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Prolegômenos a uma literaturologia - Universidade Federal de ...

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Prolegômenos a <strong>uma</strong> <strong>literaturologia</strong><br />

Giuseppe Freitas da Cunha Varaschin<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> Santa Catarina<br />

Departamento <strong>de</strong> Língua e Literatura Vernáculas<br />

Florianópolis, Santa Catarina<br />

giuseppe.varaschin@gmail.com<br />

http://lattes.cnpq.br/9772017903215564<br />

RESUMO: Partindo <strong>de</strong> um diagnóstico da atual situação dos estudos acadêmicos sobre<br />

a literatura – qualificada como estando em “crise” – procurou-se explicitar, embora<br />

<strong>de</strong> maneira breve e elementar, alg<strong>uma</strong>s das condições que possibilitam a ciência da<br />

literatura, expondo, por assim dizer, o fundamento transcen<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> sua cientificida<strong>de</strong>,<br />

a cujo esquecimento é <strong>de</strong>vida essa crise nos estudos literários.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Ciência da Literatura; Fenomenologia; Teoria Literária;<br />

Epistemologia da Obra Literária.<br />

ABSTRACT: Starting from a diagnosis of the current situation in the aca<strong>de</strong>mic studies<br />

of literature – qualified as being in “crisis” -, we hoped to explain, albeit in a brief and<br />

humble manner, some of the conditions that make the science of literature possible,<br />

exposing, as it were, its transcen<strong>de</strong>ntal foundation of scientificity, which, as it was<br />

forgotten, engen<strong>de</strong>red the current crisis in the literary studies.<br />

KEYWORDS: Science of Literature; Phenomenology; Theory of Literature; Epistemology<br />

of the Literary Object.<br />

“La verdad es lo que es<br />

y sigue siendo verdad<br />

aunque se piense al revés.”<br />

Antonio Machado em Proverbio y cantares<br />

1. A dialética do espírito e a crise<br />

A progressão da história h<strong>uma</strong>na não segue <strong>uma</strong> lógica linear como as<br />

<strong>de</strong>monstrações geométricas e as <strong>de</strong>duções silogísticas. Parece haver um <strong>de</strong>scompasso<br />

entre a or<strong>de</strong>m matemática com a qual medimos o <strong>de</strong>senrolar dos fenômenos da natureza<br />

e o caráter dialético <strong>de</strong> tudo aquilo em que se imiscui o elemento propriamente h<strong>uma</strong>no.<br />

Toda a tentativa <strong>de</strong> contradizer essa impressão soa extravagante. A Dialética da<br />

Natureza <strong>de</strong> Engels é quase risível aos olhos do cientista mo<strong>de</strong>rno. Hegel já havia<br />

ensinado, em sua Filosofia da História, que a essência da matéria, e, portanto, <strong>de</strong> toda a<br />

natureza, é a gravida<strong>de</strong> ou necessida<strong>de</strong> – para a qual a inexorabilida<strong>de</strong> rígida das<br />

verda<strong>de</strong>s matemáticas é a<strong>de</strong>quada; enquanto a do Espírito é a liberda<strong>de</strong> – para cujo<br />

estudo convém, aí sim, bem mais a dialética. Não sem controvérsias, esse dualismo –<br />

her<strong>de</strong>iro longínquo da bifurcação cartesiana entre res extensa e res cogitans – <strong>de</strong>ve<br />

encerrar alg<strong>uma</strong> dose <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo a po<strong>de</strong>r gozar, até hoje, <strong>de</strong> toda a<br />

popularida<strong>de</strong> jornalística e institucional da repartição do terreno das ciências entre


exatas e h<strong>uma</strong>nas.<br />

Um dos pontos em que tal concepção parece-me ao menos empiricamente<br />

constatável é sua aplicação para a história das i<strong>de</strong>ias. Se o modo <strong>de</strong> operação do<br />

pensamento <strong>de</strong> um indivíduo h<strong>uma</strong>no é dialético, é natural que o da história das i<strong>de</strong>ias<br />

dos homens também o seja; que repita, em um nível civilizacional, os mesmos trajetos<br />

tortuosos que o indivíduo perpassa em seu cogitar solitário; ou seja, que também<br />

proceda por teses, antíteses e sínteses conciliadoras. Dificilmente, conseguimos nos<br />

apegar a <strong>uma</strong> crença sem, imediatamente, levantarmos contra ela alg<strong>uma</strong>s objeções,<br />

mesmo que <strong>de</strong>pois a reafirmemos, tendo superado as dúvidas que levantamos <strong>de</strong> modo<br />

enriquecedor. Do que seriam todos os avanços da ciência física no <strong>de</strong>correr século XX<br />

sem a famosa crise do mo<strong>de</strong>lo newtoniano que ocorrera no fim do século XIX Mesmo o<br />

mo<strong>de</strong>lo newtoniano, como teria sido possível sem que houvesse posto vários pontos <strong>de</strong><br />

interrogação na ciência cartesiana e aristotélica Todo conhecimento é <strong>uma</strong> resposta a<br />

<strong>uma</strong> pergunta. A pergunta é a expressão <strong>de</strong> <strong>uma</strong> crise, o progresso é, pois, filho da<br />

crise. A ciência avança na medida em que se <strong>de</strong>scobre falsa. A <strong>de</strong>scoberta é obra do<br />

trabalho do negativo.<br />

Por isso, talvez, um número impressionante <strong>de</strong> obras monumentais do espírito<br />

h<strong>uma</strong>no tenham sido diagnósticos <strong>de</strong> crise, <strong>de</strong>struições <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s certezas,<br />

perturbações <strong>de</strong> longos períodos <strong>de</strong> excessiva confiança. Só entre as obras <strong>de</strong> cunho<br />

mais filosófico do século passado posso citar o primeiro volume das Investigações<br />

Lógicas e a Crise das Ciências Européias, <strong>de</strong> Edmund Husserl, as Investigações<br />

Filosóficas, <strong>de</strong> Wittgenstein, Ser e Tempo, <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger, A Rebelião das Massas, <strong>de</strong> José<br />

Ortega y Gasset, A Crise do Mundo Mo<strong>de</strong>rno e O Reino da Quantida<strong>de</strong> e os Sinais dos<br />

Tempos, <strong>de</strong> René Guénon, a Filosofia da Crise, do nosso Mário Ferreira dos Santos e<br />

tantos outros. Isso para não falar <strong>de</strong> Platão, que <strong>de</strong>certo pusera abaixo o relativismo<br />

bobo dos sofistas, <strong>de</strong> Agostinho, que refutara as incoerências dos maniqueus, <strong>de</strong><br />

Descartes, Kant, Hegel, enfim...<br />

2. A crise nas ciências literárias<br />

Talvez somente isso possa motivar nossa ciência literária, a qual, em sua breve<br />

existência, nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> estar em crise. Tivemos, sim, alg<strong>uma</strong>s parcas tentativas <strong>de</strong><br />

evoluir para além do estágio <strong>de</strong> caos inicial: os formalistas russos, algo do<br />

estruturalismo, o New Criticism, os trabalhos <strong>de</strong> Ingar<strong>de</strong>n, Iser e Jauss... Conquanto<br />

esses nomes, <strong>de</strong> pessoas e <strong>de</strong> “escolas”, não tenham sido <strong>de</strong> todo esquecidos – e ainda<br />

ouvimos lá e cá referências a um e outro – não po<strong>de</strong>mos dizer que houve, ao menos nos<br />

anos recentes, qualquer tentativa <strong>de</strong> seguir <strong>de</strong> maneira sincera e diligente as indicações<br />

por eles <strong>de</strong>ixadas rumo a <strong>uma</strong> ciência da literatura. Preferiu-se permanecer na dúvida,


na crise - e fechar os olhos à luz que po<strong>de</strong>ria conduzir para fora <strong>de</strong> sua escuridão. A<br />

ciência literária, hoje, adora formular perguntas, mas rejeita, in limine, a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> que exista <strong>uma</strong> resposta para elas – e consi<strong>de</strong>ra profundamente pernóstica a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

que alguém as tente respon<strong>de</strong>r seriamente. Quiçá seja pru<strong>de</strong>nte lembrar o aforismo 6.5<br />

do Tractatus <strong>de</strong> Wittgenstein: “se <strong>uma</strong> pergunta po<strong>de</strong> ser feita, ela po<strong>de</strong> também ser<br />

respondida.” (WITTGENSTEIN, 2010, p. 279).<br />

Embora a crise tenha seu aspecto benéfico e estimulante, como enfatizei na seção<br />

anterior, ela não é boa por si, mas por seus prováveis frutos. Uma crise sem progresso<br />

subsequente é apenas <strong>uma</strong> mixórdia, ou mesmo um blefe. Não é motivo <strong>de</strong> orgulho <strong>uma</strong><br />

ciência que nunca saiu do lugar, a dúvida por si só não é sinal <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong><br />

rigor. A crise só vale na medida em que formula suas dúvidas com clareza e com razões.<br />

A crise sem dúvidas claras ou a crise feita da pura dúvida vazia não leva a lugar algum.<br />

