Do Movimento - Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo ...
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SUMÁRIO<br />
INTRODUÇÃO............................................................................................................7<br />
1.1 DADOS BIOGRÁFICOS....................................................................................8<br />
1.2 OBRAS............................................................................................................15<br />
1.2.1 Atual investigação das obras lulianas........................................................16<br />
1.2.1.1 ROL (Raimundi Lulli Opera Latina)......................................................17<br />
1.2.1.2 NEORL (Nova Edició <strong>de</strong> les Obres <strong>de</strong> Ramon Llull)............................17<br />
1.2.2 O Lulismo no Brasil ...................................................................................17<br />
2 O LIVRO DA LAMENTAÇÃO DA FILOSOFIA.....................................................19<br />
2.1 “LIVRO DA LAMENTAÇÃO DA FILOSOFIA” .................................................19<br />
2.2 MATÉRIA E FORMA .......................................................................................22<br />
2.2.1 O hilemorfismo - or<strong>de</strong>nação geral do universo..........................................22<br />
2.2.2 Substância e aci<strong>de</strong>ntes .............................................................................30<br />
3 MOVIMENTO ........................................................................................................33<br />
À MODO DE UMA CONCLUSÃO: DO INTELECTO................................................47<br />
REFERÊMCIAS BIBLIOGRAFIAS ...........................................................................54<br />
APÊNDICE I - A ÁRVORE PORFIRIANA ..............................................................57<br />
APÊNDICE II - COSMOLOGIA MEDIEVAL ...........................................................58<br />
6
INTRODUÇÃO<br />
O presente trabalho <strong>de</strong> conclusão do curso <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Filosofia</strong> São Boaventura, tem por título “<strong>Do</strong> <strong>Movimento</strong>”. “<strong>Do</strong> <strong>Movimento</strong>” é um<br />
pequeno capítulo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma das obras <strong>de</strong> <strong>Raimundo</strong> Lúlio, <strong>de</strong>nominada “Livro<br />
da Lamentação da <strong>Filosofia</strong>”. Lúlio escreveu este livro com o objetivo <strong>de</strong> combater o<br />
averroísmo que se espelhava, influenciando muitas Universida<strong>de</strong>s.<br />
O pensamento <strong>de</strong> Lúlio, espalhado em inumeráveis e multifárias escritas,<br />
profundas e complexas, é simples, não num sentido unidimensional, simplório, <strong>de</strong><br />
fácil compreensão, mas concentrado e uno, e repetido em mil e mil variantes e<br />
modalida<strong>de</strong>s, criando estruturações cada vez mais complexas, bem concentradas.<br />
Assim, diríamos hermético, por ser simples nesse sentido, para expor o pensamento<br />
<strong>de</strong> Lúlio, exige-se muito trabalho, competência e saber e acima <strong>de</strong> tudo um vasto<br />
conhecimento da cosmologia medieval e sua estruturação a partir dos princípiosbinômios<br />
matéria-forma, ato-potência, que interpretamos como modulação<br />
correlativa <strong>de</strong> doação e recepção.<br />
Este pequeno trabalho não po<strong>de</strong> nem <strong>de</strong>seja <strong>de</strong> alguma forma apresentar o<br />
próprio pensamento <strong>de</strong> Lúlio, por ser iniciante e <strong>de</strong> pouco saber. Espera apenas ser<br />
como que o início <strong>de</strong> um longo estudo a que nos <strong>de</strong>dicamos, na medida da<br />
possibilida<strong>de</strong> a nós concedida. Assim, o objetivo principal <strong>de</strong>ste trabalho é, como<br />
expressamos no seu subtítulo, a interpretação do hilemorfismo no Livro <strong>de</strong><br />
Lamentação da <strong>Filosofia</strong>. A partir <strong>de</strong>sta interpretação, vamos intuindo, i.é,<br />
a<strong>de</strong>ntrando (intus-ire) o que Lúlio apresenta como <strong>Movimento</strong>. O <strong>Movimento</strong> será<br />
longamente comentado, lançando as bases para a compreensão do que os<br />
medievais chamavam <strong>de</strong> Espírito, na sua estruturação correlativa modular <strong>de</strong><br />
“Intelecto, vonta<strong>de</strong> e memória”.<br />
Por fim, rapidamente trazemos a modo <strong>de</strong> conclusão do nosso presente<br />
trabalho o texto biligue do capítulo 12. <strong>Do</strong> Intelecto. Iniciemos apresentando<br />
historiograficamente a vida <strong>de</strong> Lúlio, e buscando em sua auto-biografia informações<br />
mais profundas auto-interpretativas <strong>de</strong> sua existência, trazemos também parcas<br />
informações sobre obra <strong>de</strong> <strong>Raimundo</strong> Lúlio.<br />
7
1 RAIMUNDO LÚLIO: VIDA E OBRAS<br />
1.1 DADOS BIOGRÁFICOS<br />
De todo e qualquer ser humano po<strong>de</strong>mos dizer que nasceu, cresceu e<br />
morreu. É o mínimo que po<strong>de</strong>mos dizer <strong>de</strong> sua história. No entanto, esse mínimo,<br />
diz o fato essencial: que alguém existiu. Aqui o fato <strong>de</strong> alguém ter existido, não está<br />
querendo dizer apenas que ele ocorreu como uma coisa, ao lado <strong>de</strong> outras coisas.<br />
Diz principalmente, numa formulação sóbria, quase banal, que se <strong>de</strong>u o inaudito da<br />
eclosão <strong>de</strong> todo um mundo próprio, único, cada vez seu, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stinar-se da<br />
existência humana, <strong>de</strong> uma história singular. Os assim chamados fatos<br />
historiográficos, biográficos, <strong>de</strong> uma pessoa, por mais objetivos que <strong>de</strong>vam ser,<br />
carregam ao mesmo tempo esse ingrediente existencial.<br />
<strong>Raimundo</strong> Lúlio nasceu por volta dos anos 1231/33, na ilha <strong>de</strong> Maiorca,<br />
Reino <strong>de</strong> Aragão, <strong>de</strong> família nobre, filho <strong>de</strong> Ramón Amat Lúlio e Isabel d’Erill,.<br />
Quanto a sua morte, vemos um vulto misterioso, pois sabemos que foi apedrejado<br />
em Bugia, Tunis, e que genoveses o recolheram. Segundo a lenda, teria morrido, em<br />
1316, no caminho <strong>de</strong> volta para casa, na região costeira <strong>de</strong> Maiorca. Seus restos<br />
mortais repousam no convento dos Fra<strong>de</strong>s Menores, em Palma <strong>de</strong> Maiorca. Lúlio<br />
viveu por cerca <strong>de</strong> 84 anos.<br />
A seguir, ao expormos em resumo os dados biográficos <strong>de</strong> Lúlio, vamos<br />
numa coluna apresentar alguns dos acontecimentos que julgamos <strong>de</strong> principal<br />
importância para conhecer a vida <strong>de</strong>le, a modo <strong>de</strong> historiografia, como se a distância<br />
falássemos <strong>de</strong> alguém, ocorrido num fragmento <strong>de</strong> tempo cronológico, <strong>de</strong>ntro da<br />
imensidão objetiva do tempo da historiografia. E noutra coluna, ao lado <strong>de</strong>sses<br />
dados historiográficos, vamos acrescentar a modo <strong>de</strong> ilustração, a auto-interpretação<br />
<strong>de</strong> sua existência “terrena”, dada e <strong>de</strong>ixada pelo próprio Lúlio, extraímos os<br />
fragmentos <strong>de</strong> sua autobiografia <strong>de</strong>nominada Vita Coetânea.<br />
8
A Vita Coetânea foi composta em 1311, escrita em latim e logo traduzida<br />
para o catalão. Segundo alguns historiadores, a obra foi escrita por insistência dos<br />
Monges Cartuxos <strong>de</strong> Vauvert, que rogavam a Lúlio que contasse sobre sua vida.<br />
Utilizamos, para este trabalho, a edição bilíngüe (latim e catalão), publicada pela<br />
Biblioteca <strong>de</strong> Autores Cristãos, em 1948.<br />
Para o conhecimento biográfico, historiográfico, mais completo e <strong>de</strong>talhado,<br />
remetemos o leitor <strong>de</strong>sse pequeno trabalho a um estudo anterior, apresentado como<br />
trabalho <strong>de</strong> conclusão do curso <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, ao <strong>Instituto</strong> Franciscano <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong><br />
São Boaventura, intitulado “Da Imaginativa”, on<strong>de</strong> fizemos uma apresentação<br />
biográfica mais alongada e com uma perspectiva mais positiva.<br />
Na exposição dos dados biográficos <strong>de</strong> Lúlio, ao acrescentar alguns trechos<br />
da autobiografia escrita, no livro já mencionado, ao resumo dos dados<br />
historiográficos da vida <strong>de</strong> Lúlio, queremos convidar o leitor a captar o momento<br />
existencial da vida <strong>de</strong> Lúlio como o <strong>de</strong>stinar-se <strong>de</strong> uma existência toda singular,<br />
insinuado nas autobiografias.<br />
Ano Historiadores <strong>Raimundo</strong> Lúlio 1<br />
1232/33<br />
Nasce <strong>Raimundo</strong> Lúlio, na ilha <strong>de</strong><br />
Maiorca, Reino <strong>de</strong> Aragão.<br />
1246/47<br />
Adolescência <strong>de</strong> Lúlio. Com 14 anos<br />
atua como pajem do Príncipe Jaime,<br />
filho <strong>de</strong> Jaime I.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, Lúlio torna-se senescal do<br />
mesmo príncipe.<br />
Estando como senescal e mordomo do ilustre senhor rei<br />
<strong>de</strong> Maiorca, como fosse na plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua juventu<strong>de</strong> e<br />
bom na arte <strong>de</strong> trovar e compor canções e jograis sobre<br />
as loucuras <strong>de</strong>ste mundo, estava uma noite diante <strong>de</strong><br />
seu quarto sobre o canto <strong>de</strong> sua cama, imaginando e<br />
compondo uma vã canção, e escrevendo-a em (língua)<br />
vulgar para uma namorada, que naquele momento<br />
amava com um amor vil e feiticeiro, assim tinha todo o<br />
seu entendimento pronto e ocupado em pensar e<br />
escrever aquela vã canção. (LLULL, 1948, p. 48)<br />
1254/55<br />
Casa-se com Blanca Picany. Desta<br />
união nascem 2 filhos: <strong>Do</strong>mingos e<br />
Madalena.<br />
Lúlio nunca citou sua esposa em seus escritos. Somente<br />
fala <strong>de</strong> seu filho <strong>Do</strong>mingos. (HILLGARTH, 2001)<br />
1 Os fragmentos transcritos aqui, em português, são tradução nossa da edição bilíngüe em catalão e<br />
latim, do Livro Vita Coetânea (Em latim: Vita Beati Raymundi Lulli – Em catalão: Vita Coetania),<br />
publicada pela Biblioteca <strong>de</strong> Autores Cristianos (BAC), na secção VIII, da coleção Literatura e Arte,<br />
publicada em 1948.<br />
9
1263<br />
Após uma gran<strong>de</strong> crise espiritual, Lúlio<br />
converte-se.<br />
Parte em peregrinações.<br />
Deci<strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar sua vida à conversão<br />
dos infiéis e a divulgação da fé<br />
católica, aspirando à coroa do martírio.<br />
Toma o habito <strong>de</strong> penitente.<br />
Pelas repetidas aparições, ele cogitou espantadamente<br />
que <strong>de</strong>sejava asseverar aquelas visões tão repetidas, e<br />
o estímulo da consciência lhe dizia que Nosso Senhor<br />
Deus Jesus Cristo não <strong>de</strong>sejava outra coisa senão que<br />
ele <strong>de</strong>ixasse o mundo e se doasse totalmente a seu<br />
serviço. (LLULL, 1948, p. 49)<br />
E <strong>de</strong> fato, <strong>de</strong>ixada uma parte dos bens para sustento da<br />
mulher e infantes, partiu à Igreja <strong>de</strong> São Tiago <strong>de</strong><br />
Compostela e à Nossa Senhora <strong>de</strong> Rocatallada, e a<br />
diversos lugares santos, para suplicar a Nosso Senhor<br />
que o enveredasse naqueles três propósitos que havia<br />
<strong>de</strong>cidido cumprir. (LLULL, 1948, p. 51)<br />
E <strong>de</strong> fato, estando em Maiorca, colocou (<strong>de</strong> lado) todas<br />
as superfluida<strong>de</strong>s das vestes que costumava usar,<br />
vestiu-se <strong>de</strong> um hábito honesto e da mais grossa<br />
fazenda que encontrou, e com aquele hábito se entregou<br />
ao estudo da gramática. (LLULL, 1948, p. 51)<br />
Compra um escravo árabe, para<br />
ensinar-lhe a língua dos mouros.<br />
Mais adiante comprou um mouro, para que <strong>de</strong>le pu<strong>de</strong>sse<br />
apren<strong>de</strong>r a língua arábica ou mourisca. (LLULL, 1948, p.<br />
51)<br />
1264-74<br />
Começa a estudar a filosofia árabe e a<br />
filosofia judaica, fazendo uma síntese<br />
com a escolástica da época.<br />
Início da produção literária.<br />
Deliberou ir ao gran<strong>de</strong> Estudo <strong>de</strong> Paris, para lá apren<strong>de</strong>r<br />
gramática e outras ciências, e assim, e com a ajuda do<br />
Senhor, pu<strong>de</strong>sse concluir o seu santo propósito. Mas<br />
seus amigos e familiares e principalmente mestre<br />
Ramon <strong>de</strong> Penyafort, da or<strong>de</strong>m do glorioso Patriarca<br />
São <strong>Do</strong>mingo, lhe impediram e convenceram para que<br />
não fosse embora; antes retornasse à sua cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Maiorca. (LLULL, 1948, p. 51)<br />
1274 / 75<br />
Retira-se para o monte Randa – ARS<br />
MAGNA.<br />
Suas obras são investigadas por um<br />
teólogo Franciscano.<br />
Fundação do Colégio em Miramar,<br />
on<strong>de</strong> missionários po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>dicarse<br />
ao estudo <strong>de</strong> línguas e da Arte.<br />
Designa um procurador para cuidar <strong>de</strong><br />
seus bens. Dedica-se ao Colégio <strong>de</strong><br />
Miramar.<br />
Subiu no alto <strong>de</strong> uma montanha chamada Randa, que<br />
não ficava muito longe <strong>de</strong> sua casa, para que lá melhor<br />
pu<strong>de</strong>sse pregar e servir a Nosso Senhor. E como<br />
permanecesse lá por quase oito dias, um dia estava<br />
contemplando e com os olhos voltados para o céu, num<br />
instante lhe veio uma iluminação divina, mostrando a<br />
or<strong>de</strong>m e forma <strong>de</strong> escrever os ditos livros contra os erros<br />
dos infiéis. (LLULL, 1948, p. 53)<br />
Depois disto, como o senhor rei <strong>de</strong> Maiorca tinha ouvido<br />
dizer que o dito reverendo mestre havia composto certos<br />
livros, transmitiu (uma mensagem) para que ele viesse a<br />
Montpellier. E como ele foi até lá, o senhor rei pediu a<br />
um mestre em teologia, fra<strong>de</strong> menor, que examinasse os<br />
ditos livros, especialmente as meditações que ele havia<br />
elaborado. O fra<strong>de</strong> às recebeu e examinou com gran<strong>de</strong><br />
admiração e reverência. (LLULL, 1948, p. 55)<br />
Suplicou ao dito senhor rei que fosse construído<br />
monastério no reino <strong>de</strong> Maiorca, dotado <strong>de</strong> posses, on<strong>de</strong><br />
pu<strong>de</strong>ssem viver treze fra<strong>de</strong>s e lá apren<strong>de</strong>r a língua<br />
mourisca para converter os infiéis. E para o sustento<br />
<strong>de</strong>stes fra<strong>de</strong>s, todos os anos, fossem dados quinhentos<br />
florins <strong>de</strong> ouro. (LLULL, 1948, p. 55)<br />
10
1276<br />
Com o consentimento da esposa, para<br />
realizar seus projetos, <strong>de</strong>ixa<br />
<strong>de</strong>finitivamente a vida matrimonial.<br />
Pedro <strong>de</strong> Cal<strong>de</strong>s, cidadão <strong>de</strong> Maiorca, parente da dita<br />
Blanca, sem qualquer retribuição <strong>de</strong> encarregou <strong>de</strong><br />
cuidar dos bens <strong>de</strong> <strong>Raimundo</strong>. Outorgando-lhe plenos<br />
po<strong>de</strong>res para reger, governar, reclamar e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os<br />
ditos bens nos tribunais e fora <strong>de</strong>les, em juízo e fora <strong>de</strong><br />
juízo. “Conseqüentemente, eu, Pedro Galcerán,<br />
recebendo <strong>de</strong> vós a mencionada curadoria dos ditos<br />
bens, prometo reger, governar e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os ditos bens<br />
tanto quanto posso, e por isso obrigo, etc., juro e dou<br />
como avalista <strong>Do</strong>m Pero Cuc”. (HILLGARTH, 2001)<br />
1287<br />
Vai a Roma ter com o papa, mas ao<br />
chegar o Papa Honório IV (1285-1287)<br />
havia falecido.<br />
Retorna a Paris, on<strong>de</strong> é autorizado a<br />
lecionar sua Arte na Universida<strong>de</strong>. (O<br />
livro das Maravilhas, O Livro das<br />
Bestas)<br />
Foi o dito reverendo mestre ao santo pai e aos car<strong>de</strong>ais<br />
para obter que fossem construídos monastérios pelo<br />
mundo on<strong>de</strong> se apren<strong>de</strong>ssem diversas línguas para<br />
converter os infiéis; e ao chegar na corte, encontrou o<br />
santo pai que naquele momento havia acabado <strong>de</strong><br />
morrer; por isso, <strong>de</strong>ixou a corte, tornou o caminho <strong>de</strong><br />
Paris, com o propósito e intenção <strong>de</strong> ler e transmitir a<br />
Arte publicamente, que Nosso Senhor havia lhe<br />
comunicado. (LLULL, 1948, p. 55)<br />
1289<br />
Vai ensinar em Paris, mas suas idéias<br />
não foram bem aceitas pelos<br />
universitários.<br />
Vai para Montpellier, on<strong>de</strong> retoma<br />
seus trabalhos.<br />
Em Paris, leu publicamente na escola do mestre Britolt,<br />
chanceler do dito Estudo. E, como lá ficou por longo<br />
tempo e vendo a forma do Estudo, <strong>de</strong>cidiu voltar para<br />
Montpellier. Lá or<strong>de</strong>nou e escreveu um outro livro, que<br />
chamou <strong>de</strong> Arte <strong>de</strong> trobar veritat. (LLULL, 1948, p. 56)<br />
1291 / 92<br />
Vai ao Papa Nicolau IV (1288-1292),<br />
com um plano <strong>de</strong> conquista da Terra<br />
Santa, mas o Papa não lhe dá<br />
atenção.<br />
Parte para Gênova, no intuito <strong>de</strong><br />
embarcar para terras sarracenas e<br />
pregar aos infiéis.<br />
Porém, temendo a morte, em meio a<br />
uma gran<strong>de</strong> crise espiritual,<br />
permanece em Gênova ensinando sua<br />
Arte pela região.<br />
Decidiu partir para a corte romana para conseguir a<br />
construção dos monastérios que tanto <strong>de</strong>sejava; mas<br />
como da corte romana não sentiu resposta, pelos<br />
gran<strong>de</strong>s obstáculos que lá percebeu, <strong>de</strong>cidiu ir à Gênova<br />
para que <strong>de</strong> lá pu<strong>de</strong>sse passar para a Berbéria mais<br />
facilmente para provar se só po<strong>de</strong>ria conseguir alguma<br />
coisa disputando e mostrando aos árabes, com a Arte<br />
que Nosso Senhor Lhe havia inspirado, provando a<br />
santa encarnação do Filho <strong>de</strong> Deus, a Santa Trinda<strong>de</strong>, a<br />
qual os infiéis não acreditam. (LLULL, 1948, p. 56)<br />
Quando chegou em Gênova, prontamente divulgaram<br />
que ele <strong>de</strong>sejava ir à Berbéria; e, <strong>de</strong> fato, o povo tinha<br />
confiança que Nosso Senhor Deus faria gran<strong>de</strong>s<br />
maravilhas pelas mãos <strong>de</strong>le, pois tinham ouvido que<br />
Nosso Senhor Lhe havia inspirado naquela montanha.<br />
Pois, estando ele neste santo propósito, como aí existia<br />
uma passagem pela Berbéria, e o dito reverendo mestre<br />
já havia recolhido seus livros, sobreveio-lhe uma<br />
tentação muito forte, porque o seu pensamento lhe dizia,<br />
assim realmente como se ele o visse, que quando<br />
estivesse na Berbéria, sem <strong>de</strong>ixá-lo disputar nem pregar,<br />
os mouros o apedrejariam, ou ao menos colocariam-no<br />
em cárcere perpétuo; <strong>de</strong> que teve gran<strong>de</strong> temor, assim<br />
se lembrou <strong>de</strong> São Pedro; e o dito reverendo mestre, por<br />
este temor não se moveu aquela vez, obrigado por<br />
Nosso Senhor, ao qual nesse momento não suportaria.<br />
(LLULL, 1948, p. 56)<br />
11
Mas, como poucos dias <strong>de</strong>pois uma barca se preparava<br />
para ir ao mesmo dito lugar <strong>de</strong> Túnis, contra a vonta<strong>de</strong><br />
dos seus amigos, se colocou <strong>de</strong>ntro da barca trazendo o<br />
que tinha <strong>de</strong> melhor, e imediatamente içaram as velas e<br />
saíram do porto para que não fosse impedido outra vez<br />
pelos seus amigos. (LLULL, 1948, p. 61)<br />
1293<br />
Refeito da crise, parte para a Tunísia.<br />
É aprisionado e con<strong>de</strong>nado à pena<br />
capital, por <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r publicamente a fé<br />
católica.<br />
Por intervenção <strong>de</strong> um “gran<strong>de</strong><br />
mouro”, a pena é comutada pelo rei.<br />
Lúlio é expulso do pais. Então,<br />
refugiado em um navio genovês,<br />
<strong>de</strong>sembarca em Nápoles.<br />
