <strong>da</strong>rwinismo social acrescentou à teoria deDarwin foi a extensão do determinismo biológico para avi<strong>da</strong> social e as características psíquicas dos grupos humanos,pois tanto a história quanto a natureza humana eramdescritas a partir dos processos de a<strong>da</strong>ptação ao meio, seleçãonatural e hereditarie<strong>da</strong>de. Segundo as teorias <strong>da</strong>rwinistassociais, a desigual<strong>da</strong>de natural entre os grupos humanosconferiria a eles diferentes potenciais de sobrevivência,o que, num ambiente de escassez, tornaria inevitável acompetição pelos recursos disponíveis. Esse processo, consagradopela expressão struggle for life, conduziria inevitavelmenteao progresso, por meio <strong>da</strong> sobrevivência dos maisaptos e mais a<strong>da</strong>ptados ao meio e <strong>da</strong> eliminação dos inaptos.Enquanto isso, os traços biológicos que configurariamvantagens seriam transmitidos pelos sobreviventes porherança genética, mantendo as desigual<strong>da</strong>des. Medianteesses processos de seleção e de herança, seriam cria<strong>da</strong>snovas espécies e novos grupos humanos, ao passo que outrosdesapareceriam, o que conduziria a uma evoluçãoconstante do mundo natural e social, onde apenas os indivíduose grupos superiores seriam capazes de sobreviver àspressões do meio físico e <strong>da</strong> concorrência vital. A luta pelavi<strong>da</strong> impunha, portanto, a a<strong>da</strong>ptação dos mais fortes àscondições ambientais, ao mesmo tempo que eliminava osmais fracos, derrotados na disputa pelos recursos disponíveis(Young, 1985a).Como demonstrou Hawkins (1997), o <strong>da</strong>rwinismomostrou-se extremamente poderoso como instrumentoretórico, devendo seu longo alcance e generalização aocaráter persuasivo e flexível <strong>da</strong> teoria. Segundo ele, isso sedeve à existência de vários elementos de indeterminaçãona própria teoria <strong>da</strong> evolução orgânica, que deram margema incertezas que só contribuíram para sua vulgarização,ao deixarem espaços em branco a serem preenchidossegundo as preferências do intérprete. Um dos mais notáveisdesses pontos de imprecisão na teoria gira em torno<strong>da</strong> idéia de luta pela existência: não há um mecanismoúnico para descrever a condução do conflito, que pode sertomado como estado permanente de guerra, disputa maisou menos violenta ou batalha meramente ideológica, segundoum presumível abran<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> violência socialao longo do processo de modernização e racionalizaçãosocial. Juntamente com isso, seus mecanismos de argumentaçãoe sua incorporação <strong>da</strong> idéia de conflito permitiamdiferentes usos retóricos e interpretações <strong>da</strong> teoria.Um exemplo disso é que se partia do princípio de quea ordem social era um mero reflexo <strong>da</strong>s leis naturais, criouseum amplo universo de analogias entre socie<strong>da</strong>de e natureza:raças humanas equivaleriam a espécies naturais;mulheres, crianças, loucos, criminosos e homens do campocorrespondiam a selvagens, inferiores na ordem evolutiva;a guerra seria a expressão <strong>da</strong> luta entre concorrentespelos recursos escassos do meio físico-social; as socie<strong>da</strong>desseriam análogas aos organismos biológicos, assim comoos indivíduos são assimilados a células, e estratos sociais adiferentes órgãos do corpo (Hawkins, 1997).


164 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 165A linguagem <strong>da</strong>rwinista é essencialmente metafórica,em sua busca de imagens capazes de conectar a evoluçãobiológica e a dinâmica <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des. A incerteza em quea condição humana é lança<strong>da</strong> por essa visão de mundocontribuiu para que as doutrinas <strong>da</strong> luta pela vi<strong>da</strong> fossemadota<strong>da</strong>s pela imaginação literária, o que se deve, certamente,às próprias oscilações <strong>da</strong> teoria e ao caráter fluidoe instável de seus pressupostos. Embora possa parecer fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>por leis gerais que configuram regulari<strong>da</strong>des, ateoria <strong>da</strong>rwinista mostrou-se particularmente estimulantepara a imaginação literária por deixar inúmeros graus deliber<strong>da</strong>de na apropriação do conhecimento, e por fun<strong>da</strong>mentar-seem idéias extremamente amplas, que partiamde pressupostos que não podiam ser imediatamente verificáveis(Morton, 1984).O <strong>da</strong>rwinismo social não chegou a constituir, em simmesmo, uma teoria política coesa, embora tenha embasadovárias delas. O elemento mais importante a ressaltar, nessecaso, é que a idéia de competição pela sobrevivênciaadquiria, dentro <strong>da</strong> lógica social-<strong>da</strong>rwinista, um caráteramoral, que permitia que o conflito social e as situaçõesde desequilíbrio fossem compreendidos não como origemde instabili<strong>da</strong>de social ou de decadência, mas como elementoimpulsionador do progresso, o que adicionava à doutrinauma lógica finalista que a tornava pretensamenteimune a qualquer julgamento. De fato, o princípio do aprimoramentocontínuo <strong>da</strong> civilização acrescenta um elementode otimismo num pensamento que distancia as leis <strong>da</strong>natureza de qualquer princípio divino, e que, portanto,defronta-se freqüentemente com uma natureza indiferenteaos propósitos humanos, e com uma barbárie intrínsecaà competição pela sobrevivência, ilimita<strong>da</strong> e sem pudoreséticos (Young, 1985b).A inexorabili<strong>da</strong>de dá o tom do discurso <strong>da</strong>rwinista, quefaz a ordem instituí<strong>da</strong> parecer a única possível. Na modernasocie<strong>da</strong>de industrial, os elementos desviantes <strong>da</strong> ordem,os fracos e ina<strong>da</strong>ptados, eram interpretados como a sobrevivênciade indivíduos e grupos característicos de períodos6Essa idéia foi particularmentedifundi<strong>da</strong> pela versãospencerista do evolucionismo,de caráter liberal eantiestatista. Emborarealmente não se preocupasseem minorar o sofrimento <strong>da</strong>sclasses baixas, o segundo<strong>da</strong>rwinismo social deu origema doutrinas que nãoafastavam as possibili<strong>da</strong>desde intervenção sobre asocie<strong>da</strong>de, como é o caso, porexemplo, <strong>da</strong> eugenia, derivação<strong>da</strong> teoria <strong>da</strong>s raças quedefendia a regulação dosmatrimônios, no sentido docontrole <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de físicae mental <strong>da</strong>s populações(Drouard, 1995).evolutivos já superados pela humani<strong>da</strong>de, e inevitavelmentecondenados ao deperecimento. Isso, é claro, não é um resultadodo <strong>da</strong>rwinismo, mas de sua a<strong>da</strong>ptação a valoressociais e políticos já estabelecidos anteriormente, e que ganhavamassim legitimi<strong>da</strong>de científica (Hawkins, 1997).O <strong>da</strong>rwinismo social possui, ao mesmo tempo, um forteconteúdo normativo, pois define simultaneamente comose organiza a ordem natural e social, e como deve ser suadinâmica ao longo <strong>da</strong> história, concebi<strong>da</strong> a partir de umanoção linear de tempo e de uma idéia de ordem e hierarquia(Young, 1985a). Qualquer tentativa de minorar osofrimento humano era ti<strong>da</strong> como entrave ao desenvolvimentosocial, o que difundiu a idéia de self-help, ou seja,de que a ca<strong>da</strong> indivíduo ou grupo social é <strong>da</strong><strong>da</strong> uma determina<strong>da</strong>capaci<strong>da</strong>de de sucesso na luta pela vi<strong>da</strong>, de acordocom suas próprias condições de a<strong>da</strong>ptação ao meio. 6Lima Barreto utiliza o termo, clichê dos mais assíduos nosdiscursos de coloração <strong>da</strong>rwinista social, para fazer umacrítica mor<strong>da</strong>z à política de estímulo à imigração adota<strong>da</strong>pelo governo brasileiro, sobretudo a partir <strong>da</strong> última déca<strong>da</strong>do século XIX. Em conversa com um pobre sitiante vizinhode Policarpo Quaresma, a curiosa Olga ouviu dele: “Nósnão tem ferramenta... isto é bom para italiano ou ‘alamão’,que governo dá tudo... Governo não gosta de nós”.A idéia que isso desperta na interlocutora foge aosesquemas preestabelecidos e parece bastante perturbadora,à medi<strong>da</strong> que extrapola o campo <strong>da</strong> observação <strong>da</strong>s leis <strong>da</strong>natureza e passa a invocar escolhas políticas. Ela tenta inutilmenteignorar a queixa do pobre Felizardo, mas acabaconcluindo com um paradoxo: “Ela voltou querendo afastardo espírito aquele desacordo que o camara<strong>da</strong> indicava,mas não pôde. Pela primeira vez notava que o self-help doGoverno era só para os nacionais [...]” (Barreto, 1993,p.103). Explorando o conceito a partir de seu contrário,ou seja, de um exemplo de intervencionismo estatal queé também um exemplo de discriminação, Lima Barretodemonstra o processo de marginalização do trabalhadorpobre, geralmente negro ou mestiço, na socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>


166 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 167Primeira República, expondo ao mesmo tempo o vazio deum discurso que aju<strong>da</strong>va a manter o status quo em nomede preceitos incertos e facilmente manipuláveis, conformeo gosto do intérprete.“O caráter conservador e benéfico <strong>da</strong> guerra”Machado de Assis, observador arguto do movimentointelectual brasileiro, registrou em crônica de 1879 (Assis,1955, p.242) a crescente influência <strong>da</strong>s correntes científicasnaturalistas na literatura brasileira, ain<strong>da</strong> que tivesseressaltado que o movimento não possuía ain<strong>da</strong>naquele momento características bem estabeleci<strong>da</strong>s, definindo-seapenas por sua decisiva ruptura com a tradiçãoromântica: “A nova geração freqüenta os escritores <strong>da</strong> ciência;não há aí poeta digno desse nome que não converseum pouco, ao menos, com os naturalistas e filósofos modernos”.Ao mesmo tempo, o escritor adverte os novoscontra o risco de pe<strong>da</strong>ntismo, pois, num contexto de renovaçãodos paradigmas intelectuais, a mera enunciaçãode teorias e autores conferiria ao literato uma clara superiori<strong>da</strong>deem relação a seu público, possivelmente não tãoatualizado nos modismos científicos. Daí, a clássica sentença:“a ver<strong>da</strong>deira ciência não é a que se incrusta paraornato, mas a que se assimila para nutrição; e que o modoeficaz de mostrar que se possui um processo científico, nãoé proclamá-lo a todos os instantes, mas aplicá-lo oportunamente”(Assis, 1955, p.243). A admoestação de Machadode Assis não poderia ser mais oportuna, pois realmentea geração científica não pode escapar do rótulo de“novos ricos <strong>da</strong> cultura”, que lhes pespegou Candido(1988a, p.30), em referência a seu gosto pela exibição retóricade conceitos, teorias e autores, pelo personalismode suas disputas, pela indiferença ante o público, pela carênciade projetos consistentes de intervenção social.Atento à marcha crescente do cientificismo entre aelite brasileira, Machado de Assis mostrou-se um de seusmais hábeis e mais ferinos comentadores, adotando para7Sobre as fontes filosóficas dohumanitismo, ver Koch (2004,p.281-370).si mesmo o princípio <strong>da</strong> assimilação e <strong>da</strong> aplicação oportunados modelos teóricos. O resultado disso foi uma visãocáustica do discurso cientificista, mais conheci<strong>da</strong> pormeio <strong>da</strong> doutrina do humanitismo, síntese burlesca <strong>da</strong>s correntescientíficas então em voga no país, sobretudo o evolucionismo.7 O alvo <strong>da</strong> sátira machadiana era, de fato, ajustificação do egoísmo social e do egocentrismo promovi<strong>da</strong>pelas doutrinas cientificistas, (Gledson, 1991, p.142)soma<strong>da</strong> a sua pretensão desmedi<strong>da</strong> e a sua percepçãoamoral <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, em flagrante desacordo com valoresculturais, princípios éticos e maiores considerações de ordemsubjetiva e individual.Veja-se, por exemplo, a reação de Quincas Borba, criadordo humanitismo, diante <strong>da</strong> morte de Eulália, noiva deBrás Cubas, vitima<strong>da</strong> por uma epidemia de febre amarela:a seu ver, do ponto de vista <strong>da</strong> espécie as epidemias eramconvenientes, pois a sobrevivência de alguns era o corolário<strong>da</strong> morte dos demais. O filósofo in<strong>da</strong>gava ao amigo, emsegui<strong>da</strong>, se a morte <strong>da</strong> noiva não despertava nele um “secretoencanto” pelo fato de haver ele sobrevivido à peste. Aobservação soa a Brás Cubas demasiado absur<strong>da</strong> para nemsequer ser comenta<strong>da</strong>. Presunçosa e desprovi<strong>da</strong> de valores,essa idéia descreve com perfeição a estratégia <strong>da</strong>rwinistade buscar o fim último do progresso nos fatos <strong>da</strong> natureza,procedimento que está a um passo <strong>da</strong> legitimação <strong>da</strong> açãoviolenta do próprio homem, que assumiria fins evolutivosa partir do momento em que esse considerasse a si próprioo mais apto, e portanto agente do progresso.Ain<strong>da</strong> em Memórias póstumas de Brás Cubas, a lutapela vi<strong>da</strong> assumiria maior dramatici<strong>da</strong>de na descrição <strong>da</strong>disputa de dois cães por um osso, “fato que aos olhos deum homem vulgar não teria valor”. Aos olhos do filósofodo humanitismo, contudo, a cena tinha uma beleza quedespertava ver<strong>da</strong>deiro êxtase e uma alegria indisfarçável,ain<strong>da</strong> que isso não caísse bem a um filósofo. Ele observou,em segui<strong>da</strong>, que espetáculo até mais magnífico podia serobservado em lugares onde homens e cães disputavamentre si alimentos ain<strong>da</strong> menos atraentes, já que a inteli-


168 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 169gência acumula<strong>da</strong> pelo homem ao longo do tempo somavanovos elementos à luta. Além disto, nesse caso a lutaem questão envolvia espécies diferentes, e não indivíduos<strong>da</strong> mesma espécie (Assis, 2002, p.220-1).Em Quincas Borba, o escritor continuaria a desenvolvera teoria, observando “o caráter conservador e benéfico<strong>da</strong> guerra”. O filósofo imagina a existência de duas tribosfamintas e de um campo de batatas que seria suficientepara alimentar apenas uma delas. Em caso de guerra, atribo vencedora, bem nutri<strong>da</strong>, poderia atravessar a montanhae chegar à outra encosta, onde as batatas seriam abun<strong>da</strong>ntes.Se, contudo, as tribos decidissem dividir pacificamenteo alimento, nenhuma chegaria ao outro lado e ambasmorreriam de fraqueza. Em suma, a paz conduziria à aniquilação,enquanto a guerra seria a garantia de sobrevivência.O escritor elabora, a partir <strong>da</strong>í, o célebre enunciado“Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, asbatatas”, a mais sintética e eloqüente expressão <strong>da</strong> dinâmica<strong>da</strong>rwinista na literatura brasileira (Assis, 1999, p.21).Outra passagem de Memórias póstumas de Brás Cubasevoca um tema fun<strong>da</strong>mental do pensamento científico dofinal do século XIX, tema esse que adquiriria uma de suasexpressões mais extremas nas doutrinas do <strong>da</strong>rwinismosocial: a indiferença <strong>da</strong> natureza ante o sofrimento humano.Num acesso de delírio febril, o defunto-autor deparacom a Natureza, ou Pandora, e visualiza a história humanana terra como uma sucessão de “flagelos e delícias”.“Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, ainveja que baba, e a enxa<strong>da</strong> e a pena, úmi<strong>da</strong>s de suor, e aambição, a fome, a vai<strong>da</strong>de, a melancolia, a riqueza, o amor,e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo,como um farrapo”. Tudo isso se refletia no rosto<strong>da</strong>quela que era, simultaneamente, “mãe” e “inimiga”:8Essas duas tendênciasrefletem, como observouWilliams (1997), o fato deque a sobrevivência do maisapto e a luta pela vi<strong>da</strong> nãoprecisaram ser realmenteinventados pelo <strong>da</strong>rwinismo:eram uma reali<strong>da</strong>de muitopróxima <strong>da</strong> experiênciacotidiana <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>deindustrial inglesa, onde eramparcos os recursos disponíveispara a sobrevivência de umanumerosa população, o queembasava as idéias de “lutasangrenta” e “selva social”.Isso aju<strong>da</strong> a explicar apopulari<strong>da</strong>de adquiri<strong>da</strong>pelas doutrinas <strong>da</strong>rwinistas,participantes de um imagináriode horror, ameaça constantee medo.9No caso norte-americano,a evolução social do país foianalisa<strong>da</strong>, desde meados doséculo XIX, a partir <strong>da</strong>conquista de novas terrasain<strong>da</strong> despovoa<strong>da</strong>s, com aexpansão constante <strong>da</strong>fronteira de exploraçãoeconômica do território.Não por acaso, a idéia <strong>da</strong> lutacontra o meio foi um temaimportante do pensamentosocial naquele país, tendo sidodesenvolvi<strong>da</strong> por WilliamGraham Sumner, queenfatizou, sobretudo, asrelações do homem com omeio em que vive, e que éfonte de suas condições desobrevivência (Bowler, 1993;Becquemont, 1992).Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me peloscabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Sóentão pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Na<strong>da</strong>mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressãode ódio ou feroci<strong>da</strong>de; a feição única, geral, <strong>completa</strong>,era a <strong>da</strong> impassibili<strong>da</strong>de egoísta, a <strong>da</strong> eterna surdez, a<strong>da</strong> vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerra<strong>da</strong>sno coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressãoglacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço,diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dosseres. (Assis, 2002, p.26-7)De fato, como no delírio de Brás Cubas, o <strong>da</strong>rwinismosocial conduz ao paroxismo essa imagem <strong>da</strong> natureza comoforça vital exuberante e impassível, o que levou Hawkins(1997) a defender a idéia de que essa visão de mundo caracteriza-sepor uma relação dupla com a natureza: ela étanto um modelo, cujo conhecimento deve ser aplicadopara a compreensão <strong>da</strong>s instituições sociais e para suanormatização de acordo com as leis naturais, quanto umaameaça ao homem, devendo por isso ser temi<strong>da</strong> e, se possível,evita<strong>da</strong>, <strong>da</strong>do seu poder destrutivo e sua absolutaindiferença em face <strong>da</strong> luta pela vi<strong>da</strong>. Para compreenderessa dimensão ameaçadora <strong>da</strong> natureza no pensamento<strong>da</strong>rwinista, e as peculiari<strong>da</strong>des de sua presença na literaturabrasileira, devemos ressaltar que as teorias evolucionistaspreviam a existência de três níveis distintos de lutapela vi<strong>da</strong>. O primeiro deles é a luta de indivíduos <strong>da</strong> mesmaespécie entre si, tal como descrito sobretudo pela obra deHerbert Spencer, fun<strong>da</strong>dor do evolucionismo. Em segundolugar está a luta entre espécies diferentes, tema privilegiadopor Darwin em sua teoria <strong>da</strong> evolução. 8 Em terceirolugar, a luta poderia também envolver uma espécie, ou oconjunto <strong>da</strong>s espécies de um determinado meio físico-natural,contra as condições de vi<strong>da</strong> que esse oferece (Becquemont,1992). Esse aspecto foi considerado pelas teoriasevolucionistas de Spencer e Darwin, mas não teve maioresdesenvolvimentos em suas obras. 9Na literatura brasileira, um claro exemplo <strong>da</strong> presençado <strong>da</strong>rwinismo social, em sua vertente <strong>da</strong> disputa entregrupos humanos, é a interpretação <strong>da</strong> Guerra de Canudospor Euclides <strong>da</strong> Cunha. Em Os sertões, o escritor analisoua formação <strong>da</strong> etnia sertaneja por meio <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> “lutade raças”, desenvolvi<strong>da</strong> pelo sociólogo polonês Ludwig


170 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 171Gumplowicz. Na teoria de Gumplowicz (1940), <strong>da</strong>rwinistasocial por excelência, o progresso humano dá-se por meiode uma dinâmica que envolve, sempre, o conflito entredistintas etnias. Por meio <strong>da</strong> guerra, o grupo mais fortesubmete a seus objetivos o grupo mais fraco, formando-seuma nova socie<strong>da</strong>de que reúne dominantes e dominados.Essa nova socie<strong>da</strong>de é ti<strong>da</strong> como necessariamente superioràs duas anteriormente existentes, já que o trabalho dosmais fracos possibilita à elite do grupo superior acumularriquezas e dedicar-se a seu desenvolvimento intelectual eartístico, o que impulsionaria o progresso social. A luta deraças conduziria sempre, portanto, à evolução <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de,ain<strong>da</strong> que seus meios fossem bárbaros.Ao longo do tempo, do isolamento e <strong>da</strong> estabilizaçãosocial, a convivência dos dois grupos produziria interesses,necessi<strong>da</strong>des, hábitos e características culturais emcomum, ao mesmo tempo que a mistura racial, inevitávelentre dominantes e dominados, promoveria a formaçãode uma nova etnia, depois de um longo processo de estabilização.Isso não significaria, contudo, o termino <strong>da</strong> “lutade raças”, pois, uma vez consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> essa nova etnia, elatenderia a unir-se em torno do ódio ao estrangeiro, o queperpetuaria o processo, ao impulsioná-la à guerra. A dinâmicahistórica é, portanto, conduzi<strong>da</strong> pela animosi<strong>da</strong>deentre as raças e pelo desejo de submissão do outro, controlede maior território e posse de mais recursos naturais(Gumplowicz, 1940).Esse modelo foi aplicado ipsis litteris por Euclides <strong>da</strong>Cunha para descrever a formação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de sertaneja,o que teve importantes implicações sobre sua interpretaçãodo conflito. Foi também pelas lentes <strong>da</strong> “luta de raças”que o escritor enxergou o choque entre esses sertanejose os sol<strong>da</strong>dos republicanos. Em primeiro lugar, a teoriade Gumplowicz foi aplica<strong>da</strong> ao estudo <strong>da</strong> história do sertão.Segundo o escritor, os colonizadores de origem portuguesaque avançaram pelo território sertanejo entraramem conflito com os indígenas que o ocupavam, vencendoose submetendo-os. Por meio <strong>da</strong> inevitável mestiçagem<strong>da</strong>s duas raças formou-se uma nova socie<strong>da</strong>de. Os sertanejos“nasciam de um amplexo feroz de vitoriosos e vencidos”,e passavam a cooperar na ativi<strong>da</strong>de econômica pastoril(Cunha, 1985, p.167).Isolados pelas condições do meio geográfico, teriammantido a cultura característica dos seus primeiros habitantes,e consoli<strong>da</strong>do ao longo de três séculos uma formaçãoorgânica comum, mantendo-se imunes a influênciasexternas. Isso teria <strong>da</strong>do origem a uma socie<strong>da</strong>de coerentee coesa, e a um homem etnicamente bem-definido, “umretrógrado, não um degenerado” (ibidem, p.177). Isoladono espaço e no tempo, o sertanejo constituiria “o cernevigoroso <strong>da</strong> nossa nacionali<strong>da</strong>de” e “a rocha viva <strong>da</strong> nossaraça”, ou seja, um grupo racial quase totalmente estabilizado(ibidem, p.167, 559). Essa interpretação permite aoescritor explicar cientificamente a extraordinária resistênciado sertanejo, “Hércules-Quasímodo”, ante as forçasdo exército republicano, o que se somava à observação <strong>da</strong>sua perfeita a<strong>da</strong>ptação ao meio.Segundo Euclides <strong>da</strong> Cunha, originários de regiõesmais dinâmicas, onde o influxo de novas influências eraconstante, os grupos étnicos que formavam o exército republicanonão teriam tido condições de consoli<strong>da</strong>r suascaracterísticas formadoras, mostrando-se mestiços incoerentese instáveis, o que os teria colocado em desvantagemante os defensores de Canudos. Para explicar a derrotafinal do sertanejo, o escritor substitui o critério racialpor um critério cultural: apesar <strong>da</strong> solidez de sua formaçãoorgânica e conseqüentemente do seu caráter, o homem dosertão havia parado no tempo, despreparado a civilizaçãoque, tecnologicamente superior, necessariamente o venceria.Reverte-se a noção de “superiori<strong>da</strong>de racial” do sertanejo,em função de sua pretensa “inferiori<strong>da</strong>de cultural”.Essa não é, contudo, a única aplicação <strong>da</strong> teoria deGumplowicz à análise <strong>da</strong> guerra em Os sertões. Na “Notapreliminar”, Euclides <strong>da</strong> Cunha enuncia com clareza: “Acivilização avançará nos sertões impeli<strong>da</strong> por essa implacável‘força motriz <strong>da</strong> história’ que Gumplowicz, maior


172 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 173do que Hobbes lobrigou, num lance genial, no esmagamentoinevitável <strong>da</strong>s raças fracas pelas raças fortes”. Ouseja, a própria Guerra de Canudos é vista como uma “lutade raças”. O escritor já havia registrado que “o jagunçodestemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório serãoem breve relegados às tradições evanescentes, ou extintas”,afirmando, logo em segui<strong>da</strong>, que a campanha deCanudos foi, “na significação integral <strong>da</strong> palavra, um crime”(Cunha, 1985, p.85-6). No entanto, apesar de reconhecera barbárie <strong>da</strong> guerra, e condená-la, a idéia de quea retrógra<strong>da</strong> raça sertaneja estava inevitavelmente condena<strong>da</strong>à extinção pela imperativa expansão <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>deacaba por neutralizar sua denúncia do extermínio<strong>da</strong> população de Canudos, como percebeu Luiz Costa Lima(1997, p.25).Afinal, se seu desaparecimento era inevitável, a guerraapenas havia acelerado os fatos. Essa observação podeser endossa<strong>da</strong> pelo fato de que o escritor define a guerracomo “um primeiro assalto” <strong>da</strong> civilização aos sertões, afirmando,em outro trecho, que “to<strong>da</strong> aquela campanha seriaum crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhosabertos à artilharia para uma propagan<strong>da</strong> tenaz,contínua e persistente, visando trazer para o nosso tempo eincorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotasretar<strong>da</strong>tários” (Cunha, 1985, p.499). A posição de Euclides<strong>da</strong> Cunha não se afasta de Gumplowicz, para quem a lutade raças era “sempre civilizadora”, e acaba por vislumbrarum sentido último, e progressista, para a guerra de Canudos,dentro <strong>da</strong> melhor lógica <strong>da</strong>rwinista. De outro modo,uma certa simpatia pelo sertanejo “rocha viva <strong>da</strong> nossa raça”e sua denúncia dos crimes <strong>da</strong> guerra colaram a Os sertõesuma persistente ambigüi<strong>da</strong>de, que tende a obscurecer o significadoque o escritor atribui aos eventos históricos: uma“luta de raças” em que os “fracos”, ou seja, os sertanejosculturalmente “atrasados”, estariam inexoravelmente condenadosa desaparecer ante o avanço <strong>da</strong> civilização.Alguns anos depois <strong>da</strong> publicação de Os sertões, Euclides<strong>da</strong> Cunha continuou a desenvolver o tema do “esmagamentoinevitável <strong>da</strong>s raças fracas pelas raças fortes”, vislumbrandoa fragili<strong>da</strong>de do Brasil no contexto <strong>da</strong> expansãoimperialista européia. Em alguns textos publicados emContrastes e confrontos, o escritor inquietou-se com a suscetibili<strong>da</strong>dedo país no contexto <strong>da</strong> dinâmica política mundialna era <strong>da</strong> expansão imperialista.Em “A Arcádia <strong>da</strong> Alemanha”, o escritor contrasta oritmo lento do desenvolvimento capitalista no Brasil coma expansão vertiginosa <strong>da</strong>s forças produtivas na Europa enos Estados Unidos. Ele toma como ponto de parti<strong>da</strong> umminucioso inventário dos recursos naturais que poderiam,por meio <strong>da</strong>s inovações técnicas desenvolvi<strong>da</strong>s nas socie<strong>da</strong>desindustriais, inserir o Brasil na dinâmica capitalista.Esses recursos restavam, contudo, inexplorados. Enquantoisso, os países europeus viviam processo contrário, expandindo-seinopina<strong>da</strong>mente, sob o impulso <strong>da</strong> tecnologiaque multiplicava as forças produtivas em ritmo vertiginoso,mas que esbarrava, nas palavras do escritor, na limitaçãode seu espaço físico e de seus recursos naturais, a“clausura <strong>da</strong>s fronteiras”: “De sorte que a nossa esplêndi<strong>da</strong>mediocri<strong>da</strong>de se lhes torna em perpétuo desafio, repruindolhesa riqueza tortura<strong>da</strong> e a pletora de forças que, na ordemeconômica, caracteriza o moderno imperialismo”(Cunha, 1923b, p.33). Essa ameaça, ain<strong>da</strong> que ver<strong>da</strong>deira,acaba, no entanto, sendo refuta<strong>da</strong> pelo escritor, umavez que ele acreditava que a política externa <strong>da</strong> Alemanhaocupava-se, naquele momento, de interesses maisimediatos, tanto na própria Europa quanto na África.Os temores do escritor mostram-se mais explícitos em“Nativismo provisorio”, artigo em que claramente se condicionaa análise política a uma idéia de conflito entre raças.Pregando a conservação dos “atributos essenciais <strong>da</strong>nossa raça e dos traços definidores <strong>da</strong> nossa gens complexa”,o escritor defende, ao mesmo tempo, o incentivo àcontribuição do imigrante branco dotado de “energia européiamais ativa e apta” (Cunha, 1923a, p.220). Na suaanálise, entretanto, tal questão tem também um “lado sombrio”:“falta-nos integri<strong>da</strong>de étnica que nos aparelhe de


174 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 175resistência diante dos caracteres de outros povos”. SegundoEuclides <strong>da</strong> Cunha, o Brasil encontrava-se em umacondição de debili<strong>da</strong>de deriva<strong>da</strong> de uma formação racialinstável, ain<strong>da</strong> em curso, e que tenderia a promover a dispersão<strong>da</strong>s diversas energias raciais que se punham em fusão.Esse fato tornar-se-ia particularmente inquietante apartir do momento em que se considerava “o pendor atuale irresistível <strong>da</strong>s raças fortes para o domínio, não pela espa<strong>da</strong>,efêmeras vitórias ou conquistas territoriais – mas pelainfiltração poderosa do seu gênio e <strong>da</strong> sua ativi<strong>da</strong>de”(ibidem, p.223).Restaria ao povo brasileiro, portanto, buscar um difícilequilíbrio entre a aceitação <strong>da</strong> colaboração do estrangeiro,dotado do conhecimento técnico-científico, e umadefesa <strong>da</strong> originali<strong>da</strong>de de suas características formadoras,<strong>da</strong> qual dependeria a manutenção de sua soberaniapolítica. Naquele momento, portanto, o autor consideranecessário adotar “medi<strong>da</strong>s que contrapesem ou equilibrem,a nossa evidente fragili<strong>da</strong>de de raça ain<strong>da</strong> in<strong>completa</strong>,com a integri<strong>da</strong>de absorvente <strong>da</strong>s raças já constituí<strong>da</strong>s”(ibidem, p. 224). Segundo ele, se não eram claras quaisas políticas defensivas a serem adota<strong>da</strong>s contra a pressão<strong>da</strong> expansão européia, cabia rejeitar qualquer proposta quepermitisse maior influência estrangeira na vi<strong>da</strong> políticanacional.Nesse sentido, o pensamento de Euclides <strong>da</strong> Cunhaparece dialogar com sua própria interpretação <strong>da</strong> guerrade Canudos. Como vimos, na luta entre os “sertanejos retrógrados”,mas não degenerados, contra os “mestiços instáveisdo litoral”, havia prevalecido a superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> técnicae <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong> moderna civilização que, um tantocontraditoriamente, era porta<strong>da</strong> pela guerra. Esses mestiçosbrasileiros, capazes de esmagar as “raças mais fracas”,ou, no caso, as mais “atrasa<strong>da</strong>s” do território brasileiro,estariam, no entanto, por sua vez, em situação de evidente“inferiori<strong>da</strong>de” ante os povos europeus, étnica, biológicae culturalmente estáveis, munidos ain<strong>da</strong> de um poderiomilitar capaz de submeter povos ain<strong>da</strong> em formação aosseus propósitos. A lógica que move o escritor reflete comnitidez a articulação entre o discurso <strong>da</strong> luta entre gruposhumanos pelos recursos naturais necessários à sobrevivência,e um discurso político que justifica a ação imperialistapor considerar simplesmente natural a uma nação como aAlemanha, “expandir-se, sistematicamente conquistadora,arriscando-se às maiores lutas” (Cunha, 1923b, p.34).Observa-se, portanto, o caráter genérico e impreciso<strong>da</strong> retórica <strong>da</strong>rwinista, capaz de, ao mesmo tempo, conferirsentido a uma briga de “patos, gansos, galinhas, pequenose grandes”, e à política internacional. Resta saber se umadoutrina que tudo explica, servindo-se <strong>da</strong> linguagem <strong>da</strong>superiori<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> força, do conflito e <strong>da</strong> conquista, é realmentecapaz de explicar alguma coisa. No entanto, o papel<strong>da</strong> “sociologia <strong>da</strong> luta” na condução dos rumos <strong>da</strong> históriaa partir do final do século XIX recomen<strong>da</strong> não menosprezarseu poder, senão analítico, retórico e ideológico.“Uma ver<strong>da</strong>deira saga <strong>da</strong> terra e <strong>da</strong> sua vitóriasobre o homem”Na literatura brasileira de extração naturalista-realista,adquire destaque o terceiro aspecto <strong>da</strong> luta pela sobrevivênciaprevisto por Spencer e Darwin, referente à lutade uma espécie (ou o conjunto delas) de um <strong>da</strong>do ambientecontra as limitações que esse lhe impõe. Esse sentido <strong>da</strong>luta, pouco desenvolvido teoricamente pelos dois maioresexpoentes do evolucionismo, foi amplamente representadono Brasil, mediante uma literatura que tem como temarecorrente a luta do homem contra a natureza do país. Defato, é peculiarmente excêntrica no panorama intelectualbrasileiro a visão encomiástica de Porque me ufano do meupaís – right or wrong, my country, de Affonso Celso (1900),em que parte significativa dos louvores ao Brasil está fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>na exaltação <strong>da</strong> grandiosi<strong>da</strong>de e riqueza de seumeio físico.Mais representativo <strong>da</strong> visão de sua época é outro livrobastante popular e também direcionado à formação