Para isso cabe evocar a crítica que Charles San<strong>de</strong>rs Peirce fez à levianda<strong>de</strong> da dúvida<br />

universal cartesiana:<br />

Não po<strong>de</strong>mos começar com a dúvida completa. É mister começar com<br />

todos os preconceitos que possuímos (...). Os preconceitos não po<strong>de</strong>m<br />

ser banidos por <strong>uma</strong> máxima; no fundo, nem nos passa pela cabeça que<br />

possamos duvidar <strong>de</strong>les. O ceticismo inicial acaba por ser auto-ilusão, não é<br />

<strong>uma</strong> dúvida real. (...) Uma pessoa po<strong>de</strong> no curso <strong>de</strong> seus estudos encontrar<br />

razão para duvidar daquilo em que começou por acreditar; mas nesse caso<br />

duvida por ter <strong>uma</strong> razão positiva para fazê-lo e não por or<strong>de</strong>m da máxima<br />

cartesiana. Não vamos duvidar em filosofia daquilo que não duvidamos em<br />

nossos corações. (PEIRCE, 1983, p. 71)<br />

Não tenho certeza se a caracterização <strong>de</strong> Peirce aplica-se perfeitamente ao<br />

método cartesiano, já que o filósofo francês buscava, exatamente, razões para duvidar<br />

dos fundamentos <strong>de</strong> todos os seus conhecimentos; mas se aplica com justeza à atual<br />

ciência da literatura, que nunca saiu <strong>de</strong>sse estado <strong>de</strong> dúvida inerte. Precisamos, diria eu,<br />

<strong>de</strong> um pouco <strong>de</strong> credulida<strong>de</strong>. Não <strong>uma</strong> credulida<strong>de</strong> fechada, mas <strong>uma</strong> credulida<strong>de</strong> crítica,<br />

<strong>uma</strong> fé na própria razão, na inteligibilida<strong>de</strong> do mundo – sem a qual não vale apena nem<br />

começar a fazer ciência, pois é a própria condição que a possibilita. Falta-nos, talvez,<br />

mais dogmatismo, ou melhor, mais coragem, ousadia em expor os resultados a que<br />

chegamos, aquilo <strong>de</strong> que “não duvidamos em nossos corações.” De nada vale<br />

permanecer na dúvida só pelo medo <strong>de</strong> errar, ou pelo medo <strong>de</strong> se expor ao erro e à<br />

correção dos pares. A hipótese científica <strong>de</strong>seja correções e refutações. Mas, para tal,<br />

precisa ser formulada com firmeza. Há, no entanto, aqueles que preferem disfarçar suas<br />

convicções sob o rótulo <strong>de</strong> “ficções teóricas”, para que elas não possam ser atacadas<br />

frontalmente e julgadas perante o tribunal da realida<strong>de</strong>. Tudo isso se me assemelha, em<br />

última instância, a <strong>uma</strong> <strong>de</strong>sconversa um pouco irresponsável para tornar o estudo


acadêmico da literatura <strong>uma</strong> feroz logomaquia, em que muito se fala, mas pouco se<br />

edifica, porque os literatos se mantêm estagnados por um ceticismo inquebrantável.<br />

Quem <strong>de</strong>ra se o que encontrássemos fosse ao menos <strong>uma</strong> dúvida cartesiana, que<br />

perseguisse, na própria consciência, um ponto arquimédico <strong>de</strong> que não pu<strong>de</strong>sse duvidar –<br />

<strong>uma</strong> dúvida que não se contentasse consigo mesma, que buscasse resgatar, sob<br />

fundamentos mais sólidos e seguros, as certezas sob as quais cegamente já vivia seu<br />

coração. Não. É antes um <strong>de</strong>smazelo que <strong>uma</strong> dúvida real. Uma dúvida em que se<br />

<strong>de</strong>scansa, <strong>uma</strong> crise mansa. Uma preguiça <strong>de</strong> construir o que quer que seja, porque se<br />

parte do princípio <strong>de</strong> que não há, em verda<strong>de</strong>, como compreen<strong>de</strong>r coisa alg<strong>uma</strong>. Não<br />

digo que não exista ampla justificação teórica para essa atitu<strong>de</strong> cética, relativista, ou<br />

como queira, contudo, <strong>de</strong> que vale essa justificação se não se po<strong>de</strong> discuti-la Algum<br />

<strong>de</strong>les já pensou que a negação nietzschiana da “verda<strong>de</strong>” é praticamente um pedido<br />

para que não se creia naquele que a profere Por conta disso boa parte da teoria literária<br />

recente soa como <strong>uma</strong> longa e artificiosa lamentação sobre a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se falar<br />

sobre literatura, sobre a opacida<strong>de</strong> – ou até o caráter “fascista”, como ressalta Barthes<br />

em Aula – da linguagem, que não po<strong>de</strong> alcançar qualquer objeto. Preferem culpar a<br />

linguagem que a si mesmos, por jamais serem capazes <strong>de</strong> falar, realmente, <strong>de</strong> literatura.<br />

Daí que o mesmo Barthes, em seu Da ciência à literatura, veja nessa afasia do<br />

pesquisador perante a incomunicabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu objeto e na consciência da opacida<strong>de</strong><br />

enganosa dos supostos meios que teria para comunicá-lo a peculiarida<strong>de</strong> do discurso<br />

científico sobre a literatura.<br />

Há, concomitantemente a essa lamúria festiva do caos científico, <strong>uma</strong> inflação <strong>de</strong><br />

teorias novas, vindas “importadas” da França ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>partamentos excêntricos <strong>de</strong><br />

universida<strong>de</strong>s norte-americanas, num ritmo alucinante, <strong>de</strong> modo que <strong>uma</strong> triagem crítica<br />

das mesmas é impossível. Veja-se, por exemplo, o que diz Roberto Schwarz:<br />

Só raramente a passagem <strong>de</strong> <strong>uma</strong> escola a outra correspon<strong>de</strong>, como<br />

seria <strong>de</strong> esperar, ao esgotamento <strong>de</strong> um projeto; no geral ela se <strong>de</strong>ve ao<br />

prestígio americano ou europeu da doutrina seguinte. Resulta a impressão<br />

– <strong>de</strong>cepcionante – da mudança sem necessida<strong>de</strong> interna, e por isso mesmo<br />

sem proveito. O gosto pela novida<strong>de</strong> terminológica e doutrinaria prevalece<br />

sobre o trabalho <strong>de</strong> conhecimento, e constitui outro exemplo, agora no<br />

plano acadêmico, do caráter imitativo <strong>de</strong> nossa vida cultural. (SCHWARZ,<br />

2009, p. 110-111)<br />

O mesmo ponto é também enfatizado, <strong>de</strong> maneira semelhante, no texto O que a<br />

literatura po<strong>de</strong>ria ensinar a ela própria e à cultura digital, ainda não publicado, <strong>de</strong> autoria<br />

do Prof. Dr. Alckmar Luiz dos Santos:


o exibicionismo intelectual (ou pseudo-intelectual) não é um conjunto<br />

<strong>de</strong> conceitos (ainda que <strong>de</strong>sconcatenados entre si), mas <strong>uma</strong> relação<br />

entre pessoas mediada por escombros <strong>de</strong> signos, ou melhor, por<br />

significantes sem significados possíveis, ou ainda, por frases sem verda<strong>de</strong>ira<br />

profundida<strong>de</strong> semântica. São discursos eficientes apenas na construção<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> persona para um pequeno círculo <strong>de</strong> críticos e <strong>de</strong> teóricos e,<br />

concomitantemente, também eficientes em anular a personalida<strong>de</strong> dos<br />

<strong>de</strong>mais críticos e teóricos, leitores <strong>de</strong>sses primeiros. Como consequência,<br />

vemos surgir constantemente <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> modismos, todos apoiados<br />

em leituras supérfluas e alimentando-as sempre e mais. (...)E, como já<br />

afirmei acima, a estratégia por excelência, nesses casos, é disfarçar a<br />

vacuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceitos e <strong>de</strong> juízos (em resumo, a insuficiência flagrante das<br />

leituras), fazendo apelo a um discurso tortuoso, a expressões absconsas, a<br />

neologismos herméticos. Através <strong>de</strong>las, busca-se apontar para a pretensa<br />

novida<strong>de</strong> da penúltima moda intelectual (...). (SANTOS, 2012, p. 6-7)<br />

Antes <strong>de</strong> serem eficazes para sanar as dúvidas ou ao menos para propor<br />

dúvidas eloquentes, por sua multiplicida<strong>de</strong> e incomunicabilida<strong>de</strong> essas “teorias”<br />

alimentam ainda mais o estado <strong>de</strong> confusão geral. Queer Theory, os feminismos – <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o <strong>de</strong> Martha Nussbaum até o <strong>de</strong> Judith Butler -, os sempre novos acólitos <strong>de</strong> Derrida e da<br />

<strong>de</strong>sconstrução, neomarxistas leitores <strong>de</strong> Laclau e Badiou, pós-colonialismo,<br />

<strong>de</strong>scolonialismo, pós-h<strong>uma</strong>nismo, entre tantas outras. Há quem consi<strong>de</strong>re a pluralida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> opiniões <strong>uma</strong> maravilha – e não um indício <strong>de</strong> que não estamos enten<strong>de</strong>ndo nada –<br />

talvez porque sempre se po<strong>de</strong>rá alegar <strong>uma</strong> autorida<strong>de</strong> fartamente diplomada que<br />

discor<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualquer posição que se <strong>de</strong>seje combater. Vêem nisso um triunfo da<br />