E, como finalmente o dito reverendo mestre com as suas<br />
razões começou a estudar sobre os pensamentos e<br />
entendimentos dos infiéis, seguiu-se que um dos infiéis,<br />
pensando que se aquelas razões tão altas, tão<br />
maravilhosas e tão necessárias fossem manifestadas, a<br />
sua seita seria totalmente exterminada e <strong>de</strong>struída,<br />
assim, <strong>de</strong>nunciou o mestre ao seu rei, solicitando que o<br />
dito cristão morresse por morte cruel. Sobre as coisas<br />
ditas acima, o rei convocou seu conselho, que<br />
<strong>de</strong>terminou, pela maioria, que o reverendo mestre<br />
<strong>de</strong>veria morrer.<br />
Mas Nosso Senhor Deus, que não permite que seus<br />
servos corram tais perigos, quis que ainda fosse servido<br />
pelo dito reverendo mestre em coisas maiores. Assim,<br />
colocou um entendimento num gran<strong>de</strong> mouro que,<br />
contra a opinião e conselho <strong>de</strong> todos os outros, disse<br />
tais palavras:<br />
“— Não convém a um tão alto príncipe e rei como tu és,<br />
dar tal juízo e sentença a alguém que, por exaltar a sua<br />
lei, se metesse neste perigo: porque seguir-se-ia que se<br />
um dos nossos andasse entre os cristãos para convertêlos<br />
à nossa lei, assim mesmo o matariam uma tal morte;<br />
e, por conseqüência, não se encontrariam mouros que<br />
daqui em diante quisessem converter os infiéis à nossa<br />
lei, isto seria contra a nossa lei e em <strong>de</strong>rrogação<br />
daquela.”<br />
Boas palavras disse o mouro, que, por <strong>de</strong>terminação do<br />
rei, o conselho foi revogado e <strong>de</strong>terminaram que<br />
<strong>Raimundo</strong> fosse expulso do reino <strong>de</strong> Túnis; e o tiraram<br />
do cárcere para conduzi-lo a uma nau <strong>de</strong> genoveses,<br />
tantos foram os golpes, bofetadas e pedradas que não<br />
se pu<strong>de</strong>ram contar. (LLULL, 1948, p. 65)<br />
1297-01<br />
Segunda estadia em Paris, on<strong>de</strong> se<br />
insere no acirrado embate com os<br />
pensadores averroístas.<br />
Escreve o “Livro da Lamentação da <strong>Filosofia</strong>”.<br />
1302<br />
Lúlio vai a Chipre, com a idéia <strong>de</strong> atrair<br />
o rei Henrique II, para seus projetos,<br />
porém acaba fracassando.<br />
Estando lá, suplicou ao rei <strong>de</strong> Chipre que exigisse em<br />
sua pregação a presença <strong>de</strong> alguns hereges que se<br />
encontravam em sua terra, oferecendo-lhe que <strong>de</strong>pois<br />
ele passaria ao sultão da Babilônia e ao rei da Síria e do<br />
Egito, para instruí-los na santa fé católica; para o que o<br />
rei <strong>de</strong> Chipre não <strong>de</strong>u atenção. (LLULL, 1948, p. 69)<br />
12
1302/03<br />
Lúlio adoece e refugia-se na casa do<br />
Grão Mestre dos Templários, Jaques<br />
du Bourgogne <strong>de</strong> Molay (1293-1314),<br />
em Famagusta (Chipre).<br />
Foi tomado por uma doença corporal. E, como tinha<br />
duas pessoas que o serviam, isto é, um capelão e um<br />
rapaz, maldosos, instigados pelo espírito mal,<br />
envenenaram o dito reverendo mestre, o que, o dito<br />
reverendo mestre soube e com gran<strong>de</strong> humilda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>spediu-os. (LLULL, 1948, p. 69)<br />
E mudando-se para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Famagusta, on<strong>de</strong> foi<br />
alegremente recebido pelo mestre do Templo, que<br />
estava na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Limiso. Este o recebeu em sua casa<br />
até que ele houvesse recobrado a saú<strong>de</strong>. (LLULL, 1948,<br />
p. 69)<br />
1303<br />
Em 14 <strong>de</strong> novembro, assiste à<br />
coroação do novo Papa, Clemente V<br />
(1305-1314), em Lyon, a quem, em<br />
vão dirige suas petições.<br />
Passa a receber uma pensão do Rei<br />
Jaime II.<br />
No tempo do papa Clemente V, o reverendo mestre saiu<br />
da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris e foi até o santo pai, suplicando-lhe<br />
que construísse diversos monastérios, on<strong>de</strong> se<br />
apren<strong>de</strong>ssem diversas línguas para pregar aos infiéis a<br />
santa fé católica, assim como Nosso Senhor havia<br />
mandado aos apóstolos. (...) <strong>Do</strong> que (tanto) o santo pai<br />
com(o) os car<strong>de</strong>ais fizeram pouco caso e até ânsia.<br />
(LLULL, 1948, p. 71)<br />
1307<br />
Segunda missão <strong>de</strong> Lúlio, <strong>de</strong>sta vez<br />
vai à Argélia, levando seus livros, no<br />
intuito <strong>de</strong> converter os Sarracenos.<br />
Mais uma vez é preso e expulso do<br />
país.<br />
Na viagem <strong>de</strong> volta, seu navio<br />
naufraga próximo a Pisa. Lúlio salvase,<br />
mas per<strong>de</strong> suas obras que, graças<br />
as cópias <strong>de</strong>ixadas por on<strong>de</strong> ele<br />
passava, se conservaram.<br />
Apoiado pela cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pisa, pelos<br />
Genoveses e por Jaime II, dirige ao<br />
Papa Clemente V um projeto para uma<br />
cruzada, no intuito <strong>de</strong> tomar a Terra<br />
Santa. Porém não é ouvido.<br />
Como a nau foi para Gênova e estivesse já próxima <strong>de</strong><br />
Porto Pisano, aconteceu em alto mar uma gran<strong>de</strong><br />
tempesta<strong>de</strong>, <strong>de</strong> que a nau naufragou e muitos morreram,<br />
alguns escaparam com a ajuda <strong>de</strong> Nosso Senhor Deus,<br />
entre sobreviventes estava o dito reverendo mestre e um<br />
companheiro, que escaparam com a barca, perdidos<br />
porém os livros e a roupa. (LLULL, 1948, p. 73)<br />
Vindo à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pisa, foi muito honradamente<br />
recebido pelos cidadãos, entre os quais um o recebeu<br />
em sua casa. E estando lá, o reverendo mestre, mesmo<br />
sendo muito velho, não cessava <strong>de</strong> servir a seu Criador;<br />
pelo que, estando lá, or<strong>de</strong>nou a Arte geral última, ao<br />
conhecimento e inteligência <strong>de</strong> que pertencem aqueles<br />
que se <strong>de</strong>dicam a estudar e que não <strong>de</strong>sejam vanglória,<br />
mas só o amor e honra <strong>de</strong> Nosso Senhor. (LLULL, 1948,<br />
p. 75)<br />
Cumprida a dita Arte e muitos outros livros, propôs no<br />
conselho dos comuns em Pisa que seria bom que<br />
alguns citadinos seus se fizessem cavaleiros <strong>de</strong> Jesus<br />
Cristo para conquistar a Terra Santa. De fato o<br />
(conselho) comum, e graças as suas preces, escreveu<br />
ao santo pai e aos car<strong>de</strong>ais sobre aquelas idéias. Assim,<br />
indo a Gênova, impetrou semelhantes letras; e, <strong>de</strong> fato,<br />
muitas pessoas <strong>de</strong>votas lhe fizeram gran<strong>de</strong>s ofertas por<br />
aquela iniciativa, conseguiu mais <strong>de</strong> trinta milhões <strong>de</strong><br />
florins em ofertas somente <strong>de</strong> Gênova. E, partindo <strong>de</strong> lá,<br />
foi a Avignon, on<strong>de</strong> estava o santo pai, para apresentarlhe<br />
a proposta e ter uma boa conclusão. Porém, viu que<br />
com ele não podia ter nenhum resultado. (LLULL, 1948,<br />
p. 75)<br />
13
1309-11<br />
Quarta estadia <strong>de</strong> Lúlio em Paris. Luta<br />
acirrada contra o averroísmo. Nesta<br />
época escreve o “Livro da Lamentação<br />
da <strong>Filosofia</strong>”.<br />
De lá foi à Paris, on<strong>de</strong> publicamente leu a sua Arte e<br />
muitos outros livros, que havia escrito em tempos<br />
passados. Mas vinham ouvi-lo não somente estudantes,<br />
mas uma gran<strong>de</strong> multidão <strong>de</strong> mestres, que afirmaram<br />
que a santa ciência e doutrina era corroborada não<br />
somente por razões da filosofia, mas ainda por princípios<br />
e regras da santa teologia. (LLULL, 1948, p. 75)<br />
1311<br />
Com 80 anos, assiste ao Concílio <strong>de</strong><br />
Vienne. É ouvido pelo Papa e pelos<br />
Car<strong>de</strong>ais; parte <strong>de</strong> seus pedidos são<br />
atendidos.<br />
O Concílio promove uma cruzada à<br />
Terra Santa, or<strong>de</strong>na a criação <strong>de</strong><br />
cátedras <strong>de</strong> grego, árabe, hebraico e<br />
cal<strong>de</strong>u nas Universida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Paris,<br />
Bolonha, Oxford e Salamanca.<br />
Depois disso, sabendo o reverendo mestre que o santo<br />
pai Clemente <strong>de</strong>veria reunir o Concílio na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Vienne no ano <strong>de</strong> Nosso Senhor <strong>de</strong> 1311, <strong>de</strong>cidiu ir ao<br />
Concílio para propor três coisas à honra, reverência e<br />
aumento da santa fé católica. A primeira, que fossem<br />
construídos lugares on<strong>de</strong> as pessoas <strong>de</strong>votas e <strong>de</strong> alta<br />
inteligência estudassem línguas para que em todas<br />
nações pu<strong>de</strong>ssem pregar o Santo Evangelho; a<br />
segunda, que a todos os cavaleiros cristãos fosse dado<br />
a or<strong>de</strong>m continuamente trabalhassem para conquistar a<br />
Terra Santa; a terceira, que, contra a opinião <strong>de</strong> Averróis<br />
— que em muito têm sido um adversário da santa fé<br />
católica — fosse provido pelos homens <strong>de</strong> ciência a<br />
composição <strong>de</strong> livros contra os erros e contra todos<br />
aqueles que têm a opinião, e por isso ele fez um livro<br />
que é chamado Liber <strong>de</strong> natali Pueri, on<strong>de</strong> promete<br />
apresentar razões tanto filosóficas como teológicas<br />
contra os erros. Assim tem feito em diversos livros seus,<br />
porque o dito reverendo mestre, servidor <strong>de</strong> Nosso<br />
Senhor Deus, e manifestante da verda<strong>de</strong>, tem feito mais<br />
<strong>de</strong> cento e vinte e três volumes <strong>de</strong> livros pela honra da<br />
Santa Trinda<strong>de</strong>. (LLULL, 1948, p. 77)<br />
1312 Fixa residência em Montpellier.<br />
Deste ponto não há mais informações auto-biográficas.<br />
(HILLGARTH, 2001)<br />
Embarca para a Sicília, <strong>de</strong> lá ruma<br />
para Messina.<br />
1313-16<br />
Retorna a sua ilha natal. Embarca<br />
mais uma vez para a Tunísia.<br />
Na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bugia, é apedrejado<br />
ficando quase morto. Genoveses que<br />
rumavam para a Europa, recolheramno.<br />
1316<br />
Por volta <strong>de</strong> janeiro, morre aos 84<br />
anos.<br />
Foi sepultado num convento dos<br />
Fra<strong>de</strong>s Menores, em Palma <strong>de</strong><br />
Maiorca, on<strong>de</strong> até hoje repousam seus<br />
restos mortais.<br />
Segundo uma lenda local, morreu na viagem <strong>de</strong> volta,<br />
próximo às costas <strong>de</strong> sua ilha natal, Maiorca.<br />
(HILLGARTH, 2001)<br />
14
1.2 OBRAS<br />
A produção literária <strong>de</strong> Lúlio é muito vasta e abrangente, o catálogo 2 mais<br />
recente, <strong>de</strong> Anthony Bonner, conta 265 obras, sendo 244 latinas. Encontramos<br />
escritos nos mais diversos campos do conhecimento, como medicina, direito,<br />
filosofia e teologia. Assim, <strong>Raimundo</strong> Lúlio é, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> São Alberto Magno, o maior<br />
polígrafo medieval. De suas obras, somente a meta<strong>de</strong> está organizada em edições<br />
críticas e existem pouquíssimas traduções <strong>de</strong>las para línguas mo<strong>de</strong>rnas.<br />
Recordamos que Lúlio escreveu em latim, língua dos intelectuais contemporâneos,<br />
em árabe 3 e em catalão. Lúlio é o único autor medieval conhecido que consi<strong>de</strong>rou as<br />
realida<strong>de</strong>s lingüísticas <strong>de</strong> seus leitores, escrevendo livros próprios para cada cultura.<br />
Em 1325, Le Myésier, discípulo <strong>de</strong> <strong>Raimundo</strong>, recolheu parte dos volumes<br />
latinos e catalães que Lúlio <strong>de</strong>ixara dispersos. O lulismo se esten<strong>de</strong>u até o século<br />
XVII, mesmo sob a perseguição do inquisidor Nicolau <strong>de</strong> Eymerich, no século XIV,<br />
que <strong>de</strong>ixou diversas marcas, principalmente nas esferas eclesiásticas. O estudo do<br />
Lulismo cresceu muito durante o renascimento, espalhando-se pela Europa, por isso<br />
encontramos “bibliotecas lulianas” em Paris, Gênova, Maiorca, Barcelona e Roma.<br />
Graças a Nicolau <strong>de</strong> Cusa e sua admiração pela ontologia funcionalista, muitas<br />
obras foram encontradas na Alemanha.<br />
O estudo do lulismo permaneceu oculto por muito tempo; porém, a partir do<br />
século passado, com Ivo Salzinger, ele veio novamente à luz. Salzinger editou o<br />
Corpus Lullianum Latinum. Foi atraído para o lulismo pelas tentativas empreendidas<br />
por Leibniz para renovar a Arte universal <strong>de</strong> Lúlio. A edição do Corpus Lullianum<br />
Latinum reascen<strong>de</strong>u na Alemanha e em Maiorca a atração pelas obras <strong>de</strong> Lúlio.<br />
Em 1906, Mateus Obrador, em Palma <strong>de</strong> Maiorca, inicia a edição das obras<br />
catalãs, o trabalho tem continuida<strong>de</strong> com Salvador Galmés. Nos anos trinta, fundouse<br />
a Maioricensis Schola Lullistica, que concentrou a edição das obras catalãs. Por<br />
ela foi publicada a coleção: Obres <strong>de</strong> Ramon Llull com 21 volumes. Atualmente, está<br />
2 Chamado Catálogo cronológico das obras <strong>de</strong> Ramon Llull. Está publicado em: LLULL, Ramon.<br />
Obres selectes <strong>de</strong> Ramon Llull (1232-1316). Edição <strong>de</strong> Antony Bonner. Mallorca: Editorial Moll. 1989.<br />
v.2. p. 539-589.<br />
3 Destas obras, contudo, não se tem o mínimo rastro. Talvez porque algumas se per<strong>de</strong>ram com os<br />
anos, outras, porém, po<strong>de</strong>m estar nas bibliotecas do Islã, não sendo fácil o acesso dos cristãos.<br />
15
sendo publicada pelo Patronat Ramon Llull, em Palma <strong>de</strong> Maiorca, a coleção<br />
NEORL – Nova Edició <strong>de</strong> les obres <strong>de</strong> Ramon Llull, até o momento com 4 volumes.<br />
Ludwig Klaiber, bibliotecário da Biblioteca Universitária <strong>de</strong> Friburgo i.Br,<br />
Alemanha, co-fundador da escola Maioricensis Schola Lullistica, apresentou a<br />
Frie<strong>de</strong>rich Stengmüller, o projeto da edição das obras latinas. Então, com o apoio do<br />
Conselho da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Teologia, erigiu um centro <strong>de</strong> pesquisa luliana, o<br />
Raimundus-Lullius-Institut, que, oficialmente, começou a funcionar em 1957. Pelo<br />
<strong>Instituto</strong>, até a presente data, foram publicados 27 volumes da coleção “ROL –<br />
Raimundi Lulli Opera Latina”.<br />
Lúlio escreveu também em língua árabe; <strong>de</strong>stas obras, contudo, não se tem<br />
o mínimo rastro. Talvez porque algumas se per<strong>de</strong>ram com os anos, outras, porém,<br />
po<strong>de</strong>m estar nas bibliotecas do Islã, não sendo fácil o acesso dos cristãos. 4<br />
1.2.1 Atual investigação das obras lulianas<br />
Existe, hoje, dois centros <strong>de</strong> estudos Lulianos: um em Friburgo i.Br,<br />
Alemanha, on<strong>de</strong> se edita o ROL, e o outro em Palma <strong>de</strong> Maiorca, on<strong>de</strong> se edita o<br />
NEORL. Em Friburgo i.Br concentra-se a edição crítica das obras latinas e em Palma<br />
<strong>de</strong> Maiorca a das obras catalãs.<br />
Ivo Salzinger iniciou a edição crítica das obras latinas <strong>de</strong> Lúlio, publicando<br />
somente 48 das 244 obras latinas que constam no catálogo <strong>de</strong> Bonner. Seu trabalho<br />
não é consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong> valor crítico, pois se comparada com outras edições e com os<br />
manuscritos, percebe-se inúmeras obras <strong>de</strong> proveniência duvidosa, que são<br />
consi<strong>de</strong>radas apócrifas, ou simplesmente atribuídas a <strong>Raimundo</strong>. Contudo, qualquer<br />
um, ao aproximar-se das obras latinas <strong>de</strong> Lúlio remete-se às obras editadas por<br />
Salzinger como referência editorial e como inspiração.<br />
Constituíram-se dois centros <strong>de</strong> investigação luliana: um para as obras<br />
catalãs e outro para as obras latinas. Muitas obras existem, tanto em catalão como<br />
em latim, pois o próprio autor as traduzia. Algumas, contudo, existem em catalão ou<br />
em latim. Não raras vezes a mesma obra aparece nas duas edições.<br />
4 Aqui trazemos um resumo das edições críticas das obras <strong>de</strong> Lúlio. Abrimos, assim, a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um estudo mais avançado.<br />
16
1.2.1.1 ROL (Raimundi Lulli Opera Latina)<br />
Em 1957, em Friburgo i.BR, sob os cuidados <strong>de</strong> Stengmüller, reiniciou-se a<br />
edição das obras latinas. Deste trabalho surgiu o Raimundi Lulli Opera Latina - ROL,<br />
atualmente constituído por 27 volumes. No ROL encontra-se obras latinas<br />
compostas durante toda a vida <strong>de</strong> Lúlio, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus estudos em Maiorca até o<br />
período em que estava na Tunísia, on<strong>de</strong> publicou seu último opúsculo. Esta coleção<br />
conseguiu editar mais <strong>de</strong> 150 das 265 obras conhecidas <strong>de</strong> Lúlio.<br />
1.2.1.2 NEORL (Nova Edició <strong>de</strong> les Obres <strong>de</strong> Ramon Llull)<br />
A edição catalã, <strong>de</strong> Mateus Obrador e Salvador Galmés, conhecida por ORL<br />
– “Obres <strong>de</strong> Ramon Llull”, publicou 83 obras <strong>de</strong> Lúlio. Sendo 48 publicadas por<br />
Salvador Galmés e 35 por Mateus Obrador.<br />
Atualmente, sobre a direção <strong>de</strong> Anthony Bonner, iniciou-se a uma nova<br />
edição das obras catalãs. Essa edição, chamada NEORL, segue minuciosamente os<br />
mo<strong>de</strong>rnos critérios científicos para a edição crítica. Até o momento o NEORL<br />
publicou 4 volumes.<br />
1.2.2 O Lulismo no Brasil<br />
No Brasil, o <strong>Instituto</strong> <strong>Brasileiro</strong> <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> e Ciência <strong>Raimundo</strong> Lúlio, com<br />
se<strong>de</strong> na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, <strong>de</strong>dica-se ao estudo e divulgação do lulismo.<br />
Pesquisadores ligados a este <strong>Instituto</strong> vêm traduzindo algumas das obras do<br />
maiorquino. Estas traduções são tanto <strong>de</strong> edições catalãs como latinas. Poucas<br />
estão publicadas como livro. Contudo, há muitas publicações disponíveis na Internet,<br />
principalmente no site: .<br />
O IFAN – <strong>Instituto</strong> Franciscano <strong>de</strong> Antropologia, ligado a USF –<br />
Universida<strong>de</strong> São Francisco – Bragança Paulista, publicou em 2001 um volume<br />
intitulado Escritos Antiaverroístas, composto por duas obras: <strong>Do</strong> Nascimento do<br />
Menino Jesus e o “Livro da Lamentação da <strong>Filosofia</strong>”. Tradução feita a partir da<br />
edição latina - ROL.<br />
17
A Editora Escala vem publicando periodicamente alguns opúsculos <strong>de</strong> Lúlio<br />
em português, como livro <strong>de</strong> bolso, <strong>de</strong>stacamos aqui os já publicados: Livro do<br />
Amigo e do Amado, o Livro das Bestas e O Livro dos Mil Provérbios.<br />
18
2 O LIVRO DA LAMENTAÇÃO DA FILOSOFIA<br />
2.1 “LIVRO DA LAMENTAÇÃO DA FILOSOFIA”<br />
Nosso interesse, nesse presente trabalho, se concentra num pequeno<br />
fragmento, no capítulo intitulado “<strong>Do</strong> <strong>Movimento</strong>” e <strong>de</strong> modo provisório e breve no<br />
capítulo seguinte intitulado “<strong>Do</strong> Intelecto” 5 . Assim o capítulo 11, <strong>Do</strong> <strong>Movimento</strong>,<br />
constitui o núcleo e tema <strong>de</strong>sse presente trabalho. O capítulo 12 será apenas<br />
mencionado e comentado, enquanto uma das exemplificações da aplicação do que<br />
foi dito no capítulo 11, <strong>Do</strong> <strong>Movimento</strong>. O interesse <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong>sse capítulo para o<br />
nosso trabalho é que ali aparece, <strong>de</strong> modo expressivo, a originarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lúlio em<br />
interpretar uma doutrina como a do hilemorfismo, <strong>de</strong>ntro da perspectiva grandiosa do<br />
“ontologicum” da <strong>Filosofia</strong> Medieval, <strong>de</strong>nominado “creatio-filiatio”.<br />
O livro on<strong>de</strong> estão estes textos é o “Livro da Lamentação da <strong>Filosofia</strong>”,<br />
escrito por Lúlio durante sua última estadia em Paris (1309-1311), período em que<br />
se empenha em combater o averroísmo.<br />
Trazemos, a guisa <strong>de</strong> informação, rapidamente alguns <strong>de</strong>talhes sobre o livro<br />