176 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 177patriótica nas escolas, Atravez do Brasil – livro de leiturapara o curso médio <strong>da</strong>s escolas primárias, escrita por Bilac& Bonfim (1921). Ao contrário <strong>da</strong> obra de Affonso Celso,esse livro, dedicado ao exercício <strong>da</strong> leitura nos dois últimosanos <strong>da</strong> escola primária, propõe-se a ser uma “liçãode energia”, dedica<strong>da</strong> a incutir na infância o interesse peloconhecimento do território e uma noção <strong>da</strong> força necessáriapara enfrentar os obstáculos impostos pela naturezabrasileira à ocupação e exploração produtiva do território.Na longa travessia dos seus personagens principais, duascrianças que do Brasil urbano e litorâneo marcham pelointerior do Brasil, sucedem-se paisagens secas, caminhospedregosos, desertos “sem sombra nem água”, entremeadospor maravilhas naturais, florestas virgens, rios cau<strong>da</strong>losos,que antes de despertar admiração incutem nas criançasprofundo temor. O percurso aventuresco dessa viagemde iniciação pelo Brasil assume uma função moralizadora,ao preconizar a construção de um rico país do futuro apartir <strong>da</strong> luta pela superação <strong>da</strong>s resistências naturais, imagemcoerente com aquela que foi construí<strong>da</strong> e intensamenteexplora<strong>da</strong> pelos intelectuais formados sob a influênciado cientificismo.Volta<strong>da</strong> para a vi<strong>da</strong> rural, a literatura regionalista foi,certamente, o locus privilegiado <strong>da</strong> construção <strong>da</strong> idéia <strong>da</strong>luta do homem brasileiro contra as restrições do meio físicodo país. O crítico Afrânio Coutinho (1990, p.197) definiucom perfeição esse fato, ao afirmar que “a literaturaregional brasileira é uma ver<strong>da</strong>deira saga <strong>da</strong> terra e <strong>da</strong> suavitória sobre o homem”. O próprio Policarpo Quaresma,em sua curta experiência no campo, desenvolve o tema,buscando na inovação tecnológica um meio de enfrentaras resistências do meio físico, e de superar uma aparenteaversão <strong>da</strong> terra à presença humana. A intermediação <strong>da</strong>técnica é, contudo, um elemento praticamente inexistentenessa literatura volta<strong>da</strong> para as rudes comuni<strong>da</strong>des ruraise a expansão <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de econômica em direção a novaszonas de exploração. Pelo contrário, a precarie<strong>da</strong>de dosinstrumentos de que dispõe o homem em sua luta contrao meio é essencial para a representação desses espaços.Mais que isso, na interpretação mais comum, as comuni<strong>da</strong>desanacrônicas estariam fatalmente condena<strong>da</strong>s a serdestruí<strong>da</strong>s pela moderni<strong>da</strong>de, o que, aliás, fortalece a funçãode “registro etnológico” assumi<strong>da</strong> pelo discurso regionalista.Apesar de lançar mão de um imaginário românticodo retorno sentimental à terra de origem, o olhar dirigidoaos espaços rurais e naturais na literatura brasileira é, contudo,fun<strong>da</strong>mentalmente modernizador e permeado pela“sociologia <strong>da</strong> luta”, direcionando-se para reali<strong>da</strong>des regi<strong>da</strong>spelo acaso ou pela mão indiferente <strong>da</strong> “mãe e inimiga”natureza.Pelo sertão, de Affonso Arinos, um dos maiores clássicosdo gênero em sua fase realista-naturalista, pode sertomado como modelo dessa perspectiva. O conto “Desamparados”,por exemplo, constrói-se a partir do contrasteentre a beleza e a grandiosi<strong>da</strong>de do cenário natural e afigura esquáli<strong>da</strong> de um idiota que passava pelo caminho, eque assim parecia se diminuir mais ain<strong>da</strong>. O narrador põese,então, a acompanhá-lo, intrigado pela sobrevivênciade um ser tão mofino, e inquirindo a razão de ter ele escapadoàs feras e às tempestades. O questionamento refleteespanto ante uma situação inespera<strong>da</strong>, pois torna-se nítidoque, em sua visão, o mais plausível teria sido a aniquilaçãodo fraco pelas forças inescapáveis <strong>da</strong> natureza. Nodesfecho do conto, o raquítico caminhante, observado comum misto de curiosi<strong>da</strong>de e comiseração, encontra um ninhode perdizes ain<strong>da</strong> implumes, o que conduz o narradorà conclusão:O ninho estava desamparado à beira <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> e tambémo tinham poupado as enxurra<strong>da</strong>s, em torrentes, nesse tempode grandes chuvas, e as raposas em sua ron<strong>da</strong> <strong>da</strong> noite.Também os mesquinhos e desamparados encontram cariciosoaconchego no seio largo <strong>da</strong> natureza infinita. (Arinos,1898b, p.112)Nessa mesma obra de Arinos há outro exemplo <strong>da</strong>presença de uma lógica <strong>da</strong>rwinista subjacente, que pres-


178 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 179supõe a luta, mas admite que a indiferença <strong>da</strong> naturezapode resultar em compaixão pelos fracos. O conto “A fuga”(Arinos, 1898a) narra a luta de um casal de escravos fugitivospara cruzar um rio em plena cheia e percorrer umamata cerra<strong>da</strong>, durante uma tempestade. Enquanto isso,ver<strong>da</strong>deiros dramas de destruição e morte desenrolavamsena mata, onde a enxurra<strong>da</strong> alagava abrigos, inun<strong>da</strong>vaninhos e esmagava animais sob o peso dos galhos caídos.O casal de escravos, por sua vez, demonstrava “um esforçovivo e inteligente, terrível e heróico, [e] lutava contraa força esmagadora <strong>da</strong> natureza onipotente”. O prêmiopela vitória era, mais que a liber<strong>da</strong>de, a própria sobrevivência.No dia seguinte, enquanto o sol iluminava lentamente“o campo de batalha <strong>da</strong> véspera”, os escravos recebiamseus raios como “uma carícia de amor e pie<strong>da</strong>de paraos miserandos, um resplendor de vitória para os lutadores”(ibidem, p. 134). Encontraremos freqüentemente essetema do terror <strong>da</strong> natureza, enti<strong>da</strong>de ameaçadora e onipotente,na literatura sertanista, assumindo uma moral ambíguaque oscila entre a glorificação <strong>da</strong> força do homem rudeem sua condição de luta constante pela sobrevivência nomeio hostil, e a idéia <strong>da</strong> suscetibili<strong>da</strong>de que o mostra sempreameaçado pelos inúmeros perigos e caprichos <strong>da</strong> natureza,que outro grande expoente do regionalismo, Hugode Carvalho Ramos (1950, p.36), definiu como “companheira,mas assassina, mas perfi<strong>da</strong>mente traiçoeira”.A luta de Policarpo Quaresma, no romance de LimaBarreto, para demonstrar a extraordinária fertili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sterras brasileiras e, a partir <strong>da</strong>í, esboçar seu plano de salvaçãonacional pela agricultura desenrolou-se inúmerasvezes na literatura brasileira do período realista-naturalista.Talvez um dos exemplos mais eloqüentes seja o romanceMiragem, de Coelho Netto (1926), publicado em 1895.Como Policarpo Quaresma, o personagem central do romancese inspira em uma visão idílica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> rural, <strong>da</strong>existência “tranqüila e suave” provi<strong>da</strong> pela abundância <strong>da</strong>natureza. Thadeu é, como Quaresma, um homem poucoafeito às lides rurais, mas que vislumbra na força <strong>da</strong> terra aopção por uma vi<strong>da</strong> regra<strong>da</strong>, abun<strong>da</strong>nte e redentora. Nocotidiano do trabalho, no entanto, a “luta era terrível”.Na definição do escritor, a exuberância do meio tropical,antes que um manancial de riquezas, mostrava-se um estorvo,pela “força viva e inconstante <strong>da</strong> natureza”, obstáculoao exercício <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de agrícola que, ao contrário,exigia regulari<strong>da</strong>de e previsibili<strong>da</strong>de. Decerto, depois detrês meses de pesado trabalho físico na capina, o jovemviu todo o seu trabalho perdido por causa de uma chuvaabun<strong>da</strong>nte que fez rebrotarem os vegetais agrestes. Exausto,Thadeu acabou por perder as esperanças, golfou sanguee, com a saúde arruina<strong>da</strong> pelo esforço excessivo, viuseatraiçoado por aquela a que havia dedicado to<strong>da</strong>s asforças. “A terra vencera o homem”, define o narrador. Ofato é que to<strong>da</strong>s as futuras peripécias do personagem serãotoca<strong>da</strong>s pelo seu sentimento de derrota e pelas seqüelasdo trabalho exaustivo no campo, a que sacrificara inutilmentesuas energias.A terra...! Conhecia-a bem! Fora ela que o reduzira àquelamiséria, que lhe arrancara o primeiro sangue, que o venceraformi<strong>da</strong>velmente quando ele tentara domá-la, tirandolhea braveza do maninho, limpando-a <strong>da</strong>s ervas, destorroando-a,revolvendo-a. Sentia-se vencido, incapaz dequalquer esforço: mole de corpo, quebrado de ânimo. (CoelhoNetto, 1926, p.232)A trajetória de que<strong>da</strong> do personagem, a partir de suaderrota na “luta terrível” contra a terra, dá a medi<strong>da</strong> dotom dramático e freqüentemente sombrio <strong>da</strong> representação<strong>da</strong>s relações entre o homem e a natureza, na literaturabrasileira do período entre o final do século XIX e as primeirasdéca<strong>da</strong>s do século XX. A ênfase no conflito com omeio em busca <strong>da</strong> sobrevivência está ampara<strong>da</strong> por umalógica <strong>da</strong>rwinista que acentua o sentido bifronte <strong>da</strong> naturezacomo a própria essência <strong>da</strong> doutrina (Hawkins, 1997):a natureza-modelo é fun<strong>da</strong>mental para a construção <strong>da</strong>própria imagem do ser humano, participante <strong>da</strong>s leis naturais<strong>da</strong> evolução; a natureza-ameaça assume as formas


180 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 18110Sobre a formação, aativi<strong>da</strong>de profissional, aprodução intelectual e o papelassumido por Theophilo nasocie<strong>da</strong>de cearense, ver Victor(1923).<strong>da</strong> onipotência, <strong>da</strong> indiferença ou <strong>da</strong> violência de suasmanifestações. Os mais eloqüentes exemplos do desenvolvimentodessa terceira linha do <strong>da</strong>rwinismo, a luta contrao meio, na literatura brasileira, são encontrados em narrativasque dramatizam a presença humana em espaços marcadospela extrema carência ou pela extrema abundânciade recursos: a literatura sobre as secas, que se tornaramfenômenos recorrentes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no Nordeste brasileiro, principalmentea partir de 1877, e a literatura sobre a Amazônia,que despertava interesse crescente à medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> intensificação<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de de extração <strong>da</strong> borracha, no final doséculo XIX.Nas circunstâncias históricas que direcionaram a atenção<strong>da</strong> elite letra<strong>da</strong> para essas duas regiões, a luta pelasobrevivência tornou-se fonte de inspiração para uma literaturade fundo naturalista, que tinha como grandesquestões as relações entre o humano e o natural, aí compreendi<strong>da</strong>a própria natureza humana, em suas manifestaçõesmais irracionais. De fato, a perspectiva <strong>da</strong>rwinistacontribuiu para a formação do naturalismo literário, queadotou alguns de seus temas: a seleção natural, as influênciasdo meio e <strong>da</strong> hereditarie<strong>da</strong>de, a interação entre indivíduose grupos e sua influência recíproca, e, principalmente,a luta pela vi<strong>da</strong> (Chevrel, 1993, p.34-5). O naturalismopõe no centro <strong>da</strong> situação dramática o peso <strong>da</strong> imposição<strong>da</strong>s leis naturais sobre o ser humano que, uma vez desnu<strong>da</strong>dopelas pressões do meio <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s superficiais decivilização, seria inteiramente guiado por instintos egoístase de sobrevivência, o que conduziria à ruptura dos códigosmorais e sociais, expondo a fragili<strong>da</strong>de e aartificiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ordem social (Baguley, 1995).Na literatura realista-naturalista brasileira, a dramáticacontradição entre as imposições <strong>da</strong> natureza e os propósitosdo homem, incapaz de exercer qualquer tipo decontrole ou de manipulação dos recursos produtivos, acentuaas deman<strong>da</strong>s de modernização institucional e produtivadefendi<strong>da</strong>s crescentemente pela intelectuali<strong>da</strong>de dopaís. De fato, o progresso técnico era uma perspectiva distante<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de cotidiana <strong>da</strong>s regiões mais selvagens doterritório, mas firmava-se na mente <strong>da</strong> elite culta como aúnica possibili<strong>da</strong>de de redenção do homem brasileiro, aparentementedestinado à derrota na luta contra a natureza.As secas que acometeram o sertão nordestino a partir<strong>da</strong>s últimas déca<strong>da</strong>s do século XIX eram, sem dúvi<strong>da</strong>, umobjeto privilegiado para a observação <strong>da</strong> luta pela vi<strong>da</strong> emseus mais extremos aspectos. Vários autores ocuparam-sedo tema, desde o precursor José do Patrocínio, com seuromance-reportagem Os retirantes, publicado em 1879, atéas versões renova<strong>da</strong>s do tema, no âmbito do regionalismonordestino <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1930. Tomaremos aqui como referênciaa pouco conheci<strong>da</strong> e explora<strong>da</strong> obra do cearenseRodolpho Theophilo, farmacêutico e catedrático em ciênciasnaturais que, em sua própria definição, tornou-se o“cronista dos infortúnios do Ceará”. 10 Sua produção, tantoa científica quanto a ficcional, possui intenção declara<strong>da</strong>mentehistoriográfica, à medi<strong>da</strong> que ele compreende aescrita em sua função exemplar e didática, capaz de influirsobre os leitores “para que meditem em nossas aflições,tirem delas ensinamentos e se aparelhem para resistir melhordo que nós, à dissolução do meio, às tentações domal” (Theophilo, 1922a, p.6). Sua primeira obra sobre otema, a História <strong>da</strong> seca no Ceará, foi publica<strong>da</strong> em 1883,numa perspectiva exclusivamente científica volta<strong>da</strong> paraa análise <strong>da</strong>s causas, dos condicionantes e dos resultadosdo fenômeno <strong>da</strong> seca, a partir de uma coleção de informaçõescientíficas e medições meteorológicas.O primeiro romance publicado por Theophilo (1922a),A fome – scenas <strong>da</strong> seca no Ceará, consiste em uma espéciede ficcionalização <strong>da</strong> dinâmica <strong>da</strong>rwinista <strong>da</strong> luta pelavi<strong>da</strong>, com pretensões que também não se afastam de umaidéia de ciência. Afinal, A fome pretende ser um estudo doser humano em condições de extrema carência de recursos.O romance narra a caminha<strong>da</strong> de um grupo de retirantesque abandona a aridez do sertão em busca do mínimonecessário à sobrevivência nas regiões mais úmi<strong>da</strong>s,próximas ao litoral. Ca<strong>da</strong> passo à frente significa uma que-


182 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 183<strong>da</strong>, que descreve um ritmo crescente de decomposição <strong>da</strong>scama<strong>da</strong>s superficiais de cultura, moral e valores que caracterizama vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong>de. O esgotamento <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>desde sobrevivência individual acaba produzindo umhomem desprovido de sua condição especificamente humana,animalizado e totalmente entregue aos instintos.Na narrativa de Theophilo (1922a), o meio ofereceao sertanejo, inicialmente, algumas parcas alternativas dealimentação, mas a total dependência em relação à naturezao torna suscetível a sua indiferença, salvadora ou cruel.Assim, se num <strong>da</strong>do momento era possível recorrer àcarnaubeira, <strong>da</strong> qual tudo se aproveitava, em outro umafamília inteira acaba sucumbindo aos efeitos venenososde uma raiz aparentemente comestível. Da luta do homemcontra o homem desenrolam-se episódios que conduzemao extremo o grotesco naturalista, pois na “luta pelasobrevivência” não há regras. Do combate contra a naturezaresta uma paisagem desola<strong>da</strong>, desnu<strong>da</strong><strong>da</strong> de to<strong>da</strong>s assuas formas de vi<strong>da</strong>.Ao tema <strong>da</strong> seca o escritor articularia ain<strong>da</strong> a problemáticado banditismo no sertão nordestino, o que <strong>da</strong>riaorigem ao romance Os brilhantes. Nesse caso, a perspectiva<strong>da</strong>rwinista de Theophilo (1972, p.246) o impulsiona abuscar também na formação racial do povo nordestino umaexplicação para aquilo que, segundo ele, era seu “atávicoinstinto homici<strong>da</strong>”, ou seja, a herança nefasta <strong>da</strong>s ditas“raças inferiores” sobre a formação étnica do povo nordestino,que o tornaria peculiarmente inclinado à violência,pouco afeito ao estabelecimento de laços estáveis coma família, a comuni<strong>da</strong>de e a terra, <strong>da</strong>do a aventuras e auma existência nômade.A mesma interpretação, que sobrepõe à narrativa <strong>da</strong>luta contra o meio uma condenação implícita do homemnordestino, é retoma<strong>da</strong> na obra mais grandiosa do escritor,O paroara (Theophilo, 1899). Seu personagem centralé João <strong>da</strong>s Neves, um simples homem mestiço do sertãoque já se apresenta como uma vítima <strong>da</strong> seca, pois seextraviara <strong>da</strong> família retirante durante a seca de 1877.Retornando já adulto à terra natal, ele tenta reconstruirsua vi<strong>da</strong> na primitiva casa familiar, estabelecendo-se aí econstituindo sua própria família. Já em princípio, essepropósito indica, na interpretação do escritor, que seu personagemera um “mestiço superior”, capaz de fixar-se aosolo e estabelecer firmes vínculos afetivos.A busca do sustento de sua família, na hostili<strong>da</strong>de dosertão nordestino, era renhi<strong>da</strong> e heróica, pois João <strong>da</strong>sNeves “vivia numa dolorosa luta contra o solo, senão esfalfado,ao menos estéril pela inconstância <strong>da</strong>s chuvas”(ibidem, p.112-3). Numa tentativa de obter colheita maisfarta, o sertanejo abre, com a aju<strong>da</strong> de um mutirão de vizinhos,um novo roçado, derrubando e queimando a mata;espera a chuva, planta, e vê brotarem as primeiras sementes;bastavam então novas chuvas que regassem as plantas,mas o tempo mantém-se seco, e uma praga de lagartasdestrói sua plantação; intenta um novo plantio, desfazendo-sedo único bem que lhe restava, mas as chuvas novamentefaltam, as novas sementes não brotam e ele se vêtotalmente alquebrado de ânimo. A trajetória de esperança,esforço, entusiasmo, decepção, novo esforço, desilusãoe desespero realça não tanto a destrutivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> natureza,mas sua perversi<strong>da</strong>de: “Inventivou a terra chamando-a demadrasta, pior ain<strong>da</strong> do que a cascavel. Esta cobra comeos filhos ao nascer, pequeninos, e o Ceará faz pior do queela, deixa crescer os filhos para comê-los depois de grandes”(ibidem, p.203) O personagem desiste, então, <strong>da</strong> agriculturae, na definição do escritor, “regride” na escala evolutiva,passando a buscar seu sustento na caça e na pesca.A segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> luta de João <strong>da</strong>s Neves contra anatureza dá-se num novo cenário, a Amazônia, para ondesegue, seduzido pelas promessas de fartura que conduziamao novo eldorado ver<strong>da</strong>deiros batalhões de nordestinos quefugiam <strong>da</strong> seca. Na Amazônia a derrota não vem <strong>da</strong> restrição<strong>da</strong>s formas de vi<strong>da</strong>, mas de sua abundância, à qual ohomem nordestino raramente se a<strong>da</strong>ptava. Os inimigosestavam por to<strong>da</strong> parte, eram insetos, animais ferozes, índiosselvagens e epidemias palustres que a poucos poupa-


184 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 185vam. Doravante, além de lutarem contra a natureza, lutariamos homens também entre si, pois os “mais fortes” nãohesitavam em escravizar e explorar os “mais fracos”. Novamentederrotado pelo meio, João <strong>da</strong>s Neves retorna àterra natal já condenado pela malária. Sua mulher agonizavae todos os seus quatro filhos haviam morrido de fome.A conclusão de Theophilo (1899, p.474-82) é, semdúvi<strong>da</strong>, espantosa. Depois de narrar com cores vivas a lutado homem pela sobrevivência nas duras condições do sertãonordestino, demonstrando seu trabalho penoso e disciplinado,e retratando a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de de sua vivênciacomunitária, depois de descrever em tom heróico as penosascondições do trabalho nos seringais e as tentativasde a<strong>da</strong>ptação ao meio hostil <strong>da</strong> Amazônia, o escritor acabapor condenar o sertanejo por sua própria miséria, atribuindoo êxodo nordestino à cobiça, ao sonho <strong>da</strong> riquezafácil, ao fatalismo inato e aos atávicos instintos nômades<strong>da</strong>s ditas “raças inferiores”. O <strong>da</strong>rwinismo social, em suavertente racialista, cavava assim um fosso profundo entreo povo e a elite letra<strong>da</strong> que, mesmo quando pretendia acercar-se<strong>da</strong> miséria, acabava por justificá-la.Rodolpho Theophilo expressa um pensamento tãodifundido em sua época que mais fácil seria nomear seuscríticos. 11 Na literatura sobre a Amazônia, a mais perfeitaexpressão desse pensamento pode ser encontra<strong>da</strong> em Osseringaes. Nesse livro, o jornalista Mário Guedes (1914)busca retratar a recente ocupação <strong>da</strong> região amazônica,mas não sem antes explicitar o sentido histórico que nelavislumbrava. Segundo ele, “a lei <strong>da</strong> evolução natural <strong>da</strong>scoisas” indicava que a civilização caminhava dos climastemperados para os climas quentes. Isso porque apenas oprogresso científico tornaria possível gerar os meios de sobrevivêncianos climas “menos favorecidos”, ou seja, ostropicais e equatoriais. Nesse sentido, a Amazônia acabariapor ser uma <strong>da</strong>s últimas terras do planeta a serem civiliza<strong>da</strong>s,mantendo uma imensa reserva de recursos para ahumani<strong>da</strong>de. Naquele início do século XX, a imigraçãoeuropéia consistia, na visão do autor, no maior fator de11Dentre os mais notáveiscríticos do racismo científicono Brasil, citam-se ClóvisBeviláqua, Alberto Torres,Manuel Bonfim e Araripe Jr.Ver, a respeito, Murari(2007, c.2).progresso, transportando as conquistas <strong>da</strong> civilização pararegiões onde essa não teria condições de desenvolver-seespontaneamente. Na Amazônia, contudo, essa dinâmicade expansão civilizacional dependeria de que fossem suavizadosos caminhos para o ingresso do imigrante, abran<strong>da</strong>ndoas asperezas naturais, o que, na definição do escritor,era um papel a ser desempenhado pelo trabalhadornacional, nota<strong>da</strong>mente o nordestino. Segundo ele:O que perdemos, por um lado, no centro do País, ganhamos,por outro, no extremo.Certamente que tal compensação custa muita dor, muitalágrima, muito sofrimento.Mas qual tem sido a história <strong>da</strong> civilização para chegar aoestado atual senão o resultado de tudo isso?Portanto, lamentação, nesse caso, seria pieguismo.Não se compreende progresso sem luta, sem trabalho, sejaele de que espécie for. Pois o progresso é a resultante de umduelo entre o homem e a natureza.E o mundo com sua técnica no referente a todo esse progressoe ao que lhe diz respeito, é uma espécie de Maquiavel,cujos fins justificam os meios. (Guedes, 1914, p.75-6)Daí se depreende que, se as secas não tivessem acometidoo Ceará, o progresso observado na Amazônia naquelemomento não teria sido possível. Isso porque apenaso homem do sertão seria capaz, por sua a<strong>da</strong>ptação aostrópicos, sua força e resistência física, sua grande capaci<strong>da</strong>dede sofrimento e resignação, de suportar o clima amazônico,que vitimaria mesmo o brasileiro do Centro-Sul.Assim, a presença do homem branco <strong>da</strong> Amazônia só era,segundo o autor, observa<strong>da</strong> em regiões já desbrava<strong>da</strong>s pelosertanejo, que derrubara a mata e drenara os pântanos,ain<strong>da</strong> que à custa de eleva<strong>da</strong> mortali<strong>da</strong>de. Por meio <strong>da</strong>luta contra a natureza <strong>da</strong> Amazônia, do enfrentamento desuas feras, seus insetos, suas águas pestíferas, o bravo homemnordestino desempenharia a função essencial de estabelecerum povoamento inicial que representasse amelhoria <strong>da</strong>s condições sanitárias <strong>da</strong> região. Mesmo fa-


186 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 “A vi<strong>da</strong> e os prêmios que ela comporta”: <strong>da</strong>rwinismo social e... 187zendo questão de afirmar que, em princípio, o mestiço eraum ser desequilibrado e incompleto, o autor atribui à suaepopéia amazônica um grande papel na história brasileira,e por que não dizer, na história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. “Foi eleque, perdendo a vi<strong>da</strong> e a saúde, deu saúde e vi<strong>da</strong> àquelemeio” (Guedes, 1914, p.95). Portanto, enquanto os paíseseuropeus despendiam fortunas no desbravamento <strong>da</strong> África,ao Brasil na<strong>da</strong> vinha custando o trabalho do sertanejo,que afinal adquire um elevado sentido:Porque a ver<strong>da</strong>de é que só ele, pela sua compleição conseqüentedo cruzamento, seria um elemento efetivo para semelhanteobra, rudimentar, é certo, mas imprescindível paraos grandes empreendimentos de mais tarde.De resto, isso obedece à lei de evolução natural <strong>da</strong>s cousas.O mestiço está sendo acolá o precursor do progresso, está‘aplainando os caminhos do Senhor’, para o levantamento<strong>da</strong>s futuras civilizações, para o triunfo <strong>da</strong>s raças mais fortes,que têm por isso mesmo mais do que ele direito à vi<strong>da</strong>.(ibidem, p.97)A conclusão do jornalista ecoa a sugestão de QuincasBorba a Brás Cubas, quando falece sua noiva Eulália. Afinal,também aqui há na morte um fim brilhante, do qual onarrador considera-se beneficiário, como homem brancoe civilizado. Isso, claramente, desperta nele, como no filósofodo humanitismo, um “secreto encanto” pela sua própriasobrevivência, ou pela sobrevivência de seu grupo,sinal evidente de superiori<strong>da</strong>de. Como a Brás Cubas, a idéiade Mário Guedes deve nos soar demasia<strong>da</strong>mente absur<strong>da</strong>para ser leva<strong>da</strong> a sério, mas convém não desprezar as conseqüênciasdo <strong>da</strong>rwinismo social, com sua lógica egoísta,finalista, amoral e agressiva, quando visto em perspectivahistórica. Afinal, quando a paródia e o real se confundem,parecem ter-se perdido os fun<strong>da</strong>mentos de nossa própriaracionali<strong>da</strong>de.ReferênciasAFFONSO CELSO. Porque me ufano do meu paiz: right or wrong,my country. 3.ed. rev. Rio de Janeiro: Garnier, [191-]. [1.ed. 1900].ARINOS, Affonso. A fuga. In: . Pelo sertão. Rio de Janeiro:Garnier, 1898a.. Desamparados. In: . Pelo sertão. Rio de Janeiro: Garnier,1898b.ASSIS, Machado de. A nova geração [1879]. In: . Obras <strong>completa</strong>sde Machado de Assis. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1955.v.29, p.180-244.. Quincas Borba. São Paulo: Klick, 1999.. Memórias póstumas de Brás Cubas. Porto Alegre: L&PM,2002.BAGULEY, David. Le naturalisme et ses genres. Paris: Nathan, 1995.BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 11.ed. São Paulo:Ática, 1993.BARROS, Roque Spencer Maciel de. A ilustração brasileira e a idéiade universi<strong>da</strong>de. São Paulo: Edusp, 1986.BECQUEMONT, Daniel. Aspects du <strong>da</strong>rwinisme social anglosaxon.In: TORT, Patrick. (Org.) Darwinisme et société. Paris: PressesUniversitaires de France, 1992. p.137-59.BECQUEMONT, Daniel; MUCCHIELLI, Laurent. Le cas Spencer:religion, science et politique. Paris: Presses Universitaires de France,1998.BILAC, Olavo; BOMFIM, Manuel. Atravez do Brazil: narrativa –livro de leitura para o curso medio <strong>da</strong>s escolas primarias. 7.ed. Riode Janeiro: Paulo de Azevedo; Paris: Aillaud, 1921.BOWLER, Peter J. Darwinism. New York: Twayne, 1993.CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis In: .Vários escritos. São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong>des, 1988a.. O método crítico de Sílvio Romero. São Paulo: Edusp, 1988b.CHEVREL, Yves. Le naturalisme: étude d’un mouvement littéraireinternational. 2.ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.COELHO NETTO. Miragem. 4.ed. Porto: Chardron, 1926.COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 15.ed. Riode Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.