<strong>de</strong>mocracia, será Se sim, confun<strong>de</strong>m ciência com política, e vêem naquela virtu<strong>de</strong>s que<br />

só cabem a esta. A valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong> tese não se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> pelo apoio da maioria, bem como<br />

as virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>uma</strong> ciência não se vêem na pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los incomunicáveis que<br />

ela apresenta ao estudante. Não há nenhum benefício intrínseco a essa multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

teorias científicas – especialmente, como é o caso da literatura, se essas teorias nem<br />

sequer se dão ao trabalho <strong>de</strong> se formularem com clareza, e acabem jazendo meio que<br />

implícitas no exercício inebriante da escritura crítica -, pelo contrário, isso representa um<br />

problema que, se não incomodar a ninguém, não será jamais resolvido. Alegam, além<br />

disso, a “liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão” contra aqueles que ousam fazer uso <strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong><br />

para criticar. Quem percebeu isso com muita argúcia foi a ovelha negra da aca<strong>de</strong>mia<br />

francesa, Jacques Bouveresse, em seu livro-resposta ao famoso caso Sokal, chamado<br />

Prodígios e Vertigens da Analogia: o abuso das belas-letras no pensamento (2005):<br />

Como é que se chegou ao ponto <strong>de</strong> recusar aos outros o direito <strong>de</strong> crítica<br />

em nome da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento, entenda-se bem, da própria<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento, ou seja, do direito <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> dizer<br />

impunimente qualquer coisa, até mesmo sobre os temas mais técnicos e<br />

que, em princípio, menos se prestam a isso Manifestamente, o liberalismo<br />

que todos professam (...) implica liberda<strong>de</strong> total <strong>de</strong> criação e <strong>de</strong> expressão,<br />

mas não a <strong>de</strong> julgamento. O terreno do julgamento tem <strong>de</strong> continuar<br />

governado pela crença (obrigatória), pela convenção (que fixa os valores


inatacáveis), pela admiração (imposta) e pelo ritual (<strong>de</strong> celebração).<br />

(BOUVERESSE, 2005, p. 141)<br />

Bouveresse discorre, ao longo <strong>de</strong>ste seu pequeno livro, sobre esta situação francamente<br />

anti-intelectualista <strong>de</strong> alguns setores das ciências h<strong>uma</strong>nas, e, em especial, da teoria<br />

literária. Só posso enten<strong>de</strong>r essa recusa ao <strong>de</strong>bate, ao confronto limpo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias – cujo<br />

mo<strong>de</strong>lo máximo na história talvez sejam as antigas disputationes medievais – como <strong>uma</strong><br />

tentativa forçada <strong>de</strong> manter prestígios intactos ao evitarem se envolver num terreno<br />

comum <strong>de</strong> discussão – on<strong>de</strong>, fatalmente, teorias insustentáveis cairiam. Edmund Husserl<br />

expressou situação semelhante no terreno da filosofia no princípio do século XX:<br />

Em lugar <strong>de</strong> um embate sério entre teorias divergentes, cujo próprio<br />

antagonismo seria suficiente para comprovar a solidarieda<strong>de</strong> interna, a<br />

comunhão dos fundamentos e a fé inquebrantável <strong>de</strong> seus autores em <strong>uma</strong><br />

filosofia verda<strong>de</strong>ira, temos <strong>uma</strong> pseudo-exposição e <strong>uma</strong> pseudocrítica,<br />

<strong>uma</strong> aparência <strong>de</strong> colaboração verda<strong>de</strong>ira e <strong>de</strong> ajuda mútua no trabalho<br />

filosófico. Esforços recíprocos, consciência das responsabilida<strong>de</strong>s, espírito<br />

<strong>de</strong> colaboração séria visando a resultados objetivamente válidos, ou seja,<br />

purificados pela crítica mútua – nada disso existe. (...) Não existem quase<br />

tantas filosofias quanto filósofos Existem ainda Congressos Filosóficos;<br />

neles os filósofos encontram-se, mas não as filosofias. (HUSSERL, 2001, p.<br />

22-23)<br />

O mesmo, creio eu, po<strong>de</strong>ria e <strong>de</strong>veria ser dito a respeito da literatura – é o que<br />

venho tentando fazer, até aqui. Tampouco acho que esta confusão da literatura não<br />

possua também raízes na própria filosofia, que passa, igualmente, por um período<br />

instável. Não se trata <strong>de</strong> <strong>uma</strong> situação nova na história do pensamento h<strong>uma</strong>no. Husserl<br />

mesmo cita transição entre o período medieval e a ida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna como um tempo em<br />

que se observou a mesma confusão. Também po<strong>de</strong>ria citar o longo período da filosofia<br />

helenística. E todas essas crises foram superadas por gran<strong>de</strong>s marcos históricos, os<br />

quais tem um gesto fundamental em comum: o retorno à análise das próprias condições<br />

<strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> do discurso científico. A anulação, por assim dizer, <strong>de</strong> toda cultura<br />

anárquica ao redor e a busca pela or<strong>de</strong>m na própria alma, isto é, no próprio senso <strong>de</strong><br />

certeza interior.<br />

Mesmo essa minha percepção do caráter crítico no campo restrito dos Estudos<br />

Literários não é nova. Outros já o assinalaram. René Wellek em sua polêmica palestra,<br />

em 1958, no segundo Congresso Internacional <strong>de</strong> Literatura Comparada, afirmou que “o<br />

sinal mais sério do estado precário em que se encontrava nosso estudo [<strong>de</strong> literatura]<br />

era o fato <strong>de</strong> que não tinha sido capaz <strong>de</strong> estabelecer um assunto bem <strong>de</strong>limitado e <strong>uma</strong><br />

metodologia específica.” (WELLEK apud MOURÃO: 2000, p. 02). Sua atitu<strong>de</strong> é, em certo


sentido, bastante semelhante à minha. Assim como eu o farei, Wellek propõe que o<br />

objeto <strong>de</strong> estudo próprio da Literatura Comparada <strong>de</strong>ve ser a literarieda<strong>de</strong>, o princípio <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> substancial que subjaz a todas as manifestações heterogêneas dos fenômenos<br />

literários entre as diversas culturas. Henry Remak foi outro que, em 1985, alertava<br />

contra esse pluralismo irresponsável <strong>de</strong> abordagens nas ciências literárias, afirmando<br />

que “na medida que as ambições interdisciplinares dos supostos estudiosos da literatura<br />

aumentavam (...) seu senso <strong>de</strong> literatura e seu conhecimento <strong>de</strong> línguas estrangeiras e<br />

culturas <strong>de</strong>caiu. A literatura comparada não está bem servida em tal arranjo<br />

subserviente.” (REMAK apud MOURÃO, 2000, p. 02) E. D. Hirsh, já não na área da<br />

literatura comparada, mas no da hermenêutica literária, em seu famoso Validity in<br />

Interpretation (1966) preten<strong>de</strong> igualmente rebater, com o instrumental da<br />

fenomenologia, a atitu<strong>de</strong> cética representada por trabalhos como o <strong>de</strong> Against<br />

Interpretation (1966), <strong>de</strong> Susan Sontag, cujo título já assinala claramente a discordância<br />

entre os dois. Sua abordagem, contudo, difere da minha, pois que não consi<strong>de</strong>rei<br />

necessário, por exemplo, restaurar a figura do autor – um dos principais objetivos <strong>de</strong> seu<br />

livro - como fonte da unida<strong>de</strong> do sentido.<br />

Enfim, especialmente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1993, com a publicação do Relatório Bernheimer<br />

– on<strong>de</strong> se levantou que o termo “literatura” já não mais tinha significado para a<br />

Literatura Comparada -, multiplicaram-se discussões evocando também a temática da<br />

crise – especialmente entre acadêmicos norte-americanos. Tais discussões, contudo, a<br />

meu ver, pa<strong>de</strong>cem muitas vezes <strong>de</strong> alguns dos cacoetes já assinalados – fundamentos<br />

filosóficos dúbios, falta <strong>de</strong> clareza, etc. - e, até on<strong>de</strong> sei, não foram frutíferas em<br />

alcançar qualquer solução mais <strong>de</strong>finitiva. A tendência é geralmente carregar o estudo da<br />

literatura para a sociologia ou para a psicologia, para a história ou qualquer outra área<br />

da predileção do estudioso. Northrop Frye – que também, em 1957, já percebia tal crise<br />

incipiente – já avisara:<br />

Isso nos dá, na crítica, a falácia que em história é chamada <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminismo, quando um estudioso com um interesse especial em<br />

geografia ou economia expressa esse interesse pelo artifício retórico <strong>de</strong><br />

colocar sua disciplina predileta em <strong>uma</strong> relação causal com qualquer outra<br />

que o interesse menos. (...) Seria fácil <strong>de</strong> compilar <strong>uma</strong> longa lista <strong>de</strong> tal<br />