“Da Lamentação da <strong>Filosofia</strong>”. Averroísta 6 era o título dado ao filósofo que seguia a<br />
doutrina <strong>de</strong> Averróis 7 (1126-1198). A doutrina averroísta está nos comentários aos<br />
textos <strong>de</strong> Aristóteles, é i<strong>de</strong>ntificada por três pontos principais: a unicida<strong>de</strong> do<br />
5 Um comentário mais <strong>de</strong>talhado e temático acerca do Intelecto, <strong>de</strong>ixamos para um trabalho posterior,<br />
tentando abrir o fundo sobre o qual repousa a doutrina das faculda<strong>de</strong>s da alma: intelecto, vonta<strong>de</strong> e<br />
memória em <strong>Raimundo</strong> Lúlio.<br />
6 João <strong>de</strong> Jandun (128?-1334) teria sido o gran<strong>de</strong> averroísta que Lúlio, pessoalmente, combateu em<br />
Paris. João <strong>de</strong> Jandun, professor na Universida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>fendia que Aristóteles e Averróis completavamse<br />
na formação <strong>de</strong> um sistema único que seria a forma mais requintada <strong>de</strong> filosofia; portanto, <strong>de</strong>veria<br />
segui-los fiel e exclusivamente.<br />
7 Abul-I-Walid Muhamad ibn Ahmad Muhamad ibn Rusd (1126-1198). Gran<strong>de</strong> filósofo e jurisconsulto<br />
<strong>de</strong> língua árabe, nascido em Córdoba, sul da Espanha. Tornou-se famoso, ao ponto <strong>de</strong> ser<br />
consi<strong>de</strong>rado o maior filósofo europeu <strong>de</strong> Língua árabe. Essa fama provém <strong>de</strong> seus comentários aos<br />
textos Aristóteles. <strong>Do</strong>n<strong>de</strong> disseminou-se a máxima: “Aristóteles é o filósofo e Averróis o comentador”.<br />
19
intelecto humano, chamado também <strong>de</strong> monopsiquismo 8 , a eternida<strong>de</strong> do mundo 9 e<br />
a compreensão da dupla verda<strong>de</strong> uma da razão e a outra da fé 10 .<br />
Neste livro, Lúlio investe explicitamente contra a tese averroísta <strong>de</strong> duas<br />
verda<strong>de</strong>s; investe também contra as outras teses, mas estas aparecem, <strong>de</strong> forma<br />
perspicaz, no <strong>de</strong>correr do texto.<br />
São muitos os motivos que levaram Lúlio a escrever esta obra; estes<br />
motivos estão expostos já no Prólogo. O principal, sem dúvida, é a con<strong>de</strong>nação sutil<br />
das teses averroístas. Lúlio parte da divisão que os averroístas, da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Artes, propunham acerca da concepção da existência das duas verda<strong>de</strong>s, e ainda<br />
da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas se contradizerem. Nesta obra, Lúlio insiste em apresentar os<br />
erros <strong>de</strong>sta tese, <strong>de</strong> maneira especial como essa doutrina estava repercutindo na<br />
cisão entre a teologia e a filosofia.<br />
Como já foi dito anteriormente, esse livro teve sua edição crítica latina<br />
realizada pelas Raimundi Lulli Opera Latina. É uma das obras que compõem o<br />
Volume VII da ROL, publicado em 1975, sob o título <strong>de</strong> “Parisiis anno 1311<br />
composita”, hoje faz parte do “Corpus Cristianorum, Medieval Latin Series”, da<br />
Brepols Publicações da Bélgica.<br />
O livro contém os seguintes capítulos:1. 11 Dedicatória ao Rei Felipe, 2.<br />
Prólogo, 3. Da Forma, 4. Da Matéria, 5. Da Geração, 6. Da Corrupção, 7. Da<br />
Elementativa, 8. Da Vegetativa, 9. Da Sensitiva, 10. Da Imaginativa, 11. <strong>Do</strong><br />
<strong>Movimento</strong>, 12. <strong>Do</strong> Intelecto, 13. Da Vonta<strong>de</strong>, 14. Da Memória e 15. <strong>Do</strong> Fim do Livro.<br />
8 O monopsiquismo é combatido por Lúlio no capítulo intitulado: “<strong>Do</strong> Intelecto”, do mesmo “Livro da<br />
Lamentação da <strong>Filosofia</strong>”. De acordo com essa doutrina o intelecto ativo humano é um só para toda a<br />
humanida<strong>de</strong> e não está ligado com a matéria. Pois, segundo Aristóteles, o intelecto é separado,<br />
simples, impassível e inalterável. Se fosse individual, seria individualizado pela matéria – corpo,<br />
portanto incapaz <strong>de</strong> alcançar o universal, o saber. Assim, o monopsiquismo <strong>de</strong>strói as concepções <strong>de</strong><br />
personalida<strong>de</strong>, imortalida<strong>de</strong> individual e <strong>de</strong>stino eterno do homem.<br />
9 Contraria a tese da criação, pois os motores do universo não são causas eficientes, mas sim causas<br />
finais. O movimento do primeiro motor, que assegura a unida<strong>de</strong> para todo o universo, tem uma<br />
relação <strong>de</strong> finalida<strong>de</strong> com os outros motores e não <strong>de</strong> eficiência. Assim, Deus é pensado como<br />
“pensamento <strong>de</strong> pensamento”, ou melhor, ativida<strong>de</strong> necessária e eterna.<br />
10 Segundo Averróis a única verda<strong>de</strong> é a da razão (<strong>Filosofia</strong>); as verda<strong>de</strong>s inscritas nos textos<br />
sagrados são símbolos imperfeitos da verda<strong>de</strong> única que a filosofia encerra e sistematiza. Contudo,<br />
os averroístas latinos, tomando a doutrina <strong>de</strong> Averróis, falam <strong>de</strong> uma “dupla verda<strong>de</strong>”: a verda<strong>de</strong> da<br />
razão e a verda<strong>de</strong> da fé, que muitas vezes se contradizem.<br />
11 Os capítulos foram numerados para facilitar a exposição do livro, essa numeração segue a<br />
seqüência lógica do texto.<br />
20
O conteúdo doutrinário do livro está exposto no <strong>de</strong>correr dos capítulos 3 ao<br />
14. À primeira vista percebemos que os capítulos 3 a 14 seguem a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />
constituição do universo, como os medievais percebiam a realida<strong>de</strong> a partir da<br />
criação. Nessa constituição universal os títulos que caracterizam os capítulos <strong>de</strong> 3 a<br />
14 são chamados por Lúlio <strong>de</strong> princípios. A eles é dado o nome <strong>de</strong> princípios por<br />
não se tratarem <strong>de</strong> coisas, mas sim <strong>de</strong> horizontes ou dimensões a partir e <strong>de</strong>ntro das<br />
quais se tornam possíveis os seguimentos dos entes concretos que povoam o<br />
universo em diferentes estruturações <strong>de</strong> seu ser.<br />
Dentro <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>nação dos princípios, po<strong>de</strong>mos perceber que <strong>de</strong> 3 a 6<br />
formam um todo especial, ao passo que <strong>de</strong> 7 a 14 se apresentam como princípios,<br />
como que resultantes da interação entre 3 e 4 (Matéria-Forma) que se mostram<br />
como princípios estruturantes do chamado <strong>de</strong> geração e corrupção (5 e 6), por meio<br />
dos quais vêm à presença, à realida<strong>de</strong>, as dimensões 7 a 14. De 7 a 14 estão<br />
expostas as dimensões dos entes que usualmente são <strong>de</strong>nominados <strong>de</strong> diferentes<br />
or<strong>de</strong>nações das esferas dos entes, ou das substâncias compostas. São elas:<br />
Elementativa (mundo dos entes não vivos: elementos); Vegetativa (mundo dos entes<br />
orgânico-vivos: plantas); Sensitiva (mundo dos entes sensíveis: animais);<br />
Imaginativa e <strong>Movimento</strong>. Estes dois últimos são princípios que apresentam a<br />
passagem do mundo dos animais para o mundo animal racional, que é o homem e<br />
sua constituição: Intelecto, Vonta<strong>de</strong> e Memória. Assim, nessa escala <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nações<br />
estão os elementos constituintes da assim chamada árvore porfiriana 12 .<br />
Toda essa colocação ontológico-cósmica dos entes no seu ser é<br />
apresentada por Lúlio em forma <strong>de</strong> alegoria, on<strong>de</strong> se dá a explicitação dos<br />
movimentos constitutivos dos entes no seu todo, através do diálogo entre a <strong>Filosofia</strong>,<br />
os princípios, <strong>Raimundo</strong> e as virtu<strong>de</strong>s (Contrição e Satisfação). A filosofia, os<br />
princípios, as virtu<strong>de</strong>s são personificadas em figuras femininas, o movimento e<br />
intelecto são apresentados como figuras masculinas. Este encontro e diálogo se dá<br />
num espaço paradisíaco. Trata-se <strong>de</strong> um lugar on<strong>de</strong> ainda se respira o ar puro da<br />
verda<strong>de</strong> originária, on<strong>de</strong> filosofia e teologia são uma só coisa, e não a atmosfera<br />
poluída, indicando as posições averroístas.<br />
12 Exposta no Apêndice I <strong>de</strong>ste trabalho.<br />
21
2.2 MATÉRIA E FORMA<br />
Tendo apresentado o “Livro da Lamentação da <strong>Filosofia</strong>”, po<strong>de</strong>mos prosseguir<br />
explorando a dinâmica e o movimento da estruturação do mundo das substâncias<br />
compostas cujo ápice é o homem.<br />
Vamos colocar, <strong>de</strong> um modo geral, a doutrina do hilemorfismo, on<strong>de</strong><br />
aparece o pano <strong>de</strong> fundo, sobre o qual po<strong>de</strong>remos, talvez, enten<strong>de</strong>r melhor a<br />
exposição <strong>de</strong> <strong>Raimundo</strong> Lúlio, no capítulo 11, <strong>Do</strong> <strong>Movimento</strong>.<br />
2.2.1 O hilemorfismo - or<strong>de</strong>nação geral do universo<br />
A tradição chamou <strong>de</strong> hilemorfismo a tentativa <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar as diversas<br />
esferas dos entes do universo em suas diferenciações <strong>de</strong> níveis, participação e<br />
intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser, usando para tal o princípio-binômio “matéria-forma”. Essa<br />
compreensão é semelhante ao que no extremo oriente se tentou, e ainda hoje se<br />
tenta, explicar a complexida<strong>de</strong> do universo através do princípio-binômio “Yang-Yin ”13 .<br />
Este modo <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a constituição do universo a partir <strong>de</strong> dois<br />
princípios parece estar difundido nas mais diversas culturas; é possível encontrar<br />
uma compreensão semelhante entre os povos africanos sob a imagem do “Igbáodu”<br />
14 .<br />
13 Nas bases do pensamento oriental, mais propriamente do pensamento chinês, encontra-se o<br />
conceito <strong>de</strong> que tudo é constantemente criado a partir da correlação entre YIN (feminino, pesado,<br />
terra, passivo) e YANG (masculino, leve, céu, ativo). O interessante é que tanto em YIN, como em<br />
YANG, existe a semente para seu oposto. Se observarmos a figura, vemos a perfeita relação entre os<br />
dois princípios e, on<strong>de</strong> a força <strong>de</strong> um se concentra, irrompe a semente para a outra. (CLARK, 1999)<br />
14 O “Igbá-odu” é uma cabaça, símbolo que <strong>de</strong>monstra a compreensão <strong>de</strong> universo no candomblé.<br />
Nessa crença, há dois modos <strong>de</strong> existência: o “orum” o “aiyé” (formal e material). Nada existe que<br />
esteja fora <strong>de</strong>sta dimensão, tudo é criado a partir da união <strong>de</strong> “orum” e “aiyé”. “Orum” diz toda<br />
realida<strong>de</strong> imaterial, impalpável, não limitado, po<strong>de</strong>mos assim fazer uma analogia com a concepção<br />
medieval <strong>de</strong> forma. “Aiyé” diz toda realida<strong>de</strong> material, finita, palpável, po<strong>de</strong>mos ver nele uma<br />
semelhança com a matéria. Para representar este símbolo, o candomblé cunhou a imagem do “Igbáodu”<br />
– a cabaça da existência. O “Igbá-odu” é representada por uma cabaça formada <strong>de</strong> duas<br />
meta<strong>de</strong>s unidas, a meta<strong>de</strong> inferior representa “aiyé”, a meta<strong>de</strong> superior o “orum”. Segundo a crença,<br />
no interior da cabaça está contido todo o universo. Portanto, a existência é consi<strong>de</strong>rada como una,<br />
pois a cabaça é uma só, porém cindida em duas partes inseparáveis, pois se tirarmos uma <strong>de</strong>las a<br />
cabaça se <strong>de</strong>sfaz. Po<strong>de</strong>mos, <strong>de</strong>starte, ver neste mito, uma analogia da compreensão <strong>de</strong> constituição<br />
do universo a partir <strong>de</strong> matéria e forma, ou como no extremo oriente <strong>de</strong> Yang-Yin. (BERKENBROCK,<br />
2003)<br />
22
Hilemorfismo é uma palavra composta por dois termos gregos: “hylé”<br />
traduzido para o latim como matéria e “morphé”, traduzido como forma. Segundo<br />
Logos, Enciclopédia luso-brasileira <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, hilemorfismo é: “Sistema ou doutrina<br />
filosófica, segundo a qual a estrutura última ontológica dos corpos é constituída por<br />
dois componentes ou princípios radicais <strong>de</strong> ser: matéria primordial (“hylé”) e forma<br />
substancial (“morphé” ou “eîdos”)”. (ALVES, 1990, p. 1130)<br />
Este modo <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a constituição universal a partir do hilemorfismo<br />
era muito claro entre os medievais. Hoje, não conseguimos a<strong>de</strong>ntrar nesta<br />
compreensão, visto que a <strong>de</strong>sgastamos <strong>de</strong>mais, não a tratando com sua dignida<strong>de</strong><br />
própria. Assim, tentamos explicar esse princípio-binômio <strong>de</strong> um modo simplório,<br />
dizemos matéria como algo material (em oposição a tudo que não é material), e<br />
forma como se disséssemos fôrma, a modo <strong>de</strong> construção, configuração,<br />
beneficiamento, mo<strong>de</strong>lação, produção 15 .<br />
Pensamos que a concepção <strong>de</strong>ste princípio or<strong>de</strong>nativo da complexida<strong>de</strong><br />
dos entes na constituição do universo vem da maneira artesanal com que os<br />
medievais encaravam a vida e o ente no seu todo. A doutrina do hilemorfismo<br />
per<strong>de</strong>u sua força, passando a ser consi<strong>de</strong>rada como um modo primitivo e ingênuo<br />
<strong>de</strong> conceber a estruturação do universo a partir <strong>de</strong> uma experiência artesanal, da<br />
mundividência <strong>de</strong> uma humanida<strong>de</strong> que vivia e pensava <strong>de</strong>ntro e a partir <strong>de</strong> uma<br />
existência artesanal, que pensava a partir da fabricação <strong>de</strong> artefatos.<br />
Isso certamente não está <strong>de</strong> todo errado, porém diz apenas parte daquela<br />
complexa explicação or<strong>de</strong>nativa que era dada para a estruturação do universo, a<br />
partir da doutrina do hilemorfismo.<br />
A doutrina começa a se encaminhar melhor, se seguirmos um fio condutor<br />
que <strong>de</strong>nomina forma e matéria como causa material e causa formal. Assim,<br />
<strong>de</strong>vemos encarar forma e matéria <strong>de</strong>ntro do conjunto das causas, pelas quais os<br />
medievais dinamizavam e estruturavam uma compreensão or<strong>de</strong>nada do universo.<br />
Assim, as chaves para a leitura do hilemorfismo são: forma, matéria e<br />
causa. Estas três não estão como três realida<strong>de</strong>s dispostas estaticamente uma ao<br />
lado da outra, mas formam momentos dinâmicos <strong>de</strong> uma constituição. A dinâmica <strong>de</strong><br />
15 No caso <strong>de</strong> um artefato <strong>de</strong> argila, um prato, dizemos que argila é a matéria, enquanto a<br />
configuração <strong>de</strong> prato enten<strong>de</strong>-se por forma.<br />
23
matéria mais forma constitui a causa. Dessarte, causa é o princípio dinâmico que<br />
rege, caracteriza e estrutura as diferentes esferas ou regiões do ser.<br />
Nem a forma nem a matéria são por si; ambas são a partir <strong>de</strong> outro, ou seja<br />
“ab alio”. A matéria não po<strong>de</strong>ria ser se <strong>de</strong> algum modo não fosse in-formada; por<br />
mais provisório que seja, só existe matéria mediante a ação da forma. A forma,<br />
todavia, necessita da matéria para po<strong>de</strong>r ser factual, real, para que em in-formando<br />
a matéria possa se manter e permanecer como forma.<br />
Numa or<strong>de</strong>nação, entre ambas existe uma acentuação preferencial na<br />
forma, pois seu modo <strong>de</strong> ser exerce uma priorida<strong>de</strong> em relação à matéria. Pois nos<br />
diversos níveis <strong>de</strong> participação do ser, a forma está mais próxima ao ser, tem maior<br />
comunicação do ser do que a matéria. Isto é, quanto mais forma, tanto mais ser. É a<br />
forma que nos diz o que cada ente é <strong>de</strong>ntro da constituição do universo.<br />
“A forma é o ente que dá o ser à coisa” (LÚLIO, 2001, p.125). Em sua<br />
relação com a matéria, a forma se torna dinâmica, princípio, causa para a<br />
atualida<strong>de</strong>, para a realida<strong>de</strong>, para o ser dos entes. A princípio, a forma tem a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação como proprieda<strong>de</strong> das coisas materiais. Contudo,<br />
como princípio <strong>de</strong>terminante da matéria, a forma vai aos poucos constituindo níveis<br />
diferentes, cada vez mais altos. Nesse sentido é que os medievais diferenciavam<br />
níveis da forma, por meio da causa. Então, compreendiam vários níveis formais:<br />
causa formal, causa final e causa eficiente. De um lado temos a matéria (o princípio<br />
passivo – causa material) e <strong>de</strong> outro lado os três níveis formais: causa formal, causa<br />
final e causa eficiente (princípios ativos).<br />
A tradição filosófica remete essa doutrina das causas a Aristóteles, que teria<br />
apresentado 4 causas divididas em: causa material, causa formal, causa final e<br />
causa eficiente. Como já dissemos, nossa tendência é ver a relação das quatro<br />
causas como uma relação produtiva, no sentido <strong>de</strong> fabricação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado<br />
artefato. Nesse sentido, a doutrina do hilemorfismo passou a ser consi<strong>de</strong>rada como<br />
ingênua e primitiva. Acabamos por compreen<strong>de</strong>r toda a doutrina hilemórfica numa<br />
relação <strong>de</strong> causas, ao modo <strong>de</strong> trabalho numa oficina, como a fabricação <strong>de</strong> um<br />
vaso <strong>de</strong> barro. Tendo: causa material = Barro; causa formal = o mol<strong>de</strong>, configuração,<br />
<strong>de</strong> vaso; causa final = finalida<strong>de</strong> do vaso; e causa eficiente = o oleiro que mo<strong>de</strong>la o<br />
vaso. Então, diz-se que o universo era constituído <strong>de</strong>ste modo: Deus é a causa<br />
eficiente, que age sobre a matéria (causa material), impondo-lhe uma forma (causa<br />
24
formal) em vista <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado fim (causa final). Ou seja, o universo é visto<br />
como uma relação <strong>de</strong> causa e efeito, ou melhor, <strong>de</strong> causação. Esse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
compreen<strong>de</strong>r a relação <strong>de</strong> causas diz apenas parte da constituição do universo,<br />
sendo válida somente para o nível mais ínfimo dos entes, o nível <strong>de</strong> ser enquanto<br />
não vivo, enquanto físico-material.<br />
Estaremos mais próximo ao modo originário <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r causa se nos<br />
colocarmos a ouvir causa, não num sentido <strong>de</strong> causação, mas na sua forma latina<br />
“res”, isto é, coisa, a saber, realida<strong>de</strong>. Assim, percebemos que a causa diz coisa, isto<br />
é, realida<strong>de</strong>, ente, ser. Portanto, temos: realida<strong>de</strong> material, realida<strong>de</strong> formal,<br />
realida<strong>de</strong> final e realida<strong>de</strong> eficiente. Estas realida<strong>de</strong>s dizem diferentes níveis <strong>de</strong><br />
crescimento da intensida<strong>de</strong>, da autonomia e da mútua <strong>de</strong>pendência entre os<br />
diferentes graus <strong>de</strong> participação do ser. (ROMBACH, 1966)<br />
Da ação <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>ssas variantes: causa material, causa formal,<br />
causa final e causa eficiente, surgem diferentes intensida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> compreensão <strong>de</strong><br />
ser, que formam regiões ou esferas dos entes 16 . Assim, essas causas não se<br />
colocam, fixadas, uma ao lado da outra, mas constituem <strong>de</strong>graus <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> e<br />
qualificação dos entes no seu ser. Sendo <strong>de</strong>ste modo:<br />
Causa material + forma a modo <strong>de</strong> causa formal = Os entes que irrompem<br />
neste nível caracterizam-se pelo fato <strong>de</strong> a forma não passar <strong>de</strong> “causa formal”. Aqui<br />
forma é somente a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> uma coisa material, ser assim, ter esta ou<br />
