A formação do cavaleiro: Perceval ou O Conto do Graal ... - Mirabilia
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COSTA, Ricar<strong>do</strong> da (coord.). <strong>Mirabilia</strong> 4<br />
Jun-Dez 2005/ISSN 1676-5818<br />
“São necessários coração, esforço e prática: é através deles que se pode<br />
aprender uma profissão” (tradução nossa). Cuer (coração), paine (esforço)<br />
e us (prática, hábito) são, portanto, os pré-requisitos exigi<strong>do</strong>s no processo<br />
educativo.<br />
Antes de mais nada, é necessária uma predisposição <strong>do</strong> sujeito: é o que o autor<br />
chama cuer. <strong>Perceval</strong>, descendente de uma linhagem de <strong>cavaleiro</strong>s, possui uma<br />
inclinação inata a seguir o mesmo caminho <strong>do</strong> pai e <strong>do</strong>s irmãos mais velhos,<br />
conforme demonstra o fascínio senti<strong>do</strong> pelo rapaz no momento em que,<br />
quan<strong>do</strong> ainda era inconsciente de sua identidade, encontra pela primeira vez<br />
os <strong>cavaleiro</strong>s de Artur na floresta em que cresceu. Deve haver, pois, um<br />
sentimento de atração, uma correspondência entre o educan<strong>do</strong> e o que lhe é<br />
ensina<strong>do</strong>; <strong>ou</strong> seja, a proposta que é feita ao aprendiz deve estar de acor<strong>do</strong> (<strong>do</strong><br />
lat. cor: cuer) com sua natureza. Por isso, <strong>Perceval</strong> aprende tu<strong>do</strong> muito rápi<strong>do</strong>:<br />
“A c<strong>ou</strong>sa estava em sua natureza. Quan<strong>do</strong> natureza e coração se juntam, nada<br />
é mais difícil” (p. 44).<br />
“Car il li venoit de nature,<br />
Et quant nature li aprent<br />
Et li cuers del tot i entent,<br />
Ne li puet estre rien grevaine<br />
La <strong>ou</strong> nature et cuers se paine” (v. 1480-1484).<br />
Sobre a base da propensão natural, entretanto, é preciso trabalho: paine. O<br />
mesmo Gornemant de Goort diz que “homem pode sempre aprender o que<br />
quer, desde que se empenhe” (p. 44):<br />
“Ce qu'en ne set puet on aprendre,<br />
Qui i velt pener et endendre” (v. 1463-1464).<br />
E <strong>Perceval</strong> se empenha, pois percebe que o que lhe ensinam está de acor<strong>do</strong><br />
com sua ín<strong>do</strong>le mais íntima. Ainda que motiva<strong>do</strong> por essa correspondência, o<br />
jovem sabe que sua formação é fruto de uma conquista laboriosa. Sen<strong>do</strong> que<br />
Chrétien de Troyes visava apenas a indicar o percurso, o méto<strong>do</strong> e os<br />
objetivos da formação de um <strong>cavaleiro</strong>, sua exposição é esquemática e os<br />
passos são da<strong>do</strong>s com grande rapidez. Os erros cometi<strong>do</strong>s por <strong>Perceval</strong> —<br />
retrata<strong>do</strong>s nos episódios <strong>do</strong> r<strong>ou</strong>bo <strong>do</strong> anel da <strong>do</strong>nzela na tenda, da primeira<br />
visita <strong>do</strong> jovem à corte de Artur e da mudez <strong>do</strong> protagonista durante a<br />
procissão <strong>do</strong> <strong>Graal</strong> — conferem verossimilhança ao processo educativo,<br />
demonstran<strong>do</strong> que <strong>Perceval</strong> não se transform<strong>ou</strong> de repente. Embora<br />
procurasse obedecer aos conselhos recebi<strong>do</strong>s, o rapaz, que ainda não<br />
compreendia o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> que lhe havia si<strong>do</strong> dito, simplesmente termina por<br />
realizar o oposto <strong>do</strong> desejável: “on ne devient pas cortois si vite”, observ<strong>ou</strong><br />
Alexandre Micha (1976: 124).<br />
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