<strong>de</strong>terminismo na crítica literária, todos (...) propondo, não achar um quadro<br />

conceitual para a crítica na literatura, e sim atá-la a <strong>uma</strong> miscelânea <strong>de</strong><br />

quadros fora <strong>de</strong>la. Os axiomas e os postulados da crítica, contudo, <strong>de</strong>vem<br />

brotar da própria arte com que ela lida. (FRYE, 1990, p. 06-07)<br />

Como não vejo como mais um ensaio puramente negativo teria alg<strong>uma</strong> utilida<strong>de</strong>–<br />

quem seria eu para criticar outros por não fazerem algo que eu próprio não tivesse a<br />

intenção <strong>de</strong> realizar –, procurarei dar minha contribuição positiva ao assunto. O que


exporei nas próximas seções é <strong>uma</strong> mo<strong>de</strong>sta tentativa <strong>de</strong> esclarecer o que penso que<br />

<strong>de</strong>vam ser os prolegômenos para <strong>uma</strong> futura ciência literária, <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar aquilo que<br />

Husserl chamou <strong>de</strong> um “lugar espiritual comum” (HUSSERL, 2003, p. 23) on<strong>de</strong>, ao<br />

contrário das conferências profissionais, possam se encontrar as teorias, sobre bases<br />

seguras e sólidas, on<strong>de</strong> possam discutir <strong>de</strong> acordo com princípios aceitos<br />

conscientemente por todos <strong>de</strong> modo a po<strong>de</strong>rem avançar. “Pôr entre colchetes” todos os<br />

edifícios <strong>de</strong> teorias estéreis que até hoje surgiram, a fim <strong>de</strong> tentar, ao menos<br />

vagamente, <strong>de</strong>linear parte do que penso serem fundamentos mais seguros para <strong>uma</strong><br />

ciência e <strong>uma</strong> crítica literária. Operar <strong>uma</strong> redução fenomenológica para ter o contato<br />

mais direto possível com o objeto literário. Sei que tal tarefa é impossível <strong>de</strong> se efetuar<br />

em um ensaio <strong>de</strong> poucas páginas, por isso não tenho a menor pretensão <strong>de</strong> tê-la<br />

esgotado. Minha única intenção é a <strong>de</strong> explicitar alguns dos pressupostos que tornam a<br />

ciência literária – po<strong>de</strong>ríamos chamá-la <strong>de</strong> <strong>literaturologia</strong> – possível, quer eles pareçam<br />

agradáveis ou não. Além disso, como disse anteriormente, é preciso dar a cara a bater,<br />

se não <strong>de</strong>rmos um primeiro passo (ainda que na direção errada) não chegaremos a lugar<br />

algum.<br />

3. A fenomenologia como fuga à metodocracia<br />

Gostaria <strong>de</strong> justificar <strong>de</strong> antemão o caráter aparentemente “abstrato” das<br />

explanações vindouras. Não é nenhum segredo minha predileção pelo método<br />

fenomenológico em matéria <strong>de</strong> ciência – tomada aí em seu sentido mais geral, como<br />

Wissenschaft. Também, seguindo Husserl, consi<strong>de</strong>ro-a como a verda<strong>de</strong>ira “filosofia<br />

primeira” (HUSSERL, 1975, p. 40), totalmente a priori e intuitiva, que transforma todos<br />

os domínios <strong>de</strong> investigação até então tomados pela “atitu<strong>de</strong> natural”, ou qualquer outra<br />

atitu<strong>de</strong> não fundamentada na <strong>de</strong>scrição exata das essências e dos modos <strong>de</strong> aparição<br />

dos fenômenos, em ciências rigorosas. Não será necessário elucidar todas as<br />

idiossincrasias da abordagem fenomenológica – e talvez elas apareçam no <strong>de</strong>correr da<br />

minha exposição -, somente um ponto merece menção explícita para que não me façam<br />

repreensões incautas.<br />

A fenomenologia preten<strong>de</strong>, grosso modo, ser <strong>uma</strong> ciência da <strong>de</strong>scrição das<br />

essências dos fenômenos. Contudo, ela não atinge essas essências pela generalização,<br />

indução ou abstração a partir <strong>de</strong> várias manifestações particulares do fenômeno, e sim<br />

por sua concentração intuitiva nos objetos intencionais que aparecem à consciência pura.<br />

É, assim, <strong>uma</strong> ciência não-empírica, puramente i<strong>de</strong>al e a priori, que, mediante a famosa<br />

epochê, põe em suspensão a existência real ou “exterior” <strong>de</strong> seus objetos para atingir,<br />

precisamente, essas essências, os fatores invariantes e estruturais dos quais cada<br />

espécime particular é um exemplo. E por isso não lidarei com a literatura no nível das


obras efetivamente existentes – bem como não o fazem, por exemplo, Ingar<strong>de</strong>n e Iser,<br />

em quem me inspiro. O fenomenólogo não estuda isto ou aquilo em particular, mas os<br />

critérios objetivos pelos quais enlaçamos os objetos em torno <strong>de</strong> tal ou qual<br />

<strong>de</strong>nominação. Não me interessa para este estudo, por exemplo, Memórias Póst<strong>uma</strong>s <strong>de</strong><br />

Brás Cubas e Esp<strong>uma</strong>s Flutuantes, e sim o que me permite ver em ambos <strong>uma</strong> variação<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> mesma coisa, a saber, literatura. E como, <strong>de</strong>finida essa “mesmida<strong>de</strong>”, essa<br />

maneira comum <strong>de</strong> doação e <strong>de</strong> existência, po<strong>de</strong>mos preten<strong>de</strong>r conhecer todos os<br />

objetos que a instanciam. Busco o que Ruth Ann Crowley e Kenneth R. Olson, tradutores<br />

<strong>de</strong> Ingar<strong>de</strong>n para o inglês, dizem a respeito do mesmo:<br />

Determinar a estrutura formal comum a todos os membros <strong>de</strong> <strong>uma</strong> classe<br />

<strong>de</strong> objetos, (...) para que os métodos para lidar com ele estejam a<strong>de</strong>quados<br />

para o que está sob investigação. (...) Fazer do estudo acadêmico da<br />

literatura <strong>uma</strong> disciplina rigorosa ao clarificar seu objeto, a maneira como<br />

esse objeto é dado à consciência e que tipo <strong>de</strong> conhecimento po<strong>de</strong>mos<br />

esperar obter levando em conta essas consi<strong>de</strong>rações. (CROWLEY; OLSON,<br />

1979, p. xiv)<br />

Evitar, em s<strong>uma</strong>, a todo custo, aquilo que o filósofo brasileiro Olavo <strong>de</strong> Carvalho chamou<br />

em seu livro mais recente, A Filosofia e Seu Inverso (2012), <strong>de</strong> metodocracia.<br />

A metodocracia é, <strong>de</strong>certo, um dos males mais disseminados na comunida<strong>de</strong><br />

acadêmica. Sua presença é <strong>de</strong> tal modo imponente e hegemônica que há quem a<br />

consi<strong>de</strong>re como um princípio epistemológico fundamental. Stephen Hawking é um que,<br />

em seu The Grand Design (2012), assume essa postura <strong>de</strong>signando-a <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>l<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<br />

realism [realismo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo]. A idéia é, basicamente, a seguinte,<br />

nas palavras <strong>de</strong> Olavo:<br />

não é o objeto que <strong>de</strong>termina o método, e sim o método que <strong>de</strong>termina o<br />

objeto. Dito <strong>de</strong> outro modo, o campo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> ciência não correspon<strong>de</strong> a um<br />

conjunto <strong>de</strong> seres, coisas ou fatos objetivamente distintos, separados dos<br />

outros por fronteiras reais, mas simplesmente ao conjunto dos temas que<br />

se revelem mais dóceis aos métodos <strong>de</strong>ssa ciência. (CARVALHO, 2012, p.<br />

86)<br />

É sintomático que um dos mais celebrados cientistas da época exponha com<br />

ares triunfantes esse <strong>de</strong>svario epistemológico – que, se pô<strong>de</strong> aparecer, só po<strong>de</strong> ter sido<br />

<strong>de</strong>vido ao esquecimento da fenomenologia husserliana nos ciclos acadêmicos anglosaxônicos<br />

sob o “tra<strong>uma</strong>” causado por suas versões hei<strong>de</strong>ggerianas e existencialistas. Há<br />

outras expressões mais sofisticadas da metodocracia, tais quais o holismo e o relativismo<br />

ontológico <strong>de</strong> Quine, o convencionalismo <strong>de</strong> Poincaré e Pierre Duhem, e, em última


instância, a própria “revolução copernicana” empreendida por Kant. Quando a coisaem-si<br />

torna-se inacessível, per<strong>de</strong>-se qualquer critério para discernir <strong>uma</strong> ontologia<br />

válida <strong>de</strong> <strong>uma</strong> ontologia inválida. A escolha <strong>de</strong>sta ou daquela ontologiatorna-se não <strong>uma</strong><br />

questão teórica – discutível racionalmente -, mas <strong>uma</strong> questão pragmática; a <strong>de</strong>limitação<br />

dos campos das ciências passam a ser <strong>de</strong>cisões administrativas <strong>de</strong> <strong>de</strong>partamentos<br />

universitários, don<strong>de</strong> se abre espaço para que se imiscuam, no terreno do conhecimento,<br />

