download da revista completa (pdf - 2.666 Kb) - Abralic
download da revista completa (pdf - 2.666 Kb) - Abralic
download da revista completa (pdf - 2.666 Kb) - Abralic
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
90 Revista Brasileira de Literatura Compara<strong>da</strong>, n.11, 2007 Nação: civilização e barbárie 91(1998), Urbano, um farmacêutico, mescla o uso do Chernoviz,manual médico muito utilizado no século XIX, coma memória coletiva que o circula. O Chernoviz faz a pontecom o civilizado, é a cultura européia pesando sobre oboticário interiorano, mas suas interpretações podem serinfinitas e a medicina sertaneja sempre pode deixar suasindeléveis marcas acrescentando novos ingredientes. ComoUrbano é temido pela população local, suas receitas ganhamum caráter meio mágico, a ponto de o movimentode distanciamento não se <strong>da</strong>r somente por iniciativa dele,mas de seus pacientes. Dodôte, esposa de Urbano, temdele uma imagem bastante confusa. Diante de uma prateleirarepleta de frascos com nomes estranhos, lê: Uabaio,um veneno.Essas sílabas estranhas, que lembravam terras distantes <strong>da</strong>África, tinham-lhe parecido de sinistra magia, quando lerapela primeira vez. Tirara o recipiente do armário carunchadoe poeirento onde o escondera o velho boticário [avô deUrbano], com o intuito, decerto, de defendê-lo assim doscuriosos, e de também não deixar transparecer muito claramentea sua mania de busca de remédios extraordinários,maravilhosos, que exigiam quase sempre grandes sacrifíciospara a sua modesta bolsa, ao encomendá-los a correspondentesem países africanos e asiáticos. (Penna, 1998, p.248)Os produtos advindos <strong>da</strong> África ou <strong>da</strong> Ásia estão carregadosde exotismo. Esses continentes são postos comopólos <strong>da</strong> barbárie. A carga científica é alivia<strong>da</strong> em nomede adjetivos como “extraordinários, maravilhosos”. Nãose está mais no âmbito do civilizado – o Chernoviz estavaà mão de Urbano e parecia indicar soluções seguras. OUabaio possui nome estranho, trata-se de um veneno eisso por si só é assustador, seus poderes são maléficos.Uabaio não cura, Uabaio mata. Como logo a seguir Urbanofalece, fica uma relação implícita entre o frasco queteria vindo <strong>da</strong> África ou <strong>da</strong> Ásia – e a imprecisão só aumentao mistério e por extensão o exotismo – e o seu fimdiante de uma doença desconheci<strong>da</strong>, que o corrói lentamente,como um veneno. Há uma semelhança evidenteentre os nomes, um se sobrepõe ao outro. A mera transposição<strong>da</strong> segun<strong>da</strong> e <strong>da</strong> penúltima letras faz que Urbanovire Uabaio e Uabaio vire Urbano. Essa troca remete aoimbricamento entre o boticário e um de seus produtos.Teria sido ele envenenado? Teria ele se envenenado? Seriaele o próprio Uabaio? A África e a Ásia bárbaras estariamno interior de Urbano, formariam-no, não estariamfora, no outro.A revolta latentePor um lado, Sarmiento acredita que o despeito e ainveja de um mundo civilizado e inacessível justificariamas atitudes violentas de Facundo. Por outro, mesmo minuciosamentecontrolados, os escravos, em A menina morta,encontram fissuras no sistema no qual vivem para pequenasvinganças que demonstram resistência.O trintanário ergueu o rosto, e parecia que sobre ele tinhadescido súbita cortina de cor indefini<strong>da</strong>. Seus lábios se entreabriramem expressão de infinita inocência, em quaseimperceptível sorriso alvar, e as pálpebras esbranquiça<strong>da</strong>scaíram-lhe pesa<strong>da</strong>mente sobre os olhos. Mas o olhar quepassava pela fresta deixa<strong>da</strong> entre elas era vivíssimo e lia-senele a expressão <strong>da</strong> mor<strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de ferina dos humilhados,quando sabem que por sua vez humilham alguém. (Penna,1997, p.50)Essa cena ocorre logo depois que o escravo dá um recadoque desagra<strong>da</strong> muito a Dona Virgínia. Ciente do efeitocausado por suas palavras – palavras que não poderiamser reprimi<strong>da</strong>s por se tratar de uma comunicação <strong>da</strong> condessa,alguém hierarquicamente superior à prima docomen<strong>da</strong>dor –, o escravo exulta, saboreia como pode oembaraço <strong>da</strong> senhora. Após a transmissão do recado, silencia,mas seu olhar, minuciosamente acompanhado,transbor<strong>da</strong> ressentimento e vingança. Os cativos aproveitamna íntegra as poucas oportuni<strong>da</strong>des que possuem para