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191A ilustração viajante e as suas sombrasCeldon Fritzen*RESUMO: Este trabalho propõe discutir a representação <strong>da</strong> terrae do homem amazônicos em relatos de viagem. Para isso, serãoexplora<strong>da</strong>s as contradições observáveis em tais relatos, destacandoos processos de construção de uma nova tradição de relatosde viagem, a partir <strong>da</strong> crítica às fantasias presentes nos relatosde viagem pioneiros.PALAVRAS-CHAVE: Relatos de viagem, mito, Iluminismo, Amazônia.ABSTRACT: This work intends to discuss the representation ofthe man and the land of the Amazon in travel narratives. Forthis, the contradictions of such narratives will be explored, underliningthe processes of construction of a new tradition ofnarrative of travels narrative, stemming from the criticism aboutthe existence of fantasia in pioneering works.KEYWORDS: travel narrative, myth, Enlightenment, the Amazon.* Universi<strong>da</strong>de do ExtremoSul Catarinense (Unesc).Numa caminha<strong>da</strong> que fazia rumo ao ponto mais setentrionalde sua viagem pela Amazônia, a aldeia de Yavita,localiza<strong>da</strong> já na Venezuela às margens de um riacho afluentedo Orinoco, Wallace foi surpreendido pelo súbito anoitecer<strong>da</strong>s terras equatoriais, distraí<strong>da</strong> sua atenção pela caçade um mutum que, saltitando no alto <strong>da</strong>s árvores, resistiaaos tiros de espingar<strong>da</strong>. A noite caiu em torno do naturalistainglês como uma rápi<strong>da</strong> cortina espessa que envolvee solapa a relativa clareza e distinção <strong>da</strong>s formas <strong>da</strong><strong>da</strong>s aoolhar alerta. Junto dele, um garoto índio, apavorado coma face noturna <strong>da</strong> floresta, segue-o colado em seus calcanhares.Em meio ao que não se discerne, caminhar tornaseuma tarefa difícil, entremea<strong>da</strong> de tropeços nas pedras,


192 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 193pensamentos e troncos que a mata virgem, por trás do véunegro, põe na precária estra<strong>da</strong> por onde segue esse visionário<strong>da</strong> ciência. O olhar erguido ao céu não vê astros brilhantes,porém, entre as ramagens, o anúncio de mais umdilúvio amazônico.Ademais, eu estava descalço, de modo que tropeçava deminuto em minuto em alguma raiz ou pedra. De vez emquando pisava em falso, saindo <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>, e quase deslocavao tornozelo. Estava escuro como breu. Olhando paracima, podíamos ver, por entre as aberturas do dossel arbóreo,que o céu estava tol<strong>da</strong>do por nuvens bem pesa<strong>da</strong>s. Parafrente, porém, não se podia distinguir coisa alguma. [Todosos grifos nas citações são meus]. (Wallace, 1979, p.158)Nesse novo cenário em que o olhar mostra-se incapazde atravessar e esconjurar as trevas circun<strong>da</strong>ntes, há umainversão de papéis: o caçador torna-se a caça. Wallace,que antes varara as matas confiante na espingar<strong>da</strong> queempunhava, agora, impotente para ver e matar, teme servisto e morto:As onças, como eu bem sabia, eram abun<strong>da</strong>ntes por essasban<strong>da</strong>s, assim como também as cobras venenosas. A ca<strong>da</strong>passo vinha-me o medo de sentir sob os pés seus frios eescorregadios corpos, ou na perna a dor agu<strong>da</strong> de suas fataismordi<strong>da</strong>s. Eu seguia fitando a escuridão [through the <strong>da</strong>rknessI gazed], esperando a ca<strong>da</strong> momento a aparição dos cintilantesolhos de uma onça [the glaring eyes of a jaguar], temendoescutar o seu rosnado vindo <strong>da</strong> mata. (ibidem, p.158)O olhar desarma-se e a consciência alerta do naturalistasucumbe diante <strong>da</strong>s fabulações que o medo <strong>da</strong> noitefaz brotar na floresta torna<strong>da</strong> sombria, inóspita, novamenteincógnita. Já é <strong>da</strong> bruma densa <strong>da</strong>s trevas, paradoxalmente,de onde a luz pode emanar, não mais para empreender oordenamento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> num sistema taxionômico, mas paraculminar de insucesso a to<strong>da</strong> busca esclareci<strong>da</strong>, interrompendo-aironicamente com “a aparição dos cintilantes olhos”que na<strong>da</strong> iluminam senão as sen<strong>da</strong>s <strong>da</strong> própria morte.A noite faz tropeçar, extraviar, representar os seressob a mascara<strong>da</strong> do informe, do inapreensível, e a imaginaçãoreivindica seus domínios sobre as pretensões de umamente emancipa<strong>da</strong> cujos poderes de discernimento mostram-seinócuos. É ela que fita a escuridão, é ela que fazver na noite o brilho de um olhar que não seria senão omedo projetado de Wallace. Três dias antes, ele teve a contemplação<strong>da</strong> floresta suspensa e concentra<strong>da</strong> to<strong>da</strong> sobreum ser que mansamente cruzou a mesma estra<strong>da</strong> que percorria;um aguar<strong>da</strong>do encontro com “um enorme animalnegro como azeviche” (ibidem, p.154) efetivou-se então.A distância de vinte jar<strong>da</strong>s e a exuberância <strong>da</strong>quele serfazem que Wallace precise de um certo tempo para identificar“a espécie a que ele pertencia”. Quando, no meio <strong>da</strong>estra<strong>da</strong>, a escuridão animal se destaca, Wallace reconhece“que se tratava de magnífico jaguar, de uma onça preta”.Em segui<strong>da</strong> ao reconhecimento taxionômico – “nummovimento automático” –, busca a espingar<strong>da</strong> para abatera fera que teve seu nome identificado: conhecer e matar,para o naturalista, mostram-se complementares. Mas,lembrando que a munição era insuficiente para <strong>da</strong>r o aniquilamentodesejado à noite encarna<strong>da</strong> no negro animal,“temendo enraivecê-la ao invés de matá-la”, fica imóvelcontemplando-a. Em <strong>da</strong>do momento o jaguar retribui, fitaopor alguns instantes, e entra na mata novamente, paralonge dos olhos do naturalista, o qual, surpreendido pelavisão inespera<strong>da</strong>, “nem [tivera] tempo de sentir medo”(ibidem, p.154).É esse medo outrora proscrito que lança agora sobre aescuridão a lembrança de um olhar a espreitar na mata,abrigado na treva, irredutível, impermeável às luzes, maisrápido que um disparo. Da mesma maneira, a ameaça queWallace imagina rastejando num chão noturno tambémsão evocações, lembranças de uma cabeça seca de serpenteposta, ao modo de fetiche, sobre o beiral <strong>da</strong> choupanaonde se hospe<strong>da</strong>ra na aldeia de Pimichín, no dia seguinteao encontro com a negra imagem animal: “Era uma jararaca,espécie do gênero Craspedocephalus, e seu tamanho


194 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 195deve ter sido bem considerável, pois suas presas venenosas,em número de quatro, tinham quase uma polega<strong>da</strong> decomprimento”. Aqui a morte já havia antecedido o atoclassificatório; mas na escuridão aberta povoa<strong>da</strong> de serpentesonde o medo de Wallace pouco depois despertaria,a morte grassa em to<strong>da</strong>s as partes, inominável. Encorpa<strong>da</strong>pelos avisos de alerta que recebera em Pimichín de que“sua mordi<strong>da</strong> significava morte certa” (ibidem, p.156), asserpentes que seu medo desova retornam mais fantasmaisque o gênero Craspedocephalus.Parar? Regressar? Inútil [But to turn back or to go werealike useless]. A aldeia não devia estar muito longe. Assim,o jeito era prosseguir. No fundo, aquela confiança deque na<strong>da</strong> de desagradável haveria de acontecer, e que nodia seguinte todos aqueles receios seriam motivo de gargalha<strong>da</strong>s.Ao otimismo, porém sucedia a lembrança <strong>da</strong>s agu<strong>da</strong>spresas <strong>da</strong> cabeça de cobra pendura<strong>da</strong> na cabana dePimichín, ou então <strong>da</strong>s histórias que ouvira acerca <strong>da</strong> feroci<strong>da</strong>dee <strong>da</strong> astúcia dos jaguares... E lá vinham os temores denovo... (ibidem, p.158)Que fazer em meio às trevas? Onde buscar luz para<strong>da</strong>r aos passos a trilha encoberta? “Parar? Regressar? Inútil”.No momento em que a consciência deixa-se arrastarpelas fantasmagorias, essa passagem exemplarmente nosrevela que só a mesma imaginação pode intervir para tornálanovamente confiante. A fé e o otimismo decorrem <strong>da</strong>futura lembrança que o viajante terá do medo que agora oinvade: são um produto de fabulação. Percebemos, sempouco assombro, que a firmeza animadora desse aspirante<strong>da</strong> ciência, a qual o faz supor vencer a noite anônima quelhe cerca, brota do mesmo solo de onde seu pavor designouolhos de fogo, corpos resvaladios na terra incógnita.A consciência empreendedora debate-se no agitado marde uma imaginação que lhe promete a tábua salvadora, aterra firme sem deixar ao mesmo tempo de aguilhoar coma angústia de monstros marinhos abismos devoradores queporão fim à viagem. Inútil parar, não há terra ain<strong>da</strong> ondese firmar; mais ain<strong>da</strong> regressar por um caminho que a noiteencobriu, trilhou de mil possibili<strong>da</strong>des que terminamnela mesma.O avanço <strong>da</strong> consciência, a confiança na vitória sobreo incógnito prenhe de terrores que se revelam projetadospelo medo, não é, contudo, menos uma projeção imagináriaque volta infinitamente a sucumbir sobre um solotraiçoeiro. As reticências do texto wallaciano também sãoa abreviatura do infinito vaivém <strong>da</strong> imaginação: “otimismo”,lembranças fantasmais, “temores de novo”... Entre oriso redentor e o medo mortal, a imaginação é usa<strong>da</strong> e usado naturalista. Seu lugar é ambivalente: diante do desconhecido,ela é promessa utópica, aguilhão infernal.Essa passagem fortuita do diário de Wallace, se emblematicamenteinterpreta<strong>da</strong>, põe-nos diante <strong>da</strong>s contradiçõesdo narrador imbuído do espírito <strong>da</strong>s Luzes. No seuafã de libertar-se do medo, a consciência alerta<strong>da</strong> pelométodo científico torna-se o instrumento para o assenhoreamento.Contudo, a esperança vital de que a soberaniaé possível respira no mesmo alento donde brotam as sombrasarrepiantes de uma noite inapreensível, cheia de lembrançasde morte. Noite, paradoxalmente, donde a luz tambémproviria na forma dilaceradora dos “cintilantes olhos”que não dispersam as trevas, mas que cerram-nas ain<strong>da</strong>mais. Em suma, a esperança que a imaginação dá ao narradorde atravessar a noite é também quem dá a ele o retornorenovado dos obstáculos fantasmagóricos.Em suas reflexões sobre o progresso do pensamento,Adorno & Horkheimer (1985, p.19), em face <strong>da</strong> barbárie<strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial, põe-nos sob suspeita o ideáriodo esclarecimento. Deixemos por enquanto a desconfiançasobre as Luzes suspensa. Concentremo-nos no programa<strong>da</strong> Razão, projeto pelo qual os homens livrar-se-iamdo medo para investirem-se “na posição de senhores”. Elediz respeito ao “desencantamento do mundo. Sua metaera dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber”(ibidem). Como contraparti<strong>da</strong> à negação do maravilhosocomo explicação dos fenômenos, estabelecer-se-ia o avanço


196 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 197<strong>da</strong> afirmação consciente do homem diante <strong>da</strong> natureza.Os mitos para o esclarecimento na<strong>da</strong> seriam além de antropomorfismosque o medo humano diante do desconhecidoprojetaria sobre a natureza, atribuindo uma anima sobrenaturalao vivo e ao inerte. “Desencantar o mundo édestruir o animismo” (ibidem, p.20) é denunciar o que háde humano no sobre-humano.Mediante uma distribuição ordena<strong>da</strong> de ca<strong>da</strong> coisano lugar que lhe cabe, os fenômenos <strong>da</strong> natureza teriamsuas explicações antropomórficas substituí<strong>da</strong>s pela reduçãomatemática. “No anseio de to<strong>da</strong> desmitologização: onúmero tornou-se o cânon do esclarecimento” (ibidem,p.22). De modo que, por um lado, por esse ideal matemático,o “número” far-se-ia equivalente aos fenômenos, oque garantiria a previsibili<strong>da</strong>de desses em suas combinaçõespossíveis. Porém, por outro lado – e aqui a desconfiançasobre o próprio esclarecimento é o móbil <strong>da</strong> crítica deAdorno e Horkheimer –, a partir de um enfoque reificante<strong>da</strong> natureza, uma mensuração do mundo e do homem apenascomo coisas também se apresentaria como efeito negativo.No exercício <strong>da</strong> suspeita crítica, apontam Adorno& Horkheimer (1985) que um ideal de sistematici<strong>da</strong>deacabaria por ser paradoxalmente venerado pelo esclarecimento.Essa propensão à reificação é denuncia<strong>da</strong> por suasconseqüências extracientíficas: ela é também o motor <strong>da</strong>barbárie uniformizante <strong>da</strong> civilização moderna, pois “parao esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e,por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo modernoremete-o para a literatura” (ibidem, p.23).Poderíamos diante desse processo dialético radicalentre a ver<strong>da</strong>de matemática e a ilusão – seja mítica ouliterária –, e depois de termos visto antes a oscilação emblemática<strong>da</strong> imaginação, poderíamos, então, perguntarmonosacerca <strong>da</strong> posição assumi<strong>da</strong> nesse processo de emancipaçãopor uma nova tradição de relatos de viagem, tradiçãona qual se inseririam os textos tais como os de Wallace eBates. Particularmente, veremos que as perspectivas dessesrelatos tomam rumos por vezes contraditórios com relaçãoao programa de desencantamento do mundo. Paratal demonstração, pretendo aprofun<strong>da</strong>r as ambigüi<strong>da</strong>dessuscita<strong>da</strong>s nos discursos de Wallace e Bates por oscilaçõesem torno <strong>da</strong> ilusão e do “número”, do desinteresse e <strong>da</strong>dominação, as quais, quiçá, poderão permitir uma interpretaçãode maior alcance <strong>da</strong>s contradições próprias aosrelatos de viagem dos naturalistas.Ilusão e “número”Wallace e Bates conheceram-se em Leicester atraídospor um interesse comum pela história natural. Ambos eramnaturalistas amadores: Bates trabalhava numa fábrica decerveja e Wallace, antes de ser mestre-escola, fora topógrafo,ativi<strong>da</strong>de na qual aproveitava a demarcação dospercursos <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s de ferro para estu<strong>da</strong>r as plantas <strong>da</strong>Inglaterra. Resolveram então viajar para alguma regiãotropical com o intuito declarado de estu<strong>da</strong>r a origem <strong>da</strong>sespécies. Presume-se que foi em razão <strong>da</strong> leitura do livrodo americano Witt Edwards – o qual, em 1846, viajarapela Amazônia publicando no ano seguinte A voyage upthe Amazon – que ambos decidiram viajar juntos para aliem 1848. Diferentemente de Darwin, que tinha de ondetirar os recursos para a viagem no Beagle, esses naturalistasdispunham apenas de uma pequena poupança deWallace e um empréstimo feito pelo pai de Bates. A soluçãoque encontraram foi a de formar coleções de objetosde história natural, remetendo-os para Londres onde seriamcomercializados por um agente previamente designadoe assim poderem financiar a viagem.Wallace e Bates permaneceram, respectivamente, trêse onze anos na Amazônia. Primeiro exploraram juntos osarredores de Belém; separaram-se posteriormente paraestu<strong>da</strong>r regiões distintas, vindo novamente a se encontrarna ci<strong>da</strong>de de Barra, que pouco depois, em 1852, irá se tornarManaus, capital <strong>da</strong> então recém-cria<strong>da</strong> Província doAmazonas. Ali, tomam rumos distintos: Wallace sobe oRio Negro até os afluentes do Orinoco, enquanto Bates se


198 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 199dirige pelo Solimões até Ega. Wallace termina suas pesquisasantes e volta para a Inglaterra. No retorno, o navioonde viajava naufraga, fato que provocaria grande per<strong>da</strong><strong>da</strong>s coleções que levava consigo. Apesar <strong>da</strong>s declaraçõestextuais de que nunca mais sairia para expedições científicas,esse naturalista partiu logo em segui<strong>da</strong>, em 1854, parao arquipélago malaio com o intuito de continuar suas pesquisas.1 Os dois naturalistas rever-se-ão só na Inglaterra.Em seus primeiros passeios de estudo junto com Wallacepelos arredores de Belém, Bates descreve as impressões ereflexões que teve despertado pelo encontro inaugural comas florestas virgens amazônicas. O naturalista traça umquadro sombrio <strong>da</strong>s sensações que a mata impunha àqueleque a penetra. To<strong>da</strong>via, tais sentimentos descritos porBates também atestavam a veraci<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong> uma novatradição de relatos que, diferentemente do tom edênicodos descobridores (Holan<strong>da</strong>, 1994), apresentavam a selvaa partir de uma estética do sublime, pondo ênfase no horrorsentido pelo narrador; horror advindo de paixões misteriosas,insubordina<strong>da</strong>s à representação exaustiva, superiormenteincógnitas: “sempre vimos referência, nos livrosde viagens, sobre o opressivo silêncio reinante nas florestasbrasileiras. De fato, trata-se de uma coisa real, uma sensaçãoque se vai aprofun<strong>da</strong>ndo à medi<strong>da</strong> que aumenta nossoconhecimento <strong>da</strong> selva” (Bates, 1979, p.37).De fato, trata-se de uma posição bastante ambíguacom relação à suposta proprie<strong>da</strong>de cumulativa do saber,pois aquele sentimento de inquietação e desconforto: “oopressivo silêncio” provocado pela floresta cresce à mesmaproporção que vamos conhecendo mais sobre essa.Longe de esconjurar os pavores que moram no silêncioamazônico pelo pronunciamento de uma palavra decisivaque se elaborou por meio de uma sucessão de experiências,nossa ciência desse singular objeto mostra-se apenas capazde confessar seus precários avanços. Avançar, aqui,contraditoriamente à promessa de soberania ilustra<strong>da</strong>, significapermanecer perturbado. O que Bates virá a mostrar,então, será a ação analítica do método chegar aos limites1Os dois tiveram participaçãoativa na fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong>teoria <strong>da</strong> seleção natural.Bates desenvolveu, baseadonas observações sobre asborboletas, a hipótese domimetismo. Já as pesquisasde Wallace são considera<strong>da</strong>spor alguns como o motivoque teria feito Darwin superaro medo <strong>da</strong> iconoclastiaaparente de sua teoria epublicar A origem <strong>da</strong>s espécies(Ferreira, 1990).de suas possibili<strong>da</strong>des, ao tentar discernir as sensaçõesangustiantes brota<strong>da</strong>s <strong>da</strong> mata.Nota ele que os ruídos produzidos pela floresta, emvez de serem uma contraparti<strong>da</strong> ao “silêncio opressivo”,gerando “uma idéia de animação e vi<strong>da</strong>”, os raros cantosde pássaros que chegam aos ouvidos, por exemplo, “têmum tom melancólico e misterioso, que tendem a intensificara sensação <strong>da</strong> solidão”. As onças e cobras que povoaramo caminho desconfiado de Wallace são, agora, paraBates, pre<strong>da</strong>dores dissimulados em alguma paragem a atacarum “animal frugívero e indefeso”, que antes de sucumbircorta “a quietude geral” com um “berro súbito [que]nos enche de sobressalto”. A gritaria matutina dos macacostambém se insere no rol dos sons que abalam “a animaçãode espírito”, intensificando com essa “arrepiantealgazarra”, “a sensação de inóspita solitude que a selva forçosamentedá”. Porém, sons reboantes que subitamentecortam o silêncio desumano <strong>da</strong>s matas, como a que<strong>da</strong> deuma árvore “nas horas quietas do meio do dia”, ampliandoo sentimento <strong>da</strong> solidão, ain<strong>da</strong> pertencem, contudo, auma classe que se pode identificar. Mais perturbadores sãoos ruídos apavorantes cuja origem permanece um mistério.Além disso, a selva é cheia de ruídos difíceis de identificar.[...] Ouve-se às vezes um barulho semelhante ao do impactode uma barra de ferro de encontro ao tronco oco de umaárvore, ou então um grito estridente cortando o ar; essesruídos não se repetem, e o silêncio que se segue aumenta aaflitiva impressão que causam no nosso espírito. (Bates,1979, p.37)Esses barulhos aleatórios, sem regulari<strong>da</strong>de, revestemsede uma sombra fugaz a to<strong>da</strong> lei de previsibili<strong>da</strong>de; dondeprovêm? O estranho esforço metafórico que Bates leva aefeito para <strong>da</strong>r uma imagem dos caóticos fenômenos sonoros<strong>da</strong> selva, sabe ele, é precário, incapaz de <strong>da</strong>r conta detão exótica reali<strong>da</strong>de. No entanto, essa metaforização tambémnos ilustra o modo pelo qual a imaginação, diante doincógnito, interfere: procurando esquematizar as sensações


200 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 201de pavor com algum arremedo de conhecimento, a subjetivi<strong>da</strong>defabuladora reconhece semelhanças como uma formade apaziguar as potências desconheci<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>ndo-lhesum nome. De um ponto de vista dialético, podemos reconheceraí um estágio preliminar do conhecimento. O perigodesse procedimento propedêutico ao saber estaria numainsuperável mistificação <strong>da</strong> natureza. A subjetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>rse-iapor satisfeita com a solução poética imagina<strong>da</strong>, emdetrimento <strong>da</strong>s causas reais dos fenômenos naturais.Nesse estágio do desenvolvimento intelectual é queBates localiza os nativos amazônicos. Pensando em princípioque poderia encontrar por parte deles explicações maissatisfatórias sobre a origem desses pavorosos “ruídos difíceisde identificar”, constataque os habitantes do lugar se mostravam tão perplexos,nesse particular, quanto eu [...]. Para os nativos, é sempreo curupira, o homem selvagem ou espírito <strong>da</strong> floresta, ocausador de todos os barulhos que eles não conseguem explicar.Pois os mitos são teorias primitivas [rude theories]que a humani<strong>da</strong>de, na infância do conhecimento, inventapara explicar os fenômenos naturais. (ibidem, p.37)Bates inscreve-se no rol <strong>da</strong>queles que pretendem o“número” à ilusão <strong>da</strong> semelhança poética, mítica. Emboraconfesse sua impotência diante dos incógnitos sons <strong>da</strong> floresta,seu esforço de metaforização se põe como um antropomorfismonão dissimulado enquanto artifício retórico,produção de um sujeito. Quando se compara aos nativos,Bates pensa que tal posição garantiria uma posição de maiorsoberania diante do desconhecido:[...] tive um criado – um jovem mameluco – cuja cabeçafervilhava de len<strong>da</strong>s e superstições locais. Ele só entravana mata em minha companhia; de fato, eu não conseguiriaconvencê-lo a se embrenhar nela sozinho, e sempre queouvíamos alguns dos estranhos ruídos que já mencionei maisacima, ele se punha a tremer de medo. Agachava-se atrásde mim e me suplicava que voltasse. (ibidem, p.37)O medo venerado desse nativo implora ao pretendente<strong>da</strong> ciência que não mais avance em direção ao coração <strong>da</strong>mata sombria, habita<strong>da</strong> por seres fantásticos de vozes arrepiantes.Nessa região generosa de mistérios que é a floresta,não se deve ter o atrevimento de penetrar; o que onativo jamais faria se não fosse acompanhado de uma consciênciaeuropéia em busca de conhecimento objetivo, agita<strong>da</strong>pela meta de desven<strong>da</strong>r os segredos ocultos nos murmúrios,nos recônditos escuros <strong>da</strong> Amazônia.Ain<strong>da</strong> mais surpreendente, porém, talvez seja a ironiado comportamento do criado de Bates, o qual, no universoanimista que habitava, devia o apaziguamento dosterrores provocados pelas potências malignas <strong>da</strong> florestamenos à adoção de uma atitude esclareci<strong>da</strong> que aos recursosencantatórios de que supunha dispor: “Seu pavor sódesaparecia depois que ele fazia um ‘feitiço’ para nos livrardo Curupira. Para isso pegava uma folha nova de palmeira,trançava-a e formava com ela um arco, o qual penduravanum ramo no meio do caminho” (ibidem, p.37).Ora, se conhecer é vencer o medo, é dominar-se diante dodesconhecido para melhor dominar, vê-se que as teoriasprimitivas dos fetiches e dos mitos têm afini<strong>da</strong>des com avontade de poder do esclarecimento. Elas também são umamanifestação <strong>da</strong>s Luzes.Na sua análise do esclarecimento, Adorno & Horkheimer(1985) mostram-nos as complexas relações de filiação entreesse e o mito. Um estranho percurso ter-se-ia realizadona história do desenvolvimento intelectual do homem detal modo que no mito já se encontram as bases do esclarecimentotanto quanto esse também voltaria a ser mitologianos tempos modernos. Se o objetivo era tornar os homenssenhores desvencilhando-os do medo, o esclarecimento,vimos, se dá como programa a liqui<strong>da</strong>ção do animismo parafazer <strong>da</strong> natureza quanti<strong>da</strong>des manipuláveis. O feitiço docriado de Bates mostra-nos como a magia e os mitos já trazemem si esse germe <strong>da</strong> dominação, à medi<strong>da</strong> que possibilitam,por uma antropomorfização do desconhecido, umaaparente redução deste ao conhecido: “os mitos que caem


202 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 203vítimas do esclarecimento já eram o produto do próprioesclarecimento” (Adorno; Horkheimer, 1985, p.23).Para uma consciência que se quer esclareci<strong>da</strong> como ade Bates, porém, esse recurso antropomorfizador mostraseinsuficiente para assegurar um domínio pleno do mundoe a autonomia de si. Nas crenças sobrenaturais, permiteseuma presença por demais viva na natureza que, torna<strong>da</strong>palco para jogo de forças mágicas, não se reduz a fenômenosde experiência científica. É a suspeita sobre as pretensões<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de mítica, sobre sua subjetivi<strong>da</strong>de dissimula<strong>da</strong> emessência <strong>da</strong>s coisas que marca o método de interpelaçãodo real próprio de Bates. O ain<strong>da</strong> em si <strong>da</strong> natureza míticadeverá ser tornado para si do Iluminismo:No estado mágico, sonho e imagem não eram tidos comomeros sinais <strong>da</strong> coisa, mas como ligados a esta por semelhançaou pelo nome. A relação não é a <strong>da</strong> intenção, mas doparentesco. Como a ciência, a magia visa fins, mas ela ospersegue pela mimese, não pelo distanciamento progressivoem relação ao objeto. (Adorno; Horkheimer, 1985, p.25)2Chegando em julho de 1817junto com o séquito <strong>da</strong>arquiduquesa Leopoldina efinanciados pelo reiMaximiliano José I <strong>da</strong> Baviera,Spix & Martius, depois deuma permanência no Riode Janeiro, iniciaram umpercurso imenso pelos sertõesbrasileiros. Só em julho de1819, após recuperarem-sedo trajeto pelo interiornordestino, deixam São Luisem direção a Belém, de ondepartem rumo à hinterlândiaamazonense até as fronteirascom o Peru e a Bolívia.Retornam em 1820 para aEuropa. Na Alemanha, sãopublicados os três volumesque compõem o relato desuas viagens.A consciência autônoma reconhece sua diferença emrelação à natureza e às representações que dela fazia. Dominarpassa a ser não se identificar com a natureza, e simmantê-la afasta<strong>da</strong> e subjuga<strong>da</strong> dentro do ciclo <strong>da</strong> previsibili<strong>da</strong>dede seus acontecimentos repetíveis.Daí, em Bates, o caráter problemático e desconfortávelsuscitado por aqueles “ruídos que não se repetem”, quandode suas incursões à mata virgem. Mas essa “aflitivaimpressão” gera<strong>da</strong> no espírito do naturalista parece ser,para ele, um mal menor que a explicação mágica doCurupira, a qual postula uma dimensão inacessível à comprovaçãode regulari<strong>da</strong>de nos fatos. Para Adorno &Horkheimer (1985, p.29), a imanência tornar-se-á, com orebento do positivismo, o novo tabu para o Iluminismo,de que na<strong>da</strong> pode escapar, “na<strong>da</strong> pode ficar de fora, porquea simples idéia do ‘fora’ é a ver<strong>da</strong>deira fonte de angústia”.O desconhecido, por meio <strong>da</strong> equação matemática, étransformado em incógnita e reduzido ao seu aspecto quantitativo.O desejo de emancipação torna tudo passível deser conhecido e o que não, irreal. É desse modo que osmirabilia se viram fa<strong>da</strong>dos a desaparecer do mundo, esconjuradospela reificação, pela matematização <strong>da</strong> natureza.Essa aparente posição de maior soberania, resguar<strong>da</strong><strong>da</strong>pela dúvi<strong>da</strong> de que Bates se investe, assume, vimos,ares de superiori<strong>da</strong>de em relação aos nativos amazônicos.Procedimento que não lhe é unicamente próprio, mas quese espraia em relatos de outros viajantes imbuídos <strong>da</strong> Ilustração,nos quais podemos também depararmos com umaexpectativa de assombro que acaba sendo subjuga<strong>da</strong> pelaobservação metódica.Spix & Martius (1981, p.205-6) subiram o curso doAmazonas cerca de trinta anos antes de Bates e Wallace ejá punham em ação o programa de desencantamento domundo:O homem está inclinado a colorir as empresas que põem àprova sua coragem com cores dum futuro poético. Ain<strong>da</strong>me recordo <strong>da</strong> exaltação com que contemplei a embocadurado majestoso rio, sonhando com o descobrimento demúltiplas maravilhas. Se esses sonhos não se realizaram,devo, entretanto, ser grato às experiências que se oferecemnessa remota região, e que me proporcionaram o aspectonatural, o único exato, do estado primitivo do continenteamericano e dos seus habitantes! 2Essas declarações correspondem ao momento em queSpix & Martius estão se dirigindo para o ponto mais ocidentalde sua viagem, a montante do Rio Japurá, seguindoum itinerário semelhante ao que Bates seguirá. Suas preocupaçõesaí se desdobram numa dupla tarefa filológica: osíndios que até agora tiveram oportuni<strong>da</strong>de de encontrareram semicivilizados, portanto desprovidos de seu caráterprimitivo (Lisboa, 1997, p.159); grosso modo, os relatos deviagem anteriores nos oferecem visões por demais excita<strong>da</strong>spor seres oníricos e pretensões heróicas que acabampor dissimular a reali<strong>da</strong>de.