<strong>de</strong>liberações políticas, interesses econômicos, inclinações psicológicas, enfim, todo um rol<br />

<strong>de</strong> fatores irracionais.<br />

Esses são os corolários do que Olavo chama <strong>de</strong> “divórcio entre ciência e filosofia”:<br />

a primeira imperando sobre o mundo dos fenômenos, a segunda insistindo<br />

em perguntas sobre a natureza da realida<strong>de</strong> que já não interessavam a<br />

ninguém. Uma consequência óbvia <strong>de</strong>ssa separação foi que, com a ciência<br />

já não po<strong>de</strong>ndo ou não querendo alegar em seu favor <strong>uma</strong> ontologia<br />

explícita, as divisões entre os campos das várias ciências, a <strong>de</strong>limitação,<br />

e, portanto, a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> seus objetos, <strong>de</strong> seus métodos e <strong>de</strong> sues<br />

processos <strong>de</strong> validação já não tinham como fundamentar-se em distinções<br />

objetivas – ‘ontologias regionais’ – recortadas do corpo vivo da experiência.<br />

(CARVALHO, 2012, p. 86)<br />

Como exemplo ele fornece a psicologia mo<strong>de</strong>rna, que, segundo ele, “po<strong>de</strong><br />

prosseguir imperturbavelmente seu trabalho sem ter a menor i<strong>de</strong>ia do que seja a ‘psique’<br />

e sem saber ao menos se ela existe”, e ele se pergunta: “Qual é então o objeto da<br />

psicologia Não há outra maneira <strong>de</strong> <strong>de</strong>fini-lo senão como ‘qualquer coisa que os<br />

psicólogos estu<strong>de</strong>m’.” (CARVALHO, 2012, p. 86-87). Não se po<strong>de</strong> negar, é claro, que os<br />

sucessos das ciências mo<strong>de</strong>rnas se baseiam nessa epistemologia caduca, nem tampouco<br />

os avanços da técnica <strong>de</strong> que ela <strong>de</strong>seja fazer sua face “pública”, mas<br />

quanto mais precisão se alcança na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um fenômeno, mais<br />

enfático se torna o contraste entre o domínio técnico que se exerce sobre<br />

ele e a constatação diuturna <strong>de</strong> que, no fim das contas, não se sabe o<br />

que ele é. Quanto mais <strong>uma</strong> ciência se encontra num estágio infantil,<br />

engatinhando, nebulosa e confusa, incapaz <strong>de</strong> acertar os métodos <strong>de</strong><br />

investigação que lhe permitam discernir constantes (...), mais forte é<br />

a tendência <strong>de</strong> continuar tentando e tentando, acumulando hipóteses,<br />

observações e números, na esperança <strong>de</strong> que um dia as leis gerais<br />

apareçam e os fatos as confirmem. Nesse estado <strong>de</strong> coisas, é compreensível<br />

que as questões <strong>de</strong> fundamento ontológico <strong>de</strong>vam ficar para <strong>de</strong>pois, talvez<br />

para o dia <strong>de</strong> são nunca, pela simples razão <strong>de</strong> que ainda não se tem um<br />

objeto preciso que possa ser fundamentado. (CARVALHO, 2012, p. 87-88)<br />

Não é esse um testemunho preciso do que ocorre com a literatura Se não<br />

sabemos do que estamos falando, como po<strong>de</strong>remos estar certos do que falar Só


falaremos, in<strong>de</strong>finidamente, atirando para todos os lados, sobre qualquer coisa,<br />

tagarelando em longas e incompreensíveis frases a máscara que encobre <strong>uma</strong> ciência<br />

oca.<br />

4. A investigação racional da literatura e suas pré-condições: objeto e essência<br />

A maior realização da fenomenologia está em sua <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> que é, sim,<br />

possível fugir à metodocracia, porque ela oferece a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acessar a essência<br />

dos fenômenos <strong>de</strong> consciência, investigando-os e os agrupando em “ontologias<br />

regionais”, as quais mapeiam um terreno geral cujas distinções objetivas fundamentam<br />

as distinções entre as respectivas ciências. Daí que a filosofia – em sua versão<br />

fenomenológica – seja verda<strong>de</strong>iramente ascientia scientiarum, a investigação<br />

“transcen<strong>de</strong>ntal” – no sentido kantiano - sobre as próprias condições <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> da<br />

ciência. O que farei aqui será um brevíssimo esboço <strong>de</strong> como penso que tal perquirição<br />

<strong>de</strong>va ser feita no caso da literatura, a fim <strong>de</strong> superar o estágio <strong>de</strong> confusão atual.<br />

Uma <strong>de</strong>finição bastante geral e elástica <strong>de</strong> ciência, anterior a toda consi<strong>de</strong>ração<br />

epistemológica mais profunda, é a <strong>de</strong> investigação racional <strong>de</strong> <strong>uma</strong> espécie x <strong>de</strong> objetos.<br />

Uma <strong>literaturologia</strong>, ou ciência da literatura, seria, pois, nada mais que a investigação<br />

racional da literatura. Ora, aí, <strong>de</strong> início, já nos <strong>de</strong>frontamos com alg<strong>uma</strong>s<br />

pressuposições, as quais <strong>de</strong>vem ser esclarecidas, para que não sejam, no <strong>de</strong>correr do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da ciência, incoerentemente negadascausando <strong>uma</strong> <strong>de</strong>snecessária<br />

“crise dos fundamentos”. Todo estudo racional <strong>de</strong> x, exige que em x haja <strong>uma</strong> ratio, um<br />

conteúdo inteligível, <strong>uma</strong> verda<strong>de</strong> que, por um lado, torna a coisa aquilo que ela é, e,<br />

por outro lado, a torna cognoscível para a inteligência h<strong>uma</strong>na, um critério universal <strong>de</strong><br />

reconhecimento que po<strong>de</strong> passar por <strong>uma</strong> fixação <strong>de</strong>scritiva. Toda ciência, em outras<br />

palavras, pressupõe a essência <strong>de</strong> seu objeto. Não vejo como escapar a essa conclusão,<br />

que po<strong>de</strong> parecer verda<strong>de</strong>iramente escandalosa em pleno século XXI: o essencialismo é,<br />

bem como cria Platão, <strong>uma</strong> condição necessária para o conhecimento. Nada afirmo, ao<br />

contrário <strong>de</strong> Platão, sobre o estatuto ontológico <strong>de</strong>ssas essências – não estou postulando<br />

um outro “mundo”, separado do nosso; sou cético quanto às possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fornecer<br />

<strong>uma</strong> caracterização ontológica <strong>de</strong>las, pelo simples fato <strong>de</strong> que qualquer caracterização<br />

ontológica já as pressupõe.<br />

Talvez nenh<strong>uma</strong> ciência esteja menos disposta a aceitar que <strong>uma</strong> <strong>de</strong> suas<br />

próprias condições <strong>de</strong> existência enquanto ciência seja o essencialismo que a ciência da<br />

literatura – embora, como já assinalei, René Wellek o tenha percebido em sua palestra<br />

<strong>de</strong> 1958. Há toda <strong>uma</strong> disciplina, nos estudos universitários, <strong>de</strong>stinada a convencer o<br />

estudante <strong>de</strong> que é impossível <strong>de</strong>terminar <strong>uma</strong> essência da literatura: a teoria literária.<br />

O neófito é imediatamente lançado, sem qualquer preparo filosófico substantivo, no mar


<strong>de</strong> confusões <strong>de</strong>scrito na seção 2 do presente ensaio. Lê Derrida antes <strong>de</strong> ler Platão, lê<br />

Foucault antes <strong>de</strong> ler Aristóteles, lê Lacan, Agamben, Bataille, Blanchot sem jamais ter<br />

contato com <strong>uma</strong> página sequer <strong>de</strong> Tomás <strong>de</strong> Aquino, Leibniz, Frege ou Husserl. A<br />

conclusão a que ele é mais ou menos tacitamente carregado nesse macro-entimema é o<br />

ceticismo, a <strong>de</strong>cepção prematura perante a razão h<strong>uma</strong>na. Todas as tentativas <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> literatura no passado são ensinadas como erros, não a serem superados<br />

mediante <strong>uma</strong> pesquisa mais cautelosa e inclusiva, e sim como mecanismos <strong>de</strong><br />

propagação e conservação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ologia opressora, que opera por binarismos<br />

<strong>de</strong>finidos hierarquicamente, como “literatura X não-literatura”, no qual o segundo<br />

elemento é colocado como subalterno. Nesse contexto, a noção <strong>de</strong> “essência do literário”<br />

soa, verda<strong>de</strong>iramente, como <strong>uma</strong> monstruosida<strong>de</strong> moral. Transvalorizados todos os<br />

valores, o novo imperativo categórico torna-se o relativismo cultural, histórico, absoluto.<br />

O que é literatura é relativo, e a gran<strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> da literatura<br />

contemporânea é exemplificar, vez após vez, a ina<strong>de</strong>quação das <strong>de</strong>finições teóricas<br />

antigas, negar a própria i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “natureza” da arte. O erro fundamental que cometem<br />

aí, quem sabe, seja o seguinte: confun<strong>de</strong>m a alegação <strong>de</strong> que não po<strong>de</strong>mos dar <strong>uma</strong><br />