aquela proprieda<strong>de</strong>, indica um estado <strong>de</strong> ente, enquanto coisa. Na constituição <strong>de</strong><br />
um ente, <strong>de</strong>ste nível, a forma é como que extrínseca a ele, necessitando <strong>de</strong> uma<br />
forma externa que imponha uma nova forma para <strong>de</strong>ntro da matéria. Estes entes<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m continuamente <strong>de</strong> uma força externa a eles. Neles há somente uma<br />
forma, <strong>de</strong> certo modo imposta, sem que eles tenham a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudança a<br />
partir <strong>de</strong> si.<br />
Os entes <strong>de</strong>sse reino são pura presença, seu ser é estar aí, é apenas<br />
duração, o tempo é exterior a eles; estes entes não têm temporalida<strong>de</strong> própria,<br />
interior, eles não possuem uma interiorida<strong>de</strong>. A ausência <strong>de</strong> uma interiorida<strong>de</strong> faz<br />
com que os chamem <strong>de</strong> mortos. Mesmo que sua complexida<strong>de</strong> vá cada vez sendo<br />
16 A mesma compreensão é dita <strong>de</strong> outro modo na árvore Porfiriana, porém o binômio-princípio usado<br />
não é o <strong>de</strong> forma-matéria, mas o <strong>de</strong> gênero-espécie. Nela, porém, cada ação <strong>de</strong> um novo modo <strong>de</strong><br />
ser da forma é chamado <strong>de</strong> diferença específica. (Apêndice I)<br />
25
aumentada pela in-formação da matéria, que neste caso se dá <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro,<br />
este ente nunca terá vida. Assim, os entes constituídos no <strong>de</strong>grau <strong>de</strong> causa material<br />
+ causa formal, por mais complexa que seja a sua composição, nunca surgem como<br />
vivos; por mais que se aumente sua complexida<strong>de</strong> constituinte, estes entes,<br />
permanecerão físicos, materiais, pertencentes ao reino das coisas, ao reino dos<br />
minerais. Então, matéria e forma, neste nível, constituem a esfera dos elementos<br />
ínfimos, dos entes sem vida. De acordo com os medievais esta é a esfera mais baixa<br />
na participação do ser.<br />
Para que surja vida, entes vivos, é necessário que os princípios matéria +<br />
forma (causa material e causa formal) recebam um toque qualitativo da intensida<strong>de</strong><br />
do ser. Recebido esse toque qualitativo, advém uma nova forma que os qualifica<br />
num outro nível <strong>de</strong> constituição no ser. Surge um nível <strong>de</strong> entes que têm em si uma<br />
finalização, os seres vivos, os seres do reino vegetal. A partir <strong>de</strong> então, está atuando<br />
a forma a modo <strong>de</strong> causa final. A forma <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma forma digamos estática,<br />
configurativa, mo<strong>de</strong>ladora, simplesmente imposta, para se tornar uma constituição<br />
que dá autonomia ao ente 17 .<br />
Causa material + forma a modo <strong>de</strong> causa final = Aparece, então, uma outra<br />
esfera <strong>de</strong> constituição dos entes, mais elevada e mais intensa. Nesta, a forma tem a<br />
dinâmica <strong>de</strong> causa final. Isso quer dizer que nestes entes está contida uma<br />
intencionalida<strong>de</strong>: uma dinâmica que gera finalizações, pois, dirige estes entes para<br />
um <strong>de</strong>terminado fim. O ente, aqui, ten<strong>de</strong> para um futuro, não é estático, não está<br />
simplesmente ali, esperando ser acordado por uma forma externa; mas sim é um<br />
ente que está se assumido, em outras palavras, é um ente vivo. Surge, então o reino<br />
das plantas, o reino dos vegetais.<br />
Deste toque <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> surge o reino dos vegetais, da vigência, nestes<br />
entes o princípio <strong>de</strong> ser é a causa final. É o nível dos entes que se fazem e se<br />
<strong>de</strong>senvolvem para um <strong>de</strong>terminado fim. A esse modo, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nação final, o<br />
medieval chamava <strong>de</strong> anima, para nós, alma. Alma não significa uma realida<strong>de</strong><br />
espiritual <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> outra material, significa um princípio constitutivo, um ser dos<br />
17 Na Árvore Porfiriana esse toque é consi<strong>de</strong>rado uma diferença específica sobre um <strong>de</strong>terminado<br />
gênero. Ou seja, o gênero dos entes sem vida, recebe uma qualificação do ser, uma diferença<br />
específica, a vida, irrompendo-se numa nova e totalmente distinta esfera <strong>de</strong> participação no ser, a<br />
esfera dos entes vivos. (Apêndice I).<br />
26
entes na sua totalida<strong>de</strong>, não é uma parte, mas uma concepção do ser: alma diz vida.<br />
Estes, portanto são os entes viventes 18 .<br />
Quando o princípio dos entes vivos, enquanto reino vegetal, recebe um<br />
toque qualificativo da intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser, começa a participar da causa eficiente.<br />
Então, surge a vida enquanto sensibilida<strong>de</strong>, surge então o reino dos entes sensíveis.<br />
Irrompe então o nível do reino animal.<br />
Causa material + forma enquanto causa eficiente = Estes princípios indicam<br />
uma nova esfera dos entes, mais intensa e elevada no seu ser. On<strong>de</strong> a forma tomou<br />
o modo dinâmico <strong>de</strong> causa eficiente. O ente tem agora um novo princípio, o princípio<br />
produtivo <strong>de</strong> auto-constituição. Neste nível, o ente não somente se faz, mas cuida <strong>de</strong><br />
si, gera as próprias condições do processo <strong>de</strong> auto-formação. Ele tem a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> buscar seu próprio alimento. A esse ente dá-se o nome <strong>de</strong> animal. Sua principal<br />
característica é a auto-moção.<br />
Esse ente tem a sensibilida<strong>de</strong> como meio para sua busca. Tem uma força<br />
<strong>de</strong> percepção, <strong>de</strong> sondagem, <strong>de</strong> valorização e <strong>de</strong> escolha, <strong>de</strong> acordo com aquilo que<br />
lhe é próprio, ou aquilo que lhe convém. Estes entes têm o tempo como algo interior<br />
a eles, vivem a temporalida<strong>de</strong>, eles estão no cuidado do que já foi (passado), do que<br />
é (presente) e do que será (futuro).<br />
Nesse sentido, ten<strong>de</strong>r para um fim não é como os entes da esfera da causa<br />
final 19 . Trata-se <strong>de</strong> uma relação do presente com a recordação do passado, o que os<br />
medievais conheciam por distensão da alma, “distensio animae” (SANTO<br />
AGOSTINHO, 1996). Esse espaço <strong>de</strong> interiorida<strong>de</strong> é chamado <strong>de</strong> imaginativa. Este<br />
é o modo <strong>de</strong> ser do sentido, do sentimento, da sensibilida<strong>de</strong>. Destarte, esse ente, o<br />
animal, está constantemente a caminho para si mesmo, para tornar-se o que sempre<br />
já foi 20 .<br />
18 Po<strong>de</strong>mos ver claramente nestes entes a presença <strong>de</strong> um ten<strong>de</strong>r. Eles ten<strong>de</strong>m para um fim. Eles<br />
têm possibilida<strong>de</strong>s maiores, assimilam os alimentos e se constituem. Não estão esperando que uma<br />
forma externa os acor<strong>de</strong>, mas estão numa vigência, têm a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> disten<strong>de</strong>r suas raízes em<br />
busca <strong>de</strong> alimento, têm a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esticar seus galhos na direção da luz. Contudo, por mais<br />
perfeitos que estes sejam, falta-lhes a sensibilida<strong>de</strong>. Entres estes entes há diversos níveis <strong>de</strong><br />
perfeição, porém mesmo em inúmeras escalações, entre eles não irrompe a sensibilida<strong>de</strong>.<br />
19 Uma tendência, <strong>de</strong> certa forma, cega para um fim.<br />
20 Toda esta compreensão <strong>de</strong> constituição do universo a partir <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> causação é explorado<br />
por Heinrich Rombach, no livro Substanz, System, Struktur.<br />
27
Dentro <strong>de</strong>ste nível <strong>de</strong> entes irrompem, a partir <strong>de</strong> toques <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> do<br />
ser, em diversas variações da forma eficiente, <strong>de</strong> modo que vão sendo gerados<br />
<strong>de</strong>graus <strong>de</strong> entes, surgindo <strong>de</strong>ntre eles o animal-racional, ou seja, entes humanos. A<br />
partir do homem, por meio das escalações da causa eficiente, surgem seres com,<br />
cada vez mais intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autonomia como os anjos, e assim até chegar a Deus,<br />
ente por excelência no seu ser, pura forma, pura autonomia.<br />
Os entes que se configuram em sua vigência a partir do homem, criando<br />
esferas <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser, até chegar a Deus, a suprema vigência, são<br />
caracterizados pela criativa e imensa potência <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, que, muitas vezes,<br />
recebe o nome <strong>de</strong> espírito. Espírito diz autonomia do ser, que tem seu cume em<br />
Deus, o “ens a se”.<br />
Os medievais expressavam pelos termos “ens a se” 21 e “ens ab alio” 22 um<br />
crescimento <strong>de</strong> autonomia, na medida em que crescia a participação no ser, e <strong>de</strong><br />
mútua <strong>de</strong>pendência entre estes graus <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> do ser. Essa <strong>de</strong>pendência se<br />
dava no sentido <strong>de</strong> que acima <strong>de</strong> uma esfera <strong>de</strong> ser existe outra, mais perfeita e<br />
mais próxima ao ser, que está como que sustentando, comunicando o ser à esfera<br />
seguinte. Dependência no sentido <strong>de</strong> que é pelo modo mais elevado <strong>de</strong> ser que o<br />
mais ínfimo está participando da intensida<strong>de</strong> do ser. Quanto mais os entes vão, na<br />
or<strong>de</strong>nação do universo, se tornando autônomos, mais vão participando do ser; e em<br />
participando do ser vão tornando-se livres. Deus é o ser livre por excelência, por isso<br />
“ens a se”, <strong>de</strong> nada <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, isto é, ser pleno, ab-soluto.<br />
Essa participação dos entes, criaturas, no ser, aseida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, recebe o<br />
nome <strong>de</strong> filiação divina. Assim, o inter-relacionamento criador entre Deus e as<br />
criaturas não po<strong>de</strong> ser encarado como causação, ou melhor, num âmbito <strong>de</strong> causa e<br />
efeito; mas por meio da categoria dita filiação divina. Esta filiação acontece em<br />
diversos níveis e modos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes até chegar à ausência da forma, à dissipação<br />
total da luz divina, isto é, na pura matéria prima. On<strong>de</strong> não dizemos mais filiação,<br />
mas sim causação. Dito <strong>de</strong> outro modo, só conseguimos compreen<strong>de</strong>r bem o<br />
princípio-binômio forma-matéria se olharmos a partir da perspectiva <strong>de</strong> que Deus é<br />
21 Ente ou realida<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong> si mesma = liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser = Deus <strong>de</strong> quem tudo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>.<br />
22 Ente a partir do outro = os entes na escalação crescente da participação do ser, que se<br />
encaminham a partir <strong>de</strong> coisa material/formal, eleva-se à coisa final e por fim à coisa eficiente.<br />
28
pura difusão da sua liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> sua bonda<strong>de</strong>, que se comunica gratuitamente e<br />
sem medidas num relacionamento <strong>de</strong> filiação constituído o universo em multifárias<br />
nivelações <strong>de</strong> sua comunicação.<br />
Po<strong>de</strong>mos notar, então, que o princípio-binômio matéria-forma é utilizado <strong>de</strong><br />
dois modos: primeiro para indicar o princípio constitutivo do reino dos entes sem<br />
vida. Segundo, para indicar o movimento para a constituição das diferentes esferas<br />
dos entes enquanto: reino mineral, reino vegetal, reino animal, reino humano e ainda<br />
esferas mais elevadas dos entes espirituais. Causa (coisa = realida<strong>de</strong>), então,<br />
aponta-nos para uma abertura, dimensão na qual e a partir da qual surgem os entes<br />
nos seus mais distintos níveis <strong>de</strong> ser.<br />
Tendo, <strong>de</strong> um modo bastante complicado, tentado expor toda a<br />
problemática que se apresenta sob o nome <strong>de</strong> hilemorfismo, faz-se necessário falar<br />
brevemente <strong>de</strong> substância e aci<strong>de</strong>nte. Pois tudo que é dito no hilemorfismo se refere<br />
à compreensão do ser, <strong>de</strong>nominado por medievais <strong>de</strong> substância.<br />
O ser por execlência, a plenitu<strong>de</strong>, o “ipsum esse”, Deus, se caracteriza<br />
como substância “per se” e “in se”; e todas as criaturas que são por participarem da<br />
plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus se chamam também substância. Todos os entes, a partir <strong>de</strong> Deus<br />
até o nada po<strong>de</strong>m ser assim subsumidos sob o termo substância, no sentido<br />
medieval. Mas aqui distinguimos duas gran<strong>de</strong>s áreas: a área das substâncias<br />
simples (abrange Deus e os espíritos) e área das substâncias compostas (abrange<br />
os entes que constituem a árvore porfiriana 23 : animal racional (homem); vivente<br />
sensível (brutos); corpo vivo (vegetais); corpo sem vida (matérias).<br />
O binômio “matéria e forma” refere-se às substâncias compostas; ao passo<br />
que em referência à área das substâncias simples, em vez <strong>de</strong> matéria e forma<br />
dizemos “potência e ato”, pois nessa área os entes não possuem a composição <strong>de</strong><br />
matéria, mas são puros espíritos.<br />
Como em nosso presente trabalho um dos temas é o intelecto humano que<br />
se acha na área das substâncias compostas, falaremos brevemente da substância e<br />
aci<strong>de</strong>nte, binômio que diz respeito aos entes da área das substâncias compostas,<br />
que po<strong>de</strong>m ser caracterizadas com o binômio “substância-aci<strong>de</strong>nte”, pois somente<br />
as substâncias compostas se divi<strong>de</strong>m em substância e aci<strong>de</strong>nte.<br />
23 Apêndice I.<br />
29
2.2.2 Substância e aci<strong>de</strong>ntes<br />
Os medievais caracterizavam substância como “ens in se” e aci<strong>de</strong>nte como<br />
“ens in alio”. A palavra aci<strong>de</strong>nte significa o que cai sobre (ad-ca<strong>de</strong>re). Em grego<br />
substância se diz “hypokeímenon” e aci<strong>de</strong>ntes “symbebekóta” (plural, neutro).<br />
Usualmente substância é entendida como algo que está <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong><br />
aparências, como que um núcleo imutável, e aci<strong>de</strong>nte como o que cai sobre esse<br />
núcleo imutável, como algo mutável, passageiro. De acordo com o modo como Lúlio<br />
utiliza os termos substância e aci<strong>de</strong>nte parece que ele está inclinado a enten<strong>de</strong>r<br />
essas palavras na direção que os gregos acenavam quando diziam “hypokeímenon”,<br />
isto é, o que ali está <strong>de</strong>itado, estendido, bem assentado (“keisthai”) e “symbebekóta”,<br />
os concomitantes, os que acompanham em diversas variações concretas esse<br />
assentamento.<br />
Os medievais estavam mais próximos à compreensão da substância no seu<br />
ser do que na sua representação enquanto um núcleo, atrás, escondido <strong>de</strong>baixo das<br />
aparências, ofuscado pelos aci<strong>de</strong>ntes.<br />
Tentemos intuir o ser em sua pré-jacência, no seu se perfazer como<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, como peso da auto-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Colocando-nos em frente <strong>de</strong> uma<br />
montanha rochosa, que se esten<strong>de</strong> ao céu aberto. Aqui, atônitos, exclamamos: Que<br />
imensidão, que gran<strong>de</strong>za! Essa gran<strong>de</strong>za e imensidão não está querendo apenas<br />
constatar a quantida<strong>de</strong> métrica, o tamanho em metros, <strong>de</strong>ssa paisagem, mas sim<br />
abrir-se à substancialida<strong>de</strong>, a intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> assentamento daquela montanha, o em<br />
sendo da montanha como montanha, a mais própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da montanha.<br />
Imaginemos, então, que ao sopé da montanha viva um casal <strong>de</strong> velhos,<br />
experimentados na vida, que ali cultivam sua existência, que ali cultivam sua<br />
proprieda<strong>de</strong>, seu jardim, sua horta, sua casa, seus animais. Este casal, na fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />
da vida, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua árdua luta, agora vivem numa pujança <strong>de</strong> bem-querença, e<br />
longos anos resi<strong>de</strong>m bem assentados como pessoas em sua mais profunda<br />
recordação. A montanha, o céu, o tempo e o espaço, o casal, a sua proprieda<strong>de</strong>,<br />
jardim, a horta, sua moradia, em fim tudo, toda a paisagem e seus <strong>de</strong>talhes e<br />
componentes concomitantes estão impregnados, prenhes do peso, do assentamento<br />
30
<strong>de</strong> ser cada qual ele próprio na sua auto-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, na sua substancialida<strong>de</strong>. Cada<br />
vez, cada em sendo, assentado na sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria e viva, mesmo totalmente<br />
diferenciada entre si, tem o modo <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> “hypokeímenon” e seus “symbebekóta”,<br />
o caráter ontológico <strong>de</strong> “in se”. A configuração, o feitio, <strong>de</strong> cada ente po<strong>de</strong> ser total e<br />
completamente diferente, mas o seu assentamento em si, seu em sendo, é sempre o<br />
mesmo como profundida<strong>de</strong> do ser, como pregnância, como amplitu<strong>de</strong>, como a<br />
liberda<strong>de</strong> da e na auto-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do seu ser. O prefixo “hypo” parece acenar para<br />
essa profunda imensidão do ser, e não tanto para o que está <strong>de</strong> baixo, atrás <strong>de</strong> uma<br />
superfície.<br />
Portanto, substância não indica qualida<strong>de</strong>, quantida<strong>de</strong>, modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
algo, nem um pano <strong>de</strong> fundo ou espaço vazio <strong>de</strong> on<strong>de</strong> provêm os entes como blocos<br />
<strong>de</strong> coisa; nem aci<strong>de</strong>nte o que cai sobre esse bloco como acréscimo passageiro, mas<br />
sim a concomitância diferencial inerente aos entes que estão impregnados <strong>de</strong>sse<br />
assentamento da substancialida<strong>de</strong> no ser.<br />
Desse modo, nos termos “hypokeímenon” (substância) e “symbebekóta”<br />
(aci<strong>de</strong>ntes) encontramos a mesma imagem <strong>de</strong> vastidão, <strong>de</strong> imensidão, <strong>de</strong><br />
profundida<strong>de</strong>, como mar abissal em inúmeras concretizações <strong>de</strong> ondas, gotas<br />
d’água, como uma sinfonia cósmica, com suas percussões e repercussões, em<br />
notas, grupos <strong>de</strong> notas, pausas e acor<strong>de</strong>s, que antes utilizávamos para intuir o<br />
princípio-binômio matéria-forma.<br />
A maneira dinâmica <strong>de</strong> Lúlio compreen<strong>de</strong>r a or<strong>de</strong>nação dos entes como<br />
substância composta no binômio “matéria-forma”, e entes como substância simples<br />
no binômio “ato-potência”; a sua maneira dinâmica <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r substância e<br />
aci<strong>de</strong>nte como assentamento na auto-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> substancial <strong>de</strong> si mesmo e<br />
concomitância sinfônica <strong>de</strong>ssa unida<strong>de</strong> na pluralida<strong>de</strong> diferencial e esta na unida<strong>de</strong><br />
uni-vertente na perfeita concomitância e simultaneida<strong>de</strong>, caracteriza a riqueza <strong>de</strong><br />
variação com que Lúlio apresenta a or<strong>de</strong>nação universal da criação, ou melhor da<br />
filiação. Assim, as criaturas, em suas diversas modalida<strong>de</strong>s e níveis <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong><br />
da participação no ser, que por excelência e plenitu<strong>de</strong> se apresenta como o Deus <strong>de</strong><br />