204 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 205Como fonte inspiradora de to<strong>da</strong> essa legião de seresfantásticos, Spix & Martius também apontarão a imaginaçãoaterroriza<strong>da</strong> dos índios. Mas o grau de afetação dessafacul<strong>da</strong>de também pode gerar medos distintos. Comoexemplo, apresentam dois índios em estágios diferentes decivilização. Um deles era um “hábil índio camponês” (Spix& Martius, 1981, p.146), vindo <strong>da</strong> região do cerrado doRio Branco, que numa ocasião perdeu-se nas florestas próximas<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Barra do Rio Negro junto com os naturalistas.Nesse ambiente a que estava desacostumado,“o selvagem ca<strong>da</strong> vez mais se angustiava”. Depois que umlagarto, entorpecido pela atmosfera refresca<strong>da</strong> por nuvenscarrega<strong>da</strong>s de trovoa<strong>da</strong>s, cai <strong>da</strong>s árvores atingindo as costasde Martius, o índio entrega-se ao pavor atribuindo acausa do fato ao Curupira. Tremendo o corpo todo “com amímica expressiva de quem já se sentia em poder do mauespírito”, só com muita insistência Martius consegue convencê-loa avançar até encontrarem a margem do rio. Numestágio mais primitivo e por isso ain<strong>da</strong> mais propenso aosterrores <strong>da</strong> imaginação, “era um índio <strong>da</strong> tribo dos catauaxis[...] aterrava-o ca<strong>da</strong> galho retorcido, ou tronco de árvoremorta, qualquer entrelaçamento esquisito de cipós”, ondeele via alguma criatura fantástica, pronta a desfechar-lheum golpe fatal (ibidem, p.182).Noutra parte de seu relato, Martius & Spix abor<strong>da</strong>ma profusão de cobras aquáticas encontra<strong>da</strong>s na Amazônia.Realmente, elas apresentam um tamanho prodigioso, masos nativos acabam por conceder-lhes uma magnitude fantásticaque culmina por velar o “aspecto natural, o únicoexato” desses seres que brotam <strong>da</strong>s águas para arrastar suasvítimas <strong>da</strong>s margens dos rios e <strong>da</strong>s embarcações menorespara o sombrio fundo aquoso donde vieram. Pois,os índios com efeito singulares levam o simples fato para oreino <strong>da</strong> fábula. Assim, eles contam que, de quando emquando, aparece a mãe-do-rio com uma diadema brilhanteou deixa emergir a cabeça luminosa fora do rio, anunciando,com isso, a que<strong>da</strong> em extremo do nível d’água e a propagaçãode doenças decorrentes. A confiança, com que os3Em 1859, depois de visitara região Sul do Brasil,observando a acomo<strong>da</strong>çãodos imigrantes alemães, essemédico sai de Pernambuco emdireção à Amazônia. O trajetoque perfaz é Belém, Manause Tabatinga, na fronteira como Peru, de onde volta atéPernambuco para tomarum navio para a Alemanha.Avé-Lallemant ain<strong>da</strong>retornaria ao Brasil para aquise estabelecer definitivamente.índios contam tais len<strong>da</strong>s, é uma <strong>da</strong>s feições mais peculiaresdo seu caráter, e o viajante, neste país, deve ficar prevenidodisso, para atribuir uma parte, de tudo que ouvir <strong>da</strong>boca dos homens vermelhos, do milagroso, a esta inclinaçãofantástica. O enfeite dos simples fenômenos <strong>da</strong> naturezacom o brilho prodigioso é a única poesia de que é capaz oíndio com sua alma sombria e tenebrosa. De igual modo, quasetodo fato natural que se assinala por qualquer distintivo,possui sua fábula. De muitos animais e plantas, o índio contaas maiores extravagâncias. A len<strong>da</strong> <strong>da</strong>s Amazonas, de homenssem cabeça e com a cara no peito, de outros que têmterceiro pé no peito ou possuem cau<strong>da</strong> do conúbio de índiascom os macacos coatás, etc., são idênticos produtos <strong>da</strong> fantasiasonhadora dessa raça de homens. (ibidem, p.94-5)Os naturalistas, de modo geral, não levam menos emconta em seus relatos o trabalho de designação <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>dede elementos encontrados na Amazônia para integrálosao sistema <strong>da</strong> ciência. Para isso, encontram-se investidosde um poder de produzir ver<strong>da</strong>de, segundo um métodoque delimita o positivo e o maravilhoso, a reali<strong>da</strong>de e asfabulações sobre ela. Caso de Avé-Lallemant (1980, p.27),por exemplo, para quem o conhecimento incompleto <strong>da</strong>cartografia do Amazonas era conseqüência de que “muitodo que devia pertencer à geodésia, está ain<strong>da</strong> no terrenodo mito, <strong>da</strong>s len<strong>da</strong>s índias e <strong>da</strong> pura ficção”. 3 Contudo,ele não crê que esses erros sejam produto apenas dos autóctones.São próprios do homem em geral, e mais particularmentede uma época histórica que não tinha desenvolvidosuficientemente o critério natural, positivo, afinal“o único exato”, para efetuar juízos de ciência:Como, ao tempo <strong>da</strong> conquista, to<strong>da</strong> a Europa se mantinhatensa, recebia pasma<strong>da</strong> to<strong>da</strong> notícia de continentes recémdescobertose enfeitava com fábulas e quimeras tudo o quenão era positivo, houve época, em que se estava inteiramenteconvencido do aparecimento, nalguns afluentes dogrande rio subamericano, de mulheres gigantescas, e <strong>da</strong>existência de homens de cau<strong>da</strong>. (ibidem, p.59)


206 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 207To<strong>da</strong> literatura de viagem produzi<strong>da</strong> no período <strong>da</strong>sdescobertas, especialmente no que se refere à presença desereias colombinas e ci<strong>da</strong>des de ouro, foi <strong>revista</strong> criticamentenum processo que se intensifica a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong>metade do século XVIII. Michèle Duchet (1975), no excelenteestudo que faz sobre a circulação e recepção naFrança <strong>da</strong> literatura de viagem, aponta a compilação derelatos como o meio mais atuante de divulgação do gênero.Isso porque os relatos mais antigos já não se reeditavam,ou não haviam sido traduzidos, ou haviam sido mantidosem segredo pelas informações – sobretudo cartográficas –que continham. Os compiladores então procuravam atendermais às exigências <strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong>de dos leitores que auma razão crítica na organização de suas seleções. Duchetaponta também para esse constrangimento que o saberilustrado (como o caso citado de Avé-Lallemant) sentiadiante de um material tão aberrante, pois[…] es lícito pensar que el embarazo que debieron sentir lasmentes más esclareci<strong>da</strong>s acerca de las carnicerías de carne humanade los jagas, la anatomía de los hotentotes, los hombrescon cola, sin cuello o sin cabeza, acerca de la estatura de lospatagones, se debe a los ejecutores de las compilaciones, que lostransmitían sin rubor al copiarse unos a los otros. (Duchet,1975, p.73) 4A Histoire des voyages, de Prévost, inauguraria, paraDuchet, a revisão crítica francesa exigi<strong>da</strong> pelo Iluminismo,oferecendo uma seleção de relatos cujo crivo é mais históricoque fun<strong>da</strong>do na curiosi<strong>da</strong>de exótica. Além dessa coletâneaobedecer a um padrão editorial menos suntuosoque o <strong>da</strong>s coleções in-folio anteriores, apresentando com aedição in-quarto <strong>da</strong> Histoire des voyages uma edição em formatode bolso para um público mais amplo, além dessasinovações materiais que ampliaram o espectro de leitores,no livro de Prévost[...] los absurdos, las ingenui<strong>da</strong>des, los testimonios sospechososson objeto de denuncia, se llama la atención del lector sobre los4[...] é lícito pensar que oembaraço que devem tersentido as mentes maisesclareci<strong>da</strong>s a respeito <strong>da</strong>scarnificinas de carne humanados jagas, a anatomia doshotentotes, os homens comrabo, sem pescoço ou semcabeça, a respeito <strong>da</strong> estaturados patagones, se deve aosautores <strong>da</strong>s compilações, queos transmitiam sem rubor aocopiarem-se uns aos outros.5[...] os absurdos, asingenui<strong>da</strong>des, os depoimentossuspeitos são objeto dedenúncia, chama-se a atençãodo leitor sobre os autores“dignos de fé”, são autori<strong>da</strong>deos viajantes-filósofos, comoFrézier, La Con<strong>da</strong>mine, Ulloa.Prévost inaugura na França acrítica dos relatos de viagens e,reduzindo a partecorrespondente ao anedóticoe ao maravilhoso, carrega oacento no valor documental.autores “dignos de fé”, son autori<strong>da</strong>d los viajeros-filosofos, comoFrézier, La Con<strong>da</strong>mine, Ulloa. Prévost inaugura en Francia lacrítica de las relaciones de viajes y, reduciendo la parte correspondentea lo anecdótico y a lo maravilloso, carga el acento enel valor documental. (ibidem, p.82) 5Essa revisão crítica também pode ser depreendi<strong>da</strong> noresumo histórico que faz Bates <strong>da</strong>s primeiras exploraçõesrealiza<strong>da</strong>s na região equatorial. É o momento em que onaturalista está deixando a região <strong>da</strong> foz do rio para empreendera viagem até o Alto Amazonas. Viagem que contacom os percalços de depender <strong>da</strong>s pequenas embarcaçõesde comerciantes ou de expedições que subiam o rio parafazer escambo; difícil se tornara conseguir remadores índiospara a empreita<strong>da</strong> e a linha de vapores só será estabeleci<strong>da</strong>em 1853.Sobre os tempos <strong>da</strong> descoberta, vai informando-nosBates <strong>da</strong> importante expedição capitanea<strong>da</strong> por PedroTeixeira para firmar o domínio português sobre a região, etambém <strong>da</strong> viagem pioneira de Orellana em busca doEldorado e que culminou com a travessia do curso do maiordos rios. Na<strong>da</strong> do insólito, do fantástico que permeiam aviagem dos espanhóis é posto na pequena narração queBates dela faz, apenas informações factuais. Será numa notade ro<strong>da</strong>pé que encontraremos o espaço reservado para océlebre episódio <strong>da</strong> luta com as amazonas:Foi durante essa viagem que, segundo voz geral, foi encontra<strong>da</strong>uma tribo de mulheres guerreiras, notícia essa quedeu origem ao nome de Amazonas que os portugueses deramao rio. Hoje é fato comprovado que essa história nãopassava de uma len<strong>da</strong>, origina<strong>da</strong> na tendência para a fantasiaque caracterizava os primeiros exploradores espanhóis,e que prejudicou a credibili<strong>da</strong>de de suas narrativas. (Bates,1979, p.92)São esses mesmos espanhóis que serão objeto de críticapor parte de Bates no que diz respeito à trágica expediçãode Lope de Aguirre. Eles seriam um exemplo de mau


208 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 209relato, e, em segui<strong>da</strong>, a crônica “ilustra<strong>da</strong>” dos fatos lheserá contraposta.Muitas expedições exploratórias foram leva<strong>da</strong>s a cabono século XVIII, continua Bates, mas devemos distinguirque entre elas “a única que forneceu muitos <strong>da</strong>dos científicosao público europeu foi a do astrônomo francês LaCon<strong>da</strong>mine”. Já Duchet (1975, p.97) anunciava a importânciaque a expedição desse pioneiro <strong>da</strong> ciência na Amazôniateria, dentro do espírito <strong>da</strong>s Luzes, para a evoluçãodo gênero, pois ele “se documentó antes de partir para lasregiones que iba a recorrer” 6 , além do que suas observaçõeseram metódicas. Nesse aspecto, contudo, Bates ain<strong>da</strong> achao relato de Spix & Martius superior, texto onde encontraremos“os mais completos” <strong>da</strong>dos e estatísticas sobre a regiãoamazônica “que se conhecem até hoje”.La Con<strong>da</strong>mine, Humboldt, Spix & Martius, em resumo,eis uma nova configuração modelar que cumpre seguirpara desvencilhar-se <strong>da</strong>s ilusões espanholas e adotara perspectiva do “número”, do bom relato de viagem.Wallace também reitera a revisão crítica dos relatosamazônicos pioneiros e o compromisso com a fun<strong>da</strong>ção deuma nova tradição, exemplarmente guar<strong>da</strong><strong>da</strong> pelas pretensõesdo “número”. Mas, diferentemente de Bates queatribui a len<strong>da</strong> à “tendência para a fantasia” dos espanhóis,seguindo uma orientação de Spix & Martius, o autor de Anarrative of Travels on the Amazon and Rio Negro procurauma explicação mais específica, de caráter factual para afabulação mirabolante.Na região do Alto Amazonas, nas margens do rioUapés, Wallace (1979, p.299) descreve índios com hábitosde cultivar uma longa cabeleira que cai “nas costas emcompridos cachos”, a qual trazem cui<strong>da</strong>dosamente pentea<strong>da</strong>,e de depilar todos os pêlos <strong>da</strong> barba. Esses hábitos,adicionados ao uso de ostensivos “colares e braceletes decontas” <strong>da</strong>ria a estes índios “uma aparência inteiramente feminina,que se acentua por causa do pente que todos invariavelmentetrazem espetado no alto <strong>da</strong> cabeça”. Tal aspectoconvence Wallace <strong>da</strong>s causas do engano cometido6documentou-se antes deviajar para as regiões quepercorreria.pelos primeiros viajantes que puseram os olhos sobre essesíndios, engano que teria originado a len<strong>da</strong> <strong>da</strong>s amazonassul-americanas. Ele se põe a analisar o processo de construçãode seu auto-engano para em segui<strong>da</strong> usá-lo comoparadigma <strong>da</strong> projeção fabulosa dos aventureiros espanhóis:O que me levou a essa opinião foi exatamente a primeiraimpressão que tive ao avistá-los, quando me foi preciso chegarmais perto deles para constatar que se tratava de homens.Se eles estivessem usando escudos, ninguém seriacapaz de imaginar que não estaria na presença de mulheres, jáque esses protetores são empunhados de modo a encobrirtodo o corpo. Por conseguinte, temos apenas de supor que, nopassado, tribos com costumes semelhantes aos dessas quehoje vivem no Rio Uapés habitassem as margens do Amazonas,nos pontos onde teriam sido avista<strong>da</strong>s as tais mulheresguerreiras. Essa seria uma explicação racional para umaquestão que tanto embaraço e dúvi<strong>da</strong> tem trazido aosgeógrafos. (ibidem, p.300)Nessas considerações se pode depreender que tanto oseuropeus contemporâneos quanto os crédulos descobridoresde antanho podem se deixar enganar pelas ilusões <strong>da</strong>semelhança. Mas, enquanto Wallace teve a possibili<strong>da</strong>dede aproximar-se do seu auto-engano “para constatar quese tratava de homens” e não de mulheres guerreiras, Carvajal(1941), o cronista <strong>da</strong> expedição espanhola pioneira,já não o tem; seu engano está incomo<strong>da</strong>mente legado àposteri<strong>da</strong>de; não pode por ele ser desfeito. Eram apenasíndios “com uma aparência inteiramente feminina” que seuolhar vira (afinal, é o que “temos de supor”), e o que a suaimaginação exacerba<strong>da</strong> pela Tradição transformou nas guerreirasmitológicas. Engano pelo qual os geógrafos, acima<strong>da</strong>quela “tendência à fantasia” dos espanhóis, pagam as conseqüências.Pois se a cartografia do curso de um rio como odo Xingu só virá a ser <strong>completa</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong>li a quarenta anos porReclus (1899), o que dizer <strong>da</strong> vastidão de terras incógnitassob o manto de uma floresta cheia de perigos. Quantasfantasmagóricas nações podem habitar o desconhecido?


210 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 211Já nos alertara Bacon de que os sentidos são enganadores,levam-nos a tomar impressões subjetivas como objetivi<strong>da</strong>de;é preciso, então, se guar<strong>da</strong>r dos embustes <strong>da</strong>aparência, depurando a percepção do que não pertence àreali<strong>da</strong>de. Mas, entre os nativos, não existe uma tradiçãoacerca de uma tribo de mulheres que vivem sem maridos?Não é a reiteração <strong>da</strong> existência de semelhante comuni<strong>da</strong>deuma reali<strong>da</strong>de efetiva muito mais que uma impressãoludibriadora?Esse argumento que poderia retirar a autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sua refutação é examinado por Wallace (1979). Afirmaele que inquiriu a muitos sem ter recebido a menor indicaçãode tal tradição. Daí chega ele “à presunção de queessa idéia teria surgido aos índios em virtude <strong>da</strong>s perguntasdos próprios europeus” (ibidem, p.300). O boato sobrea existência <strong>da</strong>s amazonas teria se tornado maior pelo interesseque os viajantes sucedâneos tinham pelo assunto,espalhando-o quando interpelavam os índios; pois esses,sendo perguntados reitera<strong>da</strong>mente sobre a existência detais mulheres guerreiras, “e como acreditam que os brancossaibam mais coisas do que eles, teriam transmitido” unsaos outros e aos descendentes a quimera inocula<strong>da</strong> (grifomeu). Muiraquitãs de lado, os viajantes subseqüentes,quando ouvissem os “vestígios dessa idéia” <strong>da</strong> boca dosíndios, tomariam por real o que seria “resquício de umahistória fictícia” gera<strong>da</strong>, de modo não intencional, pelaprópria curiosi<strong>da</strong>de européia pelo maravilhoso. Assim,colher-se-ia hoje o fruto imaginário que o casual enganodos sentidos teria feito amadurecer durante três séculos.Os índios nesse processo desempenhariam o papel de umsolo resignado ao arado mais aguçado dos europeus, germinando,em suas mente crédulas do saber superior destes,um equívoco ao modo de bola de neve.Em vista disso, quero crer que a história <strong>da</strong>s amazonas devaser classifica<strong>da</strong> na mesma categoria <strong>da</strong>s len<strong>da</strong>s e tradiçõesindígenas, como a dos ferozes homens-macacos (queHumboldt menciona e <strong>da</strong> qual também ouvi algumas informações),a do Curupira – o demônio <strong>da</strong> mata – e a doCarbúnculo do Alto Amazonas e do Peru. Acerca dessassuperstições, porém, não temos uma explicação tão satisfatóriacomo esta que agora expusemos com relação às amazonasguerreiras. (Wallace, 1979, p.300)Cerca de trinta anos antes, quando Martius visitou aantiga Vila de Santo Antônio de Maripi, lugar onde os murashaviam se apresentado à conversão (antes o topônimoera Imaripi), propôs hipótese semelhante à de Wallace cita<strong>da</strong>.No lugarejo, seis casas e uma igrejinha, para a qual hámuito não aparecia pároco. Passés, juris, coerunas e jumanaseram os únicos habitantes: não vivem na vila, mas nas florestascircunvizinhas. Em meio aos mais primitivos índiosque até então encontrara, Martius se empenha em descriçõesetnológicas. Quando se refere aos passés, não podedeixar também de – a modo de ironia – encontrar explicaçãopara o engano de Orellana, sustentando-se nas impressõesque as mulheres dessa tribo lhe produzem. Essas[...] trazem o cabelo comprido, que, sobretudo quando odeixam solto, lhes dá, conjuntamente com a malha, umaspecto guerreiro; e os sol<strong>da</strong>dos de Orellana, quando encontravamheroínas dessa espécie, tiveram to<strong>da</strong> razão para designá-lascom o nome clássico de amazonas. (Spix & Martius,1981, p.209)Páginas antes, quando ele e Spix passavam por Óbidos,mencionam que fora por ali, na afluência do Rio Trombetascom o Amazonas, que houve o celebrado embate dosespanhóis com índios junto dos quais mulheres guerreavamfogosamente. Os naturalistas bávaros não têm grandedisposição de tratar de tal assunto – acham-no mesmoum desvio no rumo de sua viagem sob o signo <strong>da</strong> ciênciana Amazônia –, mas o são obrigados pela celeuma queain<strong>da</strong> tal episódio de ares extraordinários provocava naEuropa; ele se tornara[...] o ponto clássico para a etnografia do maior rio, que derivao seu nome desse fato, tantas vezes floreado e posto


212 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 213em dúvi<strong>da</strong>. Espera, portanto, o leitor, com muita razão, que,por minha vez, eu me manifeste a respeito <strong>da</strong>s amazonas;para não interromper muito o curso <strong>da</strong> narração, bastadeclarar que não acredito na existência delas, quer no passado,quer no presente. Pelo geral interesse que o assuntodesperta, confie o leitor na declaração de que nós, o Dr. Spixe eu, não poupamos esforço para obter alguma luz ou certezasobre o caso. (ibidem, p.111)Todos os esforços, contudo, mostraram-se bal<strong>da</strong>dos.Ambos jamais conseguiram ver amazona alguma, e, nomais, apenas a semelhança enganosa <strong>da</strong>s índias passés jáaludi<strong>da</strong>. Nos seus interrogatórios aos habitantes amazônicostambém não encontraram nenhum fato narrado por“pessoa fidedigna, de origem européia” a respeito <strong>da</strong> singularnação de guerreiras. Tudo quimeras. Se não há fatosou determinados testemunhos comprobatórios, tambémnão há razão por que acreditar numa existência improvável.Entre as declarações de Carvajal e de outros incautos,“confie o leitor” nas afirmações de sábios amparadospelo método científico, novos cruzados do “número”. Vê-seaqui como uma nova tradição de relatos procura firmar-seatraindo a credibili<strong>da</strong>de do público pelo valor de ver<strong>da</strong>deque deduz do cui<strong>da</strong>dosamente experienciado, ao mesmotempo que mostra seus adversários submetidos às maquinações<strong>da</strong> imaginação, às quimeras oriun<strong>da</strong>s nos sentidosenganadores.Para essa tradição, a forma de obter informações deveser metódica, seguir critérios tais como o <strong>da</strong> verificação dofato ou do testemunho respeitável para que nossa boa-fésuspen<strong>da</strong> a dúvi<strong>da</strong> salvaguar<strong>da</strong>dora de nossa confiança ingênua.A respeito <strong>da</strong>s amazonas, como conseguir <strong>da</strong>dos críveisse o inquérito dos índios constitui o pilar <strong>da</strong> fabulação?Na ver<strong>da</strong>de, os índios falavam a esse respeito [<strong>da</strong>s amazonas]de tal modo que, com alguma imaginação ativa, semdificul<strong>da</strong>de poderia deduzir-se tudo que é necessário paraapoiar a len<strong>da</strong>. À pergunta: ‘Existem amazonas?’, a respostadeles, por via de regra, é Ipu, ‘parece que sim’. É, porém,a própria pergunta que já contém to<strong>da</strong>s as quali<strong>da</strong>des atribuí<strong>da</strong>sàs amazonas, pois não há na língua geral termo própriopara significar ‘amazona’, de sorte que o índio só precisaresponder na afirmativa ao seu modo, e já está prontaa len<strong>da</strong>. Uma argumentação mais <strong>completa</strong> sobre este assuntomerece, de resto, lugar entre as notas. (ibidem, p.111)Reviravolta no papel <strong>da</strong> imaginação. Devemos suporque, no caso dos primeiros viajantes, ela desempenharauma função passiva: impressiona<strong>da</strong> por alguma semelhançaenganosa, a fantasia <strong>da</strong>queles foi deixa<strong>da</strong> a agir e incorporou-seà reali<strong>da</strong>de ilegitimamente. To<strong>da</strong>via, podemosusar <strong>da</strong> imaginação de modo soberano e, por essa via, surpreenderas circunstâncias históricas <strong>da</strong>s quais o mito amazônico,ao cobrir de esquecimento sua origem, ganharacorpo. Presumamos uma índole indígena disposta a responderIpu, uma pergunta buscando respostas sobre umobjeto para o qual “não há na língua geral termo própriopara significar”, o que disso poderia resultar senão “tudoque é necessário para apoiar a len<strong>da</strong>”. Uma pergunta capciosadirigi<strong>da</strong> à mente infantil dos índios e suporta<strong>da</strong> porum código insuficiente para <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> tradução está naraiz <strong>da</strong> sobrevivência de uma tão resistente ilusão. Dessa,a imaginação, guia<strong>da</strong> pelo método investigativo, faz separarmo-nospara que voltemos ao reto “curso <strong>da</strong> narração”que cumpre empreender. Enquanto resíduo, deixemos paraa margem, para as notas de ro<strong>da</strong>pé, assunto de tão secundáriaordem.Assim como Bates usou as notas marginais buscandogarantir uma fronteira entre a ficção e a reali<strong>da</strong>de, esseprocedimento também pode ser encontrado em Spix &Martius. Numa nota intitula<strong>da</strong> “Sobre as Amazonas”, essesnaturalistas retomam a viagem de Orellana como oponto de parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> ficção que querem provar como tal.Primeiro, dizem, o capitão espanhol dialogou com o índioque o avisou tomasse cui<strong>da</strong>do com as mulheres guerreiras,as quais “chamava de cunhá-puiára e encontrou em 1542no Rio Conuris, hoje Trombetas, entre homens mulherescombatentes” (Spix & Martius, 1981, p.134). Assim, o


214 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 215índio citado teria se referido a um costume comum entrecertas tribos do Amazonas, e foi a relação de Acuña (1941)que acrescentou “ao simples fato to<strong>da</strong>s as len<strong>da</strong>s, que desdeaquela época têm sido tão repisa<strong>da</strong>s”.Novamente, flagramos as cores berrantes <strong>da</strong> imaginaçãoancestral cobrirem a simplici<strong>da</strong>de do realmente acontecido.Para Spix & Martius, é provável que os índios apenasquisessem se referir à belicosi<strong>da</strong>de de algumas naçõesque encontrariam a jusante, entre as quais as mulherescombateriam junto com homens. Explicação que, lembram,já Ribeiro Sampaio (1825) oferecia por meio do exemplodos mundurucus. Ora, quando do enfrentamento no Trombetas<strong>da</strong> expedição de Orellana com tal fenômeno etnológico,a imaginação exacerba<strong>da</strong> se atravessou e “veio <strong>completa</strong>ra fábula” (Spix & Martius, 1981, p.134).O processo de revisão crítica por vezes usa, porém, depré-julgamentos tão condenáveis quanto aqueles que visacondenar. É o que se pode depreender <strong>da</strong>s observaçõesque fazem ain<strong>da</strong> Martius & Spix sobre a posição de LaCon<strong>da</strong>mine diante <strong>da</strong> len<strong>da</strong> <strong>da</strong>s amazonas. O astrônomofrancês efetivamente se põe no mesmo caminho dessa novatradição de relatos científicos que ele aju<strong>da</strong> a inaugurar.Mas as explicações historicizadoras do mito que apresentamostram-se insuficientes para os naturalistas bávaros. ParaLa Con<strong>da</strong>mine a tribo <strong>da</strong>s amazonas americanas não existe,mas teria existido. Elas se constituíram historicamentecomo um resultado <strong>da</strong> insurreição de índias cansa<strong>da</strong>s dosmaus-tratos impingidos pelos maridos. Essas resolveramfugir e formar comuni<strong>da</strong>des exclusivamente de mulheres.Vê-se que para La Con<strong>da</strong>mine também a fantasia dossilvícolas junto com a dos conquistadores encobriu a positivi<strong>da</strong>denuma len<strong>da</strong>. Porém essa hipótese histórica é rejeita<strong>da</strong>por Spix & Martius (1981, p.134), posto que[...] do estado de escravidão <strong>da</strong>s mulheres, no qual LaCon<strong>da</strong>mine vê um provável motivo para a instituição deuma república de mulheres, tanto menos posso deduzir estefenômeno, quanto sei que a dependência notória <strong>da</strong>s mulheresao homem se baseia justamente na sensuali<strong>da</strong>de7Esse nobre prussiano, aforao contato com Humboldt,parece vir para a Amazôniamotivado pela aura pe<strong>da</strong>gógicaque o romantismo deu aosignificado <strong>da</strong> viagem naformação do indivíduo.Ele chega ao Rio de Janeiroem 1842, onde conhece oimperador D. Pedro II. Partepara a Amazônia, indo emdireção às tribos selvagens doalto Xingu. Depois de doismeses viajando pelahinterlândia, retorna para aPrússia, onde publica em 1847o relato dessa experiência.delas. Essa situação dá motivo a que muitas índias abandonemas suas hor<strong>da</strong>s, talvez repudia<strong>da</strong>s por seus maridos, e,como hetairas livres, mudem de um bando para outro, ondesão melhor acolhi<strong>da</strong>s, por serem considera<strong>da</strong>s uma espéciede escravas e se submeterem a qualquer serviço <strong>da</strong> casa.Na concepção patriarcal de socie<strong>da</strong>de que Spix & Martiusdefendem não há lugar eminente nem possível parauma república de mulheres. Sofrer de excessiva afetaçãosensual, eis por que essas acabam escravas; sua fraqueza àsprovocações dos sentidos lhes priva do marido, <strong>da</strong> tribo,<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de. Elas erram na mata não por desejo de soberania,mas porque, não sendo dominadoras de suas paixões,só lhes resta depender dos homens, escravas que são<strong>da</strong> natureza.A ausência de crítica diante dos sentidos permite estabeleceruma distinção hierárquica pela qual a consciênciaalerta dos naturalistas predominará acima dos selvagens,mulheres e exploradores pioneiros na Amazônia, todosesses cativos <strong>da</strong>s elucubrações sensoriais. De modo geral,a sensuali<strong>da</strong>de é acusa<strong>da</strong> porque se apresenta como umestágio inferior <strong>da</strong> investigação científica, sujeito às flutuaçõesdos sentidos e, portanto, não abrigado do erro. É elaque fertiliza as quimeras humanas ao encobrir a naturezapuramente fenomênica dos fatos. O príncipe A<strong>da</strong>lberto, 7que talvez seja um precursor do turismo ecológico amazônico,não deixava de reservar um espaço na igarité para ascaixas de um naturalista, Dr. Lippold, que o acompanhava;disso concluía um “brilhante testemunho do [espaço]que de boa vontade e com todo o prazer queríamos reservarà ciência em nossa inocente expedição fluvial” (A<strong>da</strong>lberto,1977, p.142). Ciência que o príncipe executa naverificação do que lhe rodeia, porque sabe que os sentidosconfundem e tornam um fenômeno imperfeitamente percebidoem acontecimento sobrenatural.Devíamos de alguma forma ser compensados <strong>da</strong> falta domaravilhoso, por algo extraordinário. Vimos com não pequenasurpresa, subir de uma palmeira de folha em leque


216 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 217na margem direita, uma tênue coluna de fumo, que pormuito tempo prendeu nossa atenção, e que observamos comtanta persistência através do óculo, que nossos braços ficaramdormentes, até descobrirmos que não era mais do queum enxame de insetos circulando no ar, por conseguinteum fenômeno por causa do qual não teríamos de atravessara linha nem procurar o Rio Amazonas. (ibidem, p.149).Só o apelo aos sentidos não é suficiente para estabeleceruma conclusão segura a respeito do extraordinário dofato observado. É necessário, para atingir a ver<strong>da</strong>de dofato, agregar o instrumento do “óculo” que verifica a normali<strong>da</strong>deonde os sentidos produziram fantasias confusas.Um método de investigação bem constituído assegura-nos<strong>da</strong>s falsas interpretações de nossas sensações, submetendo-asà análise de uma crítica intelectual, assegura<strong>da</strong> nãopela negação dos sentidos, mas pelo seu aguçamento instrumentalizado.Desinteresse e dominação8Esse suíço trabalhou comMartius na descrição dospeixes colecionados após amorte prematura de Spix.Depois de alcançar renomecientífico com as idéias sobreo período <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Glacial, járesidindo nos Estados Unidos,aproveita a boa receptivi<strong>da</strong>dede D. Pedro II às expediçõescientíficas e viaja para o Brasil,financia<strong>da</strong> a excursão como dinheiro de um amigo, em1865. O percurso foi de NovaYork ao Rio de Janeiro e <strong>da</strong>liao Pará, de onde o naturalistase embrenhou pelahinterlândia; depois de deixaro Pará, foi até Recife, de onderetornou para os EstadosUnidos. Além <strong>da</strong> equipe,Agassiz viajou com a esposaElizabeth, com a qual dividea autoria do relato de suasexperiências de trânsito.De outra perspectiva, to<strong>da</strong>via, esse suposto caminhoevolucionário do intelecto, além de explicar a origem <strong>da</strong>ssuperstições nas confusões sensuais, demonstra também oprogresso <strong>da</strong> civilização ocidental em direção a uma racionalizaçãoque extrapola os campos <strong>da</strong> análise dos fatos,para permitir considerações sobre a superiori<strong>da</strong>de racial.Agassiz (1975, p.148) lamenta a situação dos tapuios amazônicos,“cuja civilização não passa de esboço por esse modode vi<strong>da</strong> em que as sensações são extremamente fortes semque na<strong>da</strong> desperte a inteligência”. 8 A percepção científicafiltraria as confusões e a fantasia dos sentidos conseguindoapreender o natural de modo puro. O maravilhoso paraa perspectiva dessa nova tradição seria um luxo, uma produçãohumana acrescenta<strong>da</strong> à natureza, mas que originariamentenão lhe diria respeito; pelo contrário, acabariapor nos afastar <strong>da</strong> positivi<strong>da</strong>de dos fatos pela qual encaminhamo-nosàs ver<strong>da</strong>des científicas. Contudo, na defesa deprodutivi<strong>da</strong>de do método científico insere-se simultaneamenteuma justificação <strong>da</strong> colonização e do poder empregadopara tanto, na medi<strong>da</strong> em que os índios devem sertutelados em sua infância <strong>da</strong>s sensações pela maturi<strong>da</strong>deintelectual do Ocidente. Como homens de ciência, “semnenhum outro objetivo de utili<strong>da</strong>de prática” (ibidem,p.168), como diz Agassiz, a avaliação de ver<strong>da</strong>de dos naturalistassegundo a positivi<strong>da</strong>de dos fatos, desliza de seuaparente caráter neutro para legitimar uma desigual<strong>da</strong>dede forças. Ain<strong>da</strong> mais. É todo um modo de ser diante <strong>da</strong>natureza que se postula. Esvaziar a linguagem de expedientespróprios <strong>da</strong> “fantasia sonhadora” é uma medi<strong>da</strong> quevisa, em princípio, apreender “o aspecto natural, o únicoexato”, de qualquer fato que se demonstre à percepção donaturalista, mas que ultrapassa a suposta neutrali<strong>da</strong>de intervindono sistema de crenças nativas.Exemplar dessa intervenção é o significado que o botopossa assumir para Bates e para um tapuio. Numa cenamuito comum nos relatos de viagem encontraremos essenaturalista nas proximi<strong>da</strong>des de Ega participando de umaconversa à beira de uma fogueira, ouvindo narrativas conta<strong>da</strong>spelos locais cujo tema muito comumente é o sobrenatural.Dessas muitas “histórias fantásticas” que escuta,Bates refere-se naquele momento às transmutações que oboto poderia sofrer a fim de seduzir homens e mulherespara o mergulho fatal nas águas. Afirma não existir outroanimal que mais “tenha <strong>da</strong>do origem a tantas len<strong>da</strong>s” eain<strong>da</strong> acrescenta a suspeita de que essas tenham sido cria<strong>da</strong>snão pelos índios, mas pelos portugueses. Essa significaçãoextraordinária atribuí<strong>da</strong> ao boto amazônico, enfim,torna-se um obstáculo às pesquisas do naturalista, as quaisnão visam particularmente senão ao lugar taxionômico queo cetáceo possa ocupar num todo que é a coleção, objetivodessa viagem ilustra<strong>da</strong>:Levei vários anos para conseguir convencer um pescador aarpoar um delfim para minha coleção, pois ali ninguém mataesses animais voluntariamente, embora se afirme que o óleoque ele fornece é excelente para lampiões. As pessoas su-