<strong>de</strong>scrição objetiva do fenômeno literário com o fato <strong>de</strong> o fenômeno literário ser<br />

ontologicamente subjetivo – pois sua existência <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da existência do homem, não<br />

há literatura “na natureza”. Tal é apenas a falácia da ambiguida<strong>de</strong>, pois é perfeitamente<br />

possível <strong>uma</strong> ciência objetiva <strong>de</strong> um fenômeno subjetivo criado pelo homem. É tão viável<br />

<strong>uma</strong> ciência da literatura quanto <strong>uma</strong> ciência política ou <strong>uma</strong> economia. É <strong>uma</strong> ciência<br />

h<strong>uma</strong>na, não no sentido <strong>de</strong> que não é exata, e sim no sentido <strong>de</strong> que a existência do seu<br />

objeto <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da existência do homem, e as características da essência <strong>de</strong>sse objeto<br />

são, ao menos potencialmente, <strong>de</strong>dutíveis da própria essência do homem. Creio que<br />

tenha sido Max Weber quem disse que as ciências h<strong>uma</strong>nas são ainda mais exatas que<br />

as ciências naturais, pois, enquanto é praticamente impossível dizer em quantos cacos o<br />

vaso se partirá quando, solto <strong>de</strong> um prédio <strong>de</strong> 50 andares, chegar ao chão, é<br />

perfeitamente plausível prever o resultado <strong>de</strong> <strong>uma</strong> eleição. Giambattista Vico, com boas<br />

razões, também alegara que nada o homem conhece melhor do que aquilo que ele<br />

mesmo faz. O estudo objetivo da literatura é possível, mas como não há objetivida<strong>de</strong><br />

sem objeto, e tampouco há objeto cognoscível sem essência – que nada mais é que o<br />

princípio <strong>de</strong> cognoscibilida<strong>de</strong> do objeto -, <strong>de</strong>vemos admitir que, embora a literatura seja<br />

um fenômeno h<strong>uma</strong>no, ela possui <strong>uma</strong> essência permanente e universalmente<br />

reconhecível.<br />

A essência não é algo misterioso, religioso, não é um objeto <strong>de</strong> fé e veneração<br />

<strong>de</strong>vota. É simplesmente um conjunto <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s e impossibilida<strong>de</strong>s que <strong>de</strong>limitam<br />

a “forma” do objeto, é como um esqueleto que é “preenchido” <strong>de</strong> modo diverso em<br />

cada objeto particular. De um ponto <strong>de</strong> vista da lógica modal, a essência é aquele


amálgama <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s, que, por serem constitutivas da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um objeto<br />

– e a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é <strong>uma</strong> relação necessária - permanecem as mesmas em todos os<br />

mundos possíveis. Isso acarreta algo que po<strong>de</strong> soar, a alguns, como <strong>de</strong>sagregável: não<br />

po<strong>de</strong>mos ter medo <strong>de</strong> dizer “isto não é literatura”. Do mesmo modo que não tememos<br />

dizer, diante <strong>de</strong> <strong>uma</strong> galinha, “isto não é um cavalo”. Não é um cavalo porque tem penas<br />

e asas, e, se algo tiver penas e asas, é impossível que seja um cavalo. Um cavalo é<br />

algo que relincha, que tem <strong>uma</strong> cabeça, que, quando saudável, tem quatro patas, cor,<br />

peso, pelos, um certo tamanho, etc. Da mesma maneira, a essência da literatura <strong>de</strong>ve<br />

ser virtualmente fixável mediante <strong>uma</strong> <strong>de</strong>scrição. Mas negar o essencialismo é, como<br />

já sugeri, negar a própria possibilida<strong>de</strong> da ciência e expô-la ao risco <strong>de</strong> toda sorte <strong>de</strong><br />

arbitrarieda<strong>de</strong>s i<strong>de</strong>ológicas.<br />

Cabe à fenomenologia <strong>de</strong>screver essas essências, à medida que elas aparecem<br />

imediatamente no fenômeno consciente. Se nos <strong>de</strong>paramos, por exemplo, com um<br />

fenômeno e o percebemos como “literário”, exatamente o que nós percebemos Que<br />

traços presentes aí me induziram a encaixá-lo sob a essência geral <strong>de</strong> “literatura” O<br />

que está subentendido neste reconhecimento<br />

5. Proprieda<strong>de</strong>s essenciais do objeto literário<br />

Uma das notas essenciais do objeto literário é seu peculiar modo <strong>de</strong> existência. O<br />

objeto literário não é nem o suporte físico que o carrega – um papel marcado com tinta<br />

preta, sons vocálicos em <strong>de</strong>clamação -, e nem a experiência psicológica da sua recepção<br />

em algum leitor – como talvez tenda a afirmar a estética da recepção. Não é o suporte<br />

físico porque, se assim fosse, seria impossível distinguir <strong>uma</strong> obra literária <strong>de</strong> <strong>uma</strong> obra<br />

<strong>de</strong> culinária ou científica – e há quem, hoje mesmo, tenha escrúpulos em fazer tais<br />

distinções. Tampouco é a experiência psicológica do leitor porque isso implicaria em dizer<br />

que “a obra é um objeto único, temporal e irrepetível.” (CROWLEY; OLSON, 1979, p. xv).<br />

O que, segundo os comentadores anglófonos <strong>de</strong> Roman Ingar<strong>de</strong>n, faria da literatura algo<br />

que<br />

acessível apenas ao sujeito que a experimenta, não po<strong>de</strong>ria se tornar objeto<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> investigação científica, porque não seria um objeto intersubjetivo.<br />

No melhor dos casos po<strong>de</strong>ríamos analisar o relato que o sujeito dá <strong>de</strong> sua<br />

experiência, mas aí estaríamos fazendo psicologia individual, e não estética.<br />

(CROWLEY; OLSON, 1979, p.xv)<br />

É sob essa forma que aparece o famigerado psicologismo nas ciências literárias.<br />

O procedimento típico do psicologismo consiste em, resumidamente, reduzir as


essências intersubjetivas e as relações lógicas universais que se estabelecem entre<br />

elas à conteúdos da psique h<strong>uma</strong>na. Frege, em sua brilhante Filosofia da Aritmética<br />

e, mais tar<strong>de</strong>, Edmund Husserl, no primeiro volume <strong>de</strong> suas Investigações Lógicas,<br />

<strong>de</strong>monstraram, a meu ver, terminantemente a impossibilida<strong>de</strong> absoluta do psicologismo.<br />

Ingar<strong>de</strong>n o fez para a literatura em seu The Cognition of the Literary Work of Art. Pela<br />

contundência <strong>de</strong>ssas provas – as quais não me cabem, por sua profundida<strong>de</strong> e alta<br />

complexida<strong>de</strong> técnica, aqui expor – dou o psicologismo por superado. A<strong>de</strong>mais, nem<br />

seria necessário <strong>de</strong>senvolver aqui sobre as falácias que <strong>de</strong>correm do psicologismo, pois<br />

só esta constatação nos basta: o psicologismo reduz todas as ciências à psicologia,<br />

e o que interessa aqui estabelecer é <strong>uma</strong> ciência literária autêntica. Além <strong>de</strong> falso, o<br />

psicologismo é metodologicamente inconveniente.<br />

Qual, então, o modo <strong>de</strong> existência dos objetos literários De que forma a essência<br />

do literário é instanciada em um fenômeno, e em que tipo <strong>de</strong> fenômeno ela é<br />

instanciada<br />

O objeto literário é, sobretudo, um texto. Isso já é dizer muito, porque, como<br />

bem nos lembra Iser, o texto é um sistema <strong>de</strong> processos, os quais são efetivados<br />

somente na relação, na interação entre obra e leitor. A leitura é “<strong>uma</strong> ativida<strong>de</strong> guiada<br />

pelo texto” e “que precisa ser processada pelo leitor” (ISER, 1981, p. 163). Segundo o<br />

mesmo Iser, um dos engodos mais tentadores no trato com o objeto literário é optar<br />

pela saída mais fácil e automática, isto é, a <strong>de</strong> enfocar apenas um dos polos (leitor ou<br />

obra) e não a relação ou tensão entre eles, on<strong>de</strong> se estabelece, efetivamente, o texto.<br />

Não há <strong>uma</strong> ciência pré-existente que li<strong>de</strong> com esse entremeio; nem a<br />

linguística, nem a sociologia e nem a psicologia têm como fazê-lo sem reduzir o objeto<br />

literário a um <strong>de</strong> seus componentes para encaixá-lo em seus métodos. Frege falava <strong>de</strong><br />

três “reinos”: o reino do referente – o mundo das coisas materiais -, o reino da mente –<br />

o mundo das nossas cogitações, imaginações e emoções -, e o reino do sentido (Sinn) –<br />

o mundo intersubjetivo da Razão h<strong>uma</strong>na, no qual está <strong>de</strong>positado “um tesouro comum<br />

<strong>de</strong> pensamentos, que é transmitido <strong>de</strong> <strong>uma</strong> geração para outra” (FREGE, 2009, p. 134)<br />

que confere objetivida<strong>de</strong> e eficácia a toda ciência e comunicação em geral. O objeto<br />

literário situar-se-ia mais propriamente neste “terceiro reino” fregeano. Há abundantes<br />

ciências que se nutrem do terreno da referência: a sociologia, a economia, a história,<br />

etc. A quantas <strong>de</strong>ssas já não vimos uns e outros carregarem ingratamente o objeto<br />

literário Para o reino da mente, temos a psicologia. Aqueles que afirmam a<br />

subjetivida<strong>de</strong> e a relativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> toda leitura, consequência da total <strong>de</strong>pendência da obra<br />

perante a interpretação <strong>de</strong> um leitor em particular, estão apenas seguindo as indicações<br />

da abordagem psicológica ou psicologista, as conclusões a que chegam são coerentes<br />

sob esse prisma. Contudo, são conclusões para a psicologia, não para a ciência literária.<br />

Carecemos <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>literaturologia</strong>. Esta requer um estudo atencioso do reino do sentido.