Jesus Cristo, Deus Pai, criador <strong>de</strong> todos os entes, se apresentam como unas e<br />
unidas, vertidas, dirigidas, para o Deus Uno e trino, como a origem e fonte <strong>de</strong> todo o<br />
ser. Toda esta concreção, ora se revela como tudo, enquanto partícipes da absoluta<br />
doação da bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus; ora como nada, enquanto pura e grata recepção<br />
31
<strong>de</strong>ssa total doação <strong>de</strong> si, <strong>de</strong> Deus que é o Amor difusivo <strong>de</strong> si. Se apresentando ora<br />
como forma universal, ora como forma particular; ora como substância, ora como<br />
aci<strong>de</strong>nte, sempre vertidas para a concreção correlativa do e ao uno da comunida<strong>de</strong><br />
uni-versal, Deus e Homem.<br />
Portanto, à atuação da imensidão da presença da auto-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do ser,<br />
solta, livre, isto é, à vastidão da profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> doação do ser, Lúlio chama <strong>de</strong><br />
forma absoluta. Esta doação generosa do ser é simultaneamente a modo <strong>de</strong> matéria<br />
prima, a modo <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong> e vitalida<strong>de</strong> do nada, enquanto matéria é a recepção<br />
grata, o acolhimento do ser que frutifica em mil e mil eclosões dos entes na sua<br />
totalida<strong>de</strong>. Assim a forma absoluta é potência, é o abismo potencial para todas as<br />
substâncias particulares.<br />
Na entificante sinfonia do ser no ente e do ente no ser, o nada não significa<br />
privação, nihilida<strong>de</strong>, mas total liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> recepção, <strong>de</strong> modo que tudo é contextura<br />
da tecitura da composição sinfônica do ente no ser e do ser no ente, numa<br />
correspondência concordante do universo. Qualquer privação, diferença ou<br />
negação, é variante da infinitu<strong>de</strong> e plenitu<strong>de</strong> da presença da doação generosa do<br />
ser cada vez no seu modo mais próprio <strong>de</strong> doação e recepção. Assim, o nada é<br />
“potencia obediencialis” como total acolhida na silenciosa recepção, como espera do<br />
inesperado na percussão e repercussão do ser. Então, <strong>de</strong>sse modo, o absoluto está<br />
no particular, na geração e corrupção, no surgir, crescer e consumar-se dos entes no<br />
seu ser.<br />
32
3 MOVIMENTO<br />
Na escalação dos entes na or<strong>de</strong>nação do universo medieval, o nosso<br />
presente trabalho se concentra na or<strong>de</strong>nação dos entes ou das substâncias<br />
compostas, expostas por Lúlio na or<strong>de</strong>m já acima mencionada do “Livro da<br />
lamentação da <strong>Filosofia</strong>”, a saber em capítulos: 1. Dedicatória ao Rei Felipe, 2.<br />
Prólogo, 3. Da Forma, 4. Da Matéria, 5. Da Geração, 6. Da Corrupção, 7. Da<br />
Elementativa, 8. Da Vegetativa, 9. Da Sensitiva, 10. Da Imaginativa, 11. <strong>Do</strong><br />
<strong>Movimento</strong>, 12. <strong>Do</strong> Intelecto, 13. Da Vonta<strong>de</strong>, 14. Da Memória e 15. <strong>Do</strong> Fim do Livro.<br />
Desses capítulos o que é do interesse <strong>de</strong>ssa exposição é o capítulo 12. <strong>Do</strong> intelecto.<br />
Prece<strong>de</strong>m a esse capítulo 12. <strong>Do</strong> Intelecto, dois, intitulados 10. Da Imaginativa e 11.<br />
<strong>Do</strong> <strong>Movimento</strong>.<br />
Na reflexão anterior sobre o hilemorfismo ali colocada como que preparando<br />
a nossa interpretação do capítulo <strong>Do</strong> <strong>Movimento</strong>, ao falarmos da Causa material +<br />
forma enquanto causa eficiente, dissemos que estes princípios apontam para uma<br />
nova elevação dos entes, mais intensa e elevada no seu ser. Nesta elevação a<br />
forma toma o modo dinâmico <strong>de</strong> causa eficiente. O ente irrompe num novo princípio,<br />
o princípio produtivo <strong>de</strong> auto-constituição. Neste nível, o ente não somente se faz,<br />
mas cuida <strong>de</strong> si, gera as próprias condições do processo <strong>de</strong> auto-formação. Ele tem<br />
a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> buscar seu próprio alimento. A esse ente dá-se o nome <strong>de</strong> animal.<br />
Sua principal característica é a auto-moção.<br />
A animalida<strong>de</strong> tem a sensibilida<strong>de</strong> como forma <strong>de</strong> sua existência. Tem uma<br />
força <strong>de</strong> percepção, <strong>de</strong> sondagem, <strong>de</strong> valorização e <strong>de</strong> escolha, <strong>de</strong> acordo com<br />
aquilo que lhe é próprio, ou aquilo que lhe convém. Nestes o tempo algo interior,<br />
vivem a temporalida<strong>de</strong> e como passado, cuidando do que já foi, presente, tendo em<br />
mente o instante , e futuro, enquanto esperança.<br />
Assim, ten<strong>de</strong>r para um fim não está na mesma dinâmica dos entes da<br />
esfera da causa final. Aqui, esta tendência se trata <strong>de</strong> uma relação do presente com<br />
a recordação do passado, ou seja, a “distensio animae”. Esse espaço <strong>de</strong><br />
interiorida<strong>de</strong> é chamado <strong>de</strong> imaginativa. Este modo <strong>de</strong> ser é o do sentido, do<br />
33
sentimento, da sensibilida<strong>de</strong>. Por isso dizemos que esse ente, o animal, vive a<br />
caminho para si mesmo, para tornar-se o que sempre já foi.<br />
Neste nível <strong>de</strong> entes irrompe, a partir <strong>de</strong> toques <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> do ser,<br />
muitas variações da forma eficiente, <strong>de</strong> modo que vão sendo gerados <strong>de</strong>graus <strong>de</strong><br />
entes. Ali, como efervescência no ser, irrompe o animal-racional, ou seja, o humano.<br />
A partir do homem, nas escalações da causa eficiente, surgem seres com, cada vez<br />
mais intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autonomia como os anjos, e assim sucessivamente até chegar<br />
a Deus, ente por excelência no seu ser, pura forma, pura autonomia, liberda<strong>de</strong> em<br />
si.<br />
As esferas <strong>de</strong> entes que se configuram em sua vigência a partir do homem,<br />
criando esferas <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser, cada vez mais elevadas, até chegar a Deus, a<br />
suprema vigência; são caracterizadas pela imensa potência <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, estas<br />
novas escalas recebem o nome <strong>de</strong> espírito. Espírito diz autonomia do ser, e têm seu<br />
culminância em Deus, o “ens a se”.<br />
Isto significa que na escalação das esferas dos entes na or<strong>de</strong>nação <strong>de</strong>ntro<br />
da área das substâncias compostas reina a seguinte lógica or<strong>de</strong>nadora: na esfera<br />
mais elementar, da matéria sem vida, portanto na elementativa, a atuação do<br />
princípio do binômio matéria e forma, como geração e corrupção enquanto<br />
movimento em si, por e para si é a mais diminuta. O movimento mais autônomo,<br />
auto-gestivo aumenta na vegetativa, e consuma-se na sensitiva. Na área das<br />
substâncias compostas, as esferas elementativa, vegetativa e sensitiva formam a<br />
camada inferior. A camada superior <strong>de</strong>ssa área é constituída <strong>de</strong> intelecto, vonta<strong>de</strong> e<br />
memória que se referem tematicamente ao racional, ou à racionalida<strong>de</strong> como<br />
constitutivos essenciais da <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> homem em sua qualificação <strong>de</strong> racional.<br />
Aqui o movimento da dinâmica do em si, por e para si recebe o nome <strong>de</strong><br />
racional, e inicia a escalação da intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser, como espírito humano, como<br />
espíritos puros. Disto irrompemos 9 coros dos anjos, até se a<strong>de</strong>ntrar em Deus como<br />
pura dinâmica do movimento da “aseida<strong>de</strong>”.<br />
Entre a camada inferior e superior, estão a Imaginativa, que se apresenta<br />
como a racionalida<strong>de</strong> incoativa. E ao capítulo da Imaginativa segue o capítulo do<br />
<strong>Movimento</strong>. Esse capítulo do <strong>Movimento</strong> vem introduzir o modo <strong>de</strong> ser da dinâmica<br />
do espírito, tratada nos seguintes capítulos, intitulados <strong>de</strong>: <strong>Do</strong> Intelecto (Da Vonta<strong>de</strong><br />
e Da Memória).<br />
34
A seguir, antes <strong>de</strong> finalmente comentaremos o capítulo <strong>Do</strong> <strong>Movimento</strong>,<br />
vamos à guisa <strong>de</strong> aprofundamento da compreensão medieval dos binômios matériaforma,<br />
substância e aci<strong>de</strong>nte e potência-ato apresentar o texto <strong>de</strong> Lúlio presente no<br />
“Livro da Lamentação da <strong>Filosofia</strong>”, acerca do <strong>Movimento</strong>, e o comentar<br />
<strong>de</strong>talhadamente, enquanto o conseguimos. Assim, apesar da gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
a<strong>de</strong>ntrarmos no pensamento <strong>de</strong> Lúlio, tentaremos interpretar, a nosso modo, o que<br />
Lúlio enten<strong>de</strong> por movimento nas relações do binômio forma-matéria enquanto<br />
princípio constitutivo da substância composta e <strong>de</strong> ato-potência enquanto substância<br />
simples. Temos assim a visualização do universo em seus diferentes níveis <strong>de</strong><br />
participação do ser.<br />
DE MOTU 24<br />
Ait Motus: Sum ens existens in potentia ad actum. Et<br />
sum existens in subiecto, in quo sum, cum quo<br />
movens movet mobile <strong>de</strong> potentia in actum.<br />
Dixit Motus: Sum ens absolutum, primo exiens et<br />
progrediens a principiis innatis caeli, ut puta a<br />
bonitate, magnitudine, duratione etc., quoniam in<br />
quantum bonitas bonificat magnitudinem, et<br />
magnitudo magnificat bonitatem, et sic aliis, sum<br />
genitus et progridiens a correlatiuis eorum. Et<br />
constituitur caelum compositum ex forma et matéria et<br />
<strong>de</strong>cem predicamentis. Quae forma movet se per me<br />
activando, et movet materian passionando: et hoc<br />
cum quatitate, quia quantus sum cum qualitate, quia<br />
qualis sum cum correlatiuis, quia relatus sum, et<br />
huiusmodi.<br />
DO MOVIMENTO 25<br />
Disse o <strong>Movimento</strong>: Sou ente existindo em potência<br />
para o ato. E existo no sujeito, no qual estou, com o<br />
qual o movente move o móvel da potência para o ato.<br />
Disse o <strong>Movimento</strong>: Sou ente absoluto, primeiro,<br />
saindo e progredindo dos princípios inatos do céu,<br />
por exemplo, da bonda<strong>de</strong>, gran<strong>de</strong>za, duração, etc.,<br />
porque, enquanto a bonda<strong>de</strong> bonifica a gran<strong>de</strong>za e a<br />
gran<strong>de</strong>za engran<strong>de</strong>ce a bonda<strong>de</strong> e assim das <strong>de</strong>mais<br />
coisas, sou gerado e proveniente dos correlativos<br />
<strong>de</strong>les. O céu constitui-se da composição <strong>de</strong> forma e<br />
matéria e <strong>de</strong> <strong>de</strong>z predicamentos. Essa forma se<br />
move, por mim ativando, e move a matéria,<br />
apassivando; e isso com quantida<strong>de</strong>, porque sou<br />
quanto com qualida<strong>de</strong>, porque sou qual com os<br />
correlativos, porque sou relacionado e assim por<br />
diante.<br />
Ait Motus: Anima Caeli sum, cum qua caelum movet<br />
se ipsum: sicut habitus naturalis, sub quo movens<br />
movit se ipsum per me; sicut ignis, qui sub sua<br />
caliditate movet se ad calefaciendum et sub habitu<br />
levitatis ad ascen<strong>de</strong>ndum, et aqua sub habitu<br />
gravitatis ad <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ndum, et huiusmodi. Sum<br />
Motus absolutus, per octavam spheram subaternatus<br />
per Saturno, et sic <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ndo per alias spheras et<br />
Disse o <strong>Movimento</strong>: Sou a alma do céu, com a qual o<br />
céu se move a si mesmo; assim como o hábito<br />
natural sob o qual o movente se move a si mesmo<br />
através <strong>de</strong> mim; assim como o fogo que, sob o seu<br />
calor, se move para esquentar e, sob o hábito da<br />
leveza, para subir, e a água, sob o hábito do peso,<br />
para <strong>de</strong>scer e assim por diante. Sou o <strong>Movimento</strong><br />
absoluto, subalternado pela oitava esfera por<br />
24 Texto latino extraído do Raimundi Lulii Opera Latina, Volume VII (1975), Obras: 168-177 - Parisiis<br />
anno 1311 composita. Obra 170. P. 114-116.<br />
25 Tradução a partir do texto latino, extraído <strong>de</strong>: LÚLIO, <strong>Raimundo</strong>. Escritos Antiaverroístas (1309-<br />
1311) – <strong>Do</strong> nascimento do Menino Jesus / Livro da Lamentação da <strong>Filosofia</strong>. Tradução para o<br />
português: Brasília Bernar<strong>de</strong>te Rosson, Sérgio Alci<strong>de</strong>s e Ronald Polito,. Vol IV. Porto Alegre:<br />
Edipucrs. 2001. p.162-164. (Coleção Pensamento Franciscano).<br />
35
per spheras elementorum usque ad vegetabilia<br />
particularia, ut puta usque ad lapi<strong>de</strong>m, rosam, equum<br />
et huiusmodi. Per omnia ista sum mobilis et movens,<br />
et exiens <strong>de</strong> potentia in actum continue et successive.<br />
Et hoc significatum est per ea, qua dicta sunt capitulo<br />
formae, materie, generationis, corruptionis etc.<br />
Iterum ait Motus: Sum continuusim quantum sum uma<br />
essentiaabsoluta, secundum totum universum<br />
continue extensuscum totum universum sit unum<br />
individuum continuum corporale, constitutum <strong>de</strong> suis<br />
principiis generalibus, ut puta <strong>de</strong> bonitate, magnitute<br />
etc., ut dictum est <strong>de</strong> generali forma, generali matéria<br />
et <strong>de</strong>cem predicamentis. Omnia ista, sunt continua,<br />
non contígua quoad superius neque quoad inferius,<br />
quia si sic, mundus eset individiduum discontinuatum<br />
et non unum, et esset implicare e vacuum et ego non<br />
essem continuus, sed successivuus, divisus: quod est<br />
impossibile. Sum autem discontinuatus im<br />
particularibus, secundum quod differunt species, ut<br />
asinus, capra et huiusmodi, remanens | indivisus<br />
quoadmean essentiam, ut omnia sint in me et ego in<br />
ipsis, ab omnivacuitate <strong>de</strong>nudatus per existentiam et<br />
agentiam.<br />
Rursus ait Motus: Habeo três species inter alias ut<br />
puta argumentationem, alterationem, ut significans<br />
est per generationem et corruptionem. Alia est per<br />
loca, ut puta nubens in caelo, quae moventur <strong>de</strong> uno<br />
loco alium; et sicut pluvial, quae movetur <strong>de</strong> superius<br />
ad inferius, quia pon<strong>de</strong>rosa est; et sicut piscis, qui<br />
movet in aqua cum cauda sua; | et equus in terra, qui<br />
movet se cum pedibus suis.<br />
Saturno, e assim <strong>de</strong>scendo por outras esferas e pelas<br />
esferas dos elementos, até os vegetáveis<br />
particulares, por exemplo, até a pedra, a rosa, o<br />
cavalo e assim por diante. Por tudo isso sou móvel e<br />
movente, e indo da potência para o ato<br />
continuamente e sucessivamente. E isso é significado<br />
por aquelas coisas que foram ditas no capítulo da<br />
forma, da matéria, da geração, da corrupção, etc.<br />
De novo disse o <strong>Movimento</strong>: Sou contínuo, enquanto<br />
sou uma essência absoluta, segundo todo o universo<br />
continuamente extenso, já que todo o universo é um<br />
indivíduo contínuo corporal, constituído <strong>de</strong> seus<br />
princípios gerais, por exemplo, da bonda<strong>de</strong>, da<br />
gran<strong>de</strong>za, etc., conforme foi dito da forma geral, da<br />
matéria geral e dos <strong>de</strong>z predicamentos. Todas essas<br />
coisas são contínuas, não contíguas quanto ao<br />
superior nem quanto ao inferior, porque, se fosse<br />
assim, o mundo seria um indivíduo <strong>de</strong>scontínuo e não<br />
uno, e implicaria o vazio e eu não seria contínuo, mas<br />
sucessivo, diviso, o que é impossível. Sou, no<br />
entanto, <strong>de</strong>scontinuado nos particulares, da forma<br />
como diferem as espécies, o asno, a cabra e assim<br />
por diante, permanecendo indiviso quanto à minha<br />
essência, para que todas essas coisas estejam em<br />
mim e eu nelas, <strong>de</strong>snudado <strong>de</strong> toda a vacuida<strong>de</strong> pela<br />
existência e pela ação.<br />
Novamente disse o <strong>Movimento</strong>: Tenho três espécies,<br />
entre outras, o aumento, a alteração, como foi<br />
significado pela geração e corrupção. Outra espécie é<br />
por lugares, por exemplo, as nuvens no céu, que se<br />
movem <strong>de</strong> um lugar a outro; e como a chuva, que se<br />
move do superior para o inferior, porque é pesada; e<br />
como o peixe, que se move na água com a sua<br />
cauda, e o cavalo na terra, que se move com suas<br />
patas.<br />
Ulterius dixit Motus: Habeo quattuor species quae<br />
sunt: Elementativa, vegetativa, sensitiva et<br />
imaginativa. Per ommnes istas sum motus et movens,<br />
sicut in capitulis carum significatum est.<br />
Além disso, disse o <strong>Movimento</strong>: Tenho quatro<br />
espécies que são: a elementativa, a vegetativa, a<br />
sensitiva e a imaginativa. Por todas essas sou<br />
movido e movente, assim como foi dito nos<br />
respectivos capítulos.<br />
Interum ait Motus: Habeo tres species, ut puta motum<br />
circularem, rectum et obliquum. Circularem, ut patet<br />
per caelum; rectum, ut patet per <strong>de</strong>scensum aquae,<br />
et per ascensum ignis, et per sagittam motam in aere;<br />
et si <strong>de</strong> vento et huiusmodi. Motus auten meus<br />
obliquuos consistit per angulus acutos, rectos siue<br />
obtusos.<br />
Ulterius ait Motus: Sum per quattuor qualitates, quia<br />
cum ipsis sum movens et mobilis; sicut in flamma, in<br />
aqua calida, in glacie et huiusmodi, constituendo<br />
quattor qualitates, ut puta choleram, saguinem,<br />
phlegma et melancholiam.<br />
Rursus ait Motus: Sum movens et mobilis artificialiter,<br />
sicutmavis mota per ventum, et nauta motus ad<br />
motum naviis, et figura arcae mota <strong>de</strong> potentia in<br />
actum; et sic <strong>de</strong> aliis mechanicis.<br />
De novo disse o <strong>Movimento</strong>: Tenho três espécies, a<br />
saber, o movimento circular, o retilíneo e o oblíquo. O<br />
circular, como se vê através do céu; o retilíneo, como<br />
se vê através da <strong>de</strong>scida da água e da ascensão do<br />
fogo e da flecha movida no ar; e o mesmo, do vento e<br />
assim por diante. Meu movimento oblíquo consiste <strong>de</strong><br />
ângulos agudos, retos ou obtusos.<br />
Ainda disse o <strong>Movimento</strong>: Existo por quatro<br />
qualida<strong>de</strong>s, porque com elas sou movente e móvel,<br />
como na chama, na água quente, no gelo, e assim<br />
por diante, constituindo quatro qualida<strong>de</strong>s, por<br />
exemplo, a cólera, o sangue, a fleuma e a melancolia.<br />
Novamente disse o <strong>Movimento</strong>: Sou movente e móvel<br />
artificialmente, assim como a nave movida pelo vento<br />
e o navegante movido pelo movimento da nave e a<br />
figura da arca movida da potência para o ato; e assim<br />
dos outros objetos mecânicos.<br />
36
Interum: Sum motus ad privationem. Et hoc patet per<br />
caecitatem, surditatem etc.. etiam per sensum<br />
infectum sive imaginationem infectam; et sic <strong>de</strong> allis.<br />
Ulterius ait Motus: Sum motus in subiecto moto per<br />
cibum, potum et huiusmodi.<br />
Rursus ait Moptus: Multa alia possum dicere <strong>de</strong> me,<br />
osten<strong>de</strong>ndo essentiam, meam axistentiam et meam<br />
agentian, meuminstinctum, appetitum, meam<br />
originem, mean bonitatem, magnitudinem etc, mean<br />
quatitatem, qualitatem etc. sed per ea, quae <strong>de</strong> me<br />
dixit, possunt cognosci omnia, quae <strong>de</strong> me dici<br />
possunt; et hoc per intellectum subtiliter intuentem.<br />
Mais uma vez: Sou movimento para a privação, e isso<br />
aparece claramente na cegueira, na sur<strong>de</strong>z, etc.,<br />
também no sentido não realizado ou na imaginação<br />
não realizada e assim das outras coisas.<br />
Mais uma vez disse o <strong>Movimento</strong>: Sou movimento no<br />
sujeito movido pela comida, pela bebida e assim por<br />
diante.<br />
De novo disse o <strong>Movimento</strong>: Muitas outras coisas<br />
posso dizer <strong>de</strong> mim, mostrando a essência, a minha<br />
existência e minha ação, meu instinto, apetite, minha<br />
origem, minha bonda<strong>de</strong>, gran<strong>de</strong>za, etc., minha<br />