218 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 219persticiosas acreditam que o uso desse óleo na iluminaçãoprovoca cegueira. (Bates, 1979, p.238)Bates, enfim, consegue persuadir um tapuio endivi<strong>da</strong>do<strong>da</strong> região de Ega a matar um boto mediante um bompagamento, ato de que o nativo amargamente se arrependeu,pois “sua sorte o [teria abandonado] a partir dessedia” (ibidem, p.239).Contraposta a uma perspectiva animista, a HistóriaNatural dá à natureza uma conotação de ordem sistêmica:seus elementos são destituídos de qualquer poder mágicopara se dobrarem ao seu estado de coisa classificável, coisautilizável. Há um confronto aqui que nos mostra o aspectoiconoclasta <strong>da</strong>s Luzes: diante <strong>da</strong> ciência não há tabuque possa merecer serie<strong>da</strong>de, não há outra coisa que provoquecegueira senão o medo supersticioso. Para Bates nãoé o desejo de ampliar sua coleção, mas a crença no extraordinárioque gera o azar do pescador.Na ver<strong>da</strong>de, esse comportamento iconoclasta está fun<strong>da</strong>dosobre uma certeza maior a respeito do valor de seuspróprios atos de viajante-naturalista, representante de umacivilização superior que conseguiu ultrapassar a veneraçãomistificadora <strong>da</strong> natureza, subjugando-a, pela mediaçãodo trabalho, às necessi<strong>da</strong>des de autopreservação. Avé-Lallemant (1980, p.95) não esconde a pena que sente dosíndios ao ver neles a ausência de qualquer cosmopolitismo:nunca saíram de seu pequeno mundo <strong>da</strong> maloca; por isso,quando o vapor subiu o Rio Amazonas pela primeira vez,os índios saíam correndo para o mato com medo <strong>da</strong> gigantescaserpente, do “monstro fumegando”.A chega<strong>da</strong> do navio a vapor também significaria, paraBates, um passo decisivo na civilização <strong>da</strong> Amazônia. Essamáquina de locomoção poderia parecer-lhe um símbolo<strong>da</strong> conquista de novos territórios, ou dos desdobramentostecnológicos <strong>da</strong> ciência, ou <strong>da</strong> adequação <strong>da</strong> natureza –media<strong>da</strong> pela ação emancipa<strong>da</strong> – aos fins utilitários dohomem. Mas, talvez, na<strong>da</strong> demonstraria mais o seu sentidocivilizatório que o efeito provocado pelo vapor sobre ostapuios moradores <strong>da</strong>s cercanias de Belém do Pará: com asua chega<strong>da</strong> “eles começaram a abandonar aos poucos olugar” (Bates, 1979, p.40).Nessa primeira referência que faz em seu relato sobreos índios semicivilizados, Bates oferece deles uma descriçãoprincipia<strong>da</strong> pelas mensurações antropométricas, segundoas quais o tapuio teria características comuns ao“pele-vermelha americano”. Descrevendo, em segui<strong>da</strong>,seus traços morais, o naturalista expõe o caráter apático,pouco demonstrativo <strong>da</strong> raça: “são taciturnos e parecemnão sentir emoção alguma”, não se entusiasmar com na<strong>da</strong>que se lhes apresente, embora tenham laços afetivos principalmentecom a família. Afora a hospitali<strong>da</strong>de com querecebe suas visitas, em[...] todos os seus atos, o índio demonstra que seu principaldesejo é ser deixado em paz; ele tem apego a seu lar e à suatranqüila e monótona vi<strong>da</strong> na selva ou à beira do rio; gostade ir aos arraiais de vez em quando para admirar as maravilhasproduzi<strong>da</strong>s pelo homem branco, mas sente horror aoviver no meio de muita gente. Prefere o trabalho artesanalà labuta nos campos, e lhe desagra<strong>da</strong> particularmente submeter-sea um trabalho assalariado. (ibidem, p. 40)Diante de tal “inflexibili<strong>da</strong>de do caráter do indígena”,sua recusa a fazer parte dos valores universais <strong>da</strong> civilizaçãoeuropéia, não resta outro caminho a eles senão “a suaextinção”, conclui Bates. Lentamente, os novos imigrantesvão tomando as terras deles, brancos e negros vão semisturando... e pouco se deve “lamentar o destino dessaraça”. Para Bates, a história mostra esse mesmo conflitoem outros cantos do mundo aonde a expansão colonialchegou, posicionando antagonicamente colonos e autóctones,caso <strong>da</strong> Nova Zelândia e <strong>da</strong> África do Sul. É o percursonecessário para que a civilização vá “avançando pelaregião amazônica” (ibidem, p.40).O tapuio ou o índio recebe a pecha de indolente sucessivamenteno relato de Bates, no que, aliás, ele faz ecoa muitos viajantes ilustrados. Já Alexandre Rodrigues


220 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 221Ferreira, por exemplo, emite as seguintes opiniões negativasacerca <strong>da</strong> natureza paradisíaca <strong>da</strong> Amazônia, destacandoseu efeito negativo na civilização dos índios efetua<strong>da</strong>sob a política do Diretório laico do Marquês de Pombal:To<strong>da</strong> a paixão e sau<strong>da</strong>de é pelo mato que deixaram; ali oapetite animal é a lei dos costumes, ali são naturalmentepreguiçosos, porque o mato lhes subministra tudo o de quenecessitam. A necessi<strong>da</strong>de tem sido a mola mestra <strong>da</strong> indústrianos países cultos: eles, que a não receiam, nem amam aindústria nem a sujeição aos costumes, que são diversosdos seus. (Ferreira, 1972 p.154-5)Tais críticas à economia extrativista e a defesa <strong>da</strong> agriculturae indústria são constantes na literatura de viagemamazônica. Para Spix & Martius (1981, p.26) são “as águaspiscosas, o pe<strong>da</strong>cinho de terreno fértil em volta <strong>da</strong> palhoça”,dádivas <strong>da</strong> natureza, que impedem o desenvolvimentototal <strong>da</strong> civilização, “e o homem meio civilizado burla-sede uma vi<strong>da</strong> cujas mais altas aspirações nunca conhecerá”.Avé-Lallemant (1980, p.148), por sua vez, sustenta que“o povo é pobre no meio <strong>da</strong> riqueza: merece, sem nenhumacompaixão ser pobre, porque não que trabalhar nemfazer esforço”; opinião que é compartilha<strong>da</strong> por Bates(1979, p.297), para quem a indolência e descuido “incorrigíveisdo povo impedem que ele se acerque de to<strong>da</strong>s asriquezas de uma região tropical”, acrescentando ain<strong>da</strong>como o trabalho e a técnica desenvolveriam “as melhoresárvores frutíferas em torno <strong>da</strong> casa, como certamente fariamos inteligentes fazendeiros europeus”.O trabalho, esforço realizado pelo homem na adequação<strong>da</strong> natureza a suas necessi<strong>da</strong>des, deixa de ter o valornegativo que lemos no Gênesis, castigo atribuído a umAdão e Eva pecadores, para ser o distintivo <strong>da</strong> superiorcivilização. Eis por que a natureza edênica <strong>da</strong> Amazôniacelebra<strong>da</strong> nos relatos dos descobridores como Carvajal eAcuña se torna um problema, que dificulta a incorporaçãodos nativos ao projeto desenvolvimentista <strong>da</strong> regiãoamazônica. Eles se contentam com o pouco que a naturezalhes dá, julgando ser isso o Paraíso, quando, na ver<strong>da</strong>de,só o trabalho propicia as condições edênicas.É nessa mesma chave que Wallace (1979, p.53) criticaTronqueiros, uma insólita “aldeia sem casas”, situa<strong>da</strong>nas proximi<strong>da</strong>des de Belém. Tratava-se de um acampamentofeito para extrair borracha e fazer pequenas plantaçõesdurante o verão, pois, no período de chuvas, tudo aliera tomado pela inun<strong>da</strong>ção. Wallace vê crianças “nuas pelaareia enquanto as mulheres e alguns homens repousavamnas redes”; canoas e espingar<strong>da</strong>s jaziam ociosas e umaspanelas de barro ardiam no fogo com o que seria a refeição.Tal estado de indolência causa admiração no naturalista,pois “as pessoas pareciam estar satisfeitas consigomesmas, acreditando que tinham tudo o que alguém acasopossa desejar”.Habitado por preguiçosos, esse falso paraíso tão comumna Amazônia é objeto de críticas consecutivas deWallace (1979, p.208) ao longo de seu relato, sempre contrapondo-lheum outro Jardim, ver<strong>da</strong>deiro, produto do suorlaborioso, <strong>da</strong> realização progressista:Quando fico pensando no quanto é fácil transformar estafloresta virgem em verdejantes campinas e produtivas plantações,exigindo-se para tanto uma concentração mínimade trabalhos e esforços, dá até vontade de reunir meia dúziade amigos entusiasmados e diligentes e vir para cá tirardesta terra tudo aquilo que ela pode nos propiciar com fartura.Juntos, mostraríamos a gente do país como seria possívelcriar um ver<strong>da</strong>deiro paraíso terrestre a curto prazo, abrindo-lhesos olhos para uma reali<strong>da</strong>de que eles então jamaisconceberam que fosse capaz de existir.A confiança nas possibili<strong>da</strong>des inúmeras <strong>da</strong> civilizaçãopara a domesticação de um ambiente agreste dá aWallace o entusiasmo para mol<strong>da</strong>r imaginariamente o futuroa modo de satisfação <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des coloniais. Aselva se rende diante de tamanha força, inabalável no seuintuito de enquadrá-la ao jardim, de fazer do solo onde seumistério se ergue o domínio <strong>da</strong>s culturas comercializáveis.


222 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 223A mesma determinação confiante que não se apie<strong>da</strong>va dodestino dos índios com a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> civilização à Amazôniaimagina também o curso teleológico <strong>da</strong> subjugação total<strong>da</strong> natureza aos interesses de autopreservação do homemprático europeu. Mais particularmente, o sonho deWallace enraíza-se na expansão imperialista <strong>da</strong> Inglaterradurante o século XIX, na fé em si mesma de uma socie<strong>da</strong>deque incorpora o valor <strong>da</strong>s pesquisas científicas e a organizaçãometódica dos aparelhos burocráticos de colonização.Mas essa valorização do trabalho transformador nãose faz sem certas hesitações, vacilações que depõem, aquie ali, contra a própria determinação do progresso ocidentalencarna<strong>da</strong> no cientificismo dos naturalistas. Wallace,depois de incitar-se junto com amigos a “criar aqui umver<strong>da</strong>deiro paraíso terrestre a curto prazo”, demonstra-seindeciso entre a “perspectiva <strong>da</strong> maravilhosa vi<strong>da</strong> que aquime aguar<strong>da</strong>ria, livre <strong>da</strong>s preocupações financeiras e dosaborrecimentos <strong>da</strong> civilização” e o retorno aos campos <strong>da</strong>Inglaterra, pois sua permanência significaria passar “a desfrutaraqui neste Rio Negro de uma vi<strong>da</strong> repleta de tranqüili<strong>da</strong>de,fartura e paz...” (ibidem, p.210). Também é omesmo Avé-Lallemant (1980, p.52), antes tão convicto<strong>da</strong> civilização que representa, que em outro momento in<strong>da</strong>gase não é ele que está na contramão <strong>da</strong> natureza, querendoobter por um suor “sujo e repelente” aquilo que estagenerosamente ofertava.Menos ain<strong>da</strong> se deve admirar de que não trabalhem! E consignoaqui, com to<strong>da</strong> a serie<strong>da</strong>de, a pergunta. E para quehaveriam de trabalhar? Arrotear e cultivar trechos <strong>da</strong> floresta,que lhes dá açaí, palmito, cocos, cacau, borracha ealém disso caça saborosa? Perturbar o sossego, a paz, a tranqüilaharmonia <strong>da</strong> Natureza com o bater do machado e ocrepitar do fogo, para obterem alimentos inferiores e, ain<strong>da</strong>por cima, estranhos? Deverão eles, se lhes tiram a mata,seu primeiro elemento de vi<strong>da</strong>, e a preguiça na selva, desistirain<strong>da</strong> do segundo elemento de vi<strong>da</strong>, o rio e o banho nomesmo? Deverão eles por mero entusiasmo pelo trabalho,tornar-se sujos e repelentes?In<strong>da</strong>gação que depõe contra a própria determinaçãode transformar a natureza, de edificar obras cujo valor civilizatórioseria inquestionável, Avé-Lallemant manifesta adúvi<strong>da</strong> não do ilustrado diante <strong>da</strong>s crenças nativas, masde quem questiona a própria fé que anima sua perspectivaprogressista, de quem lança dúvi<strong>da</strong>s sobre os fins <strong>da</strong> açãotransformadora <strong>da</strong> natureza.Flora Süssekind (1990), analisando nos relatos naturalistasessas mesmas aparições vaza<strong>da</strong>s de auto-reflexão,percebe que elas são sintagmaticamente relega<strong>da</strong>s a umsegundo plano pelo senso utilitário. A suspensão de umolhar voltado apenas para classificar o exterior, como conseqüência,dirige a atenção do narrador para si mesmo esua relação essencial com a civilização que ele representa,como os casos acima ilustram. Mas, nota Süssekind (1990,p.110), essa interrupção é venci<strong>da</strong> pelo narrador não peloaprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> questão e a certificação <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>dede sua ação, mas simplesmente pelo abandono <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>,como faz, por exemplo, o mesmo Avé-Lallemant (1980,p.210), retornando à sua narrativa de bases positivistas,sem desdobrar a dúvi<strong>da</strong> aberta, pois teme “deter meus leitorespor longo tempo na floresta e no rio de Cametá comminudências. Terminemos, pois, com o lindo mundo <strong>da</strong>spalmeiras!”.Mas o que há de tão perturbador na auto-reflexão paraser evita<strong>da</strong>, suspensa? Será que essas passagens onde osautóctones passam a não mais ser inferiormente descritospela inutili<strong>da</strong>de que dão à Amazônia, deixando de se apresentarcomo o antípo<strong>da</strong> para ser o antídoto às obrigaçõesciviliza<strong>da</strong>s, essas passagens onde a auto-reflexão expõe umasubjetivi<strong>da</strong>de vacilante, será que elas não testemunhariam,como a manifestação de uma corrosão íntima, o conflitode diferentes perspectivas do narrador diante de atribuiçãode sentido, positivo ou negativo, ao curso do desenvolvimentoantropológico culminado, não na mente esclareci<strong>da</strong>,mas na consciência reifica<strong>da</strong>?Há um preço que se deve pagar, afirmam Adorno &Horkheimer (1985), quando o esclarecimento põe em dú-


224 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 A ilustração viajante e as suas sombras 225vi<strong>da</strong> a honesti<strong>da</strong>de dos mitos. Assim como a mente emancipa<strong>da</strong>se ergue sobre a crítica dos mitos como antropomorfismosa que o homem venera com sua fé ingênua, a própriapretensão de ver<strong>da</strong>de, de universali<strong>da</strong>de dos valoresdesta mente vai se mostrar, através <strong>da</strong> mesma auto-reflexão,um artigo de fé. Os conceitos universais sucumbemante o processo autofágico <strong>da</strong> crítica esclareci<strong>da</strong>, que acabapor denunciar na perspectiva de neutrali<strong>da</strong>de que osalimentaria, apenas uma perspectiva subterrânea, uma fédissimula<strong>da</strong>: “A própria mitologia desfecha o processo semfim do esclarecimento, no qual to<strong>da</strong> concepção teóricadetermina<strong>da</strong> acaba por fatalmente sucumbir a uma críticaarrasadora, à crítica de ser apenas uma crença, até que ospróprios conceitos de espírito, ver<strong>da</strong>de e até mesmo deesclarecimento tenham-se convertido em magia animista”(ibidem, p.26). Esse processo de autocorrosão é o resultadode uma condução <strong>da</strong> razão aos seus limites, aí onde elase percebe tão antropomórfica quanto os mitos de que porisso ela duvi<strong>da</strong>ra. A iconoclastia do esclarecimento surpreendentementevolta-se contra a própria autoconfiançadele.Não vamos encontrar a auto-reflexão leva<strong>da</strong> até suacrítica extrema <strong>da</strong> neutrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> razão ou do sentidopositivo <strong>da</strong> civilização no relato de Wallace: ela é suspensaantes que qualquer catástrofe possa ocorrer. Contudo,como vimos antes, a desconfiança do próprio papel civilizadornão deixa de ser uma posição assumi<strong>da</strong>, mesmo quede passagem, pelo narrador ilustrado <strong>da</strong> literatura de viagem.Quando isso acontece, é possível perceber a emergênciarelativa de uma subjetivi<strong>da</strong>de romântica na narração.Na esteira do processo de reificação <strong>da</strong> natureza, emcontraposição ao enfoque anterior <strong>da</strong>do pela revisão críticados mitos presentes nas narrativas de descobrimento eno pensamento animista dos índios, o modo românticoaparece como nostalgia de uma fé, ou estágio natural jánão mais possível, interditado pelo próprio processo críticodo esclarecimento.ReferênciasACUÑA,Cristobal de. Novo descobrimento do grande rio <strong>da</strong>s Amazonas.São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1941.ADALBERTO, Príncipe <strong>da</strong> Prússia. Brasil: Amazonas-Xingu. BeloHorizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1977.ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento:fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.AGASSIZ, Louis. Viagem ao Brasil (1865-1866) Belo Horizonte:Itatiaia; São Paulo: USP, 1975.AVÉ-LALLEMANT, Robert. No rio Amazonas. Belo Horizonte:Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980.BATES, H. Walter. Um naturalista no rio Amazonas. Belo Horizonte:Itatiaia; São Paulo: USP, 1979.CARVAJAL, Gaspar de. Descobrimento do Rio de Orellana. SãoPaulo: Nacional, 1941.DUCHET, Michèle. Antropología e Historia en el siglo de las luces.México: Siglo Veintiuno, 1975.FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica pelas capitaniasdo Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá: memórias de zoologiae botânica. [ ]: Conselho Federal de Cultura, 1972.FERREIRA, R. Bates, Darwin, Wallace e a Teoria <strong>da</strong> evolução. Brasília:Editora <strong>da</strong> UnB; São Paulo: USP, 1990.HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do paraíso: os motivosedênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 6.ed. São Paulo:Brasiliense, 1994.LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlânti<strong>da</strong> de SPIX & MARTIUS:natureza e civilização na Viagem pelo Brasil. São Paulo: Hucitec,1997.RECLUS, Élisée. Estados Unidos do Brasil. Geographia, ethnografia,estatística. São Paulo: Livraria Magalhães, 1899.SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. Diário de viagem: que emvisita, e correição <strong>da</strong>s povoações <strong>da</strong> capitania de São José do RioNegro fez o ouvidor e intendente geral <strong>da</strong> mesma, Fco. X. R. deSampaio, no anno de 1774 e 1775. Lisboa: Tipografia <strong>da</strong> Academia,1825.SPIX; MARTIUS. Viagem pelo Brasil (1817-1820). Belo Horizonte:Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981.


226 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 227SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe <strong>da</strong>qui: o narrador, a viagem.São Paulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 1990.WALLACE, Alfred. Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro.Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1979.As representações de Adolphe D’Assier<strong>da</strong> gente e <strong>da</strong> terra brasileiras publica<strong>da</strong>sna Revue des Deux MondesKatia Aily Franco de Camargo*RESUMO: O objetivo do presente artigo é apresentar as imagens<strong>da</strong> gente e <strong>da</strong> terra brasileiras elabora<strong>da</strong>s pelo publicista francêsAdolphe d’Assier em seus artigos sobre nosso país publicadosno afamado periódico parisiense Revue des Deux Mondes ao longodo século XIX.PALAVRAS-CHAVE: Adolphe d’Assier, viagem, Revue des DeuxMondes.ABSTRACT: This article has for objective to present the imagesof Brazil created by a French publicist called Adolphe d’Assier,which were published, throughout the 19 th century, by the famousParisian magazine Revue des Deux Mondes.KEYWORDS: Adolphe d’Assier, journey, Revue des Deux Mondes.* Universi<strong>da</strong>de Federal do RioGrande do Norte (UFRN).1Em várias passagens deseus artigos sobre o Brasil,publicados na Revue des DeuxMondes, diz ter realizado suaviagem em companhia dopublicista e político francêsCharles Ribeyrolles.Há poucas informações sobre Adolphe d’Assier, viajantee filólogo francês nascido na ci<strong>da</strong>de de Labastidede-Sérou,pertencente ao Departamento de Ariège, próximoao Pirineus, em 1828. Sabe-se somente que foimembro <strong>da</strong> Academia de Ciências de Bordeaux, que dirigiua Revue d’Aquitaine e o jornal La Patrie en Danger. Umaparalisia do nervo óptico o obrigou a diminuir o ritmo detrabalho, não impedindo, no entanto, que desse continui<strong>da</strong>dea seus escritos, ditando suas últimas obras.Desconhecem-se também as razões que o levaram aempreender uma peregrinação de dois anos (1858-1869)ao Brasil. 1 Mas sabe-se que suas viagens lhe renderam váriosartigos na Revue des Deux Mondes, <strong>revista</strong> francesafun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1829 por Prosper Mauroy e Ségur-Dupeyron,a saber: “Le Brésil et la société brésilienne, moeurs et paysages.I. Le rancho”; “II. La fazen<strong>da</strong>”; “III. La ci<strong>da</strong>de”; “Le


228 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 As representações de Adolphe D’Assier <strong>da</strong> gente e <strong>da</strong> terra... 229mato virgem. Scènes et souvenirs d’un voyage au Brésil”;“L’Eldorado brésilien et la Serra–<strong>da</strong>s-Esmeral<strong>da</strong>s”. 2 Dessaforma, Adolphe d’Assier é o publicista que mais escreveu,durante o século XIX, nas páginas <strong>da</strong> Revue des Deux Mondes,sobre o Brasil.Diferentemente dos demais autores que publicaramsobre nosso país nesse periódico ao longo do século XIX,dentre os quais estão Ferdinand Denis, Auguste de Saint-Hilaire, Théodore Lacor<strong>da</strong>ire, Comte de Suzannet, PaulGrimblot, Francis de Castelnau, Emile Adêt, João ManuelPereira <strong>da</strong> Silva, Elisée Reclus, d’Assier dá, em seus escritos,maior ênfase à população, procurando situá-la nos diferentesnichos do território brasileiro: o rancho, a fazen<strong>da</strong>,a ci<strong>da</strong>de, a mata virgem e o Eldorado. Em seu primeiroartigo, “Le Brésil et la société brésilienne, moeurs etpaysages. I. Le rancho”, publicado em 1863, inicia versandosobre o desconhecimento quase total do interior doBrasil, apesar <strong>da</strong>s incursões aí realiza<strong>da</strong>s. Declara também,nesse momento, seus objetivos: traçar o perfil <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>dedo interior, a começar pelos membros que a compõeme formam a base do Império brasileiro, para que, dessamaneira, o leitor possa ter subsídios para apreciar e compreenderas demais regiões.2Outros artigos que publicouna Revue são: “Les inon<strong>da</strong>tionsdu bassin de la Garonne,les causes et les remèdes dudébordement des rivières”,out. 1875; “L’Évolutionhistorique des peuples”,set. 1876.3As traduções dos textos deAdolphe d’Assier apresentadosao longo deste artigo são denossa responsabili<strong>da</strong>de.Gostaríamos de salientar quefoi nosso objetivo manter asressalvas do autor, optamos,para tanto, por manter seusgrifos presentes nas citaçõeselenca<strong>da</strong>s.[...] falta traçar um quadro fiel <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social no interior doBrasil, mostrando o estágio em que se encontra, nas diversaspartes desse império, o trabalho <strong>da</strong> civilização. Pode serque uma estadia de vários anos nesse país nos dê algum direitode tentarmos realizar essa tarefa. Teria que se abarcarno mesmo quadro o conjunto <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de créole, desde orico fazendeiro até o humilde feitor, e, sobretudo, reproduzira exata fisionomia de ca<strong>da</strong> um dos tipos que a representam,mas essa socie<strong>da</strong>de, filha <strong>da</strong> conquista, está fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>na escravidão: o branco repeliu o índio e mantém sob o chicoteo negro curvado para a terra. Antes, portanto, de estu<strong>da</strong>ra fazen<strong>da</strong> (grande proprie<strong>da</strong>de rural) e, na ci<strong>da</strong>de, as forçasindustriais e políticas <strong>da</strong> nação, é necessário conheceras raças deser<strong>da</strong><strong>da</strong>s, o índio, o negro, o homem de cor, e éprincipalmente no rancho que podemos observá-las. O ranchoé uma cabana de palha que abriga o índio na floresta, étambém o galpão mais soli<strong>da</strong>mente construído, mas <strong>completa</strong>menteaberto, onde param, com seus animais, as caravanasde homens de cor e de negros que transportam asmercadorias <strong>da</strong> costa ao interior; é, em uma palavra, o asilo<strong>da</strong>s populações errantes ou escravas, que são o objeto desteprimeiro estudo. (D’Assier, 1863(I), p.554-5) 3No rancho, portanto, o autor dá início à sua análiseetnográfica. Como era filólogo, d’Assier faz uso de seusconhecimentos para julgar o estágio de civilização e o caráterdo aborígine:A idéia de Buffon: “o estilo é o homem”, talvez nunca tenhasido aplica<strong>da</strong> com tamanha justeza como no disformeidioma dos botocudos. [...] A análise de suas palavras revela,<strong>da</strong> maneira mais clara, a infância de seu estágio social.Se mostras a eles um bastão, eles te respondem tchoon (árvore).Para eles, um bastão na<strong>da</strong> é senão um tronco deárvore sem galhos. Se, em segui<strong>da</strong>, perguntas o nome deuma viga, eles te respondem novamente tchoon, de um galho,um pe<strong>da</strong>ço de madeira, uma estaca etc., sempre tchoon.A palavra po designa, ao mesmo tempo, dependendo <strong>da</strong>ocasião, mão, pé, dedos, falanges, unhas, calcanhar, dedosdo pé. A animali<strong>da</strong>de, que parece ser seu único código,manifesta-se, sobretudo, nas palavras compostas. Se quiseremfalar de um homem frugal, eles dirão couang-é-mah(ventre vazio); <strong>da</strong> noite, tarou-té-tou (tempo <strong>da</strong> fome), poistão glutões quanto despreocupados, são incapazes de guar<strong>da</strong>rqualquer provisão, e são obrigados, durante a noite, aesperar, com impaciência, a volta do dia para satisfazeremàs exigências de um estômago insaciado. Na maioria dospovos, ao menos nas nações ocidentais, a noção do corretoprecedeu a do incorreto, como indica a composição destaúltima palavra em diversas línguas, in-juste, un-gerecht,in-iguus, a-dikos etc. Nos botocudos acontece sempre ocontrário: o estado normal é o ladrão, nyinkêck. Um homemhonesto será, conseqüentemente, uma não-ladrão(nyinkêck-amnoup). O mesmo acontece com a mentira(iapaouin), sendo o hábito, a regra, a ver<strong>da</strong>de tornar-se-áiapaouin-amnoup (uma não-mentira). (ibidem, p.563-4)


230 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 As representações de Adolphe D’Assier <strong>da</strong> gente e <strong>da</strong> terra... 231Ao descrever o indígena, não poderia deixar de lado amulher, pois, assim como mencionaram autores que o antecederam,ela é responsável por grande parte do trabalhode sua tribo, ficando aos homens a caça, a pesca e a confecçãode armamentos.Compreende-se, sem dificul<strong>da</strong>de, que após uma escravidãotão degra<strong>da</strong>nte e penosa, a índia, desconhecendo aquiloque desenvolve as quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mulher, tenha permanecidoo que era quando saiu <strong>da</strong> forma <strong>da</strong> natureza; deforma<strong>da</strong>pelo trabalho, desfigura<strong>da</strong> pelos maus tratos, pertencenteà vi<strong>da</strong> somente pelo lado, ela inspira repugnância àqueleque a vê pela primeira vez. Observa seus olhos, surpreenderáso olhar oblíquo e temeroso do animal selvagem, ena<strong>da</strong> desse mágico raio revelador <strong>da</strong> inteligência. O sentimentode sua inferiori<strong>da</strong>de a faz fugir e se esconder do estrangeiro.Na velhice, sua pele sulca<strong>da</strong> por todos os ladospelas rugas, curti<strong>da</strong> pelo sol, enegreci<strong>da</strong>, marca<strong>da</strong> pela i<strong>da</strong>de,os golpes, o sol, o cansaço, lhe dão o aspecto de umavelha cabeça de orangotango, hedion<strong>da</strong> e careteira sob umalonga peruca negra. (ibidem, p.564-5)O negro, por sua vez, seria, em alguns aspectos, maisdesenvolvido que o índio, não fosse pela escravidão. Otrabalho monótono, rotineiro nas grandes plantações decafé e de cana-de-açúcar lhe atrofia o cérebro, e lhe inculcavícios morais.Os negros <strong>da</strong> costa <strong>da</strong> Minas reproduzem, salvo pela cor, otipo caucasiano: fronte eleva<strong>da</strong>, nariz reto, boca regular,rosto oval, formas atléticas, tudo neles revela uma naturezaforte e inteligente; somente o olho e o lábio traem asensuali<strong>da</strong>de que a constituição anatômica parece impor atodo o grupo etíope. Os indivíduos dessa raça que gozam<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de dão, a ca<strong>da</strong> dia, provas inequívocas de suaaptidão superior. [...] Infelizmente, ao lado dessas raçasprivilegia<strong>da</strong>s, encontram-se certas tribos deser<strong>da</strong><strong>da</strong>s, queparecem se aproximar tanto <strong>da</strong> besta quanto do homem, econduzem, por níveis insensíveis, ao homem macaco <strong>da</strong>Oceania. Por outro lado, a escravidão, apoderando-se donegro desde sua infância para fazer dele uma máquina deaçúcar ou de café, atrofia não somente sua inteligência,mas também todos os nobres instintos <strong>da</strong> natureza humana,deixando espaço unicamente aos maus hábitos. É aíque se encontra grande parte do segredo <strong>da</strong> inferiori<strong>da</strong>de<strong>da</strong>queles que se dizem “filhos de Cam”. (ibidem, p.571-2)Aquele que deseja conhecer todos os elementos formadores<strong>da</strong> população brasileira deve, no entanto, observaros homens de cor, que parecem ter retirado <strong>da</strong> miscigenaçãotodo o vigor que reclama, para se desenvolver, anatureza tropical. Desse cruzamento vário, o autor enumeratrês raças: o mameluco, o mulato e o caboclo. Dentreelas, a primeira é a que apresenta a fisionomia maisestranha, resultado <strong>da</strong> junção do branco conquistador coma índia. Sua principal característica é a habili<strong>da</strong>de na montaria.O mulato, por sua vez, filho do europeu com a negraafricana, é, em geral, livre, sendo requerido, no entanto, ato<strong>da</strong>s aquelas funções que são considera<strong>da</strong>s muito severaspara o índio indolente, muito sofistica<strong>da</strong>s para a inteligênciaatrofia<strong>da</strong> do negro escravo e muito servil para a digni<strong>da</strong>dedo branco. O caboclo, último grupo <strong>da</strong>s pessoas decor, é o resultado <strong>da</strong> mistura de duas raças, igualmenteperdedoras e degre<strong>da</strong><strong>da</strong>s, o negro e o índio. Em geral, éutilizado no trabalho doméstico e também como simplesempregado. Nesse sentido, vê-se que não é possível colonizaro Brasil sem a introdução do sangue europeu, portador<strong>da</strong> força de trabalho, de bons costumes e <strong>da</strong> civilização.O índio, como já vimos, se refugia ca<strong>da</strong> vez mais nas florestasseculares, devido à raiva que sente pela civilização quelhe trouxe somente coisas ruins. O negro sucumbe ao castigo,existência esmaga<strong>da</strong> sob as engrenagens desta implacávelmáquina que se chama produção. O caboclo, produtohíbrido <strong>da</strong>s tribos selvagens, herdou, <strong>da</strong>s duas raças, somentea indolência e a inaptidão ao trabalho ativo e fecundo.Sobram, então, o mameluco e o mulato, que her<strong>da</strong>ramdo sangue português alguns genes <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de febril quetransformou seus ancestrais em celebri<strong>da</strong>des nos anais <strong>da</strong>navegação. Infelizmente, eles estão longe de serem sufi-