Ora, se o objeto literário é um objeto constituído por <strong>uma</strong> relação entre <strong>uma</strong> obra<br />

e um leitor em particular, como po<strong>de</strong>mos garantir a intersubjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria <strong>uma</strong> ciência a seu respeito A resposta foi dada por Bertrand Russell em seu<br />

The Problems of Philosophy (1997). No capítulo IX <strong>de</strong>sse livro, The World of Universals,<br />

Russell propõe as relações como categorias universais – além <strong>de</strong> somente as qualida<strong>de</strong>s,<br />

como pensavam os realistas medievais e platônicos. Se dissermos que a leitura que fiz<br />

da obra é semelhante a que tu fizeste, postulamos <strong>uma</strong> relação universal que se dá<br />

entre esses dois objetos (a minha e a tua leitura). Adaptando o exemplo que Russell dá<br />

sobre “coisas brancas” ao meu propósito, po<strong>de</strong>ria dizer o seguinte: já que há muitas<br />

leituras <strong>de</strong> <strong>uma</strong> mesma obra, a semelhança <strong>de</strong>ve se dar entre muitos pares <strong>de</strong> leituras;<br />

e isso é característico <strong>de</strong> um universal.<br />

Será inútil dizer que há <strong>uma</strong> semelhança diferente entre cada par, pois <strong>de</strong>sse<br />

modo teremos que dizer que as semelhanças se assemelham entre si, e, portanto,<br />

seremos obrigados a admitir a semelhança como universal (RUSSELL, 1997, p. 96). O<br />

texto é, grosso modo, a forma <strong>de</strong>ssa semelhança universal entre as leituras, o que o<br />

torna in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> toda leitura em particular. Isso implica, entre outras coisas, que<br />

po<strong>de</strong>mos fazer leituras mais ou menos erradas <strong>de</strong> <strong>uma</strong> obra, pois quanto mais aspectos<br />

<strong>de</strong> nossa leitura discordarem frontalmente do texto – e isso po<strong>de</strong> ocorrer por falhas <strong>de</strong><br />

memória, <strong>de</strong>satenção durante a leitura ou por falta <strong>de</strong> conhecimento do repertório (do<br />

backgroundpragmático) que o texto (bem como toda comunicação) pressupõe – “pior”<br />

será nossa leitura, e ela terá justificativas para ser repreendida.<br />

Quer dizer que, dadas duas leituras, <strong>uma</strong> terá, necessariamente, <strong>de</strong> ser mais<br />

válida do que a outra Não há, pois, liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação A obra não é aberta<br />

Não é bem assim, visto que consi<strong>de</strong>ro haver <strong>uma</strong> margem <strong>de</strong> manobra. No capítulo V do<br />

seu The Act of Reading (1981), Iser ressalta outra peculiarida<strong>de</strong> do objeto literário:<br />

O texto ‘inteiro’ não po<strong>de</strong> jamais percebido <strong>de</strong> <strong>uma</strong> só vez. Sob esse<br />

aspecto [o objeto literário] difere dos <strong>de</strong>mais objetos, que geralmente<br />

po<strong>de</strong>m ser vistos, ou ao menos concebidos por inteiro. O ‘objeto’ do<br />

texto só po<strong>de</strong> ser imaginado por meio <strong>de</strong> fases consecutivas da leitura.<br />

Sempre nos situamos ‘<strong>de</strong> fora’ <strong>de</strong> um objeto, ao passo que sempre estamos<br />

situados <strong>de</strong>ntro do texto literário. A relação que se dá entre texto e leitor<br />

é então bem diferente daquela entre objeto e observador: em vez <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

relação sujeito-objeto, é um ponto <strong>de</strong> vista móvel que se <strong>de</strong>sloca por <strong>de</strong>ntro<br />

daquilo que tem <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r. Esse modo <strong>de</strong> apreensão é exclusivo à<br />

literatura. (ISER, 1981, p. 109)<br />

Essa proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ser apreendido apenas por um ponto <strong>de</strong> vista móvel<br />

que atua <strong>de</strong>ntro do próprio objeto, segundo Iser nos explica, é única à literatura; e penso<br />

que possamos ver aí, por isso mesmo, um maneira <strong>de</strong> dar espaço às diferentes leituras<br />

conflitantes, mas igualmente válidas, a fim <strong>de</strong> não cairmos num dogmatismo ingênuo a


espeito da hermenêutica literária.<br />

Esse “dogmatismo” é correto, a meu ver, quando se trata <strong>de</strong> objetos que<br />

apreen<strong>de</strong>mos imediatamente na percepção. Temos acesso direto, por intuição, à<br />

essência da espécie “pedra” quando vemos <strong>uma</strong> “pedra”. Ainda que não vejamos a pedra<br />

“inteira” – toda percepção, mesmo <strong>de</strong> objetos físicos, como bem nos lembra Husserl, é<br />

contextual ou “perspectival”, quer dizer, sempre vemos um lado da pedra, e não todos<br />

ao mesmo tempo – quando vemos apenas um <strong>de</strong> seus lados nós efetuamos o chamado<br />

processo <strong>de</strong> concretização, ou seja, nós completamos cognitivamente os dados dos<br />

sentidos para compor um “objeto” inteiro para nossa mente. Quando vemos <strong>uma</strong> pedra,<br />

posto que a vejamos apenas <strong>de</strong> um lado, sabemos que seus outros lados existem,<br />

precisamente por conta <strong>de</strong>sse mecanismo. A concretização, no caso dos objetos físicos, é<br />

algo bastante seguro e repetível; dificilmente duas pessoas concretizam a mesma pedra<br />

<strong>de</strong> formas conflitantes.<br />

O mesmo não ocorre com o objeto literário: que nos digam os partidários <strong>de</strong><br />

Capitu diante daqueles que se <strong>de</strong>ixaram convencer pelas acusações <strong>de</strong> Bentinho. Iser se<br />

engana ao dizer que os objetos não-literários po<strong>de</strong>m ser vistos como “inteiros”, pois,<br />

como Husserl sempre ressalta, eles também não o po<strong>de</strong>m. Contudo, acerta ao notar <strong>uma</strong><br />

diferença essencial entre o modo <strong>de</strong> apreensão dos objetos “comuns” e o objeto literário,<br />

o texto. Essa diferença resi<strong>de</strong> na situação peculiar <strong>de</strong> que não é possível, no caso do<br />

objeto literário, chegar a certas proposições senão pela concretização. No caso da pedra,<br />

embora concretizemos suas faces que não vemos, po<strong>de</strong>mos, <strong>de</strong> toda forma, mudar<br />

nossa perspectiva e ver suas faces que, até então, eram ocultas. Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>compô-la<br />

em fragmentos menores, investigar empiricamente sua constituição mineralógica e<br />

química. O mesmo não po<strong>de</strong> ser feito com o objeto literário, por <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> motivos.<br />

Um <strong>de</strong>les é que o texto não nos apresenta um “mundo” completo, há sempre lacunas –<br />

os gaps <strong>de</strong> que Iser fala -, mesmo na própria narrativa, as quais têm <strong>de</strong> ser preenchidas<br />

por projeções do leitor. E muitas vezes duas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> preenchimento são, entre<br />

si, do ponto <strong>de</strong> vista cognitivo, in<strong>de</strong>cidíveis. Não há como arbitrar racionalmente –<br />

cientificamente – se Capitu traiu ou não traiu Bentinho. Isso porque <strong>uma</strong> das condições<br />

<strong>de</strong> valida<strong>de</strong> do raciocínio indutivo – e a concretização é <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> indução – é a<br />

seguinte: aquilo a que se chega por indução, <strong>de</strong>ve ser ao menos possível chegar por<br />

observação direta. Essa condição não se cumpre no caso da concretização ficcional.<br />

Logo, toda obra literária é essencialmente ambígua, porque permite, por si<br />

mesma, diferentes leituras igualmente válidas. Isso implica que todo texto literário é<br />