quantida<strong>de</strong>, qualida<strong>de</strong>, etc. Mas, por essas coisas,<br />
que eu disse <strong>de</strong> mim, po<strong>de</strong>m ser conhecidas todas,<br />
que po<strong>de</strong>m ser ditas <strong>de</strong> mim; e isso através do<br />
intelecto sutilmente intuente.<br />
Comentário:<br />
Em grego movimento se diz “kínesis”; mover-se, “kínein”. <strong>Movimento</strong> para nós<br />
antes <strong>de</strong> tudo é aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um algo, e indica o <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> algo <strong>de</strong> um lugar<br />
para outro.<br />
Lúlio, no entanto, em sua abordagem do tema movimento, inclui todos os<br />
tipos <strong>de</strong> movimento, guardando suas diferenças <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> uma única colocação<br />
que hoje diríamos ontológica, enquanto fala do ser do movimento, colocando-o sob o<br />
que disse antes da dinâmica <strong>de</strong> matéria-forma ou melhor <strong>de</strong> potência-ato: “Disse o<br />
movimento: Sou ente existindo em potência para o ato. E existo no sujeito 26 , no qual<br />
estou, como o qual o movente move o móvel da potência para o ato”. (Lúlio, 2001, p.<br />
162).<br />
Enquanto tal, não é um ente no sentido <strong>de</strong>ste ou daquele ente, mas é o em<br />
sendo, a dinâmica do ser inteiramente na soltura da sua liberda<strong>de</strong> da doação <strong>de</strong> si, é<br />
ab-soluto, estando em todas as partes, sem se i<strong>de</strong>ntificar como ente em que está<br />
presente, atuando como fonte e vigência da difusão do céu, da sua gran<strong>de</strong>za,<br />
generosida<strong>de</strong>, prodigalida<strong>de</strong> que recebe o nome <strong>de</strong>: bonda<strong>de</strong>, gran<strong>de</strong>za, duração<br />
etc.<br />
A fala do “Motus”, <strong>Movimento</strong>, diz <strong>de</strong> si como a dinâmica, a vigência do amor<br />
do Pai, o Ser como tal, a plenitu<strong>de</strong> do ser, do Bem difusivo <strong>de</strong> si, se doando,<br />
26 Subiectum aqui não é o homem-sujeito da metafísica mo<strong>de</strong>rna da subjetivida<strong>de</strong>. Sujeito aqui é<br />
substância, enquanto se <strong>de</strong>staca como pertinente à imensidão, profundida<strong>de</strong>, e assentamento da<br />
total soltura da liberda<strong>de</strong> como absoluto do modo <strong>de</strong> ser da pré-jacência da substância no sentido<br />
original <strong>de</strong> “hypokeímenon”.<br />
37
livremente, generosamente, incondicionalmente criando, cuidando, mantendo,<br />
revigorando todo o ente no seu ser, na sua vitalida<strong>de</strong>, na sua bonda<strong>de</strong>, em mil e mil<br />
varieda<strong>de</strong>s e modulações, <strong>de</strong>ixando ser cada ente no seu próprio, e no entanto tudo<br />
impregnando com a sua liberda<strong>de</strong> e liberalida<strong>de</strong> dadivosa.<br />
No movimento se dá na dinâmica do “ens per se”, “ens a se”, como que a tinir<br />
na plenitu<strong>de</strong> unitiva e unificadora <strong>de</strong> todas as coisas no amor. O movimento é pois a<br />
alma, o coração, a cordialida<strong>de</strong> do céu. Em tudo que surge, cresce e se consuma,<br />
em todas as articulações nos recantos abscônditos dos entes, até mesmo no nada,<br />
se move, se mobiliza, se doa o ente “a se”, como Deus Pai, em todas as verda<strong>de</strong>s e<br />
bonda<strong>de</strong>s, em todas as unida<strong>de</strong>s. Em tudo, e em cada coisa, cada vez a seu modo,<br />
se move discretamente, retraidamente, a ab-soluta benevolência <strong>de</strong> Deus (céu)<br />
Criador e Pai.<br />
É <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse em toda essa explicação, tentar intuir o que seja o ser<br />
do movimento, a raiz <strong>de</strong> todo e qualquer movimento, seja <strong>de</strong> que tipo e <strong>de</strong> que nível<br />
for, seja na elementativa, na vegetativa, na sensitiva, na imaginativa, no calor e frio,<br />
no comer e no beber, no respirar, no dormir, no meditar, no movimento retilíneo,<br />
angular, circular ou espiral, na mútua correlativida<strong>de</strong> entre todas as coisas, nas<br />
infinitas varieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> emoções, impulsos humanos, nas intimida<strong>de</strong>s dos encontros,<br />
no espanto, no sofrimento, na vida e na morte, na busca da verda<strong>de</strong>, na pura<br />
receptivida<strong>de</strong> da matéria como potência obediencial. Esse abismo <strong>de</strong> disposição e<br />
disponibilida<strong>de</strong>, que se mostra como amor <strong>de</strong> Deus, se dá cada vez que atualiza a<br />
potência, movendo-a para o ato, cada vez que forma informa a matéria, cada vez<br />
que a matéria, seja em que nível for recebe a forma.<br />
Com isso a doutrina do hilemorfismo recebe uma perspectiva inteiramente<br />
nova, como princípio elementar do universo medieval, também como princípio do<br />
modo <strong>de</strong> trabalhar e se perfazer com existência humana.<br />
Costuma-se dizer que Aristóteles explicita na sua primeira filosofia a<br />
existência do motor que move sem sofrer uma reação por parte do movido, portanto,<br />
do motor imóvel que move todas as coisas (ARISTÓTELES, 1969). Costuma-se<br />
dizer também que o pensamento medieval i<strong>de</strong>ntifica a Deus como motor imóvel e<br />
aponta para noção <strong>de</strong> imobilida<strong>de</strong> como perfeição e mobilida<strong>de</strong> como imperfeição.<br />
Essa atribuição da perfeição à imobilida<strong>de</strong>, e imperfeição à mobilida<strong>de</strong> vem do fato<br />
<strong>de</strong> se ter como o mo<strong>de</strong>lo o movimento físico <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> algo <strong>de</strong> um lugar a<br />
38
outro, como também <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar a imobilida<strong>de</strong> com fixi<strong>de</strong>z, ausência <strong>de</strong> dinâmica e<br />
inércia.<br />
Assim, mobilida<strong>de</strong> é visto como a insegurança, mutabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inconstância<br />
etc. Pelo que acima observamos, em Lúlio, não temos nem sombra <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong><br />
equivocação, quando ele fala <strong>de</strong> <strong>Movimento</strong>. <strong>Movimento</strong> indica aqui como a<br />
plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> fundo, a generosa difusão da dinâmica donativa <strong>de</strong> Deus como “bonum<br />
diffusivum sui”. Assim, quanto mais próximo <strong>de</strong> Deus, tanto mais perfeição, tanto<br />
mais movimento no sentido da dinâmica criativa da doação <strong>de</strong> si, perfeição da<br />
gran<strong>de</strong>za, da imensidão, da profundida<strong>de</strong> abissal, da absoluta soltura da liberda<strong>de</strong>,<br />
do amor.<br />
Essa plenitu<strong>de</strong> é tão gran<strong>de</strong> e assentada em si, sem nenhuma carência e<br />
<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> outra coisa, que ela é fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> da benevolência, sempre autoidêntica<br />
a si mesma: é a imutabilida<strong>de</strong> da serenida<strong>de</strong> plena, inserida no abismo <strong>de</strong><br />
auto-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Essa plenitu<strong>de</strong> do ser que tudo abrange, tudo impregna, tudo faz<br />
próprio, sem com isso per<strong>de</strong>r algo <strong>de</strong> si, mas sempre <strong>de</strong> novo e cada vez novo se<br />
doa infinitamente a todos é o que o pensamento <strong>de</strong> Lúlio entendia por constância,<br />
substância, imutabilida<strong>de</strong>, imobilida<strong>de</strong>. Essa imobilida<strong>de</strong> nada tem a ver com fixi<strong>de</strong>z,<br />
imobilismo, neutralida<strong>de</strong>, indiferença.<br />
Esse fundo da compreensão luliana <strong>de</strong> movimento <strong>de</strong>ve ser sempre <strong>de</strong> novo<br />
evocada quando comentamos o que o texto <strong>de</strong> Lúlio diz do movimento.<br />
No movimento enquanto a passagem da “potência para o ato” não indica o<br />
movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> algo que estava em potência para o ato, mas<br />
límpida e puramente atuação do ato puro que é Deus como o responsável e<br />
dinâmica fontal da criação e filiação. Tudo que é, tem vida, em mil e mil modalida<strong>de</strong>s<br />
da vitalida<strong>de</strong> e vigor, e isto até o nada que é a dinâmica da receptivida<strong>de</strong> e<br />
disposição <strong>de</strong> receber, criada por Deus, vem da mobilida<strong>de</strong> do ato puro, do “ens a<br />
se”, Deus, a plenitu<strong>de</strong> do ser. É <strong>de</strong>le que vem o “ictus”, impulso constante, a<br />
percussão <strong>de</strong> todo e qualquer movimento, passagem, transformação, mutação, e<br />
<strong>de</strong>vir, é <strong>de</strong>le que vem toda a permanência, continuida<strong>de</strong>, assentamento e a entida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> todos os entes.<br />
Por isso, ao esboçar a or<strong>de</strong>nação dos entes no seu todo como o universo<br />
medieval, Lúlio coloca o capítulo do movimento, na seqüência da dinâmica da<br />
constituição universal, como capítulo central e chave que mostra como o ato puro,<br />
39
como a forma, potência atuante do processo matéria-forma, potência e ato, vão<br />
constituindo <strong>de</strong> modo diferenciado cada entida<strong>de</strong>, em cada camada ou esfera dos<br />
entes criados; <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a matéria prima, elementativa, vegetativa, sensitiva, subindo<br />
cada vez mais na <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> do ser, no intelecto, na vonta<strong>de</strong>, na memória, até se<br />
a<strong>de</strong>ntrar a área das substâncias simples, cuja essência se assemelha cada vez mais<br />
em escalação ascen<strong>de</strong>nte ao modo <strong>de</strong> ser da eficiência, do “a se”, do “per se”, e do<br />
“in se” por excelência, que é Deus criador, Pai.<br />
De tudo isso é que se conclui que o <strong>Movimento</strong> (em grego “kénesis”,<br />
“kínein”) 27 é mais do que <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> algo <strong>de</strong> um lugar a outro; mais do que o<br />
vigor <strong>de</strong> mutação, transformação no sentido do aumento da <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> do ser, do<br />
crescimento da plenitu<strong>de</strong>. Mas é pura e ab-soluta positivida<strong>de</strong> da plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser, é<br />
sua difusão e participação nela. Nesse sentido, o crescimento, não é entendido<br />
como preenchimento do que falta, do que se carece, mas como positivida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
participação plena na plenitu<strong>de</strong> do ser.<br />
O maiorquino apresenta o movimento como a “anima caeli” ou seja, a alma<br />
do céu, on<strong>de</strong> o movente move a si mesmo para o seu próprio originário. Assim a<br />
fumaça move-se para cima, pois lá é seu lugar, e a pedra move-se para baixo, o<br />
chão é seu lugar, remetendo sempre ao modo nascivo da constituição universal.<br />
O movimento apresenta suas quatro espécies, como movimento interno nos<br />
entes. Como já foi dito várias vezes acima, na área das substâncias compostas,<br />
estas espécies são a elementativa, a vegetativa, a sensitiva e a imaginativa. Dentro<br />
<strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>stes graus no ser existe um movimento que lhes é próprio, que os<br />
leva da potência para o ato, que conduz para o assentamento na própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
substancial. Todos estes se movem e são movidos, há neles tanto o movimento<br />
interno como externo, on<strong>de</strong> um grau exerce movimento sobre o outro. Lúlio<br />
apresenta também as formas do movimento físico como retilíneo, oblíquo e circular,<br />
mostrando-os como movimentos causados, ou seja, percutidos e repercutidos no<br />
movimento.<br />
O movimento, quanto se apresenta, apresenta sua posição, como Lúlio diz:<br />
“Subalternado pela oitava esfera <strong>de</strong> Saturno”. Quando nos a<strong>de</strong>ntramos na<br />
27 Desta palavra temos o termo cinema que em português remete a passagem e movimento como<br />
imagem. Durante a antiguida<strong>de</strong> muito se falou <strong>de</strong> movimento, mais nesse sentido <strong>de</strong> transformação.<br />
40
cosmologia Luliana, percebemos a continuida<strong>de</strong> do escalonamento dos entes no<br />
ser. Esta continuida<strong>de</strong> se dá nos entes <strong>de</strong> forma pura, que vão se tornando cada vez<br />
mais elevados tendo como primeira esfera fora da terra a esfera lunar, e assim por<br />
diante, sendo a oitava esfera a <strong>de</strong> Saturno, o último planeta do sistema conhecido.<br />
Lúlio com seu conhecimento astrológico, <strong>de</strong>monstra o movimento na<br />
dinâmica <strong>de</strong> participação no ser. Para além da esfera <strong>de</strong> Saturno estava a residência<br />
<strong>de</strong> Deus, abaixo <strong>de</strong>la o movimento se coloca. Os navegadores fixaram idéia na<br />
imagem da esfera <strong>de</strong> armilar, on<strong>de</strong> todas as esferas estão representadas <strong>de</strong> nodo<br />
<strong>de</strong>limitado por anéis, “armilas”, esferas. Estar abaixo da esfera <strong>de</strong> Saturno significa<br />
estar entre os entes criados, ou seja, ter seu pertencimento no ser, mas não sendo o<br />
próprio ser. Como o movimento está abaixo <strong>de</strong>sta esfera ele atua <strong>de</strong> alguma forma<br />
em todas as esferas <strong>de</strong> pertencimento no ser, mas não intervém no ser. Apresenta<br />
seu lugar no escalonamento dos entes 28 .<br />
Desta forma, o ser se apresenta como movente, mas não como movido, o<br />
movimento não intervém nele, pois não pertence à esfera do ser, mas participa no<br />
ser na medida em que se propaga por todas as esferas subalternadas, agindo em<br />
cada uma <strong>de</strong>las naquilo que lhes é próprio, na elementativa, como movimento<br />
elementativo; na vegetativa, como anima vegetativa; na sensitiva e imaginativa,<br />
como ânimus sensitivo e imaginativo, e assim por diante, nestas esferas se<br />
manifesta como in-fomração da matéria, como forma ativando e como matéria<br />
apassivando.<br />
Na esfera da Alma Racional, não há mais relação <strong>de</strong> in-formação da<br />
matéria, somente <strong>de</strong> passagem da potência para o ato, como movimento <strong>de</strong><br />
atualização. A partir da alma racional o movimento age levando numa circularida<strong>de</strong> a<br />
potência para o ato, até o ato puro. No ato puro, no ser, não há mais ‘movimento’,<br />
nem a ativida<strong>de</strong> da forma ou a passivida<strong>de</strong> da matéria, há somente presença, como<br />
pura luz, o “ens a se”, a plenitu<strong>de</strong> do movimento como pleno ser. Como já dissemos<br />
anteriormente, irrompe a esfera do espírito, como liberda<strong>de</strong> e autonomia; e nesta<br />
esfera o movimento tem outra disposição, que é própria dos entes livres. O Ser é o<br />
cume da autonomia, o totalmente livre, <strong>de</strong> nada <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, o “ens a se”, que tudo<br />
move, mas que por nada é movido, ou seja movente imóvel.<br />
28 Apêndice II.<br />
41
A maneira que o movimento se expressa, personificado, falando como se<br />
fosse um ente humano, num diálogo pessoal <strong>de</strong> tu-a-tu, parece-nos ser uma forma<br />
literária. Mas, quando vemos Lúlio se expressando <strong>de</strong>sta forma, percebemos<br />
também uma intuição quanto à relação entre Deus e as criaturas e as criaturas entre<br />
si. Parece se tratar <strong>de</strong> um diálogo cósmico e vibrante que se origina na<br />
compreensão <strong>de</strong> criação como filiação divina, o movimento se dirige a <strong>Raimundo</strong><br />
para expor a eles sua dinâmica, sua substância, quem ele é, sempre na perspectiva<br />
<strong>de</strong> apresentar a dinâmica <strong>de</strong> participação dos entes no ser.<br />
Neste ponto, é importante apontar para o fato <strong>de</strong> que muitos pensadores<br />
escolásticos, da época <strong>de</strong> Lúlio, mesmo sendo extremamente secos e formais,<br />
sempre começavam seus tratados com uma espécie <strong>de</strong> oração e a partir <strong>de</strong>la<br />
<strong>de</strong>corriam todo o trabalho como uma oração dialogal, como que <strong>de</strong>monstrando que<br />
a realida<strong>de</strong> básica do ente na participação do ser é nada menos que encontro <strong>de</strong><br />
diálogo ressonante com Deus. 29<br />
Notemos como <strong>Raimundo</strong> se utiliza <strong>de</strong> termos como ente, ser, substância e<br />
coisa em diferentes tonâncias. Ente vem do latim “ens, -tis” e é particípio ativo do<br />
verbo “esse”, isto é, do verbo ser. Então, ente (“ens”) significa em sendo. Ao nosso<br />
enten<strong>de</strong>r corriqueiro ente diz algo estático, parado, como algo que está ali sem vigor,<br />
objeto. Então, acabamos transformando o ente em um quê fixo, endurecido,<br />
encapsulado, enquanto sua origem está numa atuação, numa atualização, num vigor<br />
para o constante vir ao ato. Assim, a tradução mais a<strong>de</strong>quada do ente, do “ens”<br />
seria: em sendo, e na própria conotação do em sendo notamos a presença do<br />
movimento.<br />
Ente diz tudo aquilo que se refere ao verbo ser, em seu sentido mais geral e<br />
mais in<strong>de</strong>terminado. A generalida<strong>de</strong> e a in<strong>de</strong>terminação não significa um vazio<br />
abstrato, como que formal, mas sim uma profunda imensidão, uma grandiosa<br />
vastidão, e ao mesmo tempo uma força, um constante vigor <strong>de</strong> ser em todos os seus<br />
29 Os textos <strong>de</strong> Santo Anselmo <strong>de</strong> Cantuária são exemplos <strong>de</strong>sse modo medieval <strong>de</strong> expor a<br />
concreção <strong>de</strong> universo a partir <strong>de</strong> uma oração dialogal, numa relação entre os entes e entre os entes<br />
e o Ser. “Busca, por um momento, a Deus, e <strong>de</strong>scansa um pouco nele. Entra no escon<strong>de</strong>rijo <strong>de</strong> tua<br />
mente, aparta-te <strong>de</strong> tudo, exceto <strong>de</strong> Deus e daquilo que po<strong>de</strong> levar-te a Ele, e, fechada a porta,<br />
procura-o. (...) dize-lhe: Quero teu rosto, busco com ardor teu rosto, ó Senhor.” (SANTO ANSELMO,<br />
1973, p. 105)<br />
42
<strong>de</strong>talhes e concretizações. O ser é, ao passo que o ente – em sendo – se apresenta<br />
como movimentação, passagem, transformação, vir-a-ser.<br />
Uma alegoria que po<strong>de</strong> nos mostrar o modo como Lúlio compreen<strong>de</strong> a<br />
dinâmica dos princípios-binômios matéria-forma e ato-potência enquanto formadores<br />
da substância única <strong>de</strong> todo o universo, é uma gran<strong>de</strong> sinfonia cósmica, que parte<br />
<strong>de</strong> um imenso silêncio universal, “antikínein”, serenida<strong>de</strong>, em que cada acor<strong>de</strong>, nota,<br />
grupos <strong>de</strong> notas, percussão e repercussão, é um constante vir à fala do abismo <strong>de</strong><br />
possibilida<strong>de</strong>s do silêncio, que por muitas vezes permanece obscurecido, mas<br />
atuante, em toda a sinfonia. Assim, no ser, po<strong>de</strong>mos perceber inúmeros momentos<br />
do mesmo. Primeiro silêncio abissal, imensidão sem limites; <strong>de</strong>pois a mesma<br />
imensidão e silêncio, porém como atuação e expansão, e ao mesmo tempo como<br />
vazio <strong>de</strong> passivação e recepção. Portanto, participante do todo que está sempre<br />
presente em todas as pulsações, indo e vindo constitui cada pulsação, vibração<br />
como concreção <strong>de</strong>ste ou daquele ente.<br />
Se enten<strong>de</strong>rmos cada ente como uma irrupção <strong>de</strong>ssa imensidão, então nos<br />
aproximamos da compreensão do ser como plenitu<strong>de</strong>, como movimento, vivo e<br />
dinâmico do ser em todos os “em sendo”. Tudo e nada numa total e simultânea<br />
relação <strong>de</strong> presença e ausência, como total doação e recepção do ser, isto é matéria<br />
e forma / ato e potência. É esta dinâmica simultânea do todo e do nada que se<br />
constitui como ente, em sendo, que Lúlio chama <strong>de</strong> coisa, sendo está ou aquela. A<br />
partir <strong>de</strong>sta relação <strong>de</strong> pura passivação (leia-se receptivida<strong>de</strong>) do nada e ativação<br />