232 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 As representações de Adolphe D’Assier <strong>da</strong> gente e <strong>da</strong> terra... 233cientes à obra. O dogma do far niente, importado pelos seuspais, alia-se muito bem ao clima doce, a riqueza do solo, esua natureza indolente e sensual acomo<strong>da</strong>-se muito bem aele, transformando-o em sua única lei. Por outro lado, deque lhes serviria o trabalho sem ter a quem vender, semestra<strong>da</strong>s, sem indústrias? Os mais corajosos, a saber, osmoradores <strong>da</strong> região do rio <strong>da</strong> Prata, conhecem unicamenteos cavalos e o gado. Um rancho e alguns pastos lhes sãosuficientes. Seus irmãos do Pará, debilitados pela quenteatmosfera que os envolve, não se distinguem muito do indígena.Passam o tempo dormindo ou se banhando no rio.Não é senão pela introdução ininterrupta de sangue europeu,pela reabilitação do trabalho operando-se nas idéias ecostumes, enfim, pela ação estimulante que as estra<strong>da</strong>s deferro exercem por to<strong>da</strong> parte onde passam, que a civilizaçãocontinuará suas conquistas e tomará posse desses imensosespaços ain<strong>da</strong> abandonados às forças <strong>da</strong> natureza. Somentenessas novas condições, o homem de cor poderádesempenhar um papel útil e facilitar o progresso <strong>da</strong> colonização.(ibidem, p.579)Passar, portanto, do rancho para a fazen<strong>da</strong> é adentrardiretamente no seio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> créole, após ter atravessado asmisérias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> selvagem. No entanto, aquele que desejaconhecer a fundo os costumes brasileiros não deve se deixaramedrontar pelos caminhos tortuosos a serem percorridosaté se chegar a uma fazen<strong>da</strong>.Mas o que é uma fazen<strong>da</strong>?É uma ampla extensão de terreno planta<strong>da</strong> com cana-deaçúcarou pés de café, e cujo centro é ocupado por umgrande retângulo de edificações brancas. O lado reservadoao dono, o senhor, possui uma arquitetura regular e umaesca<strong>da</strong>ria externa. O vigamento que sustenta o teto estende-sealguns pés para além <strong>da</strong> parede, formando, do ladonorte, uma varan<strong>da</strong> que permite ao fazendeiro ver, ao abrigodo sol e <strong>da</strong> chuva, tudo o que acontece nesse vasto recinto.É aí que se vem respirar o perfume matinal ou asbrisas mornas do fim <strong>da</strong> tarde. Dois ou três negrinhos brincandocom um macaco domesticado e algumas fêmeas depapagaio falantes com penas azuis animam esse peristilocom seus pulos e gritos. Em face, se estende uma série degrandes salas destina<strong>da</strong>s a armazenar a colheita. Em umdos cantos se encontram os cilindros que moem a cana ouos pilões que descascam os grãos. To<strong>da</strong>s essas máquinassão aciona<strong>da</strong>s por uma grande ro<strong>da</strong> de madeira que umaque<strong>da</strong> d’água faz girar. Os dois outros lados do quadrilátero,construídos em argila, contêm as cabanas dos negros edos feitores. O imenso pátio que ocupa o centro serve deterreiro para secar o café, o milheto, o algodão etc. Entraseaí por duas portas de madeira que separam a habitaçãodo dono <strong>da</strong>s dos escravos. Os entrepostos e o pavilhão dosenhor são os únicos a possuírem soalhos, erguidos a algunspés acima do solo, como precaução às inun<strong>da</strong>ções dosolstício. To<strong>da</strong>s essas construções são térreas: a alta temperaturado país explica facilmente a aversão dos créoles pelosan<strong>da</strong>res superiores.Atrás <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> e a alguma distância, encontra-se, conformea disposição dos lugares, o rancho, o jardim, a enfermaria,e os diversos currais destinados aos bois, cabras eporcos. [...] depois, aqui e lá, no meio dos bosques, pastosou à beira dos caminhos, se vêem, encosta<strong>da</strong>s em uma árvore,as cabanas dos agregados [...]Ao redor <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> se estendem um espaço de várias léguasquadra<strong>da</strong>s, os pés de café, os pastos, os campos decana ou de algodão, e, enfim, na periferia, amplas áreasain<strong>da</strong> não explora<strong>da</strong>s de floresta virgem... (D’Assier,1863(II), p.753-5)Percebe-se que a fazen<strong>da</strong> se constitui como um pequenofeudo. A agricultura aí desenvolvi<strong>da</strong> depende exclusivamente<strong>da</strong> coivara. Coloca-se fogo na área que sepretende plantar, dessa forma eliminam-se as árvores e ascinzas formam um adubo de grande fertili<strong>da</strong>de: “É, porassim dizer, a quinta-essência do terreno preparado pelalenta elaboração dos séculos e devolvi<strong>da</strong> ao reservatóriocomum” (D’Assier, 1863(II), p.756).Dos produtos que se colhem nas plantações, e tambémna natureza, os brasileiros fazem sua alimentação. Osestrangeiros sempre comentam, com repugnância, as re-


234 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 As representações de Adolphe D’Assier <strong>da</strong> gente e <strong>da</strong> terra... 235feições dos brasileiros, sem varie<strong>da</strong>de, mingua<strong>da</strong> e insalubre,pois são feitas pelas mãos sujas dos negros.Para <strong>completa</strong>r a descrição <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>, D’Assier versasobre algumas figuras originais, tais como: o padre, o médico,o mascate, o muladeiro e o caçador de formigas.O padre é o capelão <strong>da</strong> região. Vestido como homemdo povo, ele <strong>da</strong>nça, fuma, joga (um dos grandes vícios entreos homens no Brasil) e conversa como qualquer outrapessoa. Muitas vezes, por falta de dinheiro, o padre dedica-sea pequenos negócios. Esse desvio do clero já forainúmeras vezes apontado por outros publicistas <strong>da</strong> Revuedes Deux Mondes, como Ferdinand Denis, Saint-Hilaire eÉmile Adêt.O médico-doutor, mais importante aos olhos do fazendeiroque o padre, apesar de sua grande devoção, encarrega-sede cui<strong>da</strong>r do negro doente. O mascate, por suavez, aprovisiona o senhor com mercadorias de luxo, a preçosexorbitantes. Aproveitador, ele usufrui <strong>da</strong> boníssimahospitali<strong>da</strong>de dos brasileiros para se enriquecer. A hospitali<strong>da</strong>de,portanto, constitui um marco para o estrangeiroque vem conhecer o território brasileiro:A partir do momento em que um desconhecido chega emfrente <strong>da</strong> habitação, um negro lhe indica o rancho para suamontaria e o conduz, em segui<strong>da</strong>, ao setor <strong>da</strong> casa ondeestão localizados os quartos dos viajantes. Na hora do jantar,ele vem se sentar à mesa com o senhor, participa <strong>da</strong>conversa, caso esta lhe desperte o interesse, e se retira quandolhe convém. No dia seguinte, parte imediatamente apóso café <strong>da</strong> manhã, para chegar à fazen<strong>da</strong> vizinha antes doanoitecer. Caso se sinta cansado, pode permanecer aí váriosdias. Ninguém se preocupará sequer em lhe perguntar onome. É a hospitali<strong>da</strong>de antiga em to<strong>da</strong> a sua simplici<strong>da</strong>dee grandeza. Várias fazen<strong>da</strong>s são renoma<strong>da</strong>s pela magnificênciade seu acolhimento... (ibidem, p.778)Para além do interesse do autor no caçador de formigasestá sua curiosi<strong>da</strong>de no formigueiro, retrato espetacular<strong>da</strong>quilo que deveria ser a socie<strong>da</strong>de brasileira:A formiga dos trópicos não se parece com os tímidos insetosde nossas regiões frias, que fogem do homem, contentando-secom um tronco de árvore ou uma pedra para aí construíremseus ninhos, e privando, no máximo, de algunsgrãos as galinhas <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>. É um povo [grifo nosso] au<strong>da</strong>cioso,confiante em sua força, sua inteligência, e quesabe cavar túneis inacessíveis. Antes <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> do branco,a formiga era a ver<strong>da</strong>deira rainha <strong>da</strong> floresta. Os seresselvagens que representavam, então, a humani<strong>da</strong>de nessaregião, possuíam antes um vago instinto de agrupamentoque um ver<strong>da</strong>deiro espírito de associação. A idéia de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>dee de trabalho, por exemplo, lhes era <strong>completa</strong>mentealheia. Um prisioneiro era, para eles, somente umavítima condena<strong>da</strong> a servir de festim. A formiga soube cedoelevar-se a noções superiores. Ain<strong>da</strong> hoje, ela continuasendo, no Brasil, uma <strong>da</strong>s expressões mais perfeitas dessasleis estranhas que introduzem no mundo <strong>da</strong> natureza, soba forma do instinto, certos princípios do mundo moral. Ahabitação <strong>da</strong> formiga brasileira é uma ci<strong>da</strong>dela fecha<strong>da</strong> detodos os lados, se comunicando com o exterior somentepor saí<strong>da</strong>s secretas. Se existirem alguns pulgões pela vizinhança,ela os caça, transporta-os para perto de sua casa,e forma, dessa maneira, uma espécie de criação cativa. Umadistribuição regular de folhas frescas basta para tornar ocativeiro suportável, e, a partir desse momento, não é necessáriose preocupar com nenhuma tentativa de fuga.Certas espécies de formigas, propensas ao far niente, se lançama razias sobre raças mais fracas, apoderando-se de seusovos. As larvas que nascem tornam-se escravas. Esses hilotasde mandíbulas aceitam sua sorte e fazem o serviço doformigueiro aristocrático. É uma ver<strong>da</strong>deira fazen<strong>da</strong> subterrânea,fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> igualmente sobre a servidão, massem chicote e sem feitor. (ibidem, p.781)Adolphe d’Assier considera o formiga como povo, organizado,forte e inteligente, construtor de fortalezas e nãode meras choupanas, trabalhador, que pensa no dia deamanhã, mas sabe explorar o trabalho alheio quando lheconvém. Enfim, a ver<strong>da</strong>deira formiga de La Fontaine. Obrasileiro deveria observá-la e dela viria o exemplo de organizaçãode sua socie<strong>da</strong>de.


236 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 As representações de Adolphe D’Assier <strong>da</strong> gente e <strong>da</strong> terra... 237O que acontecerá, porém, com as fazen<strong>da</strong>s se o Brasiladentrar a via do progresso? D’Assier aponta para duassaí<strong>da</strong>s: a primeira seria a substituição do trabalho do escravoafricano pelo do índio assalariado; dessa maneira, asgrandes plantações manteriam suas características, comexceção do negro; a segun<strong>da</strong>, os fazendeiros abandonariamsuas terras em favor dos colonos em troca de uma ren<strong>da</strong>anual, o que acabaria por dividir a grande plantação empequenas proprie<strong>da</strong>des. De acordo com o autor, esta últimaé a que traria maiores benefícios aos brasileiros.A ci<strong>da</strong>de, diferentemente do rancho e <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>, nãomostra ao viajante a socie<strong>da</strong>de brasileira em seu passado,nessa espécie de luta entre civilização e selvageria, do qualo interior do império é o principal cenário. Nela, os contrastesse multiplicam, mas é a ativi<strong>da</strong>de européia que épossível perceber, ora se sobrepondo ora se pospondo àsinfluências locais. O mundo que se abre ao leitor do terceiroartigo de Adolphe d’Assier, “La ci<strong>da</strong>de”, não lhe étotalmente desconhecido, pois o desenvolvimento <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>destrouxe consigo novas necessi<strong>da</strong>des, novos costumes,aproximando-se, dessa maneira, do antigo continente.As ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s quais fala o publicista são: Pernambuco,a qual lhe chama a atenção principalmente pela falta dehigiene; a Bahia, a mais portuguesa de to<strong>da</strong>s; e o Rio deJaneiro, para<strong>da</strong> obrigatória.Primeira para<strong>da</strong>, Pernambuco:Assim que desembarcas, te lanças pela ci<strong>da</strong>de com a ansie<strong>da</strong>defebril de um homem que não quer perder na<strong>da</strong> do espetáculoem que sonhou durante muito tempo. Aqui começamas decepções: o quadro de eterno verde que admiravasantes de chegar à ci<strong>da</strong>de desaparece de repente para <strong>da</strong>rlugar a um sol de fogo. Ruas repletas de negros e eflúviosamoniacais tomam conta dos olhos e do olfato. Lembras,então, que estás pisando sobre uma terra onde o trabalholivre é proscrito como desonroso... (D’Assier, 1863(III), p.66)Chegado à ci<strong>da</strong>de, portanto, o viajante, ansioso porver as paisagens paradisíacas tão comumente descritas peloseuropeus, desaponta-se, pois o calor e o mau cheiro sãosufocantes. Sem contar o desfile dos negros escravos. Maiscurioso, talvez, é um outro “negro”, mão-de-obra tão essencialquanto a primeira e infinitamente mais barata, queaju<strong>da</strong> a manter a ci<strong>da</strong>de um pouco menos insalubre:O negro não é o único a excitar teu espanto: se passeiaspelo porto, logo encontrarás outra personagem que nãodeixa de ter alguma analogia de maneiras e de cor com ohilota africano, e que não chamará menos sua atenção: é ourubu. O país venera, nesse pássaro, o instrumento visívelde Santo Antônio, patrono <strong>da</strong> higiene pública, e muitoschegam a colocar o tenente acima do chefe. Nessa terra deDeus, como a denominam os brasileiros, o homem, querodizer o branco, não tem na<strong>da</strong> por fazer a não ser cruzar osbraços, pois tudo lhe cai do céu. Qual seria a utili<strong>da</strong>de dese criar corporações de cantoneiros e coveiros? O urubu jáfaz todo o serviço e sem nenhum custo. Mas o que é o urubu?É um bípede de asas pertencente à família dos abutres,coragyps urubu, maior que um corvo, um pouco depenado,negro, fedorento, verminoso. Suas funções municipais otornam tão sagrado aos brasileiros quanto o íbis ou o icnêumonefora, outrora, aos egípcios. O que acontece em Pernambucoou no Rio de Janeiro explica perfeitamente aquiloque acontecia em Tebas e em Mênfis. Todo animal quedestruía os gafanhotos ou os ovos de crocodilo, as duaspestes do Egito, tornava-se estimado, acariciado, atenciosamentecui<strong>da</strong>do: era um salvador, um deus. Fortuna semelhanterecebeu o urubu.To<strong>da</strong> vez que atravessamos uma rua ou um caminho noBrasil, logo somos sufocados por emanações pestilentas.Logo vemos um negro esquadrão alado, voando em tornode uma mula em putrefação. São os agentes <strong>da</strong> salubri<strong>da</strong>depública em ação. [...] Sem gritos e brigas, tudo acontece namais perfeita ordem, como convém a uma tropa disciplina<strong>da</strong>;uma vez devora<strong>da</strong> a carniça, para limpar a atmosferados vermes e <strong>da</strong> putrefação que os envolve, o sol e algumasbati<strong>da</strong>s de asas são o bastante, e eles saem para fazer a sestaou continuar sua refeição em outro local, caso a primeiranão lhes tenha parecido suficiente. (ibidem, p.67)


238 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 As representações de Adolphe D’Assier <strong>da</strong> gente e <strong>da</strong> terra... 239Sem se apegar muito à Bahia, nossa próxima para<strong>da</strong>passa a ser o Rio de Janeiro:Eu havia escutado muitos elogios sobre a beleza imponente<strong>da</strong> ensea<strong>da</strong> do Rio de Janeiro; mas, habituado por umalonga experiência a encontrar, em geral, a reali<strong>da</strong>de emperfeito contraste com os pomposos relatos dos viajantes,eu contava pouco com o maravilhoso espetáculo que meprometiam de to<strong>da</strong>s as partes. Eu entrava, enfim, nessaensea<strong>da</strong> em uma dessas manhãs cintilantes dos trópicos, e,talvez pela primeira vez, eu me deparava com um quadroacima <strong>da</strong> descrição, tamanha é a impossibili<strong>da</strong>de de que osexageros humanos lutem contra os exageros <strong>da</strong> natureza.Imaginem uma imensa bacia cerca<strong>da</strong> por montanhasgraníticas cobertas pela mais rica vegetação que seja possívelao homem sonhar, e ter-se-á uma leve idéia <strong>da</strong> ensea<strong>da</strong>do Rio de Janeiro. É necessário dizer, no entanto, que existeuma outra ensea<strong>da</strong> mais bonita, maior e mais majestosa,a de São Francisco. (ibidem, p.81)Um recurso bastante utilizado pelo autor é a comparaçãocom os Estados Unidos <strong>da</strong> América. No trecho citado,há menção à baía de São Francisco como ain<strong>da</strong> maisbela que a do Rio de Janeiro. Em outras passagens, no entanto,D’Assier, para vislumbrar uma saí<strong>da</strong> aos problemasdo Império e animar os brasileiros, ressalta, com freqüência,que os ianques já passaram por situação análoga, superando-acom grande destreza.Um dos instrumentos utilizados pelos europeus paramedir o estágio de civilização de uma determina<strong>da</strong> regiãoé verificar o seu desenvolvimento arquitetônico e monumental.Por várias vezes, mas sem grande ênfase, os publicistas<strong>da</strong> Revue des Deux Mondes, por exemplo, o Comtede Suzannet, criticavam o mau gosto <strong>da</strong>s mora<strong>da</strong>s e dosedifícios públicos brasileiros, destacando, no entanto, aconstrução do Aqueduto <strong>da</strong> carioca e do Jardim Botânico.Voltemos a D’Assier:A ci<strong>da</strong>de [Rio de Janeiro] não oferece alguns desses aspectosque podem fazer que o viajante se esqueça do novo paísem que se encontra e lembrá-lo <strong>da</strong>s riquezas monumentaisde algumas ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Europa? Vemos, é ver<strong>da</strong>de, poucosmonumentos nas ci<strong>da</strong>des brasileiras. [...] No entanto, notamos,no Rio, um aqueduto que poderia figurar ao lado<strong>da</strong>queles que os romanos nos legaram, e um hospital quenão estaria deslocado em Londres ou em Paris. Outros doisestabelecimentos também merecem nossa atenção: o Museude História Natural e o Jardim Botânico. Muitas capitais<strong>da</strong> Europa gostariam de ter um museu como esse e, noentanto, ele está longe de responder às riquezas do país e àcuriosi<strong>da</strong>de dos estrangeiros... (ibidem, p.84-5)Ao tratar <strong>da</strong> sede <strong>da</strong> corte, Adolphe d’Assier não podiadeixar de falar sobre as quali<strong>da</strong>des do imperador DomPedro II:É um homem alto e muito bonito. Alemão por parte demãe, uma arquiduquesa <strong>da</strong> Áustria, ele não tem na<strong>da</strong> emsua fisionomia que lembre sua origem portuguesa: feições,ombros largos, modo de an<strong>da</strong>r, tudo anunciava uma naturezagermânica. A fronte larga e alta acusa uma grandeinteligência; o olhar límpido, uma alma sincera e honesta.Seus gostos são de um sábio: uma biblioteca latina, que eleenriquece, todos os dias, com as melhores obras francesas,inglesas e alemãs, é sua principal e melhor distração. Asciências lhe são tão familiares quanto as letras. Todos osestrangeiros que o freqüentam são unânimes em reconhecersuas notáveis aptidões e sua real superiori<strong>da</strong>de intelectual.É necessário salientar que, na Europa, não são, emgeral, os príncipes que se colocam à frente do progresso.No Novo Mundo, se estoura uma revolução, é por queaquele que governa quer an<strong>da</strong>r muito rápido, e o país serecusa a segui-lo. (ibidem, p.85-6)Uma vez percorridos as ci<strong>da</strong>des, os ranchos e as fazen<strong>da</strong>s,D’Assier questiona-se sobre os resultados <strong>da</strong> colonizaçãoportuguesa e se vê impossibilitado de elogiar a penínsulaaustral do Novo Mundo quando compara<strong>da</strong> àAmérica do Norte. A lembrança dos caminhos percorridosa lombo de burro, as intempéries, os milhares de insetoslhe são penosos, ain<strong>da</strong> mais se pensar nas railways que


240 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 As representações de Adolphe D’Assier <strong>da</strong> gente e <strong>da</strong> terra... 241ziguezagueiam os Estados Unidos. De um lado, a ativi<strong>da</strong>dehumana no seu mais alto limite, de outro, a preguiçamais absoluta. Qual seria a causa dessa diferença? De acordocom o autor, o fato se deve, exatamente, à colonizaçãoportuguesa, pois o gênio desse povo constitui-se <strong>da</strong> misturado fatalismo árabe com a aridez ibérica, própria à epopéia,mas avessa à ciência e ao trabalho.Mas, segundo D’Assier, há esperanças para o Brasil. Pormais lenta que seja a ação dos séculos sobre as revoluçõeshumanas, já se pode pressentir as transformações que o temporealizará nesse país. Somente duas coisas lhe faltam: oimpulso <strong>da</strong> ciência e uma nova infusão de sangue europeu.Concluído, portanto, esse primeiro percurso, Adolphed’Assier volta, de certa forma, no tempo, e procura trazerao leitor imagens <strong>da</strong> mata virgem, publicando, em 1864,“Le mato virgem. Scènes et souvenirs d’un voyage auBrésil”. Não que as paisagens tropicais estivessem ausentesem seus artigos anteriores, mas agora ela é a temáticaprincipal. Sua preocupação é em esclarecer a função desempenha<strong>da</strong>pela floresta no desenvolvimento do Brasil.A natureza selvagem <strong>da</strong>s florestas virgens se apagará, umdia, face ao trabalho ininterrupto <strong>da</strong> civilização, ou estáela eternamente destina<strong>da</strong> a sufocar sob seus bárbaros abraçostodos os esforços <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de humana? Esse solo, quepisava impunemente o índio, reserva a vi<strong>da</strong> ou a morte àsfortes raças que gostariam de fecundá-lo? Sem respondertodos os pontos dessas complexas questões, que competeunicamente à experiência resolver, algumas lembranças <strong>da</strong>sincursões pelo mato virgem poderão, ao menos, <strong>da</strong>r umanova explicação a alguns aspectos do assunto. A melhormaneira de fazer compreender a importância do problemaassim colocado, é mostrar a floresta virgem tal qual a estudeisob seus diversos aspectos, isto é, nas influências querecebe do céu, e transmite, por sua vez, aos inumeráveisseres vivos que nascem e morrem em seu seio. (D’Assier,1864a, p.548-9)A floresta tropical é responsável, juntamente com onegro escravo, pela indolência do brasileiro, pois ela lhefornece de tudo e, zelosa de sua riqueza, dificulta todo esforçohumano destinado a domá-la. Quem sairá vencedordesse duelo, o homem ou a força cega e brutal <strong>da</strong> natureza?To<strong>da</strong>s as necessi<strong>da</strong>des imediatas do homem, até mesmovários produtos manufaturados, parecem brotar espontaneamentedo solo: pão, leite, manteiga, frutas, perfumes,venenos, cor<strong>da</strong>s, até louças, tudo se encontra desordenadona floresta virgem. Talvez seja nessa riqueza que se deveprocurar o segredo <strong>da</strong> inferiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s tribos do deserto. Énecessário se entregar ao trabalho incessante <strong>da</strong> civilização,uma vez que a natureza se mostra tão amável e tãopródiga? Perguntes antes ao índio. Deseja ele uma moradia:alguns instantes lhe bastam para construir uma cabanaao pé de um ipiriba; as folhas lhe servem como leito, osgalhos como guar<strong>da</strong>-sol; ele encontra nos frutos um excelentealimento, e na casca um remédio contra a febre. Amadeira, tão dura quanto o ferro, lhe fornece um cacetepara os combates ou instrumentos de agricultura. Se, cansado<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> sedentária, decide correr os rios e se dedicar àpesca, basta pôr a baixo sua mora<strong>da</strong> e cavá-la com fogo:sua cabana se transforma em um canoa. Com a base dobambu, constrói apetrechos de cozinha e uma mobília <strong>completa</strong>[...] as folhas teci<strong>da</strong>s dão roupas para sua mulher, amadeira serve para suas flechas [...]. A mesma árvore torna-se,de acordo com a necessi<strong>da</strong>de, arsenal, vestimenta,restaurante e farmácia. (ibidem, p.559)A corri<strong>da</strong> ao Eldorado foi outra <strong>da</strong>s atrações proporciona<strong>da</strong>spela natureza. Em busca de riquezas minerais, osexploradores vorazes arruinaram regiões inteiras, mas, poroutro lado, se não fossem por eles, talvez essas paragenscontinuassem desconheci<strong>da</strong>s.[...] é, de início, o caos de uma socie<strong>da</strong>de bárbara agitando-seno meio <strong>da</strong>s convulsões <strong>da</strong> febre, tendo um únicoobjetivo, a fortuna, um único código, a lei do mais forte.As terras tumultua<strong>da</strong>s, tornando to<strong>da</strong> agricultura impossível,os negros e os índios morrendo aos milhares, os própriosconquistadores abandonando os combates de extermíniopara disputarem algumas pepitas de ouro, tais são os pri-


242 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 As representações de Adolphe D’Assier <strong>da</strong> gente e <strong>da</strong> terra... 243meiros anais <strong>da</strong> época aurífera. No entanto, as ci<strong>da</strong>des seformam, a ordem começa a aparecer; com a calma e a abastançavirá o progresso. Desde então, podemos apreciar osresultados, e não vemos mais que um episódio comum <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> dos povos que transformou em motores úteis essas forçasmaléficas ou perdi<strong>da</strong>s. [...] O Eldorado e a Serra-<strong>da</strong>s-Esmeral<strong>da</strong>s foram, se assim podemos dizer, duas válvulas deescape ofereci<strong>da</strong>s pelo Novo Mundo à superabundância dovelho. Os sol<strong>da</strong>dos tornam-se trabalhadores. Os própriosmamelucos, de natureza ain<strong>da</strong> selvagem e turbulenta, abandonaram,por um momento, a caça ao homem e a vi<strong>da</strong>errante para formar estabelecimentos fixos. Ci<strong>da</strong>des tomaramo lugar <strong>da</strong>s cabanas indígenas, a floresta recuou face àcivilização. Com o trabalho veio a abastança, e com a abastançaa ordem; a ordem e o bem-estar chamaram a instrução.De todos esses elementos aos quais se somaram os cruzamentosde raças, devia sair esta vigorosa e inteligentepopulação que os viajantes observam ao entrarem na provínciade Minas, e que contrasta fortemente com os habitantesdo sertão de Goiás. Hoje, é ain<strong>da</strong> em Vila Rica, emCuiabá, e, sobretudo, em Tijuco, capital do distritodiamantífero, que encontramos na socie<strong>da</strong>de essa naturali<strong>da</strong>denas maneiras que forma como que a primeira marcade to<strong>da</strong> boa educação... (D’Assier, 1864b, p.357)De acordo com a história dos norte-americanos, a civilizaçãodeveria ganhar o duelo, mas D’Assier duvi<strong>da</strong> queessa vitória seja <strong>completa</strong> no continente austral. A penínsulado Norte tem duas grandes vantagens em detrimento<strong>da</strong> do Sul: a vizinhança <strong>da</strong>s fortes raças setentrionais e oretorno periódico do inverno rigoroso, que excita o corpoao trabalho, sem contar a sua maior proximi<strong>da</strong>de aos portos.Ao longo dos textos de Adolphe d’Assier trabalhadosneste artigo encontramos e enumeramos uma profusão deimagens do Brasil que não desviam de todo <strong>da</strong>s representaçõescomumente elaboras e difundi<strong>da</strong>s sobre nosso paísdurante o século XIX, ou seja, a exuberância <strong>da</strong> fauna e<strong>da</strong> flora, com sua vegetação edênica, suas riquezas minerais,o alto grau de miscigenação, o índio e a escravidão.Elas adquirem, no entanto, um sentido especial quandonos recor<strong>da</strong>mos do suporte impresso no qual foram divulga<strong>da</strong>s:a Revue des Deux Mondes.Até os anos de 1870, a Revue teve que lutar para mantersua liber<strong>da</strong>de como instituição e, por esse motivo, opôsse,muitas vezes, ao poder; mas, ao mesmo tempo, estavaimersa na paisagem ideológica dominante. É essa adesão aum bloco ideológico conservador e não à ligação a partidospolíticos particulares que lhe possibilitou certa liber<strong>da</strong>deinstitucional. Também, nesse período, o espaço públicoperiódico e o político continuavam bastante restritos;no entanto, a extensão <strong>da</strong> Revue, como instituição, ultrapassavaos contornos habituais de uma simples <strong>revista</strong> <strong>da</strong>época. A construção do grande espaço público, isto é, doespaço democrático, surge nos anos de 1880, como obra<strong>da</strong> República, e mu<strong>da</strong>rá consideravelmente o ambiente <strong>da</strong>Revue, especialmente pelo crescimento <strong>da</strong>s publicaçõesperiódicas e por causa <strong>da</strong> proliferação <strong>da</strong>s <strong>revista</strong>s parisiensesou provinciais, entre os anos de 1880 e 1890. Tal modificaçãodo espaço público veio acompanha<strong>da</strong> de certaalteração <strong>da</strong> cultura dominante e de uma mu<strong>da</strong>nça do climaideológico global.A geração republicana que assumia progressivamenteas responsabili<strong>da</strong>des nacionais havia sido forma<strong>da</strong> em ummeio intelectual sensivelmente diverso <strong>da</strong>quele produzidopela Revue des Deux Mondes, de modo que uma defasagemcomplexa se estabeleceu entre esta última e a República(Loué, 1998, p.398-9).Nesse sentido, criou-se um elo entre o Brasil e a Revuedes Deux Mondes que possibilita uma melhor compreensão<strong>da</strong>s imagens por ela elabora<strong>da</strong>s: o fato de ser a única monarquiaem território sul-americano. O Brasil possuía à suafrente um imperador, Dom Pedro II, que era freqüentementeassociado à idéia de justiça, ordem, paz e equilíbrio,conceitos preciosos aos partidários de uma ideologia conservadora.As imagens difundi<strong>da</strong>s pelo periódico foram degrande importância, naquele momento, para nosso país.Dessa maneira, se, num primeiro momento, as imagensdo Brasil permanecem inaltera<strong>da</strong>s, em segui<strong>da</strong>, ao consi-


244 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 245derarmos o meio impresso pelo qual foram divulga<strong>da</strong>s, elasganham maior sentido, pois lhe são acrescidos os valores eprincípios que norteavam a Revue des Deux Mondes.ReferênciasJogos de memória e identi<strong>da</strong>de emO último suspiro do Mouro, de Salman RushdieTelma Borges*CAMARGO, Katia A. F. de. A Revue des Deux Mondes: intermediáriaentre dois mundos. São Paulo, 2005. Tese (Doutorado) – Facul<strong>da</strong>dede Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universi<strong>da</strong>de deSão Paulo.. A <strong>revista</strong> como fonte de pesquisa. Educação: Teoria e Prática,Rio Claro, v.13, n.24-5, p.79-96, 2006.D’ASSIER, Adolphe. Le Brésil et la société brésilienne: moeurs etpaysage. I. Le rancho. Revue des Deux Mondes, Paris, 1º jun. 1863 (I).. Le Brésil et la société brésilienne: moeurs et paysage. II. Lafazen<strong>da</strong>. Revue des Deux Mondes, Paris, 15 jun. 1863 (II).. Le Brésil et la société brésilienne: moeurs et paysage. III. Laci<strong>da</strong>de. Revue des Deux Mondes, Paris, 1º jul. 1863 (III).. Le mato virgem. Scènes et souvenirs d’un voyage au Brésil.Revue des Deux Mondes, Paris, 1º fev. 1864a.. L’Eldorado Brésilien et la Serra-<strong>da</strong>s-Esmeral<strong>da</strong>s. Revue desDeux Mondes, Paris, 15 jul. 1864b.LOUE, Thomas. La Revue des Deux Mondes de Buloz à Brunetière.De la belle époque de la Revue à la Revue de la Belle Époque. Lille:Atelier National de Reproduction des Thèses. 1998.* Universi<strong>da</strong>de Estadualde Montes Claros(UNIMONTES)RESUMO: Memória e identi<strong>da</strong>de são conceitos polissêmicos. Suasignificação depende <strong>da</strong> forma como são manipulados. Este artigofocaliza o processo de estruturação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de em O últimosuspiro do Mouro, de Salman Rushdie, como um jogo que tempor referência a memória em suas mais diferentes acepções.PALAVRAS-CHAVE: Memória, identi<strong>da</strong>de, arquivo, pós-modernismo.ABSTRACT: Memory and identity are multiple concepts. Theirmeanings depend on the way they are manipulated. This articlefocuses on the identity structuring process in Salman Rushdie’snovel “The Moor´s last sigh”, seen as a game that has memoryfor reference in its most diverse meanings.KEYWORDS: Memory, identity, archive, post-modernism.Memória e identi<strong>da</strong>deA memória, tal como aparece na narrativa do memoriosoSimônides (Colombo, 1991), é a capaci<strong>da</strong>de de atribuiras lembranças a lugares, para identificá-las com exatidão.Nesse sentido, lembranças e lugares configuram-secomo vestígios de vi<strong>da</strong>s memoriza<strong>da</strong>s, supostamente intactas.A condição de vestígio e ruína impossibilita a concepçãode uma memória intacta, mas reafirma a capaci<strong>da</strong>dede transformar seus fragmentos em relatos que tornaminteligíveis os despojos do passado (Benjamin, 1987, p.222-32). A memória, inerente aos arquivos pessoais ou coletivosde uma comuni<strong>da</strong>de, num determinado tempo e espaço,é o lugar a partir de onde se fala. Organiza<strong>da</strong> em formade arquivo, pode ser submeti<strong>da</strong> ao poder do arquivista. O