<strong>de</strong>masiadamente esquemático em comparação com cada leitura individual, pois o próprio<br />

do texto literário é a exigência <strong>de</strong> que o preenchamos com emoções e outros conteúdos<br />

psicológicos. Entre a leitura <strong>de</strong> Dom Casmurro em que Capitu trai Bentinho e a leitura<br />

em que ela não o faz, a única diferença é <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m psicológica; fazer <strong>uma</strong> ou outra


leitura <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> certas propensões subjetivas que o leitor tem. Isso, que é <strong>uma</strong><br />

virtu<strong>de</strong> no caso da literatura, é um <strong>de</strong>feito no caso do discurso científico ou crítico.<br />

5. A ciência ficcional contra a ciência da ficção<br />

Vinha dizendo que leituras diferentes são diferentes i<strong>de</strong>ias sobre o mesmo sentido<br />

da obra, o que dá àquele que lê alg<strong>uma</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação a respeito <strong>de</strong> certos<br />

pontos (os que estão situados nas lacunas constitutivas do texto). Como <strong>uma</strong> das<br />

finalida<strong>de</strong>s essenciais do objeto literário é causar no leitor efeitos psicológicos – que, por<br />

<strong>de</strong>finição, serão subjetivos e mais ou menos incomunicáveis –, é admissível que as<br />

leituras variem <strong>de</strong> pessoa para pessoa. Essa forte <strong>de</strong>pendência nos fatores psicológicos –<br />

causada pela presença excessiva <strong>de</strong> lacunas semânticas no texto – é o que torna a<br />

literatura algo instigante e comovente para nós; todavia, no caso <strong>de</strong> um texto científico,<br />

é algo claramente impróprio.<br />

Nesta conclusiva parte, tendo já anotado alguns pontos essencialmente<br />

característicos do objeto literário, terei condições <strong>de</strong> propor - retomando o tema da crise<br />

que apresentei no início <strong>de</strong>ste ensaio – que quase todo discurso pretensamente científico<br />

que hoje se faz sobre literatura possui traços inconfundíveis <strong>de</strong> ficcionalida<strong>de</strong>, o que o<br />

torna, incontornavelmente, ou má literatura, ou pseudociência.<br />

Frege, no já citado ensaio Sobre o Sentido e a Referência, enquanto discute sobre<br />

a natureza dos pensamentos, ou proposições (Gedanken), que, para ele, são os átomos<br />

lógicos <strong>de</strong> toda linguagem, levanta a questão <strong>de</strong> se é possível <strong>uma</strong> proposição ter<br />

referência se um <strong>de</strong> seus elementos constitutivos – o sujeito, por exemplo, a quem se<br />

atribui um <strong>de</strong>terminado predicado – não o possui. Palavras <strong>de</strong>le:<br />

A sentença ‘Ulisses profundamente adormecido foi <strong>de</strong>sembarcado em<br />

Ítaca’ tem, obviamente, um sentido. Mas assim como é duvidoso que o<br />

nome ‘Ulisses’, que aí ocorre, tenha <strong>uma</strong> referência, assim também é<br />

duvidoso que a sentença inteira tenha <strong>uma</strong>. Entretanto, é certo que se<br />

alguém tomasse seriamente essa sentença como verda<strong>de</strong>ira ou falsa,<br />

também atribuiria ao nome ‘Ulisses’ <strong>uma</strong> referência e não somente<br />

um sentido. (...)Todo aquele que não admite que um nome tenha <strong>uma</strong><br />

referencia não lhe po<strong>de</strong> atribuir nem negar um predicado. Neste caso, a<br />

consi<strong>de</strong>ração acerca da referência do nome se torna supérflua; já que não<br />

quer ir além do pensamento. (FREGE, 2009, p. 137-138.)<br />

Não é esse, precisamente, o caso daquele que nega que haja <strong>uma</strong> essência do<br />

literário Sim, porque, se nega a essência, nega qualquer critério <strong>de</strong> reconhecimento<br />

do objeto. Nega o próprio conjunto <strong>de</strong> critérios <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do objeto. E, se a ciência<br />

literária teria <strong>de</strong> se edificar por meio <strong>de</strong> proposições que requereriam o objeto literário<br />

como valor <strong>de</strong> suas variáveis e sujeito <strong>de</strong> suas predicações, a negação da essência do


literário é a anulação da referencialida<strong>de</strong> da <strong>literaturologia</strong>. Toda pesquisa resumirse-ia<br />

à construção <strong>de</strong> jogos <strong>de</strong> palavras, brinca<strong>de</strong>iras com sentido e malabarismos<br />

com o pensamento. Alguém po<strong>de</strong>ria levantar a pergunta que Frege mesmo faz: “Por<br />

que queremos que cada nome [...] tenha não apenas um sentido, mas também <strong>uma</strong><br />

referência Por que o pensamento não nos é suficiente” (FREGE, 2009, p. 138). E ele<br />

mesmo respon<strong>de</strong>: “Porque estamos preocupados com seu valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.” (FREGE,<br />

2009, p. 138) E é essa preocupação com a verda<strong>de</strong> ou falsida<strong>de</strong> das afirmações feitas<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu domínio o próprio – o essencial – do discurso científico, em oposição ao<br />

literário:<br />

Ao ouvir um poema épico, além da eufonia da linguagem, estamos<br />

interessados apenas no sentido das sentenças e nas imagens e sentimentos<br />

que este sentido evoca. A questão da verda<strong>de</strong> é que nos faz abandonar o<br />

encanto estético por <strong>uma</strong> atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> investigação científica. (FREGE, 2009,<br />

p. 138)<br />

Parece que poucos dos nossos estudiosos <strong>de</strong> literatura estão dispostos a abandonar a<br />

condição <strong>de</strong> (maus) poetas enquanto alar<strong>de</strong>iam fazer ciência. Isso é efeito inevitável da<br />

posição teórica que adotaram, que rejeita – por meios filosoficamente muito contestáveis<br />

– a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> essência e <strong>de</strong> <strong>de</strong>finibilida<strong>de</strong> do objeto literário.<br />

É quase impraticável ler qualquer um <strong>de</strong>sses novos críticos e acadêmicos da<br />

literatura sem realizar aquela willingsuspension of disbelief <strong>de</strong> que falava Coleridge, pois<br />

é tudo um jogo do faz-<strong>de</strong>-conta composto daquilo que Ingar<strong>de</strong>n chama <strong>de</strong> pseudo-juízos<br />

(quasi-judgments):<br />

Um juízo genuíno postula a existência <strong>de</strong> seu objeto, ao passo que um<br />

pseudo-juízo não preten<strong>de</strong> alegar nada sobre qualquer coisa que exista<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do mundo da obra que esse pseudo-juízo ajuda a projetar e<br />

<strong>de</strong>terminar. (...) Qualida<strong>de</strong>s estéticas são vistas como não-essenciais para<br />

a obra científica, e po<strong>de</strong>m até ser prejudiciais para a sua função principal. O<br />

estrato dos objetos retratados <strong>de</strong>ve ser transparente no trabalho científico;<br />

o estrato semântico <strong>de</strong>ve levar o leitor direto para os objetos exteriores.<br />

(CROWLEY; OLSON, 1979, p. xxiv)<br />

É seguro, com base em tudo isso, concluir que a ciência que é praticada por<br />

<strong>uma</strong> parcela tristemente consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> nossos cultores da literatura é um fingimento.<br />

Em vez da ciência da ficção – que <strong>de</strong>sprezam – praticam <strong>uma</strong> ciência ficcional. Ciência<br />

ficcional que, paradoxalmente, ocupa um espaço <strong>de</strong>masiado real na universida<strong>de</strong>,<br />

nos ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> cultura em jornais, nos parcos programas televisivos que tratam<br />

<strong>de</strong> literatura. Talvez pareça chocante <strong>de</strong>mais o que digo, mas não faço senão repetir


trivialmente o que eles mesmos afirmam. Derrida, o doctor universalis <strong>de</strong>ssa nova era,<br />

não aceitaria que é este mesmo seu projeto filosófico, abolir a ilusão da linguagem<br />

referencial; a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que há <strong>uma</strong> essência anterior ao discurso, à qual o discurso, como<br />

garantia <strong>de</strong> sua valida<strong>de</strong>, tem <strong>de</strong> se referir<br />

O que fazer Francamente, não sei a solução. Todos os conflitos superficiais entre<br />

os indivíduos que procuram <strong>de</strong> fato <strong>uma</strong> ciência construtiva e solidária da literatura –<br />

que los hay, los hay – e aqueles que preferem manter o status quo pós-mo<strong>de</strong>rno intacto<br />

têm raízes filosóficas profundíssimas. Há quase que <strong>uma</strong> diferença ontológica entre, por<br />

exemplo, Kendal Walton, autor do impressionante Mimesis as Make-Believe (1990) e<br />

Jean-Luc Nancy. A respeito das duas orientações que <strong>de</strong>sejo ver prevalecer, penso já ter<br />

<strong>de</strong>ixado claro neste ensaio. Entretanto, neste sentido, o outro lado – o que venho aqui<br />

criticando – vem sendo mais competente. Como também observa John Searle em seu<br />

artigo The Case for a Traditional Liberal Education (1996): “Eles têm mais energia e<br />

entusiasmo, para não dizer fanatismo e intolerância. A longo prazo, isso po<strong>de</strong> ser mais<br />

eficaz em mudar as universida<strong>de</strong>s do que quaisquer argumentações rigorosas.” (SEARLE,<br />

1996, p. 98).<br />

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