(leia-se doação) do tudo vão surgindo agregações <strong>de</strong> coisas como concreções do<br />
universo.<br />
Essa dinâmica <strong>de</strong> pura receptivida<strong>de</strong> e pura doação do todo é absoluta e<br />
primitiva, pois se trata do primeiro, mais elementar, abrir-se do todo do ser como<br />
constituindo o uno. Ou seja, uma só substância como todo, “uma só substância <strong>de</strong><br />
todo o universo” (LÚLIO, 2001, p. 125). Diz-se substância pois ele acentua o<br />
momento e movimento ou dinâmica da pregnância, atuação do tudo, como repouso,<br />
como assentar-se sereno no fundo abissal do nada, ou melhor, da plenitu<strong>de</strong> do ser<br />
em sua generosa difusão, ou gratuida<strong>de</strong> da doação e recepção.<br />
Abismo do nada, gratuida<strong>de</strong> do ser, é matéria prima ou primeira, ou seja,<br />
potência receptiva, “potencia obediencialis”. Forma absoluta diz, por sua vez,<br />
plenitu<strong>de</strong> absoluta como doação gratuita do ser. Porém, tanto uma como outra se<br />
43
dão simultaneamente, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ando inúmeras pulsações <strong>de</strong> percussão e<br />
repercussão, em doação e recepção, como uma explosão, difusão, expansão,<br />
<strong>de</strong>slanchando o movimento criacional.<br />
Esse modo <strong>de</strong> dar-se do todo em percussão e repercussão, isto é, presença<br />
absoluta, solta, livre, na difusão do universo, constitui matéria e forma como “a<br />
substância geral <strong>de</strong> todo o universo” (Lúlio, 2001, 125). Geral, significa não somente<br />
universal, mas também generativo, que leva a nascer: a gênese.<br />
Parece que Lúlio participava <strong>de</strong>ssa concepção <strong>de</strong> criação on<strong>de</strong> o Criador,<br />
cria o nada, como passivida<strong>de</strong>, plena recepção, gratuida<strong>de</strong>, como “potencia<br />
obediencialis”, como generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recepção, como matéria, e no mesmo instante<br />
cria a difusão, a doação <strong>de</strong> si, como forma, como ato. Temos a impressão <strong>de</strong> que é<br />
este o pano <strong>de</strong> fundo que os medievais tinham quando diziam que Deus criou o<br />
universo “ex nihilo sui et subiecti”, que criou o universo a partir do nada, do nada <strong>de</strong><br />
si, da sua liberda<strong>de</strong> e gratuida<strong>de</strong>.<br />
Esse movimento vigoroso creacional, como toque <strong>de</strong> doação e recepção<br />
divina, como ignição <strong>de</strong> explosão, po<strong>de</strong> ser o que Lúlio chama <strong>de</strong> composição<br />
absoluta, ou seja, total liberda<strong>de</strong> no instante do toque.<br />
Para nós, torna-se difícil compreen<strong>de</strong>r composição como percussão e<br />
repercussão do todo, como na música, on<strong>de</strong> cada nota é composição do todo em<br />
sua percussão e repercussão, pois compreen<strong>de</strong>mos composição como ajuntamento,<br />
disso mais aquilo, como sobreposição <strong>de</strong> algo mais algo. Lúlio nos remete para a<br />
compreensão <strong>de</strong> composição como efervescência do ser em pulsações do todo, em<br />
percussão e repercussão, que cada vez diz o todo em seu bojo estrutural.<br />
Nessa composição generática há um “ictus” (golpe) inicial que perpassa por<br />
todas as constelações <strong>de</strong> entes, por todos os entes, que acabamos chamando<br />
estaticamente <strong>de</strong> bonda<strong>de</strong>, gran<strong>de</strong>za, duração, po<strong>de</strong>r, instinto, apetite, vonta<strong>de</strong>,<br />
verda<strong>de</strong>, prazer e perfeição. Que parecem ser repetições constantes do “ictus”, em<br />
inúmeras ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> repercussões. A isto Lúlio chamou <strong>de</strong> princípios inatos, pois<br />
são anteriores na dinâmica da ignição a tudo o que vem à fala como percussão e<br />
repercussão.<br />
Essa anteriorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> princípios não é anteriorida<strong>de</strong> estática a modo <strong>de</strong><br />
causa e efeito, mas numa relação, diria Lúlio, da correlativida<strong>de</strong> concordante, <strong>de</strong><br />
modo que não há um anterior e um posterior. Sendo tudo uma relação <strong>de</strong> percussão<br />
44
e repercussão do “ictus” inicial, o anterior e o posterior se apresentam como<br />
concomitância <strong>de</strong> interação, abrindo-se como mundo, como paisagem. Daí que nos<br />
diz o movimento: “Sou ente absoluto, primeiro, saindo e progredindo dos princípios<br />
inatos do céu (...) o céu constitui-se da composição <strong>de</strong> forma e matéria e <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />
predicamentos. Essa forma se move por mim ativando, e move a matéria<br />
apassivando”. (Lúlio, 2001, p. 125)<br />
Temos <strong>de</strong> tentar enten<strong>de</strong>r absoluto como total simbiose <strong>de</strong> forma e matéria,<br />
<strong>de</strong> ato e potência, on<strong>de</strong> a forma ao se doar recebe o ser recebido da matéria, e a<br />
matéria é o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> receber a vigorosida<strong>de</strong> da forma, numa intimida<strong>de</strong> dialogal que<br />
se repete infinitamente na alegria da gratuida<strong>de</strong>.<br />
À atuação da imensidão da presença da auto-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do ser, solta, livre,<br />
isto é, à vastidão da profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> doação do ser, Lúlio chama <strong>de</strong> absoluto. Esta<br />
doação generosa do ser é simultaneamente a modo <strong>de</strong> matéria prima, a modo <strong>de</strong><br />
profundida<strong>de</strong> e vitalida<strong>de</strong> do nada, enquanto matéria é a recepção grata, o<br />
acolhimento do ser que frutifica em mil e mil eclosões dos entes em sua totalida<strong>de</strong>.<br />
Assim a forma é potência, é o abismo potencial para todas as substâncias<br />
particulares.<br />
Na entificante sinfonia do ser no ente e do ente no ser, o nada não significa<br />
privação, nihilida<strong>de</strong>, mas total liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> recepção, <strong>de</strong> modo que tudo é contextura<br />
da tecitura da composição sinfônica do ente no ser e do ser no ente, numa<br />
correspondência concordante do universo. Qualquer privação, diferença ou<br />
negação, é variante da infinitu<strong>de</strong> e plenitu<strong>de</strong> da presença da doação generosa do<br />
ser, cada vez no seu modo mais próprio <strong>de</strong> doação e recepção. Assim, o nada é<br />
“potencia obediencialis” como total acolhida na silenciosa recepção, como espera do<br />
inesperado na percussão e repercussão do ser. Então, <strong>de</strong>sse modo, o absoluto está<br />
no particular, na geração e corrupção, no surgir, crescer e consumar-se dos entes no<br />
seu ser.<br />
Assim, os princípios-binômios matéria-forma perpassam todos os momentos<br />
do processo da constituição dos entes no seu todo enquanto substância composta.<br />
E nas substâncias simples este binômio toma outra qualificação do ser e passa a<br />
chamar-se ato e potência. Então, na dinâmica <strong>de</strong> geração e corrupção, enquanto<br />
movimento, o princípio vai estruturando os diversos níveis da intensida<strong>de</strong> do ser dos<br />
entes.<br />
45
Na passagem do reino das substâncias compostas para a substância<br />
simples, Lúlio interpõe um diálogo com o <strong>Movimento</strong> apontado para a concreção não<br />
mais a partir do binômio matéria-forma, mas toda essa concreção numa outra<br />
pujança. Numa outra luminosida<strong>de</strong> que chamamos <strong>de</strong> ato e potência.<br />
A seguir, como foi anunciado bem no início <strong>de</strong>sse nosso trabalho,<br />
apresentamos aqui o capítulo que segue ao do <strong>Movimento</strong> que se <strong>de</strong>nomina <strong>Do</strong><br />
Intelecto. E isto, praticamente, a modo <strong>de</strong> uma conclusão, somente para ser lido<br />
lenta e atentamente, para vermos como a compreensão luliana <strong>de</strong> <strong>Movimento</strong><br />
<strong>de</strong>nsifica e dinamiza a compreensão do Intelecto, reconduzindo-o para dimensão<br />
ontológica do ser ou essência da existência humana.<br />
46
À MODO DE UMA CONCLUSÃO: DO INTELECTO<br />
O modo como Lúlio expõe os princípios “forma e matéria” e “ato e potência”<br />
é <strong>de</strong>nso e complexo, <strong>de</strong> maneira que se torna difícil compreendê-lo. Assim, não<br />
conseguimos apresentá-lo nos <strong>de</strong>talhes e nuances <strong>de</strong> sua exposição. Além disso, o<br />
modo como ele compreen<strong>de</strong> o princípio “matéria e forma” e o vai <strong>de</strong>senvolvendo no<br />
<strong>de</strong>correr <strong>de</strong> seu pensamento, expressando-o nos diversos níveis <strong>de</strong> escalação dos<br />
entes no ser, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os mais ínfimos (substância composta), até chegar aos níveis<br />
mais elevados, do reino dos espíritos (substância simples), sob a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong><br />
“ato e potência”, é muito sutil e parece diferenciar um pouco do modo com que os<br />
outros autores medievais lidavam com estes princípios.<br />
O trabalho <strong>de</strong>senvolvido até aqui serviu como que para lançar as bases <strong>de</strong><br />
uma interpretação do capítulo 12 do “Livro da Lamentação da <strong>Filosofia</strong>”, intitulado:<br />
“<strong>Do</strong> Intelecto” e subseqüentes. Como foi dito no início, o presente trabalho não<br />
tematiza nem tem como seu núcleo esse capítulo 12, <strong>Do</strong> Intelecto e/ou<br />
subseqüentes. No entanto apresentamos, por fim, como que a modo <strong>de</strong> uma<br />
conclusão <strong>de</strong>sse nosso presente trabalho o texto bilíngüe do capítulo 12. <strong>Do</strong><br />
Intelecto. Aqui ele apenas aparece como uma espécie <strong>de</strong> ilustração, numa tentativa<br />
<strong>de</strong> chamar a atenção sobre “<strong>de</strong> como a explicação luliana do <strong>Movimento</strong>” modifica e<br />
<strong>de</strong>nsifica a nossa compreensão usual do Intelecto, nos conduzindo a compreen<strong>de</strong>r<br />
as chamadas faculda<strong>de</strong>s da alma Intelecto, Vonta<strong>de</strong> e Memória como dinâmica,<br />
como movimento do ser da existência humana, como imagem e semelhança da<br />
dignida<strong>de</strong> e a gran<strong>de</strong>za divina, presente no imenso dom do intelecto que nos foi<br />
dado. Repetindo o que dissemos para bem <strong>de</strong>stacá-lo: as colocações lulianas feitas<br />
no capítulo 11. <strong>Do</strong> <strong>Movimento</strong>, nos conduzem a ver o Intelecto como um dos<br />
momentos da imagem semelhança <strong>de</strong> Deus em nós, filhos seus.<br />
Concluímos esse pequeno trabalho <strong>de</strong> conclusão do curso <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>,<br />
renovando o convite <strong>de</strong> ler com <strong>de</strong>mora e vagar, o capítulo 12 do “Livro da<br />
Lamentação da <strong>Filosofia</strong>”, à luz do que foi dito no capítulo 11, <strong>Do</strong> <strong>Movimento</strong>, para<br />
47
intuirmos a que gran<strong>de</strong>za Deus nos chamou, criando-nos como seus filhos no Filho<br />
Jesus Cristo, Deus encarnado.<br />
Assim, esta renovada e repetida leitura <strong>de</strong>ve levar em consi<strong>de</strong>ração o modo<br />
como Lúlio compreen<strong>de</strong> e apresenta o ser em suas relações <strong>de</strong> doação e recepção,<br />
<strong>de</strong> tudo e nada, <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong> participação, <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> e diversida<strong>de</strong>, que<br />
em sua máxima pujança, alegremente, cria o universo, permitindo-nos visualizar o<br />
criador como amor puro, amor em difusão. Que <strong>de</strong> sua unida<strong>de</strong> como efervescência<br />
irrompe a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> constelações dos entes, todos na harmônica sinfonia da<br />
criação.<br />
DE INTELLECTU 30<br />
Ait Intellectus: Sum substantia creata coniuncta, cui<br />
proprie competit intelligere, et per acci<strong>de</strong>ntes cre<strong>de</strong>re.<br />
Dixit Intellectus: Per divinum intellectum sum creatus.<br />
Bonitas est mihi associata et mecum coniuncta per<br />
divinam bonitatem, magnitudo per divinam<br />
magnitudinem, duratio per divinam aeternitarem,<br />
potestas per divinam potestatem, voluntas per<br />
diuinam voluntati, virtus per divinam virtutem, veritas<br />
per divinam veritatem, <strong>de</strong>lectatio per divinam gloriam,<br />
et huiusmodi. Per bonitatem sum bonus, per<br />
magnitudinem sum magnus, per aeternitatem<br />
durabilis, per potestatem potens etc. Et i<strong>de</strong>o cum sic<br />
associatus, sum potens ad intelligendum generalia, ut<br />
puta genus, spedies, abstrata, eo quia bonum,<br />
magnum etc., est. Cum omnibuis istis sum<br />
compositus, ut bene, magne etc. objectum primum,<br />
qui est meus finis, et omnia propter ipsum. Cum istis<br />
facio scientiam profundam <strong>de</strong> bonitate, magnitudine<br />
etc.<br />
Rursus ait Intelectus: Quoniam com omnibus istis<br />
sum compositus, in tanto quod quodibet est in me, et<br />
ego in ipsis essentialiter, multiplicamus extensionem<br />
et unam essentiam. Et hoc i<strong>de</strong>m est <strong>de</strong> voluntate et<br />
memoria, in tanto, quod sumus uma essentia, uma<br />
anima immortalis, composita ex predictis.<br />
DO INTELECTO 31<br />
Disse o Intelecto: Sou substância criada conjunta, à<br />
qual compete propriamente enten<strong>de</strong>r e, por aci<strong>de</strong>nte,<br />
crer.<br />
Disse o Intelecto: Fui criado pelo intelecto divino. A<br />
bonda<strong>de</strong> me é associada e conjunta comigo pela<br />
bonda<strong>de</strong> divina, a gran<strong>de</strong>za pela gran<strong>de</strong>za divina, a<br />
duração pela divina eternida<strong>de</strong>, o po<strong>de</strong>r pelo po<strong>de</strong>r<br />
divino, a vonta<strong>de</strong> pela vonta<strong>de</strong> divina, a virtu<strong>de</strong> pela<br />
virtu<strong>de</strong> divina, a verda<strong>de</strong> pela verda<strong>de</strong> divina, a<br />
<strong>de</strong>leitação pela divina glória, e assim por diante. Pela<br />
bonda<strong>de</strong> sou bom, pela gran<strong>de</strong>za sou gran<strong>de</strong>, pela<br />
eternida<strong>de</strong> sou durável, pelo po<strong>de</strong>r sou po<strong>de</strong>roso, etc.<br />
E, por isso, como sou assim associado, sou po<strong>de</strong>roso<br />
para enten<strong>de</strong>r as coisas gerais, por exemplo, o<br />
gênero, a espécie, as coisas abstratas, pelo fato <strong>de</strong><br />
ser bom, gran<strong>de</strong>, etc. Com todos estes sou<br />
composto, como bem, gran<strong>de</strong>mente, etc., o objeto<br />
primeiro, que é meu fim e todas as coisas por causa<br />
<strong>de</strong>le. Com esses faço ciência profunda sobre a<br />
bonda<strong>de</strong>, a gran<strong>de</strong>za, etc.<br />
De novo disse o Intelecto: Porque sou composto com<br />
todos esses, na medida em que cada um está em<br />
mim e eu estou essencialmente neles, multiplicamos<br />
a extensão e a única essência. E isso mesmo vale da<br />
vonta<strong>de</strong> e da memória, na medida em que somos<br />
uma essência, uma alma imortal composta das coisas<br />
30 Texto latino extraído do Raimundi Lulii Opera Latina, Volume VII (1975), Obras: 168-177 - Parisiis<br />
anno 1311 composita. Obra 170. P. 114-116.<br />
31 Tradução a partir do texto latino, extraído <strong>de</strong>: LÚLIO, <strong>Raimundo</strong>. Escritos Antiaverroístas (1309-<br />
1311) – <strong>Do</strong> nascimento do Menino Jesus / Livro da Lamentação da <strong>Filosofia</strong>. Tradução para o<br />
português: Brasília Bernar<strong>de</strong>te Rosson, Sérgio Alci<strong>de</strong>s e Ronald Polito,. Vol IV. Porto Alegre:<br />
Edipucrs. 2001. p.162-164. (Coleção Pensamento Franciscano).<br />
48
acima ditas.<br />
Rursus ait intellectus: Divinus intellectus est infinitus,<br />
et comprehendit omnia. Et i<strong>de</strong>o cognoscit me<br />
quantum et finitum, ratione cuius necessitatus sum,<br />
quod sim quantus; et sic <strong>de</strong> qualitate mea, relatione,<br />
et aliis praendicamentis, in mea substantia sustentatis<br />
et cum ipsa coniunctis. Et i<strong>de</strong>o oportet me esse<br />
particulatum, secundum quod sum cum corpore Petri<br />
coniutus; et est aliis intellectus a me distinctus cum<br />
corpore Guillermi coniunctus, et sic <strong>de</strong> allis. Et hoc<br />
est, quia summus intelectus requirit quoad suam<br />
dignitatem, quod per plures intelectus sit coniutus et<br />
laudatus, et in gloria simpiterna beatificans intellectus<br />
beatos.<br />
Iterum ait Intellectus: Sum correlatus, eo quia sum<br />
intellectus agens, intelligens; et sum intellectus<br />
possibilis, qui est propria passio, in qua sunt species<br />
intelligibiles; et per eas entia realia sunt cognita et<br />
suum intelligere intrinsecum. Omnia ista sunt per<br />
essentiam, quia sunt partes meae. Ipsa autem sunt<br />
distincta, quia sunt relata, Sine qua distinctione non<br />
essent relata, neque haberent naturam, neque in<br />
memet ipso facerem scientias; neque possem extra<br />
ipsas facere, quia potentia non agit naturalier extra<br />
suam essentiam.<br />
Rursus ait Intellectus: Quia sum intellectus agens,<br />
sum forma; et quia sum intellectus possibilis, sum<br />
matéria. Et sumforma cum forma bonitatis, et matéria<br />
bonitatis, et sic <strong>de</strong> magnitu<strong>de</strong> etc. Et sum connexio, ut<br />
puta intelligere cum bonificare, magnificare etc.<br />
Iterum ait Intellectus: Per meam formam sum activus,<br />
Ipsa actio est primitiva et non praedicamentalis, quia<br />
cum ipsa forma est conversa; et i<strong>de</strong>o ipsa actio est<br />
substantialis. Ab ipsa autem oritur actio acci<strong>de</strong>ntalis<br />
praesicamentalis, et sic <strong>de</strong> matéria suo modo. Actio et<br />
passio praedicamentales sunt instrumenta, cum<br />
quibus acquiruntur species abstractae e sensu et<br />
imaginatione illuminatae, et radicatae in mea propria<br />
passione, in qua sunt factae intelligibiles. Ipsae<br />
intelligibilitates sunt peregrinae, acquisitae per<br />
acci<strong>de</strong>ns; et sic <strong>de</strong> intelligire peregrino, orto ab<br />
intellectivo it intelligibili preaedicamentatibus.<br />
Rursus dixit Intellectus: Sum vita; et in quantum sum<br />
vita, sum vita corporis et forma, cum quo sum<br />
coniunctus. Ratio huius est, quia reduco quattuor<br />
potentias corporis, ut puta elementativam,<br />
vegetatiuan, sensitivam et imaginativam in speciem<br />
humanam. Ipse autem homo est per me perfectus er<br />
movet me ad intelligendum, cum mea natura sit<br />
intelligere; et hoc naturaliter. Moraliter autem, si bene<br />
moveat me ad intelligendum, sum verus et bonus. Si<br />
autem ipse homo est malus moraliter, et movet me<br />
sophistice, sum malus et falsus, quia a fine meo<br />
<strong>de</strong>viatus sum et <strong>de</strong> peccato habituatus.<br />
De novo disse o Intelecto: O intelecto divino é infinito<br />
e compreen<strong>de</strong> todas as coisas. E, por isso, conheceme<br />
como quanto e finito, razão pela qual sou<br />
necessitado, já que sou quanto; e o mesmo diga-se<br />
<strong>de</strong> minha qualida<strong>de</strong>, relação e outros predicamentos,<br />
sustentados na minha substância e com ela<br />
conjuntos. E, por isso, é necessário que eu seja<br />
particulado, conforme sou unido ao corpo <strong>de</strong> Pedro; e<br />
há outro intelecto distinto <strong>de</strong> mim unido ao corpo <strong>de</strong><br />
Guilherme e assim por diante. Isso acontece, porque<br />
o sumo intelecto requer, quanto a sua dignida<strong>de</strong>, que<br />
seja conhecido e louvado por muitos intelectos e que<br />
na glória sempiterna torne bem-aventurados os<br />
intelectos beatos.<br />
De novo disse o Intelecto: Sou correlato, pois sou<br />
intelecto agente, inteligente; e sou intelecto possível,<br />
que é a própria passivida<strong>de</strong> na qual estão as<br />
espécies inteligíveis; e por essas são conhecidos os<br />
entes reais e seu enten<strong>de</strong>r intrínseco. Todas essas<br />
coisas existem pela essência, porque são partes<br />
minhas. Elas mesmas, porém, são distintas, porque<br />
são relativas. Sem essa distinção, não seriam<br />
relativas, nem teriam natureza e em mim mesmo não<br />