246 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro,... 247arconte é, segundo Derri<strong>da</strong> (1997, p.10), não somente oguardião do arquivo, mas também aquele que tem o poderde compilar e interpretar seus <strong>da</strong>dos. Como arquivo, esses<strong>da</strong>dos constituem-se em um acervo organizado, que ganhariaresidência permanente no momento de seu registro.No entanto, torna-se paradoxalmente suscetível a inúmerasinserções, manipulações e indexações de <strong>da</strong>dos quepermitem àquele que acessa o arquivo, além do contatocom esses <strong>da</strong>dos, a possibili<strong>da</strong>de de migrar de um acervo aoutros, além de fazer migrar os sentidos ali armazenados.Se, por um lado, a memória tem uma constituição lacunar,porque elabora<strong>da</strong> a partir de fragmentos que sãoreorganizados numa dimensão que lhe dá uma supostauni<strong>da</strong>de, “como um álbum de fotografias” (Rushdie, 1996,p.20); por outro, pode-se caracterizá-la como um territóriono qual a voz <strong>da</strong> experiência individual está atrela<strong>da</strong> auma experiência coletiva. É por essa rede filigrana<strong>da</strong> que,muitas vezes, chega-se a uma suposta experiência de identi<strong>da</strong>de.Assim, quando o narrador-personagem de O últimosuspiro do Mouro anuncia a existência de versões nãooficiais<strong>da</strong> história de sua família que, de tão importantespara se compreender sua história particular – a auto-imagemdos pais –, servem, também, para se ler a história indiana<strong>da</strong>quele contexto narrado, insinua o enlace do individualao coletivo. A memória, por essa via, assume adimensão de uma rede cuja disposição dos fragmentos determinade que perspectiva se conta uma história ou sevislumbra uma apresentação identitária:Por ora apresento a len<strong>da</strong> oficial <strong>da</strong> família, com todos osfloreios habituais, a qual, por constituir uma parcela tãorelevante <strong>da</strong> auto-imagem de meus pais – e <strong>da</strong> história <strong>da</strong>arte indiana contemporânea –, tem, ain<strong>da</strong> que apenas poresses motivos, um poder e uma importância que eu seriaincapaz de negar. (Rushdie, 1996, p.87)A identi<strong>da</strong>de, entendi<strong>da</strong> como uma representação estruturaldo “eu” na sua relação com os outros, constrói-sea partir de experiências corporais e estruturais. Essas experiências,no caso <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des coletivas, tendem aser transferi<strong>da</strong>s para a imagem <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des. Desse modo,a imagem de Aurora, mãe do narrador, simbolicamenteconfunde-se com a <strong>da</strong> Índia: “a pátria enquanto mãe, amãe enquanto pátria” (ibidem, p.147). A elaboração <strong>da</strong>identi<strong>da</strong>de se traduz, aqui, como um processo de construçãode imagens que, permanentes ou não, resultam deexperiências diversas entre sujeitos que se relacionam,interagem de modo a criarem estruturas que, coletiviza<strong>da</strong>s,transformam-se em paradigma a ser seguido por uma socie<strong>da</strong>de.Entretanto, pode ocorrer de esse corpo supra-individualter sua estabili<strong>da</strong>de perturba<strong>da</strong>, em virtude <strong>da</strong>smovimentações históricas e geográficas <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.Esse estremecimento <strong>da</strong> suposta solidez do que poderiaser convencionalmente chamado de “identi<strong>da</strong>de de umasocie<strong>da</strong>de” tem um percurso histórico e, no contexto doromance de Rushdie, é alegoricamente representado pelaspersonagens femininas, especialmente Uma Sarasvati, comquem o narrador tenta se desenre<strong>da</strong>r do poder <strong>da</strong> mãe.O projeto pragmático-identitário ocidental, resultantedo Iluminismo, produziu uma hierarquia que gerou resistênciaspor parte <strong>da</strong>queles que, reduzidos à condição deinstrumentos, em favor de determina<strong>da</strong>s proposições ideológicas,não viam contempla<strong>da</strong>s suas necessi<strong>da</strong>des. O séculoXX foi palco de diversos embates entre colonizadorese colonizados, muitos deles resultantes dessa configuraçãoniti<strong>da</strong>mente ocidental. Se, de um lado, por exemplo, aEuropa tenta promover uma “supra-identi<strong>da</strong>de federal”;por outro, nações periféricas e aquelas recém-libertas dojugo imperial reivindicam autonomia. O embate entrevontades tão distintas favorecerá o que José Gabriel PereiraBastos (s. d., p.11-35) denominou “viragem subjetivista”.Ou seja, as políticas basea<strong>da</strong>s na luta de classe deramlugar às lutas basea<strong>da</strong>s na política <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de, na celebração<strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de e do multiculturalismo.De acordo com Lin<strong>da</strong> Hutcheon (1991, p.15), “a formaçãodo sujeito desafia o pressuposto humanista de umeu unificado e uma consciência integradora, por meio do


248 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro,... 249estabelecimento e, ao mesmo tempo, <strong>da</strong> subversão <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>decoerente”. O pós-modernismo contesta essa ideologiahumanista liberal dominante, suas noções de originali<strong>da</strong>dee autori<strong>da</strong>de, estabeleci<strong>da</strong>s por meio de suas estruturashierárquicas. Tais hierarquias negam a subjetivi<strong>da</strong>de multifaceta<strong>da</strong><strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de, nasci<strong>da</strong> desse embate entreas diversas minorias e o humanismo unificado.Essa mu<strong>da</strong>nça no paradigma sócio-histórico mantémforte relação não só com o processo migratório de grupossociais originários de ex-colônias, mas também com deslocamentosdos europeus para as colônias. To<strong>da</strong> e qualqueralteração, seja ela no Oriente ou no Ocidente, alteraconsideravelmente também a geografia do globo, visto quea mobili<strong>da</strong>de dos sujeitos tende a fazer circular igualmentesuas concepções ideológicas. Ao escrever sobre a genealogia<strong>da</strong> família de Moraes Zogoiby, na Índia, SalmanRushdie tensiona componentes <strong>da</strong> história que estabelecemrelações com as culturas ibérica e inglesa, além desuas crenças religiosas, motivadoras de tantos deslocamentospela cartografia planetária.A fragmentação <strong>da</strong>s paisagens culturais de classe, origina<strong>da</strong>pelos deslocamentos de sujeitos e idéias, como afirmaStuart Hall (2002, p.9), “estão também mu<strong>da</strong>ndo nossasidenti<strong>da</strong>des pessoais, abalando a idéia que temos denós próprios (ex-colonizados) como sujeitos integrados”.Essa identi<strong>da</strong>de que costurava o sujeito a uma estruturasocial, política ou econômica é, atualmente, considera<strong>da</strong>um significante movediço, em que forças ideológicas ativasgeram conflitos e mu<strong>da</strong>nças. Boaventura de SousaSantos (1995, p.119), numa abor<strong>da</strong>gem semelhante à deHall, afirma:[...] a questão identitária é semifictícia e seminecessária. [...]mesmo as mais sóli<strong>da</strong>s escondem negociações de sentido;jogos de polissemia, choques de identi<strong>da</strong>de em constanteprocesso de transformação, responsáveis em última instânciapela sucessão de configurações hermenêuticas que deépoca para época dão corpo e vi<strong>da</strong> a tais identi<strong>da</strong>des.O êxito nas negociações é medido pela consciênciade que é uma necessi<strong>da</strong>de fictícia de reinterpretação fun<strong>da</strong>doraque “converte o déficit de sentido <strong>da</strong> pergunta noexcesso de sentido <strong>da</strong> resposta” (ibidem, p.119). Ao ocuparo lugar do teocentrismo, o antropocentrismo tende ase interrogar sobre a autoria do mundo. O homem, assim,não vê senão a si mesmo como primeira resposta. A subjetivi<strong>da</strong>deabstrata de Descartes, ancora<strong>da</strong> no cogito, ergosum, tem uma série de desenvolvimentos paralelos, importantespara a interpenetração <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de e docapitalismo. Portugal e Espanha são protagonistas dessarelação, quando, de modo intolerante, instauram a Inquisiçãocomo forma de varrer <strong>da</strong> Península mouros e judeus,atores importantes na constituição desse território, mascuja subjetivi<strong>da</strong>de não corresponde às subjetivi<strong>da</strong>des hegemônicasem construção: o indivíduo e o Estado.A concepção cartesiana de identi<strong>da</strong>de deu lugar a umaproblemática na qual o sujeito se compõe de várias apresentações.A produção identitária de um determinado grupoimplica a capaci<strong>da</strong>de de nele se reconhecer traços dessaidenti<strong>da</strong>de, mesmo que sejam provisoriamente delineados.Por isso, a ritualização e a reatualização <strong>da</strong> memória constituem-seem estratégias cuja função será transformar osrelatos de acordo com os interesses e tendências que permitemuma negociação de sentidos e imagens que o grupodeverá transmitir. Stuart Hall (2002, p.13) define a identi<strong>da</strong>decomo “uma celebração móvel”, cuja base argumentativaé: “dentro de nós há identi<strong>da</strong>des contraditórias,empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossasidentificações estão sendo continuamente desloca<strong>da</strong>s”.O deslocamento de sujeitos, culturas, crenças e valoresde diversas partes do globo têm colaborado para essamobili<strong>da</strong>de identitária e para se repensar seu processo deconstituição. Portanto, um olhar sobre essas alterações,contemplando a Europa e os Estados Unidos, sugere queessa viragem paradigmática, marca<strong>da</strong> por esse deslocamento,ain<strong>da</strong> que tenha ocorrido no Ocidente, teve sua gênesenas ex-colônias, ou seja, fora dos grandes centros de


250 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro,... 251poder. A heterogenei<strong>da</strong>de cultural, como contraparti<strong>da</strong> aosimpulsos homogeneizantes europeus e norte-americanos,é concebi<strong>da</strong> como um fluxo de identi<strong>da</strong>des contextualiza<strong>da</strong>spor gênero, classe, raça, identi<strong>da</strong>de étnica, preferênciasexual, educação, função social.Desse modo, para pensar o conceito de identi<strong>da</strong>de,atualmente, é preciso considerar ser ele fruto <strong>da</strong> acumulaçãoporosa de experiências que constituem os sujeitos, paraalém <strong>da</strong>s fronteiras geográficas e culturais. Nesse aspecto,a memória tem importância relevante, pois é por meio delaque se buscam, nos arquivos <strong>da</strong> cultura, vivências partilha<strong>da</strong>sem outros tempos e espaços, mas que reverberamconstantemente ao longo do processo de construçãoidentitária de um indivíduo ou de uma comuni<strong>da</strong>de. MariaAntonieta Garcia (2000, p.39) assim define a identi<strong>da</strong>decoletiva: “é um processo ativo de expressão e significaçãode práticas concretas simbólicas pelas quais um grupoatualiza seus relatos a uma socie<strong>da</strong>de global”.Nessa mútua relação entre memória e identi<strong>da</strong>decomo devir, tanto uma quanto outra é tangencia<strong>da</strong> pelaimaginação e pelo sonho. Por essa via, não raro, acreditasenuma reali<strong>da</strong>de imagina<strong>da</strong>. Sob essa óptica, os conceitosde memória e de identi<strong>da</strong>de se aproximam do conceitode nação pensado por Benedict Anderson (1993, p.124),segundo o qual a nação é uma “comuni<strong>da</strong>de imagina<strong>da</strong>”,em que indivíduos partilham algo comum, unidos por relaçõeshorizontais. A proposição de Anderson, no entanto,desconsidera que uma comuni<strong>da</strong>de, além de imagina<strong>da</strong>,é também emociona<strong>da</strong>. Homi Bhabha (1998, p.25)reforça essa crítica ao conceito de Anderson ao dizer:A moe<strong>da</strong> nacional corrente do comparativismo crítico, oudo juízo estético, não é mais a soberania <strong>da</strong> cultura nacionalconcebi<strong>da</strong> [...] como uma “comuni<strong>da</strong>de imagina<strong>da</strong>” comraízes em um “tempo vazio e homogêneo” de moderni<strong>da</strong>dee progresso. As grandes narrativas conectivas do capitalismoe <strong>da</strong> classe dirigem os mecanismos de reprodução social,mas não fornecem, em si próprias, uma estrutura fun<strong>da</strong>mentalpara aqueles modos de identificação cultural e afetopolítico que se formam em torno de questões de necessi<strong>da</strong>de,raça, feminismo, o mundo de refugiados ou migrantesou o destino social fatal <strong>da</strong> AIDS.A expressivi<strong>da</strong>de de uma nação precisa ser repensa<strong>da</strong>a partir não só de sua “virtude física”, mas, fun<strong>da</strong>mentalmente,a partir dos direitos de to<strong>da</strong> a comuni<strong>da</strong>de nacional,e aí estão incluí<strong>da</strong>s as comuni<strong>da</strong>des diaspóricas e suaspercepções afetivas. Dar relevo ao emocional – sem desconsideraroutros elementos igualmente importantes – éexplicitar que a constituição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de, como uma“celebração móvel”, é um modo de subverter os mecanismosmais objetivos de poder e criar ordens que permitamrefazer suas dinâmicas. Ain<strong>da</strong> nessa perspectiva, competeao sujeito escolher quais vestígios de memórias ou traçosde identi<strong>da</strong>de selecionar para a composição dos instrumentosde sua relação com o mundo.Essa possibili<strong>da</strong>de de escolha está liga<strong>da</strong> ao fato deque ser indiano, por exemplo, requer múltiplos contatosdessa cultura com a cultura ocidental, especialmente apartir do comércio de especiarias. Com as Grandes Navegações,a relação <strong>da</strong> Índia com o Ocidente tem seus paradigmasalterados. A descoberta do Outro e <strong>da</strong> diferençaprovocaram reações ain<strong>da</strong> hoje perceptíveis na forma comoo Ocidente se relaciona com o restante do mundo. O últimosuspiro do Mouro encena muitas dessas questões contemporâneasacerca do que constitui a identi<strong>da</strong>de a e memóriaindianas a partir do encontro inaugural dos portuguesescom o Oriente. Enquanto é mantido prisioneiro por VascoMiran<strong>da</strong>, o Mouro – Morais Zogoiby – é obrigado a escrevera história de sua família, reoperar o passado, organizar,por meio de uma seleção, a memória e a genealogia familiares.A narrativa torna-se a dimensão material – o arquivo– que comporta essa memória.Da materiali<strong>da</strong>de do corpo do sujeito para o corpo <strong>da</strong>escrita, o conteúdo <strong>da</strong> memória passa por inúmeros procedimentos.Sai <strong>da</strong> condição de material difuso, inscritona memória do corpo, para alcançar a materiali<strong>da</strong>de do


252 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro,... 253texto que sofreu operações de corte, reescrita, reengendramentode idéias, censuras. Prestes a morrer, o narradorprecisa encontrar um repositório para que sua memóriacontinue a ser manipula<strong>da</strong> por outros. Assim, devolve aosarmazéns precários <strong>da</strong> cultura vestígios <strong>da</strong> história que,atrelados às histórias particulares de seus ancestrais, foramrevitalizados, distorcidos ou reinventados. Nesse gestoreside o desejo de que a memória e a identi<strong>da</strong>de sejamconverti<strong>da</strong>s num texto que permita vislumbrar uma fraturanas manifestações oficiais <strong>da</strong> história. Como uma falsificaçãonecessária, tal narrativa enuncia-se por intermédiode outras vozes que, por ocuparem outros tempos eespaços, podem vir a fazer uma seleção diferencia<strong>da</strong> dosfatos. Talvez essa seja a garantia de que o medo de esqueceré apenas um fantasma que impele à lembrança.Na condição de narrador, o Mouro assume a função,ao mesmo tempo, de arconte, o guardião, e também deum arquivista que manipula ativamente os diversos códigosculturais, além de provocar a transmigração e o embaralhamentode seus sentidos. Da experiência individual –“expulso <strong>da</strong> própria história” – para a experiência coletiva– “caiu dentro <strong>da</strong> História” (Rushdie, 1996, p.14), descobresua identi<strong>da</strong>de rasura<strong>da</strong>: “um mestiço nascido em berçoesplêndido e caído em desgraça” (ibidem, p.13). Aotornar visíveis os fios genealógicos de sua família, pela escrita,dá-se conta de que sua identi<strong>da</strong>de só pode ser compreendi<strong>da</strong>como uma elaboração provisória, já que se vêconstantemente altera<strong>da</strong> por vários componentes: indiano,judeu, cristão e mouro. Ou seja, apesar do sobrenomeZogoiby, que lhe atribui uma paterni<strong>da</strong>de, o Mouro temuma identi<strong>da</strong>de flui<strong>da</strong>, de origem obscura, à qual tentailuminar pela ação <strong>da</strong> narrativa.No plano <strong>da</strong> narração, Rushdie manipula três domínioscaros à metaficção historiográfica (contexto no qualse inclui e a partir do qual sua obra pode ser pensa<strong>da</strong>): aautoconsciência teórica sobre a história, a ficção comocriação humana e a reelaboração <strong>da</strong>s formas constituí<strong>da</strong>sdo passado (Hutcheon, 1991, p.22). Por meio desses procedimentos,Rushdie torna flui<strong>da</strong>s as fronteiras não só dosgêneros literários, mas também <strong>da</strong> história. Por meio desselivre trânsito entre os diferentes discursos, tanto o narradorquanto o autor são desafiados por um relato que lhes exigea dupla autoconsciência atuando nos planos do local edo global; do singular e do plural; do minúsculo e do maiúsculo.Tanto narrador quanto autor precisam trabalhar contrao impulso homogeneizante <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de de consumodo capitalismo recente e li<strong>da</strong>r com culturas em vez de li<strong>da</strong>rcom a Cultura, em sua dimensão imperialista.À medi<strong>da</strong> que faz um recuo no tempo, em busca <strong>da</strong>origem, o narrador a percebe ain<strong>da</strong> mais longínqua, incapazde ser localiza<strong>da</strong>, apreendi<strong>da</strong> e compreendi<strong>da</strong> por umrelato, por isso a imagina e a forja a partir de um grão depimenta, artigo “sonhado” em Cochim e instituído comomonopólio régio português a partir de 1505. Para evitar osmuçulmanos como intermediários, os lusitanos apostamnuma política de relação direta com os produtores, sobretudoos cristãos de São Tomé. Tem-se aí um jogo de identi<strong>da</strong>dereligiosa que favorece a incursão portuguesa no comérciode especiarias, principalmente a pimenta (Tavim,2001, p.167), o cobiçado ouro negro indiano. Aqui, históriae ficção se cruzam para <strong>da</strong>r origem à apimenta<strong>da</strong>genealogia materna do Mouro:E tudo começou com um grão de pimenta! [...] pimenta, ocobiçado Ouro Negro de Malabar, foi o artigo original deminha famigera<strong>da</strong> família, os mais prósperos comerciantesde especiarias e castanhas e folhas de Cochim, uma famíliaque, sem embasar-se em na<strong>da</strong> mais do que séculos de tradição,arrogava-se a honra de descender, ain<strong>da</strong> que embastardia, de ninguém menos que o grande Vasco <strong>da</strong> Gama[...] (Rushdie, 1996, p.14)O recuo no tempo, em busca <strong>da</strong> origem, faz coincidiro tempo <strong>da</strong> história com o <strong>da</strong> História. A pimenta quecorre, metaforicamente, nas veias <strong>da</strong> personagem é o condimentoque estabelece as relações comerciais com o Ocidente,elemento que cria um parentesco com Vasco <strong>da</strong>


254 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro,... 255Gama, por uma simples questão de tradição. Ao embaralharfontes históricas, literárias e a própria imaginação,o narrador problematiza não só a questão identitária, mastambém a memória, e traz para o centro <strong>da</strong> cena o fato deque esses conceitos, quando engendrados em uma tradição,assumem uma veraci<strong>da</strong>de que distancia de si qualquersemelhança com o mítico ou lendário.Para Terry Eagleton (1998, p.51-71), a História com“H” maiúsculo está, para o pós-modernismo, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> numaconcepção teleológica, enquanto a história com “h” minúsculofun<strong>da</strong>menta-se numa mutabili<strong>da</strong>de constante,além de romper com os princípios <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de de uma narrativaúnica. Numa perspectiva contrária à do crítico inglês,Rushdie evidencia a relevância de se considerar aHistória em sua proposição modernista, que é apreendi<strong>da</strong>,essencialmente, como uma narrativa de acontecimentos(cf. Burke, 1992, p.12), mas a contrapõe às histórias depequenos grupos, comuni<strong>da</strong>des, até mesmo às individuais.Em sua proposição moderna e teleológica, a História éentendi<strong>da</strong> como uma “grande narrativa, ou uma ‘históriavista de cima’”. Nas colônias, por exemplo, é a históriaintroduzi<strong>da</strong> pelo poder colonial, como ocorreu na Índia.Sua historiografia oficial era, por ocasião <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>Socie<strong>da</strong>de Asiática de Bengali – em 1784 –, profun<strong>da</strong>menteanglocêntrica. Muitos consideram essa fun<strong>da</strong>ção o pontode parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> história dos indianos.Jawarlalal Nehru, ain<strong>da</strong> que educado à inglesa, certavez observou a respeito dos britânicos: “para eles, a ver<strong>da</strong>deirahistória começa com a chega<strong>da</strong> dos ingleses na Índia;tudo o que houve antes é, em uma espécie de trajetóriamística, uma preparação para sua divina consumação” (cf.Wesseling, 1992, p.105-6). A história <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> dos portuguesese holandeses passa, assim, a se configurar comouma espécie de ensaio para a ver<strong>da</strong>deira história, a serconstruí<strong>da</strong> e oficialmente conta<strong>da</strong> pelos ingleses. Porém,em meados do século XIX, houve uma reação à abor<strong>da</strong>gemcondescendente dos historiadores coloniais, quandoos historiadores indianos passaram a desenvolver a suaprópria historiografia, que foi fortaleci<strong>da</strong> pela ascensão domovimento nacionalista do final do século XIX. Entre asdéca<strong>da</strong>s de 1920 e 1930, já havia um número considerávelde historiadores indianos profissionais, o que influenciousobremaneira o movimento pela independência dopaís, ocorri<strong>da</strong> em 1947 (cf. Wesseling, 1992, p.97-131).Para Homi Bhabha (1998, p.23), contudo, “se o interessedo pós-modernismo limitar-se a uma celebração<strong>da</strong> fragmentação <strong>da</strong>s ‘grandes narrativas’ do racionalismopós-iluminista, então, apesar de to<strong>da</strong> a sua efervescênciaintelectual, ele permanecerá um empreendimento profun<strong>da</strong>menteprovinciano”. Para se desvencilhar desse provincianismo,Bhabha considera que se deve transformar“o presente em um lugar expandido e ex-cêntrico de experiênciae aquisição de poder”. Esse lugar <strong>da</strong>ria espaçoà “experiência-dos-limites”, como considera<strong>da</strong> por JuliaKristeva, através <strong>da</strong> qual os ideais etnocêntricos teriamsuas fronteiras fragiliza<strong>da</strong>s pela “história dissonante” (ibidem,p.24) <strong>da</strong>s minorias. Assim, pode-se dizer que, alémde ser considera<strong>da</strong> como um contínuo acontecer processadona diferença, a narração de Rushdie não se oferececomo pressuposto de uma aparência absoluta, forja<strong>da</strong> nosideais de uma universali<strong>da</strong>de pauta<strong>da</strong> pelo liberalismode Estado.O pós-modernismo, no cenário de seu romance, nãodesconsidera os efeitos do passado sobre o tempo e a vi<strong>da</strong>presentes somente por acreditar que todos os contextossão permeáveis e imprecisos. A concepção pós-modernade história relaciona-se aos pressupostos <strong>da</strong> “nova história”,cuja preocupação concentra-se na análise <strong>da</strong>s estruturastradicionais (Burke, 1992, p.9) que constituem o relatohistoriográfico. Os múltiplos movimentos expressospelo narrador de O último suspiro do Mouro são a evidênciacontingente de que ser pós-moderno não significa negarpassado e futuro, mas revitalizá-los num momento emque o mundo reordena suas fronteiras culturais, políticase econômicas, ou até mesmo as torna menos precisas. Porisso, os relatos de família são deslocados <strong>da</strong> dimensão ofi-


256 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro,... 257cial <strong>da</strong> voz <strong>da</strong> história para aquela <strong>da</strong> heteroglossia, emque vozes varia<strong>da</strong>s e opostas enfraquecem a onisciênciados discursos oficiais que constituem a História.Parece que Rushdie estabelece um movimento ambivalentee agencia posições teóricas mais preocupa<strong>da</strong>s comos sujeitos – mesmo os anônimos – que fazem parte <strong>da</strong>sengrenagens <strong>da</strong> história. Nesse sentido, parece haver umacorrelação mais próxima à <strong>da</strong> “nova história”. Ao cair naHistória, o narrador não apenas pode recontá-la o maisfielmente possível, mas também inventá-la e reinventá-laa partir de um lugar que não seja o oficial de uma minoriadominante. Cair na História é um meio de <strong>da</strong>r visibili<strong>da</strong>dejamais pensa<strong>da</strong> aos fatos e evidenciar que a História à qualse atribui o caráter oficial configura tão-somente comouma versão instituí<strong>da</strong> por aqueles que tiveram poder parafazê-lo. A ficção pós-moderna problematiza a História“como um modelo <strong>da</strong> visão realista <strong>da</strong> representação”, e ofaz com o objetivo de questionar “tanto a relação entre ahistória e a reali<strong>da</strong>de, quanto a relação entre a reali<strong>da</strong>de ea linguagem” (Hutcheon, 1991, p.34).Ain<strong>da</strong> que se esteja em um território – a literatura –que afirma saber <strong>da</strong>s coisas e não as coisas, como diriaRoland Barthes (1992), seria ingênuo acreditar numa Históriatal como compreendi<strong>da</strong> pela moderni<strong>da</strong>de, em queos fatos rumam em direção a um objetivo predeterminado.Seria, então, como as môna<strong>da</strong>s benjaminianas, em queas minorias reavivariam “a mão morta <strong>da</strong> história que contaas contas do tempo seqüencial como um rosário (Bhabha,1998, p.23), para fazê-la revelar as descontinui<strong>da</strong>des edesigual<strong>da</strong>des <strong>da</strong> história e estabelecer o presente comoum tempo do agora. É também uma forma de dizer que aúnica maneira de acessar o passado está condiciona<strong>da</strong> pelatextuali<strong>da</strong>de. Cair na História sugere a possibili<strong>da</strong>de desuplementá-la a partir de outros documentos, evidênciasou testemunhas até então silencia<strong>da</strong>s, como o manuscritoescrito em espanhol pela judia, amante de Boabdil – ascendentemouro do narrador –, e os cadernos de receitasdo cozinheiro Ezequiel – empregado <strong>da</strong> família de Morais.A geografia planetária não pode mais ser encara<strong>da</strong>numa óptica nacionalista. A constituição de diásporasculturais – em todos os pontos do planeta – tem colaboradopara que o mundo seja percebido como uma rede naqual identi<strong>da</strong>des e memórias, individuais e coletivas, estãonum contínuo reverberar. O que há de novo nessaquestão é o fato de que ela se constitui num tópico dediscussão permanentemente aberto. O Mouro, ao cair naHistória, abre espaço para que as minorias não só se manifestem,mas também para que sobre elas sejam elaboradosdiscursos, narrativas. Desse modo, identi<strong>da</strong>de e memóriasão, na sua tradição familiar, uma constante que é relativiza<strong>da</strong>desde o início do relato. A pimenta, como metáforadessa narrativa, aponta tanto para a História dos comerciantesportugueses quanto para a história dos indianossubmetidos a esse processo. Essa tradição, aparentementeintoca<strong>da</strong>, sujeita-se a ser delibera<strong>da</strong>mente retoca<strong>da</strong>: “Ah,os lendários embates dos <strong>da</strong> Gama de Cochim! Eu osreconto aqui tal como me chegaram, floreados e engalanadospor muitos rerrelatos” (Rushdie, 1996, p.19). Comessa passagem, Rushdie e o narrador explicitam o poderde subversão do texto pós-moderno, no que respeita à ideologia<strong>da</strong> originali<strong>da</strong>de, pois seu interesse está centradomais em reescrever do que em escrever. O Mouro, contudo,afirma que reconta os fatos como lhe chegaram. O autor,por sua vez, não se apega ao compromisso de ser o relatorfiel <strong>da</strong> história, mas em reescrevê-la, valendo-se do imaginário,de fatos e de versões não oficiais, mas latentes e quefuncionam como um suplemento ao discurso oficial.A consciência de que sua escrita não é de primeiramão permite a Rushdie desconstruir as supostas fronteirasque delimitavam essa identi<strong>da</strong>de multifaceta<strong>da</strong> e em constantedevir. Não há mais uma ficção do indivíduo criador.Em seu lugar, surge uma ficção marca<strong>da</strong> pelo confisco, pelacriação, seleção, acumulação e repetição de imagens jáexistentes. Desse modo, as noções de originali<strong>da</strong>de, autentici<strong>da</strong>dee presença são enfraqueci<strong>da</strong>s. As inúmerasversões que foram projeta<strong>da</strong>s sobre os relatos de família


258 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro,... 259são dinamiza<strong>da</strong>s porque, no momento agônico <strong>da</strong> escrita,são coloca<strong>da</strong>s em contato umas com as outras. Esse contatovertiginoso faz <strong>da</strong> memória e <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de duas <strong>da</strong>smuitas metáforas <strong>da</strong> obra e assumem um caráter arquivísticoe enciclopédico, porque nunca cessam de se constituire de se estabelecer dialógica e criticamente comoprodução cultural de diversos tempos e lugares. Ao desconstruiros princípios estruturantes <strong>da</strong> tradição familiar –engendrando ficção e história – e, ao mesmo tempo, mantendoseu aspecto fabulatório, Rushdie cria uma concepçãode memória contrária àquela clássica, de Simônides,de atribuir as lembranças a seus devidos lugares. A memóriapassa a ser reivindica<strong>da</strong> como a capaci<strong>da</strong>de de desentranhare emaranhar lembranças, próprias e alheias, sematribuir-lhes um lugar de origem que lhes seja autêntico.Memória do textoSe a memória é a capaci<strong>da</strong>de para conservar vivênciaspara além do agora, o esquecimento tem importância qualitativanesse processo, uma vez que permite omitir certospormenores e acrescentar outros. No contexto <strong>da</strong> narrativade Rushdie, ele assume dimensão expressiva para efeitode conceituação. O esquecimento é condição estratégicapara a aprendizagem, uma espécie de malícia inconsciente.O narrador esquece para possibilitar novo armazenamentoinformativo. Sendo assim, a memória, conceitualmente,sustenta-se na dupla rubrica lembrar/esquecer.De Eurípides a Shakespeare; de Homero a Camões;de Hans Andersen a Lewis Carrol; de Cervantes a Baudelairee Nietzsche; <strong>da</strong> Bíblia ao Alcorão; de Michelangelo aPicasso; de Le chien an<strong>da</strong>luz ao King Kong ou ao O incrívelHulk ou ao cinema indiano; dos quadrinhos norte-americanosaos desenhos animados de Walt Disney, Warner Brosse às fábulas orientais, a narrativa de Rushdie se nutre deum repertório enciclopédico que a insere num contextono qual o lúdico e a ironia se fundem e criam um universoque pode ser chamado de pós-moderno. Ao agenciar essaslinhas de força tanto <strong>da</strong> cultura ocidental quanto <strong>da</strong> oriental,em vez de ampliar os arquivos dessa tradição, aoreuni-los, o narrador os dispersa e estabelece uma multiplici<strong>da</strong>dediscursiva, somente possível porque o ato de esquecerfaz do exercício <strong>da</strong> memória uma ação perceptiva efragmenta<strong>da</strong>. Os vazios e as conexões que <strong>da</strong>í resultamsão elaborados como experiências estético-culturais detodos os tempos e lugares.Esse princípio de multiplici<strong>da</strong>de sobre o qual está constituí<strong>da</strong>a narrativa do Mouro liga-o a uma infini<strong>da</strong>de defibras nervosas de inúmeras tradições, as quais, quandomanipula<strong>da</strong>s, mu<strong>da</strong>m de natureza e lhe permitem trançare empreender novos percursos. O enciclopedismo e a práticade arquivar são resultados desse esquecimento e desseagenciamento estratégico. Porque falha, o narrador geralacunas por meio <strong>da</strong>s quais insere, à exaustão, outras narrativas,fatos históricos, valores morais e estéticos de outrasculturas, o que reverte numa multiplici<strong>da</strong>de incessante,como celebra<strong>da</strong> por Calvino. As seqüências narrativassão interrompi<strong>da</strong>s por uma rede infinitamente densa deintertextos e interligações. Essas digressões, a um só tempo,encenam e teorizam os paradoxos <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de e<strong>da</strong> separação, tão comuns no pós-modernismo. O textoassume, a partir de então, uma conformação híbri<strong>da</strong>, comodefendi<strong>da</strong> por Ernest Laclau (1996) que, no contexto <strong>da</strong>sdiscussões sobre identi<strong>da</strong>de, afirma que a hibridização podesignificar “o fortalecimento <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des existentes pelaabertura de novas possibili<strong>da</strong>des”. O conceito de multiplici<strong>da</strong>dede Calvino parece, assim, associar-se ao de hibridizaçãode Laclau.Já para Homi Bhabha (1998, p.22), a ficção de Rushdiepossui elementos para exemplificar o seu conceito de híbrido.Para o crítico, Os versos satânicos, principalmente,lembram que “o olho mais fiel pode agora ser aquele <strong>da</strong>visão dupla do migrante”. Esse olhar produtor de estranhezae familiari<strong>da</strong>de “acolhe a diferença sem uma hierarquiasuposta ou imposta” (ibidem, p.22). Desfocado, promoveembaralhamento e trânsito entre fronteiras culturais