faria ciências; nem po<strong>de</strong>ria fazer nada fora <strong>de</strong>las,<br />
porque a potência não age naturalmente fora <strong>de</strong> sua<br />
essência.<br />
De novo disse o Intelecto: Porque sou intelecto<br />
agente, sou forma e, porque sou intelecto possível,<br />
sou matéria. E sou forma com forma <strong>de</strong> bonda<strong>de</strong> e<br />
matéria com matéria <strong>de</strong> bonda<strong>de</strong> e assim da<br />
gran<strong>de</strong>za, etc. E sou conexão, como, por exemplo, o<br />
enten<strong>de</strong>r com o bonificar, o magnificar, etc.<br />
Mais uma vez disse o Intelecto: Por minha forma sou<br />
ativo. A própria ação é primitiva e não predicamental,<br />
porque se converte com a mesma forma e, por isso, a<br />
própria ação é substancial. Dessa mesma origina-se<br />
a ação aci<strong>de</strong>ntal predicamental e, a seu modo,<br />
acontece o mesmo com a matéria. Ação e<br />
passivida<strong>de</strong> predicamentais são instrumentos, com<br />
os quais se adquirem as espécies abstraídas pelo<br />
sentido e iluminadas pela imaginação e radicadas na<br />
minha própria passivida<strong>de</strong>, na qual foram feitas<br />
inteligíveis. As mesmas inteligibilida<strong>de</strong>s são<br />
peregrinas, adquiridas por aci<strong>de</strong>nte; o mesmo diga-se<br />
do enten<strong>de</strong>r peregrino, originado do intelectivo e do<br />
inteligível predicamentais.<br />
Novamente disse o Intelecto: Sou vida; e enquanto<br />
sou vida, sou vida e forma do corpo, com o qual<br />
estou conjunto. A razão disso é porque transformo<br />
em espécie humana as quatro potências do corpo, a<br />
saber: a elementativa, a vegetativa, a sensitiva e a<br />
imaginativa. O próprio homem, entretanto, é perfeito<br />
através <strong>de</strong> mim e me move para enten<strong>de</strong>r, visto que<br />
minha natureza é enten<strong>de</strong>r e isso naturalmente.<br />
Moralmente, porém, se bem me move para enten<strong>de</strong>r,<br />
sou verda<strong>de</strong>iro e bom. Se, no entanto, o próprio<br />
homem é mau moralmente, e me move<br />
sofisticamente, sou mau e falso, porque sou <strong>de</strong>sviado<br />
do meu fim e habituado ao pecado.<br />
49
Rursus ais Intellectus: Meus ordo est, quod sim<br />
primitivus um acquirendo species, distinguendo,<br />
concordando, contrariando. Et si non possum ipsas<br />
intelligere, faciam ipsas credibiles; et sic per acci<strong>de</strong>ns<br />
sum creditivus, positivus. Et quando sum in médio<br />
inter intelligere et cre<strong>de</strong>re, sum opinativus,<br />
dubitativus, et extra quietem et in labore positus, in<br />
tanto quod sum promptus ad conclu<strong>de</strong>ndum verum<br />
aut falsum. Si concludo verum, sum quietatus; si<br />
falsum, sum <strong>de</strong> ignorantia habituatus.<br />
Rersus dixit Intellectus: Inter me et hominen, in quo<br />
sum, est differentia, cum sim uma pars eius. Quoad<br />
meam naturam nunquam sum fallax, cum meum<br />
proprium abiectum sit intelegibile, et mea natura sit ad<br />
hoc disposita. Homo autem est compositu ex pluribus<br />
potentiis. Ipse movet me, sicut totum movet suas<br />
partes. Et i<strong>de</strong>o per ipsum, si fallor, <strong>de</strong>ficio, non per<br />
me, contra meam naturam, quoniam quandoque<br />
homo habet ita magnam voluntatem ad <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ratum,<br />
quod non habeo libertatem antece<strong>de</strong>ndi neque<br />
inquirendi veritatem; et sic <strong>de</strong> ira et huiusmodi.<br />
Rursus ait Intellectus: Duobus modis intelligo et facio<br />
scientiam. Primo per sensum et imaginationem <strong>de</strong><br />
rebus inferioribus tanquam in artibus liberalibus et<br />
mechanicis, et <strong>de</strong> moralibus. Alium modum habeo per<br />
ea, quae sunt superiora, ut puta per Deum et per<br />
suas dignitates et per substantias separatas. Et sicut<br />
facio scientias inferiores per possibile et impossibile,<br />
sic facio scientias superiores per possibile ET<br />
impossibile. Et magis sum altus et assertivus per<br />
possibilitatem et impossibilitatem ad superiora, quam<br />
ad inferiora; cum Deus sit superius agens cum sua<br />
bonitate, magnitudine etc., bene, magne, etc. ea,<br />
quae sunt ei possibilia, et evitet impossibilia, cum non<br />
posset male agere etc.<br />
Confiteor, quod Deus est altius obiectum, quam ego<br />
possim intelligere. Et magis est per se intelligibilis sua<br />
bonitas, magnitudo etc. et etiam suum agere<br />
intrinsecum et extrinsecum, quam ego possim<br />
intelligere, cum sim potentia inferior, et ipse obiectum<br />
superius. De istis autem aliis scientiis, quae sunt<br />
inferiores, nom est sic, quae fiunt per sensum et per<br />
imaginationem; quoniam ego sum magis dispositus et<br />
promptus ad intelligendum superiora, cum sim<br />
spiritus, quam sensus et imaginatio sint mihi<br />
sufficientes, quia sunt <strong>de</strong> genere corporeitatis.<br />
Rursus ait Intellectus: Confiteor, quod divinus<br />
intellectus est infinitus et profundus per se et per<br />
suam bonitatem, magnitudinem etc., cum sit ab omni<br />
materia et acci<strong>de</strong>nte disparatus et cum ipsis<br />
rationibus conuersus. Talis autem infinitas et<br />
profunditas, quam habet quoad sua correlativa<br />
infinita, a nullo ente potest impediri, cum omnia alia<br />
sint inferiora, et ipsae dignitates superiores um<br />
superlativo gradu existentes. Hoc autem, quod<br />
confiteor, necessarium est esse verum; quia si non,<br />
altior essem in obiectando Deum fictum sive<br />
chimaeram spiritualem, quam obiectendo Deum<br />
De novo disse o Intelecto: Minha or<strong>de</strong>m é que eu seja<br />
primitivo no adquirir as espécies distinguindo,<br />
concordando, contrariando. E se não posso entendêlas,<br />
as faça críveis; e assim, por aci<strong>de</strong>nte, sou<br />
credível, positivo. E, quando estou a meio caminho<br />
entre enten<strong>de</strong>r e crer, sou opinativo, dubitativo e fora<br />
<strong>de</strong> tranqüilida<strong>de</strong> e posto em estado <strong>de</strong> sofrimento,<br />
visto que sou propenso a concluir o verda<strong>de</strong>iro ou o<br />
falso. Se concluo o verda<strong>de</strong>iro, me aquieto; se o<br />
falso, sou habituado à ignorância.<br />
De novo disse o Intelecto: Entre mim e o homem, no<br />
qual estou, há diferença, visto que sou uma parte <strong>de</strong>le.<br />
Quanto à minha natureza nunca sou falaz, já que o meu<br />
próprio objeto é inteligível e minha natureza é disposta a<br />
isso. O homem, no entanto, é composto <strong>de</strong> várias<br />
potências. Ele move-me, assim como o todo move as<br />
suas partes. E, por isso, <strong>de</strong>vido a ele, se enganado,<br />
falho, não por mim, contra minha natureza, mas porque,<br />
às vezes, o homem tem uma tão gran<strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> para o<br />
<strong>de</strong>sejado, que eu não tenho liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> antece<strong>de</strong>r nem<br />
<strong>de</strong> inquirir a verda<strong>de</strong>; e o mesmo diga-se da ira e assim<br />
por diante.<br />
De novo disse o Intelecto: Eu entendo e faço ciência<br />
<strong>de</strong> duas maneiras. Primeiro, pelo sentido e pela<br />
imaginação das coisas inferiores, como nas artes<br />
liberais e mecânicas e nas morais. Tenho um outro<br />
modo através <strong>de</strong>ssas coisas, que são superiores, por<br />
exemplo, por Deus e por suas dignida<strong>de</strong>s e pelas<br />
substâncias separadas. E, assim como faço as<br />
ciências inferiores através do possível e do<br />
impossível, assim faço as ciências superiores,<br />
através do possível e do impossível. E sou mais alto<br />
e assertivo pela possibilida<strong>de</strong> e impossibilida<strong>de</strong> para<br />
as coisas superiores do que para as inferiores; visto<br />
que Deus é superior, fazendo com sua bonda<strong>de</strong> bem,<br />
gran<strong>de</strong>mente, etc., aquelas coisas, que lhe são<br />
possíveis e evita as impossíveis, dado que não po<strong>de</strong><br />
agir mal, etc.<br />
Confesso que Deus é objeto mais alto do que aquele<br />
que eu possa enten<strong>de</strong>r. E mais é por si inteligível sua<br />
bonda<strong>de</strong>, gran<strong>de</strong>za, etc., e também seu agir<br />
intrínseco e extrínseco do que eu possa enten<strong>de</strong>r,<br />
porque sou potência inferior e ele objeto superior.<br />
Com as outras ciências, porém, que são inferiores,<br />
que se fazem pelo sentido e pela imaginação, não é<br />
assim; porque eu estou mais disposto e pronto para<br />
enten<strong>de</strong>r as coisas superiores, já que sou espírito, do<br />
que o sentido e a imaginação me são suficientes,<br />
porque são do gênero da corporeida<strong>de</strong>.<br />
Novamente disse o Intelecto: Confesso que o<br />
intelecto divino é infinito e profundo por si e por sua<br />
bonda<strong>de</strong>, gran<strong>de</strong>za, etc., visto que é oposto a toda<br />
matéria e ao aci<strong>de</strong>nte e afinado com as próprias<br />
razões. Tal infinida<strong>de</strong> e profundida<strong>de</strong>, que tem quanto<br />
aos seus correlativos infinitos, não po<strong>de</strong>m ser<br />
impedidas por nenhum ente, visto que todas as<br />
outras coisas são inferiores e as próprias dignida<strong>de</strong>s<br />
são superiores, existentes em grau superlativo. Isso,<br />
porém, que eu confesso, é necessário que seja<br />
verda<strong>de</strong>iro, porque, se não o fosse, eu seria mais alto<br />
ao objetivar um Deus fictício ou uma quimera<br />
50
verum et realem; quod est falsum et impossibile. Aliter<br />
essem altior in virtute, obiectando, quam per Deum<br />
essem causatus, quod est absurdum dicere.<br />
Ait Intellectus: Multa alia <strong>de</strong> me possum dicere; sed<br />
esset longum narrare. Sed per ea, quae dixi, potest<br />
intelligi, quidquid <strong>de</strong> me dici potest.<br />
espiritual do que ao objetivar o Deus verda<strong>de</strong>iro e<br />
real, o que é falso e impossível. De outro modo, eu<br />
seria mais alto em virtu<strong>de</strong> objetivando do que se<br />
fosse causado por Deus, o que é absurdo dizer.<br />
Disse o Intelecto: Posso dizer muitas outras coisas <strong>de</strong><br />
mim; mas seria longo expô-las. Mas por essas coisas<br />
que disse, po<strong>de</strong> ser entendido tudo o que po<strong>de</strong> ser<br />
dito <strong>de</strong> mim.<br />
Resumindo e concluindo finalmente o nosso trabalho, po<strong>de</strong>mos dizer:<br />
Na estruturação universal dos entes em diversas escalas <strong>de</strong> participação no<br />
ser, o Intelecto irrompe do mundo relacional <strong>de</strong> matéria e forma e se apresenta como<br />
ente mais livre e autônomo. O intelecto se apresenta como primeiro elemento da<br />
constelação <strong>de</strong> forma livre. Como a forma se dispõe <strong>de</strong> modo livre, suas relações<br />
internas não se estruturam mais como in-formação da matéria, mas sim como<br />
<strong>de</strong>sdobramento vigoroso, cada vez mais límpido, on<strong>de</strong> as construções generativas e<br />
corruptivas se dão nos mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ato e potência.<br />
Quando, na segunda parte <strong>de</strong>ste trabalho, falávamos da relação <strong>de</strong> causas<br />
“material mais eficiente” que gera o reino dos entes vivos, dos animais, dizíamos que<br />
estes entes são providos <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma vigência maior no seu ser, em<br />
termos lulianos, são providos das faculda<strong>de</strong>s sensitiva e imaginativa.<br />
Entre os entes, regidos pela forma, a modo <strong>de</strong> causa eficiente, vão surgindo<br />
inúmeras graduações <strong>de</strong> participação do ser. Essas elevações vão ocorrendo a<br />
modo <strong>de</strong> concreções, cada vez novas e únicas, que iniciam pelos ínfimos animais,<br />
passam pelo homem e <strong>de</strong>sembocam nos seres constituídos pela pura forma, seres<br />
espirituais, anjos e como máxima plenificação <strong>de</strong>stes, Deus, pura vigência e<br />
autonomia no seu ser.<br />
Esta disposição cada vez mais <strong>de</strong>nsa e intensa na entida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser imagem<br />
e semelhança do Deus Pai, na profusão, gran<strong>de</strong>za e finura da plenitu<strong>de</strong> do “ens a<br />
se”, Deus, apresenta o intelecto, vonta<strong>de</strong> e memória, não mais como três<br />
proprieda<strong>de</strong>s a modo <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong>nominados faculda<strong>de</strong>s da mente, mas como<br />
vigência, po<strong>de</strong>r, potencialida<strong>de</strong> da plenitu<strong>de</strong> do movimento que se indica com o<br />
binômio potencia-ato, cuja culminância se chama o ato puro, o “ens a se”. Assim<br />
sendo, intelecto, vonta<strong>de</strong> e memória do homem não é outra coisa do que a imagem<br />
e semelhança da unida<strong>de</strong> indissolúvel do Deus uno e Trino; como fonte e gênese.<br />
51
Numa concreção <strong>de</strong> doação magnânima e misericordiosa do ser e no ser <strong>de</strong> todos<br />
os entes, num encontro <strong>de</strong> amor, como Criação, ou melhor Filiação.<br />
A presença <strong>de</strong>ssa fonte e origem <strong>de</strong> todas as coisas, sob a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong><br />
amor <strong>de</strong> Deus, sua gratuita doação <strong>de</strong> si e o universo como recepção agraciada e<br />
grata <strong>de</strong>ssa doação vai se fortalecendo, intensificando em cada escalonamento <strong>de</strong><br />
participação no ser até se apresentar como plena <strong>de</strong> autonomia, liberda<strong>de</strong> e vida<br />
própria, como características da vida divina em nós. Começa, assim, no Intelecto a<br />
<strong>de</strong>stacar-se a irrupção ou eclosão do espírito. Para os medievais o espírito diferencia<br />
o homem, pois se apresenta como manifestação <strong>de</strong>ítica trinitária. Mesmo sendo uno,<br />
como Deus, o espírito se distingue em três elementos que se apresentam como<br />
autonomias próprias, compondo uma unida<strong>de</strong>. A estes modos autônomos, distintos,<br />
mas que compõe a unida<strong>de</strong>, não como ajuntamento, mas como efervescência e<br />
pujança do mesmo espírito, os medievais chamam <strong>de</strong> Intelecto, Vonta<strong>de</strong> e Memória.<br />
No reino dos espíritos, da liberda<strong>de</strong> e autonomia, on<strong>de</strong> o intelecto está<br />
situado, vemos a participação no ser como imortalida<strong>de</strong>. Assim, o homem é<br />
corruptível em sua matéria, corpo, e ten<strong>de</strong>, por ela, à morte. Mas em sua<br />
participação no ser, pela vigência <strong>de</strong> sua escalação na composição universal dos<br />
entes no ser, o intelecto humano se faz imortal, pois é participante da realida<strong>de</strong><br />
divina, como duração.<br />
Sendo o homem a imagem e semelhança <strong>de</strong> Deus, cada elemento do<br />
Espírito correspon<strong>de</strong> a uma das pessoas da trinda<strong>de</strong>. O Intelecto correspon<strong>de</strong> ao<br />
Pai, a memória ao Filho e a vonta<strong>de</strong> ao Espírito Santo. O Espírito humano é a<br />
pujança <strong>de</strong>ítica no homem.<br />
Lúlio chama este modo <strong>de</strong> participação no ser <strong>de</strong> alma racional, racional<br />
aqui não como racionalismo, a modo <strong>de</strong> iluminismo, mas racional na perspectiva<br />
grega <strong>de</strong> “logos”, como ajuntamento, recolhimento, <strong>de</strong>nsificação da presença e vigor<br />
do divino.<br />
Esse recolhimento, <strong>de</strong>nsificação é simultaneamente centrípeta e centrífuga<br />
a modo do imenso, profundo, qual abissal espiral da vitalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amor divino, em<br />
cujo “olho <strong>de</strong> furacão” se abisma a unida<strong>de</strong> do Deus uno em quem e para cujo ponto<br />
<strong>de</strong> fuga se expan<strong>de</strong> como conjunto da Criação-Filiação em imagens e semelhanças<br />
do Deus uno e trino.<br />
52
Meu amado é uno, e em sua unida<strong>de</strong> unem-se em uma única vonta<strong>de</strong><br />
meus pensamentos e meus amores; e a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meu amado<br />
reúne todas as unida<strong>de</strong>s e todas as pluralida<strong>de</strong>s. E a pluralida<strong>de</strong> que<br />
há em meu amado reúne todas as unida<strong>de</strong>s e pluralida<strong>de</strong>s. (LLULL,<br />
1948, p. 515)<br />
Não queremos trazer a este espaço uma finalização, como que inúmeras<br />
conclusões, como um cerramento do trabalho, mas uma provocação, uma incitação,<br />
um estímulo, para um novo trabalho, talvez agora, um pouco mais diferenciado e<br />
completo, como uma tarefa da vida. Mirando, e centrando esforços em outro aspecto<br />
da constituição do ser nos entes, olhando agora a concreção do homem na clara<br />
consciência <strong>de</strong> sua relação com o criador, na pujança <strong>de</strong> seu espírito, tematizando-o<br />
como intelecto, vonta<strong>de</strong> e memória.<br />
Pelas sendas da vegetativa, da sensitiva, da imaginativa, do intelecto<br />
e da vonta<strong>de</strong> vai o amigo buscando seu Amado. Nestas sendas o<br />
amigo sofre perigos, enfermida<strong>de</strong>s, penúrias e muitas dificulda<strong>de</strong>s,<br />
somente para elevar seu intelecto e sua vonta<strong>de</strong> até o Amado, o que<br />
para o Amado é muito bom. Pois o amado quer que aqueles que o<br />
amam o entendam e, assim, o amem ao extremo. (LLULL, 1948, p.<br />
516)<br />
53
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LÚLIO, R.. O livro do gentio e dos três sábios. Trad. Esteve Jaulent. Vozes:<br />
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55
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SÃO TOMAS DE AQUINO. O ente e a essência. Trad. Luiz João Baraúna. (Coleção<br />
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STEIN, E. Ser finito y ser eterno – Ensáyo <strong>de</strong> uma ascensión al sentido <strong>de</strong>l ser.<br />
Trad. Alberto Pérez Monroy. Mexico: Fondo <strong>de</strong> Cultura Económica, S.A. 1994.<br />
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VV.AA. Logos – Enciclopédia Luso-brasileira <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>. v.3. Lisboa: Verbo. 1990.<br />
56
APÊNDICE I - A ÁRVORE PORFIRIANA<br />
Árvore porfiriana, trata-se <strong>de</strong> uma clássica representação gráfica, muito<br />
popular na Ida<strong>de</strong> Média, da estrutura organizativa do universo, atribuída a Porfírio 32 .<br />
Diz respeito à or<strong>de</strong>nação do universo centrada na distinção entre gênero e espécie,<br />
tendo na parte superior o ser e na parte inferior os indivíduos. Essa or<strong>de</strong>nação<br />
essencial somente diz referência às substâncias compostas.<br />
Espécie especialíssima<br />
Homem<br />
Diferença Específica<br />
Racional<br />
Irracional<br />
Gênero Supremo<br />
Animal<br />
Diferença Específica<br />
Sensível<br />
Não sensível<br />
Gênero Subalterno<br />
Animado<br />
Diferença Específica<br />
Vivente<br />
Não vivente<br />
Gênero Ínfimo<br />
Corpo<br />
Composta<br />
Simples<br />
Matéria<br />
Prima<br />
32 Porfírio, nasceu em 232, morreu em 304, filósofo neoplatônico, discípulo <strong>de</strong> Plotino, responsável<br />
por organizar e publicar 54 tratados do mestre na obra As Enéadas, composta por seis livros.<br />
Escreveu ainda uma biografia <strong>de</strong> Plotino (A Vida <strong>de</strong> Plotino) e comentários às obras <strong>de</strong> Platão e<br />
Aristóteles. Seu livro “Introdução aos Predicamentos”, comentário das categorias <strong>de</strong> Aristóteles, foi<br />
traduzido para o latim por Boécio, sob o nome <strong>de</strong> “Isagoge”, transformou-se num texto difundido<br />
entre as universida<strong>de</strong>s medievais, possibilitando <strong>de</strong>senvolvimento na filosofia, teologia e lógica<br />
durante a Ida<strong>de</strong> Média, neste livro está a Árvore Porfiriana.<br />
57
APÊNDICE II - COSMOLOGIA MEDIEVAL<br />
A modo <strong>de</strong> ilustração, <strong>de</strong>ixamos uma imagem da estrutura cosmológica<br />
universal difundida na Ida<strong>de</strong> Média.<br />
No centro temos a terra, como espaço relacional <strong>de</strong> matéria e forma, geração<br />
e corrupção; e fora da terra, na concepção <strong>de</strong> escalonamento <strong>de</strong> participação no ser,<br />
temos as várias esferas celestes 33 .<br />
33 O tema foi exposto no Capítulo 3, quando comentamos o <strong>Movimento</strong>.<br />
58