260 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro,... 261e cartográficas. Nasce <strong>da</strong>í a necessi<strong>da</strong>de de se redesenhare de se redefinir traços identitários a partir de uma construçãohibridiza<strong>da</strong> porque, aberta a outros contatos, a narrativaganha em força argumentativa e estética, além de nãoencerrar em si mesma os sentidos que lhe são pressupostos.A narrativa do Mouro, porque espelha a de Rushdie,também se estrutura a partir desse saber enciclopédico:provisório, reticular. Como diria Umberto Eco (1989,p.338), as regras de significação <strong>da</strong> sua narração estãoorienta<strong>da</strong>s para contextos e circunstâncias que excluem,definitivamente, a possibili<strong>da</strong>de de hierarquizar os saberesali manipulados. Se a enciclopédia representa idealmentetodo o conhecimento do mundo, a genealogia do Mouro,elabora<strong>da</strong> nessa perspectiva, tende a ser entendi<strong>da</strong> comouma antigenealogia. As rupturas provoca<strong>da</strong>s pela recomposiçãodessa linhagem, em decorrência <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> desujeitos marcados pela bastardia, provocam desvios nopercurso linear, para <strong>da</strong>r origem a um percurso desmontável,reversível, que segue inusita<strong>da</strong>s direções. Dessemodo, a idéia de uma genealogia “forte” é quebra<strong>da</strong>, poishá sempre possibili<strong>da</strong>de de ramificações que seguem percursosimprevistos. Diferentemente de Rushdie, o Mourotenta estruturar sua narrativa nos moldes bem delineados<strong>da</strong> narrativa moderna. Contudo, <strong>da</strong><strong>da</strong> a natureza de suaprópria configuração identitária, precisa, estrategicamente,esquecer. Só o esquecimento gera lacunas, e é por meiodelas que elabora a substância de suas memórias.Esse esquecimento estratégico permite ao narradoracrescentar pormenores extraídos de experiências textuaisalheias. Ao atribuir à personagem Isabela Souza o nomede Ximena, e ao marido dessa o de Camões <strong>da</strong> Gama,Rushdie, além de avizinhar-se do discurso histórico, manipuladuas grandes produções épicas <strong>da</strong> Península Ibérica:El Cid e Os lusía<strong>da</strong>s. O efeito buscado não é só o <strong>da</strong>relação intertextual ou o do pertencimento a uma tradição.Opera-se com o retorno ficcional ao passado ibérico,a partir <strong>da</strong> desconstrução <strong>da</strong>s fronteiras entre Espanha ePortugal e <strong>da</strong> desconstrução <strong>da</strong> hierarquia do cânone. Há,ain<strong>da</strong>, uma verve quixotesca que atravessa as ações devárias personagens masculinas que são, quase sempre, acometi<strong>da</strong>spor um mal-estar no mundo. Deslocam-se, pois,<strong>da</strong> mera condição de ascendentes do Mouro para a condiçãode possuidoras de identi<strong>da</strong>des móveis, elabora<strong>da</strong>s apartir de supostas ver<strong>da</strong>des e memórias ficcionais.Num ensaio que aproxima Os lusía<strong>da</strong>s de D. Quixotede la Mancha, Ramiro de Maeztu [19--] assinala que “semOs lusía<strong>da</strong>s não se pode entender o livro de Cervantes.Como poderia desencantar-se todo esse mundo que rodeiaD. Quixote de la Mancha, sem se conhecer antes oencantamento do ideal?”. Ao apontar para o épico portuguêscomo o precursor do texto fun<strong>da</strong>dor do romance ocidental,a partir <strong>da</strong> noção de encantamento/desencantamento,o ensaio sugere a possibili<strong>da</strong>de de dispersão dessebinarismo na narrativa contemporânea.O casal Camões <strong>da</strong> Gama e Isabela Ximena Souzaexplicita essa dispersão delibera<strong>da</strong> do encanto/desencanto,porque prefigura uma invenção literária que deslocalugares e sentidos, culminando no complexo conceito dediáspora. Ao inventar uma biografia que se remete a umaesfera discursiva consagra<strong>da</strong>, o Mouro parece reivindicaro esquecimento e uma espécie de memória que se estruturapor meio do imaginário, como princípio para elaborarsua narrativa. Desse modo, as estratégias discursivas deRushdie e do Mouro seguem percursos diferentes. Enquantoo primeiro recorre ao saber enciclopédico disperso pelasmais varia<strong>da</strong>s áreas do conhecimento e elabora um textoaberto, o segundo tenta elaborar uma narrativa rigorosa.Contudo, é exatamente esse rigor que frustra sua intenção,pois todo texto rigoroso contém elementos de enciclopédia,o que o torna irrealizável. Sendo assim, acabapor se espelhar na estrutura textual do autor empírico e sevaler <strong>da</strong> memória imagina<strong>da</strong> como recurso.A memória imagina<strong>da</strong> poderia caracterizar-se, dessaforma, por imagens nunca vistas antes de serem lembra<strong>da</strong>s;são busca<strong>da</strong>s nos armazéns <strong>da</strong> cultura, dispostas sob a forma<strong>da</strong>s mais diversas tradições. Esse recurso permite ao narrador


262 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro,... 263contemporâneo amalgamar experiências alheias para traçarsua antigenealogia familiar e textual. Sua narrativa passa,então, a se estruturar a partir de falhas que ele inventa, criae explicita. Laços culturais, no contexto dessa narrativa,configuram-se como identi<strong>da</strong>des problematiza<strong>da</strong>s, para alémdos consangüíneos ali ficcionalizados. Isso quer dizer que a“consangüini<strong>da</strong>de” espera<strong>da</strong> entre os épicos clássicos e oromance de Rushdie é, por essa estratégia, impossibilita<strong>da</strong>.Por meio dessa memória imagina<strong>da</strong>, as personagens sedesdobram, no romance, a partir de sua inscrição na tradiçãohistórica ou literária. Suas configurações são espacializa<strong>da</strong>se projeta<strong>da</strong>s numa atemporali<strong>da</strong>de reticular que,em vez de criarem uma continui<strong>da</strong>de, promovem a apresentaçãode identi<strong>da</strong>des virtuais. Essa linha genealógicaparti<strong>da</strong> possui, no entanto, pontos de contato. Acessar essespontos ou esses inúmeros nós <strong>da</strong> rede <strong>da</strong> tradição desencadeiauma série de associações que permitem reinventaro saber enciclopédico disponível como memória, como traçoidentitário. O nó reticular liga-se, pois, ao princípio <strong>da</strong> aboliçãodos centros, de que fala Pierre Lévy (1995, p.26):A rede não tem centro, ou melhor, possui permanentementediversos centros que são como pontas luminosas perpetuamentemóveis, saltando de um nó a outro, trazendo ao redorde si uma ramificação infinita de pequenas raízes, de rizomas,finas linhas brancas esboçando por um instante ummapa qualquer com detalhes delicados, e depois correndopara desenhar mais à frente outras paisagens do sentido.Desse modo, percebe-se a configuração de uma memóriatextual que é resultado de múltiplos agenciamentosde textos e saberes. Essa memória teria, assim, a estrutura<strong>da</strong>s redes, ou, como quer o narrador, do mosquiteiro deEpifânia – sua bisavó materna.Texto de memóriaPara Wander Melo Miran<strong>da</strong> (1992), as memórias têmum caráter luminoso de resgate criador de uma experiênciacompartilha<strong>da</strong> em meio às trevas. Em Rushdie, essecaráter luminoso e essa experiência compartilha<strong>da</strong> podemser entrevistos por meio <strong>da</strong> rede <strong>da</strong> tradição. Essa experiênciade compartilhar – textos, identi<strong>da</strong>de, memórias – seriaum modo de garantir a suposta e simula<strong>da</strong> veraci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>tradição que se deseja relatar. Para Ricardo Piglia (1990,p.60), ain<strong>da</strong> que a tradição encerre um saber a ser memorizado,a memória imagina<strong>da</strong> possui a estrutura de um sonho.Iluminar memórias obscureci<strong>da</strong>s ou reinventar identi<strong>da</strong>desperdi<strong>da</strong>s no tempo, como no romance, remete paraalém do duplo risco de encobrir/desvelar ver<strong>da</strong>des e projetapara os furos simbólicos do mosquiteiro, interstíciosproduzidos na ilusão <strong>da</strong> profundi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> rede.O mosquiteiro de Epifânia que “adquirira ao longodos anos um certo número de furos pequenos porém significativosque ela era míope ou pão-duro demais para perceber”(Rushdie, 1996, p.15) pode ser visto como umametáfora dessa narrativa que, a ponto de ruir, ostenta, dissimula<strong>da</strong>mente,uma aura <strong>da</strong> tradição. A miopia ou a avarezade Epifânia a impedem de ver que um tecido, pornatureza poroso, acrescido de furos, não protege contrainvasões indeseja<strong>da</strong>s. A demonstrar que a totali<strong>da</strong>de nãoexiste, pode-se dizer que os mosquitos figurativizam pessoasou culturas que investem contra a tradição, tessituraesburaca<strong>da</strong> que, por vezes, além dos furos que lhe são inerentes,vê-se acometi<strong>da</strong> por outros, não imprevistos. Mesmosendo um tecido poroso, os detentores de uma tradiçãonão abrem mão espontaneamente <strong>da</strong>quilo que lhesconfere poder. Entretanto, como em qualquer tecido, aação do tempo é perceptível. E uma tradição puí<strong>da</strong> pelotempo só se mantém por meio de novas linhas de forçaque possam lhe <strong>da</strong>r sustentação e garantir continui<strong>da</strong>dena diferença.Os princípios defendidos por Epifânia persistem, ain<strong>da</strong>que como vestígios. E é como vestígios que eles serãopreservados por gerações e reacenderão algumas fagulhas,como ocorre quando Filomela, uma <strong>da</strong>s filhas de Aurora,deseja fazer-se freira. No gesto <strong>da</strong> bisneta, um dos aspec-


264 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro,... 265tos <strong>da</strong> tradição defendidos pela bisavó – católica fervorosa– torna-se recorrente, mas sua repetição se <strong>da</strong>rá comoreinvenção.Na escrita de Rushdie, observa-se, portanto, no mínimodois níveis de construção textual. Num primeiro plano,destacam-se os conflitos e incoerências de personagens esituações modernas, ancora<strong>da</strong>s em valores preestabelecidose monolíticos, que necessitam, geração após geração, dequem os suplante. Essa relação conflituosa com a tradiçãose manifesta, por sua vez, na opção <strong>da</strong><strong>da</strong> ao narrador deescolher quais vestígios her<strong>da</strong>r, que tradições manipular.A possibili<strong>da</strong>de de se considerar um fato sob várias perspectivas(oral, escrita, pinta<strong>da</strong>, película ou como memóriaafetiva) permite ao autor acrescentar ou suprimir detalhes,de acordo com a peculiari<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um. Como omosquiteiro de Epifânia, esse conjunto de histórias é atravessadopor pequenos furos por onde a tradição é remodela<strong>da</strong>e amalgama<strong>da</strong> a outras, às quais passa a pertencer.Assim, a noção de sentido pleno se esvai. São esses vazamentosque dão significação à narrativa. As experiênciaspartilha<strong>da</strong>s, à medi<strong>da</strong> que são encadea<strong>da</strong>s no corpo <strong>da</strong> escrita,são desenre<strong>da</strong><strong>da</strong>s do arquivo <strong>da</strong> tradição.O sentido de pertencimento a uma cultura identitáriaé tangenciado por uma multiplici<strong>da</strong>de de códigos outros,cujo resultado é uma significação aberta e provisória. Nãohá mais o lugar do sentido fixo. A conexão significativa sóé possível a partir de contatos múltiplos que, em vez de sefecharem, gravitam em franco processo de expansão, esboçandoo segundo plano referido anteriormente, o <strong>da</strong>construção <strong>da</strong> enunciação do romance, que aponta paraum projeto literário do escritor, proposta que se consoli<strong>da</strong>,por meio de uma tensão permanente entre as tradições,em forma de rede, em contraste com a estrutura vertical<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de.Para Ana Maria Barrenechea (2003, p.9), “a memóriaé constantemente invadi<strong>da</strong> pelo sonho e pela imaginaçãoe, posto que existe a tentação de acreditar na reali<strong>da</strong>dedo imaginário, acabamos por transformar a nossamentira numa ver<strong>da</strong>de”. Numa perspectiva similar à donarrador de Dom Casmurro, de Machado de Assis – a quemRushdie (1994, p.351) elege como um de seus precursores– o narrador de O último suspiro do Mouro não pode sercontestado na sua versão – cheia de “furos” – dos acontecimentosque narra, a não ser, talvez, por Vasco Miran<strong>da</strong>que, como ele, conhece os fatos, mas somente de ouvirdizer, nunca por tê-los presenciado. Apesar disso, Vascodepara, indiretamente, com essa memória, a partir dosquadros de Aurora, além dos que ele mesmo pinta. Asversões do narrador, alia<strong>da</strong>s às versões pictóricas de segun<strong>da</strong>e de terceira mãos, de Aurora e de Vasco, constituem,assim, a rede que dá origem às múltiplas versõespinta<strong>da</strong>s/narra<strong>da</strong>s <strong>da</strong> história de Boabdil el Zogoiby, o últimomouro de Grana<strong>da</strong>, de quem o narrador é descendentebastardo.Tanto Vasco quanto Moraes têm acesso aos fatos pormeio do “rerrelato”. Esse neologismo, criado por Rushdie,reflete a estratégia de narrar o narrado, tantas vezes reprocessado,que já não é possível mensurar uma origem verossímil.Resta, então, iluminar esses vestígios <strong>da</strong> históriapor meio <strong>da</strong> recriação crítica por parte <strong>da</strong>quele querememora e que conta apenas com o próprio relato comoespaço por meio do qual esses vestígios têm lugar.Ao relembrar os “mil e um dias” (Rushdie, 1996,p.201) – alusão a As mil e uma noites – em que tivera aulasparticulares com Dilly Hormuz e, também, sua iniciaçãono mundo dos adultos, o narrador revela, na exigência deque o leitor não o obrigue a interromper, mais uma vez,sua história, seu exercício de memória – como o fizera outrasvezes – a construção não-linear <strong>da</strong> narrativa:Não me obrigue a parar mais uma vez, em meu exercíciode memória, naquelas fronteiras que não possuímos passaportespara transpor! A lembrança dessa época permaneceem mim como uma ânsia dolorosa, faz meu coração disparar,é uma feri<strong>da</strong> que não sara; pois meu corpo sabia coisasque eu ain<strong>da</strong> desconhecia, e, enquanto a criança permaneciaatônita na prisão de sua carne, meus lábios, minha


266 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro,... 267língua, meus membros entravam em ação, guiados por minhaexcelente professora, e em total independência de minhamente [...] (Rushdie, 1996, p.201)Em termos históricos e geográficos, Ormuz era umdos destinos de fuga dos cristãos novos. Lá, eles podiamassumir livremente sua identi<strong>da</strong>de ju<strong>da</strong>ica. A professoraDilly Hormuz, simbolicamente, figura como o primeiroponto de fuga do Mouro, dentro de sua própria casa: o“paraíso materno”. Com ela, ele vive a experiência liminar,que o conduz ao processo de (des)construção de seu territórioidentitário. Aurora, a mãe do Mouro – por meio<strong>da</strong>s pinturas executa<strong>da</strong>s nas paredes de seu quarto de adolescente– institui os componentes direcionais <strong>da</strong> sua trajetória.Na forma de um ritornelo, como postulado porDeleuze & Guattari (1995, p.117-70), o Mouro reencena,ain<strong>da</strong> que de modo inconsciente, seu ritual de construçãode um território identitário, por meio <strong>da</strong>s descobertasamorosas. Nesse contato com Dilly Hormuz, os elementosque o identificam com o mundo <strong>da</strong> infância dão lugar aprenúncios do que será sua relação com Uma Sarasvati –seu primeiro amor.Rememorar pode ser tanto uma abstração quanto umaferi<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong> que simbólica, cuja fronteira é ultrapassa<strong>da</strong>clandestinamente. O corpo de vinte anos, ávido pelos prazerescarnais, torna-se um espaço interdito porque esconde,sob uma corporei<strong>da</strong>de desejante, uma criança de dez.O ato transgressor figura, assim, como metáfora de umafronteira que se rompe e coloca em confluência a criançaescondi<strong>da</strong> no homem, uma espécie de máscara contentora.Para Aristóteles (2001), o pathos <strong>da</strong> memória resideno corpo e nele encontra-se a tábua de cera onde se fixamas impressões. O filósofo elege o coração como a parte docorpo que com ela se relaciona, cujo desregramento resultade desequilíbrio físico causado pela presença de um fluidona região do coração. Para além do movimento de lembrar/esquecer,a memória passa a comportar uma dimensãopatológica, pois é algo pelo qual somos acometidos. É1A progeria é defini<strong>da</strong> pelaEnciclopédia Luso-Brasileirade Cultura (1997, p.15) comouma síndrome caracteriza<strong>da</strong>pela senili<strong>da</strong>de precoce,associa<strong>da</strong> à arteriosclerose,ao nanismo e outrasidentificações peculiares.É mais freqüente no sexomasculino. A inteligência énormal ou acima <strong>da</strong> média.Seus sintomas são a per<strong>da</strong>progressiva <strong>da</strong> gordurasubcutânea e um ralentamentodo crescimento, que nãoexcede a 1 metro. As pessoasacometi<strong>da</strong>s por essa doençararamente ultrapassamos vinte anos de i<strong>da</strong>de,morrendo em decorrência decomplicações arterioscleróticasou edema pulmonar.2A Enciclopédia Luso-Brasileirade Cultura (1997, p.1568-9)define asma como umasíndrome caracteriza<strong>da</strong>pela opressão torácicadesencadea<strong>da</strong> em indivíduospredispostos por ummecanismo imunológico quetorna a mucosa brônquicacomo órgão de choque e cujosalérgenos, produzidos dentroou fora do organismo, podemter diversas origens, inclusivede alimentos; predomina nosexo masculino, maispredisposto aos fatoresdesencadeantes.uma doença <strong>da</strong> qual o Mouro tenta se libertar ao escrever:“conto essas histórias para livrar-me delas; são tudo o queme resta, e ao contá-las eu as liberto” (Rushdie, 1996, p.19-20). A palavra narra<strong>da</strong> é também uma forma de adiar amorte, seja porque o louco Vasco Miran<strong>da</strong> está apenas àespera de que termine o “rerrelato” seja porque os ataquesde asma são ca<strong>da</strong> vez mais freqüentes, ou até mesmo devidoà progeria, 1 doença que acelera o metabolismo biológicodo Mouro.Se, para Aristóteles, a presença de um fluido na regiãodo coração causa um desequilíbrio <strong>da</strong> memória, parao Mouro, a bílis negra concentra-se no coração do sistemarespiratório: o pulmão. O narrador sofre de uma asma hereditária,2 que provoca o fracasso <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de mantera vi<strong>da</strong> em funcionamento pleno e, por conseqüência,um fracasso na capaci<strong>da</strong>de de recor<strong>da</strong>r os relatos fun<strong>da</strong>doresde sua família. Se, por um lado, sua ver<strong>da</strong>de é forja<strong>da</strong>a partir do cinema, <strong>da</strong> literatura, <strong>da</strong>s artes e <strong>da</strong> história;por outro, ain<strong>da</strong> que apenas produza um relato sobrepostopor inúmeras versões, é com essa ver<strong>da</strong>de asmática, derespiração ofegante, que ele tem de arcar; é o último soprode vi<strong>da</strong> de uma história que, com tantas versões, a nenhumapode se apegar. Disso talvez também resulte o caráterenciclopédico e rizomático (Deleuze & Guattari, 1995)dessa narrativa.A memória, seja ela fragmento pretérito, imagina<strong>da</strong>,um rerrelato, vestígios que se desprendem de um corpofísico para o corpo <strong>da</strong> escrita, é encena<strong>da</strong> nessa narrativacomo um jogo, cujas regras se fazem a partir do entendimentode que a identi<strong>da</strong>de contemporânea – uma articulaçãoprovisória e porosa – depende <strong>da</strong>s dimensões enciclopédicase rizomáticas dessa memória, que não a fechamnuma estrutura genealógica linear e ininterrupta, mas lhepermite um contínuo e ininterrupto vir a ser.


268 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Jogos de memória e identi<strong>da</strong>de em O último suspiro do Mouro,... 269ReferênciasANDERSON, Benedict. Comuni<strong>da</strong>des imagina<strong>da</strong>s: reflexiones sobreel origem y difusion del nacionalismo. Trad. Eduardo Suarez.Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1993.ARISTÓTELES. De la mémoire e de la réminiscence. In: Petitstraites d’histoire naturelle. Paris: Les Belles Lettres, 1953.ARISTÓTELES. Da alma. Trad. Humberto Gomes. Lisboa: Edições70, 2001.BARRENECHEA, Ana María. (Comp.). Archivos de la memoria.Rosario: Beatriz Viterbo, 2003.BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:Cultrix, 1992.BASTOS, José Gabriel Pereira. Introdução a uma antropologia dosprocessos identitários. Antropologia dos processos identitários(thematic issue). Ethnologia, Nova Série, Lisboa: FCSH and Fimdo Século, n. 12-14 [19—], p.11-35.BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. SérgioPaulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987.BHABHA, Homi. O local <strong>da</strong> cultura. Trad. Myrian Ávila et al. BeloHorizonte: Editora UFMG, 1998. (Coleção Humanitas)BURKE, Peter. (Org.). A escrita <strong>da</strong> História – Novas perspectivas.Trad. Mag<strong>da</strong> Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 1992.CALVINO, Italo. Multiplici<strong>da</strong>de. In: . Seis propostas para opróximo milênio. São Paulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 1990. p.117-38.COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos: memória social e culturaeletrônica. Trad. Beatriz Borges. São Paulo: Perspectiva, 1991.DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo eesquizofrenia. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Riode Janeiro: Editora 34, 1995. v.4.DERRIDA, Jacques. Mal de archivo: una impressión freudiana. Trad.Paco Vi<strong>da</strong>rte. Madrid: Trotta, 1997.DESCARTES, René. Da natureza do espírito humano; e de comoele é mais fácil de conhecer do que o corpo. In: Os pensadores –Descartes. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p.91-8.EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Trad. ElisabethBarbosa. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.ECO, Umberto. O Antiporfirio. In: . Sobre os espelhos e outrosensaios. Trad. Beatriz Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.p. 316-341.ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE CULTURA. Lisboa:Verbo, 1997.GARCIA, Maria Antonieta. Ju<strong>da</strong>ísmo no feminino: tradição populare ortodoxia em Belmonte. Lisboa, 2000. Tese (Doutorado emCiências Sociais) – Instituto de Sociologia e Etnologia <strong>da</strong>s Religiões,Universi<strong>da</strong>de Nova de Lisboa.HALL, Stuart. A identi<strong>da</strong>de cultural na pós-moderni<strong>da</strong>de. 7.ed. Trad.Tomaz Tadeu <strong>da</strong> Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro:DP&A, 2002.HUTCHEON, Lin<strong>da</strong>. Poética do pós-modernismo: história, teoria eficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.LACLAU, Ernest. Emancipations. London: Verso, 1996.LEVY, Pierre. As tecnologias <strong>da</strong> inteligência: o futuro do pensamentona era <strong>da</strong> informática. Trad. Carlos Irineu <strong>da</strong> Costa. Rio de Janeiro:Editora 34, 1995.MAETZU, Ramiro de. Os lusía<strong>da</strong>s e o D. Quixote: grandeza e declínio<strong>da</strong>s nações ibéricas. In: MEDINA, João. (Dir.) História de Portugal:dos tempos pré-históricos aos nossos dias. Lisboa: Ediclube, [19—].v.1: O mar sem fim, p.323-6.MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos: Graciliano Ramos eSilviano Santiago. São Paulo: Edusp; Editora UFMG, 1992.PIGLIA, Ricardo. Memória y tradición. In: CONGRESSO DAASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARA-DA, 2, 1990, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Facul<strong>da</strong>dede Letras <strong>da</strong> UFMG, 1990. p.60-6.RUSHDIE, Salman. Pátrias imaginárias: ensaios e textos críticos1981-1991. Trad. Helena Tavares et al. Lisboa: Dom Quixote, 1994.. O último suspiro do mouro. Trad. Paulo Henriques Britto. SãoPaulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 1996.SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o políticona pós-moderni<strong>da</strong>de. 4.ed. Porto: Edições Afrontamento, 1995.TAVIM, José Alberto Rodrigues <strong>da</strong> Silva. Judeus e cristãos-novos deCochim – História e Memória (1500-1662). Lisboa: Facul<strong>da</strong>de deCiências Sociais <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Nova de Lisboa, 2001. (Tese dedoutorado, 712 p.).WESSELING, Henk. História de além-mar. In: BURKE, Peter.(Org.). A escrita <strong>da</strong> História – Novas perspectivas. Trad. Mag<strong>da</strong>Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 1992. p.97-131.


271PareceristasAna Maria Domingues de OliveiraAntônio Donizeti PiresBenedito AntunesGloria Carneiro do AmaralGuacira Marcondes Machado LeiteKarin VolobuefLucia GranjaLuis Roberto Veloso CairoLuiz Gonzaga MarchezanMárcia AbreuMárcia Valéria Zamboni GobbiMaria <strong>da</strong>s Graças Gomes Villa <strong>da</strong> SilvaMaria Lúcia Outeiro FernandesMaria Luiza AtikMaria Rosa Duarte de Oliveira SekiguchiMarli FantiniRegina PontieriRegina Salgado CamposSylvia TelarolliUde Bal<strong>da</strong>n


273Normas <strong>da</strong> <strong>revista</strong>Normas para apresentação de artigos• Os artigos podem ser apresentados em português ouem outro idioma. Devem ser enviados em CD oudisquete (Windows 6.0 ou compatível) e em três viasimpressas, sendo uma com identificação: nome, instituição,endereço para correspondência (com o CEP),e-mail, telefone (com prefixo) e temática escolhi<strong>da</strong>. Odisquete ou CD deve trazer uma etiqueta indicandoo(s) autor(es) do trabalho e o programa utilizado. Aextensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas,no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devemapresentar também Abstract e Keywords.• Os trabalhos – CD ou disquete e vias impressas – deverãoser enviados pelo correio para o endereço indicadoa ca<strong>da</strong> número.• Não serão aceitos, em nenhuma hipótese, trabalhosenviados pela internet.• O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadoresdoutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalhode não-doutor, desde que a convite <strong>da</strong> comissãoeditorial – casos de colaborações de escritores, porexemplo.• O trabalho deve obedecer à seguinte seqüência:– Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (semgrifos);– Nome(s) do(s) autor(es), à direita <strong>da</strong> página (semnegrito ou grifo), duas linhas abaixo do título, commaiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco


274 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Normas <strong>da</strong> <strong>revista</strong> 275para nota de ro<strong>da</strong>pé, indicando a instituição à qualestá vinculado(a). O nome <strong>da</strong> instituição deve estarpor extenso, seguido <strong>da</strong> sigla.– Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito,itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome doautor, segui<strong>da</strong> de dois pontos. O texto-resumo deveráser apresentado em itálico, corpo 10, com recuode dois centímetros de margem direita e esquer<strong>da</strong>.O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e nomáximo 10;– Palavras-chave – <strong>da</strong>r um espaço em branco após oresumo e alinhar com as mesmas margens. Corpode texto 10. A expressão palavras-chave deverá estarem negrito, itálico e maiúsculas, segui<strong>da</strong> de doispontos. Máximo: 5 palavras-chave.– Abstract – mesmas observações sobre o Resumo.– Keywords – mesmas observações sobre as palavraschave.– Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamentosimples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamentoduplo entre o corpo do texto e subitens,ilustrações e tabelas, quando houver. Parágrafos: usar adentramento 1 (um); Subtítulos: sem adentramento, em negrito, só coma primeira letra em maiúscula, sem numeração; Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficosetc.) devem vir prontas para serem impressas,dentro do padrão geral do texto e no espaçoa elas destinados pelo autor; Notas – devem aparecer ao pé <strong>da</strong> página, numera<strong>da</strong>sde acordo com a ordem de aparecimento.Corpo 10. Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito.Palavras em língua estrangeira – itálico. Citações de até três linhas vêm entre aspas (semitálico), segui<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s seguintes informações entreparênteses: sobrenome do autor (só a primeiraletra em maiúscula), ano de publicação e página(s).Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de4 cm na margem esquer<strong>da</strong>, corpo menor (fonte11), sem aspas, sem itálico e também segui<strong>da</strong>sdo sobrenome do autor (só a primeira letra emmaiúscula), ano de publicação e página(s). Ascitações em língua estrangeira devem vir em itálicoe traduzi<strong>da</strong>s em nota de ro<strong>da</strong>pé. Anexos, caso existam, devem ser colocados antes<strong>da</strong>s referências, precedidos <strong>da</strong> palavra ANE-XO, em maiúsculas e negrito, sem adentramentoe sem numeração. Quando constituírem textosjá publicados, devem incluir referência <strong>completa</strong>bem como permissão dos editores para publicação.Recomen<strong>da</strong>-se que anexos sejam utilizadosapenas quando absolutamente necessários. Referências: devem ser apenas aquelas referentesaos textos citados no trabalho. A palavraREFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito,sem adentramento, duas linhas antes <strong>da</strong>primeira entra<strong>da</strong>.Alguns exemplos de citações• Citação direta com três linhas ou menos[...] conforme Octavio Paz (1982, p. 37), “As fronteirasentre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas.A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras.Elas são nossa única reali<strong>da</strong>de, ou pelo menos, o únicotestemunho de nossa reali<strong>da</strong>de.”• Citação indireta[...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992),não há qualquer reivindicação de possíveis influênciasou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta queassumiu as conseqüências de certas linhas <strong>da</strong> poéticadrummoniana.


276 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Normas <strong>da</strong> <strong>revista</strong> 277• Citação de vários autoresSobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricose críticos <strong>da</strong> literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry,1991; Borges, 1998; Campos, 1969)• Citação de várias obras do mesmo autorAs construções metafóricas <strong>da</strong> linguagem; as indefinições;a presença <strong>da</strong> ironia e <strong>da</strong> sátira, evidenciando um confrontoentre o sagrado e o profano; o enfoque <strong>da</strong>s personagensem diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundáriossão todos componentes de um caleidoscópio quepõe em destaque o valor estético <strong>da</strong> obra de Saramago(1980, 1988, 1991, 1992)• Citação de citação e citação com mais de três linhasPara servir de fun<strong>da</strong>mento ao que se afirma, veja-se umtrecho do capítulo XV <strong>da</strong> Arte Poética de Freire (1759,p.87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148):Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprenderae formara em si muitas imagens de homens; quefaz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares querecolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele eforma uma imagem que antes não havia, concebendoque todo o homem tem potência de rir [...]Alguns exemplos de Referências• LivroFABRIS, Annateresa. Futurismo: uma poética <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de.São Paulo: Perspectiva/ EDUSP, 1987.• Capítulo de livroPALO, Maria José. A crônica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>: Memorial de Aires,Machado de Assis. In: OLIVEIRA, Maria Rosa Duarte de(Org.). Recortes machadianos. São Paulo: EDUC/ FAPESP,2003. p. 257-73.• Dissertação e teseMACHADO, Micheliny Verunschk Pinto. Confluênciasentre João Cabral de Melo Neto e Sophia de Mello BreynerAndersen: poesia <strong>da</strong>s coisas e espaços, 2006. Dissertaçãode Mestrado – Programa de Estudos Pós-graduados emLiteratura e Crítica Literária, Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católicade São Paulo.• Artigo de periódicoGOBBI, Márcia Valéria Zamboni. Relações entre ficção ehistória: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara,n. 22, p. 37-57, 2004.• Artigo de jornalTEIXEIRA, Ivan. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo,São Paulo, 08 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4.• Trabalho publicado em anaisCARVALHAL, Tânia Franco. A intermediação <strong>da</strong> memória:Otto Maria Carpeaux. In: Anais do II CONGRES-SO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. BeloHorizonte. p. 85-95.• Publicação on-line – INTERNETMARTINHO, Fernando. Depois do modernismo, o quê ?o caso <strong>da</strong> poesia portuguesa. Rio de Janeiro: Revista Semear4. Disponível em: http://www.letras.puc-rio.br. Acessoem 22 jun. 2006.OBSERVAÇÃO FINAL: A desconsideração <strong>da</strong>snormas implica a não aceitação do trabalho. Os artigosrecusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).

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